88. O poder de controle empresarial, suas potencialidades e limitaçoes na ordem jurídica - o caso das correspondências eletrônicas (Tatiana Bhering Serradas Bon de Sousa Roxo)

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE MINAS GERAISFaculdade Mineira de Direito

    Programa de Ps-Graduao em Direito

    O PODER DE CONTROLE EMPRESARIAL: suas

    potencialidades e limitaes na ordem jurdica -

    o caso das correspondncias eletrnicas

    Tatiana Bhering Serradas Bon de Sousa Roxo

    Belo Horizonte2009

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    Tatiana Bhering Serradas Bon de Sousa Roxo

    O PODER DE CONTROLE EMPRESARIAL: suaspotencialidades e limitaes na ordem jurdica - o

    caso das correspondncias eletrnicas

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao da Faculdade Mineira de Direito daPontifcia Universidade Catlica de MinasGerais, como requisito parcial para obtenodo ttulo de Mestre em Direito do Trabalho.

    Orientador: Prof. Dr. Maurcio Godinho Delgado

    Belo Horizonte

    2009

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    FICHA CATALOGRFICAElaborada pela Biblioteca da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais

    Roxo, Tatiana Bhering Serradas Bon de SousaR887p O poder de controle empresarial: suas potencialidades e limitaes na ordem

    jurdica: o caso das correspondncias eletrnicas / Tatiana Bhering Serradas Bonde Sousa Roxo. Belo Horizonte, 2009.

    187f.Orientador: Maurcio Godinho DelgadoDissertao (Mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais.

    Programa de Ps-Graduao em Direito.

    1. Princpio da dignidade da pessoa humana. 2. Direitos fundamentais. 3.Intimidade. 4. Direito privacidade. 5. Poder (Cincias sociais). 6. Mensagenseletrnicas - Controle. I. Delgado, Maurcio Godinho. II. Pontifcia UniversidadeCatlica de Minas Gerais. Programa de Ps-Graduao em Direito. III. Ttulo.

    CDU: 331.1

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    Tatiana Bhering Serradas Bon de Sousa Roxo

    O PODER DE CONTROLE EMPRESARIAL: suas potencialidades e limitaesna ordem jurdica - o caso das correspondncias eletrnicas

    Dissertao defendida e aprovada com mdiafinal igual a 100 (cem) pontos, como requisitopara a obteno do ttulo de Mestre em Direito,rea de concentrao Direito do Trabalho, junto

    Faculdade Mineira de Direito PontifciaUniversidade Catlica de Minas Gerais.

    __________________________________________________________

    Prof. Doutor Maurcio Godinho Delgado (Orientador) PUC MINAS

    __________________________________________________________

    Prof. Doutor Jos Roberto Freire Pimenta PUC MINAS

    __________________________________________________________

    Prof. Doutor Manuel Galdino da Paixo Jnior UFMG

    Belo Horizonte, 2009.

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    Ao meu pai, Jos Luis

    Por ser exemplo de pai, amigo e excelente

    profissional, que sempre me inspirou e me

    ensina lies valiosas todos os dias. Pelo

    imenso carinho e amor.

    minha me Etelvina Maria

    Por ser a minha incentivadora, sempreacreditando nos meus sonhos e me

    ajudando a concretiz-los, com muito amor.

    Ao Fabrcio

    Pela compreensoe pelo companheirismo.

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    AGRADECIMENTOS

    Ao Prof. Dr. Maurcio Godinho Delgado, pelas aulas ministradas na

    graduao que a mim despertaram o interesse pela rea trabalhista e pela

    atividade acadmica, que culminaram em meu ingresso no Mestrado. Por ter me

    aceitado como orientanda, e incentivado-me em todos os momentos. Pela

    dedicada orientao.

    Aos funcionrios do Mestrado, pela pacincia e dedicao, sempre prontos

    a atender os meus anseios.

    Aos professores da PUC Minas, especialmente ao Professor Jos Roberto

    Freire Pimenta, pelas aulas fascinantes e enriquecedoras; ao Professor Luiz

    Otvio Linhares Renault, pelas lies que nos encorajam a acreditar em um

    Direito do Trabalho mais humano; ao Professor Mrcio Tulio Viana, pela viso

    social e entusiasta do direito trabalhista, que enriquece as aulas.

    Aos colegas do Mestrado, por compartilharem a passagem pela Academia

    e, em especial, Mirella Muniz, amiga que ganhei ao ingressar no Mestrado, que

    continua me acompanhando em todos os momentos e, apoiando-me,

    incondicionalmente, nesta caminhada.

    s amigas da PUC MINAS pelo incentivo, carinho e, principalmente, pela

    pacincia.

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    RESUMO

    A presente dissertao tem como objetivo principal analisar a fiscalizao das

    correspondncias eletrnicas, luz do princpio da dignidade da pessoa humana,

    dos direitos intimidade e privacidade, bem como, das prerrogativas

    empresariais. A princpio, ser analisada a dignidade da pessoa humana; a sua

    evoluo histrica e conceitual; o seu contedo; o seu tratamento como norma

    fundamental; a incidncia da dignidade nas relaes particulares, e o seu

    tratamento no mbito constitucional e trabalhista. Em seguida, ser analisada a

    evoluo dos direitos de personalidade, em especial a intimidade e a privacidade,

    e a proteo dada s correspondncias eletrnicas ao longo das constituiesbrasileiras. Reconhece-se a aplicao dos direitos fundamentais s relaes

    particulares, em especial as trabalhistas, atravs da horizontalizao dos direitos

    fundamentais. Feito isto, mister ressaltar a caracterizao do poder de controle

    empresarial, suas caractersticas e prerrogativas, bem como, as limitaes que

    encontra no ordenamento jurdico. Com o intuito de sopesar os direitos em conflito

    diante da fiscalizao dos e-mails, a resoluo de casos concretos ser objeto de

    apreciao. Diante do estudo realizado, afirma-se que a fiscalizao deve ser feitade forma razovel, obedecendo a determinadas limitaes, sendo respeitado,

    primeiramente, o princpio da dignidade da pessoa humana.

    Palavras-chave: Princpio da Dignidade da Pessoa Humana. Direitos

    fundamentais. Intimidade. Privacidade. Poder de controle empresarial.

    Correspondncias eletrnicas.

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    LISTA DE ABREVIATURAS

    Art. Artigo

    Cap. Captulo

    Ed.

    Inc.

    Edio

    Inciso

    N. Nmero

    P. Pgina

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    LISTA DE SIGLAS

    ADPF Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental

    CCB Cdigo Civil Brasileiro

    CPC

    CR/88

    CUT

    Cdigo de Processo Civil

    Constituio da Repblica de 1988

    Central nica dos Trabalhadores

    DJMG

    HSBC

    Dirio da Justia de Minas Gerais

    HongKong and Shanghai Banking Corporation

    NCC Novo Cdigo Civil

    OIT Organizao Internacional do Trabalho

    ONU Organizao das Naes Unidas

    RIP Regulamentation of Investigatory Power

    STF Supremo Tribunal Federal

    TRT Tribunal Regional do Trabalho

    TST

    UNESCO

    Tribunal Superior do Trabalho

    Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e

    a Cultura

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    SUMRIO

    1. INTRODUO..............................................................................................

    2. A PESSOA HUMANA E A TUTELA DE SUA DIGNIDADE: MBITO

    CONSTITUCIONAL E MBITO JUSTRABALHISTA......................................

    11

    16

    2.1 Evoluo da dignidade da pessoa humana...........................................

    2.2 Dignidade da pessoa humana: contedo...............................................

    2.3 A dignidade da pessoa humana como norma fundamental.................

    2.4 A incidncia da dignidade da pessoa humana nas relaes

    particulares......................................................................................................

    2.5 mbito constitucional e mbito justrabalhista....................................

    16

    27

    40

    51

    54

    3. DIREITOS DA PERSONALIDADE (INTIMIDADE E PRIVACIDADE) NA

    SEARA LABORAL........................................................................................... 60

    3.1 Direitos de personalidade traos evolutivos....................................... 60

    3.2 Intimidade e privacidade: origem histrica e tratamento jurdico...... 72

    3.3 A tutela jurisdicional das correspondncias nas constituies

    brasileiras........................................................................................................ 91

    3.4 A tutela jurisdicional da intimidade e da privacidade dos

    trabalhadores.................................................................................................. 93

    3.5 A horizontalizao dos direitos fundamentais...................................... 101

    4. PODER FISCALIZATRIO EMPRESARIAL: SUAS POTENCIALIDADES

    E LIMITAES NA ORDEM JURDICA.......................................................... 1154.1 Poder fiscalizatrio empresarial: caracterizao................................... 115

    4.2 Potencialidades e prerrogativas do Poder fiscalizatrio

    empresarial....................................................................................................... 126

    4.3 Limitaes do Poder fiscalizatrio empresarial..................................... 129

    4.4 Protees trabalhistas e prerrogativas empresariais a coliso dos

    direitos fundamentais..................................................................................... 137

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    5. A COMUNICAO PESSOAL E PROFISSIONAL DO TRABALHADOR

    NA EMPRESA: ADEQUAO JURDICA ENTRE AS PROTEES

    CONSTITUCIONAIS E LEGAIS PESSOA HUMANA EM CONFRONTO

    COM AS PRERROGATIVAS EMPRESARIAIS O CASO DAS

    CORRESPONDNCIAS ELETRNICAS........................................................ 150

    5.1 A nova fiscalizao............................................................................... 150

    5.2 Correspondncia eletrnica: repercusses jurdicas........................... 153

    5.3 Anlise de situaes concretas.............................................................. 157

    5.4 Formas de adequao: como solucionar o conflito?............................

    6. CONCLUSO...............................................................................................

    REFERNCIAS.................................................................................................

    162

    176

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    1. INTRODUO

    O desenvolvimento tecnolgico que vem acontecendo nos ltimos

    tempos est mudando as relaes entre os homens e, nessa percepo,

    encaixam-se as relaes de trabalho, que sofrem modificaes diante dessa

    nova realidade. A partir da, surgem novas questes que ainda no esto

    pacificadas, como o caso do poder de controle que o empregador pode

    exercer sobre as correspondncias eletrnicas de seus empregados. A

    pesquisa contribuiu para mostrar a importncia da dignidade da pessoa

    humana, da intimidade e da privacidade dos empregados e os limites que

    devem ser impostos ao poder de controle dos empregadores.A desenfreada globalizao e a constante evoluo tecnolgica pela

    qual a sociedade passa modificaram, e continuam modificando

    significativamente as relaes sociais, principalmente as trabalhistas. O direito

    no evolui com a mesma rapidez que as novas ferramentas tecnolgicas de

    trabalho so inseridas no ambiente laboral. O direito evolui a partir do momento

    em que a sociedade apresenta novas situaes, novos conflitos, aos

    operadores do direito. A partir da, a doutrina instigada a produzir e ajurisprudncia comea a se solidificar em determinada direo.

    possvel resolver conflitos que ainda no foram regulados pelo

    ordenamento jurdico atravs de normas e princpios j existentes, que

    abrangem situaes diversas. A Constituio da Repblica de 1988 instituiu um

    Estado Democrtico de Direito, pautado principalmente na valorizao da

    dignidade da pessoa humana.

    A dignidade da pessoa humana ir permear o estudo do captulo 2devido importncia da sua aplicao em diversas situaes, de forma a

    garantir o cumprimento da Carta Magna.

    Nesse captulo ser feita uma breve exposio acerca da evoluo do

    princpio da dignidade da pessoa humana, no s da aplicabilidade como da

    progressiva normatizao desse princpio, principalmente nas Constituies

    Brasileiras.

    Ser analisada a evoluo da dignidade da pessoa humana no

    pensamento ocidental, passando pelos conceitos dados ao longo da evoluo

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    da sociedade. O iderio cristo, ponto de partida para a identificao da

    dignidade da pessoa humana, ser abordado, bem como o seu tratamento no

    Cristianismo.

    A contribuio do pensamento iluminista do Sculo XVII para a

    introduo da racionalidade humana ser analisada, da mesma forma que a

    considervel contribuio de Kant, atravs de seus imperativos categricos.

    Ser destacada a introduo da dignidade da pessoa humana nos

    diplomas normativos. Aps a barbrie acontecida na Segunda Guerra Mundial,

    as constituies democrticas passam a incluir a proteo dignidade da

    pessoa humana em seus textos, contribuindo de forma significativa para a

    evoluo da sua proteo e valorizao.A Carta Magna de 1988 promulgada instituindo um Estado

    Democrtico de Direito e alando a dignidade da pessoa humana a

    fundamento, princpio e objetivo da ordem democrtica atual. Neste momento o

    Brasil evolui significativamente em relao proteo aos direitos

    fundamentais.

    Ainda no captulo 2, ser analisado o contedo da dignidade da pessoa

    humana atravs da contribuio de diversos autores que debatem o tema. Serressaltada a importncia de existir um contedo minimamente definido, para

    que exista uma maior efetividade na sua aplicao, sob pena da dignidade da

    pessoa humana ser tutelada apenas como uma regra moral.

    Ser objeto do estudo o tratamento da dignidade da pessoa humana

    como norma fundamental, bem como sua condio como norma jurdica,

    atuando, principalmente, como princpio jurdico basilar de todo o ordenamento

    jurdico.Passa-se, ento, a tratar da incidncia da dignidade da pessoa humana

    nas relaes particulares, sendo concentrado o estudo na possibilidade de

    relativizao dos direitos fundamentais e na aplicao da ponderao s

    situaes concretas. Ser evidenciado o fato de que, nas relaes particulares,

    nem sempre se depara com seres iguais, ao revs, na maioria das vezes se

    encontram seres desiguais, como o caso das relaes laborais.

    Posteriormente, trata-se da aplicao da dignidade da pessoa humana

    no mbito constitucional e no mbito justrabalhista. Ser estudada a incidncia

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    do princpio da dignidade da pessoa humana nas relaes laborais, bem como,

    as normas que garantem a sua proteo nesta rea.

    Ser demonstrado que o empresariado deve respeitar a dignidade da

    pessoa humana dos trabalhadores, uma vez que os mesmos no se despem

    desta caracterstica ao celebrar o contrato de trabalho, sendo certo que a

    dignidade inerente ao ser humano, alm de ser irrenuncivel.

    No captulo 3, sero analisados os direitos de personalidade,

    principalmente a intimidade e a privacidade, bem como, a proteo das

    correspondncias eletrnicas nas constituies brasileiras. A priori ser

    destacada a evoluo dos direitos de personalidade, passando anlise da

    evoluo histrico-jurdica da intimidade e da privacidade.Uma das formas mais primitivas de proteo intimidade a proteo

    s correspondncias, no s atravs de leis, como atravs das constituies,

    conforme restar evidenciado no decorrer do captulo 3.

    A tutela da intimidade e da privacidade dos trabalhadores ser objeto de

    estudo, bem como a sua importncia dentro do contexto da relao de

    emprego, em que os empregados encontram-se em situao desigual e

    hipossuficiente em relao aos empregadores e s novas formas fiscalizatriascolocadas disposio da sociedade.

    Por fim, ser abordada a horizontalizao dos direitos fundamentais,

    teoria de extrema importncia para o presente estudo, que surgiu no ano de

    1961, na Alemanha. Insta destacar a teoria da eficcia imediata, a teoria da

    eficcia mediata e a teoria dos deveres de proteo do estado. Alexy concilia

    as teorias supracitadas e contribui para a incidncia dos direitos fundamentais

    nas relaes particulares, conforme ser demonstrado. Sero destacadoselementos que contriburam para a incidncia dos direitos fundamentais nas

    relaes particulares, quais sejam: a transio do Estado Liberal para o Estado

    Social; a constatao de que o poder no fenmeno exclusivo do Estado,

    mas tambm da sociedade; e o reconhecimento da dimenso objetiva dos

    direitos fundamentais.

    No captulo seguinte, ser estudado o Poder de controle empresarial,

    elemento de extrema importncia para a anlise das situaes de coliso entre

    este poder e os direitos fundamentais dos trabalhadores. At que ponto o

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    exerccio desse poder pode ser feito sem agredir as limitaes que a ordem

    jurdica impe-lhe, de forma a respeitar os princpios da dignidade humana, da

    intimidade e da privacidade de seus empregados.

    O Poder fiscalizatrio das empresas permite que estas exeram um

    Poder de controle sobre os seus empregados. Esse poder dotado de

    potencialidades, mas tambm, encontra limitaes impostas pela ordem

    jurdica e pelos princpios norteadores do Direito do Trabalho assim como do

    Direito Constitucional. Ser analisado de que forma o empregador pode

    fiscalizar o empregado, sem agredir-lhe a dignidade da pessoa humana e

    invadir a sua privacidade, especialmente, no caso das correspondncias

    eletrnicas.Primeiramente ser feita uma anlise do fenmeno do poder, passando

    ao estudo do poder empresarial e, posteriormente, ao estudo do poder

    fiscalizatrio especificamente. A partir da, sero estudadas as potencialidades

    e prerrogativas encontradas na ordem jurdica, que legitimam o exerccio do

    Poder de controle dos empregadores. Para tanto, sero analisadas normas

    constitucionais que legitimam a prerrogativa dos empregadores de organizar,

    dirigir e fiscalizar a atividade empresria.As limitaes a este poder tambm sero objeto de estudo, sendo

    debatido que tais limites, de certa forma, legitimam o poder de controle, uma

    vez que afastam uma eventual arbitrariedade no seu exerccio. Limites estes

    que sero encontrados em normas constitucionais, trabalhistas e, at mesmo,

    em regulamentos criados pelos prprios empresrios.

    Por fim, o captulo 4 passar a cuidar das colises decorrentes das

    protees trabalhistas e das prerrogativas empresariais. Quando o exerccio dopoder de controle empresarial encontra limitaes nos direitos fundamentais

    dos trabalhadores, ocorre uma coliso de direitos fundamentais. Como ser

    constatado, tais casos devero ser analisados luz do princpio da

    proporcionalidade, sendo utilizada a tcnica da ponderao.

    No captulo 5, as novas formas de fiscalizao introduzidas com os

    avanos tecnolgicos pelos quais a sociedade vem passando sero objeto de

    estudo. As correspondncias eletrnicas, instrumento inserido nas relaes

    laborais e, atualmente, principal meio de comunicao dentro das empresas,

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    sero estudadas. As diferenciaes existentes nesta nova forma de

    comunicao e suas repercusses no ordenamento jurdico sero objeto de

    debate e contribuiro para a anlise das situaes concretas que ser feita a

    posteriori.

    Com o intuito de analisar as respostas que tm sido dadas sociedade

    no que diz respeito fiscalizao das correspondncias eletrnicas, sero

    analisados casos concretos, de forma a esclarecer qual a linha dos

    operadores de direito e quais fundamentos vm sendo utilizados para embasar

    as decises.

    Finalmente, sero estudadas formas de adequao propostas por

    diversos autores entre o poder de controle e a preservao da intimidade e daprivacidade dos trabalhadores.

    O tema escolhido controvertido, ou seja, no existe ainda uma soluo

    pacfica e amplamente aceita nos tribunais, os julgados acerca do tema so

    recentes, at mesmo por ser uma questo nova. Assim, as correntes

    doutrinrias procuram expor solues com justificativas plausveis, uma vez

    que no existem normas na legislao brasileira que tratem especificamente da

    violao dos e-mailsnas relaes de trabalho.O objetivo do presente trabalho estabelecer de que forma poder ser

    realizada a fiscalizao das correspondncias eletrnicas, sem que a

    intimidade e a privacidade dos trabalhadores sejam violadas, sendo respeitado

    o princpio da dignidade da pessoa humana princpio supremo do

    ordenamento jurdico brasileiro.

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    2. A PESSOA HUMANA E A TUTELA DE SUA DIGNIDADE: MBITO

    CONSTITUCIONAL E MBITO JUSTRABALHISTA

    A princpio, ser analisada a evoluo da dignidade da pessoa humana,

    sendo esclarecido, na medida do possvel, o seu contedo, bem como a sua

    positivao como norma fundamental, chegando, finalmente, ao seu tratamento

    no ordenamento jurdico constitucional e trabalhista.

    2.1 Evoluo da dignidade da pessoa humana

    O princpio da dignidade da pessoa humana de extrema importncia

    no ordenamento jurdico brasileiro, sendo considerado o princpio que limita e,

    de certa forma, regula todas as relaes existentes na sociedade,

    principalmente a relao trabalhista. Ressalta-se, assim, a sua evoluo no

    pensamento ocidental.O conceito da dignidade humana, analisado sob o prisma do valor

    intrnseco da pessoa humana, iniciou-se, como prope Ingo Sarlet1, no

    pensamento clssico e no iderio cristo. O autor afirma que, tanto no Antigo

    como no Novo testamento, so encontradas referncias que revelam que o ser

    humano foi criado imagem e semelhana de Deus. De tal premissa o

    cristianismo extraiu a seguinte consequncia: o ser humano dotado de um

    valor intrnseco e deve ser respeitado, no pode ser tratado como mero objeto2

    .O ser humano no deve ser considerado um meio para obter um fim, mas sim,

    um fim em si mesmo.

    Segundo Maria Celina Bodin de Moraes, o desenvolvimento da

    dignidade da pessoa humana no iderio cristo baseou-se em dois

    fundamentos:

    1

    SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais naConstituio Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed. 6, 2008, p.30.2SARLET, 2008, p. 30.

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    o homem um ser originado por Deus para ser o centro da criao;como ser amado por Deus, foi salvo de sua natureza originria,atravs da noo de liberdade de escolha, que o tonra capaz detomar decises contra o seu desejo natural.3

    Helder Martinez afirma que a dignidade da pessoa humana:

    [...] surge com a derrogao das leis de Talio e outros legisladoresda Antiguidade, pelos preceitos trazidos a lume pelo cristianismo, nasmximas uniformizadoras do bem proceder, que ditam o amar aoprximo como a si mesmo e o fazer ao prximo todo o bem quegostareis que vos fizessem e no lhe fazer o mal que no gostareisque vos fosse feito.4

    Com o advento do Cristianismo, pela primeira vez o homem passou aser valorizado de forma individual, e a salvao, pela primeira vez, no s era

    individual, como dependia de uma deciso pessoal5.

    A tradio do pensamento cristo enfatiza que cada homem relaciona-se

    com um Deus, que tambm pessoa6, assim, chega-se concepo do ser

    humano como um ser distintivo, uma vez que dotado de conscincia e razo.

    Na Encclica Rerum Novarum, de 1891, Leo XIII j funda seus

    ensinamentos na necessidade de respeito dignidade do homem,

    evidenciando como uns dos princpios relativos a tal mxima os princpios

    referentes dignidade do trabalhador7. Leo XIII alia ao sentido de valorizao

    do homem, a valorizao do trabalho, chegando, assim, valorizao do

    homem enquanto ser trabalhador.

    No pensamento filosfico e poltico da antiguidade clssica, a dignidade

    dizia respeito ao grau de reconhecimento perante aos demais membros da

    comunidade e posio social ocupada pelo indivduo8. Nessa poca havia a

    3MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiolgico econtedo normativos, in SARLET, Ingo Wolfgang. Constituio, direitos fundamentais edireito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 113.4DAL COL, Helder Martinez. O princpio da dignidade da pessoa humana, o direito ao trabalhoe a preveno da infortunstica. So Paulo: Revista de Direito do Trabalho, n. 111, jul./set.2003, p. 235.5 BARCELLOS, Ana Paula de. Normatividade dos princpios e o princpio da dignidade dapessoa humana na constituio de 1988. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo,Ed. Renovar n. 221, jul./ago./set. 2000, p. 160.6 GOMES, Dinaura Godinho Pimentel. O princpio constitucional da dignidade da pessoahumana e a flexibilizao da legislao trabalhista. So Paulo: Revista de Direito

    Constitucional e Internacional, v. 11, n. 44, jul./set. 2003, p. 94.7GOMES, 2003, p. 118.8SARLET, 2008, p. 30.

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    20/189

    gradao da dignidade: o sujeito era mais ou menos digno que as demais

    pessoas de sua convivncia.

    Os gregos no conheciam a dignidade da pessoa singular. Contudo,

    Aristteles exaltava o homem, quando perfeito, como o melhor ser de todos os

    animais, mas, quando afastado do direito e da justia, como o pior de todos9.

    J no pensamento estico, a dignidade era vista de forma diversa, a

    dignidade era tida como a qualidade que, por ser inerente ao ser humano,

    distinguia-o das demais criaturas, no sentido de que todos os seres humanos

    so dotados da mesma dignidade10. Esta noo encontra-se ligada idia de

    liberdade pessoal dos indivduos, sendo o homem um ser livre e responsvel, e

    tambm idia de que todos os seres humanos, no que diz com a suanatureza, so iguais em dignidade11.

    Dinaura Godinho Gomes assinala que, para os esticos, o homem

    conduzia a sua vida segundo as leis da natureza, uma vez que fazia parte da

    natureza csmica e seguia os ditames da razo12. Os esticos propunham que

    existia uma lei comum na natureza baseada na razo, e que tal lei era vlida

    universalmente, em todo o cosmo13.

    Ccero, um dos principais expoentes do estoicismo, defendia a idia deque a mente e a razo do ser humano inteligente eram o padro que iria medir

    a justia e a injustia, e acreditava ser a justia inerente ao ser humano14.

    Como ressalta Dinaura Godinho Gomes, a idia de justia dos esticos

    acabou por influenciar os movimentos contrrios discriminao, inclusive

    escravido. Segundo a autora,

    Estavam convencidos os filsofos esticos de que os homens soessencialmente iguais, razo por que as discriminaes entre eles,por conta do sexo, classe, raa ou nacionalidade eram injustas econtrrias lei da natureza. Tal idia de igualdade foi transplantadano terreno da filosofia poltica e na jurisprudncia do Imprio Romano,o que, gradualmente, determinou mudanas no que concerne sconcepes referentes escravido.15

    9GOMES, 2003, p. 94.SARLET, 2008, p. 30.

    SARLET, 2008, p. 30.

    12GOMES, 2003, p. 94.13

    GOMES, 2003, p. 94.14GOMES, 2003, p. 94.15GOMES, 2003, p. 94.

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    Logo na primeira fase do cristianismo, o Papa So Leo Magno contribui

    para a evoluo da dignidade da pessoa humana, como ensina Sarlet, com a

    seguinte idia:

    [...] os seres humanos possuem dignidade pelo fato de que Deus oscriou sua imagem e semelhana, e que, ao tornar-se homem,dignificou a natureza humana, alm de revigorar a relao entre oHomem e Deus mediante a voluntria crucificao de Jesus Cristo16.

    Anicio Manlio Severino Bocio, no perodo inicial da Idade Mdia,

    elaborou um conceito novo de pessoa que acabou por influenciar a noo

    moderna de dignidade da pessoa humana. Bocio definiu a pessoa como

    substncia individual de natureza racional17. So Toms de Aquino foi

    influenciado por Bocio e chegou a utilizar o termo dignitas humana18.

    No perodo da Renascena, o italiano Giovanni Pico della Mirandola, um

    dos mais notveis representantes do renascentismo, exaltou a racionalidade

    como qualidade essencial e peculiar do ser humano, e advogou ser esta a

    qualidade que lhe possibilita construir de forma livre e independente sua

    prpria existncia e seu prprio destino19. O discurso de Giovanni, chamado

    Oratio de Hominis Dignitate, foi considerado um marco do renascimento

    humanista, datado de 1486, poca em que o italiano era um jovem com apenas

    23 anos20.

    Como ensina Sarlet, o jovem italiano Giovanni, ao justificar a

    superioridade do homem em relao aos demais seres, afirmou que,

    [...] sendo criatura de Deus, ao homem (diversamente dos demaisseres, de natureza bem definida e plenamente regulada pelas leisdivinas) foi outorgada uma natureza indefinida, para que fosse seuprprio rbitro, soberano e artfice, dotado da capacidade de ser eobter aquilo que ele prprio quer e deseja.21

    16SARLET, 2008, p. 31.17BOCIO apud SARLET, 2008, p.31.18SARLET, 2008, p. 32.19

    SARLET, 2008, p. 32.20MORAES, 2006, p. 114.21SARLET, 2008, p. 32.

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    A noo encontrada no Antigo e no Novo testamento22 foi afirmada por

    Toms de Aquino, que acentuou a idia de que o ser humano existe em funo

    da sua vontade, exaltando a capacidade de autodeterminao da natureza

    humana. So Toms de Aquino, influenciado pelas idias de Aristteles e

    Ccero, propunha que o homem, por sua vontade constante, d a cada um

    aquilo que lhe pertence23.

    So Toms de Aquino entendia que, pela justia distributiva, cada um

    vai receber aquilo que lhe devido, diante da sua posio pessoal na

    comunidade, coisas diversas so proporcionadas a pessoas diversas, na

    proporo de sua dignidade pessoal24. Dinaura Godinho Gomes destaca, ainda

    na concepo tomista, a alteridade e o dever como propriedades essenciais dajustia, existindo a exigncia de um dever: ser justo prestar o devido a

    algum25.

    Ingo Sarlet ressalta a importante contribuio do espanhol Francisco de

    Vitria para a construo da noo da dignidade da pessoa humana. Segundo

    Sarlet, no sculo XVI, o espanhol sustentou, relativamente ao processo de

    aniquilao, explorao e escravizao dos habitantes ndios e baseado no

    pensamento estico e cristo,

    [...] que os indgenas, em funo do direito natural e de sua naturezahumana eram em princpio livres e iguais, devendo ser respeitadoscomo sujeitos de direitos, proprietrios e na condio de signatriosdos contratos firmados com a coroa espanhola.26

    No sculo XVII, com o movimento iluminista, a religiosidade deixou de

    ser o centro do sistema de pensamento, e foi substituda pelo prprio homem,

    assim, inicia-se um pensamento centrado na racionalidade humana. SegundoAna Paula de Barcellos, esta mudana de paradigma resultou no fato de que:

    O desenvolvimento terico do humanismo acabara por redundar emum conjunto de consequncias relevantes para o desenvolvimento daidia de dignidade humana, como a preocupao com os direitos

    22Referente noo de que o homem foi feito imagem e semelhana de Deus, anteriormentedestacada.23GOMES, 2003, p. 95.24

    GOMES, 2003, p. 95.25GOMES, 2003, p. 95.26SARLET, 2008, p. 32.

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    individuais do homem e o exerccio democrtico do poder. Comefeito, a regra majoritria era a frmula capaz de realizar a igualdadeessencial de cada homem no mbito da delibrao poltica.27

    O pensamento de Immanuel Kant, nos sculos XVII e XVIII, perodo emque houve um processo de racionalizao, deve ser destacado. Com a

    concepo kantiana da dignidade da pessoa humana, os traos religosos foram

    abandonados sem, contudo, desconsiderar a profunda influncia do

    pensamento cristo, principalmente a acepo desenvolvida por So Toms

    de Aquino e Bocio.

    Em 1788, com a Crtica da Razo Prtica, Kant reconstruiu a moralidade

    em novas bases, criou o imperativo categrico, que deve valeruniversalmente, para toda e qualquer ao moral28. O imperativo categrico de

    Kant se traduz na seguinte sentena: Age de tal modo que a mxima de tua

    vontade possa sempre valer simultaneamente como um princpio para uma

    legislao geral29. O imperativo categrico de Kant orientado pelo valor

    supremo da dignidade da pessoa humana.

    Kant ressaltou que o ser humano no poderia ser tratado como um mero

    instrumento, objeto, o homem um fim em si mesmo30. Sua concepo de

    dignidade considera a autonomia tica do ser humano como o fundamento da

    dignidade do homem. Ainda,

    [...] Kant sinala que a autonomia da vontade, entendida como afaculdade de determinar a si mesmo e agir em conformidade com arepresentao de certas leis, um atributo apenas encontrado nosseres racionais, constituindo-se no fundamento da dignidade danatureza humana.31

    Immanuel Kant afirma que quando uma coisa tem um preo, ela pode

    ser substituda por outra coisa que contenha um preo equivalente, isso

    acontece no reino dos fins. Entretanto, quando uma coisa no tem preo, mas

    27BARCELLOS, 2000, p. 160.28MORAES, 2006, p. 115.29

    MORAES, 2006, p. 115.30Idia j destacada pelo cristianismo.31SARLET, 2008, p. 33.

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    est acima do preo e no pode ser substituda, no possui equivalente, ela

    tem dignidade32. Neste sentido, Kant destaca que:

    Aquilo que se relaciona s inclinaes e s necessidades gerais dohomem tem um preo de mercado; (...) mas aquilo que constitui acondio necessria pela qual alguma coisa possa ser um fim em simesma, no tem um valor relativo, ou um preo, mas um valorintrnseco, que a dignidade.33(grifos nossos)

    Para Kant, o Direito e o Estado devero estar organizados em benefcio

    dos indivduos e necessrio que exista uma separao dos poderes, alm de

    uma generalizao do princpio da legalidade como forma de assegurar aos

    homens a liberdade de perseguirem seus projetos individuais34

    .Assim, possvel afirmar que Kant considera o homem universalmente

    em funo de sua autonomia, como um fim em si mesmo, nunca como um

    intrumento para atingir determinado fim, que possui valor inestimvel e

    inaprecivel. Othon de Azevedo Lopes destaca como desdobramentos ticos e

    morais da proposta de Kant as seguintes proposies:

    [...] 1) a impossibilidade de se coisificar o homem, relativizando-o oumensurando-o; 2) a indisponibilidade de tal condio; 3) atransformao do ser humano em meio quando seus direitosfundamentais so violados; 4) a necessidade de se promover ahumanidade como um fim em si mesma; 5) a constituio de umacomunho de fins para a promoo da felicadade do indivduo; e 6) aafirmao da dignidade da pessoa humana como um princpiosupremo.35(grifos nossos)

    A doutrina nacional e internacional fundamenta e conceitua a dignidade

    da pessoa humana atualmente com base no pensamento kantiano. Tal

    pensamento est sujeito crtica de conter um antropocentrismo exacerbado,uma vez que leva em considerao apenas os seres racionais. Entretanto,

    atualmente, cada vez mais fala-se em proteo aos demais seres vivos, ao

    meio ambiente, a todos os recursos naturais, assim, pode-se falar em uma

    32SARLET, 2008, p. 34.33 KANT, Immanuel apud LOPES, Othon de Azevedo. Dignidade da pessoa humana eresponsabilidade civil. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo, Ed. Renovar, n. 238,

    out./dez. 2004, p. 209.34BARCELLOS, 2000, p. 161.35LOPES, 2004, p. 211.

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    dimenso ecolgica da dignidade da pessoa humana36. Tema este que no

    ser objeto do presente trabalho.

    O desenvolvimento do pensamento kantiano incentivou bastante a

    produo jurdica. Entretanto, existiram diversos contrapontos, dentre eles, o

    desenvolvido por Hegel. Expoente do idealismo filosfico alemo do sculo

    XIX, Hegel sustentava que a dignidade no nasce com o ser humano, mas que

    o ser humano torna-se digno, no momento em que assume sua condio de

    cidado37.

    Hegel prope que a dignidade advm de um reconhecimento,

    especificamente no fato de que cada um deve ser pessoa, ser racional, e

    respeitar os demais como pessoas, seres racionais38. A despeito de possuirpontos em comum com o pensamento de Kant, a acepo proposta por Hegel

    afasta da dignidade da pessoa humana as qualidades inerentes a todos os

    seres humanos, alm de no utilizar como principal pressuposto a

    racionalidade39.

    A evoluo da dignidade da pessoa humana foi tratada por diversas

    acepes: desde o pensamento jusnaturalista, passando pela acepo crist e

    humanista e, finalmente, pelo pensamento kantiano, continuando adesenvolver-se at os tempos atuais.

    Uma das primeiras e mais importantes referncias feitas ao princpio da

    dignidade da pessoa humana, na qualidade de princpio jurdico, consta da

    Declarao Universal dos Direitos do Homem, de 10.12.1948, aprovada pela

    Assemblia Geral da ONU realizada em Paris, onde a dignidade aparece como

    base da liberdade, da justia e da paz40. A Declarao trata da dignidade em

    seu prembulo, em seu artigo primeiro, e, j em seu artigo XXIII, a dignidadeda pessoa humana vinculada ao trabalho.

    Influenciado pela Declarao Universal dos Direitos do Homem, o

    primeiro diploma a se manifestar sobre a dignidade da pessoa humana, foi a

    Lei Fundamental de Bonn, de 23 de maio de 1949, tambm influenciada pela

    36SARLET, 2008, p. 35.37SARLET, 2008, p. 38.38

    SARLET, 2008, p. 38.39SARLET, 2008, p. 39.40DELGADO, 2004, p. 14.

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    Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, de 26 de agosto de 178941.

    Na Lei Fundamental de Bonn a dignidade da pessoa humana foi tratada da

    seguinte maneira: A dignidade do homem intangvel. Os poderes pblicos

    esto obrigados a respeit-la e proteg-la (art. 1.1)42.

    Ingo Sarlet, citado por Felipe Kersten e Alessandra Mistrongue, afirma

    que somente possvel falar em incorporao dos direitos do homem ordem

    constitucional com a positivao dos direitos fundamentais na Declarao

    Universal dos Direitos do Homem e do Cidado de 178943.

    Um momento marcante para a evoluo da dignidade da pessoa

    humana foi o final da Segunda Guerra Mundial. Todo o horror acontecido, a

    completa perda da noo da dignidade da pessoa humana, chocou e, de certaforma, transtornou todas as convices que aparentemente eram universais.

    Como ressalta Ana Paula de Barcellos, a terrvel facilidade com que milhares

    de pessoas (...) abraaram a idia de que o extermnio puro e simples de seres

    humanos podia consistir em uma poltica vlida de governo ainda choca44.

    A reao a tais acontecimentos acabou por contribuir muito para a

    evoluo da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, Ana Paula de

    Barcellos afirma que:

    A reao barbrie do nazismo e dos fascismos em geral levou, nops-guerra, consagrao da dignidade da pessoa humana no planointernacional e interno como valor mximo dos ordenamentosjurdicos e princpio orientador da atuao estatal e dos organismosinternacionais. Mais importante que isso, talvez, foi, e , apreocupao com a realizao efetiva e generalizada dessadignidade essencial.45(grifos nossos)

    Depois da Segunda Guerra Mundial, a dignidade da pessoa humana

    passa a fazer parte do ncleo basilar de diversas constituies democrticas:

    Constituio da Alemanha de 1949; Constituio Portuguesa de 1976;

    41 NOBRE JNIOR, Edilson Pereira. Direito brasileiro e o princpio da dignidade da pessoahumana. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo, Ed. Renovar n. 219, jan./fev./mar.2000, p. 238.42NOBRE JNIOR, 2000, p. 238.43SARLET, Ingo Wolfgang apud KERSTEN, Felipe de Oliveira; e MISTRONGUE, AlessandraLoyola. A invaso de privacidade: a violao de e-mails nas relaes de trabalho luz daordem jurdico-constitucional brasileira. So Paulo: Revista LTr, Legislao do Trabalho, Ano

    68, mar. 2004, p. 312.44BARCELLOS, 2000, p. 161.45BARCELLOS, 2000, p. 162.

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    Constituio Espanhola de 197846. Nestas constituies, a dignidade da

    pessoa humana foi tratada como fundamento da ordem social e poltica de

    seus respectivos Estados.

    A primeira constituio brasileira a tratar da dignidade foi a Constituio

    de 1946 que apenas a relacionou ao trabalho, assegurando a todos trabalho

    que possibilite existncia digna47. As Constituies de 1967 e 1969

    mantiveram a dignidade da pessoa humana apenas com relao ao trabalho.

    A partir da Constituio da Repblica de 1988 a dignidade da pessoa

    humana comeou a receber um tratamento completamente diverso, sendo

    alada ao ncleo do sistema constitucional, e passando a ser princpio

    fundamental de todo o sistema jurdico48.Ao longo do texto constitucional a dignidade da pessoa humana

    mencionada diversas vezes, sendo tratada como princpio fundamental;

    objetivo da Repblica Federativa do Brasil; alm de ser ressaltada nos ttulos

    que tratam da Ordem Econmica, Ordem Social, dentre outros. Como

    pontua Maurcio Godinho Delgado, a Constituio de 1988 coloca a dignidade

    da pessoa humana como: fundamento da vida no Pas, princpio jurdico

    inspirador e normativo, e, ainda, fim, objetivo de toda a ordem jurdica49

    .A Carta de Direitos Fundamentais da Unio Europia, assinada em

    dezembro de 2000, em Nice, tutela a dignidade da pessoa humana em seu

    primeiro artigo: A dignidade da pessoa humana inviolvel. Deve ser

    respeitada e protegida, alm de dedicar o seu Captulo I ao assunto50.

    A partir do momento em que a dignidade da pessoa humana foi

    assegurada em diversos ordenamentos jurdicos, surgiu um esforo por parte

    da doutrina para assegurar a realizao prtica das Constituies51

    . Aconcepo que at ento vigorava era a de tratar as normas constitucionais

    como programas indicativos para o legislador.

    46DELGADO, 2004, p. 15.47DELGADO, 2004, p. 15.48DELGADO, 2004, p. 15.49

    DELGADO, 2004, p. 16.50MORAES, 2006, p. 117.51BARCELLOS, 2000, p. 162.

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    Assim, j na segunda metade do sculo XX, surge um novo discurso

    acerca das normas constitucionais: o discurso normativo52. Esse discurso

    prope que as normas constitucionais possuem normatividade, so normas

    jurdicas53,

    [...] e como tais, dirigidas a toda sociedade, em especial ao PoderJudicirio e aos indivduos. Na concepo atual, portanto, as normasconstitucionais so normas jurdicas, isto : so imperativas, existempara realizar-se e esto disposio de todos os jurisdicionados.54

    Ana Paula de Barcellos afirma que um dos poucos consensos tericos

    que existem nos dias de hoje relacionado ao valor essencial do ser humano,

    ressaltando o fato de que a dignidade da pessoa humana, o valor do homem

    como um fim em si mesmo, hoje um axioma da civilizao ocidental, e talvez

    a nica ideologia remanescente55.

    Sarlet pontua que a dignidade da pessoa humana ocupa, at os dias de

    hoje, um posicionamento central nas discusses e pesquisas filosficas,

    jurdicas e polticas, principalmente nas diversas ordens constitucionais

    existentes que pretendem constituir um Estado Democrtico de Direito56.

    A dignidade da pessoa humana passou por uma evoluo ao longo dosanos, sendo valorizada cada vez mais, chegando ao ncleo das constituies

    democrticas, o que ocorreu no Brasil com a Carta Magna de 1988. Entretanto,

    a sua positivao no basta, preciso que o respeito dignidade seja

    efetivado e, para que isso acontea, deve-se compreender qual o seu

    contedo.

    52BARCELLOS, 2000, p. 163.53 O tema no ser objeto de estudo, entretanto, cabe ressaltar que nem todas as normasconstitucionais podem ser consideradas normas jurdicas, in BARCELLOS, 2000, p. 163.54

    BARCELLOS, 2000, p.163.55BARCELLOS, 2000, p. 159.56SARLET, 2008, p. 40.

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    2.2 Dignidade da pessoa humana: contedo

    A tarefa de conceituar a dignidade da pessoa humana , sem dvida

    alguma, extremamente difcil de ser concretizada. O que pretende-se

    aproximar-se dos principais elementos que integram a dignidade da pessoa

    humana, alcanando o seu contedo da melhor forma possvel.

    uma tarefa rdua precisar o conceito de dignidade da pessoa humana

    de forma a abranger todos os seus efeitos, enquanto norma jurdica

    fundamental. No toa Theodor Heuss referiu-se dignidade da pessoa

    humana como tese no interpretada57. Os conceitos e palavras, geralmente,utilizados para definir a dignidade da pessoa humana, quase sempre so vagos

    e imprecisos e, alm disso, a dignidade da pessoa humana no diz respeito a

    um atributo especfico do ser humano, mas a uma caracterstica inerente a todo

    ser humano.

    Estabelecer as situaes concretas em que a dignidade violada

    tarefa muito mais fcil do que construir um conceito jurdico-normativo

    completo, para a dignidade da pessoa humana. Ao longo do tempo, ajurisprudncia e a doutrina construram conceitos basilares para definir a

    dignidade da pessoa humana.

    Ingo Sarlet afirma que o conceito da dignidade da pessoa humana no

    poder ser construdo de maneira fixista, uma vez que:

    [...] uma definio desta natureza no harmoniza com o pluralismo ea diversidade de valores que se manifestam nas sociedades

    democrticas contemporneas, razo pela qual correto afirmar-se(tambm aqui) nos deparamos com um conceito em permanenteprocesso de construo e desenvolvimento58.

    O processo de construo e desenvolvimento reclama aos rgos

    estatais uma tarefa constante de concretizao da dignidade da pessoa

    humana, de forma a sair do plano abstrato, garantindo o seu respeito e punindo

    a sua violao. Assim, vo existir consequncias jurdicas, razo pela qual no

    57SARLET, 2008, p. 41.58SARLET, 2008, p. 43.

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    prescindvel a existncia de uma compreenso jurdica da dignidade humana,

    por mais complicada que seja tal tarefa. No mesmo sentido, Sarlet afirma:

    No entanto, quando se cuida de aferir a existncia de ofensas dignidade, no h como prescindir na esteira do que lecionaGonzlez Prez de uma clarificao quanto ao que se entende pordignidade da pessoa, justamente para que se possa constatar e, oque mais importante, coibir eventuais violaes.59

    A dignidade irrenuncivel, inalienvel, inerente a todo ser humano e,

    assim, no advm de um direito a uma prestao. Deve ser respeitada,

    promovida, reconhecida, no podendo ser retirada, criada ou adquirida60.

    Como ressalta Sarlet,

    [...] a dignidade tida como intangvel pelo fato de que assim foidecidido, na medida e no sentido em que se decidiu, o que demonstracomo se pode chegar a resultados to dspares e at mesmoconflitantes entre si, na aplicao concreta da noo de dignidade dapessoa.61

    Todos os seres humanos possuem dignidade, inclusive aqueles que

    cometem atos infames, punveis, condenveis, no podem ter negada a

    proteo e o respeito sua dignidade. Segundo Ingo Sarlet,

    Assim, mesmo que se possa compreender a dignidade da pessoahumana na esteira do que lembra Jos Afonso da Silva comoforma de comportamento (admitindo-se, pois, atos dignos e indignos),ainda assim, exatamente por constituir no sentido aqui acolhido atributo intrnseco da pessoa humana (mas no propriamenteinerente sua natureza, como se fosse um atributo fsico!) eexpressar o seu valor absoluto, que a dignidade de todas aspessoas, mesmo daquelas que cometem as aes mais indignas e

    infames, no poder ser objeto de desconsiderao.

    62

    Preceitua a Declarao Universal dos Direitos do Homem, de 1948, em

    seu artigo 1, que todos os seres humanos nascem livres e iguais em

    dignidade e direitos. Dotados de razo e conscincia, devem agir uns para com

    os outros em esprito e fraternidade63.

    59SARLET, 2008, p. 45.60SARLET, 2008, p. 44.61

    SARLET, 2008, p. 45.62SARLET, 2008, p. 46.63SARLET, 2008, p. 46.

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    A Declarao Universal influenciou o Tribunal Constitucional da Espanha

    que, em relao dignidade, props que a dignidade um valor espiritual e

    moral inerente pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminao

    consciente e responsvel da prpria vida e que leva consigo a pretenso ao

    respeito por parte dos demais64.

    Sarlet cita o alemo Gnter Drig, para quem a dignidade da pessoa

    humana consiste no fato de que:

    [...]cada ser humano humano por fora de seu esprito, que odistingue da natureza impessoal e que o capacita para, com base emsua prpria deciso, tornar-se consciente de si mesmo, deautodeterminar sua conduta, bem como de formatar a sua existnciae o meio que o circunda.65

    A matriz kantiana, que introduziu a noo de autonomia e o direito de

    autodeterminao na concepo da dignidade da pessoa humana, continua

    influenciando os doutrinadores modernos. Percebe-se tal influncia na

    Declarao Universal, bem como nos ensinamentos de diversos doutrinadores,

    como Gnter Drig.

    Joaquim Jos Gomes Canotilho acolhe a idia do italiano Pico della

    Mirandola ao tratar da dignidade da pessoa humana. Como afirma Sarlet, o

    autor prope que o princpio material que subjaz noo de dignidade da

    pessoa humana seria o princpio antrpico que acolhe a idia pr-moderna e

    moderna da dignitas hominis (Pico della Mirandola), ou seja, do indivduo

    conformador de si prprio e da sua vida, segundo o seu prprio projeto

    espiritual66.

    Sarlet ressalta que a autonomia discutida considerada em abstrato,

    sendo esta a capacidade que cada um tem de realizar as suas escolhas, de

    exercer a autodeterminao. Tal capacidade potencial, no depende da sua

    realizao no caso concreto. Assim, o absolutamente incapaz, por exemplo,

    possui a mesma dignidade que os seres plenamente capazes67.

    64SARLET, 2008, p. 47.65

    SARLET, 2008, p. 47.66SARLET, 2008, p. 4767SARLET, 2008, p. 47-48.

  • 7/25/2019 88. O poder de controle empresarial, suas potencialidades e limitaoes na ordem jurdica - o caso das correspond

    32/189

    Miguel Reale manifesta-se no sentido de que a dignidade da pessoa

    humana um valor inerente natureza do homem, preexistente sua

    normatizao, assim, a sua constitucionalizao exatamente a tomada de

    conscincia da sua existncia como valor, uma projeo histrica do ser

    humano como ser social68.

    Existe corrente contrria idia de que a dignidade algo inerente

    pessoa humana. Tal corrente prope que a dignidade possui uma dimenso

    natural e cultural, que foi construda pela humanidade ao longo dos anos,

    sendo fruto de muito trabalho69. A acepo proposta por esta corrente j havia

    sido reconhecida pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, e tambm

    encontrada em deciso do Tribunal Constitucional de Portugal70.Ingo Sarlet transcreve um trecho da deciso do Tribunal Constitucional

    de Portugal que evidencia a adoo da dimenso histrico-cultural da

    dignidade da pessoa humana:

    [...] a idia de dignidade da pessoa humana, no seu contedoconcreto nas exigncias ou corolrios em que se desmultiplica no algo puramente apriorstico, mas que necessariamente tem queconcretizar-se histrico-culturalmente.71

    Sarlet afirma que a dignidade da pessoa humana no tem um contedo

    universal e fixo, no existe uma frmula especfica que a verdadeira, uma

    vez que se encontra em processo de permanente construo, evoluo e at

    mesmo repactuao72.

    Acompanhando tal raciocnio, Sarlet cita o alemo Ernst Benda, cujo

    pensamento no seguinte sentido: para que a dignidade no se transforme em

    apelo tico, impe-se que seu contedo seja determinado no contexto dasituao concreta da conduta estatal e do comportamento de cada pessoa

    humana73.

    68REALE, Miguel apud GOMES, 2003, p. 98.69SARLET, 2008, p. 48.70SARLET, 2008, p. 48-49.71

    SARLET, 2008, p. 49.72SARLET, 2008, p. 49.73SARLET, 2008, p. 49.

  • 7/25/2019 88. O poder de controle empresarial, suas potencialidades e limitaoes na ordem jurdica - o caso das correspond

    33/189

    Para Sarlet, a partir das consideraes feitas, possvel concluir que a

    dignidade da pessoa humana possui duas funes: limite e tarefa, no s dos

    poderes estatais, mas tambm da comunidade, de cada um dos indivduos74.

    Em relao dimenso dplice da dignidade limite e tarefa Sarlet,

    seguindo a lio de Podlech, assevera que:

    [...] na condio de limite da atividade dos poderes pblicos, adignidade necessariamente algo que pertence a cada um e que nopode ser pedido ou alienado, porquanto, deixando de existir, nohaveria mais limite a ser respeitado (este sendo o elemento fixo eimutvel da dignidade). Como tarefa (prestao) imposta ao Estado, adignidade da pessoa reclama que este guie as suas aes tanto nosentido de preservar a dignidade existente, quanto objetivando a

    promoo da dignidade, especialmente criando condies quepossibilitem o pleno exerccio e fruio da dignidade, sendo portantodependente (a dignidade) da ordem comunitria, j que de seperquirir at que ponto possvel ao indivduo realizar, ele prprio,parcial ou totalmente, suas necessidades exis-tenciais bsicas ou senecessita, para tanto, do concurso do Estado ou da comunidade (esteseria, portanto, o elemento mutvel da dignidade), constatao estaque remete a uma conexo com o princpio da subsidiariedade, queassume uma funo relevante tambm neste contexto.75 (grifosnossos)

    Considerando a dimenso dplice da dignidade da pessoa humana,

    mais uma vez evidencia-se a importncia de uma definio do seu contedo

    normativo-jurdico, e da imposio de consequncias jurdicas, no caso de

    ofensa dignidade. O contedo no deve ser imutvel, ao contrrio, a

    evoluo , extremamente, importante, mas deve assegurar a sua observncia

    pelos membros da comunidade e pelo Estado.

    Sarlet salienta que, reconhecer a dimenso cultural e prestacional da

    dignidade no significa afirmar que a dignidade deve ser tratada como uma

    prestao, pelo menos no:

    [...] naquilo em que se sustenta ser a dignidade no um atributo ouvalor inato e intrnseco do ser humano, mas sim, eminentemente umacondio conquistada pela ao concreta de cada indivduo, nosendo tarefa dos direitos fundamentais assegurar a dignidade, massim, as condies para a realizao da prestao.76

    74

    SARLET, 2008, p. 49.75SARLET, 2008, p. 50.76SARLET, 2008, p. 50.

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    Luhman, tido como principal representante desta corrente, acredita que

    o indivduo alcana a sua dignidade a partir do momento que pratica uma

    conduta autodeterminada e constri sua identidade com xito77.

    Sarlet critica tal concepo e assevera que a mesma no corresponde

    s exigncias do estado constitucional, uma vez que mesmo aquele indivduo

    que nada presta para os outros, e at para si prprio, no deixa de ter a sua

    dignidade, e no perde o direito de ter a sua dignidade respeitada e

    protegida78. Como exemplo, pode-se citar o nascituro e o absolutamente

    incapaz, ambos possuem dignidade e esta deve ser respeitada.

    Alm disso, Sarlet entende que a tarefa do Estado em proteger o

    processo de formao da personalidade restaria inviabilizada em se atribuindoesta proteo, apenas, ao resultado e expresso da construo da

    identidade79. Tal pensamento acaba por colocar em risco a proteo jurdica

    da dignidade da pessoa humana, o que aconteceria caso o indivduo no fosse

    exitoso na construo da sua personalidade.

    Na perspectiva j analisada, a dignidade da pessoa humana como limite

    e tarefa do estado manifesta-se tanto na autonomia da pessoa humana, como

    na necessidade de proteo e respeito da dignidade pelo estado e pelacomunidade. Na necessidade de proteo, a dignidade aparece com uma

    perspectiva assistencial80 da pessoa humana, tal dimenso pode prevalecer

    sobre a autonomia.

    Esta concepo baseada na doutrina de Dworkin81, segundo a qual,

    mesmo aqueles indivduos que no possuem capacidade plena, no tm

    autonomia, possuem dignidade e devem receber proteo. Ou seja, possuem o

    direito de serem tratados com dignidade.Dworkin prope que mesmo aquele indivduo que j perdeu a

    conscincia de sua dignidade merece t-la protegida, considerada e

    respeitada. Neste ponto, Dworkin baseia-se expressamente no pensamento

    77LUHMAN apud SARLET, 2008, p. 51.78SARLET, 2008, p. 51.79

    SARLET, 2008, p. 51.80SARLET, 2008, p. 51.81DWORKIN, Ronald apud SARLET, 2008, p. 52.

  • 7/25/2019 88. O poder de controle empresarial, suas potencialidades e limitaoes na ordem jurdica - o caso das correspond

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    kantiano: o homem deve ser tratado como um fim em si mesmo, jamais como

    um objeto.

    Sarlet assevera que Dworkin parte do seguinte pressuposto:

    [...] de que a dignidade possui tanto uma voz ativa quanto uma vozpassiva e que ambas encontram-se conectadas, de tal sorte que no valor intrnseco (na santidade e inviolabilidade) da vida humana,de todo e qualquer ser humano, que encontramos a explicao para ofato de que mesmo aquele que j perdeu a conscincia da prpriadignidade merece t-la (sua dignidade) considerada e respeitada.82

    Acerca do tratamento da dignidade da pessoa humana como um

    conjunto de prestaes que garanta um mnimo existencial, Ingo Sarlet prope

    que:

    Alm disso, a noo de mnimo existencial, compreendida, por suavez, como abrangendo o conjunto de prestaes materiais queasseguram a cada indivduo uma vida com dignidade, quenecessariamente s poder ser uma vida saudvel, que correspondaa padres qualitativos mnimos, nos revela que a dignidade dapessoa atual como diretriz jurdico-material tanto para a definio doncleo essencial, quanto para a definio do que constitui a garantiado mnimo existencial, que, na esteira de farta doutrina, abrange bemmais do que a garantia de mera sobrevivncia fsica, no podendoser restringido, portanto, noo de um mnimo vital ou uma aoestritamente liberal de um mnimo suficiente para assegurar oexerccio das liberdades fundamentais.83(grifos nossos)

    Em relao a uma dimenso estritamente individual e uma dimenso

    social, Maurcio Godinho Delgado entende que a idia de dignidade est

    relacionada com a afirmao social do indivduo, no sendo apenas a garantia

    de elementos ligados estritamente personalidade do ser humano. O autor

    prope que:

    Tudo isso significa que a idia de dignidade no se reduz, hoje, auma dimenso estritamente particular, atada a valores imanentes personalidade e que no se projetam socialmente. Ao contrrio, o quese concebe inerente dignidade da pessoa humana tambm, aolado dessa dimenso estritamente privada de valores, a afirmao

    82SARLET, 2008, p. 51-52.83SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia do direito fundamental segurana jurdica: dignidadeda pessoa humana, direitos fundamentais e proibio de retrocesso social no direito

    constitucional brasileiro. So Paulo: Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 14,n. 57, 2006, p. 40.

  • 7/25/2019 88. O poder de controle empresarial, suas potencialidades e limitaoes na ordem jurdica - o caso das correspond

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    social do ser humano. A dignidade da pessoa fica, pois, lesada, casoela se encontre em uma situao de completa privao deinstrumentos de mnima afirmao social. Enquanto sernecessariamente integrante de uma comunidade, o indivduo temassegurado por esse princpio no apenas a intangibilidade de

    valores individuais bsicos, como tambm um mnimo depossibilidade de afirmao no plano social circundante.84 (grifos doautor)

    Na acepo proposta por Kant ressalta-se que, quando o homem presta

    servio a outrem, de modo a ajudar um terceiro a alcanar determinada

    finalidade, ele est sendo instrumentalizado85, entretanto, isso ocorre de

    forma espontnea e sem a ocorrncia de degradao. Nesta hiptese, a sua

    dignidade no est sendo ofendida.

    Kant entende que o que no poder acontecer o uso arbitrrio e contra

    a vontade do indivduo, de forma que ele se torne um objeto para alcanar

    determinado fim. Sarlet assevera que no desempenho das funes sociais

    existe uma sujeio entre os sujeitos, e o que a dignidade da pessoa humana

    probe uma instrumentalizao arbitrria do outro. Assim, quando a pessoa

    utilizada com o intuito de atingir determinado fim, possvel identificar que a

    dignidade est sendo violada, caso o objetivo da conduta seja coisificar o

    outro, trat-lo como mero objeto86.

    A respeito da aparente releitura que est sendo feita do pensamento

    kantiano, Sarlet cita Dieter Grimm, para quem:

    [...] a dignidade, na condio de valor intrnseco do ser humano, gerapara o indivduo o direito de decidir de forma autnoma, sobre seusprojetos existenciais e felicidade e, mesmo onde esta autonomia lhefaltar ou no puder ser atualizada, ainda assim ser considerado erespeitado pela sua condio humana.87

    Ressalta-se que apenas a dignidade da pessoa humana passvel de

    respeito, ou seja, no considerada a dignidade em abstrato, mas sim a

    dignidade da pessoa individualmente considerada. No possvel violar a

    dignidade da pessoa em abstrato. Assim, deve ser feita uma diferenciao

    84DELGADO, 2004, p. 16-17.85

    SARLET, 2008, p. 52.86SARLET, 2008, p. 54.87GRIMM, Dieter apudSARLET, 2008, p. 54.

  • 7/25/2019 88. O poder de controle empresarial, suas potencialidades e limitaoes na ordem jurdica - o caso das correspond

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    entre a dignidade da pessoa e a dignidade humana, quando a ltima refere-se

    humanidade como um todo88.

    A Constituio da Repblica de 1988 referiu-se dignidade da pessoa

    humana como fundamento da Repblica e do Estado Democrtico de Direito.

    Assim, a ordem constitucional reconhece cada pessoa individualmente

    considerada, evitando, desta forma, o sacrifcio da dignidade da pessoa

    humana individual em prol da dignidade da pessoa humana como um todo,

    considerada a humanidade89.

    Entretanto, Sarlet pontua que no possvel desconsiderar uma

    dimenso comunitria da dignidade de cada pessoa e de todas as pessoas,

    justamente por serem todos iguais em dignidade e direitos (na iluminadafrmula da Declarao Universal de 1948)90 e, assim, todos conviverem em

    sociedade, como uma comunidade.

    Com relao a esta dimenso intersubjetiva da dignidade, Kant salienta

    haver um dever de respeito entre os indivduos de determinada comunidade, o

    filsofo props que:

    verdade que a humanidade poderia subsistir se ningumcontribusse para a felicidade dos outros, contanto que tambm nolhes subtrasse nada intencionalmente; mas se cada qual se noesforasse por contribuir na medida das suas foras para o fim deseus semelhantes, isso seria apenas uma concordncia negativa eno positiva com a humanidade como um fim em si mesmo. Pois seum sujeito um fim em si mesmo, os seus fins tm de ser quantopossvel os meus, para aquela idia poder exercer em mim toda asua eficcia.91

    Ainda a respeito da dimenso intersubjetiva da dignidade, Sarlet cita

    Prez Luo, que segue o pensamento de Kant, entretanto, justifica-a partindoda relao do ser humano com os demais para o ser humano individualmente

    considerado92.

    88SARLET, 2008, p. 54.89SARLET, 2008, p. 55.90

    SARLET, 2008, p. 55.91KANT apud SARLET, 2008, p. 55.92SARLET, 2008, p. 56.

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    Para Sarlet, o que de fato importante nesta dimenso intersubjetiva da

    dignidade da pessoa humana, pode ser destacado da lio de Gonalves

    Loureiro. O autor Gonalves Loureiro acredita que:

    [...] a dignidade da pessoa humana - no mbito de sua perspectivaintersubjetiva implica uma obrigao geral de respeito pela pessoa(pelo seu valor intrnseco como pessoa), traduzida num feixe dedeveres e direitos correlativos, de natureza no meramenteinstrumental, mas sim, relativos a um conjunto de bensindispensveis ao florescimento humano.93

    A dignidade da pessoa humana, segundo Ingo Sarlet, somente faz

    sentido no mbito da intersubjetividade e da pluralidade e, por isso, a ordem

    jurdica deve proteg-la e respeit-la, de forma que todos recebam igual

    tratamento por parte da sociedade e do Estado94.

    A partir desta premissa, Sarlet afirma que se deparou com a dimenso

    poltica da dignidade da pessoa humana, subjacente ao pensamento de Hanna

    Ahrendt: a pluralidade pode ser considerada como a condio (e no apenas

    como uma das condies) da ao humana e da poltica95.

    No mesmo sentido, Jrgen Habermas considera que a dignidade da

    pessoa humana, em um sentido moral e jurdico, est vinculada simetria das

    relaes humanas, ou seja, a sua intangibilidade (o grifo do autor) resulta

    justamente das relaes interpessoais marcadas pela recproca considerao e

    respeito96. Alm disso, Habermas prope que o ser humano somente torna-se

    indivduo e ser racional no espao pblico da comunidade da linguagem.

    Logo, Sarlet salienta que, na esteira do pensamento de Hasso Hofmann,

    [...] a dignidade necessariamente deve ser compreendida sobperspectiva relacional e comunicativa, constituindo uma categoria daco-humanidade de cada indivduo (...) de tal sorte que, na esteira dalio de Peter Harbele, a considerao e reconhecimento recprocoda dignidade no mbito da comunidade pode ser definida como umaespcie de ponte dogmtica, ligando os indivduos entre si.97

    93GONALVES, Loureiro apud SARLET, 2008, p. 56.94SARLET, 2008, p. 57.95

    SARLET, 2008, p. 57.96SARLET, 2008, p. 57.97SARLET, 2008, p. 57-58.

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    Sarlet acredita que tais concepes contriburam para a superao de

    uma concepo biolgica da dignidade humana e, ao mesmo tempo, permitiu a

    existncia de uma qualidade comum entre todos os seres humanos a partir da

    vinculao da igual dignidade de todas as pessoas98.

    Outra acepo da dignidade a sua contextualizao histrico-cultural.

    Sarlet indaga at que ponto a dignidade da pessoa humana estaria acima das

    especificidades culturais99. Em certas comunidades, certos atos so justificados

    por determinado trao cultural, entretanto, tal ato seria condenvel em outras

    comunidades que no possuem aquela caracterstica cultural, por ser

    considerado atentatrio dignidade da pessoa humana.

    Mesmo que a dignidade da pessoa humana fosse considerada umconceito universal, existiriam traos distintos em seu tratamento e aplicao

    nas diversas sociedades existentes. A avaliao do que seria atentatrio

    dignidade certamente encontraria divergncias.

    Nesta linha de pensamento, Dworkin prope que:

    [...] a existncia de um direito das pessoas de no serem tratadas deforma indigna, refere que qualquer sociedade civilizada tem seus

    prprios padres e convenes a respeito do que constitui estaindignidade, critrios que variam conforme o local e a poca.100

    Um exemplo do conflito que existe entre as sociedades o fato de os

    Estados Unidos, em muitos de seus estados, admitirem a pena de morte, e

    discutirem serem inconstitucionais e ofensivas dignidade certas formas de

    aplicar a pena, enquanto no Brasil a prpria pena de morte j considerada

    uma violao dignidade101.

    Depois de todo o exposto, conclui-se que a dignidade da pessoahumana deve ter um contedo minimamente definido e que acarrete

    consequncias jurdicas, sob pena de se tornar apenas uma regra moral.

    Entretanto, a exata definio do seu mbito de incidncia jurdica tambm no

    parece ser possvel e nem mesmo aconselhvel. necessrio que se busque

    98SARLET, 2008, p. 58.99

    SARLET, 2008, p. 58.100DWORKIN, RonaldapudSARLET, 2008, p. 59.101SARLET, 2008, p. 58-59.

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    uma definio que faa sentido e seja operacionalizada diante do caso

    concreto.

    Sarlet cita a frmula desenvolvida por Drig, na Alemanha, que prope

    que a dignidade da pessoa humana seria considerada violada no momento em

    que a pessoa fosse tratada como mero objeto para atingir determinado fim,

    tratada como uma coisa, sempre que a pessoa venha a ser descaracterizada e

    desconsiderada como sujeito de direitos102.

    Tal concepo foi largamente utilizada pelo Tribunal Constitucional da

    Alemanha. Entretanto, Sarlet critica este pensamento, uma vez que o mesmo

    no define previamente o que deve ser protegido, mas protege atravs da

    verificao da violao no caso concreto103.Ao longo do tempo, a proteo dignidade da pessoa humana foi

    evoluindo e a doutrina e a jurisprudncia contriburam para o desenvolvimento

    de uma maior proteo pela ordem jurdica da dignidade humana.

    A Carta Magna de 1988, como visto, tratou a dignidade da pessoa

    humana como princpio104, e, na condio de princpio, Maurcio Godinho

    Delgado sustenta que:

    O princpio da dignidade da pessoa humana traduz a idia de que ovalor central das sociedades, do Direito e do Estado contemporneos a pessoa humana, em sua singeleza, independentemente de seustatus econmico, social ou intelectual. O princpio defende acentralidade da ordem juspoltica e social em torno do ser humano,subordinadamente aos demais princpios, regras, medidas e condutasprticas.105

    Assim, a respeito do contedo da dignidade da pessoa humana,

    Maurcio Godinho pontua que a Constituio Federal de 1988 conferiu-lhe umstatusmultifuncional, mas combinando unitariamente todas as suas funes:

    fundamento, princpio e objetivo106. Com isso, foi garantida dignidade da

    pessoa humana uma amplitude de conceito, sendo ultrapassada uma viso

    102DRIG apudSARLET, 2008, p. 61.103SARLET, 2008, p. 61.104

    Alm de fundamento e objetivo da Repblica Federativa do Brasil, como visto.105DELGADO, 2004, p. 14.106DELGADO, 2004, p. 16.

  • 7/25/2019 88. O poder de controle empresarial, suas potencialidades e limitaoes na ordem jurdica - o caso das correspond

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    individualista em favor de uma dimenso social e comunitria de afirmao da

    dignidade da pessoa humana107.

    Posio interessante sobre a dignidade da pessoa humana a do

    espanhol Joaqun Arce y Flrez Valds. Valds prope que o respeito

    dignidade da pessoa humana se desdobra em quatro importantes

    consequncias:

    [...] a) igualdade de direitos entre todos os homens, uma vezintegrarem a sociedade como pessoas e no como cidados; b)garantia da independncia e autonomia do ser humano, de forma aobstar toda coao externa ao desenvolvimento de suapersonalidade, bem como toda atuao que implique na sua

    degradao; c) observncia e proteo dos direitos inalienveis dohomem; d) no admissibilidade da negativa dos meios fundamentaispara o desenvolvimento de algum como pessoa ou a imposio decondies subumanas de vida.108(grifos nossos)

    Sarlet formula uma proposta de conceituao jurdica da dignidade da

    pessoa humana que abarca todas as suas dimenses. A proposta a seguinte:

    Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidadeintrnseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz

    merecedor do mesmo respeito e considerao por parte do Estado eda comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos edeveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo equalquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhegarantir as condies existenciais mnimas para uma vida saudvel,alm de propiciar e promover sua participao ativa e co-responsvelnos destinos da prpria existncia e da vida em comunho com osdemais seres humanos.109(grifos do autor)

    Maurcio Godinho Delgado, no mesmo sentido, afirma que ao lado da

    dimenso estritamente privada de valores, tambm inerente dignidade da

    pessoa humana a afirmao social do ser humano110. justamente atravs do

    trabalho, em especial do emprego, que ser possvel ao indivduo exercer a

    sua afirmao social111. Maurcio Godinho esclarece que:

    107DELGADO, 2004, p. 16.108FLREZ-VALDS apud NOBRE JNIOR, 2000, p. 240.109SARLET, 2008, p. 63.110

    DELGADO, Maurcio Godinho. Direitos Fundamentais nas Relaes de Trabalho. SoPaulo: Revista LTr, Legislao do Trabalho, v. 70, jun. 2006a, p. 663.111DELGADO, 2006a, p. 663.

  • 7/25/2019 88. O poder de controle empresarial, suas potencialidades e limitaoes na ordem jurdica - o caso das correspond

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    A dignidade da pessoa fica, pois, lesada caso ela se encontre emuma situao de completa privao de instrumentos de mnimaafirmao social. Enquanto ser necessariamente integrante de umacomunidade, o indivduo tem assegurado por este princpio noapenas a intangibilidade de valores individuais bsicos, como

    tambm um mnimo de possibilidade de afirmao no plano socialcircundante. Na medida desta afirmao social que desponta otrabalho, notadamente o trabalho regulado, em sua modalidade maiselaborada, o emprego.112(grifos do autor)

    Seguindo os ensinamentos de Dinaura Godinho Gomes, possvel

    afirmar que o Estado Democrtico de Direito no se sustenta sem o respeito

    concreto dignidade da pessoa humana e, consequentemente, sem a

    concretizao dos direitos fundamentais: sejam eles individuais ou coletivos113.

    A dignidade da pessoa humana reclama a garantia da existncia decondies mnimas para a existncia humana, da liberdade e da autonomia,

    bem como de todos os direitos fundamentais, enfim, de uma vida com

    dignidade. Ou seja, deve ser respeitada em todas as duas dimenses.

    2.3 A dignidade da pessoa humana como norma fundamental

    A Constituio da Repblica de 1988 alou a dignidade da pessoa

    humana a fundamento do Estado Democrtico de Direito e criou um ttulo

    prprio para os princpios fundamentais. Alm disso, tratou da dignidade da

    pessoa humana em diversos dispositivos ao longo do seu texto.

    Sarlet afirma que, mediante tais disposies,

    [...] o Constituinte deixou transparecer de forma clara e inequvoca asua inteno de outorgar aos princpios fundamentais a qualidade denormas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional,inclusive (e especialmente) das normas definidoras de direitos egarantias fundamentais, que igualmente integram (juntamente com osprincpios fundamentais) aquilo que se pode e neste ponto parece

    112DELGADO, 2006a, p. 663.113 GOMES, Dinaura Godinho Pimentel. A constitucionalizao do direito do trabalho:

    interpretao e aplicao das normas trabalhistas para a efetiva inter-relao dos interesseseconmicos com respeito dignidade da pessoa humana. Revista de Direito Constitucionale Internacional, So Paulo, v.15, n.58, jan./mar.2007, p. 20.

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    haver consenso denominar de ncleo essencial da nossaConstituio formal e material.114

    Considera-se que tal previso aconteceu tardiamente, entretanto,

    somente no decorrer do sculo XX, aps a Segunda Guerra Mundial, com a

    consagrao da dignidade da pessoa humana na Declarao dos Direitos do

    Homem de 1948, as constituies democrticas comearam a prever a

    dignidade da pessoa humana em seu texto.

    possvel afirmar que o princpio da dignidade da pessoa humana foi

    alado ao status de norma fundamental no ordenamento jurdico brasileiro, com

    a Carta Magna de 1988, em seu artigo 1, inciso III.

    A respeito da atitude do Constituinte de 1988, Sarlet afirma que:

    Inspirando-se - neste particular especialmente noconstitucionalismo lusitano e hispnico, o Constituinte de 1988preferiu no incluir a dignidade da pessoa humana no rol dos direitose garantias fundamentais, guindando-a, pela primeira vez consoante j reiteradamente frisado condio de princpio (evalor) fundamental (artigo 1, inciso III).115

    O reconhecimento da dignidade da pessoa humana pela ordem jurdica

    extremamente importante, principalmente como norma fundamental, uma vez

    que contribui para a sua efetiva realizao, e impe determinadas

    consequncias jurdicas.

    Sarlet, seguindo a linha de pensamento de Alexy, afirma que o

    dispositivo no se confunde com a norma que a contm, nem com os direitos

    outorgados pela norma, uma vez que cada direito fundamental pressupe uma

    norma jusfundamental que o reconhea116.

    Nesta esteira, com relao dignidade da pessoa humana, Sarlet

    prope que:

    [...] verifica-se que o dispositivo constitucional (texto) no qual seencontra enunciada a dignidade da pessoa humana (no caso, o artigo1, inciso III, da Constituio de 1988), contm no apenas mais deuma norma, mas que esta(s), para alm de seu enquadramento nacondio de princpio (e valor) fundamental, (so) tambm

    114

    SARLET, 2008, p. 65.115SARLET, 2008, p. 71.116SARLET, 2008, p. 72.

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    fundamento de posies jurdico-subjetivas, isto , norma(s)definidora(s) de direito e garantias, mas tambm de deveresfundamentais.117

    Ainda segundo Sarlet, os direitos fundamentais encontram seufundamento na dignidade da pessoa humana e, alm disso, do prprio princpio

    da dignidade da pessoa humana devem ser deduzidos direitos fundamentais

    autnomos que, assim, sero normas fundamentais118.

    Desde logo, ressalta-se que o ordenamento jurdico no concede a

    dignidade da pessoa humana, uma vez que a dignidade inerente ao ser

    humano, no existe um direito dignidade. O ordenamento jurdico deve

    promover e proteger a dignidade da pessoa humana. Assim, possvel falarem direito existncia digna, por exemplo.

    A positivao da dignidade da pessoa humana no artigo 1, inciso III, da

    Constituio da Repblica de 1988, alou a dignidade da pessoa humana ao

    status de norma jurdica, carregada de eficcia, e atribuiu-lhe a condio de

    valor jurdico fundamental da comunidade119.

    Sarlet, ao referir-se dignidade da pessoa humana, na qualidade de

    princpio e valor fundamental, cita Judith Martins-Costa, que prope que, nesta

    qualidade, a dignidade constitui valor fonte que anima e justifica a prpria

    existncia de um ordenamento jurdico120. A partir de tal contribuio, pode-se

    dizer que o princpio da dignidade da pessoa humana, para muitos autores,

    considerado o princpio de maior hierarquia do ordenamento jurdico.

    O doutrinador Ingo Sarlet segue a linha de pensamento de Robert Alexy,

    trata a dignidade da pessoa humana como princpio e, atribui-lhe valor

    fundamental, adotando a classificao das normas jurdicas em princpios e

    regras. A ttulo de esclarecimento acerca da sua posio, afirma que:

    importante que se deixa devidamente consignada a nossa posioem prol do carter jurdico-normativo da dignidade da pessoa humanae, portanto, do reconhecimento de sua plena eficcia na nossa ordemconstitucional, onde nunca demais repisar foi guindada

    117SARLET, 2008, p. 72-73.118

    SARLET, 2008, p. 73.119BENDA, Ernesto apud SARLET, 2008, p. 74.120MARTINS-COSTA apud SARLET, 2008, p. 74.

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    condio de princpio (e, portanto, sempre valor) fundamental donosso Estado Democrtico de Direito.121

    Sarlet assevera que, ao reconhecer a feio de princpio dignidade da

    pessoa humana, o seu papel como valor fundamental de toda a ordem jurdica

    no afastado e, alm disso, aumenta a sua pretenso de efetividade122 e

    eficcia123. Prope, tambm, que o princpio da dignidade da pessoa humana

    na sua posio de norma jurdica, no extrapola a sua dimenso principiolgica

    para possuir a feio de regra jurdica, seguindo a linha de Alexy124.

    Assim, Sarlet considera que a dignidade, como princpio, atua como um

    mandado de otimizao, sendo que a aplicao dever ser feita na maior

    medida possvel, e luz do caso concreto; diferentemente das regras que

    contm prescries imperativas. Acerca da estrutura da dignidade, Sarlet

    manifesta-se:

    Ainda no que diz com a dupla estrutura (princpio e regra) dadignidade, verifica-se que, para Alexy, o contedo da regra dadignidade da pessoa decorre apenas a partir do processo deponderao que se opera no nvel do princpio da dignidade, quandocotejado com outros princpios, de tal sorte que absoluta a regra (

    qual, nesta dimenso, se poder aplicar a lgica do tudo ou nada),mas jamais o princpio.125

    Existem inmeras crticas ao pensamento de Alexy: Sarlet destaca a

    crtica feita por Ferreira dos Santos, que prope que a dignidade da pessoa

    humana absoluta, assim, sempre dever prevalecer sobre os outros

    princpios em discusso126. A doutrina germnica tambm critica Alexy,

    propondo que o princpio da dignidade da pessoa humana no passvel de

    relativizao, no admitindo uma ponderao, sob a justificativa de que uma

    121SARLET, 2008, p. 75.122 Sobre a efetividade da tutela jurisdicional trabalhista, tema que no ser aprofundado nopresente trabalho, recomenda-se consultar: PIMENTA, Jos Roberto Freire. Tutelas deUrgncia no Processo do Trabalho: O Potencial Transformador das Relaes Trabalhistas dasReformas do CPC Brasileiro. In: PIMENTA, Jos Roberto Freire, et all (Coord.). DIREITODOTRABALHO:Crise, Evoluo e Perspectivas. So Paulo: LTR, 2004.123SARLET, 2008, p. 75.124

    SARLET, 2008, p. 76.125SARLET, 2008, p. 76.126SARLET, 2008, p. 76-77.

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    eventual ponderao ir interferir na definio do prprio contedo da

    dignidade127.

    A respeito das crticas tecidas, Sarlet sabiamente afasta a possibilidade

    de reconhecimento de um princpio absoluto, pelo menos pela prpria noo de

    princpios adotada por Alexy e, alm disso, prope que:

    [...] resta a evidncia, amplamente comprovada na prtica, de que oprincpio da dignidade da pessoa humana pode ser realizado emdiversos graus, isto sem falar na necessidade de se resolvereventuais tenses entre a dignidade de diversas pessoas, pontosobre o qual voltaremos a nos manifestar, ou mesmo da possvelexistncia de um conflito entre o direito vida e dignidade,envolvendo um mesmo sujeito (titular) de direitos.128

    Alexy, citado por Sarlet, debate o discurso que defende o carter

    absoluto do princpio da dignidade da pessoa humana, e prope que muitas

    vezes esta linha de pensamento adotada, pois,

    [...] a compreensvel impresso de que se cuida de um princpioabsoluto reluta tanto do fato de que coexistem, em verdade, duasespcies de normas da dignidade da pessoa (princpio e regra)quanto da circunstncia de que existe uma srie de condies nas

    quais o princpio da dignidade da pessoa humana, com elevadamargem de certeza, assume precedncia em face dos demaisprincpios.129

    importante salientar que, ao defender que o princpio da dignidade da

    pessoa humana no absoluto, Alexy no pretende dizer que este poder ser

    violado, tal argumento no poder ser utilizado de forma a justificar ofensas

    dignidade130. Mesmo prevalecendo sobre os demais princpios do ordenamento

    constitucional, a dignidade da pessoa humana, em certos casos, ser

    relativizada, de forma a garantir o respeito prpria dignidade.

    Alexy, ao utilizar a ponderao na aplicao do princpio da dignidade da

    pessoa humana, considera a existncia de um mnimo que deve ser

    respeitado, sob pena de violao da dignidade da pessoa humana. Assim,

    pondera a aplicao da dignidade da pessoa humana com outras trs idias:

    127SARLET, 2008, p. 77.128

    SARLET, 2008, p. 77.129ALEXY apud SARLET, 2008, p. 77-78.130SARLET, 2008, p. 78.

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    separao dos poderes, competncia do legislador democrtico e direitos de

    terceiro. O autor conclui que:

    [...] estes trs pontos restringem o princpio da dignidade mas apenasem determinada medida, restando como contedo normativo doprincpio, que o autor inclusive considera transformar-se em regra, ummnimo essencial para a existncia humana que pode ser exigido