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Resumo. O artigo procura explicitar pontos principais para uma caracterização do campo de estudos em Comunicação – sua possível constitui- ção como disciplina do conhecimento; a questão da interdisciplinaridade; perspectivas referentes aos objetos de estudo, dando ênfase ao ângulo “in- teração social” e ao tema “mídia”; o problema do compartilhamento do estudo sobre os fenômenos comunicacionais com as demais ciências humanas e sociais; a questão da constituição interna do campo, como explicitação de sua diversidade; e as relações entre o fenômeno e os contextos socioculturais. Cada um desses aspectos é abordado em dois momentos – conforme percebidos na primeira publicação do artigo, em 2001; e em anotações atuais, que procuram explicitar reflexões complementares ocorridas nos dez anos de intervalo. Palavras-chave: Campo da Comunicação, epistemolo- gia, sociologia do conhecimento. Abstract. The article seeks to clarify key points to characterize the field of communication studies – its possible formation as a discipline of knowledge, the question of interdisciplinarity; perspectives related to the objects of study, emphasizing the angle of “social interaction” and the theme of “media”; the problem of sharing the study of communication phenomena with other humanities and social sciences, the question of the constitution of the field, in its internal diversity, and the relationship between the phenomenon and sociocultural contexts. Each of these aspects is addressed in two stages – as perceived in the first article appeared, in 2001, and notes included now, seeking to clarify further perceptions occurring in the period. Key words: Field of Communication, episte- mology, sociology of knowledge. Verso e Reverso, XXV(58):62-77, janeiro-abril 2011 © 2011 by Unisinos - doi: 10.4013/ver.2011.25.58.07 ISSN 1806-6925 Constituição do Campo da Comunicação Constitution of the Communication Field José Luiz Braga Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Av. Unisinos, 950, Cristo Rei, 93022-000, São Leopoldo, RS, Brasil [email protected]

924-2652-1-PB

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  • Resumo. O artigo procura explicitar pontos principais para uma caracterizao do campo de estudos em Comunicao sua possvel constitui-o como disciplina do conhecimento; a questo da interdisciplinaridade; perspectivas referentes aosobjetos de estudo, dando nfase ao ngulo in-terao social e ao tema mdia; o problema do compartilhamento do estudo sobre os fenmenos comunicacionais com as demais cincias humanas e sociais; a questo da constituio interna do campo, como explicitao de sua diversidade; e as relaes entre o fenmeno e os contextos socioculturais. Cada um desses aspectos abordado em dois momentos conforme percebidos na primeira publicao do artigo, em 2001; e em anotaes atuais, que procuram explicitar re exes complementares ocorridas nos dez anos de intervalo.

    Palavras-chave: Campo da Comunicao, epistemolo-gia, sociologia do conhecimento.

    Abstract. The article seeks to clarify key points to characterize the eld of communication studies its possible formation as a discipline of knowledge, the question of interdisciplinarity; perspectives related to the objects of study, emphasizing the angle of social interaction and the theme of media; the problem of sharing the study of communication phenomena with other humanities and social sciences, the question of the constitution of the eld, in its internal diversity, and the relationship between the phenomenon and sociocultural contexts. Each of these aspects is addressed in two stages as perceived in the rst article appeared, in 2001, and notes included now, seeking to clarify further perceptions occurring in the period.

    Key words: Field of Communication, episte-mology, sociology of knowledge.

    Verso e Reverso, XXV(58):62-77, janeiro-abril 2011 2011 by Unisinos - doi: 10.4013/ver.2011.25.58.07 ISSN 1806-6925

    Constituio do Campo da Comunicao

    Constitution of the Communication Field

    Jos Luiz Braga Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Av. Unisinos, 950, Cristo Rei, 93022-000, So Leopoldo, RS, Brasil

    [email protected]

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    Jos Luiz Braga

    Situando

    No incio de 2011, a revista Verso e Reverso me consultou sobre o interesse em republicar este artigo, para possibilitar sua presena on-line no peridico uma vez que a publicao inicial do tempo em que a revista saa apenas em papel.

    Fiquei naturalmente satisfeito com a possi-bilidade. Lembrando os dez anos passados da primeira publicao, pensei rever a formula-o para ajustes e atualizaes. Percebi, porm, que tal reviso pediria uma elaborao muito modi cada. Como ainda mantenho o essencial das perspectivas ento expostas, uma alterna-tiva me pareceu mais completa. O artigo con-serva a formulao original, acrescentando-se aps cada item anotaes atuais em comple-mento ou reviso.

    Preliminares

    expresso construo do Campo da Co-municao, pre ro o termo constituio do campo, porque neste comparecem dois senti-dos complementares relevantes para o nosso tema: o constituir-se enquanto processo de elaborao do campo a construo propria-mente dita; e a organizao interna da coisa, que assim a constitui.

    Preliminarmente creio ser relevante adotar-se a posio decidida de que ocioso debater sobre o estatuto acadmico do Campo da Co-municao se de cincia, arte, disciplina, ou apenas um gnero de literatura. O que parece importar a constatao inarredvel, na pre-sente situao histrico-social, da objetivao de um espao de estudos, re exes e pesquisa percebidos largamente como relevantes, espa-o este que, ao ser nomeado pelo termo Co-municao ou pela expresso Comunicao Social, encontra forte consenso quanto ao de que se est falando ainda que o contorno e a organizao interna desse espao estejam lon-ge de ser consensuais.

    A denominao confortvel a que chega-mos atualmente para nos referirmos a este es-pao Campo da Comunicao tem servido adequadamente a todos os nossos propsitos prticos de designao.

    No h dvida tambm de que este espao de preocupaes encontra lugar adequado (e diferenciado, embora evidentemente no es-tanque) no conjunto de estudos que compem a vasta abrangncia das preocupaes com o desenvolvimento de conhecimento sobre o Ho-

    mem e sua Sociedade (como a Histria, a Socio-logia, a Literatura, a Educao, as Artes, a An-tropologia, os estudos da Linguagem, a Cincia Poltica, a Literatura, a Psicologia, etc.).

    Tambm de modo preliminar, queremos adotar a posio expressa de recusar uma ex-plicao do Campo da Comunicao situando-o como um campo interdisciplinar.

    O conceito de interdisciplinaridade pode signi car duas coisas: a primeira corresponde percepo de que um campo de estudos hoje se v inevitavelmente atravessado por dados, conhecimentos, problemas e abordagens con-cebidos e desenvolvidos em outras disciplinas e/ou tecnologias. Nesse caso, todos os campos de conhecimento so interdisciplinares, ou seja, no tm existncia isolada, estanque. As-sim a Fsica com relao Matemtica ou Qumica, por exemplo; a Biologia com relao Qumica e a Fsica; ambas com relao En-genharia; etc.

    Um segundo sentido o da referncia a um espao ntido de interface, em que um deter-minado mbito de conhecimentos se faz na con uncia de duas ou mais disciplinas esta-belecidas por exemplo, a Psicossociologia, a Sociologia Jurdica, a Bioqumica.

    No primeiro sentido, a denominao enf-tica para a Comunicao como campo inter-disciplinar bvia e redundante, logo ociosa. No segundo caso, seria preciso estudar o con-junto espec co de disciplinas, com seus for-necimentos e preocupaes espec cas que es-tariam compondo a interface interdisciplinar; e sobretudo as vinculaes e encadeamentos que fazem interagir estes fornecimentos o que nos parece bastante difcil de se capturar enquanto caractersticas constituintes bsicas do Campo da Comunicao.

    Entretanto, parece-nos que em um ter-ceiro sentido (vago e pouco re etido) que a expresso freqentemente usada em sua explicao do que seja o Campo da Comu-nicao. como se este fosse uma espcie de terreno vazio, sem outra existncia seno pelo fato de que todas as disciplinas humanas e sociais tivessem alguma coisa a dizer sobre o tema. E como o tema aparece nelas todas, seria possvel s vezes se encontrar para trocar seus pontos de vista espec cos. De certa forma o que diz a metfora de Wilbur Schramm a Comunicao uma encruzilhada pela qual muitos passam e poucos permanecem.

    Alm do absurdo lgico de que o espao de encontro o vcuo, o que no ca explicado nessa perspectiva por que, de repente, h um

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    Constituio do Campo da Comunicao

    tema que se torna de interesse to generaliza-do e com tal acuidade que no consegue mais efetivamente caber nos espaos de cada campo particular ou de algumas interfaces bem cons-trudas. Note-se que outros temas ocupam igualmente o interesse de vrias disciplinas por exemplo a violncia, o trabalho, o sexo, o discurso, a tomada de decises. Em vrias dis-ciplinas, esses temas surgem e simplesmente se encaixam na ordem de preocupaes domi-nantes de cada campo, a bem integradas. Ou seja, ainda que transversais a vrios campos, estes diversos temas so facilmente subsumi-dos ao ngulo de interesse de cada disciplina. No dilogo entre uma disciplina e outra, so essas angulaes espec cas que so cotejadas para ampliar o enfoque.

    Anotaes atuais

    (a) Disciplina ou Campo

    Talvez estejamos, hoje, mais prximos de uma disciplina do conhecimento. Por outro lado, no se trataria de uma disciplina como as outras que embora j no sejam carac-terizadas por um critrio positivista, tm uma histria de criao em termos de objeto & m-todo. No comentrio do item Compartilha-mentos prticos assinalaremos o que seria, em nossa perspectiva, um critrio razovel para caracterizar disciplinas em termos atuais, entre elas, a possibilidade da Comunicao.

    De todo modo, a questo j no se pe como h dez anos. Podemos assumir uma discipli-na em processo de constituio sem para isso pretender ou exigir um delineamento terico abrangente ou positivista. Nenhuma das Cincias Humanas e Sociais que se cons-tituram em tais termos (objeto teorizado mais mtodo) podem hoje se a rmar uni cadas sob esse critrio.

    O que distingue uma disciplina de conhe-cimento social, hoje, sobretudo uma tradio constitutiva de um ngulo especial para olhar a sociedade. Esse ngulo no rigidamen-te uni cado, mas sim comporta variedades, preferncias diversas. Todas as CHS apresen-tam espaos inde nidos, transies entre sua caracterizao como disciplina e interfaces, re exo praxiolgica e perspectivas de ordem prtica. O campo acadmico, em geral, atra-vessado por essas diferentes transies.

    Por outro lado, o desa o da consolidao se pe tambm para os que defendem a in-validade de uma con gurao disciplinar. A

    adoo do valor da diversidade se compe adequadamente com o interesse em desa os e tensionamentos mtuos entre diferentes ngu-los de investigao. Assim, a questo deixa de ser uma alternativa sim/no para o concei-to de disciplina, passando a se caracterizar como uma necessidade de desenvolvimento dos conhecimentos produzidos a partir de qualquer preferncia classi catria. Ver, so-bre essa questo Braga (2010b).

    (b) Interdisciplinarismo

    A questo do interdisciplinarismo arre-feceu bastante, na dcada. A questo que se coloca hoje justamente a de perceber as ar-ticulaes entre o campo da Comunicao e outras reas o que se espera de cada lado da interface.

    No artigo de 2001, recusvamos um as-pecto espec co da pretenso de interdisci-plinaridade do campo que era justamente o uso dessa perspectiva para explicar o que seriam esses estudos e para justi car sua dis-perso. Essa explicao era, na verdade, mais que a defesa de uma viso frouxa dos estudos, dispensando-os do cotejo entre diferentes vi-sadas. No tenho percebido, nos ltimos anos, nenhuma proposio nesse sentido. E hoje j no se aceita que qualquer coisa possa ser alegada como um estudo de comunicao.

    Afastada essa perspectiva frouxa, pode-mos nos dedicar, com muito mais seriedade, a uma questo duplamente interessante, que o trabalho de interfaces. Este corresponde a um verdadeiro e efetivo trabalho de interdisci-plinaridade desde que se leve a srio a busca dos enfoques comunicacionais.

    Temos a um mbito relevante de estudos com potencialidade para produzir avanos do conhecimento sobre fenmenos comunicacio-nais. Temos tambm um espao de desa os especiais para nossa rea, pois o outro lado da interface uma rea de conhecimento mais estabelecida fornece teorias e perspec-tivas necessrias, mas arrisca tambm absorver a ateno do pesquisador, por suas teorias e objetos mais tradicionalmente delineados.

    Muitas pesquisas da rea ocorrem nessas interfaces Comunicao e Poltica, Comu-nicao e Educao, Comunicao e Cultura; Comunicao e diversas questes sociolgicas, lingusticas, antropolgicas, etc. Em todas estas reas de pesquisa, uma questo se pe como fundamental para assegurar possibilidades de avano de conhecimento em Comunicao e de

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    Jos Luiz Braga

    contribuio comunicacional para as CHS: o que h de comunicacional nessa interface? Quanto a esse aspecto, ver Wilson Gomes (2004).

    Com base nessa pergunta, consideramos que os estudos de interfaces podem ser, em vez de um espao de disperso (com tendia a acontecer at os anos 90) um espao de traba-lho construtivo do conhecimento comunica-cional (Braga, 2004).

    A questo do objeto

    Depois daquelas preliminares, o primeiro problema que assombra o pesquisador em Co-municao, preocupado em perceber a rea em que trabalha para se situar com alguma iden-tidade acadmica a de caracterizar, a nal, qual o objeto de conhecimento que a de ne.

    Duas primeiras alternativas ou tendncias parecem se apresentar aqui. Ou a Comunica-o surge como uma questo to ampla, to difusa, to presente em todas as atividades humanas que o objeto de certo modo ina-preensvel, e conclui-se que tudo comuni-cao a poltica, a educao, a literatura, as artes, e uma lista in nda em que se pretendes-se abarcar a ao humana e social. O holismo desta perspectiva parece crescentemente se con rmar pela presena recorrente da questo comunicacional nas mais diversas reas de co-nhecimento e das prticas humanas.

    Esta postura, talvez vlida em um ngulo los co, no deixa entretanto margem para uma pesquisa que se pretenda identi cvel. A comunicao, espalhando-se como objeto por todas as reas, estando em todas as pautas, no est em nenhum lugar.

    A existncia concreta e histrica de grupos e instituies que se do como voltadas espe-cialmente para o estudo da comunicao, no permite adotar como identi cao esta pers-pectiva holista. A tendncia inversa, ento se coloca: a de escolher, de selecionar ngulos e objetos espec cos identi cadores da rea.

    Esta segunda opo costuma esbarrar em alguns problemas, entretanto. Um deles cor-responde ao fato de que tentativas deste tipo facilmente caem em um reducionismo lgi-co. Tenta-se identi car o ncleo do campo com nossas preferncias pessoais ou grupais de enfoque, banindo outras perspectivas pe-riferia ou ao espao externo ao campo. Como nenhuma dessas tentativas setorializantes obteve at o momento o menor sucesso de consensualidade, cada uma delas permanece sendo o que : apenas uma preferncia e, cor-

    relatamente, a expresso de subrea ou de se-tor possvel de pesquisa. At porque qualquer tentativa desse tipo de reduo encontra ime-diata resistncia das reas excludas ou margi-nalizadas e eventualmente tentativas opostas e simtricas de excluso.

    Outro problema parece ser o de evitar so-breposies com outras reas de estudos mais tradicionalmente estabelecidas. Desde que se se afasta de uma posio holista em direo a uma preferncia mais especializada, este ngulo especializado do objeto parece ser j espao de observao de outra rea, a lingus-tica, a sociologia, a poltica, a economia, etc.

    Entretanto, as duas tendncias acima so apenas casos extremos. Identi camos duas outras possibilidades, menos radicais em suas decises de abrangncia, e que ajudam a orga-nizar nossa re exo.

    Uma delas a proposta de que o objeto da Comunicao toda e qualquer conversao do espao social. Ou melhor: o que h de pro-priamente conversacional e de troca (sim-blica e de prticas interativas) nas diversas instncias e situaes da vida social. Em contra-posio a esta viso da comunicao generali-zada (mas ainda com nfase nos processos co-municacionais de trocas simblicas e prticas, portanto) uma preferncia mais circunscrita, enfocando apenas o que ocorre nos meios de comunicao social (MCS ou mdia).

    J no estamos mais, aqui, nos extremos das duas alternativas iniciais no parece haver holismo nem reducionismo, mas efetivamente tentativas de recorte, com diferentes graus de abrangncia. Cada uma destas duas possibili-dades apresenta vantagens e problemas.

    A de nio da rea pelos meios oferece o risco de segmentao do objeto em questes tecnolgicas, ou jurdico-polticas, ou expres-sivo-interpretativas, ou outras. De fato, con-forme o pesquisador venha de uma outra rea humana e social mais constituda, tende a es-colher apenas um destes ngulos, mais avizi-nhante com seus saberes e processos.

    Mesmo quando reunimos mltiplos n-gulos pelos quais os MCS se manifestam, ca uma certa sensao de que outros processos sociais, que no comparecem em relao de contiguidade imediata com a mdia, estariam nos escapando observao e portanto ao tra-balho do conhecimento.

    Consideradas estas limitaes, preferimos, no presente artigo, examinar mais detidamen-te as possibilidades e di culdades de adoo da perspectiva contraposta.

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    Constituio do Campo da Comunicao

    Anotaes atuais

    Creio que a questo do objeto passou a ser considerada menos crucial pelo menos nos termos em que nos parecia posta no nal dos anos 90 e incio dos 2000. Uma confuso fre-quente, ento possivelmente em decorrncia da cobrana (embora formalmente recusada) de objeto e mtodo como critrio discipli-nar levava a pensar em temas mais que em problemas comunicacionais, como se aque-les devessem ser caracterizadores.

    Ora, em uma disciplina constituda, como por exemplo a Sociologia, possvel pensar em sub-reas temticas de especializao, sem que isso atrapalhe a percepo de critrios de conhecimento sociologia do trabalho, socio-logia da comunicao (signi cando das m-dias). No o tema que assegura pertinncia, mas a visada sociolgica posta sobre este.

    No cabe, porm, pensar um campo de es-tudos coerente apenas em termos temticos. E se essa coerncia no for procurada, como justi car a presena de uma formao ps-gra-duada com esse enfoque, no pas?

    Minha contraposio, no artigo, entre m-dia e interaes, faz ambas parecerem obje-tos temticos visada a ser, portanto, supera-da. Como me parece claro, hoje, que o objeto da Comunicao no pode ser apreendido en-quanto coisas nem temas, mas sim como um certo tipo de processos epistemicamente caracterizados por uma perspectiva comunica-cional nosso esforo o de perceber processos sociais em geral pela tica que neles busca a dis-tino do fenmeno. Que se busque capturar tais processos e suas caractersticas nas mdias, na atualidade, nos signos, em episdios intera-cionais no faz tanta diferena. O relevante que nossas conjeturas sejam postas a teste por sua capacidade para desvelar e explicitar os processos que, de um modo ou de outro, resul-tem em distino crescentemente clara sobre o que se pretenda caracterizar como fenme-no comunicacional relacionado aos temas e questes de nossa preferncia.

    ngulo interao social/comunicacional

    Francisco Rdiger, preferindo a perspecti-va abrangente que estamos aqui examinando, refere o objeto de uma teoria da Comunicao como sendo a conversao da sociedade. Ci-tando Gabriel Tarde, desenvolve a proposio de que a conversao constitui uma espcie de

    mediao cotidiana do conjunto das relaes sociais, da difuso das idias e da formao das condutas que tm lugar na sociedade (Rdi-ger, 1998, p. 16). uma excelente sntese do que constituiria, em essncia, o nosso objeto.

    O termo conversao tem a vantagem de no se confundir com qualquer outro tipo de interao social. A expresso conversar cha-ma a ateno imediatamente para o aspecto de troca comunicacional (ainda que o objeto de uma conversa possa ser de diversas naturezas econmica, poltica, militar, cient ca, ou sen-sual). Os modos e objetivos espec cos so dei-xados em segundo plano, e a palavra enfatiza a troca e o fato de que essa troca uma comunica-o. Poderamos assim dizer que o objetivo e o objeto do Campo de Estudos em Comunicao, de modo quase tautolgico, observar como a sociedade conversa com a sociedade.

    Por outro lado, aceitando o conceito, faremos uma ressalva no que se refere escolha da pala-vra para diz-lo. As expresses conversao e conversa tomam como metfora e ampliam para o espao social amplo o que ocorre entre pessoas em situao presencial. Isso traz pro-blemas porque estimula uma perspectiva de-terminada por um modelo dialgico-simtrico-alternado-recproco de comunicao modelo que no se justi ca em instncias mais comple-xas e diversi cadas. Preferimos ento utilizar a expresso interao social (ou, quando ne-cessria maior explicitao, interao comuni-cacional), ou ainda simplesmente interao abrangendo, mas no se restringindo quelas trocas do modelo alternado-recproco.

    Uma maneira (intuitiva e no de nido-ra) de referir-se interao comunicacional considerar que se trata a dos processos sim-blicos e prticos que, organizando trocas en-tre os seres humanos, viabilizam as diversas aes e objetivos em que se vem engajados (por exemplo, de rea poltica, educacional, econmica, criativa, ou esttica) e toda e qual-quer atuao que solicita co-participao. Mas tambm o que decorre do esforo huma-no de enfrentar as injunes do mundo e de desenvolver aquelas atuaes para seus obje-tivos o prprio estar em contato, quer seja solidrio quer con itivo e provavelmente com dosagens variadas de ambos; por coor-denao de esforos ou por competio ou dominao.

    Esta perspectiva pode ser efetivamente til para dar foco ao objeto de nossa preocupao e especi cidade com relao s demais discipli-nas humanas e sociais. Esta especi cidade no

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    Jos Luiz Braga

    signi ca entretanto que as interaes sociais (comunicacionais) no seriam tematizadas nas demais disciplinas na verdade, desde o incio do sculo XX, percebe-se em todos os campos do conhecimento humano e social uma cres-cente conscientizao de que seus processos comunicacionais devem ser estudados.

    A diferena parece ser que em todas as de-mais reas observa-se a comunicao enquan-to processo que faz funcionar alguma outra atividade ou instncia de interesse social-hu-mano a literatura, a linguagem, a poltica, as trocas econmicas, etc. No campo espec co da Comunicao, inversamente, os diferentes objetivos e objetos do humano e do social que seriam percebidos pelo ngulo priorit-rio da comunicao que os organiza e que de-les decorre.

    Assim, nas demais reas de conhecimento, ou a comunicao observada sem ser pro-blematizada; ou ento problematizada em funo dos interesses espec cos da rea. No Campo da Comunicao, todo e qualquer fato humano seria problematizvel no ngulo comu-nicacional.

    O que signi ca objetivar, destacar e proble-matizar a dimenso comunicativa dos diver-sos procedimentos humanos na poltica, na educao, na produo cient ca, na criao artstica, no intercmbio cultural? No se trata apenas de perceber que as pessoas se engajam nestas atividades e processos conversando, se comunicando. Tratar-se-ia, antes, de pro-curar perceber o qu nestes processos especi- cados por seus modos e objetivos sociais entretanto inerente no a estas especi caes, mas resultante de (ou referente a) processos mais amplos de trocas simblicas e de inte-raes que sobre-determinam o que a se faz. Ou, em corolrio, procurar perceber como tais aes espec cas outras sobredeterminam os processos de comunicao a envolvidos.

    * * *Como perspectiva geral, parece ser efeti-

    vamente possvel adotar esta posio sobre o objeto do campo que oferece ao mesmo tem-po um ngulo de especi cidade e uma soluo razovel (embora um tanto abstrata e ampla) para justi car e distinguir a presena do tema comunicao no nosso campo e em todos os demais sem cair na atitude holista acima referida.

    Entretanto alguns problemas decorrem des-ta perspectiva, que devem ser abordados para que se possa veri car mais acuradamente sua possibilidade de e ccia. Estes problemas se

    referem sobretudo a quatro ordens de re exo.(i) a presena, com altssima freqncia em

    nossos programas de ps-graduao, em nossa produo publicada, em nossas pes-quisas e na histria da construo do cam-po, justamente da mdia que a alternativa geral (interacional) procura recusar en-quanto objeto espec co;

    (ii) a questo do compartilhamento prtico dos estudos ou seja: desde que todas as reas de conhecimento humano e social abordam a questo comunicacional, a distribuio entre e a contribuio dos diferentes campos de estudo no parece poder ser de- nida apenas por aquela soluo abstrata referente ao ngulo de enfoque principal. Ou ainda: na prtica das pesquisas no percebemos uma distino rigorosa no que se refere ao ngulo preferencial;

    (iii) a questo da constituio interna do cam-po, que no se faz a partir de proposi-es abstratas ou de gestos epistemolgi-cos formalizados, mas sim da prtica da pesquisa; mas que deveria poder ser de algum modo relacionada ao ngulo pro-posto para que este possa ser visto como produtivo;

    (iv) a questo de, ao ultrapassar as frontei-ras facilmente demarcadas do territrio meios de comunicao, como evitar uma confuso (observada em alguns estudos) entre comunicao e cultura. Um exemplo dessa imerso do comunicacional no cul-tural so alguns trabalhos em torno das mediaes, a partir de J.-M. Barbero. Ao passar dos meios s mediaes, s vezes o que parece haver de propriamente comu-nicacional nas relaes dos usurios com a mdia parece se diluir no cultural

    Anotaes atuais

    Na perspectiva exposta nos comentrios ao item sobre o objeto, mantenho a preferncia pela questo interaes, que venho desen-volvendo, sobretudo porque essa questo me parece se apresentar como mbito processual relevante na ocorrncia de episdios comuni-cacionais.

    Essa preferncia no exclui temas ou obje-tos apenas se demarca como ngulo de en-trada promissor para conjeturas, perguntas e pesquisa emprica. De modo prximo, me interesso por midiatizao, mais que pro-priamente por mdias (ver adiante, no item Centralidade da mdia), pois esse conceito

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    Constituio do Campo da Comunicao

    enfatiza expressamente processos segundo os quais as mdias funcionam, mas tambm pe-los quais a sociedade contempornea histori-camente aciona suas interaes. Ou seja: a mi-diatizao como processo comunicacional da sociedade, mais que como ao das mdias sobre a sociedade.

    A questo da interao social vai alm da metfora conversacional, como j assinalva-mos no artigo. A conversao enfatiza os pro-cessos de ida-e-volta, na troca entre interlocu-tores. A ideia de resposta percebida como um retorno imediato ao ponto de origem da primeira contribuio conversacional.

    Na sociedade em midiatizao, a interao se manifesta mais claramente como um uxo sempre adiante. Com a emisso de uma men-sagem, seja televisual, cinematogr ca ou por processos informatizados em rede social, o re-ceptor, aps apropriao de seu sentido (o que implica a incidncia das mediaes acionadas), pode sempre repor no espao social suas inter-pretaes. Isso ocorrer seja em presencialidade (em conversaes, justamente), seja por outras inseres midiatizadas cartas, redes sociais, vdeos, novas produes empresariais, blogs, observatrios, etc. Os circuitos a acionados muito mais abrangentes, difusos, diferidos e complexos que constituem o espao das res-postas adiante na interao social.

    Uma parte de tais encaminhamentos certa-mente voltar, transformada, s origens onde foi emitida a mensagem tomada como inicial apenas para efeito de raciocnio. Na verdade a circulao constante. Uma parte dos processos a ativados se torna ento abrangentemente social propiciando esse retorno modi cado e difuso.

    Como se percebe, esse processo, que pode-mos denominar de uxo comunicacional de circulao adiante, no mantm semelhanas com a referncia conversacional que justi- quem a metfora. As conversaes interpes-soais em presena ou por rede so apenas parte possvel do processo geral.

    A centralidade da mdia

    A questo aqui conseguir fazer conviver uma perspectiva ampla sobre o comunicacio-nal (enquanto estudo da conversao social) que no o restringe ao que se passa na mdia com a importncia evidente dos processos mediticos nos estudos do campo acadmico da Comunicao.

    Existem algumas razes, creio, para perce-ber a importncia nuclear da mdia sem ter-

    mos que circunscrever nosso objeto com exclu-sividade ao que a se passa.

    A primeira razo que os meios de comu-nicao audiovisual so o fenmeno scio-his-trico que permitiu perceber, objetivar e pro-blematizar os processos comunicacionais em perspectiva destacada (ou seja, deixando de ser apenas um componente de outras perspec-tivas e objetivos sociais e de conhecimento).

    Foi preciso uma presena meditica obje-tivada no espao social para que a socieda-de se perceba conversando consigo mesma. Antes disso, era possvel e fcil a sociedade perceber (objetivar) determinados ngulos de interao comunicacional, subsumidos a uma questo qualquer por exemplo: o trabalho de convencer pela palavra enquanto retrica e argumentao; a re exo sobre a produo de efeitos poticos; os modos pelos quais o ser humano faz interagir sua psique com o mundo social que o cerca; etc.

    Uma vez a orado o objeto (percebido, constitudo, problematizado) ele no depende mais das condies de sua constituio pode-mos re etir e discutir sobre o que eram as in-teraes sociais comunicacionais h 3 sculos ou trs mil anos atrs. Ou seja: os MCS teriam sido condio de percepo e de objetivao, mas no de constituio do objeto.

    Antes do a oramento no s a sociedade conversava consigo mesmo, como bvio; mas isto sempre foi percebido em suas con-versas setoriais, suas prticas sociais e sua re- exo como educao, poltica, religio, ci-ncias, artes, economia, literatura. E a sempre subsumido aos objetivos e ngulos espec cos destas prticas e re exes.

    Uma segunda razo para a centralidade da mdia dentro do objeto interao social a importncia dos MCS como processo comuni-cacional e de produo de sentidos comparti-lhveis na sociedade contempornea.

    Pela primeira vez na histria, uma socie-dade se dotou de um vasto aparato tecnol-gico-empresarial-cultural-pro ssional-mtico voltado especi camente para (ou proposto expressamente como sendo para) veiculao de mensagens e para a produo de efeitos de fruio esttica ou de entretenimento. Ao mes-mo tempo, por sua dimenso, complexidade e diversidade de aes e poder intrnseco, este aparato no pode ser visto como inteiramente a servio de uma outra determinada ordem de objetivos e processos sociais.

    Isto signi ca que uma importante parte (em quantidade e relevncia) do que se co-

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    Jos Luiz Braga

    munica na sociedade contempornea ocor-re atravs dos meios de comunicao. Cer-tamente incluo a no somente os grandes meios audiovisuais e informticos, mas tam-bm o jornal, o livro e toda e qualquer forma de publicao impressa.

    A terceira razo da importncia da mdia (alm de ter sido o fenmeno estimulador/ge-rador da percepo e problematizao deste ngulo, e da forte presena do meditico nas interaes sociais contemporneas) o fato de que se trata de um fenmeno que pe em causa modos habituais de conversao social que se fazia e se faz dentro de outros espa-os organizados de funcionamento social; e do trabalho acadmico de iluminar e desvendar a sociedade: poltica, educao, artes, economia, produo cultural, interaes culturais.

    Isso ocorre em funo de duas caractersti-cas que encontramos em todo aparato medi-tico: a inclusividade e a penetrabilidade. Fao aqui a transcrio direta de um trecho de um artigo meu, anterior, no qual abordo estas ca-ractersticas:

    Os novos recursos udio e/ou visuais incluem (no sentido de captar, adicionar, subsumir) tudo o que, em termos de som e/ou imagem possa ser representado. Ao fazer isto, adicionam tambm os processos do espao social registrveis por seus equipamentos.A incluso de processos (e no apenas de ob-jetos) desenvolve j uma segunda caracterstica dos meios. Ao adicionar processos, estes so in-evitavelmente modi cados no espao da incluso - em pelo menos dois sentidos: o resultado nal da objetivao (da produo) um processo modi -cado em formas, ritmo, durao, perspectiva, in-terpretao; e o prprio processo, no espao real, recebe solicitao de modi caes para se ajus-tar ao olhar/ouvido dos equipamentos.Para esta caracterstica dos meios, proponho a de-nominao de penetrabilidade o meio/processo de comunicao penetra nos processos sociais, modi cando-os em funo de seus prprios mo-dos operatrios (Braga, 1999, p. 132).

    Temos ento trs razes para a centralidade da mdia nas pesquisas da rea:

    a presena dos meios audiovisuais via-bilizam a percepo histrica do comu-nicacional como questo diretamente problematizvel;

    nas comunicaes sociais hodiernas, o aparato meditico geral (incluindo a escrita publicada) tem uma importn-cia primordial entre outras interaes extra-mediticas;

    e o meditico interfere e interage pro-fundamente com os espao no-medi-ticos, em funo de suas caractersticas de inclusividade e de penetrabilidade.

    este conjunto de fatores que nos permitem a rmar que hoje vivemos em uma sociedade de comunicao ou sociedade meditica.

    Dados estes argumentos, seria talvez pos-svel pretender que funcionam a favor da hi-ptese de tomar os meios de comunicao di-retamente como objeto do Campo. Entretanto, preciso assinalar que os MCS so apenas o fenmeno emprico e como tal no corres-pondem propriamente a um ngulo ou preo-cupao de busca de conhecimento. Portanto sobre eles volta-se tambm, de pleno direito, o olhar das demais reas humanas e sociais. Para a rea da Comunicao, no se trata de uma nfase apenas no sistema jurdico-poltico da mdia; nem apenas no sistema tecnolgico; nem apenas no sistema pro ssional de produ-o; nem apenas no conjunto de produtos e na fortuna expressiva a elaborada; nem apenas nas circunstncias da recepo que lhes ofe-recida. Qualquer destes enfoques, se exclusi-vo, tende a segmentar o objeto e isol-lo, seja de sua realidade social, seja de sua substncia signi cativa, seja das suas condies de exis-tncia e produo. Trata-se de ver (em qual-quer dos pontos das relaes de uxo entre estes elementos e processos), a interao social comunicacional em funcionamento, com seus objetivos, processos e tenses plurais.

    Por outro lado, a perspectiva da intera-o social ampla tomada como objeto no nos impede de dirigir o olhar, com enfoque muito direcionado sobre a mdia, na observa-o de um fenmeno recortado, para os pro-psitos da pesquisa, como um fragmento da realidade social (o sentido de um produto, as vicissitudes de uma recepo, uma rotina de produo, o funcionamento jurdico-poltico de um sistema de comunicao ou a distribui-o de freqncias em um pas). O que rene e d consistncia a estas diversas observaes no que tenham como objeto emprico um determinado fenmeno ou processo mediti-co mas sim que, em todos eles, estaremos observando sua relao com (incidncia sobre e/ou conseqncia para) as interaes sociais. Isto permite examinar o fragmento sem des-tac-lo das relaes que entretm sem dua-lismo, portanto.

    Nossa perspectiva ento comporta a forte presena da preocupao com os processos

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    Constituio do Campo da Comunicao

    mediticos enquanto fenmeno histrico e social, na sociedade contempornea e como objeto principal de nossas preocupaes de pesquisa mas no exclui outros objetos des-de que neles se d como enfoque principal a questo das interaes comunicacional que os caracterizam.

    Anotaes atuais

    Considero agora que o uso enftico da pa-lavra mdia leva a equvocos. A expresso tende a sublinhar aspectos temticos do ob-jeto, relacionando a palavra a duas refern-cias materiais seja a mdia-empresa, seja a mdia-tecnologia, como se o simples fato de tematizar tais objetos pudesse caracterizar um campo de estudos, quando na verdade tais objetos podem ser tema de estudo e pesqui-sa por quaisquer das CHS.

    Adotando a expresso midiatizao, se-remos mais exatos, pois a expresso faz ressal-tar os processos comunicacionais envolvidos.

    Certamente um fato histrico que as so-ciedades contemporneas acionam crescente-mente tecnologias miditicas para acionar e fazer circular suas necessidades e interesses de interao. claro, tambm, que as ques-tes tecnolgicas e as referentes aos processos industriais/empresariais estruturam grande parte desse uso. Mas a questo abrangente, em nossa perspectiva, se reporta aos modos sociais de circulao que a so inventados e produzem seus efeitos sociais. Tais processos no so inteiramente determinados por causas outras que zessem do fenmeno comunica-cional mero epifenmeno percebemos lgi-cas internas no processo comunicacional.

    Nessa linha, podemos entender a midiatiza-o como um conjunto complexo de aes de so-ciedade (incluindo a, claro, a organizao em-presarial e o desenvolvimento tecnolgico) que crescentemente se estabelecem como processo interacional de referncia, passando a abranger e direcionar os processos gerais anteriores: os da escrita, que anteriormente (e ainda) se apresen-ta como processo de referncia principal, sub-sumindo a generalidade de processos; e os da oralidade tradicional (ver Braga, 2007).

    Claramente, estes moldes interacionais anteriores no desaparecem ora se reorga-nizam no contexto geral da midiatizao; ora se circunscrevem a espaos especiais restritos (como ocorre tambm com a oralidade no pe-rodo da escrita como articuladora mais geral da interao social).

    Tal re exo, acredito, corresponde a supe-rar a disjuno entre os dois objetos cote-jados no artigo, mdia e interao. Essa pers-pectiva, naturalmente, nos leva a propor uma continuidade entre os processos comunica-cionais da midiatizao e os processos de co-municao mais distantes do midiatizado. Na sociedade contempornea, seria difcil fazer um corte ntido entre fenmenos comu-nicacionais da processualidade midiatizada e fenmenos comunicacionais outros, diversa-mente inscritos no uxo comunicacional.

    Compartilhamentos prticos

    A questo aqui a de como desentranhar o objeto comunicao e lhe dar identidade no campo, no confundida com os papis espec -cos atribudos pelas demais disciplinas parti-culares. Como assinala Luiz Cludio Martino,

    a natureza dos estudos em Cincias Humanas que tm no homem um ser essencialmente comunicativo, seu objeto comum faz com que a anlise dos processos comunicativos seja um pon-to de passagem quase obrigatrio, o que di culta a delimitao mais precisa do objeto da Comuni-cao, uma vez que ele se encontra misturado s anlises de outras disciplinas (2001, p. 78).

    A clivagem geral e abstrata j foi exposta acima: trata-se de distinguir primeiro a pre-sena do ngulo interao comunicacional; e em seguida, veri car se este ngulo que comanda o olhar ou se est subsumido aos ob-jetivos prioritrios de outras disciplinas. Mas esta proposio abstrata insu ciente, pois as-sumimos que o que comanda a construo do campo no um gesto terico-epistemolgico, e que as prticas do campo social da pesquisa que oferecem substrato histrico.

    H duas questes de partilha e selees:

    (a) decidir o que pode ser melhor estuda-do a partir de paradigmas, mtodos, teorias e pontos de vista de outras disci-plinas particulares; em contraste com o que pode ser melhor percebido no cam-po dos estudos em Comunicao;

    (b) decidir dentro desse espao inde ni-do de sub-temas possveis quais so os tipos de objeto mais relevantes e mais urgentes para observar seus processos e produtos de interao.

    Estas partilhas no sero resultantes de de-cises lgicas ou de especulaes epistemol-

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    gicas, mas o resultado histrico das pesquisas elaboradas, tanto nomeadamente no Campo da Comunicao como no campo de discipli-nas a ns, onde o tema prevalea.

    At o sculo XX, os grandes meios sociais de comunicao (livro - jornal - artes) eram objetos dentro de outros campos em que os ngulos gerais eram diversos. Por exemplo, o livro na literatura; o livro na educao; o jornal na poltica (eventualmente na literatura, como folhetim, como divulgao cultural,...); o rdio igualmente na poltica. Ou ento, eram perce-bidos com foco nas tenses que geravam com outros campos (a fotogra a com a pintura; o cinema com o teatro, e em geral com o campo das artes). Ou ainda, relacionados a questes consideradas como menores ou circunstan-ciais das atividades sociais: cinema, rdio e te-leviso enquanto entretenimento.

    O que observamos hoje uma diversida-de de pesquisas que alimentam a rea, vindas tanto dos PPG nomeadamente de Comuni-cao, como das demais disciplinas sociais e humanas diversidade de que um exemplo marcante o funcionamento da Comps.

    Conforme a formao pro ssional ou a simples preferncia pessoal dos pesquisado-res, o ngulo comunicacional comparece como predominante ou como subsumido e essa clivagem nem sempre relacionada insero em um PPG do Campo ou de outra disciplina humana ou social.

    At onde se pode prever, esse compartilha-mento ad-hoc e variado continuar preponde-rante durante ainda muito tempo. Assim, na partilha prtica do ngulo comunicacional, no possvel (nem desejvel) sugerir que os nos-sos PPGs dem prevalncia ao ngulo comu-nicacional nas suas relaes com outras pers-pectivas do social; e que os demais espaos de pesquisa mantenham o ngulo comunicacional apenas como aporte de contribuies vindas de nossa rea e a servio da disciplina usuria.

    Tanto em um como em outro espao, a pes-quisa faz surgir novas questes sobre a intera-o e novas perspectivas para abord-las. No h ainda (e no importa muito se haver ou quando) disciplina fornecedora e disciplina usuria no que se refere a esse ngulo. Ou seja: o campo est sendo construdo em conjunto por pesquisadores de diversas reas sem-pre que o ngulo interacional comparece com alguma relevncia em suas abordagens. Esta circunstncia no representa invaso do que seria nossa especi cidade, nem que nossa rea se dilua nas demais.

    Pode-se dizer que o estgio de re exo sobre as questes envolvidas na interao co-municacional no chegou ainda no ponto em que a relevncia e a profundidade das desco-bertas dependa de um enfoque exclusivo ou preponderante sobre o que propriamente comunicacional. Assim, muitas descobertas e elaboraes conceituais fundamentais para o Campo decorrem de perspectivas elaboradas com enfoque outro.

    nas idas-e-vindas entre os diversos cam-pos que estamos construindo no um objeto interdisciplinar, mas uma percepo crescen-temente complexa sobre o que sejam as intera-es comunicacionais na sociedade.

    O que talvez seja tarefa espec ca dos PPG em Comunicao e dos pesquisadores mais envolvidos com a identi cao do campo, a re exo continuada no sentido de desentra-nhar o objeto propriamente comunicacional dos demais objetos de conhecimento humano e social os quais, com referncia quele ngu-lo preferencial da rea, podem ser vistos como complementares.

    O corolrio desta tarefa observar o fun-cionamento do que h de comunicacional no campo mesmo das diversas disciplinas hu-manas e sociais e ver como essa diversidade pode ser percebida como atravessada por uma mesma ordem de re exes que as faz interessantes de um outro ponto de vista: en-quanto objetos comunicacionais.

    Com isto que se tornar crescentemente possvel desenvolver teorias do campo comu-nicacional.

    Por outro lado, voltando ao emprico, possvel que os pesquisadores mais especi ca-mente da rea que podero crescentemen-te desenvolver estudos miditicos ao mesmo tempo com mais acuidade (dada a presena e a freqncia do objeto) e com mais percepo de conjunto (ou seja, evitando a fragmentao) exatamente porque aqui o ngulo interacional, no tendo que ser subsumido a nenhuma outra prevalncia, pode vir a produzir teorias gerais.

    A rea da comunicao, voltada para as questes prprias da rea, deve ser a principal propositora de questes e de problemas es-pec cos, alm de desenvolvedoras de esfor-os criativos no sentido de articular, a partir de seu ngulo preferencial, descobertas e for-mulaes distintas, recebidas de outras reas especializadas. As demais reas, na medida de sua formulao anterior de teorias e conceitos, com rigor estabelecido, para seus tipos espe-c cos de objeto, por seu lado, provavelmente

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    Constituio do Campo da Comunicao

    continuaro ainda longamente a serem princi-pais fornecedoras de rigor terico e de substra-tos metodolgicos para a pesquisa.

    Anotaes atuais

    Duas questes se complementam, quanto a esse aspecto. Uma delas se refere ao desentra-nhamento do fenmeno comunicacional dos diversos mbitos e disciplinas em que este estudado. Trata-se, como abordado no item anterior, de extrair o fenmeno da percepo que as teorias das diversas CHS elaboram, para perceb-lo menos dependente das ques-tes prprias destas disciplinas.

    A outra questo de certo modo inversa: se dedicamos nosso esforo de pesquisa e teo-rizao construo de perspectivas prprias para distinguir o fenmeno comunicacional, preciso pensar, de nossa parte, sobre a con-tribuio que nos incumbe, no conjunto das CHS, para o esclarecimento do fenmeno.

    Uma perspectiva de Auguste Comte, no seu estudo sobre a constituio histrica das disciplinas de conhecimento, apresenta uma intuio fundante: as primeiras perguntas e hipteses, referentes a um fenmeno que se apresenta como questo para um novo conhe-cimento, so desenvolvidas no mbito de uma disciplina j estabelecida. Apenas na medida em que estas hipteses e perguntas ultrapas-sem a abrangncia de interesse do campo j estabelecido, que se funda um novo mbito de estudos e conhecimento.

    Com essa perspectiva, Comte prope a per-cepo da continuidade histrica que faz deri-var da matemtica a cosmologia, desta, a fsi-ca, no mbito da qual se zeram as primeiras perguntas que vieram a con gurar a qumica, onde surgem os problemas de conhecimento que resultariam na biologia para nalmen-te desprender-se desta a sociologia (in Alain, 1947, p. 295-304).

    No que essa sequncia tenha de esquem-tico ou de modelizao posterior, permanece a boa heurstica que se apercebe de perguntas sendo desenvolvidas antes que um objeto cla-ro se con gure.

    Ora, o que vemos nos desenvolvimentos de um conhecimento comunicacional justamen-te, a partir do sculo XX, a profuso de ques-tes que se referem, direta ou indiretamente, a esse fenmeno vago que fosse em todas as cincias humanas e sociais.

    Peculiaridade, no nosso caso, essa cir-cunstncia em que vemos tais perguntas e

    hipteses se apresentando no mbito de uma pluralidade de campos de conhecimento ao mesmo tempo evidenciando sua importncia generalizada para a sociedade.

    Com essa perspectiva, podemos perceber a complementaridade das duas questes com que abrimos este item. Desentranhar o co-municacional no corresponde a de nir um territrio parte, nem temas, objetos ou mtodos que nos sejam exclusivos, mas sim desenvolver perguntas e hipteses para alm das que j so feitas pelas demais CHS que no as faro, porque isso ultrapassaria seu mbito de interesse e as lgicas de seu campo de conhecimento.

    Isso, por sua vez, tambm a contribuio que o conhecimento comunicacional pode fa-zer para o conjunto geral em que se inscreve, o das cincias humanas e sociais a oferta de perguntas e hipteses que possam ser ento importadas por estas disciplinas para tratar do comunicacional a servio das questes es-pec cas que lhes interessam.

    Teramos aqui, ento, o que considero um critrio contemporneo vlido para caracte-rizar uma disciplina: a competncia de gerar perguntas e hipteses sobre aspectos da rea-lidade social em perspectiva diferenciada das demais CHS perguntas e hipteses que, por suas perspectivas prprias, estas no faro; mas que podem, por outro lado, em regime de aproximao interdisciplinar, ser acionadas a servio do conhecimento de seus objetos para os quais a interface relevante.

    A questo da constituio interna do campo

    Uma primeira clivagem, que se percebe na observao das pesquisas, ocorre entre os es-tudos que enfocam alguma questo especi ca-mente sobre a mdia; e outros estudos (talvez em menor nmero, mas muito diversi cados) que abordam outras questes e outros obje-tos empricos, extra-mediticos, em funo de componentes comunicacionais (interacionais) a envolvidos.

    Outra clivagem pode tambm ser referi-da. De um lado, temos um conjunto de estu-dos que, por tradio, pelo lugar em que so desenvolvidos ou ento pela tranqila preva-lncia do ngulo interao so consensual-mente aceitos como pertencentes ao Campo da Comunicao de pleno direito e origem (ainda que lancem mo de teorias e conceitos desen-volvidos em outras reas de conhecimento).

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    Jos Luiz Braga

    Neste espao que encontramos a primeira possibilidade de interdisciplinaridade refe-rida no incio do artigo e que em nada reduz a identidade do campo, a qual solicita e absor-ve contribuies de outras reas a servio de seu ngulo espec co.

    De outro lado, encontramos estudos que ni-tidamente se fazem na fronteira entre os objetos de preocupao do campo e os objetivos de ou-tras disciplinas humanas e sociais. Aqui ocorre a segunda possibilidade de comparecimento de interdisciplinaridade referida na introduo espao em que facilmente se podem perceber os relacionamentos que fazem interagir os for-necimentos de cada lado da interface.

    Dando-se ateno a estas duas clivagens, possvel construir organizaes do Campo que no sejam reducionistas nem excludentes. Concomitantemente, que no sejam exclusi-vistas (de fronteiras fechadas), nem to disper-sas que se tornem inde nidas e gasosas (a interdisciplinaridade etrea que criticamos no incio do artigo).

    Uma dessas organizaes, elaboradas em perspectiva essencialmente prtica, a que foi proposta por uma comisso organizada pela Comps para este efeito em 1997 (Vas-sallo Lopes et al., 1997). Teramos trs tipos bsicos de componentes nessa organizao. Um deles organizado em ateno presen-a e aos processos mediticos. Temos a as angulaes que habitualmente so oferecidas pelas pesquisas, e que perspectivam a mdia segundo clivagens empricas:

    Estudos de MeiosPrticas de ComunicaoInterpretao de ProdutosRecepo

    Trata-se, portanto, dos estudos que enfo-cam respectivamente o sistema e suas estrutu-raes; a produo; o produto; e os usos feitos dos produtos na recepo. A estas quatro su-breas possvel acrescentar uma quinta, em que o enfoque no se volta diretamente para a mdia, mas para aquilo que, na sociedade e no indivduo, interage com os processos comuni-cacionais amplos:

    Sociabilidade/Subjetividade e Comunicao

    Um segundo conjunto de subreas justa-mente aquele em que se desenvolvem os es-tudos de interface so os espaos de inter-disciplinaridade entre o ngulo propriamente

    comunicacional e os diversos ngulos de pre-ocupao e busca das diversas disciplinas hu-manas e sociais.

    Considerando a relevncia atual da comu-nicao e sua problematizao generalizada, estes espaos de interface seriam tantos quan-to fossem as disciplinas e atividades humanas identi cveis como campos de conhecimento ou do fazer social. Entretanto, para efeitos pr-ticos, no documento referido achamos perti-nente fazer agregaes amplas. Temos assim:

    Comunicao e CulturaComunicao, Arte e LiteraturaComunicao, Cincias Humanas e Filoso aComunicao e Cincias Sociais Aplicadas

    Temos nalmente um ltimo conjunto, for-mado por uma nica subrea abrangendo estudos em que a teoria seja mais que o movi-mento natural de toda pesquisa, para tornar-se o objeto mesmo desta (associado freqente-mente a questes epistemolgicas). o espao em que o campo se pensa, no qual explicita e acompanha seus prprios desenvolvimentos histricos e terico-epistemolgicos:

    Teoria e Epistemologia da Comunicao

    Essa hiptese de descrio detalhadamen-te trabalhada no documento referido, e portan-to evitamos aqui maiores elaboraes. Entre-tanto duas proposies devem ser explicitadas:

    (a) as subreas no devem ser percebidas como territrios (metfora que levaria aceitao de fronteiras e de exclusividade). Cada uma delas apenas um ngulo de en-trada, ou seja, uma perspectiva preferencial para organizao de objetos de pesquisa, n-gulo que no exclui temas das demais sub-reas, mas apenas os organiza em funo do enfoque ali adotado;

    (b) a preocupao de ordem geral com o elemento identi cador do campo (a interao comunicacional geral) fundamental para su-perar a fragmentao tanto das subreas me-diticas entre si, como da mdia em relao sociedade. O que evita a fragmentao a percepo de que o fragmento estudado est em alguma relao com o processo geral da co-municao social. Alis, pelo fato de o objeto comunicacional incluir mltiplos ngulos, no subsumveis em conjunto e sem restos a ne-nhuma das perspectivas humanas e sociais es-tabelecidas, que solicita (ainda que, na pesqui-

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    Constituio do Campo da Comunicao

    sa emprica, o trabalho possa ser fragmentrio) a construo de um campo em que angulaes mais amplas sejam referidas para reconstitui-o, no conjunto, de uma abrangncia compre-ensiva do objeto.

    Independente do acordo ou desacordo que venha a ser feito sobre esta organizao espe-c ca, o que queremos assinalar aqui a pos-sibilidade de organizar o campo em termos prticos, de modo su cientemente espec co e abrangente, para situar os principais ncleos e enfoques, e para manter uma porosidade es-timuladora de interaes com as demais cin-cias humanas e sociais; sem ter que se dar nem como fronteira guardada nem como encruzi-lhada passivamente atravessada.

    Anotaes atuais

    A Tabela de reas de Conhecimento, do CNPq se mantm ainda como antes, no refor-mulada, embora diversas discusses e tentati-vas tenham ocorrido na rea, encaminhando vrias propostas diferenciadas depois da pro-posta referida no artigo.

    Parecia, poca do artigo original, que o desenho interno em subreas e especialidades dos estudos em Comunicao poderia ter um sentido organizador para os prprios deba-tes do conhecimento. Hoje assumimos que se trata, a, sobretudo de uma questo de ordem prtica importante para encaminhamentos das agncias de fomento, mas de menor ur-gncia no que se refere a visadas epistemol-gicas e metodolgicas para o campo.

    A questo que atualmente nos parece cen-tral para a constituio interna do campo de estudos no propriamente a do estabeleci-mento de categorias para verter os diferentes projetos e teorizaes. antes a questo vol-tada para o desenvolvimento de dinmicas de articulao e de desa o mtuo entre ngulos diferenciados de observao do fenmeno co-municacional.

    Uma constatao recorrente nos estudos do campo a extraordinria diversidade de tem-ticas e abordagens. Isso decorre da complexi-dade do prprio fenmeno comunicacional, que atravessa todas as atividades humanas e sociais. Refere-se tambm aos mltiplos ob-servveis empricos e aos aportes tericos que, alm daqueles desenvolvidos diretamente no campo de estudos, so sobretudo buscados em todas as CHS.

    As tentativas de domar a diversidade com base em teorias abrangentes (sobretudo tenta-

    das at os anos 90) apresentavam resultados reducionistas, recusando o interesse de estu-dos no abrangidos pela teoria proposta.

    O acolhimento indiscriminado da diversi-dade, por sua vez, estimulava a postura inter-disciplinarista frouxa que criticamos acei-tando a convivncia meramente cumulada de todos os aportes.

    Adotando uma visada processual para a constituio do campo, assumimos hoje (ver Braga, 2011) que importante manter a diver-sidade, mas devendo-se trabalhar contra a dis-perso. O principal esforo contra a disperso no o de forjar categorias prvias para en-caixar re exes, pesquisas, mtodos e teorias. Trata-se antes de buscar espaos em nvel mais abstrato que o das pesquisas espec cas nos quais diferentes investimentos investi-gativos, sobre ngulos variados do fenmeno comunicacional, possam buscar composio e tensionamento de suas questes e hipteses.

    Essa perspectiva no corresponde a aplainar diferenas, nem a subsumir resultados de um ngulo a outro. Trata-se, mais simplesmente de: (a) desa ar hipteses de um ngulo pelos resul-tados de outro, atravs de um tensionamento entre as diferentes visadas; (b) buscar pergun-tas mais abrangentes; (c) desenvolver hipteses heursticas que procurem articular fragmentos de conhecimento diferentemente produzidos.

    Assim, a reduo da disperso no corres-ponde a reduzir a diversidade mas apenas a pr em contraste, pelo debate e pela pesquisa, ngulos de estudo ainda no conectados.

    Essa questo desenvolvida em artigo (Bra-ga, 2011) elaborado com base no estudo de cem artigos, muito diversos entre si, apresentados na Comps mas que puderam ser analisados segundo mesmas clivagens interpretativas.

    A distino Comunicao x Cultura

    Um dos riscos de adotar uma perspectiva de objeto comunicacional mais amplo que os processos mediticos o de que, nos espaos sociais mais difusos, se perca a especi cidade de nosso enfoque, diludo na questo cultural.

    Em meu artigo sobre Interao e Recep-o observo um risco deste tipo no decor-rente da incluso de preocupaes culturais, mas quando da decorre um esquecimento do que propriamente comunicacional:

    A percepo sobre mediaes culturais nas quais est permeado e impregnado o receptor uma contribuio preciosa para os estudos da

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    rea. Basta observar a alta freqncia de refe-rncias a Barbero nos mais diversos estudos de recepo. Mas um risco eventual incorrido por alguns estudiosos da questo o de dar exclu-siva nfase aos demais determinantes culturais (extra-mediticos), quando o receptor a rma-do como fortemente amparado por estas inser-es outras para simplesmente resistir aos produtos de massa. Pode ocorrer ento um es-quecimento de que, entre o receptor e o produ-to meditico ocorrem efetivamente intera es. Deixar de lado o produto meditico e os am-bientes mediatizados de comunicao, obser-vando-se apenas o lado receptor com suas de-fesas e permeaes culturais outras, pode levar a perder de vista a importncia de apreender e ampliar conhecimentos sobre o que ocorre de espec co nas interaes mediticas (Braga, 2000, p. 5).

    preciso portanto distinguir, na cultura, o que objeto das preocupaes culturais etno-gr cas; e o que deveria ser o objeto principal das preocupaes do Campo da Comunicao.

    A cultura-identidade enquanto dado prvio, de tradio, segundo o qual os seres humanos se inscrevem em sua comunidade e desenvolvem estrategicamente seu ser hoje ultrapassada por processos largamente auto-percebidos (e por-tanto trabalhados) de insero que levam percepo de que pode ocorrer uma escolha entre diversidades e no mais apenas acolhimento e permeao na identidade.

    Vemos a duas perspectivas que, no espao cultural, interessam especi camente ao estudo comunicacional. Uma delas a da constatao da diversidade como base para uma objetivao/problematizao da questo comunicacional (enquanto que o ngulo cultural tem tradicio-nalmente buscado observar o que identi ca uma cultura ou seja, cultura enquanto identidade).

    A utilizao da expresso meios de comu-nicao para referir transporte e vias de circu-lao, nos sculos XVIII e XIX, provavelmente decorria da percepo de que aqueles meios viabilizavam a interao cultural entre locais diferentes em que local no se refere ape-nas ao territrio, mas tambm ao que a acon-tece em perspectivas de cultura.

    Esta concepo de meios de comunica-o foi ento adotada para referir processos de ocorrncia de interao entre diversidades. E a diversidade (naqueles sculos) percebida sobretudo entre povos diversos. Foi necess-rio comear a perceber as diferenas internas em uma mesma cultura por exemplo, cultura de elite x cultura popular para ento re etir sobre a circulao e as interaes entre elas (e

    certamente sobre os obstculos s interaes, histrica e sociologicamente instalados no pro-cesso). Uma boa discusso introdutria sobre interaes entre cultura de elite e cultura po-pular aparece em Ginzburg (1987, Prefcio).

    A segunda perspectiva a de auto-explici-tao do gesto cultural. As pessoas e grupos j no se movimentam somente nas estrat-gias de interao dentro das regras de um jogo proposto pela tradio e pelos hbitos e muito lentamente trabalhado (solapado e assoreado) pelas prprias estratgias. Traba-lha-se tambm conscientemente nas prprias regras do jogo.

    Quando a cultura se percebe cultura, quan-do o gesto que fao no pode mais se justi car como se fosse natural atravs de um assim que se faz j no estamos exclusiva-mente no territrio da cultura, mas tambm no da Comunicao. Ou seja: no mais cultura enquanto modo de ser, mas cultura enquanto comunicao. sempre cultura, claro, mas no o mais apenas como nos acostumaram a v-la os antroplogos. O gesto de cultura (fala, dana, criao, comportamento), em situao de auto-explicitao, j no apenas movi-mento de participao e de identi cao do in-divduo na comunidade. tambm expresso consciente desse identi car-se comunica-o (aos iguais e aos diferentes) da opo fei-ta. Corresponde a uma seleo entre diversos jogos e atuao consciente sobre suas regras, via interao social. nesta perspectiva que o gesto cultural nos interessa.

    As duas perspectivas so naturalmente relacionadas. A co-presena irredutvel de di-versidades correlacionada com a auto-expli-citao e portanto com a construo cons-ciente e auto-re etida da prpria cultura.

    Da decorrem questes que (como quer que sejam tratadas por outras disciplinas) para nosso campo devem ser consideradas como questes de comunicao ou seja, no que envolvem a questo da conversao entre cul-turas. assim que vejo, por exemplo, a ques-to a que habitualmente se chama de politi-camente correto. Trata-se a de um problema comunicacional: como fazer interagir culturas diferentes, em situao de co-presena fora de padres historicamente desenvolvidos como guerra, catequese, submisso, aculturao ou integrao. A co-presena no se restringe convivncia fsica em um mesmo territrio. A globalizao meditica torna de certa forma co-presentes todas ou quase todas as culturas e micro-culturas no mundo.

  • Verso e Reverso, vol. XXV, n. 58, janeiro-abril 2011

    Constituio do Campo da Comunicao

    Assim, uma das questes nucleares que se pem para os estudos da recepo a de ob-servar as interaes entre processos culturais diversos, referentes s mltiplas inseres das pessoas e grupos, e referentes ao que dire-tamente meditico; uns e outros, entretanto percebidos no como se de natureza diversa, mas enquanto conversas (interaes) entre inseres diversas. Esses estudos devem ser es-pecialmente referidos neste ponto, pois aqui onde se observa uma das principais interfa-ces complexas entre o meditico e o extra-me-ditico que a questo cultural (e portanto a especi cidade comunicacional) se coloca.

    As preocupaes com a identidade cultural so desenvolvidas no campo antropolgico ou etnogr co. O que efetivamente interessa co-municao no propriamente a questo cul-tural (caso em que a antropologia su ciente). Mas sim o das interaes comunicacionais en-tre diferentes culturas (ou seja, entre diferentes identidades). Quando o estudo de mediaes se restringe ao estudo das identidades constru-das, nesse espao de observao, o pesquisador estar fazendo cultura (ou seja, etnogra a ou antropologia). S quando utiliza os dados a ob-tidos para observar efetivamente como as intera-es comunicacionais se do entre esta identi-dade cultural e a mdia que estar fazendo propriamente estudo de comunicao. No porque a inclua a mdia mas sim porque se volta ento para a interao de uma identidade cultural com outra (no caso, meditica). Ainda sem a mdia teramos comunicao quando para alm da observao de uma determinada identidade cultural, se observem as interaes comunicacionais desta com outras. Ser ento o caso do multiculturalismo, quando ultrapasse a descrio etnogr ca da situao multicultu-ral (ou das culturas em presena) para observar como aquela diversidade espec ca observada transpe as barreiras do diverso para interagir, qualquer que seja a interao comunicacional, con ituosa ou solidria.

    Anotaes atuais

    A questo que se coloca hoje, para alm de distines entre estudos de cultura e estu-dos de comunicao, seria uma preocupa-o com modos de articulao entre objetos e processos comunicacionais e contextos so-cioculturais. Assumindo que a comunicao se d sempre em contexto, como levar es-tes em conta, sem se deixar conduzir pelos conhecimentos estabelecidos sobre tais am-

    bientes e sobretudo evitando aceitar deter-minismos contextuais que levariam a tomar os processos comunicacionais como meramente decorrentes de processos sociais outros, como mero epifenmeno?

    Entendemos que no produtivo (nem seria talvez possvel) abstrair os contextos es-tudados pela sociologia, pela lingustica, pela economia, pela histria. No h como fazer se-parao prvia de variveis, para examin-las fora de contexto.

    Uma primeira premissa a fazer, para que as regularidades do contexto no sejam assumi-das como totalmente determinantes do comu-nicacional, adotar uma inverso programtica. Entendemos que as percepes das disciplinas vizinhas e das prticas comunicacionais ob-servam os fenmenos segundo suas prprias perspectivas: as questes prevalecentes so as da rea estabelecida. O fenmeno comunica-cional visto a servio de outras questes e portanto, visto de fora. De nossa parte, devemos assumir a centralidade do fenme-no comunicacional tomando-o programati-camente como o constituinte interessante dos processos interacionais. Em Braga (2010b), encaminhamos a previso de um programa tentativo nesse sentido.

    Outra perspectiva para as distines e arti-culaes entre o comunicacional e o contexto envolve a previso de um lugar epistmico de ocorrncia dos episdios comunicacionais, em que os diversos elementos sociais, heterog-neos, se articulam e tensionam, segundo deter-minados sistemas de relaes, em funo mes-mo dos objetivos comunicacionais da sociedade e seus setores. Denominamos esse ambiente de dispositivos interacionais. So socialmente elaborados e naturalmente trazem para a inte-rao as dinmicas e linhas de causalidade das diferentes regularidades sociais. Por outro lado, a articulao dessas diferentes dinmicas se faz segundo as tentativas do processo comunica-cional que lhe d sentido (logo, se organizam diferentemente em cada dispositivo)

    Outro modo de perceber o que chamo de dispositivos interacionais considerar que correspondem a modos tentativos para ela-borao de padres interacionais segundo os quais a sociedade busca organizar o uxo de circulao comunicacional. Em Braga (2011, 2010a), fao a elaborao desse construto, como uma hiptese heurstica para tensiona-mento interno do campo que, sem reduzir a diversidade, busca caminhos para reduzir a disperso.

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    Jos Luiz Braga

    Concluso

    O presente texto, com o objetivo de apre-sentar algumas re exes sobre a constituio do Campo da Comunicao, toma como ponto de partida duas consideraes preliminares. A primeira considera ocioso discutir sobre o estatuto acadmico formal do Campo assu-mindo sua existncia, enquanto campo so-cial (caracterizado pelo desenvolvimento de estudos e de pesquisas), como base su ciente para as re exes a serem feitas. A segunda preliminar recusa a proposta de explicao do campo por uma pretendida natureza inter-disciplinar deste.

    No desenvolvimento principal, discute-se so-bre a opo entre tomar o estudo dos meios de comunicao como objeto nuclear de re exo do Campo de Pesquisa em Comunicao; ou, alter-nativamente, considerar um objeto mais amplo as interaes da comunicao social.

    A partir de uma preferncia pela segunda alternativa, examinam-se quatro problemas que so colocados para esta perspectiva:

    explicar a forte presena da mdia como objeto de estudos na rea;

    re etir a respeito do compartilhamento dos estudos sobre o tema Comunicao entre o prprio Campo e as demais disci-plinas humanas e sociais;

    organizar tentativamente, e para objeti-vos prticos, as diversas perspectivas e temas que as pesquisas abordam;

    distinguir (questo que no se coloca para a opo de centralizao exclusiva na mdia) os ngulos culturais que so de espec co interesse para o Campo.

    Naturalmente as re exes apresentadas no correspondem a proposies epistemo-lgicas para de nio terica do campo, mas apenas a esforos descritivos e organizatrios do que parece estar acontecendo no campo da pesquisa. Correlatamente, as re exes apre-sentadas so inevitavelmente tentativas su-jeitas no s crtica e s objees que nos fa-am perceber limites em nossas proposies, mas tambm prpria dinmica da rea, que no se constitui e desenvolve atravs de estru-turaes abstratas, mas sim da realidade social e histrica de seu trabalho.

    Anotao nal

    O ltimo pargrafo do texto continua v-lido, reiterando o aspecto tentativo das con-jeturas e a expectativa de continuado avano no desenvolvimento da rea mormente pelas refutaes mtuas que os diferentes estudos sobre o campo apresentem, assim como pelas pesquisas sobre aspectos espec cos do fen-meno comunicacional, em sua composio.

    Referncias1

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    1 Os artigos do autor apresentam perspectivas desenvolvidas posteriormente ao artigo agora republicado, e aqui referidas nos comentrios.