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BOOZ oeíjpa ,z & # v 1? & tf © 2006-2009 - IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autoriza- ção por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. W761 Winck, Otto Leopoldo; Triches, Ivo José; Rezende, Cláudio Joaquim. / Tópicos da Filosofia da Educação. / Otto Leopoldo Winck; Ivo José Triches; Cláudio Joaquim Rezende. 2. ed. — Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2009. 336 p. ISBN: 978-85-7638-998-9 1. Educação. 2. Filosofia. 3. Antropologia educacional. 4. Filosofia - História. I. Título. II. Machado, Wanderley. III. Silva, Lu- ciano D. da. IV. Triches, Natalina. CDD 370.1 Capa: IESDE Brasil S.A. Imagem da capa: Domínio público Nome da obra: Escola de Atenas, 1510 Autor: Rafael Sanzio Todos os direitos reservados. p A D r A o IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batei-Curitiba-PR Excelência no Ensino 0800 708 88 88 - www.iesde.com.br Otto Leopoldo Winck Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Espe- cialista em Filosofia com Ênfase em Ética pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e bacharel em Teologia pela PUCPR. Ivo José Triches Mestre em Engenharia da Produção com ênfase em Mídia e Conhecimento pela UFSC. Especialista em Filosofia Clínica pela Faculdade Padre João Bagozzi. Espe- cialista em Filosofia Política pela UFPR. Especialista em Pensamento Contemporâneo pela PUC-PR. Graduado em Filosofia pela PUC-PR.

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tf© 2006-2009 - IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autoriza-ção por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. W761 Winck, Otto Leopoldo; Triches, Ivo José; Rezende, Cláudio Joaquim.

/ Tópicos da Filosofia da Educação. / Otto Leopoldo Winck; Ivo José Triches; Cláudio Joaquim Rezende. 2. ed. — Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2009. 336 p. ISBN: 978-85-7638-998-9 1. Educação. 2. Filosofia. 3. Antropologia educacional. 4. Filosofia - História. I. Título. II. Machado, Wanderley. III. Silva, Lu- ciano D. da. IV. Triches, Natalina. CDD 370.1 Capa: IESDE Brasil S.A.

Imagem da capa: Domínio público Nome da obra: Escola de Atenas, 1510 Autor: Rafael Sanzio

Todos os direitos reservados. p A D r A o IESDE Brasil S.A.

Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batei-Curitiba-PR Excelência no Ensino 0800 708 88 88 -

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Otto Leopoldo Winck Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Espe-cialista em Filosofia com Ênfase em Ética pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e bacharel em Teologia pela PUCPR.

Ivo José Triches Mestre em Engenharia da Produção com ênfase em Mídia e Conhecimento pela UFSC. Especialista em Filosofia Clínica pela Faculdade Padre João Bagozzi. Espe-cialista em Filosofia Política pela UFPR. Especialista em Pensamento Contemporâneo pela PUC-PR. Graduado em Filosofia pela PUC-PR.

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Sumário Apresentação ................................................ 11 Convite à filosofia ..................................................................................................... 13 Por que filosofia? ....................................................................................................... 13

Definições ................................................................................................................. 14

Divisão de tarefas ..................................................................................................... 16

A atitude filosófica e o senso comum ...................................................................... 17

Nem dogmatismo nem ceticismo ............................................................................ 18

Sócrates e a filosofia moral ocidental ........................................ 25 O gênio grego, o mito e as origens da filosofia....................................................... 25 Os filósofos naturalistas e os sofistas ...................................................................... 27

Platão e o nascimento da razão ocidental ................................. 41 Platão: atleta e poeta ................................................................................................ 41

As vigas do pensamento platônico .......................................................................... 43

O legado de Platão .................................................................................................... 46

Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes 53 Filho de médico, mestre de príncipe ........................................................................ 53 Os escritos de Aristóteles ......................................................................................... 54

Só o individual é real ................................................................................................. 55

A metafísica .............................................................................................................. 57

O pai da lógica .......................................................................................................... 59

Ajusta medida e o bem comum ............................................................................... 61

De Aristóteles à Renascença .................................................. 69 A filosofia na era helenística ..................................................................................... 69

Sob a égide da cruz .................................................................................................. 77

A Renascença e o divórcio entre razão e fé ............................................................. 87

Espinosa: uma filosofia da liberdade ..................................... 97 A filosofia moderna: entre razão e experiência ....................................................... 97

Uma vida em diáspora .............................................................................................. 98

Uma vida de filósofo ............................................................................................... 100

O panteísmo de Espinosa ....................................................................................... 103

O ser humano ......................................................................................................... 104

A moral, o sábio e a eternidade ............................................................................. 106

Igrejae Estado.......................................................................................................... 106

O lluminismo e o Século das Luzes .....................................113 Há algo de novo debaixo do Sol ............................................................................ 113

Da Inglaterra e da França as luzes brilham para o mundo ................................... 115

Luzes e revolução ................................................................................................... 116

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A máquina a vapor e a ferrovia: as luzes chegam à técnica .................................. 118

Nomes que brilham ................................................................................................ 119

O legado iluminista ................................................................................................. 122

Immanuel Kant e o idealismo alemão .................................129 Na encruzilhada da razão ....................................................................................... 129 O filósofo de Kõnigsberg ........................................................................................ 130

Entre dogmatismo e ceticismo: a via kantiana ...................................................... 133

A razão no tribunal ................................................................................................. 134

O imperativo categórico ......................................................................................... 138

Kant e a educação ................................................................................................... 140

O idealismo alemão ................................................................................................ 141

A dialética idealista e materialista ....................................... 147 Dialética: breve histórico ........................................................................................ 147

Hegel ....................................................................................................................... 149

O hegelianismo ....................................................................................................... 151

Filósofo e agitador .................................................................................................. 154

O materialismo histórico ........................................................................................ 156

A práxis ................................................................................................................... 158

Schopenhauer: o mundo como representação ................. 167 Contra Hegel ........................................................................................................... 167

U ma vida taciturna ................................................................................................. 169

O mundo como representação .............................................................................. 171

Tudo é dor .............................................................................................................. 172

O nirvana ................................................................................................................. 173

Schopenhauer e a educação ................................................................................... 174

O positivismo e o desenvolvimento da ciência .................. 179 Um mestre e uma musa ......................................................................................... 179

História e evolução ................................................................................................. 181

A religião da humanidade ...................................................................................... 183

Quando filosofia vira samba ................................................................................... 183

Nietzsche educador ............................................................. 191 Vates e filósofos ...................................................................................................... 191

U ma vida perigosa ................................................................................................. 192

Uma filosofia feita com o martelo .......................................................................... 196

0"anticristo"e a luta contra o platonismo do povo ................................................ 197

O super-homem e a nova moral ........................................................................... 198

Nietzsche e a educação .......................................................................................... 199

Nietzsche está vivo ................................................................................................. 201

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A Escola de Frankfurt ........................................................... 209 A herdeira do facho ................................................................................................ 209

Uma escola crítica ................................................................................................... 210

Os momentos da teoria crítica ............................................................................... 212

Teoria crítica versus teoria tradicional ................................................................... 213

Razão instrumental e indústria cultural ................................................................. 214

Principais expoentes ............................................................................................... 216

Luzes, razão e educação ........................................................................................ 222

Pragmatismo e existencialismo .......................................... 231 Era dos extremos: as duas faces da moeda .......................................................... 231

Pragmatismo: origens e paternidade ..................................................................... 232

Existencialismo:"uma mística do inferno" .............................................................. 237

Filosofia e educação ............................................................. 259 Filosofia para quê? .................................................................................................. 259

Crise e filosofia ....................................................................................................... 259

Filosofia e educação: isso dá samba? ..................................................................... 262

Filosofar ou filosofar: eis a questão ....................................................................... 264

Ética e educação ................................................................... 269 A refundação da ética ............................................................................................. 269

Ética e moral ........................................................................................................... 270

A ética através dos tempos .................................................................................... 271

A ética na educação ................................................................................................ 275

Reconstruindo a ética na escola: tarefas ................................................................ 276

Filosofia e formação humana na escola ............................. 283 No princípio ............................................................................................................ 283

A educação como formação ................................................................................... 284

A formação como humanização ............................................................................ 286

A escola como espaço privilegiado da formação .................................................. 288

O processo do filosofar na Educação Infantil ..................... 295 Filosofia para crianças e filosofia com crianças .................................................... 295

Filosofia e autonomia ............................................................................................. 296

Uma sociedade real ................................................................................................ 298

A diferença .............................................................................................................. 300

Gabarito ............................................................ 305 Referências

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............................................................................ 329 Anotações

.............................................................................................. 335

Apresentação ''Tudo o que é sólido se desmancha no ar" escreveu Karl Marx no

Manifesto Comunista, referindo-se à vertiginosa velocidade das mudanças na sociedade de sua época. Hoje, mais de 150 anos depois, podemos afirmar que essa constatação continua mais do que nunca atual. Vivemos, com efeito, sob o impacto de mudanças cada vez mais velozes, em um tempo em que valores e certezas outrora considerados sólidos liquefazem-se antes mesmo que outros lhes tenham substituído.

Nesse sentido, a educação é uma caixa de ressonância dessas vertiginosas transformações. Ao mesmo tempo em que as instituições de ensino são o baluarte de algumas das mais antigas tradições, como a disciplina e a hierarquia, elas não deixam de ser profundamente afetadas pelas alterações do presente mais imediato. As rebeliões juvenis do ano de 1968, por exemplo, tiveram como palco privilegiado as universidades. Daí a importância e a urgência de pensarmos constantemente a educação. E para fazê-lo, nada melhor do que pedirmos auxílio à filosofia. E é o que faremos ao longo deste curso de Tópicos de Filosofia da Educação.

Na aula inicial, intentaremos uma melhor clarificação do conceito de filoso-fia. Em seguida, da aula dois à aula 14, faremos uma viagem pela história da filosofia ocidental, desde os seus antecessores gregos até correntes recentíssimas como o Existencialismo e a Escola de Frankfurt. Assim, nessa viagem lançaremos um olhar especial sobre alguns dos principais pensadores desse longo período, e esse olhar será acompanhado de exercícios de fixação e reflexão. Ademais, cada aula será complementada com um ou mais textos extraídos preferencialmente dos próprios filósofos - isso porque acreditamos que conhecer a história da filosofia é, sobretudo, freqüentar a reflexão dos pensadores que fizeram essa história. Mas, em todo caso, ler textos de filosofia ainda não é produzir filosofia e, por isso, ao fim de cada uma destas aulas, os alunos serão estimulados a ousarem pensar e refletir, à luz tanto dos filósofos estudados quanto de problemas extraídos da contemporaneidade.

As aulas 15 a 18, por seu lado, abordam sob vários aspectos as relações

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entre filosofia e educação. Aqui são atacadas algumas questões candentes dessa problemática. Já que a educação nunca ocorre sem um substrato filosófico, ainda que latente ou oculto, é importante trazer à tona esse diálogo incontornável. É da mútua fecundação entre essas duas disciplinas, muito próximas uma da outra, que poderá surgir uma compreensão e uma prática de ensino e aprendizagem capazes não apenas de interpretar as velozes mudanças de nosso tempo como também de conduzi-las para a construção de uma sociedade mais humana. Aliás, o próprio Marx declarou, na 11 .a tese sobre Feuerbach, que "até agora os filósofos se limitaram a interpretar o mundo. Cabe-lhes agora transformá-lo". Acrescentamos apenas que essa missão é também - e sobretudo - dos educadores.

Dessa maneira, ao fim desta apresentação, que não pretendemos longa, só nos resta desejar bons estudos e que essa viagem pelos horizontes imbricados da filosofia e da educação possa produzir muitos frutos tanto na teoria quanto na prática de nossa ação pedagógica. Otto Leopoldo Winck

Convite à filosofia A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo. Maurice Merleau-Ponty

Não se pode aprender a filosofia; somente se pode aprender a filosofar. Immanuel Kant

Por que filosofia? Entre as matérias escolares, a filosofia é vista não raro como a mais abs-

trata e a mais distante dos interesses humanos mais imediatos. Depois do

declínio da teologia, na Idade Moderna, coube à filosofia, a antiga serva da

teologia (conforme a máxima dos teólogos medievais), o lugar de rainha. No

entanto, ela seria também destronada com o advento das ciências positivas -

aquelas que exigem o recurso da experimentação -, de modo que hoje é

comum se perguntar o porquê da filosofia, pergunta que não é feita quando o

assunto é Matemática, Física ou Biologia. Mesmo disciplinas pertencentes ao

arco das ciências humanas - como Pedagogia, Psicologia e Sociologia -

encontram justificativas mais facilmente que a Filosofia. Ora, estuda-se

Pedagogia para se aprimorar o processo de ensino e aprendizagem, e a

Psicologia e a Sociologia são necessárias para melhor se compreender o

funcionamento da mente humana e da sociedade. Mas, e a filosofia, serve

para quê? Em uma cultura em que se valoriza sobremaneira o que tem

finalidade prática e utilidade imediata, o conhecimento filosófico parece fora

de lugar, supérfluo e desnecessário.

Todavia, é justamente aí que se revela a sua imprescindibilidade. Em uma

época e uma sociedade dominadas pela técnica, com os saberes (entre outros

fatores, por causa do enorme cabedal de conhecimento e experiência

acumulados) sendo extremamente especializados e portanto fragmentados, é

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indispensável um olhar que ofereça uma crítica e rigorosa

visão de conjunto de todo esse horizonte. É imperioso - sob o risco de não saber-

mos nos localizar e portanto ficarmos privados de ação - um saber sobre esses

saberes, um olhar sobre esses olhares, uma indagação sobre essas indagações,

uma pergunta que nasce antes e não termina depois. Por que pensamos o que

pensamos? Por que dizemos o que dizemos? Por que fazemos o que fazemos?

Nossa reflexão tem por meta a educação e, portanto, vamos direcionar para ela

nossos questionamentos. Por que tenho essas ideias acerca do processo edu-

cacional? Será que não há outra maneira de se compreender esse processo? Por que

falo dessa maneira sobre ou com nossos educandos? Por que me comporto dessa

maneira em relação a eles? A quem interessa esse método educacional? De que

ponto de vista e de que lugar social ele foi produzido? Isso é filosofia. E, aplicando-

a ao processo do aprendizado, é filosofia da educação.

Definições Mas, afinal, o que é filosofia? Como podemos defini-la? Existem provavelmente

tantas definições quantas são as escolas ou correntes da filosofia. O significado

etimológico do termo é "amor à sabedoria":

phylos = "amigo", "amor" sophya = "sabedoria"

Porém, antes do substantivo filosofia já era usado o verbo filosofar e o nome

filósofo. Provavelmente Pitágoras (580-500 a.C.) foi o primeiro a autodenominar- -

se filósofo, embora se discuta se o título possuía então o mesmo sentido que

ganharia depois, com Platão (426-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.). Para esses

dois nomes paradigmáticos do pensamento ocidental, a filosofia é resultante da

admiração e do estranhamento diante do espetáculo do mundo. Enquanto para

Platão a filosofia é o saber que, em face das contradições da realidade, atinge a

visão do verdadeiro - isto é, das ideias -, para Aristóteles a sua função é a in-

vestigação das causas e princípios das coisas. Para ele, na medida do possível, o

filósofo possui, para além da particularidade de cada objeto, a totalidade do saber.

Por isso, a filosofia é a ciência do ser enquanto ser e, em última instância, a ciência

do princípio dos princípios, da causa última.

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Convite à filosofia

8 I

Na Idade Média, a filosofia era uma aspiração à compreensão racional dos

dados da fé. Na modernidade, ela foi ganhando cada vez mais autonomia. Para

Francis Bacon (1561-1626), a filosofia é o conhecimento das coisas não pelos seus

fenômenos transitórios, mas pelos seus princípios imutáveis. Para René Descartes

(1596-1650), ela é o saber que averígua os princípios de todas as ciências e,

enquanto filosofia primeira (a metafísica), ocupa-se da elucidação das verdades

últimas. John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-1753) e David Hume

(1711 -1776), cada um por sua vez, consideram-na, em geral, como crítica das

ideias abstratas e reflexão sobre a experiência. Por outro lado, Immanuel Kant

(1724-1804), depois de traçar os limites da razão, concebe a filosofia como um

conhecimento racional por princípios.

Na corrente conhecida como idealismo alemão, a filosofia é entendida ora como

o sistema do saber absoluto, dedução do mundo a partir do eu, como em Fichte

(1762-1814), ora, como em Hegel (1770-1831), como a consideração pensante

das coisas, identificando-se assim com o espírito absoluto, isto é, o espírito

plenamente consciente e conhecedor de si. Para Schopenhauer (1788-1860), ela é

a ciência do princípio de razão como fundamento de todos os outros saberes e

como autorreflexão da vontade. No positivismo, a filosofia torna-se um compêndio

geral dos resultados das ciências. Já para Edmund Husserl (1859-1938), ela é uma

ciência rigorosa que conduz à fenomenologia1 como disciplina filosófica

fundamental. Por outro lado, para Wittgenstein (1859-1938) e os positivistas

lógicos, ela não é um saber com um conteúdo específico, mas um conjunto de atos;

não um conhecimento e sim uma atividade. Em contrapartida, para Henri Bergson

(1859-1941), a filosofia tem por objeto a substância da intuição, e ainda que se

utilize da ciência como instrumento, aproxima-se mais da arte.

Como se vê, as definições e compreensões do que seja filosofia têm sido tão

elásticas quanto contraditórias. Eis a seguir uma tentativa contemporânea de

definição da filosofia: A filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos científicos. Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas. Não é arte: é uma interpretação crítica dos conteúdos, das formas, das significações das obras de arte e do trabalho artístico. Não é Sociologia nem Psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da Sociologia e da Psicologia. Não é política, mas a interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as formas do poder. Não é História, mas interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e na compreensão do que seja o próprio tempo. Conhecimento do conhecimento e da ação humana, conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir, conhecimento das mudanças das formas do real ou dos seres; a filosofia sabe que está na História e que tem uma história. (CHAUÍ, 1994, p. 17)

Todavia, o importante em todas essas discussões é que, à medida que crescia a

consciência do problema, erigia-se pouco a pouco uma verdadeira "filosofia da

filosofia", que tem a sua justificação no fato de a filosofia não ser nunca, por

** Fenomenologia é o estudo dos fenômenos, ou melhor, o estudo de como o indivíduo percebe os fenômenos, isto é, tudo aquilo que é

apreendido pelos sentidos ou pela consciência.

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Convite à filosofia

princípio, uma totalidade acabada, mas sempre uma totalidade possível.

Divisão de tarefas No entanto, desde cedo essa totalidade precisou de uma repartição de tarefas

para poder abarcar os mais variados ângulos de seu múltiplo objeto. Ainda que a

divisão da filosofia em diferentes disciplinas não seja comum a todos os sistemas,

como ocorre em Platão ou Santo Agostinho, ela é visível em muitos outros sistemas

filosóficos. Foi em Aristóteles que apareceram pela primeira vez as divisões que

seriam tão influentes no curso da filosofia ocidental. É a partir de seu sistema

filosófico - espécie de enciclopédia do saber de seu tempo - que se constituíram

como disciplinas a lógica, a ética, a estética (poética), a Psicologia (doutrina da

alma), a filosofia política e a filosofia da natureza, todas elas dominadas pela

filosofia primeira (metafísica). Ao longo do tempo, a elas viriam se acrescentar,

dominando sobretudo o ensino da filosofia até o século XIX, a gnoseologia, a

epistemologia, a ontologia, a sociologia, além de um conjunto de matérias como

filosofia da religião, filosofia do Estado, filosofia do Direito, filosofia da história,

filosofia da linguagem etc., bem como a história da filosofia. Algumas delas se

tornariam autônomas, como a Psicologia e a Sociologia. Por outro lado, há aqueles

que julgam, por diversos motivos, que se deve excluir do corpus filosófico

disciplinas como a lógica e a metafísica.

É possível estudar a filosofia de uma maneira sincrônica, isto é, abordando-a

por meio de todas essas disciplinas, sem uma preocupação específica com suas

evoluções temporais e os problemas decorrentes de influências, filiações, rami-

ficações e desdobramentos.

Também é possível estudá-la de um ponto de vista diacrônico, a partir de uma

visada histórica, verificando no tempo o surgimento de suas principais correntes e

o desenvolvimento de suas disciplinas. Pode-se também usar uma abordagem que

se sirva de ambas as possibilidades. Por exemplo, pode-se ao mesmo tempo

estudar tanto a ética e suas exigências atuais (abordagem sincrônica) quanto a sua

evolução na história (abordagem diacrônica). Em nosso trabalho, privilegiaremos

um enfoque diacrônico, lançando um olhar sobre alguns dos principais filósofos e

escolas filosóficas da história, mas sem desprezar, em alguns momentos, uma

óptica sincrônica.

A atitude filosófica e o senso comum Em que consiste uma atitude filosófica? Quando, de fato, estamos envolvidos no

processo filosófico? O que há de fundamental na atitude filosófica é a sua

capacidade de indagar. Perguntar:

■ O que a coisa é?

■ Como a coisa é?

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 10

■ Porque a coisa é assim?

Essas questões fazem parte da atitude de alguém que se coloca em uma pos-

tura filosófica frente ao mundo. O filósofo é aquele que não aceita como dadas as

respostas às questões com que ele se depara no mundo.

De fato, a filosofia é um conhecimento instituinte na medida em que questiona

o saber instituído, que é o saber já posto, já estabelecido, que goza de um certo

consenso. De certa forma, é tudo aquilo que se tem por verdadeiro, por natural -

em um determinado momento, em uma determinada sociedade. Resumindo, saber

instituído é o senso comum. E, nesse processo de indagação acerca desse saber

institucionalizado, o ser humano vai dando novos significados ao mundo e à sua

própria existência.

Quando nos referimos ao conceito de senso comum, nós o relacionamos ao

conhecimento fragmentado da realidade. Platão definia esse tipo de conhecimento

como doxa ("opinião"). Em outras palavras, emitimos parecer sobre tudo o que nos

cerca e, no entanto, nessas opiniões nos falta uma visão da totalidade. Não

conseguimos perceber que tudo se encontra inter-relacionado. Ou seja, para que

possamos ter uma visão da totalidade de um fenômeno, torna-se necessário

apreendê-lo na sua relação com os demais fenômenos.

Embora Platão tenha estabelecido vários níveis de compreensão da realidade, os

dois principais são a doxa e a episteme. Um indivíduo que vive no âmbito da doxa é

alguém que localiza sua existência apenas no senso comum.

Por outro lado, pensar os problemas a partir da episteme ("ciência") é pensámos

à luz da filosofia. Essa expressão designa a capacidade de olharmos para os

fenômenos de maneira sistematizada. Uma reflexão somente é sistemática se for

rigorosa, radical e de conjunto. Para explicitar a importância desses conceitos

dentro do processo do filosofar, valemo-nos de um comentário de Maria Lúcia de

Arruda Aranha. Nesse trecho, a filosofia da vida pode ser tomada como sinônimo

de doxa, opinião, senso comum: A filosofia é radical porque vai até as raízes da questão. A palavra latina radix, radieis significa literalmente "raiz" e, no sentido derivado, "fundamento" "base". Portanto, a filosofia é radical enquanto explica os fundamentos do pensar e do agir. A filosofia é rigorosa porque, enquanto a filosofia de vida não leva suas conclusões até as últimas conseqüências, o filósofo especialista dispõe de um método claramente explicitado que permite proceder com rigor, garantindo a coerência e o exercício da crítica. Para justificar suas afirmações com argumentos, faz uso de uma linguagem rigorosa, que permite definir claramente os conceitos, evitando a ambigüidade típica das expressões cotidianas. Para conseguir essa linguagem, o filósofo inventa conceitos, cria expressões novas ou altera e especifica o sentido de palavras usuais. A filosofia desenvolve uma reflexão de conjunto porque é globalizante, examina os problemas sob a perspectiva do todo, relacionando os diversos aspectos. Enquanto as ciências examinam "recortes" da realidade, a filosofia, além de poder examinar tudo (porque nada escapa ao seu interesse), também visa o todo, a totalidade. (ARANHA, 2002, p. 107)

Outro aspecto a se salientar é que o conteúdo da reflexão filosófica, o tecido do

seu pensar, é a trama dos acontecimentos do cotidiano. É por isso que nesse

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Convite à filosofia

processo de indagação estão presentes tanto os temas aparentemente mais dis-

tantes de nossa experiência imediata quanto os problemas com que nos depa-

ramos todos os dias em nossa vida.

Em suma, na atitude filosófica está compreendido o pressuposto de que não

podemos aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as

situações, os valores em geral, os comportamentos de nossa existência cotidiana;

jamais devemos aceitá-los sem antes havê-los submetido a uma crítica radical. É

por essa razão que se justifica mais uma vez a importância da filosofia em nosso

trabalho como educadores: ela impede a estagnação e ressignifica a experiência. Se

educar não se reduz apenas à transmissão de conhecimentos, mas é também uma

reflexão crítica sobre o que é conhecimento e sobre o que é educação, a filosofia

não será apenas mais um conteúdo do processo educacional, mas o seu próprio

alvo.

Nem dogmatismo nem ceticismo Novamente torna-se relevante um olhar sobre a etimologia das palavras.

Skeptikós significa "aquele que observa", "que considera". Desse modo, cético é

aquele que observa e considera, tanto que conclui pela impossibilidade mesma do

conhecimento.

Por outro lado, dogmatikós denota "aquele que se funda em princípios". Assim,

dogmático é todo aquele que se apega aprioristicamente aos princípios de uma

doutrina.

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Convite à filosofia

12 I

Dogma, por sua vez, pode ser compreendido como um princípio fundamental e

indiscutível de uma determinada doutrina ou teoria, não necessariamente religiosa.

Toda vez que verdades irrefutáveis são aventadas, sem que elas possam ser

demonstradas racionalmente, na verdade são dogmas que estão sendo aludidos.

As tradições religiosas não têm necessariamente problemas com dogmas, pois

toda fé está fundada, em última instância, em uma origem suprarracional. Todavia,

sempre que na ciência se acena para verdades indemonstráveis, muitas vezes

tomadas de empréstimo do senso comum ou da religião, se está resvalando da

episteme para a doxa.

No fim das contas, tanto o cético quanto o dogmático acabam produzindo uma

visão imobilista do mundo. O primeiro porque acha impossível chegar-se a algum

conhecimento real das coisas. O segundo, porque antes de se debruçar sobre a

realidade, já traz, de antemão, as suas "verdades".

A filosofia, ao contrário, move-se entre o ceticismo e o dogmatismo - na verda-

de, mais próxima do primeiro. Enquanto o cético declara que é impossível saber, o

dogmático diz que tem certeza que sabe. O filósofo, por seu turno, afirma que não

sabe, mas quer saber - tendo consciência, entretanto, que todo saber é parcial e

provisório. Com efeito, "a filosofia é a procura da verdade, não a sua posse"

(ARANHA,1988, p. 51).

Texto complementar Ciência e filosofia (DURANT, 2000, p. 26-27)

Ciência é descrição analítica; filosofia é interpretação sintética. A ciência quer

decompor o todo em partes, o organismo em órgãos, o obscuro em conhecido. Ela

não procura conhecer os valores e as possibilidades ideais das coisas, nem o seu

significado total e final; contenta-se em mostrar a sua realidade e sua operação

atuais, reduz resolutamente o seu foco, concen- trando-o na natureza e no

processo das coisas como são. O cientista é tão

imparcial quanto a natureza no poema deTurguêniev: está tão interessado na perna

de uma pulga quanto nos paroxismos criativos de um gênio. Mas o filósofo não se

contenta em descrever o fato; quer averiguar a relação do fato com a experiência

em geral e, com isso, chegar ao seu significado e ao seu valor; ele combina coisas

numa síntese interpretativa; tenta montar, de maneira melhor do que antes, esse

grande relógio que é o universo e que o cientista perquiridor desmontou

analiticamente. A ciência nos ensina a curar e a matar; reduz a taxa de mortalidade

no varejo e depois nos mata por atacado na guerra; mas só a sabedoria - o desejo

coordenado à luz de toda experiência - pode nos dizer quando curar e quando

matar. Observar processos e construir meios é a ciência; criticar e coordenar fins é

filosofia; e porque hoje os nossos meios e instrumentos se multiplicaram além de

nossa interpretação e da nossa síntese de ideais e fins, nossa vida está cheia de

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Convite à filosofia

som e fúria, não significando coisa alguma. Porque um fato nada é, exceto em

relação ao desejo; não é completo, exceto em relação a um propósito e a um todo.

Ciência sem filosofia, fatos sem perspectiva e avaliação não podem nos salvar da

devastação e do desespero. A ciência nos dá o conhecimento, mas só a filosofia nos

dá a sabedoria.

Atividades 1. Com base nos trechos de Marilena Chauíe Will Durant que constam da aula,

estabeleça os pontos de convergência e divergência entre a ciência e a filosofia.

Segundo as definições de filosofia que os filósofos foram estabelecendo ao longo

dos tempos, relacione a coluna da esquerda com a da direita.

1. Bergson

2. Locke, Berkeley e Hume

3. Fichte

4. Wittgenstein

5. Kant

6. Husserl

7. Schopenhauer

Ciência rigorosa que conduz à fenomenologia.

Tem por objeto a substância da intuição.

É um conjunto de atos desprovido de conteúdo específico.

Crítica das ideias abstratas e reflexão da experiência.

Ciência do princípio da razão como fundamento dos saberes. Sistema do saber absoluto. Conhecimento racional por princípios.

3. A respeito das proposições de Platão sobre a doxa ("opinião","senso comum")

e episteme ("ciência"), assinale, quanto aos enunciados seguintes, F (falso) ou

V (verdadeiro). ( ) Pensar os problemas a partir da doxa é pensá-los à luz da filosofia.

( ) O senso comum relaciona-se ao conhecimento fragmentado da realidade. ( ) Ao saber instituído (episteme) contrapõe-se o saber instituinte (doxa). ( ) Doxa é uma reflexão rigorosa, radical e de conjunto.

( ) Episteme diz respeito à capacidade de contemplarmos os fenômenos de

maneira sistematizada.

Para produzir filosofia Diante do aumento dos índices de violência em nosso país, não poucos têm

defendido o incremento de medidas coercitivas como ampliação das penas, di-

minuição da maioridade penal e sobretudo recrudescimento da repressão do

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 14

Estado. Há ainda quem, em conversas privadas, defenda o uso da tortura na in-

vestigação e a eliminação física dos criminosos. Dizem que "direitos humanos

são para humanos direitos". Segundo o que foi explanado na aula, essa linha de

pensamento relaciona-se com a doxa ou a episteme? O que seria uma reflexão

filosófica - rigorosa, radical e de conjunto - a respeito da violência social em

nosso país?

Sócrates e a filosofia moral ocidental O mito é o nada que é tudo. Fernando Pessoa Diferentemente dos sofistas, Sócrates não se apresenta como professor. Pergunta, não responde. Indaga, não ensina. Marilena Chauí

0 gênio grego, o mito e as origens da filosofia Tanto o termo quanto o conceito de filosofia tem a sua origem na Grécia

antiga, mas isso não significa que outros povos não tenham desenvolvido

formas particulares de pensamento crítico. De maneira especial, encontramos

algumas dessas formas na índia, na China e na Pérsia. Além disso, os gregos

usufruíram conhecimentos conquistados por povos mais antigos, como a

astronomia dos caldeus e dos babilônicos e a agrimensura dos egípcios. No

entanto, a forma de pensamento sistemático, racional e desvinculado da

religião que ficou conhecida como filosofia nós devemos às peculiaridades do

gênio grego.

Como era esse gênio? Podemos resumir as suas características em alguns

traços básicos.

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■ Em primeiro lugar, o racionalismo, isto é, a consciência do valor máximo

do conhecimento.

■ Mas esse conhecimento não é abstrato e sim proveniente da experiência: é

um conhecimento sensível.

■ Todavia, esse conhecimento sensível não se fecha sobre si mesmo, mas

transcende o real em direção ao absoluto.

■ Sendo otimista, como conseqüência de seu racionalismo, o grego tenderá

também ao pessimismo quando pressentir toda a irracionalidade do real.

Contudo, todos esses traços se coadunam em um equilíbrio harmônico, como

aprazia grandemente ao senso de proporções do espírito helênico2.

E também outras causas colaboraram para o surgimento do pensamento

filosófico: Nos séculos VII e VI a.C., a Grécia sofreu uma transformação socioeconômica considerável. De país predominantemente agrícola que era, passou a desenvolver de forma sempre crescente a indústria artesanal e o comércio. Assim, tornou-se necessário fundar centros de distribuição comercial, que surgiram inicialmente nas colônias jônicas, particularmente em Mileto, e depois também em outros lugares. As cidades tornaram-se florescentes centros comerciais, acarretando um forte crescimento demográfico. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 20)

Foi nas cidades ou pólis - que na Grécia eram sobretudo cidades-Estado - que

se desenvolveu outra importante criação grega: a política. O desenvolvimento

urbano com as suas instituições, e o lugar privilegiado da península grega -

entreposto estratégico entre Ocidente e Oriente, arena de encontro de muitas etnias

e de diversas culturas, cujo contato e rivalidade ensejaram comparações, análises e

reflexões - resultaram em um ambiente propício para o surgimento da filosofia.

Entre os gregos, a arte e a filosofia são devidas sobretudo aos jônios3, que

souberam exprimir em alto grau o gênio helênico.

Mas como se deu, a partir desse gênio, e de maneira especial entre os jônios, a

gênese da filosofia grega, matriz de todo o pensamento ocidental? Primeiramente,

os gregos, como todos os povos, explicavam os fenômenos do universo e as suas

origens por meio do mito. A palavra mito vem do grego mythós e deriva de dois

verbos, tendo os sentidos de "contar, narrar, falar alguma coisa a alguém"

e"anunciar, nomear, designar". Para os gregos, o mito era um discurso proferido

para ouvintes que recebiam o relato como verdadeiro porque este está fundado na

autoridade daquele que narra. Refere-se quase sempre a algo fabuloso que se

supõe acontecido em um passado remoto, imemorial, impreciso. Os mitos podem

reportar-se a grandes feitos heroicos, considerados frequentemente como o

fundamento e o início de uma determinada comunidade ou do gênero humano

** Helênico: que se refere à Grécia antiga, chamada Hélade, ou aos gregos antigos. 3 Os jônios eram habitantes da Jônia, conjunto de colônias da Grécia antiga nas ilhas e no litoral asiático do Mar Egeu.

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Sócrates e a filosofia moral ocidental

27 ■

como um todo. Podem também ter como objeto fenômenos naturais e, nesse caso,

costumam ser apresentados alegoricamente. Além disso, muitas vezes os mitos

contêm a personificação de coisas ou de acontecimentos.

Para os filósofos da Antiguidade, nem sempre o mito foi entendido como

oposto à razão: alguns o admitiam como invólucro da verdade. Essa concepção foi

adotada, por exemplo, por Platão, que considerava as narrações mitológicas como

um modo de expressão de verdades que escapam ao raciocínio. Em todo caso, a

explicação racional, objeto da filosofia, tem a sua origem a partir do mito,

desenvolvendo-se a partir dele, até sua plena autonomia. Se a explicação mítica

dos fenômenos do universo é encontrada em todos os povos e em todas as épocas,

devemos aos gregos os primeiros e decisivos passos da explicação racional do

mundo.

São muitas as maneiras que os historiadores subdividiram a história da filosofia

clássica, que compreende um período de mais de um milênio. De um modo geral,

podemos sintetizar essa época em quatro períodos:

■ Período naturalista - também chamado cosmológico4 ou pré-socrático do

final do século VII ao final do século V a.C., quando a filosofia ocupa-se

fundamentalmente com a origem do mundo e as causas das transformações na

natureza.

■ Período humanista - também denominado antropológico5 ou socrático, do

final do século V e todo o século IV a.C., quando o objeto principal da filosofia

torna-se as questões humanas, como a ética e a política.

■ Período sistemático - do final do século IV ao final do século III a.C., quando a

filosofia tem por tarefa reunir e sistematizar todo o conhecimento anterior sobre

o mundo e o ser humano.

■ Período helenístico - também conhecido como greco-romano ou religioso, do

final do século III a.C. até o século VI d.C. Nesse longo período, que já alcança

Roma e o pensamento cristão, a filosofia interessa-se principalmente pelas

questões da ética, do conhecimento humano e das relações entre a humanidade

e Deus.

Os filósofos naturalistas e os sofistas O primeiro período da filosofia grega toma o nome de naturalista ou cosmo-

lógico porque a especulação dos filósofos voltou-se para a natureza, o mundo

exterior. Esse período surgiu e se desenvolveu fora da Grécia propriamente dita,

nas florescentes colônias da Ásia Menor6 e do sul da Itália, tendo o seu início nos

fins do século VII e o seu término dois séculos depois.

^ Em grego, cosmos significa "mundo"e por isso esse período recebeu o nome de cosmológico. 5 Em grego, ântropos significa "homem" e por isso esse período recebeu o nome de antropológico. 6 Na Antiguidade, era conhecida como Ásia Menor a extremidade ocidental da Ásia, em linhas gerais correspondendo ao território do que conhe-

cemos hoje como Turquia.

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 28

A escola jônica A primeira expressão dessa fase, inaugurando por assim dizer o pensamento

ocidental, é a chamada escola jônica, que floresceu em Mileto, na Ásia Menor, ao

longo do século VI. Os jônios procuravam a substância última de todas as coisas

em uma única matéria, animada por uma energia interior (daí hilozoísmo, "matéria

animada" ser o nome dessa doutrina). Seu primeiro representante é Tales de Mileto

(624-546 a.C.), para quem a água era a substância primordial de todas as coisas.

Para Anaximandro (610-547 a.C.), também de Mileto, o elemento primordial seria o

apeiron (o indeterminado, sem fim e em constante movimento). Já para

Anaxímenes (585-528 a.C.), também da mesma cidade, este princípio era o ar.

O expoente mais célebre dessa escola é Heráclito (aproximadamente 540-470

a.C.), de Éfeso, na Jônia. Para ele, o elemento primordial é o movimento, o eterno

vir-a-ser: tudo está sujeito a um fluxo perpétuo, representado pelo fogo. O vir-a- -

ser é luta, conflito de opostos, antítese de vida e morte. Esse movimento só será

reconduzido à estabilidade pela sabedoria universal, que determina o acordo entre

as oposições. Por esse motivo Heráclito é considerado o pai da dialética, a qual

considera que a razão das coisas está na constante luta dos contrários. É de

Heráclito a ideia de que o mesmo homem não se banha duas vezes no mesmo rio,

pois ao tentar um segundo banho, o rio já terá mudado, já será outro por conta do

contínuo fluxo das águas. E como as coisas mudam constantemente, aquele

homem já não será o mesmo homem que da primeira vez.

Pitágoras e a escola itálica Pitágoras (571-497 a.C.), fundador da escola pitagórica ou itálica, nasceu em

Samos, uma ilha do Mar Egeu, mas pontificou nas colônias do sul da Itália. Para ele,

o princípio primordial da realidade é representado pelo número, ou seja, pelas

relações matemáticas. Toda a multiplicidade do mundo e o vir-a-ser é explicado

pelo pitagorismo por meio da luta dos opostos, da qual os números pares e os ím-

pares são paradigmáticos. Esse conflito é reconduzido ao equilíbrio pela harmonia

matemática que rege o universo todo, tanto material quanto moral. Outros repre-

sentantes dessa escola são Filolau de Crótona e Árquitas deTarento.

Xenófanes e a escola eleata Essa escola empresta o seu nome da cidade de Eleia, no sul da Itália, e seu

fundador é Xenófanes (cerca de 570-460 a.C.), nascido em Cólofon, na Ásia Menor.

Mas o seu maior representante é Parmênides de Eleia (cerca de 530-460 a.C.), para

quem o elemento original das coisas é o ser, uno, idêntico, imutável e eterno,

representado como um esfera suspensa no vácuo, sendo que o mundo sensível não

passa de ilusão.

Zenão (cerca de 495-430 a.C.), também de Eleia, discípulo de Parmênides, é

famoso pelas controvérsias nas quais tentava demonstrar a inexistência do

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Sócrates e a filosofia moral ocidental

29 ■

movimento.

A escola pluralista Empédocles (cerca de 492-493 a.C.), de Agrigento, Sicília, toma dos eleatas a

doutrina da eternidade e da imutabilidade do ser, mas o divide em quatro ele-

mentos fundamentais - a terra, a água, o ar e o fogo -, explicando a multiplicidade

e a mudança dos fenômenos mediante as várias recombinações desses elementos.

Como Heráclito, acreditava na realidade do movimento. Pensava, entretanto, que o

amor e o ódio são as duas forças primordiais que presidem a combinação dos

quatros elementos.

Já para Anaxágoras (cerca de 500-428 a.C.), a realidade é constituída de uma

infinidade de minúsculas partículas, eternas e imutáveis, de natureza diversa, para

explicar a variedade das coisas. O nous é a inteligência imanente que controla e

seleciona essas partículas, tirando-as do caos e ordenando-as conforme sua

similaridade.

Todavia, Demócrito (460-370 a.C.), natural de Abdera, naTrácia7, é o maior re-

presentante dessa corrente, também chamada atomística. Para ele, o ser de Par-

mênides é dividido em uma infinidade de corpúsculos simples e homogêneos,

denominados átomos, os quais, suspensos no vazio, movem-se devido à diversi-

dade de tamanho e à conseqüente diversidade de gravidade de cada uma dessas

partículas. Os átomos, o vazio e o movimento constituiriam a razão de tudo.

Os sofistas e a arte da persuasão De 500 a 448 a.C., houve as chamadas Guerras Médicas, relatadas em Histórias,

de Heródoto. As cidades jônicas, pertencentes à Grécia e situadas na Ásia Menor,

revoltaram-se contra o Império Persa e foram apoiadas por algumas cidades do

continente, por fim sendo lideradas por Atenas. Depois das vitórias dos gregos

sobre os persas, assistimos ao triunfo de Atenas, que torna-se o eixo social,

político e cultural do universo grego. É o chamado século de Péricles8, quando a

democracia encontra-se em seu auge. A democracia ateniense, que se tornaria

fundamental para o desenvolvimento da filosofia, tem uma característica essencial

que a distingue da democracia moderna: é uma democracia direta, sem a mediação

de representantes eleitos. Ora, para lograr que a sua opinião fosse acatada nas

assembleias, o cidadão precisava ser dotado de talentos oratórios. Aqui entram os

sofistas, mestres da eloqüência, encarregados de ensinar aos jovens das famílias

das classes mais abastadas a arte da persuasão.

Professores encarregados de transmitir os princípios da retórica e da oratória,

os sofistas alegavam que os ensinamentos dos filósofos cosmologistas estavam

eivados de erros, além de não terem nenhuma utilidade para a vida da pólis.

7 ATrácia é uma região do sudeste da Europa, englobando o que hoje é o nordeste da Grécia, o sul da Bulgária e a parte europeia da Turquia. 8 Péricles foi uma das principais lideranças políticas de Atenas. Sua época, o século V a.C., foi um período de esplendor para Atenas, no qual

conviveram grandes nomes como Fídias, Sófocles, Policleto, Calícrates e Sócrates.

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 30

Portanto, com os sofistas há uma mudança de foco na pesquisa filosófica: a preo-

cupação com a natureza, que esteve no centro das atenções dos pensadores an-

teriores, começa a refluir, dando lugar ao interesse pelo humano - daí também o

nome de antropológica ou humanista dado a essa fase. "Com efeito, os sofistas

operaram uma verdadeira revolução espiritual, deslocando o eixo da reflexão da

physis e do cosmos para o homem e aquilo que concerne à vida do homem como

membro de uma sociedade" (REALE; ANTISERI, 1990, p. 73).

Protágoras (cerca de 480-410 a.C.), um dos maiores nomes da sofistica - junto

com Górgias (484-375 a.C.) e Hípias (cerca de 435-343 a.C.) -, dizia que o homem

é a medida de todas as coisas. Em relação ao período anterior, isso significava uma

abertura para o subjetivismo: dizer que o homem é a medida de todas as coisas

significa dizer "que as coisas são como lhe parecem; não, porém, como aparecem

ao homem em geral, mas como aparecem ao homem hic et nunc ["aqui e agora"]: é

verdadeiro - e é bem - o que aparece como tal a cada qual e a cada momento"

(PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 109). Daí porque não é raro os sofistas serem

acusados de relativistas e céticos - para os relativistas, tudo pode ser verdade,

enquanto para os céticos não é possível alcançar a verdade.

É nesse contexto que aparece Sócrates, como um meteoro, dividindo a filosofia

grega em antes e depois dele.

0 filho da parteira Nascido em Atenas (470 ou 469 a.C.), filho de um escultor e de uma parteira,

desde cedo Sócrates se entregou à reflexão e ao ensino filosófico, não se deixando

levar pelos cuidados da vida doméstica e da política. No entanto, ao contrário dos

outros filósofos, não fundou uma escola, preferindo ensinar em lugares públicos,

como nos ginásios, nas praças e nos mercados. Exerceu um enorme fascínio sobre

os atenienses, especialmente os mais jovens, mas a sua ironia e a sua atitude crítica

foram-lhe aos poucos granjeando inimizades entre as parcelas influentes da

sociedade. Por fim, foi acusado de corromper a juventude e demonstrar impiedade

diante dos deuses da cidade.

Todavia, Sócrates não quis se defender. Condenado à pena capital, morreu aos

71 anos, em 399 a.C., ingerindo cicuta - um veneno extremamente letal, extraído

da planta de mesmo nome -, depois de ter recusado os projetos de fuga propostos

por alguns de seus discípulos. Sua morte foi o coroamento de uma vida dedicada

ao conhecimento e à virtude, já que ele se transformou no marco de alguém que

preferiu morrer em vez de negar suas convicções.

Sócrates não escreveu nada: tudo que sabemos de sua pessoa nos chegou por

meio de seus discípulos, como Xenofonte e Platão - e não são poucos os debates

da crítica para estabelecer o que é confiável nessas fontes. O certo, porém, é que

Sócrates se beneficia da virada antropológica efetuada pelos sofistas. Contudo, ao

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Sócrates e a filosofia moral ocidental

31 ■

contrário destes, ele não se interessa pelo ser humano empírico (o ser humano

individual, como é visto e apreendido pelos sentidos), mas pelo humano em geral,

com propósitos morais.

Como os sofistas, ele começa por criticar o senso comum, o saber instituído, a

opinião, a doxa - mas não para aí, o que não seria mais do que um ceticismo: ele

transcende o saber imediato em busca do saber autêntico, que seria racional e

perene. Esse conhecimento estaria dentro de cada um. Para encontrá-lo, Sócrates,

um filho de parteira, serve-se de uma técnica por ele chamada de mai- êutica, um

método que consiste em "parir", "dar à luz" ideias complexas a partir de perguntas

simples, articuladas a partir de um determinado assunto. Assim ele explicava o seu

método: A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a diferença de eu não partejar mulheres, porém homens, e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu trabalho de parto. Porém, a grande superioridade de minha arte consiste [...] na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de conceber é alguma quimera ou faculdade ou fruto legítimo e verdadeiro. (apud PENHA, 1994, p. 35)

Daí também a sua máxima: gnothiseauton, "conhece-te a ti mesmo". O aludido preceito socrático pretende mais do que orientar o indivíduo ao simples conhecimento de si próprio. Seu alcance é maior: é um convite [...] ao aprofundamento da condição humana, do qual [...] nos desviamos quando levados pelo conhecimento enciclopédico sobre a natureza das coisas. (PENHA, 1994, p. 33)

Partindo desse pressuposto, Sócrates constrói uma ética racionalista, na qual a

virtude passa a ter um papel fundamental. Mas em que consiste a virtude? Antes de

mais nada, ela se identifica com o conhecimento. Os gregos chama- vam-na areté,

"significando aquilo que torna uma coisa boa e perfeita naquilo que é, ou melhor

ainda, significa aquela atividade ou modo de ser que aperfeiçoa cada coisa,

fazendo-a ser aquilo que deve ser"(REALE; ANTISERI, 1990, p. 88). Desse modo, ele

nos diz que a causa do mal é a ignorância: se conhecêssemos o bem, não

praticaríamos o mal. Por essa razão, o conhecimento de si mesmo é condição

suficiente e necessária para a obtenção da areté. O autodomínio e a liberdade são

as bases para se atingir a virtude. Para ele, o ser humano é o artífice da sua própria

felicidade ou infelicidade.

Mas, afinal, o que é o ser humano para Sócrates? "O homem é sua alma, en-

quanto é perfeitamente a sua alma que o distingue especificamente de qualquer

outra coisa. E, por a/ma, Sócrates entende a nossa razão e a sede de nossa

atividade pensante e eticamente operante" (REALE; ANTISERI, 1990, p. 87). Por isso,

a essência do ser humano - segundo Sócrates - é sua psyché. Nesse sentido, ele é

considerado o fundador da filosofia moral do Ocidente.

Outra ideia relevante no pensamento socrático é a noção de humildade. Sua

máxima "só sei que nada sei"é ilustrativa disso. Quando era elogiado por seus

discípulos, ele fazia tal afirmação. Para demonstrar que esse era um valor incor-

porado em sua prática cotidiana, Sócrates construía suas afirmações a partir da

relação dialógica com seus interlocutores. Além disso, a dialética socrática é per-

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 32

passada pela ironia. Em sua etimologia, o conceito de ironia significa "a arte de

interrogar". Quando Sócrates utilizava tal recurso, tinha por objetivo mostrar que

aquele com quem estava dialogando na verdade estava ignorando o que julgava

conhecer. Por meio desse processo, desejava tornar seu interlocutor cônscio da

própria ignorância para que ele pudesse partir em busca da verdade.

Finalmente, mais que suas palavras, sua postura como filósofo mostrou-nos

que a filosofia não é uma forma de conhecimento hermético, fechado, reservado

somente a uma elite de iniciados: Sócrates interpelava os transeuntes com quem se

deparava e discutia com eles os temas do cotidiano. Refletia, por exemplo, sobre a

liberdade, o amor, a amizade, a verdade - questões que nos tocam a todos. Comentando a morte de Sócrates, Marilena Chauí afiança que

[...] o maior erro dos juizes foi não terem ouvido o mais importante ensinamento de Sócrates, isto é, que todos os homens são iguais porque todos são capazes de ciência, todos são dotados de uma alma racional na qual se encontra a verdade e todos são capazes de virtude. Razão, ciência, verdade e virtude são universais e todos os homens são, por natureza, capazes delas. (CHAUÍ, 2000, p. 155)

Mártir da filosofia e da fidelidade aos seus princípios, Sócrates permanece vivo

até hoje, não só em seu exemplo, mas sobretudo como base da construção do

edifício da moral do Ocidente.

Texto complementar Sócrates e Polo (PLATÃO, 1986, p. 98-102)

SÓCRATES: - [...] Vê, pois, se estás disposto a ceder-me o turno da argumentação,

respondendo às perguntas. Eu creio deveras que nós - eu, tu e toda gente -

julgamos pior cometer a injustiça do que sofrê-la, e pior do que expiá-la não a

expiar.

POLO: - Mas, a meu ver, nem eu, nem ninguém mais, o admitimos. Quem, se não

tu, a cometer uma injustiça, preferiria sofrê-la?

SÓCRATES: - Eu? Sim, como tu e toda gente.

POLO: - Ora, ora! Nem eu, nem tu, nem ninguém mais.

SÓCRATES: - Então, não vais responder?

POLO: - Mas como não? Estou até ansioso por saber o que, afinal, vais dizer!

SÓCRATES: - Então, para o saberes, faze de conta que estou principiando a inter-

rogar-te e dize-me, Polo, o que achas pior: praticar uma injustiça, ou sofrê-la? POLO: - Sofrê-la, ora!

SÓCRATES: - E o que é mais feio? Ser autor ou ser vítima duma injustiça? Responde.

POLO: - Ser autor.

SÓCRATES: - Sendo mais feio, não é, então, pior?

POLO: - Absolutamente não.

SÓCRATES: - Compreendo. Não consideras a mesma coisa, parece, o belo e o bom,

o mau e o feio.

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Sócrates e a filosofia moral ocidental

33 ■

POLO: - Não, realmente.

SÓCRATES: - Que dizes a isto? Todas as coisas belas, como objetos, cores, formas,

ressonâncias, costumes, é sempre sem relação alguma que lhes atri- buis a beleza?

Por exemplo, comecemos pelos objetos belos; não os chama belos tendo em vista,

em cada caso, os fins a que servem, ou algum prazer, caso se delicie quem os

contempla? Fora desses pontos de vista, podes mencionar alguma outra razão da

beleza dos objetos? POLO: - Não posso.

SÓCRATES: - Não se dá o mesmo com tudo mais? Formas, cores, não as declara

belas em razão de certo prazer ou certa utilidade, ou por ambos os motivos? POLO: - Sim.

SÓCRATES: - Não é assim também quanto às ressonâncias e tudo que concerne à

música? POLO: - Sim.

SÓCRATES: - Outrossim, no tocante às leis e costumes, sem dúvida, os que são

belos não fogem a estas qualificações de úteis, agradáveis, ou ambas as coisas. POLO: - Acho que não. SÓCRATES: - À beleza de instrução sucede o mesmo, não é?

POLO: - Por sem dúvida! Agora, Sócrates, estás acertando, quando defines o belo

pelo prazer e pelo bem.

SÓCRATES: - Portanto o feio será aferido pelos opostos, pela dor e pelo mal. POLO:

- Forçosamente.

SÓCRATES: - Quando, portanto, de duas coisas belas, uma seja mais bela, assim é

porsobrelevar num dos dois predicados referidos, ou em ambos, isto é, ou no

prazer, ou na utilidade, ou nesta e naquele. POLO: - Perfeitamente.

SÓCRATES: - E quando de duas coisas feias uma é mais feia, assim é por so-

brelevar ou na dor, ou no dano. Ou não é forçosamente assim? POLO: - É, sim.

SÓCRATES: - Adiante. Que dizíamos há pouco sobre praticar e sofrer injustiça? Não

dizias que sofrê-la é pior, mas praticá-la é mais feio? POLO: - Dizia.

SÓCRATES: - Então, se praticá-la é mais feio do que sofrê-la, assim é por ser mais

doloroso e sobrelevar em dor, ou dano, ou ambas as coisas. Não é isso também

forçoso? POLO: - Como não?

SÓCRATES: - Ora, examinemos em primeiro lugar se praticar uma injustiça so-

breleva em dor sofrê-la e se padecem mais os autores do que as vítimas.

POLO: - Isso, Sócrates, absolutamente não.

SÓCRATES: - Então, não é em dor que sobrelevas?

POLO: - Não, por certo.

SÓCRATES: - Se na dor, não, não sobrelevaria portanto em ambos os motivos.

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 34

POLO: - Não, é claro.

SÓCRATES: - Resta, pois, a outra razão?

POLO: - Sim.

SÓCRATES: - O dano?

POLO: - Naturalmente.

SÓCRATES: - Ora, se praticar uma injustiça sobreleva em dano, será pior do que

sofrê-la. POLO: - Claro que sim.

SÓCRATES: - É ou não é fato que anteriormente a maioria das pessoas e tu também

concordáveis em que é mais feio ser o autor do que a vítima? POLO: - Sim. SÓCRATES: - E revelou-se agora pior. POLO: - Aparentemente.

SÓCRATES: - Acaso, entre o mais e o menos danoso e feio, preferirias o primeiro?

Não hesites em responder, Polo; não te fará dano algum. Ao contrário, confia-te

bravamente ã razão como a um médico e responde sim ou não à minha pergunta.

POLO: - Bem, Sócrates, eu não preferiria.

SÓCRATES: - Alguém no mundo o faria?

POLO: - Não creio, a pensar assim.

SÓCRATES: - Portanto, eu dizia a verdade: nem eu, nem tu, nem qualquer outra

pessoa preferiríamos cometer injustiça a sofrê-la, por ser mais danoso.

Atividades 1. Segundo o princípio primordial que os filósofos naturalistas ou cosmológi-

cos aventaram para a origem das coisas, relacione a coluna da esquerda com a da

direita.a) Anaximandro de Mileto b) Demócrito c) Pitágoras d) Tales de Mileto e) Empédocles f) Anaxímenes de Mileto g) Heráclito A água.

O apeiron (o indeterminado, sem fim e em terno movimento). O ar. Terra, água, ar e fogo.

O movimento, o vir-a-ser representado pelo fogo. O número. O átomo.

2. Com base no conceito de maiêutica e no exemplo desse conceito apresentado

no texto complementar, vamos fazer um exercício prático.

Para tanto, vamos dividir a turma dois a dois. Em cada dupla, um faz o papel de

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Sócrates e a filosofia moral ocidental

35 ■

Sócrates e o outro o de interlocutor do filósofo. O primeiro, com base no conteúdo

da aula, deve procurar extrair a verdade a partir do método socrático de pergunta e

resposta. O segundo deve se deixar conduzir até que do senso comum se chegue a

ideias mais pertinentes e perspicazes. Depois, os alunos devem registrar os

resultados.

Eis alguns exemplos de temas que podem ser abordados nesses diálogos

socráticos:

■ A educação é o único caminho para o desenvolvimento de um país.

■ A mulher só se realiza plenamente na maternidade.

■ Artistas e cientistas vivem sempre no mundo da lua.

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Tópicos da Filosofia da Educação

36

3. Leia abaixo uma letra do compositor Chico Buarque.

Bom conselho Ouça um bom conselho Que eu lhe dou de graça Inútil dormir que a dor não passa

Espere sentado Ou você se cansa

Está provado, quem espera nunca alcança

Venha, meu amigo

Deixe esse regaço

Brinque com meu fogo

Venha se queimar

Faça como eu faço

Aja duas vezes antes de pensar

Corro atrás do tempo

Vim não sei de onde

Devagar é que não se vai longe

Eu semeio o vento

Na minha cidade

Vou pra rua e bebo a tempestade

Agora responda: quais são os pontos de contato entre essa letra e o método

socrático?

Para produzir filosofia Em um país de alfabetização tardia e com péssimos índices de leitura, somos

levados a acreditar em qualquer opinião apresentada em letra impressa. Mas

nem sempre essas opiniões são o resultado de uma reflexão de índole filosófica,

isto é, que vai até a raiz do problema. Muitas vezes, elas não passam do que

realmente são, isto é, uma opinião. A exemplo de Sócrates, procure desconstruir

o que há de superficial - isto é, atrelado ao senso comum - em algumas das

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Sócrates e a filosofia moral ocidental

37 ■

ideias veiculadas nos jornais da imprensa diária.

Platão e o nascimento da razão ocidental Platão: atleta e poeta

Ao contrário de Sócrates, que era filho de membros das classes populares,

Platão era de ascendência aristocrática. Seu pai orgulhava-se de ter o rei

Codros entre os seus antepassados e sua mãe de ter parentesco com Sólon1.

Nascido em Atenas (428 ou 427 a.C.), seu nome original era Aris- tócles.

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 38

Platão é apelido, derivado, segundo alguns, de seu porte atlético (ombros

largos) ou, segundo outros, da largueza de seu estilo. Com sua origem, era

natural que desde cedo Platão visse na carreira política o seu destino. Aos 20

anos de idade travou contato com Sócrates - 40 anos mais velho - e por oito

anos usufruiu de seus ensinamentos e de sua amizade. A morte trágica do

mestre imprimiu uma marca em todas as fases de seu pensamento. Ele

passou a desprezar a democracia e as massas, ideando um modo de governo

dirigido pelos mais sábios e capazes.

A partir disso, fez várias viagens com o intuito de instruir-se. Conheceu o

Egito, o sul da Itália, (onde estabeleceu relações com os pitagórigos), a Sicília

(onde não teve sucesso no intento de influenciar positivamente o rei, tendo

sido vendido como escravo, sendo resgatado mais tarde).

De volta a Atenas, fundou nos jardins do parque dedicado ao herói

Academos a sua célebre escola, destinada a desenvolver as ideias de Sócrates

e a rebater as dos sofistas. A Academia, como ficou conhecida, adquiriu

grande prestígio, a ela acorrendo homens de todos os cantos e ali sendo

desenvolvidos os ideais de uma educação para a autonomia do indivíduo. O ideal da educação autônoma significa:

Sólon (640-560 a.C.) foi um estadista e poeta ateniense. Autor de um código de leis que introduziu grandes reformas nos primeiros 25

anos do século VI a.C., em Atenas. Essas leis enfraqueceram significativamente o poder da aristocracia, que se baseava nos privilégios de

nascimento. Sólon substituiu as leis draconianas por um estatuto menos severo, que se tornaria a base para as leis clássicas surgidas

posteriormente.

■ em primeiro lugar, ensinar o livre espírito de pesquisa, o compromisso do

pensamento apenas com a verdade; ■ em segundo lugar, estimular a autodeterminação ética e política.

Em vez de transmitir doutrinas, a Academia ensina a pensar ou, como lemos

no Mênon, que é um dos textos de Platão, "o dever de procurar o que não sabe-

mos". Em vez de transmitir valores éticos e políticos, a Academia ensina a criá-

los, isto é, a propô-los a partir da reflexão e da teoria. Ali estudaram, entre

outros, o matemático Eudóxio e o jovem Aristóteles. Nela prevaleceu o espírito

socrático: a discussão oral e o desenvolvimento do vigor intelectual do estudante,

sendo menos importantes as exposições escritas (CHAUÍ, 2000, p. 175).

Finalmente, em 347 a.C., aos 80 anos de idade, reconhecido e admirado,

morre Platão, tendo sido velado por uma verdadeira multidão. De sua grandeza

nos dá testemunho um dos maiores pensadores do século XX:"Poucos filósofos,

se é que algum, alcançaram a sua amplitude e profundidade e nenhum o supe-

rou. Qualquer pessoa que se dedique à investigação filosófica será insensata se

ignorá-lo" (RUSSELL, 2002, p. 107).

Praticamente toda a sua produção chegou até nós, compreendendo 36 diá-

logos, 13 epístolas e uma coleção de definições, esta provavelmente apócrifa -

isto é, pode ser que tais definições sejam erroneamente atribuídas a Platão, não

há certeza se a sua autoria realmente é do mestre. Seu interesse abarca as mais

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Platão e o nascimento da razão ocidental

39 ■

diversas áreas do conhecimento: ciências, matemática, retórica, arte, política etc.

Suas obras mais importantes e conhecidas são: ■ Apologia de Sócrates, em que resgata os pensamentos do mestre; ■ O Banquete, em que versa sobre o amor de uma forma dialética;

■ A República, em que analisa desde a política e a ética até questões metafí-

sicas, como a imortalidade da alma.

No entanto, um problema sobre a real compreensão do pensamento platônico

diz respeito às "doutrinas não escritas". Antigas fontes referem que, na Academia,

Platão ministrou cursos cujo teor ele não quis deixar por escrito. Para ele, "O

conhecimento dessas coisas não é de forma alguma transmissível como os

outros conhecimentos" (REALE; ANTISERI, 1990, p. 20). Para muitos estudiosos,

esse aspecto é decisivo para se ter uma visão de conjunto da filosofia platônica, e

essa tradição oral pode ser de certa forma reconstituída pelos escritos dos

discípulos de Platão. Além disso, é bom ter presente que Platão, a despeito de ter

expulsado de sua república os poetas, é um filósofo de inspiração poética. Por

trás do sábio, é visível, em sua produção, a veia do artista, manifestada no

recurso às metáforas, às fábulas e aos mitos.

No tocante ainda à sua obra, deve-se destacar a influência de Sócrates. É ver-

dade que em seus escritos percebem-se elementos de diversos filósofos pré- -

socráticos, como Parmênides e Heráclito, por exemplo. Contudo, nenhuma

influência foi tão grande e decisiva quanto a de Sócrates, a ponto de em seus

livros, sobretudo nos diálogos socráticos, ser difícil distinguir aquilo que é do

mestre e aquilo que é efetivamente de Platão. Assim, é por meio dos textos de

Platão que conhecemos as ideias de Sócrates, e é por meio de Sócrates, tornado

seu porta-voz, que conhecemos as ideias de seu discípulo mais célebre.

As vigas do pensamento platônico Assim como em Sócrates, para Platão a filosofia tem um objetivo prático,

moral: a incumbência de resolver os grandes problemas da vida. Todavia, ao

contrário de seu mestre, que restringia o âmbito da filosofia ao ser humano,

Platão a estende a toda a realidade. Nas pegadas de Sócrates, Platão também

distingue um conhecimento sensível (a opinião, a doxa) e um conhecimento

intelectual (a ciência, a episteme). Mas enquanto Sócrates fazia derivar o segundo

do primeiro, para Platão o universal e imutável conhecimento intelectual não pode

se originar do conhecimento sensível, particular e mutável. Nas palavras de João

da Penha (1994, p. 36): As ideias estão separadas das coisas, o mundo inteligível está fora e acima do mundo sensível. A multiplicidade e instabilidade das coisas resultam de uma ilusão dos sentidos. A única realidade objetiva, perfeita, são as ideias, não passando aquilo que vemos de pálidas representações daquelas. As coisas são cópias imperfeitas e fugazes de arquétipos de modelos ideais. É no mundo dos inteligíveis, situado na esfera celeste, que habitam as ideias, essência de tudo o que existe e de suas perfeições.

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 40

Jostein Gaarder (1999, p. 100) apresenta um exemplo significativo dessa

teoria de Platão: Por que todos os cavalos são iguais, Sofia? Talvez você ache que eles não são iguais. Mas existe algo que é comum a todos os cavalos; algo que garante que nós jamais teremos problemas para reconhecer um cavalo. Naturalmente, o "exemplar" isolado do cavalo, este sim "flui", "passa". Ele envelhece e fica manco, depois adoece e morre. Mas a verdadeira "forma do cavalo" é eterna e imutável.

Desse modo, os conceitos ou ideias que temos em nossa mente são eternos e

imutáveis, e por isso, necessários9. São os arquétipos, isto é, formas ou modelos

espirituais a partir dos quais todos os fenômenos são formados. A realidade, por

sua vez, é mutável e imperfeita, ou seja, contingente10. O conhecimento por meio

dos sentidos e o conhecimento por meio da razão trazem resultados com-

pletamente diferentes. Os dados dos sentidos apenas nos permitem apreender

simulacros (cópias imperfeitas) das ideias, levando-nos a formular opiniões não

raro contraditórias e superficiais sobre a realidade.

No entanto, a experiência sensível que nos é dada pelos sentidos é funda-

mental para desencadear o processo de conhecimento. O conhecimento ocorre

quando nos recordamos imperfeitamente dos arquétipos que a alma teria con-

templado no mundo das ideias antes do nascimento corporal. A esse processo

dá-se o nome de anamnesis (reminiscência). Trata-se, todavia, do nível mais

baixo do conhecimento.

O mundo das ideias, por sua vez, só pode ser intuído pela razão, o que

implica uma ruptura radical com os dados dos sentidos a que estamos

acostumados. O conhecimento, para Platão, passa ainda por três níveis

fundamentais:

■ o conhecimento sensível, que é efetuado pelos sentidos no mundo dos

fenômenos;

■ o conhecimento discursivo, que implica o conhecimento da matemática, a

única ciência que possui uma natureza não corpórea;

■ o conhecimento intelectivo, ao qual só a filosofia é capaz de levar, por

meio de um corte completo com a experiência sensorial.

Por meio desses três níveis, a mente se eleva do múltiplo e sensível até o uno,

universal e inteligível.

Para Platão, ainda, o divino é representado pelo mundo das ideias, no ápice do

qual se encontra a ideia do bem, seguida de três ideias que a caracterizam:

■ a beleza;

■ a proporção;

9 Necessário, em filosofia, é tudo aquilo que não pode não ser; que não há outra forma de ser. É algo inelutável.

10 Contingente, em filosofia, é o contrário de necessário, ou seja, é aquilo que existe mas poderia não existir.

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Platão e o nascimento da razão ocidental

41 ■

■ a verdade.

Como a multiplicidade dos fenômenos é unificada pelas respectivas ideias,

unas e imutáveis, do mesmo modo a multiplicidade das ideias encontra a sua

unidade na ideia do bem, que é o ser sem o qual não se entende o vir-a-ser. E,

embora ela apresente atributos divinos, a essa realidade suprema falta o poder

criador, ou melhor, ordenador, de que é dotado o demiurgo, o qual, ainda que

superior à matéria, é inferior às ideias, de cujo modelo se serve para ordenar o

mundo, extraindo o cosmos do caos.

Da mesma maneira que o demiurgo, mas subordinado a ele, as almas têm

uma função mediadora entre as ideias e a matéria.

Segundo Platão, existem três tipos de alma:

■ alma concupiscente, própria dos vegetais;

■ alma irascível, própria dos animais;

■ alma racional, exclusiva do ser humano.

Mas no ser humano os três tipos de alma encontram-se reunidos hierarqui-

camente. A alma racional, destinada ao conhecimento das ideias, localiza-se na

cabeça e tem como virtude principal a sabedoria. A alma irascível, associada à

vontade, situa-se no peito e tem por virtude cardeal a força. A alma

concupiscente, por seu turno, tem por sede o ventre e como virtude capital, a

moderação. A alma racional controla as outras duas, e por meio das três virtudes

obtém-se o pleno domínio do corpo e das paixões, alcançando-se assim a justiça

e a felicidade.

Nesse sentido, o corpo seria um obstáculo para a natureza racional do ser

humano. A moral platônica, portanto, ancorada no dualismo corpo-alma, é uma

moral ascética, de renúncia ao mundo. O objetivo da humanidade encontra-se

além deste mundo, na contemplação do mundo das ideias.

Quanto ao destino individual das almas depois da morte, segundo Platão, as

almas dos filósofos e de todos que souberam se desprender do mundo sensível

voltam para o mundo das ideias; as dos seres apegados à matéria vão para um

lugar de danação; enquanto as outras se reencarnam em corpos mais ou menos

nobres segundo o bem ou mal que tiverem praticado.

Aliás, para Platão, cabe também aos filósofos o governo de sua república ideal

e nela haveria basicamente três classes: ■ a dos filósofos, encarregados da direção do estado; ■ a dos guerreiros, responsáveis pela sua defesa;

■ a dos produtores - agricultores e artesãos -, os quais, submetidos aos outros,

seriam os responsáveis pela sua sustentação econômica.

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 42

Compreendendo que os interesses privados, domésticos, não raro entram em

choque com os interesses da coletividade, Platão não hesita em sacrificar os

primeiros em proveito dos últimos.Todavia, se a natureza do Estado é sobretudo

ética, o seu fim principal é pedagógico: antes de mais nada, o Estado deve zelar

pelo bem espiritual dos cidadãos, educando-os na virtude, e somente em um

segundo momento ele deve se ocupar com o bem-estar desses cidadãos.

0 legado de Platão Se Aristóteles, o mais famoso discípulo de Platão, seria o responsável por

grande parte da construção do arcabouço científico do Ocidente, caberia ao

mestre o estabelecimento de sua estrutura espiritual. Opondo o mundo das

ideias ao mundo da matéria, Platão criaria as condições - que seriam reforçadas

mais tarde pelo cristianismo - para que se produzisse durante muitos séculos

uma repulsa profunda por tudo que estivesse relacionado com a ordem material

e sensível, como o corpo e a sexualidade, em proveito do mundo do espírito, da

mente, das ideias. Essa cisão entre corpo e alma, matéria e espírito, que deixaria

suas marcas na identidade ocidental, nós devemos a Platão. Não poucos pensa-

dores, entre os quais Nietzsche, tentariam mais tarde desconstruir essa herança.

Em todo caso, de certa forma Platão foi a pedra fundamental do edifício filosófico

e espiritual do Ocidente. Não é tarefa de pouca monta livrarmo-nos de sua

influência.

Textos complementares Imaginemos uma caverna separada do mundo (CHAUÍ, 2000, p. 195)

Imaginemos uma caverna separada do mundo externo por um alto muro, cuja

entrada permite a passagem da luz exterior. Desde seu nascimento, geração após

geração, seres humanos ali vivem acorrentados, sem poder mover a cabeça para

a entrada nem se locomover, forçados a olharem apenas para a parede do fundo

e sem nunca terem visto o mundo exterior nem a luz do sol. Acima do muro,

uma réstia de luz exterior ilumina o espaço habitado pelos prisioneiros, fazendo

com que as coisas que se passam no mundo exterior

sejam projetadas como sombras nas paredes do fundo da caverna. Por trás do

muro, pessoas passam conversando e carregando nos ombros figuras de

homens, mulheres, animais, cujas sombras são projetadas na parede da caverna.

Os prisioneiros julgam que essas sombras são as próprias coisas externas, e que

os artefatos projetados são seres vivos que se movem e falam. Um dos

prisioneiros, tomado pela curiosidade, decide fugir da caverna. Fabrica um

instrumento com o qual quebra os grilhões e escala o muro. Sai da caverna. No

primeiro instante, fica totalmente cego pela luminosidade do sol, com a qual seus

olhos não estão acostumados; pouco a pouco se habitua à luz e começa a ver o

mundo. Encanta-se, deslumbra-se, tem a felicidade de, finalmente, ver as

próprias coisas, descobrindo que, em sua prisão, vira apenas sombras. Deseja

ficar longe da caverna e somente voltará a ela se for obrigado, para contar o que

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Platão e o nascimento da razão ocidental

43 ■

viu e libertar os demais. Assim como a subida foi penosa, porque o caminho era

íngreme e a luz ofuscante, também o retorno será penoso, pois será preciso

habituar-se novamente às trevas, o que é muito mais difícil do que se habituar à

luz. De volta à caverna, o prisioneiro será desajeitado, não saberá mover-se nem

falar de modo compreensível para os outros, não será acreditado por eles e

correrá o risco de ser morto pelos que jamais abandonaram a caverna.

0 amor platônico (WEISCHEDEL, 2006, p. 47-57)

Comumente entende-se [o amor platônico] por ser aquele amor no qual, em

primeiro plano, não se encontra a cobiça sexual, mas antes, uma atração

espiritual. Mas porque ele levaria o nome de Platão? De fato, folheando a obra de

Platão, em parte alguma se encontram sinais de respeito às mulheres. Pelo

contrário, afirma que são bem menos virtuosas que os homens, superficiais,

pusilâmines, traiçoeiras e supersticiosas. Aqueles homens que tivessem sido

covardes e injustos, após a morte, como punição, renasceriam mulheres. O ca-

samento não passa da tarefa de produzir uma descendência. Assim, Platão não

nos oferece uma imagem romântica do amor entre homem e mulher.

Na Grécia daquela época, mais que entre homem e mulher, havia ainda uma

outra espécie de relação amorosa: a relação de um homem mais velho com um

rapaz. Sócrates, seu mestre, ininterruptamente procura o trato com belos rapa-

zes. Mas o relacionamento de Sócrates com os adolescentes não é da espécie

usual de relação amorosa. Aí podemos ver algo do que significa "o amor platô-

nico". Em O Banquete, isso é expresso no discurso que o jovem Alcebíades pro-

fere para Sócrates. Aquele amor que, com plena intensidade, dirige-se ao outro,

mas que simultaneamente se contém, aquele "amor platônico" portanto, está

intimamente ligado ao modo de ser de Sócrates como praticante da filosofia e ao

modo como Platão, então, concebe a essência da filosofia: como sendo

essencialmente amor.

A experiência de Alcebíades com Sócrates mostra que o amor filosófico não é

o amor sensual. E a essência desse amor seria a saudade do belo, pois isso é que

de fato é eterno no homem. Dessa forma, portanto, torna-se claro o sentido mais

profundo do"amor platônico"; que não consiste tão somente na repressão da

cobiça sensual, em vez disso, concede-lhe a essa seus direitos limitados, mas os

exalta a uma forma mais elevada de desejo, para além da beleza dos corpos, das

almas, da condução da vida e do conhecimento: o "amor platônico" insta pela

beleza em si mesma. O amor consiste na aspiração pelo arquétipo do belo, do

qual tudo o que é belo participa, ou seja, na aspiração pela ideia do belo.

Assim, o "amor platônico" está estreitamente relacionado com a grandiosa

realização do pensamento de Platão que entraria para a consciência do espírito

ocidental: sua doutrina das ideias. Em suas reflexões, Platão descobre que o

homem sabe desde sempre, originariamente, o que é justiça e o que são as

outras virtudes. Ele traz em sua alma a ideia de todos esses retos modos do com-

portamento, os quais podem e devem determinar a sua ação. Mas essa conexão

entre realidade e ideia não diz respeito apenas ao campo da ação humana.

Também o que seja uma árvore só o sabemos desde que tenhamos em nós a

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 44

ideia da árvore. O conhecimento da realidade total só se torna possível quando o

homem possui em sua alma arquétipos de tudo o que é, podendo então dizer:

isto é uma árvore, aquilo é um animal; isto é um crime, aquilo é uma boa ação.

Isso significa que todo o real é o que é enquanto participa de seu arquétipo e

enquanto aspira a tornar-se semelhante a ele. A árvore quer ser tanto quanto

possível árvore; o homem, tanto quanto possível homem; a justiça, tanto quanto

possível, justiça. O mundo é um lugar de incessante ímpeto pela perfeição, de

amor pela ideia, pois as ideias são o real imaginário. As coisas são meras cópias

das ideias e, portanto, de diminuto grau de realidade. As ideias estão livres de

toda a transitoriedade.

O conhecimento das ideias tem de ser atribuído ao homem antes de sua exis-

tência temporal, em uma existência anterior ao nascimento. Quando reconhece

uma coisa, isso significa que o homem se lembra de uma contemplação originá-

ria dessa ideia, a qual precisa ter ocorrido antes de sua existência temporal. Por-

tanto, conhecer é relembrar. Assim, a teoria da ideia conduz necessariamente à

suposição de uma preexistência da alma e a certeza da imortalidade. Dessa exis-

tência anterior, fala-nos Platão através do diálogo Fedro, a qual deixa no homem,

por toda sua vida, uma certa nostalgia. O filósofo, por sua natureza, aspira ao ser.

A paixão daquele que filosofa é, portanto, a significação última do"amor platôni-

co'̂ sem ela não haveria nenhuma procura verdadeira pelo eterno.

Atividades 1. Com base no texto complementar de Marilena Chauí ("Imaginemos uma ca-

verna separada do mundo"), qual é a mensagem deixada por esse mito? E, no

seu entendimento, quais são as cavernas de hoje? O que a educação pode

fazer para ajudar os educandos a libertarem-se de suas cavernas?

2. Segundo as principais linhas do da esquerda com a da direita.

a) As coisas (

b) Os conceitos ou ideias (

c) A alma concupiscente

d) A república ideal

e) O mundo das ideias í

f) A realidade (

pensamento platônico, relacione a coluna

) só pode ser intuído pela razão.

) é contingente.

) é própria dos vegetais.

) são cópias imperfeitas de arquétipos de modelos ideais. ) é governada pelos filósofos.

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Platão e o nascimento da razão ocidental

45 ■

) são necessários.3. Quanto ao legado de Platão, assinale a única alternativa correta.

a) É o responsável por grande parte da construção do arcabouço científico do

Ocidente.

b) Não poucos pensadores, entre os quais Nietzsche, tentariam mais tarde

reformular, a partir de novas bases, a herança de Platão.

c) É o principal responsável pela repulsa concernente a tudo que esteja re-

lacionado com a ordem material e sensível.

d) É incompatível com a dogmática cristã, que desde o princípio preferiu a

filosofia de Aristóteles.

e) Essa cisão entre corpo e alma, matéria e espírito, que deixaria suas marcas na

identidade ocidental, nós devemos mais a Sócrates que a Platão.

Para produzir filosofia Com base no segundo texto complementar ("O amor platônico"), qual é a

relação da expressão "amor platônico" com as ideias de Platão?

Aristóteles e a filosofia como totalidade dos

saberes Filho de médico, mestre de príncipe

Se elementos da filosofia platônica persistem nos substratos inconscientes

do Ocidente, sobretudo em seus veios religioso e espiritual, o pensamento de

Aristóteles, seu mais famoso discípulo, foi praticamente hegemônico. E ainda

é cedo para afirmar, como pretendem alguns, que tenhamos entrado em uma

fase pós-aristotélica.

Diferentemente de Sócrates e Platão, Aristóteles era estrangeiro em

Atenas: sua família era de Estagira, colônia grega da Trácia, na fronteira com a

Macedônia, onde ele nasceu em 384 ou 383 a.C. Por ter nascido na cidade de

Estagira, por vezes ele é chamado de o Estagirita. Seu pai foi médico na corte

de Macedônia, servindo ao rei Amintas, que era pai de Felipe e avô de

Alexandre. Graças a essa influência, o futuro filósofo beneficia-se desde cedo

de uma atmosfera de pesquisa empírica, experimental, sem dúvida alguma

decisiva para os vários tratados sobre questões biológicas que escreveria mais

tarde.

Aos 18 anos de idade, já órfão, ele mudou-se para Atenas, ingressando na

Academia platônica, onde permaneceu por 20 anos convivendo com os

maiores nomes do pensamento da época. Todavia, com a morte de Platão,

Aristóteles se afastou da escola, já que a direção desta tendia para áreas que

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não eram inteiramente de seu interesse.

Assim, nos 12 anos seguintes ele viajou pela Ásia Menor, vivendo e le-

cionando em várias cidades, em uma fase importantíssima de sua vida, até

que, por volta de 343 a.C., Felipe da Macedônia o convocou para a corte,

encarregando-lhe da educação de seu filho, Alexandre, o Grande.

Pouco depois da ascensão de Alexandre ao trono, em 336, Aristóteles re-

tornou a Atenas, onde funda uma escola própria, o Liceu, assim denominado

por conta do templo dedicado a Apoio Lício, que ficava nas proximidades.

Em virtude do seu hábito de lecionar caminhando, a escola recebeu o nome de

Perípatos, que significa "passeio", e os seus seguidores foram perípatéticos. "Foram

esses os anos mais fecundos na produção de Aristóteles, o período que viu o

acabamento e a grande sistematização dos tratados filosóficos e científicos que

chegaram até nós" (REALE; ANTISERI, 1990, p. 175).

Com a morte de Alexandre, irrompeu em Atenas uma rebelião contra a domi-

nação macedônica. Culpado por ter sido tutor do grande soberano, Aristóteles foi

acusado de impiedade, como o fora Sócrates. No entanto, sem a mesma vocação

para o martírio, Aristóteles fugiu para Cálcis, onde havia uma propriedade sua,

deixando a direção do Liceu com Teofrasto, um de seus discípulos. Com apenas

poucos meses de exílio, veio a falecer em 322 a.C., aos 60 anos de idade.

Os escritos de Aristóteles Os escritos de Aristóteles chegam às centenas - não faltando autores antigos

que lhe atribuem a autoria de cerca de mil volumes. O certo é que os textos de

Aristóteles dividem-se basicamente em dois grandes grupos:

■ os escritos exotéricos, destinados ao grande público, compostos sobretudo em

forma de diálogos, à semelhança de Platão;

■ os escritos esotéricos, de aspecto mais didático, produzidos para os alunos e,

em alguns casos, pelos próprios alunos, como notas tomadas das aulas do

mestre - a maior parte do que nos chegou pertence a este segundo grupo.

No entanto, a primeira edição completa de suas obras só veio a lume pela

metade do último século antes de Cristo, graças ao esforço de Andrônico de Rodes,

seu décimo sucessor na direção do Liceu. A classificação tradicional do corpus

aristotélico, como a que se segue, tem por base essa edição:

■ Escritos lógicos - esse conjunto de escritos sobre a lógica, que Aristóteles

considerava um instrumento indispensável da ciência, recebeu mais tarde o

título de Organon.

■ Escritos sobre a física - esse grupo abrange as obras de ciências naturais e a

Psicologia.

■ Escritos metafísicos - essa compilação, feita depois da morte do filósofo por

meio de seus apontamentos, refere-se à metafísica, cujo nome foi dado devido

ao lugar que ocupa na coleção de Andrônico, isto é,"depois da física".

■ Escritos morais e políticos - a Ética a Nicômaco, assim chamada porque é de-

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Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes

55 ■

dicada a Nicômaco, seu filho; a Ética a Eudemo, inconclusa, considerada hoje em

dia uma versão mais antiga do livro anterior; a Grande Moral, compêndio das

duas precedentes, em especial da segunda; e a Política, também incompleta.

■ Escritos retóricos e poéticos - a Retórica e a Poética, que, no seu estado

atual, é apenas uma parte do que Aristóteles escreveu.

Quanto à abrangência e à grandeza do empreendimento aristotélico e o estilo

em que suas obras foram redigidas, transcrevemos o bem-humorado comentário

de Will Durant (2000, p. 75): Temos aqui, evidentemente, a Encyclopedia Britannica da Grécia: todos os problemas abaixo e ao redor do sol têm um lugar nela [...]. Aqui está uma síntese de conhecimento e teoria que nenhum homem tornaria a realizar até a época de Spencer, e mesmo então com uma magnificência que não chegava à metade dela; aqui, melhor do que a impulsiva e brutal vitória de Alexandre, estava uma conquista do mundo. Se a filosofia é a procura da unidade, Aristóteles merece o elevado título que 20 séculos lhe deram: llle Philosophus - O filósofo. Naturalmente, a um espírito de tal pendor científico faltava a poesia. Não devemos esperar de Aristóteles o brilhantismo literário que inunda as páginas do filósofo-dramaturgo Platão. Em vez de nos dar uma alta literatura, na qual a filosofia esteja corporificada (e obscurecida) em mitos e imagens, Aristóteles nos dá ciência, técnica, abstrata, concentrada [...]. Em vez de dar termos à literatura, como fez Platão, ele construiu a terminologia da ciência e da filosofia; praticamente não podemos falar de qualquer ciência, hoje, sem empregar termos que ele inventou; eles jazem como fósseis no substrato de nossa linguagem: faculdade, média, máxima [...], categoria,

energia, realidade, motivo, fim, princípio, forma - estas indispensáveis moedas do pensamento filosófico foram cunhadas em sua mente.

Com Aristóteles, assistimos à passagem de uma filosofia ainda tateante a uma

filosofia madura, rigorosa, autônoma. Nele se concretiza, mais do que em qualquer

outro antes dele, o domínio do logos sobre o mythos, da razão sobre a imaginação.

Podemos afirmar ainda que com o filósofo de Estagira se manifesta, pelo menos em

seus princípios epistemológicos, o que viria a ser a ciência ocidental.

Só o individual é real Para compreendermos a originalidade da contribuição do pensamento de

Aristóteles é preciso levar em conta dois fatores essenciais: a formação prática

herdada de seu pai e a força da filosofia platônica. São duas tendências opostas que

encontrarão nele uma síntese original, a formação prática funcionando como ponto

de partida e pano de fundo para a superação da filosofia platônica. Assim, em

Aristóteles a pesquisa empírica fornece o instrumental para a refutação da teoria

platônica das ideias. Em outros termos, em Aristóteles é formulada uma filosofia

realista em comparação ao pensamento idealista de Platão.

O ponto de partida dessa nova filosofia consiste em conceber, ao contrário de

Platão, que somente o individual é real: o que realmente existe é o indivíduo

material concreto. Esse indivíduo concreto seria o constituinte último da realidade,

a qual, mais do que uma manifestação imperfeita do mundo das ideias, é composta

pelo conjunto de indivíduos materiais e concretos existentes.

Além disso, para Aristóteles a experiência é a única fonte de conhecimento

autêntico: contra Platão, ele postula que não existem ideias puras a serem in-

vestigadas ou procuradas por trás das aparências. A inteligência humana conta

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Tópicos da Filosofia da Educação

56

apenas com o que está acessível aos sentidos. Dessa forma, no intelecto não há

nada que antes não tenha passado pelo concreto. Trata-se de interessar-se ime-

diatamente pelas coisas, pois é a partir delas que se extraem as ideias.

Aprofundando a análise, Aristóteles afirma que o indivíduo concreto - o único

real e existente - é constituído de matéria e forma."A matéria é o princípio da in-

dividuação e a forma a maneira como, em cada indivíduo, a matéria organiza-se"

(MARCONDES, 2000, p. 72). Assim, cada indivíduo tem uma matéria específica,

particular, e uma forma comum, partilhada com os indivíduos da mesma espécie.

Matéria e forma são indissociáveis, pois a matéria existe apenas dentro de uma

forma específica.

A fim de compreendermos melhor, vejamos o exemplo da estátua: na estátua, a

matéria é o mármore ou o bronze, por exemplo; e a forma é a bela Afrodite ou o

feio Sócrates.

E só o individual é real. O universal, por sua vez, somente existe em nossa

mente por meio da abstração. O caminho por meio do qual o intelecto chega ao

conhecimento é a abstração - que é o processo segundo o qual a inteligência

separa matéria e forma. O conhecimento dá-se quando relacionamos os objetos

que possuem a mesma forma e fazemos abstração de sua matéria, ignorando suas

características particulares.

Formulemos um exemplo de abstração: pelos sentidos, conheço um ser, iden-

tifico que ele é semelhante a outros da mesma espécie.Trata-se de um mamífero

ruminante que chamamos de vaca. A ideia de vaca não existe em estado puro, não

há um mundo das ideias onde exista uma vaca arquetípica, modelo para todas as

vacas do universo. O que existe de fato é essa vaca particular, que posso ver com

os meus olhos. Mas, por um processo de abstração, chego à ideia de vaca, comum

a todas as vacas que eu possa conhecer. Em termos aristotélicos, posso afirmar que

a ideia que tenho da vaca é a sua essência11. É a partir dessa ideia que reconheço

uma vaca concreta, mas a ideia não existe sem os seres individuais que eu percebo

pelos sentidos.

A metafísica O interesse de Aristóteles pelo individual e pelo real não o impediu, porém, de

investigar as realidades não diretamente apreensíveis pelos sentidos. Se ele é

considerado o pai da lógica e da ciência, também é o pai da metafísica. Para essas

realidades suprassensíveis, Aristóteles desenvolveu o que ele chamou de filosofia

primeira, a qual, com Andrômico, ganharia o nome com que se tornaria

mundialmente conhecida: metafísica.

Esta é a ciência que se ocupa com as realidades que estão para além das reali-

dades físicas {meta, em grego, significa "depois, além de"). O conceito de filosofia

primeira é extremamente complexo em Aristóteles, não havendo uma definição

** A distinção entre essência e existência é uma das classificações da metafísica aristotélica. Existência indica o ser que está acima do nada. Pela

essência, ele passa a participar de determinada espécie de ser. A essência é, portanto, nada mais que um modo do existir.

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Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes

57 ■

única. Basicamente, o filósofo estabeleceu quatro definições. Assim, metafísica ou

filosofia primeira é:

■ a ciência que indaga causas e princípios;

■ a ciência que indaga o ser enquanto ser;

■ a ciência que investiga a substância;

■ a ciência que investiga a substância suprassensível.

Os conceitos de matéria e forma, ato e potência, substância e acidente possuem

papel capital na metafísica aristotélica. Para ele, existem quatro causas implicadas

na existência de algo, conforme abaixo.

■ Causa material - é aquilo de que, como material imanente, provém o ser de

uma coisa, isto é, fornece alguma coisa para o ser. ■ Causa formal - é a forma ou modelo, isto é, a definição da essência.

■ Causa motora ou eficiente - é aquilo que se origina da mutação ou da

quietação da coisa. Por exemplo, o conselheiro é a causa da ação, o pai é a

causa do filho e, de modo geral, o autor é a causa da coisa realizada, o agente

modificador é a causa da alteração.

■ Causa final - é aquilo para o que a coisa é feita, como a saúde é o fim dos

exercícios físicos, de modo que à pergunta:"para quê se faz ginástica" geral-

mente se responde: "para alcançar ou conservar a saúde física". Para exemplificar essas quatro causas, tomemos, um vaso de argila. ■ A causa material é a argila, a matéria de que o vaso é feito.

■ A causa formal é a forma, o formato em que essa argila está disposta para se

constituir em um recepiente ao qual damos o nome de vaso e não, por exemplo,

de tijolo.

■ A causa eficiente ou motora é o oleiro que trabalhou a argila, produzindo o

vaso.

■ A causa final, o objetivo do vaso, o fim para o qual foi feito esse determinado

objeto é, portando um arranjo de flores, servir de enfeite para um ambiente. Aristóteles distingue ainda a essência e os acidentes.

A essência é aquilo que dá identidade a um ser e na falta dela esse ser não pode

tornar-se o que é, não sendo reconhecido como tal. Assim, um livro sem nenhum

tipo de letras não pode ser considerado um livro, pois o fato de ter letras impressas

é o que o permite ser identificado como livro e não como caderno, por exemplo.

O acidente, por sua vez, é algo que pode ou não ser inerente a um determinado

ser, mas que, mesmo quando ausente, não o descaracteriza. Desse modo, o

perfume de uma flor é um acidente, pois uma flor não deixará de ser flor por lhe

faltar o perfume. A sua cor também é um acidente: por mais que uma flor tenha

necessariamente alguma cor, ainda assim o fato de ser amarela ou vermelha não

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Tópicos da Filosofia da Educação

58

lhe faz ser o que ela é.

Todas as coisas que existem, existem em potência e ato, ensina Aristóteles.

Uma coisa em potência é uma coisa que tende a ser outra, tal como a semente, que

é uma árvore em potência. Em outras palavras, potência é aquilo que ainda não é,

mas que preexiste realmente como possibilidade de vir a ser. Segundo Aristóteles,

"das coisas não existentes, algumas existem em potência, por não existirem em

ato".

Uma coisa em ato é algo que já está realizado, o ser enquanto já é, como uma

árvore é uma semente em ato. De algum modo, o ser em ato pressupõe deter-

minação e perfeição.

A principal determinação é a da existência: é a determinação na ordem do ente.

A determinação dá-se também na ordem da essência, enquanto esta apresenta

essa ou aquela fisionomia. Ademais, todas as coisas, mesmo em ato, também são

em potência, pois uma árvore - uma semente em ato - também é uma folha de

papel ou uma cadeira em potência.

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Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes

59 ■

A única coisa que é totalmente em ato é o ato puro, que Aristóteles identifica

com o bem. Esse ato não é nada em potência, nem é a realização de potência

alguma - desse conceito, mais tarde São Tomás de Aquino derivaria a sua noção de

Deus como ato puro.

E há potências ativas e passivas. As potências passivas apenas recebem o ato.

As ativas têm a condição de produzir o ato. O homem tem potências como as do

conhecimento e as dos impulsos. Um ser em potência só pode tornar-se um ser

em ato mediante algum movimento. O movimento vai sempre da potência ao ato,

da privação à posse. É por isso que o movimento pode ser definido como o ato de

um ser em potência enquanto está em potência.

Em suma, com esse quadro de conceitos, a metafísica aristotélica inaugura

tanto a investigação da estrutura geral dos seres quanto as condições que fazem

com que um determinado ser possa existir e ser conhecido pelo pensamento.

Assim, postula que a realidade no seu todo é apreensível pelo intelecto, apresen-

tando-se como conhecimento teorético ou teórico dessa realidade sob todos os

seus aspectos gerais ou universais. Além do mais, ela deve preceder as pesquisas

que cada ciência particular realiza sobre um determinado tipo de ser.

0 pai da lógica Aristóteles é o verdadeiro criador da lógica ocidental, o organon, que em grego

quer dizer "instrumento". Ora, tanto a ciência quanto a filosofia tem por objeto o

universal e o necessário, não se podendo fazer ciência em torno do individual e do

contingente. Assim como a ideia era o alvo da ciência platônica, a forma é o objeto

da ciência aristotélica, a qual, estritamente falando, opera a partir da “dedução do

particular pelo universal, explicação do condicionado mediante a condição,

porquanto o primeiro elemento depende do segundo" (PADOVANI; CASTAGNOLA,

1984, p. 126).

Assim, o objeto principal da lógica de Aristóteles é esse processo de derivação.

Portanto, a lógica aristotélica é basicamente dedutiva e demonstrativa, e o seu pro-

cesso característico é o silogismo. Eis como Marilena Chauí a explica: O objeto da lógica é a proposição, que exprime, através da linguagem, os juízos formulados pelo pensamento. A proposição é a atribuição de um predicado a um sujeito: S é P. O encadeamento dos juízos constitui o raciocínio e este exprime-se logicamente através da conexão de proposições; essa conexão chama-se silogismo. A lógica estuda os elementos que constituem uma proposição (as categorias), os tipos de proposições e de silogismos, e os princípios necessários a que toda proposição e todo silogismo devem obedecer para serem verdadeiros [...]. (CHAUÍ, 2000, p. 183)

Qualquer proposição é composta pelos seus termos ou categorias, que são

palavras que designam algo: Sócrates, morte. Quando emitimos um juízo sobre

algo, estamos fazendo uma combinação desses termos - por exemplo, "Sócrates é

mortal". Esse juízo, combinado com outros, forma um raciocínio. Quando o

raciocínio é formulado de uma forma lógica, chama-se silogismo. Retomando a

frase "Sócrates é mortal", posso elaborar o seguinte silogismo:

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 60

Todos os homens são mortais.

Sócrates é homem.

Logo, Sócrates é mortal.

Em outras palavras, silogismo é a argumentação lógica perfeita, constituída de

três proposições declarativas que se conectam de tal modo que a partir das duas

primeiras (denominadas premissas) é possível deduzir uma conclusão.

Duas características fundamentais se destacam na lógica aristotélica: o aspecto

formal e o rigor dedutivo.

Pelo aspecto formal se entende que três leis supremas condicionam o seu

exercício e garantem a sua validade:

■ o princípio de identidade (dizer que o que é é, e o que não é não é, é

verdade);

■ o princípio de não-contradição (é impossível que algo seja e não seja ao

mesmo tempo);

■ o princípio do terceiro excluído (uma determinada coisa não pode ser

afirmada e negada ao mesmo).

Pelo rigor dedutivo se entende que, uma vez admitida a verdade de certas

proposições (premissas), as conseqüências que daí resultam são necessariamente

verdadeiras.

Com esse rigoroso modelo de lógica formal, Aristóteles estabeleceu a meto-

dologia que permearia toda a pesquisa científica e a investigação filosófica do

Ocidente até praticamente a Idade Moderna.

Ajusta medida e o bem comum A ética e a política também estão entre as grandes contribuições de Aristóteles.

Para falarmos da primeira, é preciso antes nos reportarmos à sua teoria da alma. De

Platão ele empresta a divisão tripartite da alma, segundo a qual a alma se divide em

alma concupiscente, alma irascível e alma racional. Se todos os seres vivos

possuem a alma concupiscente (a vida vegetativa, já que todos têm um

metabolismo), e a alma irascível é partilhada tanto pelos animais quanto pelo ser

humano (a sensibilidade), somente o ser humano é detentor de uma alma racional.

Ora, a ética só intervém nesse último nível, no nível racional.

Sendo a razão o distintivo do ser humano, ele só pode realizar a sua verdadeira

natureza vivendo racionalmente. E assim, mediante a virtude, que é uma atividade

conforme a razão, ele alcança a felicidade.

Com efeito, o fim do ser humano é a felicidade, que ele atinge por meio da

virtude, a qual é necessária à razão. Por esse motivo, pode-se afirmar que a carac-

terística fundamental da ética aristotélica é o racionalismo. Além disso, As virtudes éticas, morais, não são mera atividade racional, como as virtudes intelectuais, teoréticas;

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Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes

61 ■

mas implicam, por natureza, um elemento sentimental, afetivo, passional, que deve ser governado pela razão, e não pode, todavia, ser completamente resolvido na razão. A razão aristotélica governa, domina as paixões, não as aniquila e destrói, como queria o ascetismo platônico. A virtude ética não é, pois, razão pura, mas uma aplicação da razão; não é unicamente ciência, mas uma ação com ciência. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 132)

Essa "ação com ciência" se manifesta precisamente na escolha do justo meio

entre dois extremos, ou seja, entre duas paixões opostas, já que os impulsos e as

paixões tendem ao excesso ou à carência. A razão deve impor a justa medida entre

um e outro extremo. É justamente nesse meio-termo, nesse equilíbrio, que se

encontra a virtude. "A coragem, por exemplo, é o meio caminho entre a temeridade

e a vileza, ao passo que a liberalidade é o justo meio entre a prodigalidade e a

avareza" (REALE; ANTISERI, 1990, p. 205). Obviamente, a justa medida não é

abstrata, nem é a mesma para todos e em todo o tempo, pois é concreta e variável

conforme as paixões em jogo, o indivíduo e as circunstâncias.

Além disso, se a virtude é uma atividade segundo a razão, ela também é um

hábito segundo a razão, um costume moral, uma disposição da vontade. Como o

conhecimento, que exige esforço e disciplina, a virtude não é inata, mas adquirida

mediante a prática, o exercício. Porém, uma vez adquirida, ela torna-se de fácil

execução, quase automática, como uma segunda natureza. Daí a importância da

educação. Daí, também, a importância do Estado, responsável pela educação dos

cidadãos.

Se o objetivo da ética aristotélica é a felicidade do indivíduo, a política aris-

totélica tem por meta a felicidade coletiva da pólis (a cidade-Estado grega)12. Com

este fim, o filósofo investiga as formas de governo e as instituições capazes de

assegurar uma vida feliz ao cidadão. Por isso mesmo, a política situa-se no âmbito

da práxis, isto é, no âmbito das ciências que buscam o conhecimento como meio

para ação.

Ora, assim como o bem comum é superior ao particular, o Estado é superior ao

indivíduo. Unicamente no Estado se realiza a satisfação de todas as necessidades,

pois o indivíduo não pode se realizar plenamente sem a coletividade. O Estado, que

surge como conseqüência da sociabilidade do ser humano, é responsável

primeiramente por prover a satisfação das necessidades materiais, como a defesa e

a segurança. Mas o seu alvo é espiritual: promover, mediante a ciência, a virtude -

e, por conseguinte, a felicidade dos cidadãos. Assim, sua tarefa principal é a

educação, por meio da qual são formados os futuros cidadãos, sobretudo por meio

das artes, como a música e a poesia.

Não obstante a importância do Estado, Aristóteles conserva os direitos indi-

viduais: o Estado é antes de tudo a síntese de indivíduos distintos. Desse modo, ao

12 “ Apesar de, no tempo de Aristóteles, a cidade-Estado grega estar em decadência e de se assistir ao surgimento de um império colossal, o império

de Alexandre, Aristóteles não tem olhos a não ser para a cidade-Estado.

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 62

contrário da república de Platão, Aristóteles salvaguarda a família e a propriedade

particular.Todavia, como fazia o seu mestre, Aristóteles admite a divisão de castas,

reconhecendo sobretudo duas: a dos homens livres (os cidadãos da pólis) e a dos

escravos, que eram privados de qualquer direito político. Ademais,

Quanto à forma exterior do Estado, Aristóteles distingue três principais: a monarquia, que é o governo de um só, cujo caráter e valor estão na unidade, e cuja degeneração é a tirania; a aristocracia, que é o governo de poucos, cujo caráter e valor estão na qualidade, e cuja degeneração é a oligarquia; a democracia, que é o governo de muitos, cujo caráter e valor estão na liberdade. E cuja degeneração é a demagogia. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 134)

Embora Aristóteles prefira a forma de governo democrática, como a que se

desenvolveu na Grécia - sobretudo em Atenas -, por conta do seu realismo ele tem

consciência de que a forma de governo ideal deve adaptar-se à índole do povo e às

circunstâncias históricas.

Texto complementar

Cada Estado é uma comunidade estabelecida

com alguma boa finalidade (ARISTÓTELES, 2000, p. 143-146)

A observação nos mostra que cada Estado é uma comunidade estabelecida com

alguma boa finalidade, uma vez que todos sempre agem de modo a obter o que

acham bom. Mas, se todas as comunidades almejam o bem, o Estado ou

comunidade política, que é a forma mais elevada de comunidade e engloba tudo o

mais, objetiva o bem nas maiores proporções e excelência possíveis.

É um erro supor que sejam as mesmas as relações entre um estadista e o

Estado, entre um rei e seus súditos, entre um chefe de família e sua casa, entre

senhores e escravos. Com efeito, elas diferem não apenas no tamanho, mas na

espécie. Tamanho não é critério. Não podemos dizer que é um pequeno número de

pessoas que define a relação senhor-escravos; que uma quantidade maior de

indivíduos define o relacionamento do chefe de família com os seus; que um

monarca o é porque se relaciona com numerosas gentes ou, talvez, com uma

comunidade política - como se não houvesse diferenças entre uma enorme família

e um pequeno Estado.

Até mesmo entre comunidades monárquicas e políticas, ou de cidadãos, existe

diferença de espécie; e não é correto dizer que, quando uma pessoa controla todo

o resto, é ele um monarca; e que se trata de um ser político quando o cidadão tem

sua vez de governar ou de ser governado de acordo com os princípios

estabelecidos pela ciência. Isso fica evidente quando examinamos a matéria

segundo nosso princípio: o método analítico. Acostuma- mo-nos a analisar outras

coisas compostas até que não possam mais ser subdivididas; façamos o mesmo

com o Estado e com as partes que o compõem, e entenderemos melhor as

diferenças entre um e outras, e se podemos deduzir algum princípio de

funcionamento de suas partes. [...]

Fora essas duas afinidades, o primeiro ponto a considerar é a família. Hesío do

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Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes

63 ■

tem razão ao dizer: "Primeiro o lar, a esposa e um boi para o arado", uma vez que o

boi é o escravo dos pobres.

A família é a associação estabelecida por natureza para suprir as necessidades

diárias dos homens, e seus membros são chamados, por Charondas, companheiros

do pão; já Epimênides, o Cretense, denomina-os companheiros de comer. Mas,

quando várias famílias estão unidas em certo número de casas, e essa associação

aspira a algo mais do que suprir as necessidades cotidianas, constitui-se a primeira

sociedade, a aldeia. A forma mais natural de aldeia parece ser uma colônia de

famílias com filhos e netos dos quais se diz que foram "criados com o mesmo leite".

Por causa dessa composição, seu governo era inevitavelmente monárquico; é por

esse motivo que as cidades- -Estado helênicas foram, originariamente, governadas

por reis - porque foi assim antes de os helenos se reunirem em cidades, como

acontece ainda hoje com algumas nações bárbaras. [...]

Quando várias aldeias se unem numa única comunidade, grande o bastante

para ser autossuficiente (ou para estar perto disso), configura-se a cidade, ou

Estado - que nasce para assegurar o viver e que, depois de formada, é capaz de

assegurar o viver bem. Portanto, a cidade-Estado é uma forma natural de

associação, assim como o eram as associações primitivas das quais ela se originou.

A cidade-Estado é a associação resultante daquelas outras, e sua natureza é, por si,

uma finalidade; porque chamamos natureza de um objeto o produto final do

processo de aperfeiçoamento desse objeto, seja ele homem, cavalo, família ou

qualquer outra coisa que tenha existência. Ademais, o objetivo e a finalidade de

uma coisa podem apenas ser o melhor, a perfeição; e a autossuficiência é, a um só

tempo, finalidade e perfeição.

Por conseguinte, é evidente que o Estado é uma criação da natureza e que o

homem é, por natureza, um animal político.

Atividades 1. Com base no texto complementar da obra Política, de Aristóteles, responda as

questões a seguir. a) Quais são as relações entre a família e o Estado? b) Qual é a origem do Estado? c) Qual é o sentido da afirmação de que o homem é um animal político?

2. Quanto à vida e ao pensamento de Aristóteles, assinale V (verdadeiro) ou F

(falso).

( ) Para Aristóteles, o universal existe em nossa mente somente por meio da

abstração.

( ) Aristóteles é o sucessor de Platão na direção de sua escola, a Academia, também

chamada Liceu.

( ) A metafísica ou filosofia primeira pode ser definida como a ciência que indaga as

causas e os princípios.

( ) A cisão entre corpo e alma, matéria e espírito, que deixaria suas marcas na moral

ocidental, é a principal herança da ética aristotélica.

( ) Duas características fundamentais se destacam na lógica aristotélica: o aspecto

formal e a indução.

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 64

3. Sobre a metafísica aristotélica, assinale a alternativa correta. a) Metafísica é a ciência que se ocupa com as realidades que estão aquém das

realidades físicas. b) Para Aristóteles, existem quatro causas implicadas na existência de algo: a

causa material, a causa formal, a causa motora e a causa eficiente. c) Uma coisa em potência é uma coisa que tende a permanecer sempre em

repouso até que uma força a desperte. d) O Estado é a resultante metafísica da reunião das comunidades. e) Todas as coisas, mesmo em ato, também são em potência.

Para produzir filosofia Qual são as conseqüências para a educação da máxima aristotélica de que o ser

humano é um animal político?

De Aristóteles à Renascença Creio para compreender, e compreendo para melhor crer. Santo Agostinho

A filosofia na era helenística Ao contrário da Academia, fundada por Platão, a escola de Aristóteles, o

Liceu, conheceu rápida decadência, não exercendo grande influência no

período posterior à sua morte, em 322 a.C. Aliás, por esse tempo também

morreram Demóstenes13 (322 a.C.) e Alexandre (323 a.C.), marcando uma

importante virada na roda da história: foi o fim do esplendor da era grega (da

qual, na filosofia, o estagirita foi o maior expoente) e o começo de uma nova

era, que recebe o nome de helenismo.

Com o império de Alexandre, o pensamento, a língua e a cultura grega

expandiram-se para o Oriente, no rastro das conquistas militares, e em

contrapartida receberam elementos orientais. Com a inesperada morte de

Alexandre, com 33 anos incompletos, o novíssimo império - que ia dos

Bálcãs à índia -foi repartido entre os seus generais.Todavia, uma nova cultura

- que não era mais a cultura grega clássica nem a cultura dos povos

conquistados - já se encontrava em gestação. Helenismo é o nome dado a

esse novo amálgama.

A filosofia também não escapa incólume desse período de profundas

mutações. As grandes sínteses e as especulações metafísicas da época an-

terior são deixadas de lado e a filosofia volta-se para questões práticas,

tornando-se predominantemente pragmática. Significativo dessa ênfase é a

frase do filósofo Epicuro: "É vão o discurso daquele filósofo que não cure

algum mal do espírito humano." Compreende-se assim que o pensamento helenístico se tenha concentrado sobretudo nos problemas morais, que se impunham a todos os homens. E, propondo os grandes

13 Nascido em 384 a.C., Demóstenes foi um dos maiores oradores e políticos atenienses.

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 70

problemas da vida e algumas soluções para eles, os filósofos dessa época criaram algo de verdadeiramente grandioso e excepcional, o cinismo, o epicurismo e o estoicismo, propondo modelos de vida nos quais os homens continuaram a inspirar-se ainda durante outro meio milênio e que, ademais, se tornaram paradigmas espirituais, verdadeira "conquista para todo o sempre". (REALE; ANTISERI, 1990, p. 230)

Junto com a expansão da cultura grega, surgiram novos centros de cultura,

como as cidades helenísticas de Pérgamo, Rodes e sobretudo Alexandria, pois

Alexandre, à medida que avançava, ia fundando novas cidades e povoando-as

com colonos gregos. Ao mesmo tempo, a pólis, a cidade-Estado grega, perdia a

sua autonomia, dissolvendo-se nos grandes e centralizados reinos helenísticos,

não raro em constante e sangrenta disputa. O cidadão voltou a ser súdito, dimi-

nuindo o interesse pela coisa pública. Com isso, a ética desprendeu-se da

política. No entanto, um sentimento de pertença universal foi aos poucos

suplantando o antigo bairrismo grego: era o cosmopolitismo, que considerava o

mundo inteiro uma cidade - conseqüência da primeira experiência de

globalização ocorrida na história. Ciosos de sua superioridade, os gregos foram

obrigados a rever preconceitos em relação a outros povos considerados bárbaros.

O já citado Epicuro tinha os bárbaros como membros de sua família e ansiava tê-

los entre os seus discípulos - atitude inadmissível para Aristóteles, por exemplo.

Ao mesmo tempo, como conseqüência das numerosas guerras e das con-

tínuas alterações das fronteiras, uma sensação de insegurança impregnava os

corações. Superstições e misticismos, oriundos do Oriente, invadiam as mentes e

novos deuses foram admitidos no Olimpo e nos altares. Até que um novo império

(o romano) e um novo sistema religioso (o cristão), ambos com vocações

universalistas, açambarcassem a herança de Alexandre e a dos gregos. Assim,

um pulular de escolas, tendências e seitas disputaram as preferências dos per-

plexos e inquietos homens desse período. No campo da filosofia, que é o que nos

interessa, o cinismo, o estoicismo, o epicurismo e o ceticismo cumpriram esse

papel.

Cinismo Talvez antes mesmo de Platão e Aristóteles, os sinais da crise do pensamento

clássico já eram visíveis. Com efeito, o cinismo tem a sua origem com um dis-

cípulo de Sócrates, Antístenes de Atenas (cerca de 444-365 a.C.), que fundou a

sua escola em um ginásio chamado Cinosargos, de onde derivou-se o nome de

sua doutrina. Segundo o cinismo, o bem supremo consiste no desprezo das

riquezas e das honras deste mundo. Sábio é aquele que não se deixa dominar

pelas paixões, não se submete ao prazer e não foge da dor, levando uma vida

com a simplicidade natural de que dão exemplo os animais. Apesar do sucesso

de Antístenes, que conseguiu reunir um bom número de discípulos, a maioria

dos atenienses achava que todos eles não passavam de um bando de presun-

çosos e hipócritas - daí o sentido atual do termo cínico.

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De Aristóteles à Renascença

71 I

Todavia, o maior representante da escola cínica foi um discípulo de Antís-

tenes, Diógenes (413-323 a.C.), de Sínope, na Ásia Menor. Foi ele quem levou às

últimas conseqüências os ensinamentos de seu mestre. Dele, que rompeu a

imagem clássica do homem grego, circulam muitas anedotas.

Diógenes, o cínico I.

Uma das anedotas de Diógenes é a de que em pleno dia, com uma lanterna

na mão, nos lugares mais cheios, ele repetia a frase:"procuro um homem". Na

verdade, com ácida ironia, ele queria dizer que procurava um homem

verdadeiramente virtuoso. II.

Outra história igualmente célebre diz que uma vez Alexandre Magno, ao

encontrá-lo, disse-lhe:

- Eu sou Alexandre, o Grande.

A isso, ele respondeu:

- Eu sou Diógenes, o Cão.

Em seguida, o imperador perguntou o que poderia fazer por ele. Ocorria que,

pela posição em que se encontrava, Alexandre lhe fazia sombra. Então Diógenes,

olhando para cima, disse:

- Eu só te peço que não me tires o que não me podes dar. Sai da frente do

meu sol!

Essa resposta impressionou vivamente Alexandre, que, na volta, ouvindo seus

oficiais zombarem de Diógenes, comentou: - Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes. III.

Em outra ocasião, reza outra fonte, estava Diógenes comendo o seu costu-

meiro prato de lentilhas quando Aristipos aproximou-se. Aristipos, também era

filósofo, mas adepto da doutrina de que o prazer é o único bem da vida. Para

poder levar uma vida confortável, vivia sempre bajulando o rei. Disse, então,

Aristipos a Diógenes:

- Se aprendesses a bajular o rei, não precisarias reduzir tua alimentação a

um prato de lentilhas. Diógenes retrucou:

- E tu, se tivesses aprendido a te satisfazeres sempre com um prato de

lentilhas, não precisarias passar tua vida bajulando o rei.

Exemplificadas pela vida de Diógenes, que dormia em uma barrica e vivia

como um "cão", a autarquia (bastar-se a si mesmo) e a apatia (indiferença perante

as vicissitudes da vida) eram os pontos de chegada do ideal cínico.

O cinismo quase se constituiu em um movimento de massas na época he-

lenística, com muitos dando as costas às convenções sociais para viverem uma

vida mais simples e autêntica. O movimento hippie e outros movimentos con-

temporâneos de contestação, algumas atitudes dos profetas hebreus do Antigo

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Tópicos da Filosofia da Educação

Testamento e dos monges zen-budistas do Japão, guardam afinidades como o

cinismo. Na verdade, mais que uma corrente filosófica, o cinismo foi um estilo de

vida, questionador do statusquo helenístico, em uma época de crise e transição

- quando o velho ainda não tinha morrido e o novo ainda não despontara.

Epicurismo Uma das doutrinas mais populares durante o helenismo e no Império Romano

foi o epicurismo, movimento que toma o nome de seu fundador, Epicuro (341-

270 a.C.), nascido em Atenas e criado em Samos. Em 306 a.C., ele instalou a sua

famosa escola em Atenas, nos jardins de sua requintada residência. Conhecido

como Jardim de Epicuro, esse local se tornou o centro de uma animada vida

intelectual. Foi lá que o mestre exerceu a sua influência, não somente pelo ensino

direto como por uma personalidade de refinamento e fidalguia, nunca deixando

de auxiliar os discípulos e de tratar os escravos com civilidade. Epicuro dividia a filosofia em lógica, física e ética.

Segundo a lógica, o critério de verdade é a evidência, que pertence à sen-

sação, não podendo ser refutada nem por outras sensações nem pela razão. As

ideias gerais formam-se a partir do que foi percebido muitas vezes. Entre essas

ideias gerais (que, ancoradas na sensação, são sempre verdadeiras) distingue-se

a opinião, que pode ser verdadeira ou falsa. Todavia, a opinião é importante, pois

permite, por meio das sensações, chegar ao conhecimento dos princípios, que

são inacessíveis à percepção direta.

Tais princípios são os átomos, que são objeto da física. Para Demócrito, a rea-

lidade é composta por átomos, vácuo e gravidade, aos quais Epicuro acrescenta

uma faculdade dos átomos: a de se desviarem da linha reta na queda através do

espaço, tornando possível a reunião desses átomos, assim originando as coisas.

A lógica e a física são o pressuposto da ética espicurista, cujo objetivo último

é a felicidade. Para Epicuro, a felicidade é o prazer - que para o corpo consiste em

não sofrer e para a alma, em não ser perturbada. Para que se atinja tal objetivo,

Epicuro propõe-se a libertar os seres humanos do temor dos deuses e do medo

da morte.

Seres perfeitíssimos, os deuses não se misturam às imperfeições do mundo e

não se ocupam com as vicissitudes humanas.

E também não há razão para temer a morte: ela nada mais é do que a

dissolução do aglomerado de átomos que constitui o corpo e a alma. Portanto, a

morte não existe enquanto o ser humano vive, e este não existe mais quando ela

sobrevêm.

No entanto, a libertação do temor dos deuses e da morte não é suficiente para

conduzir o ser humano à felicidade. Enquanto ser natural, o homem - como os

animais - pauta a sua vida pela busca do prazer e a fuga da dor. Assim, o prazer

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De Aristóteles à Renascença

73 I

é o princípio e o fim da vida humana, e o bem não pode ser concebido sem os

prazeres.

Mas a verdadeira sabedoria consiste em saber selecionar e dosar os prazeres.

Fiel a sua filosofia materialista, Epicuro tem como pressuposto que todo prazer é

basicamente um prazer corpóreo. Porém, ao contrário dos cirenaicos (corrente

hedonista14 fundada pelo supracitado Aristipo), Epicuro ensina que o prazer de-

sejável não é o prazer da pura satisfação imediata. Para ele, o prazer que deve

nortear a conduta humana - o prazer com dimensão ética - é o prazer do repou-

so, constituído pela ataraxia (ausência de perturbações da mente) e pela aponia

(ausência de dor).

Ataraxia e aponia podem ser alcançadas na medida em que, por meio de au-

todomínio, o ser humano adquire a autarquia, isto é, a autossuficiência de quem

14 O hedonismo coloca o prazer como a finalidade suprema da existência.

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 74

tem em si a própria lei. Para tanto, ele deve renunciar aos prazeres que

podem ocasionar sofrimento e aceitar a dor na medida em que ela é inevitável.

Portanto, é preciso, como um primeiro passo para a felicidade, um cálculo

utilitário dos prazeres e das dores possíveis.

Epicuro - ele próprio um homem enfermo, achacado por terríveis males físi-

cos, e também um grego privado da liberdade política - teria demonstrado em

sua vida a eficiência dessa técnica interior de equilíbrio e libertação, capaz de

dotar o ser humano de condições objetivas para enfrentar com impassibilidade as

mais adversas circunstâncias.

O epicurismo gozaria de grande sucesso não só no ambiente helenístico

como também no Império Romano, vindo a experimentar reavivamentos nos

períodos da Renascença e do lluminismo.

Estoicismo No entanto, a doutrina de maior prestígio no Império Romano foi o

estoicismo. Grandes estoicos foram os romanos Sêneca (4 a.C. - 65 d.C.),

Epicteto (50-130 d.C.) e Marco Aurélio (121-180 d.C.). Sua influência, inclusive,

permearia a moral cristã e, de certa forma, prepararia-lhe o terreno.

O fundador do estoicismo foi Zenão, nascido em Cítio, na ilha de Chipre (334-

262 a.C.), e o nome de sua escola vem do lugar onde ele costumava ensinar: stoá,

que significa "pórtico" em grego. Como o mestre não era cidadão ateniense, ele

não podia possuir um imóvel, sendo obrigado a ministrar suas aulas debaixo de

um pórtico. Aos poucos, seus discípulos ficaram conhecidos como os "alunos do

pórtico", "alunos da stoá", isto é, os estoicos.

Assim como os epicuristas, os estoicos dividiam o conhecimento em lógica,

física e moral.

Segundo a lógica, o conhecimento deriva apenas dos sentidos; sendo a

imagem a impressão produzida na alma pelos objetos exteriores. Por sua vez, o

acúmulo de imagens permite a formação das ideias universais, as quais - com

Aristóteles e contra Platão - existem apenas no pensamento.

Já para a física estoica, a realidade seria o fruto de dois princípios básicos: um

passivo (a matéria) e outro ativo (a razão). Sendo fogo, como queria Heráclito, a

razão impregnaria a matéria, dando origem à terra, à água e ao ar. Tudo procede

do fogo e ao fogo retornará um dia, inclusive a alma humana, que sobrevive ao

corpo até a "última conflagração", quando perderá a individualidade. Tudo está

contido em tudo, desde as origens. A harmonia do mundo implica uma inteli-

gência, pois do acaso não poderia resultar a ordem: Deus é a razão universal,

origem e substância de todas as coisas.

Segundo a ética estoica, a felicidade consiste em viver conforme a natureza.

Para o ser humano, que é participante da razão universal, isso significa viver con-

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De Aristóteles à Renascença

75 I

forme a razão, já que a natureza humana é racional. Ademais, a felicidade passa a

ser compreendida como libertação de toda perturbação, como autarquia e

ataraxia. A paixão é vista sempre como má, pois é movimento que perturba a

alma - seja ódio, seja amor. Assim, a atitude do sábio deve ser o aniquilamento

da paixão, até atingir o estado de apatia, de indiferença altiva perante toda de-

sordem do mundo. O ideal estoico não é o domínio racional da paixão, mas a sua destruição total, para dar lugar unicamente à razão: maravilhoso ideal de homem sem paixão, que anda como um deus entre os homens. Daí a guerra justificada do estoicismo contra o sentimento, a emoção, a paixão, donde derivam o desejo, o vício, a dor, que devem ser aniquilados. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 148)

Assim, indiferença e renúncia a todos os bens do mundo são o núcleo da

virtude estoica. O sábio pratica essa virtude para não ser perturbado nem pela

posse e nem pela privação dos bens terrenos. Absorto em sua torre de marfim,

nada pode alterá-lo. A ética estoica, como a epicurista, é democrática: todo os

seres humanos, sejam escravos (como Epicteto) ou imperadores (como Marco

Aurélio) são capazes da virtude e da perfeição, sendo igualmente aptos à reali-

zação do bem e à conquista da felicidade.

O estoicismo também foi importante para a tendência do cosmopolitismo: o

sábio estoico é cidadão do mundo, ao qual pertencem todos os indivíduos,

independentemente de raça, nação ou condição social.

Ceticismo e ecletismo Se tanto o estoicismo como o epicurismo visam ao ideal da apatia - o primei-

ro mediante uma metafísica positiva e o segundo com uma metafísica negativa,

que nega todo absoluto -, o ceticismo, buscando o mesmo fim, abre mão de toda

metafísica. Tendo o seu início com Pirro de Elis (365-275 a.C.) - que como

Sócrates, nada escreveu -, o ceticismo é, portanto, mais coerente e radical que as

escolas anteriores.

Acreditando que as sensações e os juízos são incapazes de apreender a ver-

dade, tudo se torna igualmente indiferente. O sábio cético, por conseguinte, não

terá opiniões, assim evitando a vã agitação do espírito. A suspensão do juízo, por

sua vez, conduz à completa apatia, tanto teórica quanto prática, e à imperturba-

bilidade (ataraxia).

Enquanto os dogmáticos pretendem ter descoberto a verdade, os céticos

limitam-se a declarar que é impossível encontrá-la. E se houvesse uma verdade,

não haveria critérios que permitissem demonstrá-la.

Por outro lado, ser cético significa também ser dialético, isto é, um pesquisa-

dor contumaz, reconhecendo que se há alguma verdade, ela consiste na procura

da verdade. Assim, para haver ciência, isto é, investigação racional, é necessário

um certo ceticismo de base, pois ninguém procura aquilo que julga que sabe.

Apresentando-se como um sistema afim, porém aparentemente antagônico,

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 76

temos o ecletismo: se nada é verdadeiro, tudo é igualmente válido. O surgimento

de uma filosofia dessa natureza foi favorecido pela coexistência, nos períodos

helenístico e romano, de várias correntes filosóficas, com postulados muitas

vezes opostos, como o platonismo (e o neoplatonismo), o aristotelismo, o

cinismo, o epicurismo, o estoicismo, o ceticismo, para ficarmos apenas nos mais

conhecidos. O pragmatismo eclético será enfim estimulado pelo contato do

pensamento grego com a cultura latina dominante, totalmente voltada para a

prática e apresentando sua principal contribuição mais no âmbito do direito que

no da filosofia.

Neoplatonismo Antes do apagar das suas luzes, a filosofia pagã da Antiguidade ainda nos

legaria uma reformulação original e vigorosa do pensamento de Platão (427-347

a.C.): o neoplatonismo. Surgido em Alexandria, no Egito, com Amônio Saca (175-

240 d.C.), seu principal responsável é um aluno seu, Plotino (204-270 d.C.),

natural de Licópo- lis, também no Egito.

Não que as doutrinas de Platão tivessem sido esquecidas. Entre a morte do

autor da República e o magistério de Amônio, não poucos pensadores serviram- -

se do instrumental platônico, sem falar que a Academia, a escola fundada por

Platão, não deixara de funcionar, embora nem sempre se conservando fiel aos

princípios filosóficos de seu fundador. No entanto, com Amônio e sobretudo Plo-

tino, o platonismo recobraria forças e versatilidade em uma nova síntese, desti-

nada a servir de arcabouço para o pensamento cristão por cerca de um milênio.

Repensando o platonismo na óptica do Império Romano, a filosofia de Ploti-

no é um saber de salvação, destinado a suscitar no ser humano a recordação de

sua origem divina, voltando-o para Deus, do qual é uma emanação.

Imortal, a alma individual é todavia parte da alma universal, a qual, por seu

turno, procede da inteligência, e da qual recebe as formas que imprime na

matéria.

Acima da Inteligência encontra-se o Uno, que se basta si mesmo e é portanto

o Absoluto.

Causa geradora de tudo que existe, o Uno, em emanações sucessivas, engen-

dra a inteligência, a qual, por sua vez, engendra a alma, que, finalmente, produz

o mundo sensível.

Procedendo da unidade, todos os seres aspiram à unidade, que é a sua razão

de ser. Assim como em Platão, o mundo das coisas é mera aparência do mundo

das ideias. O objetivo da moral é a libertação do corpo. A felicidade da alma

encontra-se na contemplação (um tipo de meditação profunda que, eventual-

mente, pode ocasionar o êxtase), na qual se realiza a unidade do sujeito e do

objeto, único meio para atingir o êxtase, pelo qual a alma funde-se com o Uno.

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De Aristóteles à Renascença

77 I

A filosofia de Plotino é, com efeito, o grande arremate do pensamento grego.

Com ela, uma era se encerra. Com ela, não só anuncia-se como também inaugu-

ra-se outra era, na qual a filosofia caminhará não mais independente como o foi

na Antiguidade clássica, mas guiada pela fé.

Sob a égide da cruz Tirante o direito romano e a administração pública, a herança cultural do

Império Romano não é original: a Eneida, de Virgílio (70-19 a.C.), é uma pálida

sombra da llíada e da Odisséia, de Homero (séc. IX a.C.), escritas quase um milê-

nio antes; e não há um único filósofo romano que chegue aos pés de um Platão

ou um Aristóteles. Todavia, a importância de Roma foi a de ter sabido receber,

conservar e transmitir à posteridade o portentoso legado dos gregos.

Em 476, depois de muito assédio e também crises internas, esse fabuloso

império caiu sob o assalto dos bárbaros. Se não fosse pela Igreja, cuja organi-

zação hierárquica foi decalcada em parte da estrutura do Império, esse legado

correria o risco, pelo menos no Ocidente, de se perder completamente debaixo

das sucessivas levas das tribos invasoras. No entanto, o cristianismo não apenas

desempenharia a função de salvaguardar - nas bibliotecas dos mosteiros, à

espera de tempos mais propícios - a cultura clássica herdada de Roma, servindo

de mais um elo nessa corrente: essa religião de origem semita15 - portanto

oriental - não deixaria de acrescentar elementos novos e próprios à aventura do

espírito ocidental.

O cristianismo tem a sua origem, como o nome já diz, em Cristo. A palavra

cristoé a tradução grega para o título de ungido (em hebraico, messias), aplicado

por seus seguidores a um judeu morto na cruz, por volta do ano 30, na província

da Palestina, no extremo leste do Império.

Nesse sentido, o cristianismo é uma original reformulação do judaísmo, a pri-

meira religião monoteísta de importância na história, cujos principais

fundamentos se encontram na Bíblia. O monoteísmo judaico, acrescido da

interpretação cristã (sobretudo de Paulo, um judeu de cultura helenística e

cidadania romana, tão importante para o cristianismo como o próprio Cristo)

traria para o Ocidente, junto com a religião, um rol de elementos que

configurariam, junto à herança clássica, a identidade da civilização ocidental. A

partir daí, é impossível negar essa contribuição: pode-se contestá-la, pode-se

tentar superá-la, mas não se pode negá-la.

Vamos apresentar agora os principais elementos que seriam decisivos para o

desenvolvimento da filosofia na Idade Média.

■ Monoteísmo-o pensamento grego havia chegado a concebera unidade do

divino, nunca a sua unicidade. A concepção judaico-cristã do Deus único

15 Pertencente ao grupo étnico e lingüístico que abrange hebreus, assírios, aramaicos, fenícios e árabes.

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 78

enseja um novo conceito de transcendência: Deus é totalmente outro, que

não se confunde com as suas criaturas.

■ Criação exnihilo - os gregos jamais conseguiram uma resposta satisfatória

para o problema da origem dos seres. A concepção bíblica da criação "do

nada" daria uma solução para o antigo problema de como e por que o

múltiplo deriva do uno e o finito do infinito, além de conferir um valor positivo

ao mundo, já que ele é criado diretamente por Deus e não por um demiurgo

ou um poder intermediário.

■ Mandamentos e pecado original - os gregos entenderam a lei moral como

uma lei da natureza. A ideia de um Deus que outorga a lei é estranha à

filosofia grega. Com o advento de uma lei revelada por uma divindade, a

virtude torna-se obediência aos mandamentos de Deus. E a ideia de um

pecado original também é importante para a compreensão da mudança de

paradigma: o ser humano peca não apenas por ignorância da verdade, mas

também por fraqueza da vontade. Assim, o antigo "intelectualismo" grego é

subvertido pelo"voluntarismo"judaico-cristão.

■ Teleologia da história - a compreensão grega do tempo é a-histórica, como

o demonstram as diversas teorias do "eterno retorno". A concepção de história

da Bíblia, ao contrário, é teleológica, pois tem um princípio, um

desenvolvimento e um fim. Essa talvez tenha sido a principal herança judaico-

cristã para o Ocidente. Os conceitos de progresso e evolução, tão importantes

para o Ocidente durante os últimos séculos (ainda que questionados

recentemente), não seriam possíveis sem essa nova compreensão de história.

Entre outros, esses elementos configurariam um marco incontornável no pen-

samento ocidental. Depois da difusão da mensagem bíblica, portanto, só seriam possíveis estas posições: a) filosofar na fé, ou seja, crendo; b) filosofar procurando distinguiros âmbitos da"razão"e da"fé"; c) filosofar fora da fé e contra a fé, ou seja, não crendo. Não seria mais possível filosofar fora da fé, no sentido de filosofar como se a mensagem bíblica nunca tenha feito o seu ingresso na história. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 205)

A primeira fase da filosofia da era cristã transcorreu no campo da primeira

posição - filosofar na fé - e recebeu o nome de patrística.

A segunda fase se deu na esfera da segunda posição - a distinção dos âmbi-

tos da "razão" e da "fé"- e foi chamada de escolástica.

A terceira posição - filosofar fora e contra a fé - teve seu início já no crepús-

culo medieval, anunciando a filosofia da Idade Moderna.

Patrística: a razão a serviço da fé Patrística é o nome dado ao período do pensamento cristão que se seguiu à

redação do Novo Testamento (século I), e estende-se até o começo da esco-

lástica, no século VIII. Consiste na elaboração doutrinai das verdades de fé do

cristianismo e na sua defesa contra os ataques dos "pagãos" e as heresias. Foi

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De Aristóteles à Renascença

79 I

produzida pelos chamados Padres da Igreja, um conjunto de escritores cristãos,

não necessariamente padres ou sacerdotes (alguns foram inclusive leigos)16.

O núcleo da mensagem cristã, o Evangelho (isto é, o relato das palavras e das

obras de Jesus), não era um discurso filosófico, mas antes um saber soteriológico

(isto é, que se refere à salvação do homem), que dispensava, quanto ao essencial,

16

Padres tem aqui o sentido latino de "pais".

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Tópicos da Filosofia da Educação

80

o recurso a qualquer filosofia. No entanto, quando o cristianismo começou a

espraiar-se por terras de cultura helenística, logo foi alvo de ataques polêmicos,

vendo-se obrigado a esclarecer os próprios pressupostos.

Para tanto, ele se serviu da filosofia dominante, que na época era de matriz

sobretudo (neo)platônica. Esse processo já pode ser percebido na própria redação

do Novo Testamento. Se os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas (os chamados

Evangelhos sinóticos) são relativamente simples, o evangelho de João e os

escritos de Paulo já se servem de categorias gregas.

Portanto, os Padres da Igreja nem sempre foram hostis à filosofia, compreen-

dendo que a "sabedoria pagã"- a despeito de ser"pagã"- era obra da razão, que

por sua vez era obra de Deus. Da tentativa de utilizar a filosofia a serviço da fé

resulta a filosofia cristã, da qual a primeira manifestação é a patrística.

No entanto, esse "filosofar na fé" por um lado enriqueceu o objeto da filosofia,

com o aporte de novos conteúdos, e por outro foi eivado de problemas, do qual o

maior seria o atrelamento e a subordinação da filosofia à teologia. Doravante, por

cerca de mil anos aquela seria serva desta, perdendo a sua autonomia e sua

liberdade de pesquisa. Isso é um dado novo na história da filosofia. Na Grécia e

em Roma, a filosofia era relativamente autônoma dos poderes religiosos: ainda

que Sócrates tenha sido condenado por"impiedadade", ele o foi pelo poder po-

lítico de Atenas e não por um colégio de sacerdotes. Mais tarde, sobretudo após a

cristianização do Império (com Constantino eTeodósio17), tornou-se perigoso

pensar diferentemente da ortodoxia definida pelos dirigentes da Igreja. Não

foram poucas as fogueiras acesas para dissuadir os que teimavam em pensar de

outra maneira.

Além disso, é bom ter em mente que a patrística é contemporânea do último

período do pensamento greco-romano, com o qual teve um fecundo contato.

Como vimos, esse período deu grande ênfase à ética (como no estoicismo e no

epicurismo), com um forte viés místico-religioso (como no neoplatonismo). É

também contemporâneo do Império Romano, de quem testemunha o esplendor,

a decadência, a queda e a substituição como cimento social em uma Europa

traumatizada e fragmentada pela igreja romana.

Por causa da grandeza de Agostinho, costuma-se dividir a patrística em três

períodos: antes de Agostinho, a época de Agostinho e depois de Agostinho.

Patrística pré-agostiniana Subdivide-se, por sua vez, em três fases.

■ A primeira fase abarca o século II, compreendendo os padres apostólicos,

muito próximos temporalmente dos apóstolos; os padres apologetas e os

padres controversistas. Os apologetas interessam-se pela defesa racional da

^ Com o Edito de Milão (313), Constantino tornou o cristianismo religião lícita, acabando com dois séculos de sangrentas perseguições. Com o

Edito deTessalônica (380), Teodósio elevou o cristianismo à religião oficial do Império, colocando as demais religiões na ilegalidade.

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De Aristóteles à Renascença

81 I

fé cristã, ao passo que os apostólicos e os controversistas têm uma

importância mais interna. Os maiores representantes desse primeiro

momento foram Clemente de Roma (séc. I), Inácio de Antioquia (67-110),

Justino (103-167) e Irineu (130-202).

■ A segunda fase abarca o século III, destacando-se a escola de Alexandria, no

Egito, e os padres africanos, isto é, os padres latinos do norte da África. Foi o

tempo em que o pensamento cristão ganhou corpo e visibilidade no mundo

cultural. Enquanto os padres alexandrinos tiveram em boa estima o

pensamento helênico, os padres africanos olharam-no com suspeita. Entre os

primeiros ressaltam-se Clemente de Alexandria (150-215) e o grande

Orígenes (185-253). Entre os africanos, o maior nome éTertuliano (155/160-

230).

■ Por fim, a última fase do primeiro período se dá no século IV, época áurea da

patrística. Com as grandes heresias18 do período, os padres viram-se

obrigados a concentrar-se no elemento dogmático, deixando a filosofia

propriamente dita em segundo plano. A divisão da patrística em oriental

(grega) e ocidental (latina), já patente no século anterior com a polarização

entre alexandrinos e latinos, foi acentuada, o que foi corroborado pela

separação do Império Romano em oriental e ocidental. Os padres gregos

eram mais voltados para questões especulativas, teológicas; os latinos

dedicaram-se mais aos problemas morais, disciplinares, políticos. Entre os

primeiros despontam Atanásio (296-373), Gregório Nazianzeno (335-394),

Gregório de Nissa (330-390) e João Crisóstomo (349-407). Entre os últimos,

distinguem-se Ambrósio (340-397) e Jerônimo (343-420).

Patrística agostiniana O segundo período da patrística é marcado pela figura luminar de Santo

Agostinho, cujo pensamento reinou inconteste no Ocidente durante quase um

milênio. Aurélio Agostinho nasceu em 354, em Tagasta, na Numídia, província

romana do norte da África, filho de pai pagão e mãe cristã. Essa mãe era Santa

Mônica, que seria muito importante na conversão do seu filho. Jovem inquieto,

Agostinho entregou-se com afinco ao estudo de toda a ciência do seu tempo.

Chegou a ser brilhante professor de retórica em Cartago, Roma e Milão. Aderiu ao

maniqueísmo19 nos seus dias de estudante, mas, embebido de neoplatonismo,

converteu-se ao cristianismo por meio da pregação de Santo Ambrósio, fazendo-

se batizar em 387.

De volta à África, estabeleceu com alguns amigos, em Tagasta, uma comuni-

dade monástica. Em 391, foi ordenado sacerdote em Hipona, logo se tornando

18 Heresias são doutrinas consideradas como falsas pela Igreja. 19 Dualismo religioso que, difundido nos séculos III e IV, afirmava haver um conflito entre o reino da luz e o reino das sombras, sendo que a

matéria e a carne pertenciam à sombra.

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Tópicos da Filosofia da Educação

82

famoso por suas pregações. Notabilizou-se sobretudo pelo combate ao mani-

queísmo. Cinco anos depois, foi consagrado bispo dessa mesma diocese. Em

430, durante o cerco de Hipona pelos vândalos, veio a falecer o maior Padre da

igreja ocidental.

Santo Agostinho é autor de mais de 400 sermões, 270 cartas, muito asseme-

lhadas a tratados doutrinais, e 150 livros. Destacam-se, entre esses, Confissões,

em que narra a história de sua conversão, a primeira autobiografia da história; e

Cidade de Deus, escrito depois do saque de Roma pelos godos, ocorrido em 410

- nesse livro, ele argumenta que a cidade dos homens pode ser derruída, mas o

que conta é a cidade de Deus, que é fundada sobre alicerces eternos.

Patrística pós-agostiniana Depois de Agostinho, seu apogeu, a patrística decaiu juntamente com a cul-

tura. A lenta agonia do Império do Ocidente sob as arremetidas das tribos ger-

mânicas e mais tarde dos muçulmanos fez a Europa mergulhar em um período

de obscurantismo.

Mas a decadência da patrística também teve motivos internos: a aplicação da

filosofia à fé já não apresentava um desenvolvimento fecundo. No entanto, ainda

resplandecem alguns pensadores nesse melancólico crepúsculo: Boécio

(475/480-524), o "último dos romanos"; e Bento de Núrcia (480-543).

Se com a cristianização do Império Romano a Igreja tornou-se romana, com a

evangelização dos bárbaros ela se barbarizou: o esplendor do pensamento grego

e da administração romana pereceram nas cinzas dos saques e invasões. Até que

a poeira assentasse decorreram alguns séculos (do século VII ao X), aos quais é

realmente apropriada a designação com a qual erroneamente se tentou

apodartoda a Idade Média (476-1453): idade das trevas.

Escolástica: harmonia e tensão entre fé e razão A insegurança decorrente das sucessivas invasões aprofundou um processo já

iniciado no outono do Império Romano: a feudalização. A Europa se fragmentou

em numerosos territórios mais ou menos autônomos, que por sua vez

continuaram se pulverizando em numerosos condados, ducados e principados

cada vez menores. Somente pelo século XII, com uma certa estabilização das

correntes migratórias, estancou-se esse processo.

Então começaram a surgir as línguas nacionais, as cidades se repovoaram e se

constituiu uma nova classe (a burguesia) vivendo nos centros urbanos. Essa nova

classe surgiu a partir das trocas mercantis, ao contrário da nobreza e do

campesinato, que viviam da terra, com os nobres explorando a mão-de-obra

servil dos camponeses.

A Igreja não ficou imune a essas transformações: surgem as ordens mendi-

cantes (franciscanos e dominicanos), mais afinadas com as forças sociais e eco-

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De Aristóteles à Renascença

83 I

nômicas emergentes. Ao contrário dos mosteiros - comunidades sedentárias que

vivem do cultivo da terra e se dedicam à oração e ao trabalho manual - os frades

mendicantes exercem o seu apostolado nas cidades, nas novas rotas do

comércio, no magistério. Com efeito, desde o tempo de Carlos Magno (século

VIII), ressurgiam as escolas, as quais podiam ser monacais (anexas a um mos-

teiro), episcopais (anexas a uma catedral) ou palatinas (anexas à corte). A partir

do século XIII, a escola configura-se em universidade, que era, a princípio, uma

corporação que congregava mestres e alunos.

Logo, por meio de traduções - primeiramente do árabe e depois diretamente

do grego -, a civilização medieval redescobriu a sua herança clássica. Assim, era

natural que sob essas circunstâncias a ciência e a filosofia encontrassem um novo

e vigoroso estímulo, e das cinzas feudais começassem a brilhar as novas luzes

que pouco a pouco retiraram a sociedade de seu sono secular.

A filosofia desse período recebe o nome de escolástica justamente por ter se

originado nessas novas escolas. E mais que uma retomada dos estudos an-

teriores, feitos no tempo da patrística, assistia-se a um verdadeiro e inovador

despertar da filosofia. Se os Padres serviram-se da razão para dar razões à fé, os

filósofos escolásticos tomaram razão e fé como dois campos autônomos e sua

empreitada foi a de harmonizá-los.

Embora convencional como todas as divisões, os historiadores tendem a de-

marcar quatro fases na escolástica.

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 84

A escolástica primitiva Sendo uma fase mais preparatória, estendeu-se do fim da patrística até o

século IX e foi marcada por momentos de grande obscuridade cultural e anteci-

pações luminosas, como no chamado Renascimento Carolíngio (séc. VIII).

O maior representante desse período foi o monge irlandês João Escoto Eriú-

gena (morto em 877), que tenta conciliar o teísmo cristão com a teoria das ema-

nações neoplatônicas.

Primeira escolástica A segunda fase, ou a primeira escolástica propriamente dita, vai do século IX

ao século XII, e essa é a época das Cruzadas, um período de vigorosa centra-

lização do poder eclesiástico e da primeira expansão das cidades medievais. Na

filosofia, os chamados dialéticos proporcionaram um importante incremento,

dividindo a cena com os denominados místicos.

Os dialéticos, assim como os místicos, partem da fé; mas enquanto os místi-

cos hostilizam a razão, os dialéticos servem-se dela para penetrar os mistérios.

Entre os maiores representantes da corrente mística, encontramos Pedro

Damião (1007-1072) e Bernardo de Claraval (1090-1153).

Entre os dialéticos, por sua vez, destacam-se Santo Anselmo de Aosta (1033-

1109), o primeiro a tentar demonstrar racionalmente a existência de Deus; e

Pedro Abelardo (1097-1142), famoso por sua aventura histórica de amor com

Heloísa - o que lhe acarretou trágicas conseqüências - e um dos pioneiros na

assimilação do pensamento de Aristóteles.

Escolástica áurea Corresponde ao século XIII, apogeu da escolástica e do pensamento filosófico

cristão, época dos altos e sofisticados voos especulativos e das grandes sínteses

doutrinárias. Essa fase é marcada e preparada sobretudo pela redes- coberta de

Aristóteles no Ocidente. Ao contrário das ideias de Platão, o pensamento de

Aristóteles caiu no esquecimento por quase 1 500 anos. O Liceu, a escola

fundada por Aristóteles, não desfrutou da mesma glória que a Academia de

Platão, nem o seu sistema gozou de um reavivamento semelhante ao

neoplatonismo.

No século XIII, a filosofia aristotélica foi recuperada graças aos árabes, cuja

civilização vivia então um momento de esplendor, especialmente na Espanha

moura (isto é, a Espanha sob domínio muçulmano). Pensadores árabes como

Avicena (980-1037) e Averróis (1126-1198), aos quais se deve acrescentar o

judeu Maimô- nides (1135-1204), foram buscar em Aristóteles as novas

categorias que iriam revolucionar o pensamento e a ciência ocidentais. Por meio

deles, o pensamento de Aristóteles experimentou uma reentrada - dessa vez

triunfante - no Ocidente.

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De Aristóteles à Renascença

85 I

Coube a Tomás de Aquino, seguindo as pegadas de seu mestre e confrade

Alberto Magno (1207-1280), o empreendimento da reformulação em bases aris-

totélicas de todo o edifício da fé cristã. Descendente de nobre estirpe, Tomás de

Aquino nasceu em Roccasseca, Nápoles, em 1225. Sua família queria que fosse

monge beneditino, mas, contrariando a vontade familiar, ele entrou na ordem dos

dominicanos. Estudou nas universidades de Colônia e Paris, na qual recebeu seu

grau acadêmico e mais tarde veio a lecionar por um longo tempo. Morreu aos 49

anos, em 1274, no mosteiro de Fossanova, entre Nápoles e Roma, quando se

dirigia a Lião para participar de um concilio a pedido do papa.

Na Summa Theologiae e na Summa Contra Gentiles, seus maiores livros, siste-

matizou o conhecimento teológico e filosófico de seu tempo, ancorado no pos-

tulado de que a teologia (fundada na fé) e a filosofia (baseada na razão) amal-

gamam-se em uma síntese definitiva, unidas em sua orientação comum rumo a

Deus. Para ele, a filosofia não pode ser substituída pela teologia, já que as duas

abarcam campos próprios, mas não há contradição entre elas: "Com base no

sistema aristotélico, é conquistada finalmente a consciência do que é conheci-

mento racional, ciência: um lógico procedimento de princípios evidentes para

conclusões inteligíveis"(PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 250).

Tornaram-se célebres as cinco vias de São Tomás para a demonstração racio-

nal da existência de Deus. Dessas cinco, precisamos reter, para a nossa

discussão, as duas primeiras, segundo as quais Deus seria o motor primeiro

(primeira via) e a causa incausada (segunda via).

Chamado de tomismo, o pensamento de Tomás de Aquino foi a princípio

recebido com reservas pelo seu aristotelismo, mas depois viria a ser a filosofia

oficial da Igreja Católica até o Concilio Vaticano II (1962-1965). Afirma-se,

ademais, como o início do pensamento moderno, enquanto a filosofia é

compreendida como uma construção autônoma e crítica da razão humana.

E o século da escolástica áurea ainda é palco de outras prestigiosas figuras: o

italiano Boaventura (1221-1274) e o escocês Duns Scoto (1265-1308). Ao

contrário

do aristotelismo de São Tomás, esses dois franciscanos servem-se do agostianis-

mo de extração platônica. Contra o concordismo tomista, Scoto propugna a clara

separação entre ao âmbitos da filosofia e da teologia, já que as duas tem

metodologias e objetos distintos.

No entanto, quem exerceria maior influência sobre o desenvolvimento ulte-

rior da filosofia e da ciência seria outro franciscano das ilhas britânicas - Roger

Bacon (1210-1294), um aristotélico. Para ele, são três as fontes do saber: a au-

toridade, a razão e a experiência. A primeira nos dá a fé, mas não a ciência; a

segunda, a ciência que não é eficaz sem a experiência. A ciência experimental,

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Tópicos da Filosofia da Educação

8 '

9

86

portanto, é que constitui a fonte mais sólida da certeza.

A escolástica tardia O século XIV caracteriza-se pela separação definitiva entre a filosofia e a

teologia, a razão e a fé. O inglês Guilherme de Ockham (1285-1347), outro

franciscano, é um dos nomes que brilham nessa fase. Para ele, só o saber

sensível é verdadeiro, os conceitos só existem no pensamento e o universal não

tem realidade. Com Ockham, foi dado mais um passo rumo ao empirismo radical

e a ciência moderna. Além disso, ele defendeu a separação entre os poderes

temporal e religioso, aliando-se ao imperador contra o papa. Não por acaso, teve

sérios problemas com a Inquisição20, o que já tinha ocorrido com o seu

conterrâneo Roger Bacon. O castelo filosófico medieval, que subordinava a razão

à fé (com a patrística e os escolásticos agostinianos) ou que as harmonizava

admiravelmente (com São Tomás de Aquino), estava prestes a ruir. Com Ockham, a escolástica encontra o seu epílogo: no século XIV, depois dele, não surgiriam mais personalidades nem grandes sistemas.[...] Diante do tomismo e do escotismo, que representavam a via antiqua, o ocamismo se impõe como a via moderna, enquanto é programatica- mente crítico em relação à tradição escolástica. (REALI; ANTISERI, 2003, p. 663)

Mas a escolástica ainda conheceria um florescimento na Península Ibérica, nos

séculos XVI e XVII, por conta dos dominicanos e dos jesuítas, orientando-se pela

nova interpretação do tomismo que se fez na Itália. Os teólogos de Salamanca, na

Espanha, juntamente com os jesuítas de Coimbra, em Portugal, defenderam uma

síntese da escolástica tradicional com as novas tendências de pensamento da

época. Mas então já estávamos no terreno dos epígonos21 e há muito a esco-

lástica já tinha deixado de estar na vanguarda do pensamento ocidental.

Orgão da Igreja Católica que tinha a finalidade de investigar e julgar possíveis hereges e feiticeiros, acusados de serem contra o catolicismo.

Em geral os condenados eram levados à fogueira para serem queimados até a morte. Em geral considera-se que o epígono é um mero imitador de um artista realmente criativo ou de um grande pensador.

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De Aristóteles à Renascença

87 I

A Renascença e o divórcio entre razão e fé É errôneo situar a Renascença - ou Renascimento - como uma etapa posterior à

Idade Média: na verdade, a Renascença começa nos últimos anos da Idade Média -

sendo contemporânea da última escolástica - e se prolonga pelo começo da Idade

Moderna (1453-1789).

Embora não seja relevante do ponto de vista filosófico - o primeiro grande

filósofo moderno será René Descartes (1596-1650) -, essa época prepara o hori-

zonte histórico no qual irão despontar os representantes da modernidade.

Assim, a partir do século XIV, o mundo medieval - que era teocêntrico, co-

letivista, místico - começa a se desintegrar por uma série de fatores. A unidade

religiosa, característica da cristandade, foi rompida pelo grande cisma do Ocidente

(1378-1417)22 e, um século depois, pela Reforma protestante (1517), que deu

origem às igrejas nacionais na Europa setentrional.

A Reforma tem como premissa a livre interpretação das Escrituras (a Bíblia) e o

acesso direto do fiel a Deus, sem a itermediação das instâncias eclesiásticas - o que

contribui para o advento do individualismo moderno.

No plano teológico e filosófico, a crise se manifestou no antagonismo entre a

via antiqua (representada pelo tomismo e o agostianismo) e a via moderna (derivada

de Guilherme de Ockham). Tendo sido mais uma revolução que uma reforma, essa

via moderna constitui a negação radical de toda a filosofia anterior. Deus deixa de

ser racional, e a racionalidade, que seria um limite à onipotência divina, torna-se

um atributo exclusivo do ser humano. Ora, se Deus não é racional, não pode ser

apreendido pela razão humana. Desligando-se de um deus in- cognoscível, a razão

volta-se para o que pode conhecer - a natureza e o próprio ser humano.

Ao mesmo tempo, os novos descobrimentos científicos propiciaram as grandes

navegações. Descobriu-se que a Terra é redonda e, além disso, com Copérni- co

(1473-1543) e Galileu (1564-1642), que ela não é o centro do universo, e sim,

apenas um planeta em órbita em torno do Sol (isto é, descobriu-se o heliocentris-

mo). A invenção da imprensa de tipos móveis por Gutemberg (1456), por sua vez,

barateou o custo do livro, ajudando a propagar os novos conhecimentos. Que seria

da Reforma de Martinho Lutero (1483-1546) sem a possibilidade de uma

divulgação mais rápida e de preços mais acessíveis de sua tradução da Bíblia?

Durante esse cisma, a Igreja Católica chegou a ter três papas simultaneamente, cada um exigindo a obediência dos fiéis. Anteriormente, em 1054,

já havia ocorrido o cisma da Igreja oriental, separando as igrejas latina e ortodoxa.

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Tópicos da Filosofia da Educação

88

O fato de o império germânico (que encontrava a sua justificação na Igreja) ter

se desintegrado e a emergência de uma nova classe social (a burguesia, que

necessitava da ciência para conhecer e dominar o mundo) contribuíram para a

decomposição das estruturas feudais e para a formação das novas nações, que

mais tarde desenharam o mapa da Europa moderna.

São duas as principais características da Renascença: o humanismo e o

naturalismo.

O humanismo se manifesta a partir da recuperação e do estudo de obras da

Antiguidade clássica, no florescimento das letras e das artes.

Já o naturalismo tem manifestação no empenho de conhecer a natureza pela

ciência e de viver segundo a natureza, o que leva a uma ética e a um direito natural.

Os grandes artistas dessa época são Dante (1265-1321), Giotto (1266-1337),

Petrarca (1304-1374), Boccaccio (1313-1375), Michelangelo (1475-1564) e o

nosso Luís de Camões (1524-1580). Entre os cientistas, além dos já citados, en-

contramos Vesálio (1514-1564), que alargou os conhecimentos sobre anatomia, e

Gilbert (1544-1603), que desenvolveu pesquisas sobre o magnetismo e a eletri-

cidade. O genial Leonardo da Vinci (1452-1519), figura paradigmática dessa era de

ouro, transita entre os dois campos - arte e ciência.

Ao contrário do período anterior, o platonismo passou a ser revalorizado, junto

com outras escolas da filosofia helênica, como o estoicismo, o ceticismo e o

epicurismo - este último, bastante próximo do espírito mundano da Renascença. O

próprio aristotelismo dessa época é desvestido de sua roupagem cristã tomista,

dividindo-se em duas correntes - uma sendo naturalista e outra pante- ísta, com

raízes em Averróis.

Grandes nomes dessa época são Nicolau de Cusa (1401-1464), que tentou a

síntese do cristianismo e do neoplatonismo, resvalando no panteísmo; Maquia- vel

(1469-1527), autor do célebre O Príncipe, para quem os interesses do Estado estão

acima dos interesses do indivíduo e dos valores éticos e religiosos11;Thomas Morus

(1478-1535), cujo livro Utopia descreve uma sociedade ideal inspirada na República

platônica; Erasmo de Roterdã (1467-1536), autor do famoso Elogio da Loucura, em

que ataca a hipocrisia da sociedade e da Igreja.

Mas talvez o autor mais característico desse período tenha sido Giordano Bruno

(1548-1600). Para este dominicano que abandonou o hábito e teve uma

vida nômade e atribulada o universo é infinito, Deus é a alma universal do mundo e

todas as coisas materiais são manifestações desse princípio único. Mártir da

liberdade de pensamento, morreu queimado na fogueira pela Inquisição. O filósofo

holandês Baruch Espinosa foi vivamente influenciado por Giordano Bruno.

E assim, com a Renascença, consuma-se o divórcio entre teologia e filosofia,

razão e fé. A partir de então, cada uma delas irá seguir seu próprio caminho, rara-

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De Aristóteles à Renascença

89 I

mente voltando a encontrar-se com a outra, como em Kierkegaard (1813-1855). A

filosofia, por sua vez, tendo esgotado a herança platônica e aristotélica, buscará

novas bases.

Textos complementares

Que é, pois, o tempo? (AGOSTINHO, 1977, p. 303-304)

Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o

poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por

palavras, o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas

conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos.

Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por

conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a

quem me fizera pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de

contestação que, se nada sobrevivesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada

houvesse, não existia o tempo presente.

De que modo existem aqueles dois tempos - o passado e o futuro -, se o

passado já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse

sempre presente, e não passasse para o pretérito, como podemos afirmar que ele

existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de existir?

Pode-se provar a existência de Deus (AQUINO, 2008)

Por cinco vias pode-se provar a existência de Deus. A primeira e mais manifesta

é a procedente do movimento; pois é certo e verificado pelos sentidos, que alguns

seres são movidos neste mundo. Ora, todo o movido por outro o

é. Porque nada é movido senão enquanto potencial, relativamente àquilo a que é

movido, e um ser move enquanto em ato. Pois mover não é senão levar alguma

coisa da potência ao ato; assim, o cálido atual, como o fogo, torna a madeira cálido

potencial, em cálido atual, e dessa maneira, a move e altera. Ora, não é possível

uma coisa estar em ato e potência, no mesmo ponto de vista, mas só em pontos de

vista diversos; pois o cálido atual não pode simultaneamente ser cálido potencial,

mas é frio em potência. Logo, é impossível uma coisa ser motora e movida ou

mover-se a si própria, no mesmo ponto de vista e do mesmo modo, pois tudo o

que é movido há de sê-lo por outro. Se portanto, o motor também se move, é

necessário seja movido por outro, e este, por outro. Ora, não se pode assim

proceder até o infinito, porque não haveria nenhum primeiro motor e, por

conseqüência, outro qualquer; pois, os motores segundos não movem, senão

movidos pelo primeiro, como não move o báculo sem ser movido pela mão. Logo, é

necessário chegar a um primeiro motor, de nenhum outro movido, ao qual todos

dão o nome de Deus.

Da causa, princípio e uno (BRUNO, 1964, p. 86)

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 90

O universo, pois, é uno, infinito, imóvel. Una é, digo, a absoluta possibilidade,

uno o ato, uno a forma ou a alma, una a matéria ou o corpo, una a coisa, uno o ser,

uno o máximo e ótimo; o qual não poderia estar contido em outra coisa, e por isso,

sem fim nem termo; portanto, infinito e ilimitado, e, em conseqüência, imóvel. Não

se move com relação a seu lugar, pois não há fora dele nada aonde possa

transladar-se, já que é o todo. Não se cria a si mesmo porque não há outro ser que

ele possa desejar nem querer, tendo em conta que ele possui todo o ser. Não se

corrompe, pois, não há nenhuma outra coisa em que possa transmutar-se,

porquanto ele é todas as coisas. Não pode aumentar nem diminuir, porquanto é

infinito, e assim como não cabe acrescentar-lhe nada, assim também não se lhe

pode tirar nada, pois o infinito não tem partes proporcionais. Não pode ser alterado

com outra disposição, pois nada há de exterior a ele de que possa padecer uma

afeição qualquer. De resto, por compreender em seu próprio ser todas as oposições

em unidade e harmonia, e por não poder ter inclinação alguma para outro ser novo,

ou por este ou aquele modo de ser, não está sujeito a mutação em qualidade

alguma, nem pode possuir nada diverso ou contrário que o

altere, pois nele tudo é concorde. Não é matéria, pois carece de forma e não pode

ser configurado; carece de limite e não pode ser limitado, não é forma, porque não

informa nem configura nada, porquanto é tudo, máximo, uno e universal. Nem é

mensurável nem é grandeza. Não se contém a si mesmo, pois não é maior que si

mesmo. Não está contido em si mesmo, pois não é menor que si mesmo. Não se

iguala a si mesmo, pois não é este e aquele, mas um só e o mesmo. Sendo um só e

o mesmo, não tem este e aquele ser, e porque não tem este e aquele ser, não tem

também esta e aquela parte e, pois, não tendo tais partes, não é composto. É termo

de tal sorte que não é termo; é forma de modo que não é forma; é matéria de

modo que não é matéria; é de tal modo alma que não é alma; porque é

indistintamente o todo e portanto, uno: o universo é uno.

Atividades 1. Identifique o período da história da filosofia a que pertencem os textos auxi-

liares de Santo Agostinho, Tomás de Aquino e Giordano Bruno, dissertando

sobre suas semelhanças e diferenças.2. Quanto à filosofia do período helenístico, assinale V (verdadeiro) ou F (falso).

( ) Diógenes, o Cão, que vivia em um barril, é o maior representante da filosofia

estoica, segundo a qual os homens deviam viver do modo mais natural

possível.

( ) A filosofia do período helenístico volta-se para questões metafísicas,

tornando-se predominantemente especulativa. ( ) Epicuristas e estoicos dividem a filosofia em lógica, física e ética.

( ) A ataraxia (imperturbabilidade) era um dos principais ideais perseguidos pelas

correntes filosóficas helenísticas.

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De Aristóteles à Renascença

91 I

( ) O imperador Marco Aurélio foi o maior epicurista romano.

3. A seguir, enumeramos uma série de características de correntes filosóficas.

Quais delas pertencem à patrística (P), à escolástica (E) ou à filosofia produzi-

da durante a Renascença (R)? a) Foi produzida pelos chamados Padres da Igreja. ( ) b) Preparou o caminho para a filosofia moderna. ( )

c) Seu conteúdo é cristão e sua estrutura filosófica basicamente (neo) platônica. (

) d) Subordinou a razão à fé. ( )

e) Recebeu um forte incremento da redescoberta dos escritos de Aristóteles. ( )

f) Entre seus expoentes encontramos João Crisóstomo, Orígenes, Clemente de

Alexandria eTertuliano. ( )

g) São Tomás de Aquino foi o seu mais luminoso nome. ( )

h) É a época que marca o divórcio entre razão e fé. ( )

i) Tentou harmonizar razão e fé. ( )

j) Entre seus representantes estão Duns Scoto, Santo Anselmo de Aosta, Pedro

Abelardo e São Boaventura. ( )

k) Foi dinamizada pelos grandes descobrimentos científicos. ( )

I) Santo Agostinho é o seu maior nome. ( )

m) Thomas Morus pertenceu a esse período. ( )

n) Encontra o seu epílogo com Guilherme de Ockham. ( )

o) Teve suas origens nas escolas e universidades medievais. ( )

p) Boécioe Bento de Núrcia foram uns de seus últimos representantes. ( )

q) Giordano Bruno foi um de seus maiores representantes. ( )

r) Tomou razão e fé como dois campos autônomos. ( )

s) O aristotelismo dessa época foi desvestido de sua roupagem cristã tomista. ( )

t) Foi contemporânea do Império Romano, de quem testemunhou o esplendor, a

decadência e a queda. ( )

Para produzir filosofia Ao contrário do que previram vários filósofos da modernidade, em nosso

tempo continuam circulando inúmeros discursos religiosos. Na sua opinião, eles

se servem do instrumental da razão para se justificarem?

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Espinosa: uma filosofia da liberdade O homem livre, que vive entre os ignorantes, procura, quanto lhe é possível, evitar os seus

favores. Baruch Espinosa

A filosofia moderna: entre razão e experiência

O terreno já fora limpo pela filosofia renascentista, que separara para

sempre os campos da razão e da fé, e assim os tempos estavam maduros

para o surgimento de uma nova filosofia, não apenas mais uma releitura ou

atualização das correntes da filosofia clássica. Ao contrário da religiosa e

dogmática filosofia medieval, produzida por clérigos submetidos à autoridade

da Igreja, a filosofia que se anunciava era profana, crítica, produzida por

leigos que procuram pensar não conforme o critério da autoridade, mas de

acordo com as exigências da razão e do conhecimento científico. Portanto, a

tarefa que se impunha era repensar radicalmente os fundamentos do saber:

se não podemos mais nos pautar nos argumentos de autoridade - seja esta a

Igreja (para os católicos) ou a Bíblia (para os protestantes) -, em que devemos

então nos apoiar para a construção do conhecimento?

Duas respostas foram aventadas, duas soluções aparentemente anta-

gônicas: a razão e a experiência, que deram origem, cada qual, às duas

principais correntes do pensamento moderno - o racionalismo, de matriz

francesa, e o empirismo, de molde anglo-saxão. Seus pais são, respectiva-

mente, René Descartes (1596-1649) e Francis Bacon (1561-1626).

O primeiro - considerado o verdadeiro fundador da filosofia moderna -

parte da dúvida metódica, que põe em cheque as supostas certezas tanto do

conhecimento sensível quanto do conhecimento intelectual. Trata-se de

encontrar uma certeza que resista à dúvida e permita a reconstrução do

edifício do saber. Ao duvidar de tudo, Descartes constata que,

duvidando, pensa; e, pensando, existe. Cogito ergo sum ("penso, logo existo") será,

portanto, a pedra angular da sua filosofia. Assim, ocorre um deslocamento

radical na estrutura do pensamento ocidental, com o fundamento da certeza

transferindo-se do objeto para o sujeito, do ser para a consciência, da realidade

para a consciência.

Do outro lado do canal da Mancha, na Inglaterra, uma revolução semelhante

se processava, mas em outros moldes. Na esteira de Roger Bacon (1210-1294) e

Guilherme de Ockham (1285-1347), Francis Bacon lançava as bases do

empirismo moderno. Para ele, a descoberta de fatos verdadeiros não depende do

raciocínio silogístico\ mas antes da observação e da experimentação reguladas

pelo raciocínio indutivo, o qual se pauta por transpor em linguagem matemática

Page 71: 98570508 Topicos de Filosofia Da Educacao Online

Espinosa: uma filosofia da liberdade

os fatos empíricos descritos. Somente assim é possível passar das sensações

particulares para os axiomas gerais - por meio de axiomas intermediários. O

conhecimento verdadeiro seria nada mais que o resultado da concordância e da

variação dos fenômenos, os quais, caso devidamente observados, revelariam

suas causas reais.

O empirismo viria a ser extremamente fecundo no ambiente anglo-saxão.

Seus principais nomes são John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-

1753) e David Hume (1711-1776).

Por outro lado, o cartesianismo - como também é chamado o racionalismo,

derivado de Cartesius, nome latino de Descartes - iria nos legar, na França, Nico-

las de Malebranche (1636-1715) e, na Holanda, o judeu Baruch Espinosa.

Uma vida em diáspora No Ocidente cristão, os judeus foram uma das etnias que mais sofreram

perseguições sistemáticas. De certa forma, os judeus são e não são ocidentais, ao

contrário dos muçulmanos, que, a despeito de sua próspera civilização moura na

Espanha, são sempre excluídos para a categoria do Oriente. Os judeus são

ocidentais porque desde a diáspora23 estão - ou pelo menos boa parte deles - no

Ocidente. Sua herança e suas contribuições culturais são decisivas para a

configuração da identidade ocidental. A religião do Ocidente - o cristianismo -

tem sua origem em um humilde carpinteiro judeu do primeiro século. Mas

também não são plenamente ocidentais, pois não são cristãos e sempre se

recusaram a serem assimilados, tanto que permaneceram sempre como povo e

nação distintos - mesmo não possuindo um território dispersos entre os povos e

nações da Terra, teimosamente aferrados aos seus costumes e práticas, o que

desencadeou desde o preconceito mais comezinho até campanhas sistemáticas

de extermínio, das quais o Holocausto, na Segunda Guerra Mundial, foi o mais

trágico.

A primeira diáspora iniciou em 586 a.C., quando o reino de Judá foi invadido

por Nabucodonosor e sua população foi deportada para a Babilônia. Apesar da

libertação em 539 a.C., apenas parte dos judeus retornou ao seu território

- a maioria optou por permanecer na Babilônia e alguns migraram para vários

países do Oriente.

O segundo momento da diáspora aconteceu no ano 70 d.C., com a destruição

de Jerusalém pelos romanos (em 135, aconteceria ainda outro cerco e destruição

da cidade). Proibidos de viver na Palestina, os judeus espalharam-se pelo Império

Romano.

23 Diáspora vem do grego e significa "dispersão" o deslocamento incentivado ou forçado de grandes massas populacionais originárias de uma

zona determinada para várias áreas de acolhimento distintas. É usada sobretudo para se referir à dispersão dos judeus no mundo antigo.

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Espinosa: uma filosofia da liberdade

Quando da expansão do Islã, nos séculos VIl-VIII, parte dos judeus do norte

da África se estabeleceu também na Península Ibérica, desfrutando de

significativa liberdade sob o domínio mouro.

Como o nome sugere, os antepassados de Espinosa viviam em Espinosa de

los Monteros, um pequeno vilarejo no norte da Espanha. Com a conquista de

Granada, último bastião mouro, em 1492, os muçulmanos foram expulsos da

península. Por sua vez, o decreto de Alhambra, do mesmo ano, proibiu aos

judeus a residência no país - salvo sob a condição de se batizarem e aderirem ao

catolicismo. Então uma grande leva de judeus emigrou para Portugal, que

oferecia asilo aos desterrados. Lá se fixou a família Espinosa, ainda em 1492. Mas

em 1498, por conta do casamento do rei português com a princesa espanhola, a

Coroa castelhana impôs a mesma condição a Portugal. Em conseqüência, a

família Espinosa não viu outra alternativa a não ser a conversão. Lá, na pequena

cidade portuguesa de Vidigueira, nas proximidades de Beja, nasceu Miguel de

Espinosa, pai do filósofo. A condição de cristãos-novos - ou marranos, como eram

chamados24 - era extremamente perigosa em decorrência do zelo com que a

Inquisição investigava a autenticidade de sua conversão. Por esse motivo, quando

Miguel era ainda criança os Espinosas se mudaram para Nantes, no noroeste da

França, onde, por conta de um edito de tolerância religiosa, vivia uma colônia

marrana.

Todavia, essa paz não duraria muito tempo: em 1615, todos os marranos

foram expulsos da França. De lá, a família seguiu para a Holanda, onde os judeus

gozavam de uma relativa liberdade religiosa. Talvez porque não fosse mais

prudente

24 Marrano,do árabe m/iorram="proibido" é uma designação injuriosa outro ra dada aos judeu se mouros obrigados a se converterem. Em

espanhol tem o sentido de "porco" (tanto o judaísmo como o islamismo proíbem o consumo de carne suína, pois o porco é considerado um

animal impuro).

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Tópicos da Filosofia da Educação

4

101

permanecer católico em um país calvinista e em guerra contra a católica Espanha,

Miguel retornou ao judaísmo de seus pais. Com o tempo, tornou-se um

abastado comerciante.

Em 24 de novembro de 1632 nasceu o filho que celebrizaria o nome da

família: Baruch em hebraico, Benedictus em latim, conforme ele assinaria em seus

livros.

Uma vida de filósofo Baruch era um jovem judeu de família abastada e em sua educação incluiu-se

o estudo do hebraico, da Bíblia, do Talmudee dos filósofos medievais judeus. Ele

se impressionou com Maimônides (1138-1204), que identificava Deus e o uni-

verso; com Levi ben Gerson (1288-1344), que ensinava a eternidade do mundo;

e com Hasdai Cresças (1340-1412), para quem a totalidade da matéria

correspondia ao corpo de Deus.

É igualmente importante a formação que Espinosa recebeu de Francis van den

Enden, um erudito egresso da Companhia de Jesus, com quem aprendeu as

línguas clássicas e as ciências naturais e por quem foi introduzido na filosofia de

Descartes. Sem dúvida Espinosa deve a Van den Enden o seu ótimo domínio do

latim, língua em que escreveria praticamente toda a sua obra.

Como matemático, Espinosa realizou cálculos sobre o arco-íris e ocupou-se

do recém-descoberto cálculo de probabilidades. Além disso, como parte dos

estudos de física, fabricava lentes ópticas, sendo provável que tenha recebido

muitas encomendas de seus amigos.

Enfim, sua curiosidade e sua inquietude o fizeram absorver o que havia de

mais novo e complexo na cultura científica e filosófica de seu tempo.

Todavia, o jovem estudante não tardaria a levantar suspeitas quanto à

ortodoxia de sua fé na comunidade judaica local. É verdade que seu ceticismo

não era estranho aos jovens das famílias marranas reconvertidas ao judaísmo. Se

entre os refugiados de Amsterdã não poucos desejavam reatar os laços com a

religião de seus ancestrais, havia também aqueles que hesitavam, preferindo

permanecer católicos. Outros ainda, ao retornarem ao judaísmo, já não

encontravam a tradição sefardita25da Península Ibérica.

Um exemplo é o caso de Uriel da Costa, que antes de voltar ao judaísmo che-

gara a ordenar-se sacerdote católico. Depois de escrever um tratado atacando a

existência de uma outra vida - o que de certa forma não era tão contrário ao ju-

daísmo primitivo foi excomungado pela sinagoga, temerosa de desagradar o

Estado calvinista que a acolhia. Abalado, o rapaz suicidou-se com um tiro. Baruch

Espinosa, que tinha oito anos na ocasião e assistira ao rito do herem26, mal sabia

Sefarditas ou sefaraditas (do hebraico sefardi, plural sefardim) são os judeus originários da Península Ibérica, que eles chamavam de Sefarad. 26 Herem, derivado do hebraico/ioram,significa"arrancarfora""separar""amaldiçoar" e indica que aquilo que foi amaldiçoado ou

excluído, seja uma pessoa ou objeto, passa a ser proibido para uso ou contato. É traduzido por"anátema"ou "excomunhão".

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Tópicos da Filosofia da Educação

102

que uma sorte semelhante - a excomunhão - o aguardava.

Com efeito, a leitura de alguns comentadores judaicos da Bíblia leva-o a

duvidar, entre outras coisas, da unidade autoral do Pentateuco. Percebe também

discrepân- cias na cronologia bíblica. Em Maimônides, que tentara harmonizar as

Escrituras e o aristotelismo, o jovem encontra sua maior inspiração humanista e

antiortodoxa.

Outro que exerceria grande influência sobre ele é o seu contemporâneo Juan

de Prado, um médico que questionava, entre outras coisas, o Deus pessoal da

Bíblia, substituindo-o por uma divindade panteísta que se manifestava nas leis

naturais.

Além disso, para o ceticismo de Espinosa foram relevantes as disputas teo-

lógicas que dividiam a comunidade de Amsterdã entre os humanistas e liberais

sefarditas de um lado e os dogmáticos e intransigentes asquenazitas27 do outro.

O espírito desse segundo grupo foi aos poucos dominando a comunidade,

constrangendo os judeus ibéricos, que em geral eram prósperos comerciantes e

viviam integrados à sociedade local. O certo é que o jovem Espinosa, em meio a

tantos conflitos, partiu em busca de seu próprio caminho.

Entretanto, algumas declarações suas - como a de que na Bíblia não havia

nada que afirmasse a inexistência de um corpo físico de Deus - levaram a sina-

goga a convocá-lo para prestar esclarecimentos. De maneira arrogante, ele de-

clarou que já havia desejado romper com a congregação, mas ainda não o fizera

para evitar um escândalo. A sinagoga não teve alternativa senão aplicar-lhe o

herem em 27 de julho de 1656. Até que ponto chegou a rejeição a Espinosa em

setores da comunidade é demonstrado por uma tentativa de assassinato de que

ele foi vítima por essa época.

A excomunhão acarretou ainda outras conseqüências. Baruch Espinosa foi

obrigado a abandonar os negócios da família, uma empresa de importação e ex-

portação herdada de seu pai, falecido dois anos antes, que ele dirigia junto com

um irmão. Seus biógrafos acreditam que ele tenha se dedicado, então, à medi-

cina, pois seus escritos testemunham profundos conhecimentos médicos e sua

biblioteca continha as principais obras de medicina de seu tempo. Além disso, a

®Asquenazitas (do hebraico ashkenazi, plural ashkenazim) são os judeus oriundos da Europa central e oriental, onde era forte a influência da

Cabala e de correntes místicas heterodoxas.

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Espinosa: uma filosofia da liberdade

103

herança paterna foi motivo de contenda entre ele e uma meia-irmã. Apesar de ter

vencido a causa na justiça, Baruch deixou praticamente tudo para essa irmã. E

assim se precipitou o definitivo afastamento entre ele e sua família.

Depois da ruptura Depois da ruptura com a sinagoga e com a família, Espinosa ligou-se a uma

irmandade ecumênica cujos membros, muitos dos quais eruditos, eram oriundos

das mais diversas confissões religiosas. Conhecidos como colegiantes, eles

praticavam uma leitura não ortodoxa da Bíblia. Muitos deles viriam a se tornar não

só amigos como benfeitores do filósofo, ajudando-o nas dificuldades e na

publicação de suas obras.

Precisando de tranqüilidade para se dedicar ao estudo e à reflexão, Espinosa

mudou-se para a pequena aldeia de Rijnsburg, nas imediações de Leyden, que era

o centro dos colegiantes.

Mais tarde, entre 1663 e 1670, viveu em Voorburg, outra pacata localidade,

dessa vez nas proximidades da sede do Estado holandês, a cidade de Haia, onde

aumentam seus contatos políticos, como com Johan de Witt. Em Voorburg Espinosa

trabalhou no seu TractatusTheologico-Politicus, que publicou em 1670. Seguindo a

cautela então em voga, essa foi uma publicação anônima, sem o crédito da autoria.

Porém, o futuro político da Holanda estava em jogo. Guilherme III, príncipe de

Orange, tratava de se apoderar do Estado. Isso seria o fim de uma república re-

lativamente progressista em uma Europa absolutista e Espinosa preocupava-se

com essa situação: para ele, é imprescindível a participação do povo no Estado.

Suas ideias, portanto, favoreciam os partidários da república, então sob o governo

de seu amigo Johan de Witt, e contrariavam as pretensões de Guilherme de Orange

que, por sua vez, contava com o apoio dos calvinistas mais ortodoxos.

Em 1670, Espinosa mudou-se para Haia, indo morarem um bairro de intelec-

tuais e artistas. Ao mesmo tempo, aumentavam os ataques dos calvinistas a sua

obra. De Witt foi assassinado em uma revolta popular, após a invasão francesa, em

1672. Dois anos depois, a Assembleia dos Estados Gerais - agora sob o comando

do príncipe de Orange, aliado da ortodoxia calvinista - proibiu o Tracta- tus

juntamente com outros livros considerados danosos à religião do Estado. A

atmosfera era tensa.

Mesmo assim, Espinosa recusou a cátedra de filosofia que lhe foi oferecida pela

Universidade de Heidelberg, na Alemanha.

Todavia, a despeito das dificuldades - inclusive de saúde -, ele não deixou de

escrever. Começou a redação de uma gramática hebraica e retomou o trabalho em

sua Ética, obra que não conseguiu publicar por causa da pressão da Igreja

calvinista. O que foi possível foi fazer circularem algumas cópias manuscritas entre

os seus amigos.

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Tópicos da Filosofia da Educação

104

E pela própria força de suas ideias, sua fama atravessava as fronteiras. Muitos o

procuravam. Entres estes, estava Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), que viria a

ser um dos mais proeminentes racionalistas da época.

Daqueles que o conheceram e privaram de sua amizade, é unânime o tes-

temunho de que se tratava de um homem agradável e de modos distintos. Trajava-

se com elegância e dizia a respeito do estereótipo dos filósofos: "Uma aparência

suja e descuidada não nos transforma em sábios". Solteiro e sem herdeiros, Baruch

Espinosa morreu subitamente em 21 de fevereiro de 1677, aos 44 anos. Seguindo

suas instruções, seus amigos prepararam seus inéditos para publicação.

A princípio desconhecida e atacada, a obra de Espinosa só viria a despertar real

interesse depois de Kant (1724-1804), então ganhando grande popularidade entre

os românticos - incluindo Goethe e Fichte - e proporcionando ao idealismo alemão

o elemento metafísico monista.

0 panteísmo de Espinosa A filosofia de Espinosa é uma espécie de resposta ao dualismo de Descartes,

que separou matéria e mente como duas substâncias distintas. Lançada postu-

mamente, em 1677, a Ethica Ordine Geométrico Demonstrata (Ética Demonstrada

Geometricamente) de Espinosa contém basicamente o seu sistema filosófico.

Composta à imagem da matemática (como Descartes sugerira que deveria ser a

verdadeira filosofia), cada uma das cinco partes que formam esse livro começa com

uma série de definições e axiomas, dos quais deriva todo um corpo de provas,

corolários e explicações.

A primeira parte é dedicada a Deus. Após apresentar as definições e axiomas

pertinentes, deduz 36 proposições sobre a natureza de Deus, das quais a mais

importante é sem dúvida a de número 14:"Além de Deus, nenhuma substância

pode ser dada ou concebida". Por conseguinte, tudo o que existe, sob qualquer

forma, é parte de Deus. Essa proposição panteísta, segundo a qual Deus é idêntico

ao universo, entra em choque com a concepção ortodoxa de que Deus é

transcendente e distinto da criação - daí uma das principais causas das desavenças

de Espinosa com as autoridades religiosas.

Porque não pode ser explicada por nenhuma outra coisa, essa substância - que

é ao mesmo tempo Deus e a natureza toda - é a causa de si mesma, sendo

imutável e eterna. Todavia, ela pode ser concebida sob um duplo aspecto:

■ como um processo ativo e vital, a que Espinosa dá o nome de natura natu- rans,

a natureza criadora;

■ como o produto passivo desse processo, natura naturata, a natureza criada, que

é precisamente o mundo todo e tudo o que ele contém.

Entretanto, essa substância única pode apresentar diferenças - não nos seus

atributos, mas naquilo que Espinosa denomina modos. Um modo, ou modificação, é

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Espinosa: uma filosofia da liberdade

105

uma propriedade mais restrita do universo, ou seja, é a maneira como determinado

atributo aparece em um nível inferior. Se a substância é eterna e imutável, os

modos são mutáveis e transitórios, além de individuais. De certa forma, é uma nova

maneira - o que Espinosa não nega - de apresentar a antiga dicotomia

essência/acidente, com a diferença de que aquela é identificada a Deus e este ao

mundo.

Ademais, de um modo ou de outro todas as coisas são animadas. Vida e mente,

de um lado, ou matéria e corpo, de outro, são apenas fases - ou atributos, na no-

menclatura espinosiana - da mesma substância divina. Sob esse ângulo, Deus -

que é a realidade eterna por trás dos eventos do mundo - pode ser considerado

como possuindo uma mente e um corpo. Nem um nem outro, isoladamente, pode

ser tomado por Deus, mas os processos mentais e materiais que configuram a

história do mundo, estes sim, são idênticos a Deus. Consequentemente, a vontade

de Deus é a soma de todas as causas e todas as leis, e o intelecto divino é o

conjunto de todas as mentes. Na metafísica de Espinosa, portanto, Deus não é

distinto do mundo e não pode ter personalidade, vontade ou propósitos. Logo, o

homem que ama a Deus não pode esperar ser amado por ele.

0 ser humano A segunda parte da Ética é dedicada ao espírito humano, isto é, ao ser humano

integral, corpo e alma. A substância, que é única, como vimos, tem uma infinidade

de atributos. Desses atributos - que são aquilo que o intelecto pode perceber da

substância - só conhecemos o pensamento e a extensão. Para Espinosa, o

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Espinosa: uma filosofia da liberdade

corpo humano é um modo, isto é, uma modificação do atributo extensão. Da

mesma maneira, o espírito humano é um modo do atributo pensamento. No

entanto, no ser humano não há senão uma única entidade, vista interiormente

como alma e exteriormente como corpo. Não há como isolar os dois elementos

desse amálgama inextricável.

A cada estado ou mudança da alma corresponde um estado ou mudança do

corpo, mas um não pode agir sobre o outro, porque não há "outro". E o mundo

inteiro é dessa forma, unificadamente duplo: onde quer que haja um processo

material, externo, há outro interno, correlativo. E isso significa que o universo é um

todo consciente - uma posição conhecida como pampsiquismo: da mesma forma

que as emoções são conseqüências das mais leves alterações dos sistemas

circulatório, respiratório e digestivo, as ideias são resultado de um processo

orgânico complexo. Até mesmo as sutilezas da reflexão matemática repercutem no

corpo e, por outro lado, não pode acontecer nada ao corpo que não seja percebido,

consciente ou inconscientemente, pela mente.

Depois de suprimir a distinção entre corpo e alma, Espinosa nega que existam

faculdades como intelecto, vontade, imaginação ou memória:"[...] a mente não é

uma agência que lida com ideias, mas as próprias ideias em seu processo de

concatenação. Intelecto é meramente um termo abstrato e abreviado para indicar

uma série de ideias; e vontade, um termo para uma série de ações ou

volições"(DURANT, 2000, p. 178).

A vontade é em primeiro lugar o pensamento de um conjunto de ações a ser

praticado e, quando não há obstáculos, a ação em vista inevitavelmente se segue. A

ilusão de uma determinada escolha brota da ignorância a respeito das causas

precedentes. Assim, vontade e intelecto são uma coisa só, pois uma volição (ato de

escolher ou decidir) é apenas uma ideia que, pela riqueza de associações - ou

talvez pela ausência de ideias opostas, permaneceu na mente tempo suficiente para

passará ação.

O que é frequentemente chamado de vontade deveria ser mais apropriadamente

chamado de desejo, que é um apetite ou instinto do qual temos consciência. Por

trás dos instintos está o esforço vago e constante de autopreserva- ção. O prazer e

a dor são o resultado da satisfação ou não de um instinto, e não são as causas de

nossos desejos, mas seus resultados:"[...] nós não desejamos as coisas porque elas

nos dão prazer; mas elas nos dão prazer porque as desejamos; e nós as desejamos

porque temos que desejá-las" (DURANT, 2000, p. 179). Por conseguinte, para

Espinosa não existe livre-arbítrio, pois"as necessidades da sobrevivência

determinam o instinto, o instinto determina o desejo, e o desejo determina o

pensamento e a ação" (DURANT, 2000, p. 179).

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Espinosa: uma filosofia da liberdade

107

A moral, o sábio e a eternidade Partindo do pressuposto que a vontade de Deus e as leis da natureza são uma

única e mesma realidade, segue-se daí que todos os acontecimentos são resultan-

tes de leis invariáveis. Com efeito, o mundo espinosiano é um mundo de determi-

nismo, não de vontade e liberdade.

Para Baruch Espinosa, o bem é altamente subjetivo. O que é bom para de-

terminada espécie (por exemplo, o leão) pode não ser para outra (a gazela). Da

mesma forma, o que tomamos como mal pode não sê-lo com respeito à totalidade

do universo, mas somente em relação à nossa própria natureza. Assim, do ponto

de vista da substância divina, não faz sentido a distinção entre bem e mal, já que tal

distinção só diz respeito às criaturas finitas.

Daí o equívoco do modo tradicional de solucionar o problema da teodiceia, isto

é, a tentativa de conciliar a experiência concreta da existência do mal com o

postulado da bondade divina. Ora, Deus está além do bem e do mal. O bem e o mal

estão relacionados muitas vezes a perspectivas humanas extremamente individuais

(o que é bom para mim pode não ser para você), não tendo validade para um

universo no qual os indivíduos são coisas ínfimas e efêmeras.

Na última parte da Ética, Espinosa expõe o que seriam para ele os distintivos do

sábio: liberto das paixões e da ignorância, o sábio é aquele que realiza si-

multaneamente a felicidade, a virtude e o conhecimento racional, vivendo já na

eternidade - no sentido de que já atingiu o conhecimento do eterno.

Todavia, como conseqüência lógica do sistema espinosiano, a imortalidade da

alma individual está naturalmente excluída, de modo que essa imortalidade só

poderá ser entendida como a eternidade das ideias verdadeiras, que pertencem à

substância divina. Desse modo, eternos serão somente os pensamentos dos sábios,

ao passo que os pensamentos das pessoas vulgares estão votados ao

aniquilamento total dentro do sistema racional da substância divina.

Igreja e Estado O problema político e religioso foi abordado por Espinosa no Tractatus The-

ologico-Politicus, um dos poucos livros do autor publicados em vida. Sua teoria

política tem muito em comum com Thomas Hobbes (1588-1679), mas enquanto

este desenvolve o seu sistema de maneira empírica, o filósofo holandês, como um

bom racionalista, deduz suas conclusões de sua teoria metafísica geral. Para ele, o

Estado e a Igreja são meios irracionais para o advento da racionalidade. As obras

praticadas - ou não - em vista das recompensas e dos castigos temporais e

eternos, segundo as ameaças ou promessas dos clérigos e governantes, dependem

do temor e da esperança - os quais, para o nosso filósofo, são paixões irracionais.

No estado de natureza, isto é, antes da organização política, os seres humanos

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Tópicos da Filosofia da Educação

108

encontravam-se em guerra contínua uns contra os outros. Tendo em vista o bem

comum, eles se uniram em uma espécie de pacto social pelo qual se com-

prometeram a abrir mão da violência e a auxiliarem-se mutuamente. Todavia, o

pacto não é suficiente: é necessária a força para que ele se sustente, pois o direito

sem a força não é eficaz. Assim, os membros do pacto confiaram a um poder

central a força de que dispõem, encarregando-o de zelar pelos direitos e deveres

de cada um. Só então o Estado é realmente constituído - dispondo de poder

absoluto para alcançar os seus fins.

Contudo, o Estado não é o fim supremo do ser humano: o seu papel é ajudar na

consecução desse fim, que é o conhecimento de Deus e uma vida segundo a razão.

Portanto, se o Estado se mantiver na violência, obstaculizando o desenvolvimento

racional da sociedade, cidadãos mais cedo ou mais tarde se rebelarão contra ele e o

destruirão. Porém, das ruínas desse Estado surgirá outro, mais conforme à razão.

Assim, do Estado natural emerge o Estado racional, o qual limitaria os poderes de

seus cidadãos apenas na medida necessária à sua finalidade, que não é a de

dominá-los pelo medo, mas antes a de libertar de tal modo o indivíduo do medo

que ele possa viver e agir com total segurança. A partir dessas premissas, é

secundária a forma específica de governo - monárquica, aristocrática ou

democrática -, ainda que Espinosa manifeste uma preferência por esta última.

E, segundo Espinosa, um outro grande instrumento irracional a serviço da ra-

cionalidade é a religião, espécie de sucedâneo popular da filosofia. Mesmo que o

conteúdo da religião revelada seja racional, não o é a forma na qual ela vem embu-

tida, que rebaixa o conhecimento filosófico de Deus em uma revelação mítica. Por

outro lado, a ação racional - que deveria derivar do conhecimento de Deus -

reduz- -se à obediência mecânica aos mandamentos. De todo modo, em seus

dogmas a religião representaria, de forma tangível e simbólica para a mentalidade

do povo, as verdades racionais acerca de Deus e do ser humano.

Consequentemente, o que é válido nos dogmas não é a sua fórmula externa e sim

o seu conteúdo moral, ou seja,"induzir à submissão a Deus e ao amor ao próximo,

na unificação final de tudo

e de todos em Deus"(PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 301). Assim, já estamos

nos umbrais da religião racional e naturalista do lluminismo e a léguas de distância

do pensamento filosófico religioso da escolástica.

Além disso, como descendente de judeus convertidos à força, e vivendo no

primeiro país europeu a gozar de uma significativa liberdade religiosa, Espinosa

advoga a total separação entre Igreja e Estado.

Texto complementar Definições (ESPINOSA, 1964, p. 117-118)

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Espinosa: uma filosofia da liberdade

109

I. Por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve a existência; ou por

outras palavras, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como

existente.

II. Diz-se que uma coisa é finita no seu gênero quando pode ser limitada por

outra da mesma natureza. Por exemplo: um corpo diz-se que é finito, porque

sempre podemos conceber outro que lhe seja maior. Do mesmo modo, um

pensamento é limitado por outro pensamento. Porém um corpo não é limitado por

um pensamento, nem um pensamento por um corpo.

III. Por substância entendo o que existe em si e por si é concebido, isto é,

aquilo cujo conceito não carece de conceito de outra coisa do qual deva ser

formado.

IV. Por atributo entendo o que o intelecto percebe da substância, como

constituindo a essência dela.

V. Por modo entendo as afecções da substância, isto é, o que existe noutra

coisa por meio da qual também é concebido.

VI. Por Deus entendo o ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que

consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e

infinita.

Explicação: digo que é absolutamente infinito, e não que é infinito no seu

gênero; porquanto ao que somente é infinito no seu gênero podem negar- -se-lhe

infinitos atributos, e, pelo contrário, ao que é absolutamente infinito

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Espinosa: uma filosofia da liberdade

110

pertence à respectiva essência tudo o que exprime uma essência e não envolve

qualquer negação.

VII. Diz-se livre o que existe exclusivamente pela necessidade da sua natureza

e por si só é determinado por outra coisa a existir e a operar de certa e determinada

maneira.

VIII. Por eternidade entendo a própria existência enquanto concebida como

seqüência necessária da mera definição de coisa eterna.

Explicação: Pois que tal existência se concebe, assim como a essência da coisa,

como verdade eterna, daí resulta que não pode ser explicada pela duração ou pelo

tempo, ainda que se conceba a duração sem começo nem fim.

Atividades 1. A partir do texto complementar, de Baruch Espinosa, um dos representantes da

filosofia moderna, tente estabelecer os pontos de contato e diferença com a

filosofia do período anterior - mais precisamente, a escolástica.

2. Segundo a filiação dos pensadores às correntes da filosofia moderna, assinale R se

ele pertencer ao racionalismo, e E se pertencer ao empirismo.

Nicolas de Malebranche David Hume John Locke Baruch Espinosa René Descartes

Francis Bacon George Berkeley

3. A respeito das proposições filosóficas de Espinosa sobre a doxa (opinião, senso

comum) e a episteme (ciência), assinale se os enunciados abaixo são falsos (F) ou

verdadeiros (V).

Pensar os problemas a partir da doxa é pensá-los à luz da filosofia.

O senso comum relaciona-se ao conhecimento fragmentado da realidade.

Ao saber instituído (episteme) contrapõe-se o saber instituinte (doxa).

Doxa é uma reflexão rigorosa, radical e de conjunto.

Episteme diz respeito à capacidade de contemplarmos os fenômenos de maneira

sistematizada.

Para produzir filosofia Que ensinamentos podemos extrair da vida de Baruch Espinosa para a nossa prática

pedagógica?

0 lluminismo e o Século das Luzes O lluminismo é a saída do homem de um estado de menoridade que deve ser imputado a ele

próprio. Menoridade é a incapacidade de servir-se do próprio intelecto sem a guia de outro.

Imputável a si próprio é esta menoridade se a causa dela não depende de um defeito da

inteligência, mas da falta de decisão e da coragem de servir-se do próprio intelecto sem ser

guiado por outro. Sapere audeP Tenha a coragem de servir-se da tua

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própria inteligência! - é, portanto, o lema do lluminismo. Immanuel Kant

Há algo de novo debaixo do Sol As sociedades tradicionais são avessas às transformações da história e às

revoluções. Os filhos seguem a profissão dos pais, que por sua vez seguiram

a de seus pais e avós; as pessoas morrem nas mesmas aldeias em que

nasceram e viveram. Não há inovações nos métodos de cultivo da terra e na

produção artesanal dos poucos instrumentos de uso manual de que se

servem. Durante muito tempo a humanidade foi assim. É verdade que guerras

e epidemias perturbaram a paz bucólica dessas gerações. É verdade também

que o preconceito e a superstição causaram não poucas vítimas entre aqueles

que, eventualmente, procuraram seguir outros caminhos. Com efeito, os

horizontes eram estreitos; as estradas, poucas e perigosas; as alternativas,

mínimas, quando não nulas. Realmente, não havia nada de novo debaixo do

Sol.

Todavia, no século XVIII algumas revoluções sacudiram profundamente a

sociedade ocidental, desencadeando mudanças como nunca antes se tinha

visto, a despeito de o germe dessas mudanças já vir atuando sub- -

repticiamente nos últimos séculos: a Revolução Industrial e a Revolução

Francesa. Depois delas, o mundo nunca mais seria o mesmo. Como causa

dessas duas revoluções (de modo indireto na primeira e direto na segunda)

está o lluminismo.

Também chamado de Ilustração ou Século das Luzes, o lluminismo foi o mo-

vimento intelectual que caracterizou o pensamento europeu no período que

decorre entre a Revolução Inglesa (1688) e a Revolução Francesa (1789). O nome

deriva do seu objetivo de iluminar com a razão todas as áreas da ação humana. Aufklàrung - clareamento, clarificação, iluminação - Enlightment, ilustración, iluminismo e esclarecimento remetem a um mundo inteiramente "iluminado", isto é, visível. Nada deve permanecer velado ou coberto. O conhecimento da natureza emancipa-se do mito, e o conhecimento da sociedade deve, também, fundar-se na razão. A razão esclarecida é uma razão emancipadora. (MATOS, 2006, p. 33)

Nesse sentido, são precursores do lluminismo vários pensadores da Renas-

cença que foram buscar inspiração para os seus anseios de renovação nos fi-

lósofos da Antiguidade clássica. Embora não tenha nada em comum com os

movimentos pré-iluministas, a Reforma Protestante (1517) também contribuiu

para eles ao abalar a autoridade da Igreja romana e favorecer o nascimento do

individualismo moderno ao proclamar o livre exame das Escrituras e o acesso

direto do fiel a Deus. O caldo de cultura dessas transformações foi a insegurança

crítica do século XVII, impactado pelas guerras religiosas, pelas novas descober-

tas científicas, pelas viagens ultramarinas e seus efeitos econômicos.

A segurança e a estabilidade da Idade Média, representadas pelo geocen-

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 112

trismo28 e o teocentrismo29, foram profundamente abaladas nesse período. Uma

nova classe - que já despontara ao final da Idade Média, não mais ancorada na

propriedade da terra e nos laços de sangue, mas na livre-iniciativa, na acumula-

ção do capital e no individualismo - dá os passos decisivos para a conquista do

poder, não sem a vigorosa reação das antigas classes hegemônicas. Até certo

ponto, o lluminismo é a ideologia dessa classe, a burguesia, então empenhada

não apenas em fazer negócios, mas também em fazer história.

As fontes filosóficas do lluminismo são o racionalismo inaugurado por René

Descartes (1596-1649) e o empirismo inglês, especialmente John Locke (1632-

1704).

Com o racionalismo, o lluminismo se vê munido de um método crítico rigo-

roso, eficientíssimo no seu projeto de demolir a tradição e instaurar uma época

regida pelas luzes da razão.

Já com o empirismo ele se equipa de uma série de procedimentos simples,

experimentais, aptos a proporem a reconstrução da realidade a partir de seus

dados imediatos.

Antigo sistema cosmológico que considerava que o centro do sistema planetário era a Terra, em torno da qual girariam todos os demais

astros.

29 Doutrina segundo a qual Deus é o centro de tudo.

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O lluminismo e o Século das Luzes

113

Assim municiado, o lluminismo vê no conhecimento da natureza e no seu

domínio real a tarefa fundamental do ser humano. Daí a necessidade de uma

descontrução radical do passado histórico, marcado pela superstição e pela ig-

norância. Isso não significa a negação da história como um fato efetivo, mas a

necessidade de considerá-la de um ponto de vista crítico: o passado não foi um

estágio necessário da evolução da humanidade, mas um conjunto de equívocos

explicáveis pela insuficiência no uso da razão.

Por esses motivos o lluminismo ostenta um militante otimismo na capacidade

humana de emancipação, de superação e de progresso. Fundado nessa ideia

capital, ele persegue em todas as partes a realização desse ideal. Mais que um

movimento estritamente filosófico - na filosofia, ele foi mais divulgador que

original quando comparado com o período anterior -, o lluminismo foi um mo-

vimento cultural que abrangeu não só o pensamento filosófico e científico, mas

as artes em geral, a política e o comportamento dos nobres esclarecidos e dos

burgueses ascendentes: Por esta sua simplicidade, em relação aos seus intentos vulgarizadores, o lluminismo se espalha pela sociedade, leva ao meio do mundo os pensamentos dos filósofos que os precederam. Penetra a cultura, a literatura, a poesia; ingressa nos salões, penetra nas cortes, galga os tronos dos príncipes reformadores, até determinar, afinal, o maior movimento social, econômico, político dos tempos modernos: a Revolução Francesa. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 337)

Da Inglaterra e da França as luzes brilham para

o mundo Se foi na França que o lluminismo atingiu a sua forma extrema e revolucio-

nária, as suas origens imediatas podem ser encontradas nas ilhas britânicas, na

Inglatera. Entre 1640 e 1688, a primeira revolução burguesa da história acabou

com o absolutismo inglês, transferindo ao parlamento o poder efetivo e impondo

ao rei uma monarquia constitucional. Ao mesmo tempo, os filósofos empi- ristas

e as novas descobertas, como as de Newton (1642-1727), abalavam as

convicções medievais, abrindo caminho para a ciência moderna. De passagem

pela Inglaterra, o francês Voltaire impressionou-se com essa liberdade de pensa-

mento e de expressão. Absorveu as novas ideias e, por meio do livro Cartas Filo-

sóficas ou Sobre os Ingleses, de 1734, divulgou-as na França, onde o lluminismo

adquiriu os aspectos com os quais ficaria mundialmente conhecido: o culto à

razão, a ojeriza à tradição, o antiautoritarismo e a idealização do homem primi-

tivo, em estado de natureza. Com efeito, diante das mazelas daquele tempo - as

sangrentas guerras entre católicos e protestantes, a Inquisição, o despotismo, as

estratificações feudais -, os iluministas não raro voltaram os olhos para o homem

primitivo, o qual, segundo eles, vivia em estado de natureza, em liberdade e har-

monia, servindo-se de uma moral e de uma religião naturais, sem dogmas ou

hierarquias. "O homem nasce bom, é a sociedade que o corrompe" disse Jean- -

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 114

Jacques Rousseau.

Mas o lluminismo não foi necessariamente antirreligioso: ele pretendia, antes,

acomodar a religião às novas ideias, o que o levou a entrar em choque com as

Igrejas estabelecidas. Sua religião ideal era uma religião natural, como a dos

deístas e livres-pensadores ingleses: sem dogmas, sem revelação divina, sem

sacerdotes, sem mistérios, sobretudo sem crendices. Pois os iluministas se

bateram principalmente contra a fé popular nos milagres e todo tipo de supers-

tições. Se as leis da natureza são fixas, como dizia a física newtoniana, não pode

haver milagres. De fato, o Deus iluminista é muitas vezes como o primeiro motor

imóvel, o qual, uma vez criado o mundo, abstém-se de intervir nesse mundo.

Mas, de certa forma, o lluminismo deificará a razão - como a entronização da

deusa razão durante a Revolução Francesa exemplificará admiravelmente.

Luzes e revolução O ponto culminante do lluminismo francês e mundial (já que o movimento,

atingindo as colônias americanas, deixava de ser apenas europeu) foi a publica-

ção da Encydopédie ou dictionnaire des sciences, des arts et des métiers (Enciclopédia ou

dicionário das ciências, das artes e dos ofícios). Foi a primeira enciclopédia. Dirigida por

D'Alembert (1717-1783) e Diderot (1713-1784), foi publicada entre os anos de

1751 e 1780, em 34 volumes, dedicando um espaço considerável à tecnologia -

o que revela o empreendedorismo do espírito burguês que presidiu os trabalhos.

Vários iluministas famosos, como Voltairee Rousseau, colaboraram, sendo por

isso chamados enciclopedistas, e assim suas ideias encontraram um poderoso meio

de vulgarização e propagação.

Além disso, muitos dos filósofos do movimento eram também talentosos li-

teratos e, no limiar da sociedade de massas, suas peças e romances também se

tornaram um importante veículo na divulgação das novas ideias. O jornal, então

nascente, e os panfletos igualmente cumpriam essa função.

Assim, aquilo que no começo do século era as ideias de um punhado de fi-

lósofos, cientistas, libertinos e livres-pensadores, perto de seu último quartel já

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O lluminismo e o Século das Luzes

4

115 ■

havia se tornado dominante em círculos influentes da burguesia e da

nobreza. Em muitos países, os monarcas absolutos (assessorados por

conselheiros embebidos de lluminismo) realizaram reformas inspiradas pelos

novos princípios: tolerância religiosa, limitação ou abolição dos privilégios

feudais, modernização do processo penal, eliminação da tortura, reformas

administrativas, liberalização da economia. Entre esses dirigentes, Frederico II, da

Prússia (1740-1786), amigo de Voltaire; a czarina Catarina, da Rússia (1762-

1796), amiga de Diderot. Em Portugal, não foi o monarca, mas o primeiro-

ministro Sebastião José de Carvalho Melo, mais conhecido como Marquês de

Pombal (1750-1777).

O primeiro caso de implantação radical das ideias políticas do lluminismo

deu-se no outro lado do Atlântico: em 1776, com a Revolução Americana, nascia

a primeira nação inspirada diretamente nos ideais iluministas. Na Declaração da

Independência dos Estados Unidos, proclamava-se que "todos os homens são

criados iguais" e dotados de "direitos inalienáveis", entre os quais "o direito à

vida, à liberdade e à procura da felicidade". Além disso, a Constituição Americana

de 1787, foi o primeiro documento político em que se consignavam os direitos

individuais dos cidadãos. E a sua primeira emenda, de alguns anos depois,

assegura a separação entre Igreja e Estado, garantindo a liberdade de culto, de

expressão e de livre associação.

Todavia, a monarquia francesa mostrou-se irredutível aos ideais iluministas,

não restando à burguesia alternativa senão, associando-se aos camponeses e

aos trabalhadores urbanos, deflagrar o movimento revolucionário. A 26 de

agosto de 1789, foi aprovada pela Assembleia Nacional Francesa a Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão, cujo primeiro artigo declara

peremptoriamente que "Os homens nascem e são livres e iguais em direitos". Os

privilégios feudais foram abolidos; os bens eclesiásticos, confiscados; Igreja e

Estado foram separados e em 1791 foi aprovada uma constituição que consagra

os princípios de Montesquieu sobre a separação dos poderes (Legislativo,

Executivo e Judiciário). A Revolução Francesa tornou-se um marco de um novo

ordenamento socioeco- nômico, tendo como classe dominante a burguesia, que

desobstruiu o caminho para o desenvolvimento do capitalismo e consolidou os

ideais liberais30.

Mais tarde, com as guerras napoleônicas (1804-1815), muitos dos princípios

revolucionários foram aplicados às outras nações. Mesmo com a restauração

conservadora posterior à derrota de Napoleão, o novo regime burguês, muitas

vezes associado à velha aristocracia, estabeleceu-se paulatinamente em toda a

Europa.

O ano do início da Revolução Francesa (1789) é também considerado pelos historiadores como o marco inicial da Idade Contemporânea.

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Tópicos da Filosofia da Educação

116

A independência das nações da América Latina, no começo do século XIX, foi

outro fruto dos ideais iluministas.

Finalmente, aquilo que começara nos gabinetes de estudo, nos salões e nos

cafés, às vezes como a especulação diletante de alguns filósofos, convertera-se

- no curso de um século e meio - em uma das maiores mudanças sociais, eco-

nômicas e culturais já ocorridas na história da humanidade. Com efeito, a razão

tem efeitos revolucionários.

A máquina a vapor e a ferrovia: as luzes

chegam à técnica Mas os efeitos revolucionários não ficaram restritos aos níveis político e

jurídico. Outra revolução aconteceu simultaneamente, transformando

profundamente as bases econômicas sobre as quais se assentava a sociedade. O

milenar sustentá- culo da produção, de matriz agroartesanal, transferiu-se para

outro ponto, predominantemente urbano-industrial, ao passo que o comércio -

que já emergira das cinzas no final da Idade Média, levando em seus ombros um

novo protagonista social, a burguesia - fazia circular com mais agilidade os bens

produzidos.

A Grã-Bretanha - o país do empirismo, do liberalismo econômico e de sua

versão mais radical, o utilitarismo - foi o palco em que se processou essa revolu-

ção que com justiça recebeu o apodo de industrial.

Uma série de fatores contribuiu para isso: um inédito excedente de capital, o

acesso a grandes reservas de recursos naturais - sobretudo nas colônias de seu

império global - e o surgimento de novas técnicas produtivas. Com efeito, a

ciência e a técnica conquistavam os instrumentos, capazes de multiplicar as

forças produtivas em uma proporção nunca antes imaginada: De fato, basta lembrar que antes do advento da máquina a vapor usava-se a energia natural (força humana, das águas, dos ventos, dos animais) e, por mais que houvesse diferenças de técnicas adotadas pelos diversos povos através dos tempos, nunca houve alterações tão cruciais como as que decorreram da Revolução Industrial. (ARANHA, 1986, p. 180)

Em pouco tempo as antigas oficinas de artesãos deram lugar a fábricas provi-

das com as máquinas recém-inventadas - as quais produziam um maior volume

de bens, com menos dispêndio de tempo e, proporcionalmente, de mão-de- -

obra, e a um preço bem mais vantajoso, atendendo à crescente demanda do

mercado nacional e internacional.

A partir de 1830, as ferrovias e os navios a vapor permitiram a criação de uma

rede de comunicação e transportes mais ampla e eficiente, interligando os cen-

tros industriais, as fontes de matéria-prima e os mercados consumidores. Com

isso, agilizava-se o processo de formação de um gigantesco mercado mundial.

Junto a um vertiginoso aumento da população, ocorreu o êxodo rural,

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O lluminismo e o Século das Luzes

117

fazendo as cidades incharem com trabalhadores em busca de emprego nas novas

fábricas.

A partir da metade do século XIX, a Revolução Industrial espalhou-se por

outros países, configurando aos poucos o mundo - com seus maravilhosos

avanços técnicos e suas não menos chocantes contradições internas - como nós

conhecemos hoje.

Nomes que brilham Ideologia da burguesia ascendente e progressista em luta contra o obscu-

rantismo da monarquia absolutista e da aristocracia feudal, era natural que o

lluminismo acompanhasse a expansão daquela classe, manifestando-se primei-

ramente na Grã-Bretanha - o primeiro país em que ela efetivamente galgou o

poder.

Nesse sentido, filósofos empiristas como George Berkeley (1685-1753) e

David Hume (1711-1776) são os representantes máximos do lluminismo britâ-

nico, enquanto economistas como Adam Smith (1723-1790, autor do clássico A

Riqueza das Nações, publicado em 1776), James Mill (1773-1836) e David Ricardo

(1792-1823) construíram o ideário do liberalismo clássico, que até hoje, por

meio de várias reformulações (que no entanto não tocam em seu núcleo básico -

a livre iniciativa e o Estado mínimo), constitui a ideologia da classe burguesa.

Todavia, o nome que mais influência exerceu no lluminismo francês foi o do

já citado John Locke, que em sua obra mais importante, Ensaio Acerca do Enten-

dimento Humano (1690) formulou as bases do empirismo moderno. Além disso, em

Epístola Sobre a Tolerância (1689) ele defendeu a tolerância religiosa e em Alguns

Pensamentos Sobre a Educação (1693) desenvolveu uma pedagogia em- pirista e

liberal.

Não há dúvida, porém, que o nome mais célebre do lluminismo é o de Voltai-

re (1694-1778), pseudônimo de François-Marie Arouet, que pontificou soberano

ao longo do Século das Luzes, chamado inclusive "o século de Voltaire". Escritor

engajado, militante do lluminismo, serviu-se de todos os meios ao seu alcance

(teatro, romances, poemas, ensaios, correspondência ou panfletos) para divulgar

suas ideias. Correspondeu-se com príncipes e reis, entre eles Catarina da Rússia

e Frederico II, da Prússia, de quem foi conselheiro por dois anos, vivendo em

Potsdam.

Voltaire foi um ardente e destemido defensor da liberdade de culto, de pen-

samento e de expressão, sobre a primeira publicando o seu Tratado Sobre a To-

lerância (1763). O romance Cândido ou o Otimismo, escrito em três dias é, para

muitos, a sua obra-prima, uma amostra de seu talento como escritor, marcado

pela mordacidade e a ironia. Em uma época de confiante otimismo - e o llumi-

nismo foi extremamente otimista quanto aos poderes emancipadores da razão -,

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Tópicos da Filosofia da Educação

118

esse livro foi uma crítica áspera sobre a ingenuidade muitas vezes subjacente ao

otimismo. Por duas vezes preso na temível Bastilha, exilado, caluniado, persegui-

do, ouvido, adorado, aclamado, idolatrado, Voltaire, em sua longa e aventurosa

vida, simbolizou a liberdade pregada pelos iluministas e conquistada mais tarde

pelos burgueses na Revolução Francesa. Quando a Revolução triunfou, os seus

restos mortais foram transladados para o Panteão, sendo acompanhados por

uma multidão de centenas de milhares de pessoas. Até Victor Hugo, no século

seguinte, nenhum outro homem de letras seria tão célebre.

Outro grande iluminista que bebeu suas ideias iniciais nos vizinhos do outro

lado da Mancha foi o barão de Montesquieu (1689-1643), título nobiliárquico de

Charles Louis de Secondat, outro insigne elaborador do liberalismo clássico. Em O

Espírito das Leis (1748), sua obra mais importante, ele estuda as diversas formas de

governo - o despotismo, a monarquia e a república - dando especial relevo à

monarquia parlamentar inglesa. É nesse livro que o autor desenvolve a clássica

teoria da separação dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário a fim de

salvaguardar as liberdades individuais. Suas ideias influenciaram os líderes da

Independência Americana e a primeira fase da Revolução Francesa. Outras obras

importantes de Montesquieu são Cartas Persas (1721, um relato imaginário no qual

dois persas de passagem por Paris criticam os costumes e abusos da França

absolutista) e o monumental Considerações Sobre as Causas da Grandeza dos Romanos e da

sua Decadência (1734-1748).

E se, a despeito de todas as suas críticas à Igreja, Voltaire admite uma religião

natural, com sanções ultraterrenas, a corrente iluminista liderada por Claude

Adriens Helvetius (1715-1771) aproxima-se do ateísmo. Seguidor de John Locke,

ele considerava que toda a atividade intelectual se assenta sobre sensações. Hel-

vetius foi precursor do utilitarismo, afirmando que o interesse próprio é o único

motivo da ação humana.

Mas caberia a Étienne Bonnot de Condillac (1715-1780), um sacerdote católi-

co, desenvolver com o Tratado das Sensações (1754), a doutrina do sensualismo. No

entanto, seria o franco-germânico Dietrich Holbach (1723-1789) quem se de-

dicaria a um materialismo ateu militante.

Todos esses foram enciclopedistas, colaborando com Diderot e D'Alambert na

redação da grande Enciclopédia. Todavia, todos, inclusive Voltaire, ficariam, com o

passar do tempo, à sombra da figura singular, atormentada e genial de Jean- -

Jacques Rousseau (1712-1778), de origem suíça. Ao mesmo tempo fruto do

Século das Luzes e crítico feroz da tradição, de certa forma Rousseau representa

a superação do lluminismo, enveredando por um caminho de desconfiança da

razão e retorno da emoção. A sociedade e a civilização - afirma ele - corrompem

o ser humano, sendo preciso voltar à natureza, à liberdade e à fraternidade

Page 91: 98570508 Topicos de Filosofia Da Educacao Online

O lluminismo e o Século das Luzes

119

originais.

Suas obras políticas fundamentais são o Discurso Sobre a Origem da Desigualda-

dedos Homens (1753) e o Contrato Social (1762). Segundo ele, de um estado de na-

tureza ideal surge - em virtude de um contrato social - o Estado como

escravidão. Esse Estado tirânico deve ser substituído por um outro que tenha por

base a liberdade e no qual a vontade geral dos cidadãos encontrem a sua livre

expressão.

Em Emílio (1762), Rousseau imagina uma educação igualmente natural, em

que o aluno não seja oprimido pelo professor, mas antes encontre espaço para o

livre desenvolvimento de suas potencialidades.

Rousseau é considerado precursor dos movimentos socialistas, sendo um dos

primeiros a atacar a propriedade privada. Com ele, assistimos ao anúncio do

ocaso da era das luzes e o prenúncio do romantismo, no qual não mais a razão e

sim o sentimento e às vezes o sonho é que darão as cartas. Mas aí já estamos no

século XIX.

Findo o Século da Luzes, seus efeitos continuaram a agir na humanidade. A

independência das colônias da América Latina é conseqüência deles. A

Maçonaria, por um lado, que teve grande influência nessa independência, e os

movimentos socialistas, por outro, são extensões dos ideais do lluminismo a

propagarem- -se bem depois de sua época. Praticamente todos os iluministas

foram maçons e estavam ligados à burguesia. Os movimentos socialistas, que se

colocam do lado do proletariado - a classe que nasceu à sombra e sob o tacão da

burguesia

- situam-se no outro lado do espectro político. Ambos são os descendentes, por

assim dizer, dos girondinos e dos jacobinos da Revolução Francesa31.

Antes de encerrarmos esta seção com os luminares do lluminismo é bom

mencionar os nomes de Christian Wolff (1679-1754) e Gotthold Lessing (1729-

1781) como representantes do movimento na Alemanha. Nos demais países, não

se destacaram filósofos de envergadura e repercussão internacional. Países como

Portugal e Espanha, devido ao peso da Contrarreforma e o medo da Inquisição,

não chegaram a desenvolver o lluminismo - no máximo, um sucedâneo muito

tímido ou mitigado.

0 legado iluminista É difícil falar do legado iluminista em nossa sociedade já que, ao se olhar em

volta, tudo parece nos remeter a ele: a república, as constituições das nações, a

31 Durante a Revolução Francesa, os girondinos (nome derivado da região francesa da Gironda, de onde provinham seus principais

representantes) eram um grupo político moderado, chefiado por Jacques-Pierre Brissot (1754-1793), constituído pela alta burguesia. Fazia

oposição aos jacobinos (que receberam esse nome por se reunirem inicialmente no Convento de São Tiago, Jacobus em latim), que eram

liderados por Robespierre (1758- 1794) e defendiam mudanças mais radicais, apoiados pela baixa burguesia e pela plebe. Os girondinos

sentavam-se à direita no recinto da Assem- bleia Nacional, enquanto os jacobinos sentavam-se à esquerda, e dessas posições surgiu a

tradição de se identificar os termos direita e esquerda com conservadores e progressistas, respectivamente.

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Tópicos da Filosofia da Educação

120

democracia, a divisão dos poderes, os direitos civis, a tecnologia, o conceito de

educação, os parâmetros curriculares, os ideais de justiça, igualdade e liberdade

etc. Com efeito, a atual classe detentora do poder continua sendo a burguesia,

que assumiu o poder em parte devido à militância iluminista. Mesmo o socia-

lismo, que no século XX foi a ideologia de um bom número de países e chegou

por um momento a ameaçar a hegemonia burguesa, tem a sua origem, como

vimos, nos grupos mais à esquerda da Revolução Francesa - portanto, também

faz parte do legado iluminista.

É verdade que depois de a burguesia ter assumido o poder e a razão ter sido

implantada como princípio norteador da sociedade, as coisas não se revelaram

assim tão maravilhosas. Também é verdade que o século XX, com duas guerras

mundiais e a experiência do totalitarismo (Stalin e Hitler fariam enrubescer os

déspotas do século XVIII), retrocedeu muitas vezes à barbárie - e essa barbárie

não significa uma volta ao estado de natureza, mas o recurso à razão mais sofis-

ticada (a razão tecnológica) para os objetivos mais irracionais, como a limpeza

étnica, realizada em larga escala e mais de uma vez no século que passou. De

fato, percebemos que a razão nem sempre leva à emancipação, pois pode colo-

car-se a serviço dos maiores obscurantismos. Por outro lado, a sociedade atual,

resultado das revoluções iluministas, não parece necessariamente um ambiente

de liberdade e livre pesquisa como sonharam os filósofos do Século das Luzes:

em muitas ocasiões, assemelha-se mais a uma grande feira em que tudo está à

venda, inclusive as ideias. Diante disso, não poucos se apressaram a declarar o

fracasso do projeto iluminista. Todavia, é de se perguntar se ele realmente fra-

cassou ou se o "fracasso" que testemunhamos não é porque o seu ideário não foi

plenamente aplicado ou foi abandonado em alguma parte do caminho.

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O lluminismo e o Século das Luzes

121 ■

Texto complementar Dois tipos de desigualdade (ROUSSEAU, 1978, p. 235-260)

Concebo, na espécie humana, dois tipos de desigualdade: uma que chamo de

natural ou física, por ser estabelecida pela natureza e que consiste na diferença

das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma;

a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende

de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada

pelo consentimento dos homens. Esta consiste nos vários privilégios de que

gozam alguns em prejuízo de outros, como serem mais ricos, mais poderosos e

homenageados do que estes, ou ainda, por fazerem-se obedecer por eles.

Não se pode perguntar qual a fonte da desigualdade natural, porque a

resposta seria enunciada na simples definição da palavra. Pode-se, ainda menos,

procurar a existência de qualquer ligação essencial entre essas duas

desigualdades, pois, em outras palavras, seria perguntar se aqueles que mandam

valem necessariamente mais do que os que obedecem e se a força do corpo ou

do espírito, a sabedoria e a virtude sempre se encontram, nos mesmos

indivíduos, na proporção do poder ou da riqueza: tal seria uma boa questão para

discutir entre escravos ouvidos por seus senhores, mas que não convém a

homens razoáveis e livres, que procuram a verdade.

De que se trata, pois, precisamente neste discurso? De assinalar, no progresso

das coisas, o momento em que, sucedendo o direito à violência, sub- meteu-se a

natureza à lei; de explicar por que encadeamento de prodígios o forte pôde

resolver-se a servir ao fraco, e o povo a comprar uma tranqüilidade imaginária

pelo preço de uma felicidade real.

O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado

um terreno, lembrou-se de dizer que isto é meu e encontrou pessoas

suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios,

misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as

estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: "Defendei-vos

de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que

os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!" Grande é a

possibilidade, porém, de que as coisas já então tivessem chegado ao ponto de

não poder mais permanecer como eram, pois essa ideia de propriedade,

dependendo de muitas ideias anteriores que só poderiam ter nascido suces-

sivamente, não se formou repentinamente no espírito humano. Foi preciso fazer-

se muitos progressos, adquirir-se muita indústria e luzes, transmiti-las e

aumentá-las de geração para geração, antes de chegar a esse último termo do

estado de natureza.

Page 94: 98570508 Topicos de Filosofia Da Educacao Online

Tópicos da Filosofia da Educação

122

Atividades 1. Segundo Olgária Matos,"Aufklàrung- clareamento, clarificação, iluminação -

Enlightment, ilustración, iluminismo e esclarecimento remetem a um mundo

inteiramente'iluminado'". Discuta com os colegas as razões e as implicações

dessa metáfora de "iluminação" referente ao lluminismo e depois registre suas

conclusões.Como podemos levar o ideal do lluminismo ao nosso trabalho de educadores?

3. Assinale com V (verdadeiro) os itens que foram precursores do lluminismo e

com F (falso) aqueles que não foram - ou porque não o influenciaram de

modo direto ou porque são seus efeitos.

( ) Descobertas ultramarinas.

( ) Racionalismo.

( ) Revolução Francesa.

( ) Empirismo Inglês.

( ) Escolástica.

( ) Máquina a vapor.

( ) Revolução Inglesa.

Para produzir filosofia A República foi proclamada no Brasil tendo como base os ideais do lluminis-

mo. Desde lá, todas as nossas constituições inspiraram-se ora mais, ora menos,

nos mesmos ideais, sobretudo a última, a "Constituição Cidadã" de 1988. No en-

tanto, em nosso país, não raro os direitos dos cidadãos são violados; não per-

cebemos que entre os três poderes - Executivo, Legislativo e Judiciário - reina

aquela independência prescrita por Montesquieu. O que fazer para que os ideais

iluministas venham permear cada vez mais nossos valores?

Immanuel Kant e o idealismo alemão Duas coisas que me enchem a alma de crescente admiração e respeito,

quanto mais intensa e frequentemente o pensamento delas se ocupa: o céu

estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim. Immanuel Kant

Na encruzilhada da razão Do encontro do empirismo inglês com o racionalismo francês nasceu,

como síntese prática e divulgadora, o lluminismo, o qual, por meio de duas

revoluções (a Revolução Francesa e a Revolução Industrial), é a parteira da

sociedade contemporânea. No entanto, vamos encontrar a síntese filosófica

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do racionalismo e do empirismo no criticismo, que está na origem do idealismo

alemão e, por força deste, do pensamento contemporâneo.

Para compreender as curvas e voltas que o curso da filosofia descreveu até

o alvorecer da Idade Contemporânea (iniciada em 1789) e vislumbrar os

caminhos que suas correntes seguiriam desde então, é inelutável nos

depararmos com Kant, o fundador do criticismo. O pensamento moderno - após a Renascença - pode-se, assim, comparara um grande X, representando Kant precisamente o centro: os dois braços anteriores representariam o empirismo e o racionalismo, que convergem para Kant; os dois braços posteriores representariam o idealismo e o positivismo, que dependem de Kant. (PADOVANI;

CASTAGNOLA, 1984, p. 359) Mas o que é o criticismo?

Em sentido geral, recebe esse nome a postura que advoga a investigação

crítica dos fundamentos do conhecimento como condição preliminar para

toda a filosofia.

Em sentido estrito, é o nome dado à filosofia kantiana, que se propõe uma

investigação radical sobre as condições e possibilidades do conhecimento.

Entre o dogmatismo e o ceticismo, o criticismo kantiano procura reformular o

caminho em que é possível pensar a filosofia. Portanto, em diálogo tanto com o

racionalismo (mais dogmático) quanto com o empirismo (mais cético), Kant ensaia

uma nova resposta à velha pergunta que desde o fim da cosmovisão medieval

atormentava os filósofos: qual é a fonte do conhecimento?

Com efeito, no decorrer dos séculos XVII e XVIII foram duas as respostas

aventadas.

De um lado, com o racionalismo (que teve o seu início na França, com René

Descartes - 1596-1650), alguns filósofos responderam que a razão é a única fonte

de conhecimento válido.

Do outro lado - inclusive do outro lado do Canal da Mancha, isto é, na Inglaterra

situam-se os que, como os britânicos Roger Bacon (1561-1626), John Locke

(1632-1704) e David Hume (1711-1776), defenderam que o conhecimento

autêntico procede da experiência sensível. Daí o nome de empirismo dado a esta

corrente, pois a palavra empeiría, em grego, significa "experiência".

Ao embate entre empirismo e racionalismo deve-se acrescentar o prodigioso

desenvolvimento que as ciências naturais experimentaram na época, notada-

mente com a nova física formulada por Isaac Newton. A propósito, o empirismo foi

fundamental para o advento da revolução científica na medida em que estabeleceu

as bases de experimentação e controle sobre as quais pode se alçar a ciência

moderna.

E se, como dissemos, o lluminismo soube propagar os problemas e respostas

dessas duas correntes por toda a Europa sem no entanto lograr uma síntese sa-

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Immanuel Kant e o idealismo alemão

131 ■

tisfatória, seria com Kant que essa síntese seria forjada. E essa solução, a despeito

dos hábitos pacatos de seu formulador, revolucionaria o pensamento ocidental.

0 filósofo de Kónigsberg Immanuel Kant nasceu em Kónigsberg, uma pacata cidade da Prússia Oriental32,

no dia 22 de abril de 1724. Seu pai era um modesto artesão que trabalhava com

couro, fabricava selas, e sua mãe, que era de origem propriamente alemã, não teve

estudo, mas foi mulher admirada por seu caráter e pelos dotes de uma inteligência

natural. A família Kant pertencia ao ramo pietista da Igreja Luterana, uma corrente

que reagia ao dogmatismo oficial realçando a experiência pessoal da fé, uma vida

simples e uma moral rigorosa. Immanuel foi o quarto de 11 filhos (contudo, o

primeiro que sobreviveu) e estudou no Colégio Fredericiano, estabelecimento de

espírito pietista onde permaneceu por oito anos e meio.

Em 1740, aos dezesseis anos de idade, ele se matriculou na universidade de sua

cidade natal e por cinco anos permaneceu nessa instituição. Assistiu a cursos de

Teologia e conta-se que até pregou alguns sermões. Mas sentiu-se atraído pela

matemática e pela física. Começou a ler os trabalhos de Newton auxiliado por um

amigo que era um entusiasta da ciência deste físico inglês e também havia

estudado com Christian Wolff, um sistematizador da filosofia racionalista.

Todavia, aos 21 anos o jovem Kant foi obrigado a ganhar a vida por causa da

morte de seu pai, suspendeu os estudos e pôs-se a trabalhar como professor

particular, atividade em que foi bem-sucedido e que lhe permitiu conviver com o

melhor da sociedade de seu tempo. Servindo a uma família na cidade próxima de

Arnsdorf, foi esse o único período em que morou fora de Kõnigsberg. Finalmente,

em 1755, Kant pôde completar os estudos, obtendo o grau de doutor, depois do

que, na mesma Universidade de Kõnigsberg, assumiu a posição de livre-docente e

lecionou por 15 anos. Ao contrário do estilo denso e pomposo de seus livros, suas

aulas eram dinâmicas e alegres.

Foram anos de muita leitura, nos quais não se suspeitava que por trás daquele

professorzinho que mal passava de um metro e meio de altura escondia-se um

gigante do pensamento. Com efeito, após um primeiro momento de interesse pelas

ciências naturais, sobretudo pela física newtoniana, Kant mergulhou na filosofia

racionalista, sobretudo a de Leibniz e Wolff.Todavia, após o contato com os

empiristas ingleses - Locke e principalmente Hume -, ele foi despertado do sono

dogmático, como chamou o racionalismo.

Outro autor que então exerceu grande influência sobre Kant foi Rousseau, com

sua radical desconfiança da razão. Como conseqüência, Kant passou por uma

profunda crise, que resultou em uma suspeita em relação aos alcances da

32 Fundada no século XIII pelos Cavaleiros Teutônicos (ordem religiosa militar, como os Tem piá rios, que lutou nas Cruzadas), Kónigsberg já foi

capital da Prússia, já pertenceu à Polônia e, desde 1946 - agora com o nome de Kaliningrado, pertence à Rússia, como um enclave situado entre a

Lituânia ea Polônia.

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 132

metafísica racionalista. Expressão dessa fase é o livro Sobre as Formas e Princípios do

Mundo Sensível e Inteligível (1770), em que a metafísica é comparada aos sonhos de

Swedenborg (1688-1772), um místico sueco daquela época. No mesmo ano de

1770, entretanto, ele foi promovido à cátedra de lógica e metafísica da universidade

(da qual só se aposentaria, por motivos de saúde, em 1796). Desse modo se

encerra o período conhecido como pré-crítico no pensamento kantiano.

O período crítico anuncia-se com a publicação da Crítica da Razão Pura (1781), obra

na qual Kant vinha se dedicando já por dez anos e que marcou uma guinada

decisiva não só no seu pensamento como no pensamento ocidental depois dele,

por meio de uma explanação rigorosa dos alcances e os limites da razão. Outras grandes obras suas são:

■ Prolegômenos a toda Metafísica Futura que Possa Vir a Ser Considerada como Ciência (1783),

em que aborda o mesmo problema com vistas exclusivas à metafísica;

■ Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), que é seu primeiro trabalho sobre

a moral;

■ Crítica da Razão Prática (1788), em que o problema moral é nova e amplamente

abordado;

■ Crítica do Juízo (1790), em que se debruça entre outras coisa sobre a estética; e

■ A Religião nos Limites da Simples Razão (1793), em que é exposto o cristianismo sob

uma óptica racional, o que lhe acarretou uma proibição do governo prussiano

de lecionar ou escrever sobre temas religiosos - sem vocação para Sócrates,

Kant acatou o "silêncio obsequioso"até a morte do monarca e então fez publicar

um resumo dos seus pontos de vista religiosos.

Immanuel Kant seguiu sempre uma disciplina rigorosa, tanto na vida quanto na

sua investigação filosófica. Não casou, não teve filhos, nunca viajou além de sua

Prússia natal - apesar de ter dado ótimas aulas de geografia. Sua vida transcorreu

da maneira mais regular possível: Acordar, tomar café, escrever, fazer palestras, jantar, caminhar, diz Heine, tudo tinha a sua hora marcada. E quando Immanuel Kant, com o seu casaco cinza, bengala na mão, aparecia na porta de casa e se dirigia à pequena alameda de tílias que ainda é chamada de'0 passeio do Filósofo', os vizinhos sabiam que eram exatamente 15h30. (DURANT, 2000, p. 254)

Conta-se que somente duas vezes ele não saiu no seu tradicional passeio:

quando recebeu os jornais com a notícia da queda da Bastilha (Kant acompanhou

com interesse a Revolução Francesa, embora tenha se desapontado com os seus

rumos) e quando lia o Emílio (só mesmo Rousseau para sacudir a rotina do austero

professor!).

Mas Kant não era má companhia não:"foi um brilhante conversador e a sua pre-

sença em reuniões sociais foi sempre acolhida com agrado" (RUSSELL, 2002, p.

341).

Talvez seja graças à regularidade de seus costumes que tenha vivido muito, não

obstante uma compleição frágil. No entanto, após um declínio gradual em que foi

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Immanuel Kant e o idealismo alemão

133 ■

pouco a pouco perdendo as suas faculdades - o que foi muito doloroso tanto para

ele quanto para seus amigos -, Immanuel Kant faleceu, octogenário, em

Kõnigsberg, a 12 de fevereiro de 1804.0 empenho com o qual ocupou toda a sua

vida pode ser resumido em sua famosa frase: "Não se pode aprender a filosofia;

somente se pode aprender a filosofar."

Entre dogmatismo e ceticismo: a via kantiana Não obstante a vida regrada e provinciana, Kant viveu profundamente os

dilemas e angústias de seu tempo. Súdito de uma monarquia absoluta, ele almejava

a liberdade da república. De formação pietista, estava ciente dos problemas

decorrentes da não-separação entre Igreja e Estado. Mas, sobretudo como filósofo,

Kant vivenciou o embate entre racionalismo, empirismo e física newto- niana. E

desse embate produziu uma nova e grandiosa filosofia: "Na confluência dessas três

grandes correntes, situou-se Kant; e dessas três grandes correntes tirou os

elementos fundamentais para poder estabelecer de um modo eficaz [...] o problema

da teoria do conhecimento e, em seguida, o problema da metafísica" (MORENTE,

1967, p. 218). Portanto, o criticismo kantiano pode ser caracterizado como uma

espécie de terceira via entre o dogmatismo dos racionalistas e o ceticismo dos

empiristas, como se pode perceber no segundo prefácio à Crítica da Razão Pura: A crítica opõe-se [...] ao dogmatismo, quer dizer, à presunção de seguir por diante apenas com um conhecimento puro por conceitos (conhecimento filosófico) apoiado em princípios, como os que a razão desde há muito aplica, sem se informar como e com que direito os alcançou. O dogmatismo é, pois, o procedimento dogmático da razão sem uma crítica prévia da sua própria capacidade. Esta oposição da crítica ao dogmatismo não favorece, pois, de modo algum, a superficialidade palavrosa que toma a despropósito o nome de popularidade, nem ainda menos o cepticismo que condena, sumariamente, toda a metafísica. A crítica é antes a necessária preparação paraoestabelecimentode uma metafísica sólida fundada rigorosamente como ciência, que há de desenvolver-se de maneira necessariamente dogmática e estritamente sistemática, por conseguinte escolástica (e não popular). (KANT, 1985, p. 23-31)

Em outro momento, Kant define a filosofia como "a ciência da relação de todo

conhecimento e de todo uso da razão com o fim último da razão humana". Nesse

sentido, a filosofia deve responder a quatro questões: ■ O que posso saber? ■ O que devo fazer?

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Tópicos da Filosofia da Educação

134

■ O que posso esperar? ■ O que é o ser humano?

Essas questões são discutidas, respectivamente, pela metafísica, pela moral,

pela religião e pela antropologia. A última pergunta é a mais importante e sintetiza

as outras três. No entanto, nosso dever e nosso destino somente podem ser de-

terminados depois de um profundo estudo das possibilidades do conhecimento

humano, o que nos leva à primeira pergunta. E é por isso que a primeira e principal

obra que contém o pensamento sistematizado de Kant é a Crítica da Razão Pura.

A razão no tribunal Para David Hume (a quem Kant atribui o mérito de tê-lo despertado do"sono

dogmático"), não se pode alcançar um saber autêntico, já que todo o saber humano

é apenas provável, sempre restrito aos limites da experiência: além dos dados

palpáveis dos sentidos, a aventura pelos caminhos metafísicos jamais levaria a um

conhecimento seguro, sequer plausível. Embora impactado pelo pensador inglês,

Kant discorda desse posicionamento, pois para ele existe sim um saber fidedigno,

que é a ciência matemática da natureza, isto é, a nova física de Newton.

Além disso, não se pode negar que, se os resultados da metafísica são inve-

rificáveis, eles pelo menos são o testemunho de um esforço investigativo do ser

humano para transcender as balizas da experiência.

De fato, se por um lado, a atitude crítica pode negar a possibilidade de resolver

certos problemas, por outro não pode deixar de enfrentar o desafio de explicar a

gênese desses mesmos problemas.

Assim, Kant institui o tribunal que, julgando as demandas da razão, garante

suas pretensões legítimas enquanto afasta as ilegítimas. Esse tribunal é a Crítica da

Razão Pura, ou seja, uma autocrítica geral da razão no que diz respeito a todos os

conhecimentos a que se pode aspirar independentemente da experiência, um

exame do conhecimento puramente racional, único meio de evitar a queda no

dogmatismo especulativo. Cabe a essa crítica decidir, também, sobre a possi-

bilidade ou a impossibilidade da metafísica, bem como, caso opte pela primeira,

sobre suas fontes, sua extensão e seus limites.

Com efeito, Kant, ao contrário dos empiristas, é partidário da postura de que é

possível a aquisição de conhecimentos extrínsecos à experiência. Na verdade, todo

o conhecimento universal e necessário, para ele, é independente da experiência,

uma vez que a experiência não pode dar valor universal e necessário aos

conhecimentos que dela derivam. No entanto, independente não significa precedente,

anterior, todo o conhecimento começa com a experiência, mas pode não derivar

totalmente dela. Pode, por exemplo, ser uma composição das impressões derivadas

da experiência com aquilo que é acrescentado, a partir do estímulo inicial, pela

nossa faculdade de conhecer.

Aqui aparece uma distinção fundamental em Kant, que se dá entre a forma e a

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Immanuel Kant e o idealismo alemão

135

matéria do conhecimento. A matéria dos nossos conhecimentos é composta pelas

próprias coisas, ao passo que a forma somos nós mesmos. É necessário distinguir

no conhecimento uma matéria, constituída pela ordem e a unidade que a nossa

faculdade cognitiva dá a tal matéria. A matemática e a física pura contêm verdades

universais e necessárias - portanto, independentes da experiência. Elas contêm

juízos sintéticos apriori:

■ sintéticos no sentido de que, nelas, o predicado acrescenta algo de novo ao

sujeito; ■ a priori porque têm uma validade necessária que a experiência não pode dar.

O primeiro problema com que se defronta uma crítica da razão pura é ver como

são possíveis os juízos sintéticos a priori, ou seja, como é possível uma matemática e

uma física pura. O desafio consiste em alcançar e realizar a possibilidade

fundamentadora da ciência. Tal possibilidade jamais pode ser dada pela matéria do

conhecimento, constituída pela variedade sem ordem e sem forma das impressões

sensíveis. Deve ser, pois, reconhecida na forma do conhecimento, isto é, nos

elementos ou funções a priori que dão ordem e unidade a essas impressões.

Assim, a crítica tem um duplo objetivo: descobrir os elementos formais do

conhecimento e determinar o uso possível dos elementos a priori. Mesmo se

mantendo nos limites da experiência, a investigação da razão estará em condições

de justificar a própria experiência na sua totalidade e, portanto, também os

conhecimentos universais e necessários que se encontram no seu âmbito. Além

disso, é forçoso determinar o uso possível dos elementos a priori do conhecimento,

isto é, o método do próprio conhecimento. Como vimos, o conhecimento humano

é uma composição ou síntese de dois elementos: ■ um formal ou a priori; ■ o outro, material ou empírico, que é o seu objeto.

O resultado nascido desse conceito é o fenômeno. Ora, o entendimento humano

não intui, mas pensa; não cria, mas unifica - e portanto deve ser-lhe dado, por

outra fonte, o objeto do pensar, o múltiplo a unificar. Essa fonte é a sensibilidade.

Mas a própria sensibilidade é basicamente passividade: aquilo que ela possui é

recebido. Isso significa que o objeto do conhecimento não é a coisa em si, uma

essência, uma substância, e sim aquilo que aparece, ou seja, o fenômeno. Nós

percebemos o fenômeno pela experiência, mas o objeto somente é real por sua

relação com o sujeito que conhece.

Assim chegamos ao cerne da teoria de Kant, a sua revolução copernicancr. tal como

Nicolau Copérnico, que demonstrou que a Terra girava em torno do Sol, Kant

comprovou que os objetos dependem do sujeito cognoscente. Dessa maneira, em

termos kantianos não é o sujeito que se adapta aos objetos da realidade, mas a

realidade que se modela a partir da percepção do sujeito. Respondendo aos

empiristas, Kant mostrou que não é o sujeito que gira em torno do objeto, e sim o

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 136

objeto que gira em torno do sujeito.

Isso é possível porque apenas o sujeito do conhecimento é capaz de síntese,

somente ele tem a faculdade do entendimento. Em última instância, o conheci-

mento somente se torna possível porque existem as formas a priori da sensibilidade

- que são, para Kant, o tempo e o espaço.

Quanto ao espaço, se o conhecimento é relação (do sujeito com o objeto), não

podemos conhecer as coisas "em si", mas "para nós". A geometria pura, quando

aplicada, coincide totalmente com a experiência, porque o espaço é a forma a priori

da sensibilidade externa.

O mesmo se dá quanto ao tempo. Podemos concebê-lo sem acontecimentos,

internos ou externos, mas não podemos conceber os acontecimentos fora do

tempo. Objeto da intuição, o tempo não pode ser conceito. Forma vazia, intuição

pura, o tempo torna possíveis, por exemplo, os juízos a priori na aritmética, cujas

operações (soma, subtração etc.) ocorrem sucessivamente e, assim, o pressupõe.

Logo, o tempo é também a forma a priori da sensibilidade, não apenas externa como

também interna.

Além disso, existem ainda os conceitos a priori do entendimento, que são as

categorias, catalogadas em número de 12 (conforme quadro a seguir). Esses con-

ceitos puros do entendimento é que tornam possível qualquer experiência.

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Immanuel Kant e o idealismo alemão

137 ■

Juízos e categorias Critério Juízos Categorias Universais Unidades

Quantidade Particulares Pluralidade Singulares Totalidade

Afirmativos Realidade

Qualidade Negativos Negação Indefinidos Limitação Categóricos Substância e acidente

Relação Hipotéticos Casualidade e dependência Disjuntivos Comunidade e interação Problemáticos Possibilidade e impossibilidade

Modalidade Assertóricos Existência e não-existência Apodíticos Necessidade e contingência

Assim, temos os juízos analíticos e os juízos sintéticos:

■ analíticos são aqueles juízos de caráter lógico, em que o predicado está contido

no sujeito, como, por exemplo, "O triângulo é uma figura de três lados"-

segundo Kant, esses juízos não ampliam nossos conhecimentos;

■ sintéticos são aqueles juízos cujo predicado acrescenta algo ao sujeito (como

por exemplo,"O calor dilata os corpos"), pois dependem da experiência; o

espaço e o tempo são condições a priori de possibilidade da intuição empírica.

Portanto, segundo a Crítica da Razão Pura, não há conhecimento de fato sem unir as

formas a priori com o conteúdo a posteriori. A experiência fornece a matéria e a forma

é a priori. A experiência é a ocasião que une forma e matéria.

O engano dos inatistas foi dizer que o conteúdo ou a matéria são inatos. Ora,

não existem ideias inatas.

O engano dos empiristas, por sua vez, foi supor que a estrutura da razão é

adquirida pela experiência.

Entretanto, sem a forma da sensibilidade e do entendimento, não há conhe-

cimento verdadeiro.

0 imperativo categórico Tendo limpado o terreno na área da razão pura, Kant voltou-se também para a

razão prática. A razão é pura, isto é, teórica e especulativa, quando se refere aos prin-

cípios a priori do conhecimento, e é pratica quando se refere aos princípios a priori da

ação. Assim, Kant estende o seu sistema à área da moral e da ética. Os principais

escritos sobre estes temas aparecem na Fundamentação da Metafísica dos Costumes

(1785), na Crítica da Razão Prática (1788) e na Metafísica dos Costumes (1797).

E se para Kant a questão da moralidade e da liberdade não são objetos da razão

pura, mas sim da razão prática, a ética é puramente racional e universal: não está

restrita a preceitos de caráter pessoal ou subjetivos nem submetida a hábitos e

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Tópicos da Filosofia da Educação

138

práticas socioculturais. E, uma vez que os princípios morais resultam da razão

prática e se aplicam a todos os indivíduos, independentemente das circunstâncias,

a ética kantiana é de caráter prescritivo.

O objetivo de Kant é, com base apenas na razão, estabelecer princípios uni-

versais e imutáveis para a moral. Coerentemente com o que foi definido na Crítica da

Razão Pura, ele assinala que os princípios morais são a priori - vale dizer, não

dependem da experiência para serem prescritos. Ademais, no ser humano a

vontade não é capaz de determinar sempre a ação, porque é influenciada não

apenas por si mesma, mas também pelas inclinações dos sentidos na medida em

que eles influenciam o seu agir. Nesse caso, as ações que a lei moral prescreve

como necessárias constituem uma obrigação, o que revela a existência de um

imperativo que se expressa como um dever. Os imperativos podem ser:

■ hipotéticos - quando estão sujeitos a uma condição (deves estudar para passar

nos exames); ■ categóricos - quando é incondicional ou absoluto (não matarás).

Além disso, os imperativos hipotéticos apontam uma ação boa como meio para

algum fim - em outras palavras, são os conselhos e as regras da destreza. Assim,

economizar é bom para se garantir uma velhice tranqüila.

Os imperativos categóricos, por seu turno, são as leis práticas, são aqueles que,

ao contrário dos primeiros, estabelecem uma ação como boa em si mesma, ainda que

não seja causa de nenhum resultado: não mentir é uma ação boa em si mesma,

mesmo que nenhum mal venha decorrer do fato de mentir.

Os imperativos hipotéticos são possíveis porque quem ordena um fim ordena

também os meios necessários para se alcançar esse fim.

Já os imperativos categóricos são possíveis na medida em que representam

juízos a priori.

Os imperativos hipotéticos não podem fundamentara moral porque não são

universais. Apenas os imperativos categóricos preenchem essa condição e por isso

apenas eles, segundo Kant, podem ser imperativos da moral. A vontade é pura,

sendo moral quando é regida pelos imperativos categóricos e não pelos

imperativos hipotéticos.

O imperativo categórico independe da experiência para revelar o seu conteúdo,

que é a universalidade de uma lei à qual a ação deve se conformar. Isso quer dizer

que o princípio subjetivo pelo qual um indivíduo determina o seu agir deve ser

idêntico ao princípio objetivo que determinaria o agir de qualquer outro ser. Em

Kant encontram-se várias formulações do imperativo categórico, que foram

classificadas conforme veremos agora (GALUPPO, 2002, p. 97). 1. Fórmula da lei universal

"Age apenas com base na máxima que tu possas desejar ao mesmo tempo que se

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Immanuel Kant e o idealismo alemão

139

torne uma lei universal." 2. Fórmula da lei da natureza

"Age como se a máxima da tua ação fosse para ser transformada, através da tua

vontade, em uma lei universal da natureza." 3. Fórmula do fim em si mesmo

"Age de tal modo que uses a humanidade, ao mesmo tempo na tua pessoa e na

pessoa de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como um fim, e nunca

apenas como um meio." 4. Fórmula da autonomia

"Age de tal maneira que tua vontade possa encarar a si mesma, ao mesmo tempo,

como um legislador universal através de suas máximas." 5. Fórmula do reino dos fins

"Agedetal maneira quetu sejas sempre através de suas máximas um membro

legislador em um reino universal dos fins."

O imperativo categórico é o primeiro empreendimento sistemático (ainda que

pese a sua austeridade de viés pietista) para se estabelecer uma moral autônoma,

isto é, uma moral que se outorga à própria lei, fundada exclusivamente na razão e

acessível a qualquer ser racional disposto e de boa vontade. A moral religiosa,

contra a qual Kant apresenta a sua moral, ao contrário, é heterônoma ao determinar

a vontade pelas conseqüências da ação - recompensas e castigos.

A autonomia implica a liberdade. Se não fôssemos livres, não seriamos res-

ponsáveis e, por conseqüência, não haveria moralidade. Ora, se a consciência moral

é um dado, devemos buscar nela própria as suas condições de possibilidade. Ainda

segundo Kant, três são os postulados da razão prática:

■ a liberdade;

■ a imortalidade;

■ a existência de Deus.

A unidade, ou a síntese entre o ser e o dever ser, realiza-se em Deus. Assim,

Kant deduz a metafísica não da ciência, mas da ética, instituindo o primado da

razão prática sobre a razão pura. Aliás, o próprio conhecimento está a serviço da lei

moral. Para que serve o saber senão para aperfeiçoar-se? O progresso histórico,

portanto, não pode consistir somente no desenvolvimento científico e técnico, mas

também e principalmente no aperfeiçoamento moral do ser humano.

Kant e a educação As principais ideias de Kant sobre a Educação estão em suas Aulas sobre Pedagogia

(1776-1777), nas quais resgata o ideal pedagógico grego, enriquecido com as

teses que Rousseau desenvolveu em Emílio (1767). Para Kant, o ser humano é o

único ser vivo que pode e deve ser educado. Como Rousseau, ele acredita na

diferenciação das práticas pedagógicas de acordo com a idade do educando. Além

disso, insiste na necessidade da disciplina no processo de instrução e de formação

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Tópicos da Filosofia da Educação

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cultural, que constituem a via de acesso à autonomia e à integridade moral. Em

linhas gerais, para Kant, o papel da educação na formação humana e especialmente

na formação do educador é sintetizado pela ideia de que:

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Immanuel Kant e o idealismo alemão

141

O homem somente pode vir a ser homem através da educação. Ele não é outra coisa senão o produto de sua educação. E cabe mencionar que o homem somente pode ser educado por homens que, por sua vez, foram educados. Por isso, a ausência de disciplina e instrução em certas pessoas faz delas maus educadores de seus educandos. (FREITAG, 1994, p. 22)

Contemporâneo dos iluministas, Kant representa ao mesmo tempo sua síntese

e sua superação. Se para os filósofos hedonistas da França do século XVIII a

educação apresentava função emancipadora, para o austero professor prussiano a

emancipação propiciada pela educação não é possível sem uma grande dose de

disciplina e autodomínio.

0 idealismo alemão Kant representa o ápice do pensamento moderno e ao mesmo tempo é a fonte

das principais formas contemporâneas do pensar. Para ele convergem, filtradas

pelo lluminismo, o empirismo e o racionalismo, encontrando nele uma síntese

brilhante. Dele procede o pensamento posterior, particularmente o idealismo

clássico alemão, matriz de boa parte do pensamento atual.

De um modo geral, idealismo diz respeito às correntes de pensamento que, de

uma maneira ou outra, dão primazia às ideias, quer como componentes exclusivos

da realidade, quer como o único modo pelo qual se pode conhecer ou

experimentar o mundo. Platão (na Antiguidade) e o racionalismo (na modernidade)

são exemplos dessa postura. Tendo o seu início em Kant, o idealismo alemão

posiciona-se nessa vertente ao postular, em linhas gerais, que o significado de um

objeto depende do sujeito que o compreende - em outras palavras, todo o

conhecimento é dependente dos termos ou formas ideais que caracterizam a subjetividade humana.

Além de Kant, representantes do idealismo alemão são Fichte (1762-1814),

Schelling (1775-1854), Hegel (1770-1831) e Schopenhauer (1788-1860), os quais

aprofundam e problematizam o criticismo kantiano. Com Flegel, o idealismo

encontra o seu auge autoafirmativo e otimista; com Schopenhauer, sua versão

pessimista, instaurando-se sua crise. Em termos comparativos, o vigor filosófico

dessa corrente só pode ser comparado à era socrática. Se a filosofia clássica é

dividida em antes e depois de Sócrates (470-399 a.C.), a filosofia moderna e con-

temporânea pode ser dividida em antes e depois de Immanuel Kant.

Texto complementar Da distinção entre o conhecimento puro e o empírico (KANT, 2008)

Não se pode duvidar de que todos os nossos conhecimentos começam com a

experiência, porque, com efeito, como haveria de exercitar-se a faculdade de se

conhecer, se não fosse pelos objetos que, excitando os nossos sentidos, de uma

parte, produzem por si mesmos representações, e de outra parte, impulsionam a

nossa inteligência a compará-los entre si, a reuni-los ou separá-los, e deste modo

à elaboração da matéria informe das impressões sensíveis para esse conhecimento

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Tópicos da Filosofia da Educação

142

das coisas que se denomina experiência?

No tempo, pois, nenhum conhecimento precede a experiência, todos começam

por ela.

Mas se é verdade que os conhecimentos derivam da experiência, alguns há, no

entanto, que não têm essa origem exclusiva, pois poderemos admitir que o nosso

conhecimento empírico seja um composto daquilo que recebemos das impressões

e daquilo que a nossa faculdade cognoscitiva lhe adiciona (estimulada somente

pelas impressões dos sentidos); aditamento que propriamente não distinguimos

senão mediante uma longa prática que nos habilite a separar esses dois elementos.

Surge, desse modo, uma questão que não se pode resolver à primeira vista: será

possível um conhecimento independente da experiência e das impressões dos

sentidos?

Tais conhecimentos são denominados a priori, e distintos dos empíricos, cuja

origem é a posteriori, isto é, da experiência.

Aquela expressão, no entanto, não abrange todo o significado da questão

proposta, porquanto há conhecimentos que derivam indiretamente da experiência,

isto é, de uma regra geral obtida pela experiência, e que no entanto não podem ser

tachados de conhecimentos a priori.

Assim, se alguém escava os alicerces de uma casa, a priori poderá esperar que ela

desabe, sem precisar observar a experiência da sua queda, pois,

praticamente, já sabe que todo corpo abandonado no ar sem sustentação cai ao

impulso da gravidade. Assim, esse conhecimento é nitidamente empírico.

Consideraremos, portanto, conhecimento a priori, todo aquele que seja adquirido

independentemente de qualquer experiência. A ele se opõem os opostos aos

empíricos, isto é, àqueles que só o são a posteriori, quer dizer, por meio da

experiência.

Atividades 1. Analise o trecho a seguir.

Em sentido geral, recebe esse nome a postura que advoga a investigação crítica

dos fundamentos do conhecimento como condição preliminar para toda a filosofia.

Em sentido estrito, é o nome dado à filosofia kantiana, que propõe uma

investigação radical sobre as condições e possibilidades do conhecimento.

Entre o dogmatismo e o ceticismo, o criticismo kantiano procura reformular o

caminho em que é possível pensar a filosofia. Portanto, em diálogo tanto com o

racionalismo (mais dogmático) quanto com o empirismo (mais cético), Kant ensaia

uma nova resposta à velha pergunta que desde o fim da cosmovisão medieval

atormentava os filósofos: qual é a fonte do conhecimento?

Com base no texto acima, quais são os fundamentos do processo de ensino e

aprendizagem no qual nos inserimos? O que seria uma postura dogmática na

educação? E uma postura cética?

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Immanuel Kant e o idealismo alemão

Assinale quais as influências diretas de Immanuel Kant.

( ) Revolução Industrial.

( ) Cabala.

( ) Racionalismo.

( ) Revolução Francesa.

( ) Empirismo inglês.

( ) Escolástica.

( ) lluminismo.

( ) Idealismo alemão.

Quais são os principais representantes do idealismo alemão? Assinale a alter-

nativa correta.

a) Kant, Hume, Christian Wolffe Leibniz.

b) Kant, Leibniz, Schelling, Hegel e Nietzsche.

c) Kant, Fichte, Schelling, Hegel e Schopenhauer.

d) Kant, Christian Wolff, Leibniz, Goethe e Hume.

e) Kant, Goethe, Hegel, Schopenhauer e Nietzsche.

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A dialética idealista e materialista O homem tem de viver em dois mundos que se contradizem [...]. O Espírito afirma

o seu sentido e a sua dignidade perante a anarquia e a brutalidade da natureza, à qual

devolve a miséria e a violência que ela o faz representar. Mas essa divisão da vida e da

consciência cria para a cultura moderna e para a sua compreensão a exigência de resolver

uma tal contradição. Georg Hegel Os filósofos não têm feito senão interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo. KarIMarx

Dialética: breve histórico O termo dialética confunde-se com a própria história da filosofia e, assim

como a filosofia, tem as suas raízes na Grécia antiga. Sua origem etimológica

está em dois radicais gregos: ■ dia (ôia), com o sentido de "dualidade", "troca";

■ léktikós (âe'ktk'0, significando "apto à palavra", "capaz de falar", da mesma

raiz de logos, "palavra", "razão".

Nesse sentido, tem estreita relação com o vocábulo diálogo, sendo possível

definir a dialética como a "arte do diálogo": tal como no diálogo, na dialética

também há duas razões ou posições entre as quais se estabelece,

precisamente, um diálogo.

Com o tempo, dialética passou a significar o processo de, no diálogo,

demonstrar uma tese por meio de uma argumentação precisa, capaz de

distinguir claramente os termos envolvidos na discussão. Com efeito, boa

parte da filosofia clássica era feita em praça pública, em debates e discussões

acaloradas.

Mas o sentido mais radical da dialética - e paradoxalmente, mais próximo do

moderno - deve ser buscado em Heráclito de Éfeso (540-470 a.C.). Para ele, tudo

está em constante mudança e o conflito rege todas as coisas: a vida e a morte, o

sono e a vigília, a juventude e a senilidade são realidades que se transformam

continuamente umas nas outras. Seu fragmento de número 91, em especial,

tornou-se célebre:"Um homem não toma banho duas vezes no mesmo rio". Isto

porque da segunda vez ele já não será o mesmo homem de antes e nem estará no

mesmo rio, já que ambos estarão mudados.

Todavia, para os gregos essa concepção era muito unilateral e eles preferiram a

posição de um outro pensador da época: Parmênides (530-460 a.C.), para quem a

essência do ser é imutável, de modo que o movimento é uma ilusão. Não por

acaso, Aristóteles considerava Zenão de Eleia (495-430 a.C.), discípulo de

Parmênides, o fundador da dialética.

Zenão servia-se da dialética para tentar demonstrar que o movimento não

Page 111: 98570508 Topicos de Filosofia Da Educacao Online

A dialética idealista e materialista

145

existe. Ficou famosa a sua argumentação de que, se o tempo e o espaço são

infinitamente divisíveis, Aquiles, a despeito de toda a sua velocidade, nunca ven-

ceria uma corrida com uma tartaruga.

E outros atribuem o mérito da invenção da dialética a Sócrates (470-399 a.C.). É

verdade que antes dele os sofistas já utilizavam a dialética, afirmando que tanto

uma opinião quanto a sua contraditória podem ser válidas, dependendo da

argumentação de seu defensor. Mas Sócrates serviu-se da dialética com um fim

positivo e, no mesmo estilo dialógico dos sofistas, mostrou que é possível, a partir

de duas opiniões contraditórias, chegar a uma opinião superior, mais próxima da

verdade. A passagem da ignorância ao saber é feita pela ironia (interrogação) e

culmina na maiêutica (parto), pela qual o conhecimento é"parido" e a verdade é

trazida à luz.

Em Platão, discípulo de Sócrates, encontramos duas formas de dialética. Em

alguns diálogos (como Fédon e a República), a dialética é apresentada como um

método de elevação do sensível ao inteligível. Em outros, especialmente nos

últimos diálogos (como Parmênides e o Sofista), ele a apresenta como um método de

dedução racional que permite discriminar as ideias. De toda forma, para Platão, a

dialética nunca é uma mera disputa ou simplesmente um sistema formal de

raciocínio.

Aristóteles, por sua vez, prefere a demonstração à dialética - que para ele é uma

forma não demonstrativa de conhecimento, uma aparência de filosofia e não a

filosofia propriamente dita. Daí por que tende a colocá-la no mesmo nível que a

disputa e a probabilidade.

E no helenismo, o sentido positivo da dialética ressurge somente de modo

ocasional - aqui com os estoicos, ali com os neoplatônicos.

Já na Baixa Idade Média (séculos XII-XV), a dialética forma com a retórica e a

gramática o trivium das artes liberais1. Como tal, era mais um método do que

propriamente filosofia. Colocava-se, por exemplo, situações contraditórias e se

tentava demonstrar pelo sim e o não (sicetnori) aquela que é mais plausível. A tese

era, pois, o resultado da apreciação dos argumentos prós e contras sobre

determinado tema.

No Renascimento, novamente se rejeitou a dialética, tomada como um mero

conteúdo formal.

Da mesma forma, a dialética recebeu um sentido pejorativo na filosofia mo-

derna. Immanuel Kant (1724-1804), por exemplo, considerava-a como a lógica da

aparência. Daí por que a "dialética transcendental", por ele desenvolvida, apresenta-

se como a crítica desse gênero de aparências, que se origina da razão quando esta

ultrapassa os seus limites.

E, assim, chegamos a Hegel, o ponto culminante do idealismo alemão e ao

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Tópicos da Filosofia da Educação

146

mesmo tempo o seu desfecho. Ele resgatou a dignidade da dialética, tornando-a o

principal instrumento de compreensão da dinâmica da história.

Hegel GeorgWilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart, Alemanha, a 27 de agosto

de 1770, filho de um modesto funcionário público do departamento de finanças do

Estado de Wurtemberg. Depois de estudar gramática e a cultura clássica, George

Hegel ingressou no seminário deTubingen. Permaneceu na instituição de 1788 a

1793, cursando filosofia e teologia, e ali foi colega do filósofo Schelling (1775-

1854) e do poeta Hõlderlin (1770-1843). Foi também ali que Hegel, estudante

aplicado, começou a organizar, em ordem alfabética, um colossal fichário

- que manteve atualizado ao longo de toda sua vida - acerca de tudo o que lia.

Deixando o seminário, Hegel foi trabalhar como tutor particular em Berna, na

Suíça. Em 1796, voltou para território alemão, instalando-se em Frankfurt, onde

Hõlderlin lhe arranjara uma tutoria. Porém, desiludido amorosamente, esse amigo

entrou em depressão e veio a enlouquecer - o que deixou Hegel profundamente

abalado. ** Essas três disciplinas do trivium compunham a primeira parte do ensino universitário e depois vinha o quadrivium (aritmética, geometria, música e

astronomia), assim completando as sete artes, também conhecidas como artes liberais.

Para superar essa crise, o filósofo mergulhou com mais afinco no trabalho de

engrossar o seu fichário. Com recursos herdados de seu pai, falecido em 1799,

Hegel deixou Frankfurt dois anos depois e foi concorrer a uma cadeira de livre-

docente na Universidade de Jena, onde Schelling, então com apenas 26 anos,

lecionava. Porém, os maiores nomes de Jena, como Fichte (1762-1814) e os irmãos

August (1767-1845) e Friedrich von Schlegel (1772-1829), já haviam saído de lá.

Com o auxílio de Goethe, Hegel foi nomeado professor extraordinário, mas

conseguiu receber algum rendimento significativo somente um ano depois, em

1806.

Nesse mesmo ano, Hegel se entusiasmou quando Napoleão submeteu a

Prússia33, que ele considerava governada por uma burocracia corrupta. Em 1807,

publicou seu célebre livro, Fenomenologia do Espírito, para muito poucos enten-

dedores - escritas com uma terminologia inteiramente nova, suas obras são de

difícil leitura.

Para melhorar sua renda, Hegel tornou-se editor de um jornal (1807-1808) e

em seguida diretor de um ginásio em Nurberg (1808-1816). Em 1811, casou- -se

com Marie von Tucher (que era 22 anos mais nova que ele), com quem teve dois

filhos, sendo que já havia um filho natural que ele trouxe de Jena. E foi em Nurberg

que ele publicou as duas partes de Ciência da Lógica (1812 e 1816), cuja repercussão

motivou o convite para lecionar em Heidelberg.

Já em Heidelberg, veio à luz a sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1817), na

33 Antigo Estado cuja capital era Berlim e que existiu no que hoje é a região norte da Alemanha.

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A dialética idealista e materialista

147

verdade uma exposição de suas ideias.

No ano 1818, ele foi para a Universidade de Berlim assumir a cadeira vaga com

a morte de Fichte. Em Berlim, sua ascendência sobre os alunos foi e ele publicou

sua Filosofia do Direito (1821). Em 1830, tornou-se reitor da universidade.

Por essa altura, ele já era um ardoroso defensor do Estado prussiano, pois temia

que as convulsões sociais daquele momento levassem o povo ao poder. Seus livros

desse período são feitos principalmente a partir de anotações dos seus alunos.

No verão de 1831, fugindo a um surto de cólera, Hegel refugiou-se nas re-

dondezas da cidade. Porém, precisou retornar para o período acadêmico e assim

contraiu a doença, vindo a falecer em 14 de novembro. Conforme sua vontade, foi

enterrado ao lado de Fichte.

0 hegelianismo Em linhas gerais, o pensamento de Hegel é tributário da filosofia grega, do

racionalismo cartesiano e do idealismo alemão - do qual ele é o ápice.

De Heráclito, ele resgata a ideia de dialética, entendida como estrutura da

realidade e do pensamento.

De Aristóteles, ele toma três noções fundamentais:

■ a do universal, imanente e não transcendente ao individual;

■ a do movimento como passagem da potência para o ato;

■ a das relações entre a razão e a experiência, cuja necessidade interna deve ser

revelada pelo pensamento.

Do racionalismo, Hegel herdou a ideia da racionalidade do real, ou seja, a

coincidência entre rescogitans (coisa pensante) e resextensa (coisa material), e de

Espinosa, em particular, a intuição de que"qualquer afirmação é uma negação".

De Kant (ponto de partida de toda a moderna filosofia alemã), Hegel assumiu a

ideia de uma lógica transcendental, a qual, remontando às origens do conheci-

mento, considera os conceitos a priori, em relação aos objetos; formula as regras do

pensamento puro e vincula as categorias ao eu subjetivo.

De Fichte, Hegel emprestou a noção de dialética como processo de afirmação,

negação e negação da negação, na síntese.

E de Schelling, ficou com a ideia de identidade do sujeito e do objeto na cons-

ciência do absoluto.

A filosofia de Hegel pode ser considerada uma filosofia do vir-a-ser, do movi-

mento e das transformações - de certa forma, é o primeiro grande sistema filo-

sófico que reflete a nova consciência histórica derivada da Revolução Francesa e da

Revolução Industrial, as duas revoluções que revelaram a inevitabilidade das

mudanças e que a história é muito mais que uma sucessão de fatos.

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Tópicos da Filosofia da Educação

148

Para dar conta dessa nova compreensão, foi necessário abandonar a antiga

lógica aristotélica, considerada demasiado estática, e estabelecer os princípios de

uma nova lógica: a dialética, que afirma a perecibilidade de todas as coisas. Em

outras palavras, toda morte gera um novo ser, o qual já traz em si o germe de sua

destruição. Esse movimento é o processo histórico. Hegel também o chamou de

contradição criadora, em oposição à contradição aristotélica, na qual não há movimento

na medida em que o não-ser é completamente oposto ao ser.

Essa leitura permite também um novo entendimento da história, segundo o qual

o presente não é um simples acumulado de fatos, mas um engendramento de

acontecimentos movidos por um "motor" - que para Hegel é, justamente, a

contradição. Em outras palavras, a história não é vista como algo que está enfor-

mado, formatado, preso em "repartições" que são o tempo, mas ela escoa, tor-

nando o presente o resultado de um processo.

Por outro lado, os vários estágios da história da humanidade não são mais

vistos como contingentes ou aleatórios, mas sim como necessários e progressivos,

assim como a luta, a guerra e o conflito entre os grupos que representam esses

estágios também são necessários.

Para Hegel, o conceito de real recebe também um novo sentido: aquilo que se

conhece apenas a partir da experiência, do imediato, é abstrato. Aquilo de que, ao

contrário, é conhecida a gênese, a origem, o processo de constituição, é real. Isso

se expressa no famoso axioma "O real é racional, o racional é real". No entanto, vale

lembrar que Hegel se mantém dentro dos limites do idealismo, e que para ele a

história nada mais é que história da ideia.

Como a de Fichte, a dialética hegeliana compõe-se de três etapas: tese, antítese

e síntese - ou seja, afirmação, negação e negação da negação.

Assim, o que está no início não é a natureza (como pensavam os pré-socrá-

ticos), mas sim a ideia pura, que constitui o princípio inteligível do mundo, a ordem

do real: essa é a tese, e o seu conteúdo é estudado pela lógica.

A natureza, porém, é a ideia alienada, a ideia fora de si, a forma "empírica" da

ideia no espaço e no tempo, e para desenvolver-se ela cria algo oposto a si mesma

- a antítese. O seu desenvolvimento dialético é tratado na filosofia da natureza.

Da luta desses dois princípios antagônicos nasce a síntese, ou o espírito, que é a

natureza que toma consciência de si, da sua imanente divindade. Esse é o objeto da

filosofia do espírito.

Nesse último nível ainda temos dois espíritos: um subjetivo, que se encerra na

individualidade humana (emoção, desejo, imaginação), e outro objetivo, que

constitui a humanidade enquanto coletividade (moral, direito, política). Do embate

desses dois espíritos tem-se o espírito absoluto - Deus - a mais alta realização da

ideia, em que se atinge o mais alto grau de autoconsciência.

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A dialética idealista e materialista

149 ■

O espírito absoluto, por seu turno, desenvolve-se "em arte (expressão do ab-

soluto na intuição estética), religião (expressão do absoluto na representação

mítica), filosofia (expressão conceituai, lógica, plena do absoluto)" (PADOVANI;

CASTAGNOLA, 1984, p. 389). Todavia, houve vários sistemas filosóficos, que re-

presentariam momentos necessários na história da filosofia até o advento da

filosofia absoluta, que é o idealismo absoluto de Hegel.

Família e Estado Por outro lado, a família é a primeira realização do espírito objetivo, o qual, para

resolver as contradições entre os indivíduos, entre as várias famílias e clãs, cria o

Estado, que é a síntese mais perfeita desse espírito, já que harmoniza os interesses

contraditórios dos indivíduos, o público e o privado. No final da vida, Hegel veria

esse Estado materializado na Prússia. Assim, o Estado prussiano é a síntese do es-

pírito objetivo e a filosofia hegeliana, a síntese absoluta de todo esse processo

dialético. Como se pode ver, a modéstia não era uma das virtudes de Hegel.

Não obstante os exageros desse sistema grandiloqüente, Hegel tem o indiscu-

tível mérito de trazer para o cerne da reflexão filosófica o processo histórico. Mas

aqui também está a sua fraqueza: uma certa simplificação a que ele submeteu a

história para que ela coubesse dentro da sua estrutura triádica.Todavia, com a his-

tória incorporada à filosofia, a antiga lógica aristotélica mostrou-se incapaz de dar

conta dos processos de compreensão da nova realidade e, assim, a dialética hege-

liana vem justamente oferecer os instrumentos que faltavam. Eis como Padovani e

Castagnola distinguem a lógica tradicional da dialética de Hegel: 1. ° - A lógica tradicional afirma que o ser é idêntico a si mesmo e exclui seu oposto (princípio de identidade e de contradição); ao passo que a lógica hegeliana sustenta que a realidade é essencialmente mudança, devir, passagem de um elemento ao seu oposto; 2. ° - a lógica tradicional afirma que o conceito é universal abstrato, enquanto apreende o ser imutável, realmente, ainda que não totalmente; ao passo que a lógica hegeliana sustenta que o conceito é universal concreto, isto é, conexão histórica do particular com a totalidade do real, onde tudo é essencialmente conexo com tudo; 3. ° - a lógica tradicional distingue substancialmente a filosofia, cujo objeto é o universal e o imutável, da história, cujo objeto é o particular e o mutável; ao passo que a lógica hegeliana assimila a filosofia com a história, enquanto o ser é vir-a-ser; 4. ° - a lógica tradicional distingue-se da ontologia, enquanto o nosso pensamento, se apreende o ser, não o esgota inteiramente - como faz o pensamento de Deus; ao passo que a lógica hegeliana coincide com a ontologia, porquanto a realidade é o desenvolvimento dialético do próprio logos divino que no espírito humano adquire plena consciência de si mesmo. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 389)

Profundamente revolucionária, no entanto, a dialética hegeliana permaneceu

inofensiva nas mãos daquele pacato professor do Estado prussiano. Seria

necessário que alguém a tirasse do mundo abstrato das ideias e a colocasse no

mundo concreto da matéria para fazer detonar o seu potencial revolucionário. Esse

alguém foi Karl Marx.

Filósofo e agitador Karl Heinrich Marx nasceu emTrier, sul da Alemanha, a 5 de maio de 1818. A

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Tópicos da Filosofia da Educação

150

mãe tinha origem na nobreza da Holanda e o pai era advogado. Eram judeus e

precisaram converter-se ao cristianismo quando o pequeno Karl ainda estava com

seis anos de idade em função das restrições legais impostas aos membros da

comunidade judaica no serviço público.

Em 1835, com 17 anos, Marx ingressou na Universidade de Bonn, transfe-

rindo-se, já no ano seguinte, para a Universidade de Berlim, onde a influência de

Hegel era bastante forte, mesmo após sua morte em 1811. Em Berlim, Marx

participou ativamente do movimento dos jovens hegelianos, um grupo de in-

telectuais que pretendia levar adiante o pensamento de Hegel, em desacordo com

os chamados hegelianos de direita, para quem o Estado prussiano era a

culminância da história.

Com a tese Sobre as Diferenças da Filosofia da Natureza de Demócrito e Epicuro, Marx obteve

o grau de doutorado, em Jena, em 1841. Impossibilitado de seguir a carreira

acadêmica, já que as portas da universidade estavam fechadas para os hegelianos

de esquerda, tornou-se redator de um jornal de tendência liberal publicado em

Colônia. Essa atividade força-o a ocupar-se com problemas concretos de natureza

política e econômica. No entanto, o governo, incomodado com o teor desses

artigos, fechou o jornal.

Depois de um noivado de longos anos, Marx casou-se e emigrou para a França,

onde editou, juntamente com seu amigo Arnold Ruge, os Anuários Franco-Germâ- nicos.

Em Paris, travou contato com o poeta alemão Heinrich Heine - também exilado - e

com socialistas franceses, além de estreitar amizade com Friedrich Engels (1820-

1895), com quem produziu diversas obras em comum. Filho de um industrial,

Engels costumava socorrer Marx nas suas numerosas dificuldades financeiras.

Mas a permanência de Marx na França foi breve: a pedido do governo prussiano

ele foi expulso, estabelecendo-se provisoriamente em Bruxelas, na Bélgica, onde

fundou o primeiro partido comunista do mundo.

Após uma passagem por Londres, Inglaterra - ocasião em que redigiu O Ma-

nifesto Comunista, ou O Manifesto do Partido Comunista, juntamente com Engels

- Marx retornou à França, mas logo assumiu a chefia do Novo Jornal Renano, em

Colônia, primeiro jornal diário francamente socialista.

Todavia, foi novamente expulso, agora de sua própria terra, e então viveu até

seus últimos dias, com apenas breves interrupções, em Londres.

Em Londres, Marx dedicou-se a vastos estudos econômicos e históricos e es-

creveu artigos para jornais, mas sua situação material continuou sempre muito

precária.

Em 1864,foicofundadorda Internacional Socialista34, desempenhando grande

^ A Internacional Socialista foi uma primeira tentativa de organização mundial dos trabalhadores com vistas à defesa de seus interesses, tendo

como horizonte uma revolução socialista mundial.

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A dialética idealista e materialista

151

papel de direção. Em 1867, veio a lume o primeiro tomo da sua obra máxima, O Capital.

Em 1883, porém, antes que a obra de três volumes estivesse completa, Marx

morreu, aos 65 anos de idade.

Sua produção deve ser enquadrada dentro da chamada esquerda hegeliana. Isso

porque, segundo ele, não é o espírito que determina o movimento da história, mas,

antes, as relações econômicas de produção. É sobre essas relações que se erguem

as superestruturas do pensamento, da cultura e da forma política. Por isso,

considera-se sua obra uma inversão da teoria hegeliana.

Sua obra principal é composta pelos livros:

■ A Ideologia Alemã (1845, com a coautoria de Engels);

■ Manifesto do Partido Comunista (1848, também com a coautoria de Engels);

■ Contribuição à Crítica da Economia Política (1859), cujo conteúdo é retomado em O

Capital (1867); ■ 018 Brumário de Luís Bonaparte (1869).

Em Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx reconhece em Hegel o mérito de ter

instituído o instrumental que serviria para explicar as contradições reais da história

e da vida, mas acusa-o de ter colocado esse sistema de cabeça para baixo - daí a

necessidade de invertê-lo, colocá-lo sobre seus pés.

0 materialismo histórico O pensamento de Marx tem três fontes principais: a economia política inglesa

do início do século XIX, o idealismo alemão e o materialismo filosófico francês do

século XVIII.

Nos economistas ingleses, ele buscou uma teoria social que se pretende

científica. De David Ricardo (1772-1837), adotou a teoria do valor do trabalho,

embora lhe imprimindo uma nova orientação. Para Ricardo - que parte do pres-

suposto da imutabilidade da ordem social existente -, a livre concorrência manteria

os salários dos trabalhadores no nível de subsistência, assim controlando o seu

número. Marx, por sua vez, parte do ponto de vista do trabalhador, distinguindo

duas formas de trabalho:

■ trabalho-ação - a força de trabalho que é vendida pelo trabalhador e paga pelo

empregador;

■ trabalho-resultado - o produto do trabalho realizado pelo trabalhador e

vendido pelo empregador no mercado.

Para Marx, essas duas formas de trabalho não apresentam o mesmo valor, já

que entre elas existe, como diferença de valor, a mais-valia, isto é, o lucro do

empregador.

O valor do trabalho-ação, da força de trabalho, tem como medida o seu custo

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Tópicos da Filosofia da Educação

152

de produção, ou seja, o valor que foi necessário para produzir abrigo, alimentação,

vestuário etc. para o trabalhador e seus dependentes, todos elementos

indispensáveis ao prosseguimento de seu esforço produtivo. Digamos que a

parcela de todos esses elementos consumida pelo trabalhador e seus dependentes

durante um dia de trabalho eqüivale a quatro horas de trabalho. Assim, o trabalho-

ação desse trabalhador vale um preço que lhe é pago pelo patrão sob a forma de

salário. No entanto, a força vendida pelo operário ao patrão vai ser utilizada não

durante quatro horas, mas, seis, oito, dez ou mais horas. A mais-valia é, assim,

constituída pela diferença entre o preço pelo qual o empresário compra a força de

trabalho (quatro horas) e o preço pelo qual ele vende o resultado no mercado (oito

horas, por exemplo)35.

Do idealismo alemão, Marx bebeu sobretudo em Hegel. Depois da morte do

grande filósofo, seus discípulos dividiram-se em dois grupos: os hegelianos de

direita, para quem o espírito absoluto se manifestava no Estado prussiano daquele

tempo, e os hegelianos de esquerda, que, brandindo o movimento histórico

permanente, lançaram uma crítica veemente à religião cristã. Entre esses jovens

hegelianos destacava-se um que exerceria influência decisiva sobre o jovem Marx:

Ludwig Feuerbach (1804-1872), que substitui o espírito hegeliano pelo ser

humano, o panteísmo de seu mestre por um ateísmo humanista.

A novidade do hegelianismo está, como vimos, em ter oposto a todas as filo-

sofias anteriores a ideia de um devir constante, por meio do fluxo incessante dos

fenômenos históricos, segundo a lei da dialética: Aqui a interpretação da Marxé profundamente hegeliana no método, embora a força propulsora seja concebida de modo diferente em ambos os casos. Para Hegel, o curso da história é uma gradual autorrealização do espírito que tende para o absoluto. Marx substitui o espírito pelos modos de produção, e o absoluto pela sociedade sem classes. Um determinado sistema de produção, no curso do tempo, desenvolverá tensões internas entre as várias classes sociais a ele vinculadas. Estas contradições, como Marx as denomina, se resolvem numa síntese mais elevada. A forma que a luta dialética assume é a luta de classes. A batalha prossegue até que, com o socialismo, instaura-se uma sociedade sem classes. Uma vez alcançado esse objetivo, não há mais razão para lutar, e o processo dialético pode adormecer. (RUSSELL, 2002, p. 390)

Assim, a dialética idealista de Hegel é transformada no materialismo dialético,

escopo da concepção filosófica de Marx. Não é mais a ideia que propulsiona a

história, mas as relações materiais de produção. Com efeito, Marx vira de cabeça

para baixo o modelo hegeliano.

E aqui entra a terceira grande influência do marxismo: o materialismo, que Marx

vai buscar nos enciclopedistas franceses, especialmente Diderot (1713-1784) e

Holbach (1723-1789), e novamente em Feuerbach. Todavia, Marx não se satisfez

com esse materialismo mecanicista que faz todas as obras do espírito (religião,

arte, cultura) dependerem da matéria (as relações materiais de produção). Aplicando seu

35

No capitalismo moderno, com a redução da jornada de trabalho, o lucro empresarial seria sustentado por meio do que se denomina mais-valia reiativa

(em oposição à primeira forma, chamada mais-valia absoluta), que consiste em aumentar a produtividade do trabalho utilizando a racionalização e o

aperfeiçoamento tecnológico.

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A dialética idealista e materialista

153

materialismo dialético à história, ele criou o materialismo histórico, que é a teoria

sociológica geral do marxismo, no qual a sociedade é comparada a um edifício em

que as fundações (a infraestrutura) seriam representadas pelas forças econômicas,

enquanto o edifício em si (a superestrutura) representa as ideias, os costumes, as

instituições sociais etc. Se por um lado a infraestrutura determina a superestrutura,

por outro lado ela sofre reflexos dessa superestrutura, dialeticamente.

Com a mudança das formas de produção (a infraestrutura), também mudam as

ideias e construções culturais do ser humano (a superestrutura). Ora, as relações

fundamentais da sociedade são as relações de produção, que se efetivam na divisão

social do trabalho; a maneira pela qual as forças produtivas se organizam

determina as relações de produção. No entanto, o desenvolvimento da técnica leva

a uma contradição com a antiga relação de produção e faz-se necessária uma nova

organização (divisão do trabalho).

Assim, nas sociedades primitivas os seres humanos organizavam-se mutu-

amente para enfrentar a natureza; os produtos eram de propriedade comum e não

havia sentimento de posse. Mais tarde, com o começo da domesticação de animais

e o incremento da agricultura, alteraram-se as relações de produção e, por

conseguinte, os modos de produção, aparecendo a propriedade familiar e as

primeiras distinções de classe. Mais adiante, a produção foi aumentada além do

necessário à subsistência, tornando-se prementes novas forças de trabalho; surgiu

então a primeira forma de propriedade privada e a exploração do homem pelo

homem e, consequentemente, a contradição entre senhores e escravos. Essa linha

evolutiva - a partir da dialética de afimação, negação e negação da negação (tese,

antítese e síntese) - só chegaria ao fim na sociedade sem classes, no comunismo.

Portanto, o materialismo marxista é dialético, ou seja, parte da constatação de

que os fenômenos materiais são processos. Isso significa que o mundo não é uma

realidade estática e sim dinâmica, um complexo de processos e, por isso, a

abordagem da realidade pode ser feita apenas de maneira dialética. Nesse mesmo

sentido, a superestrutura não é uma simples decorrência da matéria: é possível

libertar-se do determinismo e libertar o ser humano por meio da ação

revolucionária.

A práxis E aqui chegamos a outra novidade do pensamento de Marx: ele nunca foi um

filósofo de gabinete, como seus conterrâneos Kant e Hegel. Se alguém quisesse

acertar seu relógio pelo horário dos passeios do filósofo (como faziam os vizinhos

de Kant), ficaria sem dúvida em apuros. Como vimos, por suas posições políticas

Marx não conseguiu obter uma cátedra nas universidades alemãs e teve que ganhar

a vida no exílio e em condições muito adversas. Além disso, participou ativamente

da luta revolucionária de seu tempo, ajudando a conscientizar e organizar os

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Tópicos da Filosofia da Educação

154

trabalhadores. Na 11 .a das suas Teses sobre Feuerbach, ele declara: "Os filósofos têm

apenas interpretado o mundo de maneira diferente; a questão, porém, é

transformá-lo." Isso significa que a prática é tão importante quanto a teoria - a qual

não pode se desvincular da ação histórica e concreta do ser humano, unindo-se

dialeticamente os níveis teórico e prático em uma coisa só, que é a práxis (termo

que provém do grego e significa "ação", "realização").

Para Marx, a queda do regime capitalista ocorreria não só por força de suas

contradições internas, mas também pela ação - a práxis - revolucionária dos

trabalhadores organizados. A essa derrubada do sistema sucederia uma fase

transitória (a ditadura do proletariado), com a liquidação das antigas classes e a

implantação de um regime coletivista, preparatórios da fase definitiva (o comu-

nismo integral), com a abolição completa do Estado. O mais, Marx não diz: ele se

recusa a elaborar uma utopia - o seu socialismo, fruto típico do século XIX,

pretende-se rigorosamente científico.

Marx morreu antes de ver os partidos socialistas que ele ajudara a fundar ven-

cerem suas primeiras eleições. Trinta e quatro anos após a sua morte, o partido

bolchevique, inspirado diretamente nas suas ideias, assumiu o poder na Rússia,

depois de uma revolução. Ao longo do século XX, várias nações tornaram-se

socialistas, chegando ao ponto de quase metade da população do globo viver sob

regimes de inspiração marxista. Entre a queda do Muro de Berlim (1989) e a

dissolução da União Soviética (1991), esses regimes caíram como castelos de

cartas. Mas uma pergunta que se fez e se faz é sobre até que ponto Marx pode ser

responsabilizado pelas diferentes "leituras" de sua obra (e os respectivos efeitos

colaterais) ou se tais práticas não seriam resultado de visões distorcidas de suas

ideias. Todavia, a discussão sobre o futuro do capitalismo continua e Marx não

pode ser alijado desse debate, já que ele foi um dos melhores - senão o melhor -

intéprete do regime fundado sobre o capital.

Textos complementares 0 verdadeiro é o todo (HEGEL, 1964, p. 233-234)

O verdadeiro é o todo. Mas o todo é tão-só a essência que não se completa

senão por seu desenvolvimento. É preciso dizer do absoluto que é essencialmente

resultado, que só no final é o que em verdade é; e nisso consiste precisamente sua

natureza, ser alguma coisa real, sujeito ou mesmificação. Por bastante contraditório

que possa parecer conceber o absoluto essencialmente como resultado, basta uma

pequena reflexão para desvanecer esta aparência de contradição. O começo, o

princípio, ou o absoluto, tal como se manifesta do início e imediatamente, é tão-só

o geral. Do mesmo modo que

eu digo "todos os animais", não eqüivale esta expressão à Zoologia, assim também

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A dialética idealista e materialista

155

percebemos que as palavras divino, absoluto, eterno etc. não manifestam o que está

contido nelas - e somente estas palavras são as que exprimem em verdade a

intuição como alguma coisa imediata. Tudo o que seja mais que uma de tais

palavras, a menor transição para uma só proposição, é já um alterar-se que tem

que ser substituído, é uma mediação. Mas esta mediação é o que horroriza, como

se ao fazer só o que acabamos de dizer, isto é, não ser nada nem absoluto nem no

absoluto, já não se tivera um conhecimento absoluto.

Mas este horror procede em verdade do desconhecimento da natureza da

própria mediação e do conhecer absoluto. Porque a mediação não é senão a

semovente igualdade consigo mesma ou a reflexão sobre si mesmo, o momento do

eu que é si mesmo, a pura negatividade, ou, reduzido a sua própria abstração, o

simples devir. O eu ou o devir em geral, este mediar, é justamente, graças à sua

simplicidade, a imediatez em processo de vir-a-ser ou o próprio imediato. Por isso,

é um desconhecimento da razão, excluir do verdadeiro a reflexão, ou não tomá-la

como momento do absoluto. É ela a que converte o verdadeiro em resultado e

igualmente absorve esta contraposição com referência a seu devir, pois o devir é

igualmente simples, e por isto não difere da forma do verdadeiro, isto é, o

manifestar-se como simples resultado; é justamente este mesmo "ser reproduzido"

à simplicidade. Se bem é verdade que o embrião é o homem, não o é, contudo, que

o seja para si; sê-lo-á somente como razão formada, quando a razão tenha

chegado a fazer-se o que ela é em si. Só nisto consiste sua realidade. Mas este

resultado é, por sua vez, simples imediatez, pois é a liberdade autoconsciente que

repousa em si, e não atirou fora a contraposição deixando-a estar aí, porquanto a

reconciliou com ela.

A história das lutas de classes (MARX; ENGELS, 2006, p. 84-87)

A história de todas as sociedades que existiram até hoje tem sido a história das

lutas de classes.

Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e

companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante

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A dialética idealista e materialista

156

oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora aberta, ora disfarçada: uma

guerra que sempre terminou ou por uma transformação revolucionária de toda a

sociedade, ou pela destruição das duas classes em luta.

Nas épocas históricas mais remotas encontramos, quase por toda parte, uma

divisão completa da sociedade em classes distintas, uma escala graduada de

posições sociais. Na Roma antiga encontramos patrícios, cavaleiros, plebeus,

escravos; na Idade Média, senhores, vassalos, mestres, companheiros, servos; e, em

cada uma dessas classes, gradações especiais.

A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não

aboliu os antagonismos de classe. Não fez mais do que estabelecer novas classes,

novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das velhas. No

entanto, a nossa época, a da burguesia, possuiu uma característica: simplificou os

antagonismos de classes. A sociedade divide-se cada vez mais em dois campos

opostos, em duas classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado.

Dos servos da Idade Média nasceram os cidadãos livres dos burgos, das

primeiras cidades; dessa população urbana saíram os primeiros elementos da

burguesia.

A descoberta da América e a circunavegação da África ofereceram à burguesia

em ascensão um novo campo de ação. Os mercados da índia e da China, a

colonização da América, o comércio colonial, o incremento dos meios de troca e,

em geral, das mercadorias, imprimiram um impulso até então desconhecido ao

comércio, à indústria, à navegação, e, por conseguinte, desenvolveram rapidamente

o elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição.

A antiga organização feudal da indústria, em que esta era circunscrita a cor-

porações fechadas, já não podia satisfazer às necessidades que cresciam com a

abertura de novos mercados. A manufatura a substituiu. A pequena burguesia

industrial suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho entre as

diferentes corporações desapareceu diante da divisão do trabalho dentro da própria

oficina.

Todavia, os mercados ampliavam-se cada vez mais: a procura de mercadorias

aumentava sempre. A própria manufatura tornou-se insuficiente; então o vapor e a

maquinaria revolucionaram a produção industrial. A grande indústria moderna

suplantou a manufatura; a média burguesia ma- nufatureira cedeu lugar aos

milionários da indústria, aos chefes de verdadeiros exércitos industriais, aos

burgueses modernos.

A grande indústria criou o mercado mundial, preparado pela descoberta da

América. O mercado mundial acelerou prodigiosamente o desenvolvimento do

comércio, da navegação e dos meios de comunicação por terra. Esse

desenvolvimento, por sua vez, refletiu na extensão da indústria; e, na medida em

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A dialética idealista e materialista

157 ■

que a indústria, o comércio, a navegação e as estradas de ferro se desenvolviam,

crescia também a burguesia, multiplicando seus capitais e deixando em segundo

plano as classes legadas pela Idade Média.

Vemos, pois, que a própria burguesia moderna é o produto de um longo

processo de desenvolvimento, de uma série de revoluções no modo de produção e

de troca.

Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia era acompanhada de um

progresso político correspondente. Classe oprimida pelo despotismo feudal,

associação armada administrando-se a si mesma na comuna; aqui, cidade-

república independente, ali, terceiro estado, tributário da monarquia; depois,

durante o período manufatureiro, contrapeso da nobreza na monarquia feudal ou

absoluta, pedra angular das grandes monarquias; a burguesia, a partir do

estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou,

finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno. O

governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a

classe burguesa.

A burguesia desempenhou na História um papel eminentemente revolucionário.

Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia jogou por terra as

relações feudais, patriarcais e idílicas, despedaçou sem piedade todos os

complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus "superiores

naturais", para só deixar subsistir, entre um homem e outro, o laço do frio

interesse, as duras exigências do "pagamento à vista". Afogou os fervores sagrados

do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-

burguês, nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um

simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto

esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar

da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, colocou uma exploração

aberta, cínica, direta e brutal.

A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então consideradas

veneráveis e encaradas com piedoso respeito. Fez do médico, do jurista, do

sacerdote, do poeta e do sábio seus servidores assalariados.

A burguesia rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de

família e reduziu-as a simples relações monetárias.

Atividades 1. Quais são as peculiaridades, semelhanças e diferenças, nos textos acima, entre

Hegel e Marx?2. Leia o texto abaixo.

Para ele, tudo está em constante mudança e o conflito rege todas as coisas: a

vida e a morte, o sono e a vigília, a juventude e a senilidade são realidades que

transformam-se continuamente umas nas outras. Seu fragmento de número 91,

em especial, tornou-se célebre: "Um homem não toma banho duas vezes no

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mesmo rio." Isso porque da segunda vez ele já não será o mesmo homem de

antes e nem estará no mesmo rio, já que ambos estarão mudados. Esse texto refere-se a que filósofo da Antiguidade? a) Sócrates

b) Zenão de Eleia

c) Heráclito de Éfeso

d) Platão

e) Tales de Mileto

f) Aristóteles

3. A respeito da compreensão de dialética, assinale H nas alternativas que se

referem apenas a Hegel, M nas que se referem apenas a Marx e HM nas que

se referem aos dois.

( ) A dialética compõe-se de três etapas: tese, antítese e síntese, ou seja,

afirmação, negação e negação da negação.

( ) O que está no início não é a natureza, mas sim a ideia pura, que constitui o

princípio inteligível do mundo.

( ) Com a mudança das formas de produção (a infraestrutura), mudam também

as ideias e construções culturais do ser humano (a superes- trutura).

( ) Essa linha evolutiva - a partir da dialética de afimação, negação e negação da

negação - só chegaria ao fim na sociedade sem classes. ( ) O espírito absoluto desenvolve-se em arte, religião e filosofia.

Para produzir filosofia Na sua opinião, a luta de classes continua acontecendo hoje?

Schopenhauer: o mundo como

representação A felicidade não passa de um sonho, e a dor é real [...] Há 80 anos que o sinto. Quanto

a isso, não posso fazer outra coisa senão me resignar, e dizer que as moscas nasceram para

serem comidas pelas aranhas e os homens para serem devorados pelo pesar.

Arthur Schopenhauer

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Schopenhauer: o mundo como representação

159

Contra Hegel Iniciado com Immanuel Kant (1724-1804), o idealismo alemão chega ao

seu auge com George Hegel (1770-1831) - em sua grandiosidade, estrutu-

ração e ousadia, a que se acresce sua quase ilegibilidade. De certa forma, esse

foi o último dos grandes sistemas filosóficos do Ocidente. Determinando o

horizonte intelectual de boa parte dos séculos XIX e XX, esteve na matriz do

marxismo, do existencialismo e de algumas das correntes mais significativas

do pensamento cristão contemporâneo. Com efeito, o pensamento de Hegel

presta-se a mais de uma interpretação: por um lado, visa à reconciliação com

a realidade, a qual procura interpretar racionalmente; por outro, a dialética,

que é a alma do sistema, opõe-se a qualquer imobilidade, e explica o

movimento, o processo histórico, as rupturas.

Assim, não é de se estranhar que pouco após a morte do grande filósofo

prussiano começassem a surgir fissuras no edifício hegeliano. Entre os seus

discípulos, logo houve uma divisão entre os chamados hegelianos de direita e

os jovens hegelianos, mais tarde chamados hegelianos de esquerda.

Para a direita, a ideia absoluta, que no sistema hegeliano perpassa toda a

história do universo, precisa de um suporte, um sustentáculo, que deve ser

um espírito real, transcendente e consciente. Assim, ela reduzia o he-

gelianismo ao espiritualismo, à afirmação do Deus pessoal e da imortalidade

da alma, apontando a religião e o Estado como os únicos capazes de voltar a

aglutinar uma sociedade civil ameaçada de dissolução.

Para a esquerda, ao contrário, reinterpretando o sistema hegeliano no sentido

do panteísmo e do ateísmo, a ideia é uma abstração que só existe exterioriza- da

na natureza, que se basta a si mesma.Tratava-se, para eles, de erigir uma nova

sociedade que definitivamente ultrapassasse aquela em que viviam.

Desenharam-se, desse modo, aquilo que Moses Hess (1812-1874) chamou

de o partido do movimento e o partido da permanência.

Fiéis ao Estado e à religião do Estado, os hegelianos de direita monopolizaram

as cadeiras das universidades. Hoje, mal são lembrados. Quem ainda sabe quem

foram Jorge Gabler (1786-1853) e Karl Rosenkranz (1805-1879)?

Já os hegelianos de esquerda tiveram não poucas dificuldades na vida acadê-

mica e na vida pessoal: perderam emprego, passaram fome, foram exilados - e

entraram nas páginas da história. David Strauss (1808-1874) foi um dos

pioneiros do método histórico-crítico de interpretação das Escrituras; Ludwig

Feuerbach (1804-1872), o fundador do materialismo moderno; Karl Marx (1818-

1883) e Frie- drich Engels (1820-1895), dispensam apresentações.

Mas, de toda forma, os hegelianos - de direita ou de esquerda - não rejei-

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Tópicos da Filosofia da Educação

160

taram o seu mestre. Conservando-o, imobilizando-o ou aprofundando-o, eles

permaneceram, de uma maneira ou outra, ligados aos seus lineamentos. Marx, o

mais célebre discípulo, mesmo criticando o idealismo do mestre, sempre se

confessou devedor de sua filosofia. E maiores ataques viriam de filósofos não-hegelianos.

O Schelling (1775-1854) da última fase já havia criticado Hegel por pretender

deduzir os fatos do mundo das ideias.

Friedrich Herbart (1776-1841), considerado o fundador da psicologia científi-

ca, parte de Kant para se afastar do idealismo clássico, afirmando a fundamenta-

bilidade da experiência e da realidade da coisa em si.

Todavia, os ataques mais virulentos partiriam do atormentado Sõren Kierke-

gaard (1813-1855) e do depressivo Arthur Schopenhauer.

O primeiro, dinamarquês (todos os outros aqui são alemães), protagoniza

"uma violenta explosão anti-hegeliana" (RUSSELL, 2002, p. 365). Para Hegel, o

indivíduo nada mais é do que um momento, de uma totalidade que o abrange e o

ultrapassa e na qual, simultaneamente, ele encontra a sua realização. Em

Kierkegaard, manifesta-se um forte sentimento de irredutibilidade do indivíduo,

de sua especificidade existencial e do caráter insuperável de sua concretude.

Não menos emocional seria a reação de Schopenhauer ao altissonante e oti-

mista sistema hegeliano.

Uma vida taciturna Nascido em 22 de fevereiro de 1788, filho de um próspero comerciante da

cidade de Dantzig, na Prússia (atualmente Gdanski, na Polônia), Arthur Schope-

nhauer estava destinado a seguir a profissão paterna. Aos cinco anos, por ocasião

da anexação da cidade livre de Dantzig pela Prússia, sua família mudou-se para

Hamburgo. Em 1797, os Schopenhauers moraram em Paris, e em 1803 passaram

seis meses em Londres. Viajaram por uma série de outros países, entre os quais a

Áustria, a Suíça e a Holanda.

Em vez de se interessar pelos negócios do pai, o adolescente Arthur preferia

traçar considerações melancólicas sobre a condição humana. Fixando-se em

Hamburgo, em 1805, a família obrigou-o a cursar uma escola comercial. Porém,

a repentina morte do pai (provavelmente por suicídio) permitiu-lhe dedicar-se a

uma carreira acadêmica, como era sua vontade. Assim, Schopenhauer começou

os estudos humanísticos no Liceu de Weimar, em 1807.

Ao mesmo tempo, sua mãe, possuidora de veleidades literárias, tornou-se

anfitriã de um salão freqüentado pelos grandes intelectuais da região e assim

Arthur Schopenhauer travou contato com Goethe (1749-1832).

No entanto, a relação entre mãe e filho não era fácil, eles se menosprezavam

publicamente e Arthur chegou a dizer que ela ficaria famosa não por seus livros,

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Schopenhauer: o mundo como representação

161

mas por ser sua genitora (cruel vaticínio!).

Aos 21 anos, Schopenhauer recebeu um pequeno legado que lhe permitiu

empreender os estudos universitários e, a partir de então, mãe e filho começaram

a se afastar gradualmente.

Depois de uma passagem por Gõttingen, onde teve contato com a filosofia de

Kant, ele se mudou para Berlim (1811), assistindo, assim, aos cursos dos filóso-

fos Schleiermacher (1768-1834) e Fichte (1762-1814). Mais tarde, Schopenhauer

acusou Fichte de ter, deliberadamente, caricaturado a filosofia de Kant.

Em 1813, Schopenhauer obteve o doutourado pela Universidade de Berlim,

com a tese Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio de Razão Suficiente.

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Tópicos da Filosofia da Educação

Depois de uma temporada na Itália (1818-1819), sua situação econômica não

era das melhores. Começou então a lecionar como livre-docente na Universidade

de Berlim, onde pontificava o grande Hegel. "Totalmente convencido da própria

genialidade [...], marcou suas conferências para a mesma hora das de

Hegel"(RUSSELL, 2002, p. 369). Resultado: somente quatro ouvintes e um ressen-

timento eterno para com Hegel.

Para piorar a situação, em 1821 ele se envolveu em um acidente que lhe traria

desagradáveis conseqüências. Nessa época, o filósofo morava em uma pensão e,

em certa ocasião, impacientando-se com uma vizinha que viera lhe espionar os

encontros com pretensas amantes, atirou-a escada abaixo. Acabou sendo

processado e condenado a pagar-lhe, além de suas despesas médicas, uma

pensão anual.

Em 1833, depois de muitas viagens e outra fracassada tentativa de lecionar

em Berlim, o filósofo resolveu fixar-se em Frankfurt, onde permaneceria até sua

morte. Ali levou uma vida quase solitária, tendo por principal companhia o seu

cão.

Dedicando-se então exclusivamente à filosofia, Schopenhauer publicou di-

versos livros.

Em 1818, com apenas trinta anos de idade, ele já havia lançado o seu clássico

O Mundo como Vontade e Representação, que na época passou quase inteiramente

despercebido. Em 1836, foi a vez de Sobre a Vontade na Natureza.

Escreveu também dois ensaios sobre moral - Sobre a Liberdade da Vontade e O

Fundamento da Moral, este último contendo verdadeiros insultos a Hegel e a

Fichte. Posteriormente, em 1841, esses dois ensaios foram reunidos sob o título

de Os Dois Problemas Fundamentais da Ética.

O sucesso só começou a bafejar na vida do pensador misantropo com Pa-

rerga e Paralipomena, seu último livro, publicado em 1851, contendo pequenos

ensaios sobre política, moral, literatura, filosofia, estilo e metafísica.

Em 1853, um artigo publicado na Inglaterra por John Oxenford, atacando a

filosofia de Hegel a partir de elementos de Schopenhauer, deu início à grande di-

fusão da filosofia schopenhaueriana. Da França, filósofos e escritores vinham até

Frankfurt para conhecê-lo. Na Alemanha, com o declínio da filosofia de Hegel,

Schopenhauer viu-se subitamente galgado a ídolo das novas gerações. Assim, os

últimos anos de sua vida lhe proporcionaram o reconhecimento que ele tanto

ansiara. Artigos encomiásticos pululavam nos principais periódicos. A Univer-

sidade de Breslau dedicou cursos à sua obra e a Academia Real de Ciências de

Berlim convidou-lhe para membro, em 1858, honraria que ele, orgulhosamente,

recusou.

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Schopenhauer: o mundo como representação

163 ■

Nos últimos anos, o arauto do pessimismo radical pôde gozar de uma insus-

peitada alegria, dedicando-se inclusive à sua flauta.

Dois anos depois, a 21 de setembro de 1860, aos 72 anos de idade, faleceu o

"cavaleiro solitário", como ele seria chamado mais tarde por Friedrich Nietzsche

(1844-1900), outro solitário.

0 mundo como representação O ponto de partida do pensamento de Schopenhauer é a filosofia kantia- na,

que estabelecera uma distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si, ou seja,

entre o que nos aparece e o que existiria em si mesmo. Segundo Kant, a coisa-

em-si não poderia ser objeto de conhecimento científico, como até então

pretendera a metafísica clássica. A ciência restringir-se-ia, assim, ao mundo dos

fenômenos, e seria constituída pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e

tempo) e pelas categorias do entendimento. Dessas distinções, Schopenhauer

concluiu que o mundo não seria mais do que representações, entendidas por ele,

em um primeiro momento, como síntese entre o subjetivo e o objetivo, a

realidade exterior e a consciência humana.

Todavia, Schopenhauer se afastou do mestre que tanto admirava em um

ponto capital e a partir daí traçou uma filosofia original: para Kant, a coisa-em-si

é inacessível ao conhecimento humano, pois se encontra para além dos limites

do próprio ato cognitivo, enquanto Schopenhauer pretende abordar a própria

coisa-em-si, a qual seria, para ele, a vontade - origem metafísica de toda a

realidade.

Segundo Schopenhauer, mais do que simplesmente assegurar que ele é "um

objeto entre outros" a experiência interna do indivíduo também lhe garante que

ele é um ser ativo, cujo comportamento manifesta diretamente sua vontade. Essa

consciência interior, que cada um possui em si como vontade, seria primitiva e

irredutível. Assim, a vontade revela-se imediatamente a cada um como o em-si.

Ademais, a percepção que cada qual faz de si mesmo como vontade é distinta da

percepção que cada um tem como corpo. Mas isso não significa que as ações

corporais e as ações volitivas constituem duas séries de fatos, entendidas estas

como causadoras daquelas: para Schopenhauer, o corpo humano é apenas

objetivação da vontade, tal como aparece para a percepção externa. Em outras

palavras, o que se quer e o que se faz são a mesma coisa, vistos, contudo, sob

ópticas distintas.

Da mesma forma que nos seres humanos a vontade seria o princípio funda-

mental do universo. Mais: ela é independente da representação e, portanto, não

se submete às leis da razão. "Esta vontade é cega e irracional, porquanto as suas

manifestações no mundo são irracionais, e tanto quanto mais se sobe na hierar-

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 164

quia dos seres até ao homem, no qual o mal e a dor do universo são compendia-

dos e em demasia intensificados"(PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 396).

Tudo é dor A vontade, que é a raiz metafísica do mundo e da conduta humana, é

também a origem de todo o sofrimento. O sistema schopenhaueriano é,

portanto, profundamente pessimista1, pois a vontade é concebida como algo sem

nenhuma meta ou finalidade. Sendo um mal inerente à condição humana, ela

gera, de modo necessário e iniludível, a dor. Por outro lado, aquilo que se chama

de felicidade nada mais é que uma cessação temporária do sofrimento. Assim,

para Schopenhauer, viver é sofrer.

Mas, a despeito de todo esse pessimismo, Schopenhauer indica alguns cami-

nhos para a supressão da dor.

Em um primeiro instante, a via para a suspensão da dor encontra-se na con-

templação artística. Na arte, a relação entre a vontade e a representação inverte-

-se, a inteligência passa a uma posição proeminente, de onde pode assistir à his-

tória de sua própria vontade. A atividade artística revelaria, desse modo, as ideias

eternas por meio de diversos graus, passando sucessivamente pela arquitetura, a

escultura, a pintura, a poesia lírica, a poesia trágica e, finalmente, pela música.

Com efeito, essa é a primeira vez na história da filosofia em que a música ocupa

o proscênio, o lugar de destaque no panteão das artes. Liberta de toda referência

específica aos diversos objetos da vontade, a música seria capaz de exprimir a

vontade em sua essência geral e indiferenciada, constituindo um instrumento

apto para propor a libertação do ser humano. ** Em filosofia, o termo pessimismo pode assumir três acepções, não necessariamente excludentes entre si:

■ doutrina segundo a qual o mal sempre vence o bem, de modo que o não-ser é melhor que o ser;

■ doutrina segundo a qual a dor vence o prazer, ou segundo a qual somente a dor á real, o prazer sendo apenas a sua momentânea

cessação;

■ doutrina segundo a qual a natureza á indiferente ao bem e ao mal moral, assim como à felicidade ou infelicidade dos seres.

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Schopenhauer: o mundo como representação

165 ■

0 nirvana Porém, a libertação proporcionada pela arte não é total e absoluta: a arte sig-

nifica apenas um distanciamento relativamente passageiro e não a supressão da

vontade. Para que atinja a libertação completa, é necessário que o ser humano

ascenda ao nível da conduta ética, a qual representa uma etapa superior no pro-

cesso de superação do sofrimento. A ética de Schopenhauer não está, contudo,

presa à noção de dever, ao contrário do que acontece em Kant, na moralidade

defendida por Schopenhauer não há imperativos categóricos, os quais não pas-

sariam de formas de coerção. Assim, sua ética fundamenta-se, antes de tudo, na

ideia de que a contemplação da verdade é o caminho de acesso ao bem.

Para Schopenhauer, o egoísmo - que faz do ser humano o seu próprio inimi-

go - origina-se da vontade que intenta afirmar o seu ímpeto individual, e a su-

peração do egoísmo só é possível por meio do conhecimento da natureza única e

universal da vontade. Somente assim o ser humano pode se tornar bom. O es-

pírito de contenda contra os seus semelhantes é substituído pelo de simpatia e

compaixão. Libertado pela etapa ética, o ser humano alcança o princípio que é a

base de toda moral: "Não prejudiques pessoa alguma, sê bom para com todos".

Mas nem mesmo essa ética da compaixão possibilita ao ser humano atingir a

felicidade plena. Para Schopenhauer, a mais completa forma de redenção so-

mente pode ser encontrada na renúncia ascética ao mundo e a todas as suas so-

licitações, na anulação da vontade e no mergulho definitivo no nirvana36:"Graças a

essa purificação ascética37 o homem torna-se perfeitamente indiferente a tudo, e

desapega-se de tudo que o cerca: está morto inteiramente à vida, ainda que esta

possa continuar materialmente" (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 397).

Assim, há uma gradual eficácia nessas três vias de libertação da dor: a via estéti-

ca, a via ética e a via ascética.

Schopenhauer foi um leitor atento dos textos sagrados das religiões orientais,

sobretudo do hinduísmo e do budismo, cujo conhecimento chegava ao Ocidente

pelas viagens marítimas e pelo colonialismo europeu. Assim, se o Ocidente

colonizava econômica e politicamente o Oriente, este começava a "colonizar"

espiritualmente o Ocidente capitalista e desencantado. Assim, a ascética filosofia

schopenhaueriana nada mais era do que uma primeira leitura idealista da mística

oriental, especialmente do budismo, para quem a realidade é dor e a origem do

sofrimento é o desejo.

Com Schopenhauer, o idealismo alemão (que foi iniciado por Kant e teve o

36

Nirvana é um termo sânscrito que significa literalmente "extinção”. No budismo, o nirvana é a culminância da libertação, uma espécie de supera-

ção da ignorância e do apego aos sentidos, ao mesmo tempo em que é o fim do ciclo das reencarnações.

^ 0 ascetismo é uma moral filosófica ou religiosa baseada no desprezo do corpo e das sensações corporais e que busca alcançar, pelos

sofrimentos físicos, o triunfo do espírito e da mente sobre os instintos e paixões. Purificação ascética é justamente uma disciplina que busca esse

triunfo do espírito sobre instintos e paixões.

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 166

seu apogeu filosófico e institucional com Hegel, que se tornou uma espécie de

filósofo oficial do estado prussiano) torna-se profundamente crítico de si mesmo,

tornando- -se irracionalismo e pessimismo. É o ocaso, o solene pôr-do-sol

dessa grande aventura do espírito que foi o idealismo - que muitas vezes foi a

alma filosófica do romantismo —, já que no horizonte anunciavam-se novas

correntes filosóficas, mais ligadas ao mundo e à ação, como o marxismo e o

positivismo.

Schopenhauer e a educação Da concepção schopenhaueriana "[...] do mundo e da vida, decorre uma pe-

dagogia negativa e quietista, mas que exige muita força e proporciona libertação:

uma pedagogia que ensina o desapego, o desprezo do mundo e da vida,

porquanto não são o absoluto e porquanto estão cheios de mal" (PADOVANI;

CASTAGNOLA, 1984, p. 397).

A uma primeira vista, parece que para o nosso fazer pedagógico de hoje não

há muito o que reter de um sistema tão pessimista, ainda mais em uma socie-

dade que, pelo menos no mercado de trabalho, exige a todo custo o otimismo e

uma atitude confiante perante a vida. No entanto, é justamente esse contraste

que é interessante oferecer. Para que corremos tanto? O que é o sucesso? O que é

felicidade? A vontade é sempre positiva? E a vontade de poder, de domínio? São

reflexões a que não podemos nos furtar após o contato com a originalíssima

filosofia de Schopenhauer.

Texto complementar A vontade (SCHOPENHAUER, 1964, p. 246-248)

Antes de tudo, é preciso recordar aquela consideração que coloquei no fim do

livro segundo, com vista à questão ali suscitada, do fim da vontade.

Ao invés de responder, fiz ver que a vontade, em todos os graus de sua mani-

festação, desde o mais baixo até o mais alto, carece de objetivo final, pois sua

essência é querer, sem que este querer tenha jamais um fim, e que, portanto, não

consegue uma satisfação definitiva e só os obstáculos podem detê-la, mas em si

vai até o infinito. [...]

Reconhecemos, há muito tempo, que o núcleo e a essência de cada coisa é

esta aspiração idêntica a que em nós chamamos vontade, onde se manifesta mais

claramente e com a consciência mais perfeita. A sua compreensão por um

obstáculo que se eleva entre ela e seu fim atual chamamo-la dor; pelo contrário,

chamamos bem-estar e felicidade à consecução deste fim. Estas mesmas

denominações podem ser aplicadas a outros fenômenos de mais baixa

graduação, mas da mesma índole no mundo inconsciente, e então vemo-lo

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Schopenhauer: o mundo como representação

167

também presa da dor e sem ventura duradoura. Todo esforço ou aspiração nasce

de uma necessidade, de um descontentamento com o estado presente, e é

portanto uma dor enquanto não se vê satisfeito. Mas a satisfação verdadeira não

existe, porquanto é

o ponto de partida de um novo desejo, também dificultado e origem de novas

dores. Jamais há descanso final; portanto, jamais há limites nem termos para a

dor.

Mas o que descobrimos com grande esforço na natureza inconsciente e na

consciente se nos revela com toda a clareza na vida animal, cuja eterna dor é fácil

demonstrar. Contudo, sem deter-nos neste escalão intermediário, queremos

dirigir nossa atenção àquela esfera em que reina a mais deslumbrante clareza, a

saber, a vida humana. Porque à medida que a vontade se faz mais intensa, a dor

se nos revela de um modo mais evidente. Em sentido estrito, na planta não

encontramos sensibilidade nem dor. Os animais inferiores, os infusórios e os

radiados são incapazes da menor dor; nos próprios insetos, a faculdade de sentir

e de padecer é bastante limitada. Ao contrário, no sistema nervoso dos

vertebrados chega a seu maximum e se desenvolve na proporção em que cresce a

inteligência. À medida que o conhecimento se faz mais claro e a consciência se

desenvolve, a dor aumenta, chegando a culminar no homem. Quanto mais

lucidez de conhecimento possui o homem e mais elevada é sua inteligência, mais

violentas são suas dores. O gênio é o que mais padece.

Atividades 1. Quanto à vida de Arthur Schopenhauer, assinale V (verdadeiro) ou F (falso). ( ) Desde pequeno, Schopenhauer estava destinado a seguir a carreira de

comerciante. ( ) A morte repentina da mãe impediu-o de se dedicar a uma carreira acadêmica,

como era sua vontade. ( ) Em 1818, com apenas 30 anos de idade, ele lançou o seu clássico Assim

falouZaratrusta, que na época passou quase inteiramente despercebido. ( ) O sucesso só começou para Schopenhauer em 1851, com Parerga e

Paralipomena, seu último livro publicado. ( ) Para Schopenhauer, a vontade é a raiz metafísica do mundo, bem como da

conduta humana, e - ao mesmo tempo - a origem de todo o sofrimento. ( ) Aúnicalibertaçãototaleabsolutadadoréaquelaqueéproporcionada pela arte. 2. Para Schopenhauer, nós temos acesso ao mundo?

3. Para Schopenhauer, a vontade é a raiz metafísica do mundo, bem como da

conduta humana, e ao mesmo tempo também é a origem de todo sofrimen-

to. Para ele, há como fugir a essa realidade da dor? E se há, qual é o método e

o caminho?

Para produzir filosofia Schopenhauer diz que a imagem que temos do mundo são representações

Page 134: 98570508 Topicos de Filosofia Da Educacao Online

muito particulares e que essas representações são reguladas pela vontade, a qual

é a força motriz que produz o movimento da vida. Levando em conta que as

representações que fazemos das coisas são subjetivas, e que portanto cada um

tem as suas representações, qual é a melhor maneira de agirmos em relação aos

nossos educandos se desejamos que o processo de ensino-aprendizagem se

torne de fato eficiente?

0 positivismo e o desenvolvimento da ciência Todos os bons intelectos têm repetido, desde o tempo de Bacon, que não pode haver qualquer

conhecimento real senão aquele baseado em fatos observáveis.

Auguste Comte

Um mestre e uma musa De certa forma, o positivismo é um novo rótulo para uma nova fase de

desenvolvimento do empirismo, corrente filosófica inglesa dos séculos XVII e

XVIII, para a qual o conhecimento se funda exclusivamente nos dados do

mundo empírico. O nome surgiu em 1830, na escola do socialista utópico

Saint-Simon (1760-1825), e ganhou fama com Auguste Comte, o pensador

paradigmático do movimento. Deriva-se do latim positum, significando o que

"está posto a nossa frente", o que é observável, experimentável.

Além do empirismo, o positivismo tem como suas fontes o criticismo de

Kant (1724-1804), que estabelecera barreiras às pretensões da metafísica; o

enciclopedismo francês, com Diderot e D'Alambert, que procurava reunir e

catalogar todo o conhecimento filosófico e científico de seu tempo; e o

progresso das ciências experimentais daqueles, como a química de Lavoisier

(1743-1793) e a biologia de Bichat (1771 -1802), que revolucionavam a visão

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O positivismo e o desenvolvimento da ciência

169

de mundo da época.

O positivismo subdividiu-se em várias correntes, não raro conflitantes, e

cedo espalhou-se pelo mundo, granjeando um sucesso e uma penetração até

então nunca experimentados por uma escola filosófica.

E é forçoso que nos reportemos àquele que é considerado o seu fundador,

pois até hoje o nome do positivismo, para o bem ou para o mal, está atrelado

a ele.

Isidore Auguste Marie François Xavier Comte, que se tornou conhecido como

Auguste Comte, nasceu em Montpellier, no sul da França, em 19 de

janeiro de 1798. Depois de realizar seus primeiros estudos em sua cidade natal,

onde se destacou por uma memória prodigiosa, ingressou na Escola Politécnica, em

Paris, como o primeiro colocado no concurso vestibular.Todavia, com o temporário

fechamento dessa escola, em 1816, em conseqüência da onda conservadora do

período pós-napoleônico, voltou a Montpellier para continuar seus estudos na

faculdade de medicina local.

No ano seguinte, de volta a Paris, Comte foi expulso da Escola Politécnica por

ter encabeçado um protesto contra um professor. Passou então a sobreviver de

pequenos expedientes, como aulas particulares e artigos para jornais. Ainda em

1817, tornou-se secretário do pensador Saint-Simon (1760-1825), o socialista

utópico que o introduziu no mundo intelectual parisiense.

Já mergulhado na elaboração da doutrina positivista, Comte publicou seu Plano

de Trabalhos Científicos Necessários para Reorganizar a Sociedade em 1822. Dois anos

depois, rompeu com Saint-Simon, já que as doutrinas de um e de outro se

revelaram incompatíveis.

Em 1825, casou-se com Caroline Massin e mais tarde foi por ela abandonado,

com o que sofreu perturbações mentais, tendo sido internado numa clínica. Em

1830, deu início à publicação de seu célebre Curso de Filosofia Positiva, que só viria a

ser concluído 12 anos depois.

Em 1832, retornou como professor à Escola Politécnica, dela se desligando

definitivamente em 1844.

Passou a ser ajudado por amigos e admiradores, entre eles John Stuart Mill

(1806-1873). Ainda em 1844, divorciou-se da esposa que só lhe causara sofri-

mentos e transtornos e envolveu-se em um caso de amor platônico com Clotilde de

Vaux, que perduraria até a morte desta, dois anos mais tarde.

Verdadeira musa do filósofo, Clotilde viria a ser venerada como uma santa pelos

discípulos mais ortodoxos do mestre.

Em 1848, Auguste Comte criou a Sociedade Positivista, que granjearia um

grande número de discípulos.

Nos anos seguintes, publicou os volumes do Sistema de Política Positivista, no

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Tópicos da Filosofia da Educação

170

qual extraiu algumas das principais conseqüências de sua concepção de mundo

não-teológica e não-metafísica, propondo uma interpretação pura e plenamente

humana para a sociedade e sugerindo soluções para os problemas sociais. No

volume final dessa obra, apresentou as principais intuições de sua "religião da

humanidade", em que os sacerdotes seriam os cientistas.

Em 1856, publicou o estudo Síntese Subjetiva, que seria o primeiro de uma série

a tratar de várias questões, mas veio a falecer em Paris, provavelmente de câncer,

em 5 de setembro de 1857.

História e evolução O projeto inicial de Comte era substituir a filosofia, com seus conceitos abs-

tratos e muitas vezes desvinculados do mundo concreto, pela ciência, ou melhor,

pelo sistema hierárquico das ciências cujo objeto é a totalidade dos fenômenos

empíricos. À filosofia caberia apenas uma sistematização das ciências, servin- do-

se para tanto do método positivo, isto é, o método científico extraído das ciências

experimentais. Assim, não havia interesse pelas causas primeiras dos fenômenos,

mas apenas pelas relações causais ou de similitude entre eles. Em Comte, a

hierarquia das ciências corresponde à ordem de formação histórica das mesmas, ao

mesmo tempo que passa de um nível de maior abstração e menor complexidade a

outro de maior complexidade e menor abstração, em uma linha que vai da

matemática (a mais abstrata) até a sociologia38 (a mais concreta), passando pela

física, a química e a biologia.

Com efeito, assim como em Hegel, a filosofia de Auguste Comte é enformada

pela ideia de uma linha evolutiva da história, possivelmente absorvida de Giam-

battista Vico39, cuja obra ele conhecia. Para Vico, filósofo italiano que construiu a

primeira filosofia da história, a história é regida por leis, sendo sujeita a um eterno

ciclo de repetição de três fases:

■ a fase mítica, em que prevalece a força física;

■ a fase heróica, de domínio da aristocracia;

■ a fase humana, em que reina o direito.

Assim, para Comte, a evolução social da humanidade estaria igualmente sujeita

a leis naturais fixas, que independem de qualquer intervenção da vontade humana,

partindo de um estado teológico inicial, passando por um estado metafísico interme-

diário e chegando a um estado positivo, termo feliz da evolução histórica. Segundo

um filósofo contemporâneo,"neste aspecto, Vico foi mais realista e reconheceu que

38 O termo sociologia foi criado por Comte. 39

Giambattista Vico (1688-1744), filósofo italiano que se opôs ao racionalismo de Descartes (1596-1650). Suas teorias da história estão expressas

em seu principal livro. Princípios de uma Nova Ciência. Ignorado em sua época, Vico só passou a ser reconhecido no século XIX.

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O positivismo e o desenvolvimento da ciência

171

a sociedade pode retroceder, e efetivamente retrocede, de períodos de refinamento

e civilização a eras de novo barbarismo"(RUSSELL, 2002, p. 396). Mas precisamos

reconhecer que a época de Comte, a primeira metade do século XIX, era uma fase

de exultante otimismo com os efeitos da técnica e da ciência (somente o século XX

revelaria o outro lado, de carnificina e barbárie, produzido pela tecnologia em duas

devastadoras guerras mundiais). Eis como Maria Lúcia Aranha expõe estes três

estados de Augusto Comte: No Estado Teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas investigações para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, apresenta os fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais, mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo. No Estado Metafísico, que no fundo nada mais é do que simples modificação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo e concebidos como capazes de engendrar por elas próprias todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste, então, em determinar para cada um, uma entidade correspondente. Enfim, no Estado Positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas; a saber, suas relações invariáveis de sucessão e de simili- tude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, resume-se de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir. (ARANHA, 1986, p. 180-181)

Cada um desses três estados, por sua vez, apresentam os seus graus de de-

senvolvimento, sempre dentro de uma tendência em direção a uma unificação

maior.

A fase teológica, por exemplo, subdivide-se em animismo, politeísmo e mo-

noteísmo. Todos os sistemas teológicos têm por base o animismo, mesmo o pan-

teísmo do idealismo alemão. Por meio da astrologia, passa-se do animismo ao

politeísmo, a etapa principal do estado teológico, que, por seu turno, reparte-se em

três formas principais: o politeísmo egípcio ou teocrático grego ou espiritual,

romano ou social. Por meio de uma revolução, comparável à Revolução Francesa, o

monoteísmo afirma-se, concorrendo para tanto o pensamento grego, a civilização

romana e a teocracia hebraica. O monoteísmo tem a sua maior expressão no

catolicismo medieval.

A diferença de Hegel (1770-1831), o desenvolvimento de uma fase para outra

não é concebido em termos dialéticos. À diferença de Marx (1818-1883), não é das

contradições do estágio anterior que surgem suas condições de superação no

estágio superior. Entretanto, a semelhança de Comte com esses dois filósofos está

na concepção otimista da evolução da história - aliás, uma característica comum no

século XIX. Além disso, Comte sustenta, ainda, que todas as ciências passam por

uma evolução semelhante de três estágios. A única que já teria atingido

plenamente o estado positivo é a matemática.

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Tópicos da Filosofia da Educação

172

A religião da humanidade Com o advento das ciências positivas, já teríamos alcançado o último estágio, o

estado positivo, que deveria abranger toda a civilização, incluindo a religião. Nos

seus últimos anos, Comte argumentava que havia chegado a hora em que ele

deixaria de ser o novo Aristóteles, que ele fora até então, para se transformar no

novo São Paulo (e aqui percebemos que a modéstia não é virtude muito usual nos

filósofos). Daí o seu empenho em instituir a assim chamada religião positiva, isto é,

o culto do Grande Ser, que não é senão a humanidade - a quem se acresce, o

Grande Fetiche, o planeta Terra, e o Grande Meio, o espaço sideral. Juntos,

humanidade, Terra e espaço constituem a trindade positiva. Ademais, vários

símbolos foram acrescentados: calendário próprio, altares, sacramentos,

sacerdotes, pontífices, paramentos, liturgia. Descendo a minúcias, Comte distingue

um culto privado e um público: O culto privado, por sua vez, é dividido em pessoal e doméstico. O primeiro dedicado particularmente à mulher, como sendo a mais apta a representar o Grande Ser; o segundo compreende nove sacramentos, com relação às fases mais importantes da vida. O culto público deveria ter um templo apropriado, oficiado por um sacerdócio organizado para isso, de conformidade com as solenidades estabelecidas pelo calendário positivista, onde os santos do cristianismo são substituídos pelos heróis do mundo. Tal religião teve, de fato, o seu centro em Paris, espa- Ihando-se também alhures, especialmente na Inglaterra e na América, onde sobreviveu ao seu fundador. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 434)

Assim, paradoxalmente, o último estado, o positivo, que deveria marcar de-

finitivamente a vitória da razão e da ciência sobre a religião e as superstições, de

certa forma assinala o retorno da força de elementos religiosos - como um retorno

do elemento reprimido, para nos servirmos dos conceitos de Freud.

Quando filosofia vira samba Naturalmente, nem todos os discípulos de Auguste Comte o seguiram nessa via

de erigir novos ídolos em lugar dos velhos deuses. Se Pierre Lafitte (1828- 1881)

acompanhou de perto o mestre, na ala ortodoxa do positivismo, Emílio Littré,

porém, na ala chamada dissidente, recusou a parte religiosa, consideran- do-a uma

involução no pensamento comtiano. O historiador e filósofo Hipolite Taine (1828-

1873) e o sociólogo Émile Durkheim (1858-1917), contam-se entre os dissidentes.

Durkheim, inclusive, e a escola francesa de sociologia, iniciada com ele, será de

grande importância para o desenvolvimento dessa nova ciência fundada por Comte.

Na Grã-Bretanha, o positivismo reencontrou-se com o empirismo antecedente,

dando origem ao que se chama positivismo inglês, com nomes como John Stuart

Mill (1806-1873) e Herbert Spencer (1820-1903). O primeiro é considerado o

último economista do liberalismo clássico e também precursor de alguns aspectos

do keynesianismo3. O segundo, criou um sistema organicista e evolucionista que,

antecipando-se a algumas das teorias de Darwin (1809-1882), desenvolveu a tese

de que toda a realidade, desde a material até a espiritual, evolui à semelhança dos

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O positivismo e o desenvolvimento da ciência

173

organismos vivos.

Longe de ser um objeto de antiquário do século XIX, o positivismo deixou um

longo legado em nossa época. Sem falar nas influências diretas em escolas como o

pragmatismo, o Círculo de Viena, e em pensadores como Bertrand Russell e Karl

Popper, boa parte do século XX (e por que não dizer do início do século XXI?), na

sua exaltação acrítica da técnica e do progresso, esteve sob o seu signo. Se hoje, na

maioria dos círculos sociais, um engenheiro é muito mais benquisto que um

filósofo, não vamos creditar a culpa exclusivamente ao filósofo Augusto Comte,

mas não há como negar que uma parcela dessa culpa é dele e de seu louvor às

ciências positivas.

O positivismo teve ampla aceitação no Brasil, nas escolas de Direito, nos círculos

militares e sobre alguns dos principais líderes republicanos, entre os quais Benja-

min Constant (1836-1891), fundador da Sociedade Positivista (1876). Aliás, o lema

da bandeira nacional, ordem eprogresso, é de inspiração comteana. Existe até uma

Igreja Positivista do Brasil, como resultado dos esforços de Miguel Lemos (1854-

1917) e R. Teixeira Mendes (1855-1927). Tobias Barreto (1839-1889) e Silvio

Romero (1859-1914) destacaram-se entre os intelectuais influenciados por essa

escola.

Uma das maneiras de se mensurar, em nosso país, o grau da difusão de um

determinado corpo de doutrina é observando se ele deixou marcas em nossa

cultura popular. Raras correntes de filosofia tiveram esse mérito. Uma delas é o

positivismo, cujo principal slogan inspirou o seguinte samba de Noel Rosa e Orestes

Barbosa, cujo nome é justamente Positivismo:

O amor vem por princípio, a ordem por base O progresso é que deve vir por fim.

Desprezaste esta lei de Augusto Comte E foste ser feliz longe de mim. ^ Keynesianismo é a teoria econômica consolidada pelo economista inglês John Maynard Keynes nos anos 1930 e consiste na afirmação do Estado

como agente indispensável de controle da economia, com objetivo de conduzir a um sistema de pleno emprego.

Para concluir, podemos afirmar que o positivismo é a ideologia da burguesia

quando ela deixa de ser uma classe revolucionária. No período que precede e

acompanha a Revolução Francesa, a burguesia era uma classe ainda em busca de

seu espaço, em luta sobretudo com a nobreza e o clero. Sua ideologia era o

lluminismo e seu discurso assumia não raro a arrogância e a intrepidez de quem se

julga na vanguarda da história. Passado um século, a burguesia já estava assentada

no poder das principais nações europeias. Todavia, à sua sombra nasceu uma nova

classe: o proletariado, que já encampa o antigo discurso revolucionário dos

burgueses. Desse modo, temerosa de perder os privilégios recém-con- quistados,

a burguesia operou uma sensível modulação em seu discurso e, em vez de

liberdade e igualdade, passou a falar em ordem e progresso. Não é à toa que, em

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Tópicos da Filosofia da Educação

174

nosso país, foi nas fileiras do exército - organismo que tem a missão de manter a

ordem instituída - que o positivismo mais encontrou guarida.

Texto complementar

A verdadeira natureza e o caráter próprio da

filosofia positiva (COMTE, 1964, p. 274-275)

Para explicar convenientemente a verdadeira natureza e o caráter próprio da

filosofia positiva, é indispensável lançar antes um olhar geral sobre a marcha

progressiva do espírito humano, considerado em seu conjunto; pois nenhuma

concepção se pode conhecer tão bem se não é por sua história.

Assim, pois, estudando o desenvolvimento total da inteligência humana nas

diversas esferas de sua atividade, desde sua origem até nossos dias, creio ter

descoberto uma grande lei fundamental, à qual se acha submetida por uma

necessidade invariável, e que me parece poder estabelecer-se, seja sobre as

verificações históricas, resultantes de um exame atento do passado. Consiste esta

lei em que cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de nossos

conhecimentos, passa sucessivamente por três estados teóricos diversos; o estado

teológico ou fictício; o estado metafísico ou abstrato; o estado científico ou positivo.

Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza, emprega sucessivamente

em cada uma das suas investigações três métodos de filosofar, cujo caráter é

essencialmente diferente e, inclusive, radicalmente

oposto; primeiro o método teológico, depois o método metafísico, e por fim o

método positivo. Daí três espécies de filosofia, ou de sistemas gerais de

concepções sobre o conjunto de fenômenos, que se excluem mutuamente: o

primeiro é o ponto de partida necessário da inteligência humana; o terceiro, seu

estado permanente e definitivo; o segundo está destinado unicamente a servir de

transição.

No estado teológico, o espírito humano, ao dirigir essencialmente suas

investigações para a natureza íntima dos seres, das causas primeiras e finais de

todos os efeitos que percebe, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, se

representa os fenômenos como produzidos pela ação direta e continuada de

agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária

explica todas as aparentes anomalias do universo.

No estado metafísico, que não é no fundo senão uma simples modificação geral

do primeiro, se substituem os agentes sobrenaturais por forças abstratas,

verdadeiras entidades (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do

mundo e concebidas como capazes de engendrar por elas mesmas todos os

fenômenos observados, cuja explicação consiste então em consignar a cada um

deles a entidade correspondente.

Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade

de obter noções absolutas, renuncia à procura da origem e destino do universo e

ao conhecimento das causas íntimas dos fenômenos, para aplicar-se unicamente à

descoberta, mediante o emprego bem combinado do raciocínio e da observação de

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O positivismo e o desenvolvimento da ciência

175

suas leis efetivas, isto é, suas relações invariáveis de sucessão e de semelhança. A

explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, não é agora senão a

união estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais

que os progressos da ciência tendem cada vez mais a diminuir em número.

Atividades 1. Segundo sua opinião, vivemos ainda sob a herança do positivismo ou já

adentramos em uma época pós-positivista? Discuta com a turma e registre suas

conclusões.

2. Quanto às principais influências do positivismo, assinale V (verdadeiro) ou F

(falso). ( ) A filosofia da história de Giambattista Vico.

( ) O enciclopedismo francês, com Diderot e DAIambert, que procurava reunir e

catalogar todo o conhecimento filosófico e científico de seu tempo.

( ) O criticismo de Immanuel Kant.

( ) O progresso das ciências experimentais, como a química e a biologia.

( ) O historicismo da escolástica tardia.

( ) O socialismo utópico de Saint-Simon.

( ) O empirismo inglês.

3. Como vimos, o projeto inicial de Comte é substituir a filosofia, com seus

conceitos abstratos e muitas vezes desvinculados do mundo concreto, pela

ciência, ou melhor, pelo sistema hierárquico das ciências cujo objeto é a tota-

lidade dos fenômenos empíricos. Ainda há espaço no projeto comtiano para a

filosofia?

Nietzsche educador Deus está morto. Deus permanece morto. E nós o matamos. Como poderemos nós, os

assassinos entre os assassinos, nos consolarmos? O que foi mais santo e poderoso de tudo que

este mundo jamais possuiu sangrou até à morte sob nossas facas. Quem removerá este sangue

de nós? Com que água nos purificaremos?

Friedrich Nietzsche

Vates e filósofos Toda época tem seus profetas. Por uma rara união de sensibilidade e

inteligência igualmente raras (mais a primeira que a segunda, atributo de

profetas e poetas), os profetas têm a peculiaridade de ler nas entranhas do

tempo em que vivem os augúrios dos dias que não vivem, mas antecipam.

Nietzsche foi um desses. Em uma breve e atormentada vida, ele antecipou

muitas das discussões que só estariam maduras um século depois.

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Infelizmente para eles, a maioria desses profetas nasce póstuma, como o

próprio Nietzsche disse de si. Isto é, o reconhecimento, quando vem,

acontece quando eles já estão mortos. Ou quase. Não foi diferente com

Nietzsche: quando suas ideias começaram a encontrar interlocutores, sua

mente ensaiava o salto definitivo na loucura.

O escritor Ezra Pound (1885-1972) disse que os poetas são as antenas da

raça. Nesse termo, poeta, está mesclado o sentido de profeta e ambos se

encontram na palavra vate, com que antigamente se denominavam tanto um

quanto outro. O filósofo dificilmente é visto como um vate, pelo menos desde

Descartes (1596-1650). Defensor da razão, o filósofo só pode antecipar o

futuro como futurólogo, isto é, como alguém que, lendo nas entrelinhas da

atualidade, propõe um prognóstico razoável do amanhã, com tendências,

probabilidades estatísticas. O vate, ao contrário, é aquele que, a partir da

intuição, profetiza o porvir e, não raro, ao profetizar, antecipa esse porvir,

instaura-o. Nietzsche foi um vate. Não que não tenha sido um filósofo. Como

um bom alemão, teve uma sólida formação clássica e,

quando foi preciso, soube escrever de maneira sistemática, como o costumam

fazer, amiúde de modo aborrecido, os filósofos profissionais. Sim, mas Nietzsche

não foi um vate apenas no conteúdo: também o foi na forma. E aqui se revela

inteiramente o seu lado poeta. Servindo-se de aforismos, de fragmentos, de

poemas, de diálogos, de monólogos, de imagens inusitadas, esse filósofo, mais

que outros antes dele, escreveu como um poeta. "Escreve com sangue", disse ele

certa vez,"e descobrirás que sangue é alma." Sua filosofia é a martelada final que

desconjunta todos os belos e grandiosos edifícios filosóficos erigidos pelo

idealismo alemão no século XIX. Sua filosofia revela, mais até que a de um outro

alemão - Karl Marx (1818-1883) -, que"tudo o que é sólido se desmancha no ar"

Se hoje já não há mais nada seguro no que se agarrar, o principal culpado é este

pensador apaixonado por música e poesia.

Para compreendermos o século XX, e este século XXI que ainda está na aber-

tura, é inelutável que encaremos esse vate-filósofo que não temeu encarar seus

demônios e soltá-los sobre o mundo.

Uma vida perigosa Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844, na casa paro-

quial do vilarejo de Rõcken, na Saxônia, então província do cada vez mais pode-

roso império da Prússia. Coincidentemente, era o dia do aniversário do impera-

dor, Frederico Guilherme IV, o que fez com que a criança recebesse o nome do

monarca. Seu pai, um pastor luterano filho de outro pastor, veio a falecer cinco

anos depois, obrigando a família a mudar-se para Naumburgo. Nessa cidadezi-

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Nietzsche educador

193 ■

nha, o futuro crítico radical do cristianismo frequentou várias escolas, recebendo

a alcunha de pastorzinho por causa de seu jeito recluso e tímido. Aos 14 anos de

idade foi estudar em um internato na vizinha Pforta. Sua infância e sua ado-

lescência foram cheias de devoção (ele lia a Bíblia até seus olhos se encherem de

lágrimas), solidão, poesia e mortes: além da morte do pai, ele perdeu um

irmãozinho logo em seguida, e mais tarde a tia e a avó paterna. A enfermidade

também foi sua companheira desde cedo - em 1856, sofreu a primeira crise de

dor de cabeça, o que o acompanharia pela vida afora.

Lia muito: Emerson (1803-1882), Byron (1788-1824), Schiller (1759-1805),

Sterne (1713-1768), Humboldt (1769-1859), Goethe (1749-1832), Hõlderlin

(1770-1843), Novalis (1772-1804)40. Em 1860, caiu-lhe nas mãos A Essência do

Cristianismo, de

Ludwig Feuerbach (1804-1872), um hegeliano de esquerda que também influen-

ciara Marx. Esse livro abriu as primeiras fissuras em sua até então fervorosa fé.

Em Pforma, além disso, Nietzsche recebeu uma sólida formação humanista,

adquiriu disciplina e fez algumas amizades importantes.

Aos 19 anos, matriculou-se na Universidade de Bonn para estudar Teologia e

Filologia, com vistas a seguir a carreira religiosa de seus antepassados. Um pouco

depois, porém, desapontando seus familiares, resolveu cursar apenas Filologia.

No ano seguinte, transferiu-se para a Universidade de Leipzig, para acompanhar

os cursos do eminente helenista Ritschl. Esse também foi o ano do seu

acachapante encontro com Schopenhauer (1788-1860) por meio de O Mundo

como Vontade e Representação: "Levou o livro para seus aposentos e leu

avidamente palavra por palavra.'Parecia que Schopenhauer estava se dirigindo a

mim pessoalmente. Senti seu entusiasmo e parecia vê-lo à minha

frente"'(DURANT, 2000, p. 374).

Foram anos felizes para o futuro filósofo, de muita bebida e cigarro - que

depois ele abandonaria por achar que prejudicavam a mente. Também é dessa

época a sua primeira e desastrada experiência em um bordel. Foi o período em

que provavelmente contraiu sífilis, doença incurável na época e provavelmente

causa ou complicador de seu estado de saúde cada vez mais precário e de sua

demência final. Convocado para o serviço militar em 1867, sofreu uma fratura em

uma queda de cavalo, sendo dispensado depois de uma longa e dolorosa

convalescença.

De volta a Leipzig, conheceu Richard Wagner (1813-1883). Nietzsche viu-se

arrebatado pelo carisma desse grande compositor, que vivia com pompa e luxo,

acompanhado de um séquito de admiradores. Wagner convidou-o a vê-lo mais

40 Com exceção do naturalista Humboldt, todos os demais são literatos, sobretudo ligados ao romantismo.

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Tópicos da Filosofia da Educação

194

vezes em sua casa emTriebschen, na Suíça. Dois meses depois, o jovem

professor

- que recebera o título de doutor sem precisar de tese ou exame em decorrência

de seu brilhante desempenho acadêmico - foi nomeado para uma cadeira na

Universidade de Basiléia, também na Suíça, o que lhe deu condições de freqüen-

tar com assiduidade a casa do músico.

Em 1870, foi deflagrada a Guerra Franco-Prussiana e Nietzsche obteve

permissão junto às autoridades suíças para se alistar como enfermeiro. Contudo,

uma disenteria o obrigou a retornar mais cedo para casa. A saúde voltou a

perturbá-lo. Um pouco depois, em uma carta a um amigo, ele confessou: "Entre

cada 14 dias e três semanas tenho que passar 36 horas seguidas na cama." Na

guerra, entretanto, descobriu que"a mais forte e elevada vontade de viver não se

encontra na luta pela vida, mas na vontade de potência, numa vontade de guerra

e dominação. "Todavia, Nietzsche não ficou empolgado pelos feitos militares do

império alemão.

Em 1872, ele publicou seu primeiro livro, A Origem da Tragédia, em que de-

fende a tese de que a cultura grega antiga vivia a tensão entre dois princípios

básicos e divergentes - o dionisíaco (ligado à exacerbação dos sentidos) e o apo-

líneo (ligado à razão e ao equilíbrio das formas). Apesar de o livro ter agradado a

alguns, a crítica negativa de um eminente filólogo lançaria o seu autor em um

gradativo ostracismo. Nos cursos que ministrou a seguir, a audiência foi cada vez

menor. Por um lado, sua voz tornara-se fraca, quase inaudível para seus alunos,

ao mesmo tempo que sentia-se entediado com a Filologia.

Apesar disso, continuava a escrever. Entre 1873 e 1876, redigiu uma série de

ensaios polêmicos, reunidos depois sob o título de Considerações Extemporâneas,

nos quais criticava vários aspectos da modernidade. Dois anos depois, reuniu

suas anotações e lançou Humano, Demasiado Humano, obra em que adota o

aforismo41 como meio de expressão, na busca por uma forma de dar vazão às

suas inquietações filosóficas. Todavia, durante muito tempo a repercussão de

seus livros seria irrisória, o que atormentaria grandemente alguém consciente de

haver sido destinado à genialidade.

Saúde precária e livros vigorosos O ano de 1879 foi um dos piores para Nietzsche: com frequência, terríveis

dores de cabeça e na vista impediam-no de ler e escrever. Ao longo do ano, ele

teve 118 dias de crise grave, sendo que chegou a sofrer mais de 70 horas de

dores ininterruptas. Por causa desse estado de saúde, em maio resolveu demitir-

-se da universidade. Uma pensão anual que lhe foi concedida permitiu que vi-

41 Em um sentido mais geral, aforismo ou ditado é uma sentença de poucas palavras que explicita um princípio moral. Entre os

filósofos, os aforismos são textos curtos e sucintos, em um estilo fragmentário e assistemático.

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Nietzsche educador

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vesse modestamente até o fim da vida. Abraçou então uma existência errante,

sempre em busca do melhor clima para a sua saúde, não passando mais de seis

meses na mesma localidade. Viveria assim em lugarejos da Suíça, da Alemanha,

da Itália e da França. Em 1881, em uma cidadezinha da Suíça, durante um pas-

seio pelas montanhas, teve a "revelação" do eterno retorno: tudo que existe já

existiu e tornará a existir outra vez.

Apesar da tranqüilidade que lhe permitiu se entregar às reflexões, ele não se

acostumou facilmente à solidão. Tentou se casar, mas nenhuma mulher por

quem se interessou lhe correspondeu. Sua saúde foi se deteriorando cada vez

mais. Desapontado com a medicina, tomou as rédeas de seu tratamento, ob-

servando em seu organismo os efeitos das dietas que inventava. Com esse fito,

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ingeria toda espécie de drogas em busca de um alívio para suas lancinantes

ce- faleias, suas dores de cabeça: sais, soporíferos, ópio, haxixe. Ao mesmo

tempo, a ideia de suicídio não lhe saía da cabeça.

Mas nenhum tormento físico ou psíquico conseguiu impedir o seu trabalho:

de 1883 a 1885, Nietzsche redigiu o seu célebre Assim FalouZaratustra, seguido

de outros livros em velocidade impressionante, pois ele sabia que dispunha de

pouco tempo. Sua obra é um formidável testemunho da força de vontade - ou

vontade de potência, na linguagem nietzscheana - sobre as contrariedades, as

incompre- ensões e a enfermidade mais atroz. Entre as obras desse período

estão:

■ Para Além do Bem e do Mal (1886);

■ Para a Genealogia da Moral (1887);

■ O Crepúsculo dos ídolos ou como Filosofar com o Martelo (1888);

■ OAnticristo (1888).

Em 1889, veio o colapso final. Tomado por convulsões, o filósofo entrou em

delírio. Mandou cartas alucinadas para os seus amigos, para a mulher de Wagner,

e inclusive para o rei da Itália, assinando ora Dionísio, ora "o Crucificado". Ele, que

sempre combatera a compaixão, é visto abraçado a um cavalo, protegendo-o dos

açoites do cocheiro. A 10 de janeiro, foi internado na clínica psiquiátrica de

Basiléia, sendo logo transferido para a de Jena. No ano seguinte, deixou a clínica,

ficando sob os cuidados de sua mãe. Com a morte desta, transferiu-se para

Weimar, sob a guarda de sua irmã Elisabeth, casada com um antissemita - e

assim seus manuscritos inéditos seriam manipulados para servir às ideias do

antissemitismo.

Boa parte do tempo Nietzsche permanecia em estado catatônico, quase re-

duzido a um vegetal. Não reconhecia seus familiares nem seus amigos. Uma vez,

ao ver alguém folheando um livro, comentou: "Não escrevi eu também bons

livros?" A partir de 1894, porém, já não falava - apenas berrava sons ininteligíveis

enquanto seu rosto ostentava uma aparência de grande serenidade. Pouco

depois, só se locomovia em uma cadeira de rodas. Por fim, em 25 de agosto de

1900, morreu Friedrich Nietzsche.

Nos seus últimos dez anos, sua obra começou a conquistar a aclamação pú-

blica que ele tanto ansiara. Sua fama se difundia mundialmente, de maneira como

ele nunca pudera imaginar em seus sonhos mais megalomaníacos. Mas disso ele

nunca soube.

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Tópicos da Filosofia da Educação

■ 197

Uma filosofia feita com o martelo A filosofia de Nietzsche é feita a marteladas, isto é, quebrando os ídolos e

ícones do passado. Sobre o crepúsculo dos ídolos, sobre a destruição das velhas

verdades, ele constrói uma filosofia nova, não mais um sistema com pretensões

de abranger o mundo, como o fizeram ou tentaram fazer os grandes filósofos do

idealismo alemão, mas uma filosofia feita de lampejos capazes de iluminar as

contradições e as fissuras do real. Por isso, para Nietzsche, não se trata mais de

alcançar a verdade ou estabelecer as condições do conhecimento, mas sim saber

interpretar e avaliar. A finalidade da interpretação é a tentativa da determinação

do sentido de um fenômeno, e esse sentido será sempre parcial e fragmentário.

A avaliação, por sua vez, tem por meta a determinação do lugar desse sentido no

conjunto dos fenômenos.

Para Nietzsche, o modelo do filósofo pode ser encontrado entre os pré-socrá-

ticos, os quais, segundo ele, não separavam pensamento e vida, que se alimen-

tavam e retroalimentavam mutuamente. Mas o desenvolvimento da filosofia no

Ocidente trouxe consigo o fim dessa relação harmônica e, em vez de uma vida

ativa e de um pensamento afirmativo, a filosofia outorgou-se a missão de"julgar

a vida", opondo a ela valores pretensamente superiores. No lugar do filósofo críti-

co de todos os valores instituídos e criador de novos, surgiu o filósofo metafísico

- do qual o primeiro representante, conforme Nietzsche, seria Sócrates. Ao esta-

belecer uma clara distinção entre dois mundos - um sensível e outro inteligível -,

Sócrates teria lançado a pedra fundamental da metafísica, fazendo da vida um

objeto a ser avaliado e medido à luz de valores ideais, como a verdade, o bem e o

belo. Assim, com Sócrates, inaugurava-se não somente a metafísica ocidental,

mas também a época da razão autônoma e do homem teórico, em oposição à

antiga tradição extática do período da tragédia.

Para Nietzsche, a tragédia grega ostentaria como marca distintiva um co-

nhecimento intuitivo da unidade de todas as coisas, constituindo-se como uma

espécie de portal de acesso à essência do mundo. No entanto, para Sócrates, o

teatro trágico não passava de expressão do irracional e do ilógico, representando

o agradável e não o útil, a ponto de pedir a seus discípulos que se abs- tivessem

dessas emoções "indignas de filósofos". Portanto, para ele, a tragédia desviaria o

ser humano da senda da verdade: "uma obra só é bela se obedecer à razão".

Com tal concepção, estebeleceu-se, segundo Nietzsche, um autêntico anta-

gonismo entre Sócrates e Dionísio, também chamado Baco, que é o deus do

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Nietzsche educador

198 ■

vinho e representa a força dos instintos e da espontaneidade de viver.

Enquanto para todos os seres humanos produtivos o instinto é uma energia

positiva e criadora (ao passo que a consciência é crítica e negativa), em Sócrates

se inverteria essa relação: a consciência é criadora e o instinto é crítico. Assim,

Sócrates, o "homem teórico", foi o primeiro antagonista do homem trágico,

dando início a uma mudança radical na compreensão do ser humano. Com ele,

os seres humanos afastam-se cada vez mais desse conhecimento instintivo na

medida em que abandonam o trágico - a mais profunda revelação da natureza da

realidade, segundo Nietzsche. Uma vez perdida a ancestral sabedoria da tragédia,

resta ao pai da moral ocidental somente uma faceta da vida do espírito: o lado

lógico- -racional. Dionísio é morto, e foram Sócrates e seus discípulos que o

mataram.

Por esse motivo, Nietzsche combate implacavelmente a metafísica, retiran-

do-lhe todo e qualquer valor. Para ele, as ideias não são mais verdadeiras ou

falsas - são apenas sinais. A única existência real é a aparência e o único juízo

permitido é sua interpretação. Afinal, não existe essência e o ser humano está

destinado à multiplicidade. Nietzsche, o demolidor das ideias aceitas, retrocede

às origens da filosofia e da moral ocidentais - isto é, a Sócrates - para proceder a

desconstrução do castelo metafísico do Ocidente.

O"anticristo"e a luta contra o platonismo do povo

Todavia, o combate de Nietzsche não se restringe à herança socrático-platô-

nica, mas estende-se também e sobretudo ao cristianismo. Segundo ele, o cris-

tianismo, espécie de versão popular do platonismo, ao transferir a esperança de

felicidade do mundo terrestre concreto para o mundo celeste, constituiria uma

espécie de metafísica, a qual, à luz das ideias do "além", julgaria o mundo real

como provisório, inautêntico e aparente. Dessa forma, o cristianismo é a forma

mais acabada da perversão dos instintos que caracteriza o platonismo. Ancorado

em dogmas e crenças que proporcionam à consciência fraca um escape da vida,

da dor e da luta, ele erige em virtudes de características passivas e negativas

como a resignação, a renúncia e a submissão.

Na verdade, são os escravos e os vencidos que inventaram o além para se

consolarem das misérias da vida. Idealizaram falsos valores para compensar sua

incapacidade de participação nos valores dos senhores e dos fortes. Cunharam o

mito da salvação da alma porque não usufruíam de seus corpos. Forjaram a ideia

de pecado porque não podiam participar das alegrias mundanas e da plena sa-

tisfação dos instintos da vida.

Imbuído dessas ideias, Nietzsche investe-se da tarefa de restaurar a vida em

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Nietzsche educador

199

sua plenitude e transvalorar os valores falseados pelo cristianismo. Entre outras

coisas, ele recupera um sentido esquecido da palavra "bom". Em latim, bonus sig-

nifica também "guerreiro", significação esta que foi obliterada pelo cristianismo.

Da mesma maneira, outros significados precisariam ser recuperados, constituin-

do-se uma espécie de genealogia da moral, que explicaria as origens e variações

dos conceitos de bem e mal. Para Nietzsche, os complexos que estariam por trás

da moral cristã são o ressentimento, o sentimento de culpa e o ideal ascético, que

converteriam a vontade de potência original em vontade de nada, em nii- lismo.

Desse jeito, a vida transformar-se-ia em fraqueza, a saúde em mutilação, o vigor

em torpor. É a vitória do negativo sobre o positivo, da reação sobre a ação.

Quando prevalece esse niilismo, alega Nietzsche, a vontade de potência deixa de

ser criação e transforma-se em dominação.

Assim, no cristianismo, Nietzsche detecta o triunfo da moral dos escravos e

dos pusilânimes. Nessa moral tudo é invertido: os fracos são fortes, a vileza é

nobreza. O resultado é a hipocrisia e o uso de máscaras nas relações sociais.

Cabe ao sábio, ao escavar como um arqueólogo as camadas mais profundas das

convenções da sociedade, denunciar a inversão dos valores e revelar que, na

verdade, o bem é a vontade do mais forte, do mais capaz, do "guerreiro". Em

outras palavras, o bem é a vontade do porta-voz de um chamado a uma contínua

superação dos valores estabelecidos, do super-homem, entendida essa

expressão no sentido de um ser humano que transpõe os limites do humano, é o

além-do-homem. Nesse sentido, o voo da águia, a escalada da montanha e

todas as imagens de ascensão encontráveis em Assim Falou Zaratustra represen-

tam a inversão da profundidade "cristã" e a descoberta de que ela não passa de

um jogo de superfície.

Além do mais, não existe um sentido original ou legítimo por trás das pala-

vras, pois elas próprias, antes mesmo de serem signos, já são interpretações. O

trabalho do filósofo, portanto, consiste no problema de descobrir o que é que há

para ser interpretado, na medida em que tudo é interpretação, jogo, máscara.

0 super-homem e a nova moral Em EcceHomo, o último livro de Nietzsche, Zaratustra e Dionísio são aproxi-

mados entre si, o primeiro sendo concebido como o triunfo da vontade de po-

tência e o segundo - um deus artista, arteiro, totalmente irresponsável, amoral e

ilógico - como signo do mundo como vontade. Por outro lado, a tragédia grega,

concebida como inteiramente oposta à decadência que se seguiu a ela, se situa

na antinomia entre a vontade de potência, aberta ao futuro, e o eterno retorno,

que faz do futuro uma repetição, ainda que esta não signifique uma volta do

mesmo nem uma volta ao mesmo. De fato, o eterno retorno nietzscheano é es-

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Tópicos da Filosofia da Educação

200

sencialmente seletivo.

Para Nietzsche, agora, o verdadeiro oposto de Dionísio não é mais Sócrates,

mas o Crucificado. De um lado, temos a afirmação da mudança e da multiplici-

dade, mesmo na dilaceração dos membros dispersos de Dionísio; de outro, a

negação da vida e o desejo de vingança. Dessa forma, Nietzsche responde ao

pessimismo de Schopenhauer: em vez do desespero de uma vida para a qual

tudo se tornou inútil, o ser humano vislumbra no eterno retorno a plenitude de

uma existência ritmada pela alternância de nascimento e morte, júbilo e luto, o

bem e o mal. O eterno retorno, assim, ofereceria uma saída para fora da mentira

bimilenar do cristianismo, e a transvaloração dos valores traria consigo o super- -

homem que se situa além do próprio homem.

É importante, porém, entender o que Nietzsche quis dizer exatamente com

esse termo. Ora, para ele, o super-homem - o além-do-homem - não é um ser

cuja vontade seja um mero desejo de domínio. Se a vontade de potência for

entendida simplesmente como um desejo de domínio, faz-se dela algo depen-

dente dos valores dominantes. Dessa forma, ignora-se sua verdadeira natureza, a

qual é a energia que impulsiona todas as avaliações e cria os novos valores. Por

esse motivo, a vontade de potência impele o super-homem para além do bem e

do mal, libertando-o, ao mesmo tempo, dos produtos de uma cultura em deca-

dência. Sua moral é, assim, o oposto à moral do escravo e do rebanho, a qual por

seu turno é a moral da compaixão, da doçura feminina e cristã. O forte é aquele

que soube operar a transmutação dos valores, fazendo triunfar o afirmativo da

vontade de potência. Desse modo, Zaratustra, o profeta do super-homem, é a

afirmação pura, a afirmação que leva a negação ao seu último nível, tornando-a

uma ação, uma instância a serviço do ato criador.

Nietzsche e a educação Na área da educação, Nietzsche, que foi por um tempo professor universitá-

rio, não deixou de lançar também suas setas venenosas. Ele foi especialmente

crítico do sistema de ensino superior alemão. Ainda na esteira do hegelianis- mo

- o primeiro grande sistema filosófico ancorado na ideia de história - as

universidades alemãs privilegiavam o ensino da história. Mas para Nietzsche o

problema residia justamente aí, no conceito de cultura histórica que subjazia a

esse ensino. Um estudo da história que não serve para engendrar vida e criar

novos valores só é útil aos interessados em manter a ordem estabelecida. Ou

seja: o ser humano só deve se utilizar da história quando ela estiver a serviço da

vida.

Ora, para Nietzsche, confundia-se cultura com cultura histórica. Por isso a tão

exuberante erudição alemã tornara-se um falso saber, sobretudo por tolerar a

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Nietzsche educador

201

contradição entre cultura e vida. A cultura, na opinião do filósofo, só pode se

desenvolver a partir das necessidades autênticas da vida. Ao contrário, o excesso

de informação histórica, a ruminação incessante do passado, a cultura da memó-

ria são forças que agem no sentido de separar cultura e vida. Quando a história

atua a serviço do passado, torna-se na verdade "coveira do presente", adverte

Nietzsche. Não se trata, naturalmente, de abolir o ensino da história, mas de do-

sá-lo. Absorvida em proporções adequadas, a história não envenena a vida nem

amarra o presente ao passado.

O artista, por sua vez, não deixa que a massa de informações históricas o

sub- merja, porque ele sabe que isso destruiria o seu poder criador. Embora o

artista busque modelos e inspiração no passado, toda obra de criação é uma obra

radicalmente nova. Todavia, o erudito serve-se da história para remover a força

do presente. Na verdade, segundo Nietzsche, por trás da cultura histórica vigora

uma concepção teológica, ainda que "camuflada", herdada da Idade Média. O

olhar para trás prediz de certa forma o fim da vida, o último ato da tragédia.

Afinal, é bom conhecer o passado porque é tarde demais para se fazer alguma

coisa - é esse de certa forma o pensamento dominante.

Todo esse pessimismo lança uma sombra sobre a educação e a cultura. Mas

não basta despojar o ensino alemão de seu culto à história, é necessário uma

tarefa positiva, construtiva. Mas se grande parte dos professores alemães se

utilizam da história para transformar os alunos em indivíduos apenas capazes de

ganhar dinheiro ou servir o Estado, onde encontrar educadores que possam

colocar o ensino da história a serviço da vida? Para tanto, seria preciso começar

do zero. Uma nova geração deveria ser formada, com novos hábitos e uma nova

natureza. Ora, as pessoas agem mais por convenção do que por convicção. Para

libertar-se da moral do rebanho, é preciso que elas triunfem sobre si mesmas,

sobre as noções de cultura que lhe foram inculcadas. Nessa renovação, para

Nietzsche, é imprescindível a formação artística, não apenas informações sobre a

arte e a história da arte. Pois, efetivamente, numa época em que vida e cultura

andam dissociadas, a arte tem uma função primordial: afirmar a vida em sua

totalidade.

Nietzsche está vivo Nietzsche morreu duas vezes. Uma em 1889, quando sua mente abandonou

de vez o mundo da racionalidade e da lógica. Outra em 1900, quando o seu

corpo sucumbiu ante o peso de décadas de atrozes sofrimentos físicos. Todavia,

entre uma data e outra sua obra adquiriu vida própria e ele veio a se tornar um

dos filósofos mais lidos e discutidos de todos os tempos. Sem fundar uma escola

propriamente dita, como Marx, suas ideias e conceitos não se restringiram ao

ambiente acadêmico nem aos especialistas. E o fato de ela ter sido escrita

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Tópicos da Filosofia da Educação

202

basicamente em forma de aforismos, significa que ela também podia ser lida por

um público mais amplo - ao contrário da maior parte da filosofia de seus

conterrâneos que sempre pareceram experimentar um estranho prazerem

escrever de forma ilegível.

Eis finalmente uma filosofia que se pode ler, cintilante, fulminante. Mas não

necessariamente clara. Como os oráculos, ela pode ser interpretada de diversas

maneiras. E foi. Aliás, não poucas filosofias no mundo foram tão distorcidas

quanto a de Nietzsche. Os antissemitas, e depois os fascistas, começaram a

pinçar pequenos trechos de sua obra e a lê-los fora do contexto. Por isso, sua

filosofia foi durante muito tempo desacreditada. Hoje se conhece os bastidores

dessa tentativa de manipulação: quem mergulhou no delírio absoluto foi o

nazismo, não a filosofia de Nietzsche.

Sua filosofia, malgrado sua aparência muitas vezes alucinatória, permanece

estranhamente lúcida. Foi a primeira manifestação vigorosa de repúdio ao

positivismo e à idolatria da razão e da técnica. Com efeito, a segunda metade do

século XIX assinala a apoteose da crença na ciência. É o domínio de Apoio, o

severo deus da racionalidade, da justa medida e da ordem. Contra um mundo

todo racionalizado e controlado, Nietzsche prefere as forças obscuras de

Dionísio. Contra a razão de Apoio, ele brande, antecipando Freud, as razões de

Dionísio. Contra o império da ordem, as forças libertárias da arte.

E quando, na década de 1980, começou-se a se articular o pensamento que

recebeu o rótulo de pós-moderno, cuja matriz era justamente uma crítica aos

fundamentos racionalistas da modernidade, o principal inspirador que seus

expoentes foram buscar foi Nietzsche. Ademais, boa parte dos pensadores do

século XX são devedores de Nietzsche: Adorno (1903-1969), Heidegger (1889-

1976), Sartre (1905-1980), Foucault (1926-1984), Lyotard (1924-1998), Derrida

(1930-2004). Ademais, Nietzsche faz parte da tríade de nomes - os "mestres da

suspeita", no dizer de Paul Ricoeur - que forjaram o espírito do século XX: Marx,

Freud (1856-1939) e ele. Dos três, Nietzsche parece o mais habilitado para uma

longa vida no século XXI.

Texto complementar Apresentamos aqui uma seleção de frases e textos de Nietzsche.

Citações-chave (NIETZSCHE, 1997, p. 59-66)

Não existem fenômenos morais, apenas uma interpretação moral dos fe-

nômenos.

(Aurora, livro IV, 415) Deus está morto.

Viva perigosamente.

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Nietzsche educador

203

Qual é o melhor remédio? - Vitória.

(Aurora, 571) A melhor cura para o amor é ainda aquele remédio eterno: amor retribuído.

(Aurora, livro IV, 415) As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras.

(Humano, Demasiado Humano, vol. 1, seção 9,483) Aqueles que compreendem alguma coisa em sua dimensão mais profunda,

raramente permanecem fiéis a ela para sempre. Porque expuseram essas

profundezas à clara luz do dia; e o que lá se encontra não é em geral agradável

de ver.

(Humano, Demasiado Humano, vol. 1, seção 9,489) Até os mais corajosos raramente têm a coragem para aquilo que realmente

sabem.

(Crepúsculo dos Deuses; Máximas e Setas, 2.1) O que vem a ser esta vontade absoluta de verdade? Que sabeis vós a priori do

caráter da existência para poder decidir que a desconfiança absoluta apresenta

mais vantagens do que a absoluta confiança? E se ambas são necessárias, uma

grande confiança e uma grande desconfiança, onde irá a ciência procurar essa

convicção absoluta, essa fé que lhe serve de base e que diz que a verdade

importa mais do que qualquer outra coisa, incluindo

qualquer outra convicção? Essa convicção de base não se pode formar se o

verdadeiro e não verdadeiro se afirmarem sempre - e é esse o caso! - úteis tanto

um como o outro. Portanto, a fé na ciência, essa fé que existe de fato de uma

maneira incontestável, só pode ter sua origem num cálculo utilitário; deve ter-se

formado, pelo contrário, apesar do perigo e da inutilidade da "vontade da

verdade", apesar do perigo e da inutilidade da "verdade de qualquer maneira",

perigo e inutilidade que a vida demonstra sem cessar.

"Querer a verdade" não significa, portanto, "não querer deixar-se enganar",

mas - e não há outra escolha - "não querer enganar os outros, nem a si próprio",

o que nos leva para o domínio moral. Perguntemo-nos seriamente com efeito: "Por

que não queremos enganar?" sobretudo se parece - é bem esse o caso! - que a

vida seja vivida em vista da aparência, quero dizer que tenha como objetivo

extraviar, iludir, dissimular, ofuscar, cegar, e se, por outro lado, de fato, ela se

mostrou sempre sob a sua melhor face do lado dos menos escrupulosos

trapaceiros. Interpretado timidamente, esse desejo de não enganar pode passar

por um quixotismo, uma pequena sem-razão de entusiasta; mas é também

possível que seja alguma coisa pior: um princípio destruidor, inimigo da vida

"Querer o verdadeiro" poderia ser, secretamente, querer a morte. De modo que o

porquê da ciência se liga a um problema moral: porque, de uma maneira geral,

qualquer moral, quando a vida, a natureza, a história são imorais? Mas ter-se-á

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Tópicos da Filosofia da Educação

204

desde já compreendido onde quero chegar: é numa fé metafísica que assenta

ainda a nossa fé na ciência; pesquisadores do conhecimento, ímpios inimigos da

metafísica, nós próprios, ainda ateamos fogo na fogueira acesa por milenária

crença, pela fé cristã, crença que foi também a de Platão, para quem o verdadeiro

se identifica com Deus e toda a verdade é divina.

(Gaia Ciência, livro V, seção 344) O que nos torna heroicos? - Ir ao mesmo tempo para além da sua maior dor e

da sua maior esperança.

Em que tens fé? - Nisto: em que é necessário determinar de novo o peso de

todas as coisas.

O que diz a tua consciência? - Deves transformar-te no homem que és.

Onde se encontra o teu maior perigo? - Na piedade.

O que amas nos outros? - As minhas esperanças.

A quem chamas mau? - Àquele que quer envergonhar sempre.

Que encontras de mais humano? - Poupar a vergonha a alguém. Qual é a marca da liberdade realizada? - Não mais corar de si próprio.

(A Gaia Ciência, livro III, 268-275) De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu

próprio sangue. Escreve com sangue e aprenderás que sangue é espírito.

Quero ter duendes ao meu redor, porque sou corajoso. A coragem que

afugenta os fantasmas cria seus próprios duendes: a coragem quer rir.

Eu já não sinto do mesmo modo que vós: essa nuvem que vejo debaixo de mim,

essa coisa negra e pesada - é, justamente, a vossa nuvem de temporal.

Vós olhais para cima, quando aspirai a elevar-vos. Eu olho para baixo, porque

já me elevei. Quem de vós pode, ao mesmo tempo, rir e sentir-se elevado?

Aquele que sobe ao monte mais alto, esse ri-se de todas as tragédias, falsas

ou verdadeiras.

Corajosos, despreocupados, escarninhos, violentos - assim nos quer a sa-

bedoria: ela é mulher e ama somente quem é guerreiro.

(Assim Falou Zaratustra, I, Do ler e escrever) "O homem é mau" - assim falaram, para meu consolo, todos os sábios. Oxalá

isso fosse verdade ainda hoje! Pois o mal é a melhor força do homem.

"O homem deve tornar-se melhor e pior"- isto ensino eu. O pior que tudo é

necessário para o maior bem do super-homem.

Sofrer e tomar sobre si os pecados do homem talvez fosse bom para aquele

pregador do povinho.

Eu, porém, me rejubilo com o grande pecado como a minha grande con-

solação.

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Nietzsche educador

205

(Assim Falou Zaratustra, V, Do homem superior, 5)

Atividades 1. Nietzsche foi um vate, isto é, um misto de profeta e poeta. Ele soube ante-

cipar, de uma maneira mais intuitiva que sistemática, muito das discussões e

problemas da atualidade. Você poderia citar outros nomes que apresentaram

essas mesmas características? (Não é necessário apontar apenas filósofos,

pode ser também escritores, poetas, letristas etc.)2. Quanto ao pensamento de Nietzsche, assinale V (verdadeiro) ou F (falso).

( ) Juntocom Karl Marx, Nietzschefoi um dos mais conhecidos hegelianos de

esquerda.

( ) A filosofia de Nietzsche foi primeiramente influenciada pela de Schopenhauer.

( ) A "vontade" de Schopenhauer inverte de sinal, tornando-se positiva e

transformando-se em "vontade de potência"em Nietzsche.

( ) kataraxia (imperturbabilidade) é um dos principais ideais perseguidos por

Nietzsche.

( ) Suas ideias influenciaram Adorno, Heidegger, Sartre, Foucault, Lyotard,

Derrida, entre outros.

( ) O ateísmo radical de Nietzsche está na base do materialismo positivista de

Auguste Comte. 3. Para Nietzsche, o modelo do filósofo pode ser encontrado entre os pré-so- cráticos. Porquê?

Para produzir filosofia Como vimos, Nietzsche produziu uma filosofia a marteladas, destruindo

ídolos e verdades tidas como eternas. Empunhe agora, um pouco que seja, do

martelo de Nietzsche e olhe ao seu redor, sobretudo no ambiente de trabalho

educacional. Que mitos você poderia "destruir" hoje?

A Escola de Frankfurt Existe um quadro de Klee que se intitula Angelus Novus. Representa um anjo que parece

preparar-se para se afastar do local em que se mantém imóvel. Os seus olhos estão

escancarados, a boca está aberta, as asas desfraldadas. Tal é o aspecto que necessariamente

deve ter o anjo da história. O seu rosto está voltado para o passado. Ali onde para nós parece

haver uma cadeia de acontecimentos, ele vê apenas uma única e só catástrofe, que não para de

amontoar ruínas sobre ruínas e as lança a seus pés. Ele quereria ficar, despertar os mortos e

reunir os vencidos. Mas do Paraíso sopra uma tempestade que se apodera das suas asas, e é tão

forte que o anjo não é capaz de voltar a fechá- -las. Esta tempestade impele-o incessantemente

para o futuro ao qual volta as costas, enquanto diante dele e até ao céu se acumulam ruínas.

Esta tempestade é aquilo que nós

chamamos progresso.

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Tópicos da Filosofia da Educação

206

Walter Benjamin

A herdeira do facho Após a debacle ou a ruína da cosmovisão medieval, o pensamento oci-

dental vai encontrar na França do século XVII o principal expoente de sua

refundação: René Descartes (1596-1649). Um pouco depois, a vanguarda do

pensamento europeu migra para o norte e, ao longo da primeira metade do

século XVIII, os empiristas ingleses darão a tônica. Todavia, na segunda

metade do mesmo século, novamente a França, com o lluminismo, foi o

centro do cenário.

Mas já por essa época, ali pelo final do século XVIII, por todo o XIX e em

boa parte do XX, a pole position da filosofia esteve com a Alemanha. Basta citar

o nome de alguns filósofos para nos darmos conta dessa incon- teste

supremacia: Immanuel Kant (1724-1804), Georg Hegel (1770-1831), Karl

Marx (1818-1883) e Friedrich Nietzsche (1844-1900). Até a primeira metade

do século XX essa supremacia não foi obscurecida nem mesmo pelas duas

guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), com duas fragoro- sas derrotas

da Alemanha, nem pela barbárie nazista.Dois grandes grupos caracterizam esse período.

O primeiro, mais eclético, gira em torno da fenomenologia de Edmund Hus-

serl (1859-1938) e do existencialismo de Martin Heidegger (1889-1976).

O segundo, que surgiu mais ou menos ao mesmo tempo, é representado por

uma plêiade de pensadores oriundos da chamada Escola de Frankfurt, cuja po-

derosa influência continua vigente em nossos dias.

Herdeira da melhor tradição marxista, à qual se somam outros influxos -

como os de Nietzsche e Freud (1856-1939) -, a Escola de Frankfurt é com efeito

a última glória da filosofia alemã, irradiando o seu crivo analítico por sobre áreas

até então não plenamente exploradas, como a cultura de massas, o comporta-

mento e a ideologia contemporâneos.

Todavia, a Alemanha em que nasceu e se desenvolveu a Escola de Frankfurt

não é o mesmo país que assistiu às carreiras de Marx ou Nietzsche. Unificada em

1871, sob a tutela da Prússia (vitoriosa na Guerra Franco-Prussiana), a Alemanha

da primeira metade do século XX é um país humilhado pela derrota na Primeira

Guerra Mundial e traumatizado pela malograda revolução proletária de 1918. É

também uma Alemanha que viu a ascensão e as conseqüências de um espectro

muito mais tenebroso: o nacional-socialismo de Adolf Hitler, no qual estava

embutido o projeto expansionista e de limpeza étnica do III Reich - o império

alemão sob o governo nazista (1933-1945).

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Tópicos da Filosofia da Educação

207

Uma escola crítica A inflação era gigantesca e tumultos sociais conflagravam a Alemanha

quando, no dia 22 de junho de 1924, no auditório da Universidade de Frankfurt,

foi fundada aquela que viria a ser conhecida como Escola de Frankfurt. Cogi-

tara-se o nome de Instituto para o Marxismo, mas - seja pelo anticomunismo

dominante nos meios acadêmicos alemães da época, seja pelo fato de seus co-

laboradores não adotarem a ortodoxia marxista - preferiu-se a denominação de

Instituto de Pesquisa Social. Somente na década de 1950, e mesmo assim com

reservas, a agremiação seria chamada de Escola de Frankfurt.

A iniciativa foi de Félix Weil, um intelectual de apenas 25 anos de idade que

conseguiu convencer o pai, um abonado negociante judeu que fizera fortuna na

Argentina, a financiar as atividades da instituição. Vinculado ao Ministério da

Educação e Cultura da Prússia, o Instituto de Pesquisa Social funcionaria como

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A Escola de Frankfurt

208 ■

uma espécie de anexo da Universidade de Frankfurt, mas tendo garantida sua

total autonomia. Além de um edifício próprio, o Instituto receberia uma dotação

anual de 120 mil marcos dos fundos de Herman Weil, capitalista e pai do

idealizador.

Sem dúvida alguma, a inspiração para a abertura do Instituto de Pesquisa

Social veio do Instituto Marx-Engels, de Moscou, fundado havia quatro anos na

recém-criada União Soviética.

O primeiro diretor do instituto frankfurtiano foi o economista austríaco Carl

Grunberg. Entre 1931 e 1946, Max Horkheimer (1895-1973) assumiu a direção

e, nesse período, desenvolveu-se aquilo que ficou conhecido como Teoria Crítica,

comumente associada à Escola de Frankfurt. O órgão do instituto, a sua publi-

cação oficial, que era conhecida como Arquivos Grunberg, passou a se chamar

Revista para a Pesquisa Social, e sua ênfase mudou da economia para a filosofia.

Porém, a maioria dos números dessa revista reformulada teve sua edição no

exílio por conta da ascensão do nazismo, que obrigou seus membros, quase

todos de ascendência judaica e praticamente todos de esquerda, a uma diáspora,

primeiramente na Suíça e na França e depois nos Estados Unidos.

Aproximando Marx e Freud, e às vezes trazendo Heidegger, em um vasto

empreendimento de interdisciplinaridade e síntese, praticamente não houve

fenômeno social que não despertasse o interesse da Escola. Tudo foi abordado:

filosofia, economia, sociologia, psicanálise, cultura de massas, ideologia, estética,

literatura, cinema, música, os efeitos da tecnologia, as novas feições do capi-

talismo, o totalitarismo, o fascismo, a repressão sexual e assim por diante. No

entanto, a despeito do pano de fundo marxista e neo-hegeliano de que se diziam

herdeiros, contribuição mais duradoura dos pensadores da Escola de Frankfurt

foram questionamentos de nítida influência heideggeriana feitos às esperanças

de emancipação despertadas pelo lluminismo e também a desconfiança em

relação à racionalidade em geral. Testemunhas da devastação provocada pela

tecnologia durante as duas grandes guerras e da barbárie totalitarista, os frank-

furtianos foram os primeiros teóricos de esquerda a buscar no lluminismo, ou na

perversão do lluminismo, a origem dos problemas contemporâneos.

Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, com o retorno de alguns mem-

bros à Alemanha, a Escola voltou a funcionar em sua cidade de origem, já sob a

direção deTheodorW. Adorno (1903-1969). Jürgen Habermas (antigo assistente

de Adorno e ainda atuante) com Axel Honneth e Karl-Otto Apel são os frankfur-

tianos de maior destaque atualmente.

A amplitude da influência da Escola de Frankfurt continua sendo imensa. Em

uma série de domínios - da filosofia às ciências sociais, passando pela Psicanálise

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A Escola de Frankfurt

213H

e pelo Direito, categorias sintetizadas por Horkheimer, Adorno, Herbert Marcuse

(1898-1979), Walter Benjamin (1892-1940) e Habermas - ainda são pertinentes

e profícuos. Dificilmente outro empreendimento intelectual do século XX tenha

gozado de um prestígio tão duradouro. E se levarmos em conta o aparecimento

de uma nova geração de intelectuais frankfurtianos, como o já citado Axel Hon-

neth, podemos esperar o desenrolar de novos capítulos dessa história.

Os momentos da teoria crítica A construção teórica da Escola de Frankfurt pode ser didaticamente dividida

em três períodos.

■ O primeiro deles é formado pelos escritos da década de 1930, nos quais,

mais próximos do marxismo clássico, Adorno, Benjamim, Horkheimer e

Marcuse procuraram responder à questão sobre em que condições seria

possível uma teoria materialista da sociedade. Trata-se, portanto, de um

período marcado por preocupações acerca da teoria do conhecimento.

Ensaios como Materialismo e Metafísica (...), de Horkheimer; O Conceito de

História Natural (...), de Adorno; Antologia de Hegel, tese de doutorado de

Marcuse, e Alguns Temas Baudelairianos (...), de Benjamin, são obras que se

destacaram nesse período.

■ Um segundo momento contém trabalhos da década de 1940 e sua carac-

terística fundamental é o gradual afastamento da teoria marxista da re-

volução, com o consecutivo desaparecimento do tema da luta de classes e a

conseqüente substituição da crítica da economia política pela crítica da

civilização técnica. Sob o impacto do nazismo e da Segunda Guerra, a Teoria

Crítica procuraria a genealogia do fenômeno totalitário, não apenas na crise

econômica, política e social, ou no "erro" tático ou estratégico das forças de

esquerda alemãs, mas, de maneira original, em uma questão metafísica: é a

própria noção de razão e de racionalidade a responsável pela produção do

irracionalismo fascista. Essa razão funda-se na hostilidade ao prazer, na

renúncia à felicidade, no "ascetismo do mundo interior", no domínio e

controle da natureza exterior e das paixões humanas. A natureza, assim

reprimida, vinga-se na forma da destrutividade social. É desse período o

clássico Dialética do Esclarecimento (1947), de Horkheimer e Adorno.

■ A partir dos anos 1950, a Teoria Crítica rompe de vez com as esperanças re-

volucionárias de seu primeiro momento, encaminhando-se para a análise da

sociedade unidimensional, em Marcuse, e da sociedade administrada, em

Adorno e Horkheimer. Esse período é marcado pela reflexão acerca do

desaparecimento do sujeito revolucionário em sentido marxista: rompe- -se a

fé na unidade entre teoria e práxis - o pensamento do intelectual radical e a

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Tópicos da Filosofia da Educação

210

prática libertadora do proletariado. Este foi integrado primeiramente pelo

nazismo, dissolvido no stalinismo e, posteriormente, na sociedade

tecnológica unidimensional. Daí derivam as reflexões frankfurtianas a respeito

das tendências do mundo homogêneo, uniforme, sem oposição, que suprime

os indivíduos ao liquidar sua autonomia e a liberdade de sua ação histórica.

Teoria crítica versus teoria tradicional O nome de Teoria Crítica para o pensamento produzido pela Escola de

Frankfurt deriva de um célebre ensaio programático de Horkheimer, de 1937,

intitulado Teoria Tradicional e Teoria Crítica. Como o título sugere, nesse ensaio

Horkheimer aponta a diferença fundamental de dois métodos gnosiológicos, dois

métodos de conhecimento. O primeiro, a teoria tradicional, tem sua base no método cartesiano, o qual

[...] organiza a experiência à base da formulação de questões que surgem em conexão com a reprodução da vida dentro da sociedade atual. [...] A gênese social dos problemas, as situações reais nas quais a ciência é empregada e os fins perseguidos em sua aplicação, são por ela mesma consideradas exteriores. (HORKHEIMER, 1968, p. 163)

A Teoria Crítica da sociedade, por sua vez, fundamenta-se na economia

política e"tem como objeto os homens como produtores de todas as suas formas

históricas de vida. [...] O que é dado não depende apenas da natureza, mas

também do poder do homem sobre ele" (HORKHEIMER, 1968, p. 163).

Nesse sentido, a Teoria Crítica apresenta, por meio da constante autocrítica da

razão, um posicionamento crítico em relação à ciência e à cultura, oferecendo

uma reorganização política da sociedade de modo a se obter a superação do que

os frankfurtianos denominaram crise da razão. Para eles, a razão, longe de solução

automática, era parte do problema, como elemento de manutenção do statusquo. Assim, era preciso uma reflexão sobre essa racionalidade.

Dessa forma, eles efetuam uma severa crítica da fragmentação da ciência em

uma série de setores na tentativa de explicação da sociedade. Ao contrário, ao

propor a dialética como método, eles almejam uma investigação analítica dos

fenômenos estudados, relacionando esses fenômenos com as forças sociais que

os provocam. Assim, as ciências sociais - cujas pesquisas não vão além de uma

mera coleta e classificação de dados - não estariam aptas a apreender a dinâmica

do contexto social em todas as inter-relações.

Razão instrumental e indústria cultural Entre as numerosas contribuições da Escola de Frankfurt, importa frisar duas:

os conceitos de razão instrumental e indústria cultural.

Entre outras coisas, os frankfurtianos denunciaram o que seria uma moderna

fe- tichização da razão, mostrando que, à medida que a ciência e a técnica

passaram a ser decisivas na forma de condução da vida humana, elas também

passaram a se constituir instrumentos de dominação. Assim, a razão torna-se

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A Escola de Frankfurt

213H

instrumento de dominação da natureza, com um espírito e um objetivo não

muito diferentes das antigas práticas mágicas. A razão instrumental que os frankfurtianos como Adorno e Horkheimer também designaram com a expressão razão iluminista nasce quando o sujeito do conhecimento toma a decisão de que conhecer é dominar e controlar a Natureza e os seres humanos. Assim, por exemplo, o filósofo Francis Bacon, no início do século XVII, criou uma expressão para referir-se ao objeto do conhecimento científico: "a Natureza atormentada". Atormentar a Natureza é fazê-la reagir a condições artificiais, criadas pelo homem. O laboratório científico é a maneira paradigmática de efetuar esse tormento, pois, nele, plantas, animais, metais, líquidos, gases etc. são submetidos a condições de investigação totalmente diversas das naturais, de maneira a fazer com que a experimentação supere a experiência, descobrindo formas, causas, efeitos que não poderiam ser conhecidos se contássemos apenas com a atividade espontânea da Natureza. Atormentar, na Natureza, é conhecer seus segredos para dominá-la e transformá-la. (CHAUÍ, 2000, p. 283)

Em um segundo momento, a razão instrumental já não é mais utilizada so-

mente para a conquista da natureza, mas também passa a estabelecer as formas

de organização social.

Segundo Horkheimer e Adorno, o impulso para a dominação nasce do medo

da perda do próprio eu - medo que se revela em toda situação de ameaça do

sujeito em face do desconhecido. Nesse sentido, o mito e a ciência têm origem

comum: controlar as forças desconhecidas da natureza, a multiplicidade

incontrolada do sensível. Para isso, o mito tem um procedimento peculiar na

medida em que o sacerdote da tribo mimetiza gestos de cólera ou

apaziguamento com relação às** ** Lançado em 1532 (embora já escrito há 19 anos), O Príncipe é o primeiro livro em mil anos a não trazer nenhuma citação bíblica ou

referência a autores da Antiguidade. Junto com a tradução alemã da Bíblia de Martinho Lutero, foi o grande best-seller do século XVI. 1 Um silogismo é o termo com o qual Aristóteles designou a argumentação lógica perfeita, constituída de três proposições declarativas que se

conectam de tal modo que a partir das duas primeiras, denominadas premissas, é possível deduzir uma conclusão. 1 Citação de Horácio:"tem a coragem de saber"