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1 TEMA SUMÁRIO 06 Aqui, uma análise comparativa entre uma crônica de Machado de Assis e um trecho da peça Hamlet, de Shakespeare, em que o tema é tratado por Machado com ironia, como paródia. Por Adriana Silene Vieira. A autora segue a linha da “póetica das traduções.” 24 Partindo do pressuposto de que a semiótica greimasiana pode ser de grande valia para o estudo literário, Jacy Marcondes Duarte utiliza essa proposta teórica para analisar o conto de Lígia Fagundes Telles As Formigas. 36 Guaraciaba Micheletti focaliza alguns usos da língua portuguesa na poesia moderna e contemporânea, sob a perspectiva estilística. Coloca em relevo, em alguns fragmentos, particularidades a respeito do léxico, da morfologia e da sintaxe por julgar que são pertinentes para distinguir os usos linguísticos mais comuns no discurso poético de determinado período.

A - SUMARIOuniesp.edu.br/sites/_biblioteca/revista_tema/pdf/20170417163648.pdf · 7 TEMA Adriana Silene Vieira F aremos uma breve apresentação e análise da crônica “A cena do

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1 TEMA

SUMÁRIO

06Aqui, uma análise comparativa entre umacrônica de Machado de Assis e um trechoda peça Hamlet, de Shakespeare, em que otema é tratado por Machado com ironia,como paródia. Por Adriana Silene Vieira. Aautora segue a linha da “póetica dastraduções.”

24Partindo do pressuposto de que a semióticagreimasiana pode ser de grande valia parao estudo literário, Jacy Marcondes Duarteutiliza essa proposta teórica para analisar oconto de Lígia Fagundes Telles AsFormigas.

36Guaraciaba Micheletti focaliza alguns usosda língua portuguesa na poesia moderna econtemporânea, sob a perspectivaestilística. Coloca em relevo, em algunsfragmentos, particularidades a respeito doléxico, da morfologia e da sintaxe por julgarque são pertinentes para distinguir os usoslinguísticos mais comuns no discursopoético de determinado período.

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SUMÁRIO

60A poesia de Manoel de Barros, quereinventa o homem como ser conjugadocom o cosmo e a natureza, capaz detransitar entre o mundo contemporâneo eos valores tradicionais, é aqui apresentadapor Zenaide Bassi Ribeiro Soares.

78Neste estudo, Roberto de CamargoDamiano revê aspectos da História daCriança e do Mito da Infância Dourada, paraarticular uma reflexão sobre o preconceitoétnico na literatura infantil e juvenil denosso país, a partir da seleção de textosde autores consagrados.

92Este estudo de Simone S. Goh resgata ametalinguagem de Monteiro Lobatoapresentada em um corpus único ecronológico e demonstra que ele registramarcas de oralidade, criando um discursoque o próprio autor denomina de “conversaem mangas de camisa”.

3 TEMA

ISSN 0103-8338

Edição de julho/dezembro de 2009: Letras e Artes

Revista das Faculdades Integradas Teresa Martin, instituição vinculada àUNIESP. nº 54, julho/dezembro, 2009

Publicação indexada no IBICT, no ULRICH’S International PeriodicalsDirectory e no Latindex. Circulação regular desde 1986.

TEMATEMA

Editor Responsável:Zenaide Bassi Ribeiro Soares – MTb 8607.

Conselho Editorial:Profa. Dra. Betina Rodrigues da Cunha Silva (UFU-MG), Prof. Dr. João CardosoPalma Filho (UNESP-São Paulo), Profa. Dra. Lúcia Pimentel Góes (FFLCH-USP),Profa. Dra. Nelly Novaes Coelho (USP), Profa. Dra. Ana Lucia Jorge (UENF-RJ),Profa. Dra. Meire Mathias (UEL-Paraná), Profa. Dra. Dalva Alves Silva (UNIFESP),Profa. Dra. Maria Aparecida Bosschaerts de Camargo (Fac. Presidente Prudente -UNIESP), Profa. Ms. Luciane Nigro Charlariello (Fac. Teresa Martin - UNIESP),Prof. Dr. Paulo Cunha (UNESP-Marília), Prof. Dr. Roberto Gonçalves (UFP), Profa.Dra. Rosa Maria Valente Fernandes (Fac. Teresa Martin - UNIESP), Profa. Dra. RosaManzoni (UNESP - Bauru), Profa. Dra. Zenaide Bassi Ribeiro Soares (Fac. TeresaMartin - UNIESP).

Capa:Mariana Bassi.

Ilustrações:André Santos, Joanes Lessa e Mariana Bassi.

Revisão de Inglês:Profa. Ms. Luciane Nigro Charlariello.

Editoração Eletrônica:Lucia Maria Teixeira e Roberto de Camargo Damiano.

Bibliotecária:Janaína Mendonça Rodini - CRB - 8/7563.

Presidente:Professor Doutor José Fernando Pinto da Costa

Instituto Educacional Teresa Martin

Diretor Geral:Professor Doutor José Marta Filho

Rua Álvares Penteado, 184 - 3° andar - sala 30201012-000 - Centro - São Paulo - SP

Tel.: (11) 2173-4700www.uniesp.edu.br

UNIESP 4

Revista TEMAPublicação indexada no IBICT, no ULRICH’S International Periodicals Directory e no Latindex.Circulação regular desde 1986.

R.TEMA S.Paulo nº 54 jul/dez 2009 P. 104

5 TEMA

Apresentação

Professor Doutor José Marta FilhoDiretor Geral

A Revista TEMA é um periódico desti-nado à divulgação da produção científicada comunidade da UNIESP e de outros au-tores, que contribui para o crescimento edesenvolvimento da produção científica sobenfoque multidisciplinar. É um instrumento quepromove a interdisciplinaridade no ensino-aprendizagem da pesquisa, num processoreflexivo que leva à proposição de novaspráticas.

A publicação desta edição de núme-ro 54 atesta a seriedade e a maturidade deseu comitê editorial e a senioridade em pes-quisa no conjunto dos seus representan-tes, preservando a memória da produçãoacadêmica.

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Adriana Silene Vieira*

DIÁLOGO ENTRE SHAKESPEARE E MACHADO DE ASSISEM “A CENA DO CEMITÉRIO”: IRONIA E PARÓDIA

SHAKESPEARE AND MACHADO DE ASSISDISCUSSION ON “A CENA DO CEMITÉRIO”: IRONY AND PARODY

Autor e TextoAuthor - Text

PALAVRAS-CHAVE

RESUMO

ABSTRACT

KEY WORDS

R.TEMA S.Paulo nº 54 jul/dez 2009 P. 6-23

Esta é uma breve uma análise comparativa entre a crônica deMachado de Assis e um trecho da peça Hamlet, de W. Shakespeare.Damos ênfase à forma como o autor brasileiro parodia o bardonesse texto, aproximando assuntos opostos, misturando discussõesfilosóficas com assuntos quotidianos.

* Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Professora das Faculdades Integradas Teresa Martin - UNIESP.

This is a concise comparative analysis carried out on Machado deAssis’ chronicle and some part of Shakespeare’s Hamlet. We focushow Machado de Assis makes parodies the bard in this text byputting opposite subjects together, and jointing philosophicalarguments to quotidian matters.

Machado de Assis. Crônica. William Shakespeare. Paródia.Comparação. Leitura.

Machado de Assis. Chronicle. William Shakespeare. Parody.Comparison. Reading.

7 TEMA

Adriana Silene Vieira

F aremos uma breve apresentação e análise da crônica “A cena do cemitério”, de Machado de Assis, publicada em junho de 1894 em A

Semana, Gazeta de notícias, que apresenta um diálogo entrea obra de Machado e a de William Shakespeare. Seguiremosa linha de análise da chamada “poética das traduções”,processo que ocorre nos textos de Machado, nos quais secoloca um texto sublime da tradição em uma situaçãototalmente vulgar, como por exemplo a citação de Hamlet em“A cartomante”. Porém, enquanto aquele conto tratava do

“Não ajunteis para vós tesouros na terra onde a traça ea ferrugem os consomem, e onde os ladrões cavam eroubam. Acumulai para vós tesouros no céu, onde nema traça nem a ferrugem os consomem, e onde osladrões não cavem nem roubem. Porque, onde está oteu tesouro, aí também estará o teu coração.”

(Mateus. 6,19-21)

DIÁLOGO ENTRE SHAKESPEARE E MACHADO DE ASSISEM “A CENA DO CEMITÉRIO”: IRONIA E PARÓDIA

SHAKESPEARE AND MACHADO DE ASSISDISCUSSION ON “A CENA DO CEMITÉRIO”: IRONY AND PARODY

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tema do amor e da traição e apresentava personagens dopovo, este trata do tema da morte e faz uma paródia explícitaà cena I do ato V de Hamlet. Escolhemos tal crônica porobservarmos que é pouco conhecida, e também por não terencontrado nenhuma referência a ela na fortuna críticalevantada. Pretendemos nos deter em sua análise textual eobservar como se dá, nela, a paródia em relação ao textoshakespeariano.

Pela forma como se apresenta, a crônica “A cenado cemitério” faz uma reescritura de caráter parodísticodo trecho homônimo de Hamlet. Além disso, segundo onarrador deixa claro no início, o fato que irá narrar nãopassa de um sonho sucedido após a leitura de Hamlet edos jornais do dia. A paródia feita por Machado tem umaspecto moderno, mostrando que, em sua época (1894) nãohaveria lugar para o sublime dos textos shakespearianos.É importante também lembrar o gênero desse texto, umacrônica, que tem um caráter de “quotidiano” e por issomesmo “popular” e “imediato”.

Porém, pode-se perceber que, apesar de poucoconhecido, fazendo parte do volume Páginas Recolhidas,1

não envelheceu, revelando-se surpreendentemente atual,como ocorre com toda a obra machadiana. Além disso, a idéiade exploração, descrença na humanidade e a paródia sãomotivos dos quais a arte moderna iria mais tarde usar eabusar. Vemos aí então mais uma antecipação do grandegênio machadiano.

Logo no início da crônica, nos deparamos com afrase “Não mistureis alhos com bugalhos”, uma frase de

1 A ortografia foi atualizada por nós.

9 TEMA

cunho popular, que destoa da gravidade da escrita deMachado e também do tema que irá ser abordado, umacena da tragédia Hamlet. Porém, perceberemos que elavem muito a propósito, pois o que se quer fazer éjustamente vulgarizar o texto de Shakespeare, apresentandoHamlet em outro contexto, o da modernidade, do capitalismo,dos valores burgueses, em que não existiria mais lugar parao sublime e o questionamento feito pelo Renascimento emrelação à velha ordem medieval.

Depois do provérbio, o narrador entra no assuntoe nos diz que vai narrar um sonho, fazendo assim umaexegese, ou seja, uma interpretação do sonho. Quanto aisso, é interessante ressaltar que Machado, mesmo sendoum autor realista, algumas vezes trata em seus textos demomentos nebulosos como os sonhos, as visões e osdelírios. Um destes momentos é o capítulo VII dasMemórias Póstumas de Brás Cubas, no qual a fantasia tomalugar.

Outra característica interessante neste texto éque ele trata de leitura. O narrador nos relata suaexperiência, um sonho que teve início em suas leituras, asquais foram “um jornal do dia” e a cena I do ato V de Hamlet.Juntando a concepção da leitura à do sonho, (ou do delírio)podemos observar certa semelhança entre a situação doprotagonista e a célebre personagem Don Quixote, na obrahomônima de Cervantes. Isso porque a leitura parece terinfluenciado a ambos, enquanto Don Quixote enlouquecea partir das leituras de histórias de cavalaria, o narrador-protagonista de “A cena do Cemitério” tem um pesadeloprovocado por duas leituras muito diferentes entre si.

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Porém quando narra, o protagonista está em ummomento de lucidez, no qual pode refletir:

Foi o caso que, como não tinha acabadode ler os jornaes de manhã, fi-lo à noite.Pouco já havia que ler, três notícias e acotação da praça. Notícias da manhã,lidas à noite, produzem sempre o efeitode modas velhas, donde concluo que omelhor encanto das gazetas está na horaem que aparecem. (...) Afinal pus osjornais de lado, e, não sendo tarde, pegueide um l ivro, que acertou ser deShakespeare. O drama era Hamlet. Apágina, aberta ao acaso, era a cena docemitério, ato V. Não há que dizer ao livronem à pagina; mas essa mistura de poesiae cotação de praça, de gente morta edinheiro vivo, não podia gerar nada bom;eram alhos com bugalhos. (Páginasrecolhidas, p. 248)

No trecho destacado, percebe-se que o narrador fazuma série de trocadilhos, no mesmo estilo da frase com aqual abre seu texto. Esses trocadilhos serão feitos tendopor base a paranomásia das palavras “coveiros” e“caveiras”. Além disso, já aparece a ironia do narrador aocontrapor “gente morta” “dinheiro vivo” usando deantíteses e mostrando que seu sonho chegava ao absurdode “misturar” as duas coisas. E são os trocadilhos doscoveiros o que o narrador observa:

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Faziam trocadilhos, como os coveiros deShakespeare. Um deles, ouvindo apregoarsete ações do Banco Pontual, disse que talbanco foi realmente pontual até o dia emque passou do ponto à reticência. (p. 250)

Tomemos agora a descrição do pesadelo feita pelonarrador, consequência de suas leituras:

Sucedeu o que era de esperar; tive umpesadelo (...) Sonhei que era Hamlet; traziaa mesma capa negra, as meias, o gibão eos calções da mesma cor. Tinha a própriaalma do príncipe da Dinamarca. Até aí nadahouve que me assustasse. Também nãome aterrou ver, ao pé de mim, vestido deHorácio, o meu fiel criado José. Acheinatural: Ele não o achou menos. (p. 248)

O humor e a carnavalização aparecem no trecho aseguir:

(...) atravessamos uma rua que nospareceu ser a Primeiro de Março eentramos em um espaço que era metadecemitério, metade sala. Nos sonhos háconfusões dessas, imaginações duplasou incompletas, mistura de coisasopostas, dilacerações, desdobramentosinexplicáveis; mas, enfim, como eu eraHamlet e ele Horácio, tudo aquilo deviaser cemitério. (p. 249)

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Este trecho faz lembrar o delírio de Brás Cubas:

Como ia de olhos fechados, não via ocaminho; lembra-me só que a sensação defrio aumentava com a jornada, e que chegouuma ocasião em que me pareceu entrar naregião dos gelos eternos. Com efeito, abrios olhos e vi que o meu animal galopavanuma planície branca de neve, com uma ououtra montanha de neve, vegetação de neve,e vários animais grandes e de neve. Tudoneve: chegava a gelar-nos um sol de neve.Tentei falar, mas apenas pude grunhir estapergunta ansiosa:-Onde estamos?- Já passamos do Éden. (MemóriasPóstumas de Brás Cubas, p. 120)

Os trechos apresentam em comum o insólito e a figurado eu que se sente perdido em uma paisagem desconhecida,numa lógica do absurdo à qual precisa se adaptar. Noepisódio da cena do cemitério, a personagem consegue selocalizar e perceber que em seu sonho desempenha umaespécie de papel. Enquanto isso, a personagem de MemóriasPóstumas precisa perguntar à deusa Natura em que lugar seencontra. Todavia ambos os lugares, fazendo parte ou domundo dos sonhos ou do mundo do delírio, têm acaracterística de estranhamento.

Na “Cena do cemitério”, sabemos que o narrador nosconta a respeito de seu sonho em um momento de lucidez, eque seu sonho termina justamente quando a narrativa tomauma sequência acelerada, isso também se dá no delírio deBrás Cubas. Mas enquanto aquela personagem é observada

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em seus últimos momentos por Virgília, o narrador da crônicaafirma ser acordado por seu empregado José. Dessa forma,vemos que, apesar de o texto nos apresentar coisasinexplicáveis pela lógica, há a explicação racional do narrador,de que tudo não havia passado de sonho e que não se estavaentrando no reino do fantástico.

O narrador-Hamlet, acompanhado de José-Horácio,ouve os trocadilhos dos coveiros que são outros,diferentes daqueles proferidos na tragédia original:

Entramos e escutamos. Como natragédia, deixamos que os coveirosfalassem entre si, enquanto faziam a covade Ofélia. Mas os coveiros eram aomesmo tempo corretores, e tratavam deossos e papéis. (p. 249)

Já no Hamlet, um coveiro canta, propõe charadasao companheiro e discute o fato de Ofélia ter ou não sesuicidado e da impropriedade de ser enterrada em soloconsiderado sagrado.

Após a comparação feita entre as caveiras e asações, vemos nomes muito interessantes que sãodados a elas. Entre estes estão “Companhia Promotoradas Batatas Econômicas”, “Companhia Balsâmica”.Entre os Bancos citados estão os nomes “BancoEterno”, “Ponto Alívio” , etc. Quanto à citação dacompanhia das “Batatas Econômicas” é interessante oque o narrador comenta:

A um deles ouvia bradar que tinha trintaações da Companhia Promotora dasBatatas Econômicas. Respondeu-lhe

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outro que dava cinco mil réis por elas.Achei pouco dinheiro e disse isto mesmoa Horácio, que me respondeu, pela bocade José: ‘Meu senhor, as batatas destacompanhia foram prósperas enquantoos portadores dos títulos não as foramplantar. A economia da nobre instituiçãoconsistia justamente em não plantar oprecioso tubérculo; uma vez que oplantassem era indício certo da decadênciae da morte.’ ( p. 249)

Enquanto os outros nomes de ações e bancos têmrelação com a morte, o primeiro se refere a batatas, asmesmas célebres batatas que fazem parte da filosofia deQuincas Borba. Sendo assim, as palavras de José poderiamser comparadas à filosofia do “Humanitismo”, segundo a qual“não há morte, há vida, porque a supressão de uma é acondição da sobrevivência da outra, e a destruição não atingeo princípio universal e comum”2. Essa idéia foi apresentadapor Dirce Côrtes Riedel que apresentou sua semelhança como princípio de Lavoisier, segundo o qual “na natureza nadase perde, nada se cria, tudo se transforma.”. Além disso, pode-se observar que esta exploração justificada pode serenquadrada na observação de Antonio Cândido sobre o temada “transformação do homem em objeto do homem”3.

Porém, voltando ao trecho citado acima há umatremenda ironia que é a volta ao tema da morte de uma formaque a frase destacada acima soa disparatada após a conversasobre batatas. Soa estranha, assim como a frase de Jacobinano conto “O espelho” que diz: “o homem é, metafisicamente2 "Razão contra sandice”. In BOSI, A. Machado de Assis, antologia e estudos.3 CANDIDO, Antonio. “Esquema de Machado de Assis”. In Vários escritos. p. 28.

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falando, uma laranja”4. Assim, em “A Cena do cemitério”Machado trata da alma humana no mesmo sentido que usavanaquele conto.

Na referida cena de Hamlet o que o príncipe comentacom seu amigo Horácio é o fato de terem encontrado o crâniode Yorick e ele lamentar o fim que todos poderiam ter,afirmando que por mais que uma “a grande dama” se pinteou se arrume, ela acabará da mesma forma que aquele crânio,e com o mesmo mau cheiro.

Porém o texto de Machado não discute o fim a quetodos nos destinamos. O que ele apresenta é a completavulgarização dos restos mortais, apresentados como batatas,títulos, dinheiro e outras “coisas rentáveis”. Além disso, sãoainda mais rebaixados quando comparados, segundo suaforma e cor e do fato de serem arrancados da terra, com asbatatas.

No texto shakespeariano, após cada estrofe que canta,o coveiro “faz saltar uma caveira”, como uma coisa qualquer,pois está acostumado com seu ofício. Porém Hamlet protestaveementemente com o fato de os coveiros profanarem assimo cemitério. O príncipe da Dinamarca se encontrava naqueleespaço justamente para falar a respeito da morte como umapassagem para o outro mundo e lamentar o triste fim daquelesa quem amara em vida. Porém o Hamlet machadianocontempla a cena como mero espectador e não se envolvecom aquilo que vê. Ele apenas constata que aquilo lhe parececonfuso, mas o que lhe cabe, e ele faz, é encenar o seu papel.

O cemitério é um espaço que, além de MemóriasPóstumas de Brás Cubas, aparece também em Memorial de

4 Os melhores contos de Machado de Assis . p. 32.

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Aires, no qual o conselheiro Aires observa uma conversaentre coveiros:

“Nesse momento, a viúva descruzava asmãos, e fazia gesto de ir embora.Primeiramente espraiou os olhos, como aver se estava só. (...) mas havia gente perto,sem contar dois coveiros que levavam umregador e uma enxada, e iam falando de umenterro daquela manhã. Falavam alto, e umescarnecia do outro, em voz grossa: “Erascapaz de levar um daqueles ao morro? Sóse fossem quatro como tu.” Tratavam decaixão pesado, naturalmente, mas eu volteidepressa a atenção para a viúva... (p.69)

Enquanto Hamlet se lamenta e se envolve, oconselheiro Aires apenas observa o fato e passa adiante.Da mesma forma, a morte, em “A cena do cemitério” nãoparece ter grande interesse para o narrador, a não ser paraser ironizada, comparada com a vida. Vejamos, por exemplo,o trecho da crônica “A cena do cemitério” no qual há umaconversa supostamente metafísica e materialista ao mesmotempo:

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Os primeiros títulos, em março de 1891,subiram a conto de réis; mas se nada háseguro neste mundo conhecido, podehavê-lo no incognoscível? Esta dúvidaentrou no espírito do caixa da companhia,que aproveitou a passagem de um paquetetransatlântico, para ir consultar um teólogoeuropeu, levando consigo tudo o que haviamais cognoscível entre os valores. (p. 251).

É bastante forte a ironia neste texto com a contradiçãoentre incognoscível e cognoscível, referindo-se ao fato de,para entender a espiritualidade é preciso ter meios materiaisem boa quantidade.

Comparemos os trechos a seguir e vejamos o carátercorrosivo da paródia machadiana. No texto de Shakespeare,um dos mais representativos em termos gestuais, em queele toma o crânio de Yorick na mão e se põe a refletir, com oseu contraponto machadiano:

Deixa-ma examinar (pega na caveira)Pobre Yorik! Conheci-o, Horácio. Era umrapaz com muita graça, duma alegria infinitae dum espírito vivíssimo: trouxe-me muitasvezes às cavaleiras. E agora, que horrorcausa à minha imaginação! O meu coraçãodilata-se! Aqui pendiam os lábios que eubeijei tanta vez! Que é feito neste momentodos trocadilhos? Das cabriolas? Dascanções? Desses relâmpagos de gracejosque levantavam em toda a mesa umatempestade de gargalhadas? Nem uma só

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facécia ficou para vos rirdes da vossaprópria carantonha! A bocacompletamente fechada? Ide agora dizerao gabinete da rainha que por mais caioque ponha no rosto há de ficar com umacara assim. Fazei-a rir dizendo-lhe isso!(Hamlet, p. 214-5)

No texto de Machado, temos:

(...) Deixe ver, amigo. E, pegando nela, comoHamlet, exclamei, cheio de melancolia:

- Alas, poor Yorick! Eu a conheci, Horácio.Era um título magnifico. Estes buracos deolhos foram algarismos de brilhantes,safiras e opalas. Aqui, onde foi nariz, haviaum promontório de marfim velho lavrado;eram de nácar estas faces, os dentes deouro, as orelhas de granada e safira. Destaboca saíam as mais sublimes promessasem estilo alevantado e nobre. Onde estãoagora as belas palavras de outro tempo?Prosa eloquente e fecunda, onde param oslongos períodos, as frases galantes, a artecom que fazias ver a gente cavalossoberbos com ferraduras de prata e arreiosde ouro? Onde os carros de cristal, asalmofadas de cetim? (p. 251-2)

Podemos ver pelos trechos destacados que,enquanto o texto de Shakespeare apresenta os nobres

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sentimentos de Hamlet em relação ao antigo clown chamadoYorick, o texto de Machado, repetindo a frase em inglês, éirônico, e a fala do narrador é recheada de vocábulosmonetários e, quando trata da palavras do morto, mostraque este seria alguém de muito boa retórica, com grandepoder de persuasão, semelhante ao dos grandesmedalhões, que são tema do conto “Teoria do Medalhão”.

Tomemos mais dois trechos, primeiramente o deShakespeare e depois do de Machado. O texto deShakespeare diz:

(Hamlet - Acreditas que Alexandre tenhaessa mesma cara na cova?(Horácio) - Exatamente a mesma...(Hamlet) - E que cheire assim? ... Fu! ...(pousa no chão a caveira).(Horácio) - Absolutamente, meu senhor.(Hamlet) - A que grosseiras aplicaçõespodemos descer, Horácio! A nossaimaginação não conseguirá facilmenteseguir a viagem das nobres cinzas deAlexandre, até vê-las a tapar o buraco dumtonel! (p. 215)

E o narrador machadiano:

- Crês que uma letra de Sócrates esteja hojeno mesmo estado que este papel?

- Seguramente.

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- Assim que, uma promessa de dívida donobre Sócrates não será hoje mais queuma debênture escangalhada?- A mesma cousa.- Até onde podemos descer, Horácio! Umaletra de Sócrates pode vir a ter os maistristes empregos deste mundo; limpar ossapatos, por exemplo. Talvez ainda valhamenos que esta debênture.- Saberá Vossa Senhoria que eu não davanada por ela.- Nada? Pobre Sócrates! Mas espera,calemo-nos, aí vem um enterro. (p. 252)

A alteração do nome de Alexandre por Sócrates notexto machadiano já seria motivo de indagações a respeitode seus propósitos. Porém o narrador vai além, nacorrosão do texto original, pois mostra que suapreocupação em relação ao grande filósofo grego eraapenas com suas letras, ou seja, suas promessas dedívidas, o que mostra mais uma vez os valores mundanose monetários, deturpando o texto original com a ironia.

Agora vejamos o seguinte trecho de MemóriasPóstumas no qual o narrador-protagonista trata dadecadência de seu amigo Quincas Borba:

Recuei espantado... Era o Quincas Borba,o gracioso menino de outro tempo, o meucompanheiro de colégio, tão inteligente eabastado. Quincas Borba! Não podiaacabar de crer que essa figura esquálida,essa barba pintada de branco, essemaltrapilho avelhantado, que toda essa

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ruína fosse o Quincas Borba. (MemóriasPóstumas, p. 199).

Os trechos apresentados mostram que a crônica“Cena do Cemitério”, além de ser um exemplo de “poéticadas traduções” na obra de Machado de Assis, apresentaprocessos que ocorrem em vários momentos da obramachadiana. Vemos que o narrador, ao apresentar-nos umatragédia shakespeariana e colocá-la no mesmo nível de umanotícia de jornal está, através do rebaixamento, fazendouma reescritura corrosiva da obra literária. A este respeitopodemos ver também a visão da morte apresentada porMachado como diversa da de Shakespeare logo no iníciode Memórias Póstumas:

(...) E foi assim que cheguei à cláusula dosmeus dias; foi assim que me encaminheipara o undiscovered country de Hamlet,sem as ânsias nem as dúvidas do moçopríncipe, pausado e trôpego, como quemse retira tarde do espetáculo. Tarde eaborrecido. (...) Um solteirão que expiraaos sessenta e quatro anos, não pareceque reúna em si todos os elementos deuma tragédia. (Memórias Póstumas de BrásCubas, p. 112-113).

O processo de paródia na obra de Machadoapresenta-se como uma ironia à tragédia, à idéia da mortee todos os valores altos. É como se, ao dizer: “mas se nadahá seguro neste mundo conhecido, pode havê-lo noincognoscível” estivesse não só parodiando a tragédia deShakespeare, mas também a Bíblia, quando esta fala danecessidade de opção entre os bens da terra e os do céu,

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afirmando que os tesouros do céu são mais seguros, pois aestes “nem a traça e a ferrugem consomem” e “os ladrõesnão cavam nem roubam. No texto de Machado não hápreocupações metafísicas e tudo é colocado no mesmo nível- o material. Machado está, assim, vulgarizando ematerializando a própria idéia da morte, mostrando ascaveiras sendo exploradas, em seu aspecto material atravésdas companhias “Batatas Econômicas” “Balsâmica” etambém no aspecto espiritual, pelas companhias “Salvadora”e “Pronto Alívio”. Isso porque, para o próprio narrador, essasnão eram “bem títulos nem caveiras; eram as duas cousasjuntas, uma fusão de aspectos, letras com buracos nos olhos,dentes por assinaturas”.

Dessa forma, podemos ver o texto “A cena docemitério” não só como antecipador de processos modernosde ficção, mas como uma paródia com um toque a mais – ohumor de Machado de Assis. Este, ao apresentar o sublime eo grotesco em um mesmo patamar e ao apresentar suacrônica, gênero ainda novo que tentava ganhar um lugar entreas várias notícias do jornal diário, soube ironizar o própriofato colocando um jornal diário em sua crônica apresentandoo nonsense da mistura do sublime - a grande arte do gênerodramático - com o vulgar - a notícia de jornal. Dessa forma,parece que mais uma vez - e com muito requinte -o grandegênio dava um piparote em seu leitor.

BIBLIOGRAFIA

ASSIS, Machado de. A cena docemitério. In: Páginas Recolhidas.Rio de Janeiro: Garnier, 1900.

ASSIS, Machado. Quincas Borba.Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 1977.

23 TEMA

ASSIS, Machado de. MemóriasPóstumas de Brás Cubas. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira,1960.

_______. Memorial de Aires. Rio deJaneiro: Civ. Brasileira, 1977.

BOSI, Alfredo. Machado de Assis:antologia e estudos. São Paulo,Ática, 1982.

BRAYNER, Sônia “O conto deMachado de Assis”. In. O conto deMachado de Assis. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira / INL, 1980.

CÂNDIDO, Antônio. “Esquema deMachado de Assis”. In: Váriosescritos. São Paulo: Duas Cidades.1977.

MEYER, Augusto. Machado deAssis 1935-1958. Rio de Janeiro: S.José, 1958.

MIGUEL PEREIRA, Lúcia. “Machadode Assis” In: História da LiteraturaBrasileira - Prosa de Ficção (1870-1920). Rio de Janeiro: José Olympio,1950.

PROENÇA FILHO, Domício. org.Os melhores contos de Machado deAssis. São Paulo: Global, 1988.(Antologia).

SHAKESPEARE, Willian. Hamlet.Lisboa: Porto. s/d.

TEIXEIRA, Ivan. Apresentação deMachado de Assis. 2. Ed. SãoPaulo: Martins Fontes, 1988.

UNIESP 24

Jacy Marcondes Duarte*

O CONTO AS FORMIGAS SOB O ENFOQUE DASEMIÓTICA GREIMASIANA

THE SHORT STORY “THE ANTS” THROUGH THESEMIOTIC ANALYSIS

Autor e TextoAuthor - Text

PALAVRAS-CHAVE

RESUMO

ABSTRACT

KEY WORDS

R.TEMA S.Paulo nº 54 jul/dez 2009 P. 24-35

* Doutora em Linguística pela USP - Universidade de São Paulo. Professora dasFaculdades Integradas Teresa Martin e Renascença - UNIESP.

A semiótica francesa de A.J.Greimas oferece para o professor deliteratura um modelo eficaz para a análise de narrativas, quepode tanto beneficiar o aluno como leitor de textos literários oucomo futuro professor. Com o objetivo de exemplificar a aplicaçãodo modelo a um objeto literário, apresentamos a análise do contode Lygia Fagundes Telles, As formigas.

A. J. Greimas french semiotics presents to the literature professoran efficient model for the narrative analysis, which can beneficiatethe student not only as a literary texts reader, but as a futureteacher. Looking forward to exemplificate the application of themodel to a literary object, we present the analysis of the storywritten by Lygia Fagundes Telles, As Formigas.

Semiótica francesa. Análise da Narrativa. Contos.

French semiotics. Narrative Analysis. Stories.

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Jacy Marcondes Duarte

Não é nosso objetivo nem a descrição exaustiva da teoria semiótica greimasiana nem a discussão crítica de sua eficácia. O que

pretendemos aqui defender é que os elementos teóricosdessa linha de investigação podem ser de valia para o estudoliterário, constituindo para o aluno de Letras uma maneira dedesvendar as estratégias discursivas que compõem a prosa.Acreditamos que a “fruição” estética está ligada à capacidadeanalítica, e que cabe a nós professores fornecer ao alunoinstrumentos de análise para o desvendamento dos objetosliterários.

Podemos entender a narrativa como um palco em quese apresentam vários actantes, que se opõem ou se aliam deacordo com seus projetos ou desejos (objetos de valor erespectivos programas narrativos). Há um percurso gerativode sentido, composto por três instâncias: o nível profundo

O CONTO AS FORMIGAS SOB O ENFOQUE DASEMIÓTICA GREIMASIANA

THE SHORT STORY “THE ANTS” THROUGH THESEMIOTIC ANALYSIS

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ou fundamental, o nível narrativo e o nível discursivo. Forado percurso, há o nível textual ou de superfície, no qualanalisam-se os recursos literários utilizados, comolinguagem figurada, recursos fônicos, vocabulário etc, níveleste que tem merecido menos atenção dos semióticos, jáque a proposta da Semiótica é analisar e explicar os sentidosdo texto, ou seja, os mecanismos e procedimentos do Planodo Conteúdo, colocado sob a forma de um percursogerativo. Nossa análise do conto de Lygia Fagundes Tellesé focada no percurso gerativo de sentido.

A escolha do conto As Formigas deve-se ao fato determos realizado em sala de aula um trabalho de análise apartir de contos, com resultados bastante positivos: osalunos passaram a enxergar o conto com outro olhar,percebendo suas estratégias discursivas e efeitos desentido. O conto em questão é um dos que foramtrabalhados e não é longo.

A narrativa conta a história de duas estudantes que,por necessidade, alugam um quarto no sótão de uma pensãodecadente, onde passam três noites e do qual acabamfugindo às pressas, em função de acontecimentos insólitos(há no quarto um caixote com ossinhos de anão, deixadopelo morador anterior, e que vai sendo manipulado porformigas, as quais vão montando o esqueleto comordenação perfeita, durante as noites).

Os Actantes em Cena (nível narrativo)

Como actantes principais temos as duas moças(Sujeito 1), cujo objeto de valor é o quarto de pensão, ouseja, premidas pela necessidade econômica (Destinador

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delas) querem e devem morar naquele lugar, que é o únicoque podem pagar. Como objeto de valor secundário – muitosecundário, mas pertinente – temos que a estudante demedicina declara que pretende montar o esqueleto do anão.

Como anti-sujeito se configura na narrativa o Sujeito2 – as formigas – que se contrapõe ao objeto de valor dasmoças (as moças acabam indo embora às pressas). Oobjeto de valor desse Sujeito 2 pode ser dividido em dois:primeiro, as formigas querem e devem montar o esqueletodo anão, tarefa à qual se dedicam cada noite. Em segundolugar, um objeto de valor implícito, que é o de expulsar asmoças do quarto. O Destinador das formigas – a razão queas move – não é também explicitado. A montagem doesqueleto está ligada à expulsão das moças, pois elas sesentem ameaçadas por essa atividade misteriosa dasformigas e fogem da pensão.

Como actantes secundários, elementos que ajudamou atrapalham os sujeitos, temos o cheiro das formigas, anoite, o aspecto da pensão e da dona dela, que sãoadjuvantes das formigas e contribuem para assustar asmoças; e o dia, o álcool, o sapato usado para matar asformigas, que são adjuvantes das moças.

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O Nível Fundamental

Todo o conto gira em torno do eixo semântico naturalx sobrenatural, que é a oposição que fundamenta a história:de um lado, as moças, estudando e vivendo o cotidianonormal; de outro lado, as formigas montando os ossos deanão, que é o elemento insólito, sobrenatural.

Esse eixo semântico que instaura no conto o insólito,o incompreensível, o desconhecido, é colocado não só pelaação inusitada das formigas, como pelo aspecto da pensão,de sua dona, dos móveis velhos, da sujeira. Tempo (noite) eespaço (fechado, o quarto) também são os elementos quecontribuem para criar o clima de suspense.

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O Nível Discursivo

Tempo, espaço e pessoa são os elementoscomponentes desse nível. As formigas é narrado em primeirapessoa (debreagem enunciativa), o que causa um efeito desentido bastante importante para o suspense do conto: comosó sabemos o que sabe o narrador-protagonista, não temoscomo decifrar as razões ou explicações possíveis para osacontecimentos que se dão no quarto. Junto com o Sujeito1, as moças, abandonamos a pensão (e a narrativa) ao final,sem saber realmente o que poderia acontecer se elas tivessemficado lá.

Outro elemento discursivo formador do suspense doconto são as figuras (palavras referentes a elementosconcretos) que permeiam o texto desde o início. O imóvel é-nos assim apresentado:

“Ficamos imóveis diante do velhosobrado de janelas ovaladas, iguais a doisolhos tristes, um deles vazado por umapedrada. (p.35)”

Temos neste excerto as figuras que favorecem osegundo polo do eixo semântico, o sobrenatural, que,digamos assim, configura-se em narrativas tradicionaisaliado a elementos que lembram decadência, morte, escuro,noite, tristeza etc (não é à toa que o Drácula só vive e age ànoite).

Agrupando as figuras em alguns campossemânticos, podemos ter:

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a) as que descrevem a pensão e sua dona– velho sobrado, olhos tristes, vazado,sinistro, escada velhíssima, velha balofa,peruca mais negra do que a asa da graúna,desbotado pijama, unhas aduncas, crostade esmalte vermelho-escuro, descascadonas pontas encardidas, charutinho, tosseencatarrada, bruxa, saleta escura, atulhadade móveis velhos, palhinha furada, estreitaescada - que favorecem a leitura na isotopiado insólito, do sobrenatural.

b) as que descrevem a vida das moças – asmalas, japona, gravura, lata de sardinha, pão,bolacha, chá, omelete, chocolate, urso depelúcia, lâmpada de duzentas velas, álcool -que levam à isotopia da condição sócio-econômica desfavorável (mostram ospoucos haveres delas).

c) as que descrevem o sujeito 2, asformigas – ruivas, pequenas, compactas,rápidas, inúmeras, disciplinadas, levava asmãos à cabeça, sacudia a cabeça (umaformiga), cheiro ardido, trilha só de ida, trilhaespessa - que também favorecem a isotopiado insólito.

d) as que descrevem os ossos do anão nocaixotinho - brancos, perfeitos, limpíssimos,miudinhos, brancura de cal, todos osdentinhos – levando-nos para o insólito,

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pois não há explicação razoável para taiscaracterísticas naquele ambiente, nem parao próprio anão (“raro à beça”, na fala daestudante de medicina).

O anão é o grande mistério, seus ossos limpos e brancosse contrapondo à obscuridade e sujeira próprias da pensão(“agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alvaassim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro docaixotinho” (p.37). Em torno desse mistério gravitam os outroselementos insólitos (as formigas), tristes (os móveis e o prédiovelhos) e esquisitos (como a dona da pensão, chamada de bruxapela estudante de medicina no final). O anão é o elementoinsólito, que aparece também no sonho da estudante (“Nosonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido nomeio entrou no quarto fumando charuto” (p.37).

As figuras, portanto, em sua maioria recobrem temas(elementos abstratos, explícitos ou subjacentes) que têm a vercom o eixo semântico natural x sobrenatural: velhice, tristeza,pobreza, decadência, mistério, obscuridade, inexplicável,encaminhando o leitor inevitavelmente à percepção de que algosobrenatural está ocorrendo no quarto de pensão epossivelmente pondo em perigo as moças.

O espaço no conto é sempre fechado, o quarto depensão. As moças saem, estudam, vão a uma festa, mas issonos é apenas informado; é só no quarto que há ação, tudoacontece lá. Dito de outro modo, o espaço aberto é apenasmencionado, e o quarto encerra as protagonistas, prende-as,constituindo parte da ameaça misteriosa que vai se construindodurante o conto.

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O tempo na narrativa é cronológico (três noites). Tudoacontece à noite, inclusive a chegada das moças à pensão e afuga delas.

Os Episódios da Narrativa

É possível dividirmos as narrativas em episódios; todavez que há uma transformação de estado, temos um episódio.

No conto de Lygia, é possível utilizarmos a divisão emepisódios como marca das fases do embate entre o Sujeito 1(as moças) e o Sujeito 2 (as formigas). Para isso, dividimos anarrativa com base em disjunções temporais.

Antes da divisão, é importante lembrar que anarrativa como um todo está marcada pela oposição espaçoaberto/fechado:

Situação inicial...................transformação............Situação finalChegada das moças à pensão Montagem do esqueleto Saída das moças

(do espaço aberto para (no espaço fechado) (do fechado para o

o fechado) o aberto)

Passemos aos episódios:

1º - ocupação do quarto:

S’........................................ T ......................................S”

Disjunção com o quarto conversa com a dona Conjunção com o quarto

(S’ = situação inicial; T = transformação; S” = situação final)

Nesse primeiro episódio, há a conquista pelo S1 (asmoças) do seu objeto de valor: elas conseguem um quartobarato para morarem. As moças vencem (sujeito glorificado).Quanto à marcação temporal, é noite quando se apossam do

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quarto. Há um deslocamento espacial das moças (de fora paradentro).

2º - aparecimento das formigas:

S’........................................ T ......................................S”Formigas trabalhando álcool e pisoteamento formigas mortas

Esse episódio marca o primeiro embate entre o S1 (as moças)e o S2 (as formigas), e o S1 vence, matando a trilha espessade formigas com álcool e pisadas. A marcação temporal éuma noite (a primeira); não há deslocamento espacial dasmoças (permanecem no quarto).

3º - reaparecimento das formigas

S’........................................ T ......................................S”Formigas trabalhando amanhece formigas desaparecem

Nesse terceiro episódio, não há luta (as moças assustadas não atacamas formigas), e quem vence é o S2, pois trabalha sem ser incomodado.A marcação temporal é uma noite, a segunda; há um deslocamentoespacial das moças dentro do quarto (dormem juntas na mesma cama).

4º - abandono do quarto

S’........................................ T ......................................S”Conjunção com o quarto montagem do esqueleto disjunção com o quarto

Nesse último episódio, temos o final do embate entreS1 e S2, vencendo as formigas, S2, pois não só concluem amontagem do esqueleto do anão (seu objeto de valorprincipal) como expulsam as moças do quarto pelo medo(objeto de valor implícito). Não há resistência por parte dasmoças, elas não atacam as formigas. A marcação temporal éuma noite (a última lá) e há deslocamento espacial das moças,que abandonam o quarto. O S1 é vencido, sujeito punido, pois

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perde seu objeto de valor, o quarto de moradia, voltando àsituação inicial da narrativa (no espaço aberto, semmoradia). Temos aí uma circularidade: no final, retoma-sea situação inicial (de disjunção).

O desenlace marca uma falha de competência do S1,que prejudica sua performance. O S1 tem competência(modais poder / saber) para alugar o quarto, pode pagarpor ele, soube escolher algo dentro de suas possibilidadesfinanceiras, mas não tem competência para lidar com oinsólito, o sobrenatural, o inexplicável: as moças sentem-se ameaçadas, têm medo, desistem de lutar contra asformigas e vão embora.

Observações Finais

Através da desmontagem analítica feita através doselementos semióticos, o conto As formigas nos mostra comoestão bem imbricados o tempo, o espaço e a ação, nessapequena narrativa. É a velha história do desconhecido,sobrenatural, surreal influenciando a vida das pessoas: umdos grandes medos arquetípicos do ser humano éjustamente o “além” e os elementos a ele relacionados. Oconto ilustra muito bem esse medo: quando ocomportamento das formigas sai do “natural” e passa parao outro polo, o “sobrenatural”, as moças desistem de lutarcontra os bichos e também desistem de entender a situação.

Desmontando o conto, percebemos sua arquitetura,que nos parece muito bem planejada: o paralelismo entre amarcação temporal (as noites), a recorrência espacial(espaço fechado) e as ações de ambos os sujeitos. Somem-se a isso os elementos descritivos, como as figuras, que

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo:Ática, 2003.

EVERAERT-DESMEDT, Nicole. Semiótica da narrativa. Coimbra: Almedina,1984

FIORIN, José Luís. Elementos de análise do discurso. São Paulo:Contexto, 2000

TELLES, Lygia Fagundes. As formigas. In: Venha ver o pôr-do-sol e outroscontos. São Paulo: Ática, 1988, p.35-42.

compõem um cenário adequado a acontecimentos insólitos,como formigas inteligentes capazes de montar um raroesqueleto de anão. Será que eram formigas mesmo? E oanão, representa o quê, na verdade? Acaba a história, nãoacaba o mistério.

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Guaraciaba Micheletti*

DISCURSO E ESTILO NAPOESIA BRASILEIRA DO SÉCULO XX

SPEECH AND STYLE IN THEBRAZILIAN POETRY OF 20TH CENTURY

Autor e TextoAuthor - Text

PALAVRAS-CHAVE

RESUMO

ABSTRACT

KEY WORDS

R.TEMA S.Paulo nº 54 jul/dez 2009 P. 36-59

Este artigo focaliza alguns usos da língua portuguesa na poesiamoderna e contemporânea, sob a perspectiva estilística.Considerando-se aspectos discursivos, são privilegiados aspectoslexicais, morfológicos e sintáticos em trechos de poemas de váriosautores do período mencionado.

* Doutora em Teoria Literária, professora da Universidade de São Paulo. Autora, entre outros livros, de A poesia, o mar e a mulher: um só Vinícius, São

Paulo: Escuta. Na confluência das formas: o discurso polifônico de Quaderna /Suassuna. São Paulo: Cliper, 1997.

This article highlights some uses on the Portuguese laguage inmodern and contemporary poetry, from the stylistic perspective.Lexical, morphological and syntactic aspects are highlighteds inexcerpts of poems from various authors of the abovementionedperiod.

Poesia brasileira. Estilística. Análise linguística. Enunciação.

Brazilian poetry. Stylistic. Linguistic analysis. Enontiation.

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Guaraciaba Micheletti

D urante alguns anos, estudei, com um grupo de alunos, traços estilísticos da linguagem poética do século XX, focalizando especialmente

alguns poetas brasileiros com o objetivo de descrever usosexpressivos da língua portuguesa na poesia moderna. Partimosda Estilística Estrutural, desconsiderando algumas distinçõescomo Estilística da Língua e Estilística Literária e combinandoessa base teórica às da Linguística Textual, à da Semânticae à da Análise do Discurso. Foram desenvolvidos váriosestudos monográficos que nos permitiram registrar algumaspeculiaridades a respeito do léxico, da morfologia e dasintaxe, e mesmo da enunciação na poesia de autoresmodernos e contemporâneos.

Neste artigo, ponho em relevo, em alguns fragmentos,esses aspectos, por serem pertinentes para distinguir osusos linguísticos mais comuns no discurso poético de umdeterminado período. Outros aspectos foram abordados

DISCURSO E ESTILO NAPOESIA BRASILEIRA DO SÉCULO XX

SPEECH AND STYLE IN THEBRAZILIAN POETRY OF 20TH CENTURY

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nesses estudos, em especial os traços sonoros, mas eles nãosão relevantes para marcar traços linguísticos mais comunsno discurso poético de um determinado período. Essafocalização compõe uma espécie de amostragem, da qualdecorre o caráter um tanto fragmentário e enumerativo dessetexto.

Nas análises, considero o caráter histórico-social dalíngua e de seus usos. Ainda que a Estilística busqueidentificar a materialidade linguística, evidenciando o uso dapalavra e das estruturas em que ela se encontra, não se podenegligenciar o discurso quando se procura determinar umsentido e uma expressividade. Assim, ainda que privilegiandoléxico e / ou sintaxe, o contexto e o processo enunciativosão fundamentais para qualquer análise de um texto.

1. Linguagem Comum, Cotidiana(palavras consideradas mais comumente

como banais, não poéticas)

Nunca é demais lembrar que as palavras só adquiremrealmente um sentido quando inseridas num enunciado,antes são apenas possibilidades referenciais e / ouexpressivas. Logo não se pode pôr à margem aintencionalidade e as condições de produção, de modoparticular quando se trata da linguagem poética.

Para se focalizar o léxico, é necessário conceituá-lo, oque não é uma tarefa simples, visto as inúmeraspossibilidades apresentas por estudiosos dessa questão. Poruma questão operacional, trabalharemos com a divisão daspalavras da língua portuguesa em duas categorias: asgramaticais e as lexicais, reconhecendo que ocorrem

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transposições bastante expressivas. As palavras lexicaistambém referidas como nocionais são as que apresentam umconteúdo externo relativamente estável, remetendo-nos a algodo mundo físico, psíquico ou social. Já as palavras gramaticais,também conhecidas como instrumentos gramaticais,estalecem as relações respondendo intrisecamente pelaestruturação do frase e pelo ato de enunciação.

Este enfoque, ao apontar usos mais frequentes numdeterminado período, volta-se para três aspectos ligados aquestões semânticas e a usos sociais de palavras lexicais: asda linguagem comum, cotidiana, chegando mesmo às palavraschulas ou ao calão; um uso acentuado de neologismos; e adesconstrução de palavras.

Frequentemente, termos do vocabulário mais usualtransmitem a impressão de simplicidade e, de certo modo,dessacralizam um certo status de nobreza que, ainda, éatribuído à poesia por algumas pessoas. Descrevem atoscotidianos, como no poema Família, de Carlos Drummond deAndrade:

Três meninos e duas meninas,sendo uma ainda de colo.A cozinheira preta, a copeira mulata,o papagaio, o gato, o cachorro,as galinhas gordas no palmo de hortae a mulher que trata de tudo............................................O agiota, o leiteiro, o turco,o médico uma vez por mês,o bilhete todas as semanasbranco! mas a esperança sempre verde.A mulher que trata de tudoe a felicidade. (1998, 24)

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em que, descritos por uma enumeração de substantivos,praticamente todos relacionados a cenas familiares ou àorganização da vida familiar constroem uma mesmice. Nofinal, na última estrofe, quando surgem os substantivosabstratos: esperança e felicidade, o eu lírico/enunciador1

coloca em relevo um questionamento sobre esse quadro emque a mulher mais parece ser uma peça da estrutura familiar.

Não é muito distinta a situação figurada em Ritmo. Amesma mesmice dos vocábulos que, nos três quadros dopoema de Mario Quintana, fazem o dia a dia das personagensdescritas: varredeira, menininha, lavadeira. Três cenasfamiliares onde tudo se repete nada muda, permanecendosempre igual, afinal o mundo gira imóvel como um pião! , éum ciclo de vida rotineiro e monótono.

Na portaa varredeira varre o ciscovarre o ciscovarre o cisco

Na piaa menininha escova os dentesescova os dentesescova os dentes

No arroioa lavadeira bate roupabate roupabate roupa

1 Emprego uma dupla nomenclatura para facilitar a leitura, já que o termo eu líricoque aponta a voz de quem emana o poema é o termo consagrado pelos estudosliterários e, por vezes, também utilizado por lingüistas.

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até que enfim se desenrola

toda a corda

e o mundo gira imóvel como um pião! (1987, 8)

Esse vocabulário comum também se encontra nolamento do eu lírico/enunciador feminino que, no poema deAlberto da Cunha Melo, As Penélopes urbanas não têm ajudados deuses, expressa os seus sentimentos em relação aoabandono do companheiro:

Os meninos fazemtantas coisas iguaisque espero tua chegada:único acontecimento do meu dia.

Mas, quando o trincoé aberto devagarsei que não chegas para mim.A noite já devoroutuas palavras maduras,teu modo antigo de chegar.Teu alvoroçofoi substituídopor um certo respeitopelas coisas distantes,e eu queria ser amadaou pisadacomo uma coisa viva. (1979, 118)

Algumas palavras e expressões menos comuns, poucas(devorou, palavras maduras) que compõem imagens poéticasse associam a termos como “trinco” que “é aberto devagar”,numa mescla que sorrateiramente conquista o leitor.

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Num poema cujo tema político já se presentifica notítulo Maio 1964, de Ferreira Gullar (1980, 231), o eu lírico/enunciador se descreve a si e a uma tarde de maio:

Na leiteria a tarde se reparte em iogurtes, coalhadas, copos de leite e no espelho meu rosto. Sãoquatro horas da tarde, em maio.

Tenho 33 anos e uma gastrite. Amoa vida.................................................................

em que o rosto no espelho, cujas conotações nos permitempensar em reflexão, repartem espaço com iogurtes,coalhadas, copos de leite.

Essas escolhas revelam um enunciador inseridoem seu tempo, com preocupações sociais e existenciais dohomem contemporâneo.

2. Vocabulário Vulgar,Chulo, ou Mesmo Calão

O uso de termos mais próximos da realidade docotidiano atinge, por vezes, em alguns autores, a utilizaçãode um vocabulário vulgar, chulo, ou mesmo calão. Comonão há discurso sem intencionalidade, esse uso, criandouma tensão, parece querer despertar o leitor pelo choque.É o caso do soneto Oficina irritada, de Carlos Drummondde Andrade.

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.........................................................Esse meu verbo antipático e impurohá de pungir, há de fazer sofrer,tendão de Vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrará: tiro no murocão mijando no caos, enquanto Arcturo,claro enigma, se deixa surpreender. (1998, 211)

Nele, o poeta mescla, numa forma de composição deregras clássicas – o soneto – com termos de um nível maiserudito a outros tão “impuros” quanto o desejo que externapara a confecção de um poema que desperte no leitorestranheza: Refiro-me especialmente ao vocábulo mijando,embora a estranheza já esteja no título: oficina irritada.

Drummond é parcimonioso na utilização dessestermos menos nobres. Outros poetas recorrem a eles commaior frequência. Seguem-se alguns que se valemacentuadamente desse recurso.

Manoel de Barros, no poema 13 de o Desejar ser, emmeio a neologismos e a referências culturais e religiosasutiliza o mesmo verbo empregado por Drummond, numaassociação ao lírico “orvalho”:

...............................................................................Com essa doença de grandezas:Hei de monumentar insetos!(Cristo monumentou a Humildade quando beijouos pés dos seus discípulos.São Francisco monumentou as aves.Vieira, os peixes.Shakespeare, o Amor, a Dúvida, os tolos.

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Charles Chaplin monumentou os vagabundos.)Com esta mania de grandeza:Hei de monumentar as pobres coisas do chãomijadasde orvalho. (2004, 61)

Em Elegia de Seo Antônio Ninguém, Manoel de Barrosabre o poema com os versos: Sou um sujeito desacontecido/ Rolando borra abaixo como bosta de cobra. (2004, 79)

Com um título bastante lírico, Objeto de amor, AdéliaPrado parece conduzir o leitor ao mundo dos sentimentos,mas termina a primeira estrofe com um verso desconcertante:cu é lindo! – em meio a um estilo “mais elevado” em queemprega a majestática segunda pessoa do plural: Fazei oque puderdes com esta dádiva:

De tal ordem é e tão preciosoo que devo dizer-lhesque não posso guardá-losem que me oprima a sensação de umroubo:cu é lindo!

Fazei o que puderdes com esta dádiva.Quanto a mim dou graçaspelo que agora seie, mais que perdôo, eu amo. (1991,319)

No Poema Sujo, de Ferreira Gullar, considerado peloscríticos um dos melhores poemas longos da segunda metadedo século XX, o uso de termos calão, mescla-se ao afetivo,por vezes com um sufixo na própria palavra, como o uso do

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diminutivo em tua bocetinha ou nos Cheiros de flor que sejuntam à bosta de porco e o segmento se conclui em ummontão de estrelas e oceano.

tua gengiva igual a tua bocetinha que parecia sorrirentre asfolhas de banana entre os cheiros de flor e bosta deporco abertacomo uma boca do corpo (não como a tua boca depalavras) como uma entrada paraeu não sabia tunão sabiasfazer girar a vidacom seu montão de estrelas e oceanoentrando-nos em ti (1980, 298)

Assim, como afirmou Gullar em outro poema (1980, 287)a poesia está por toda parte, é mesmo aquela que vai àesquina comprar jornal.

3. Os Neologismos

Sempre buscando novas formas de dizer, poetasdesconstroem formas e significados, criando por meio dessadesconstrução/reconstrução novas palavras que melhorexpressem o seu dizer. Nas palavras poéticas de Manoel deBarros, nesse processo, o olho vê, a lembrança revê, e aimaginação transvê (2004, 75).

Os neologismos são abundantes na poesia de todo oséculo XX, especialmente nos poemas da segunda metade.Os poetas valem-se de todas as possibilidades do nosso

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sistema linguístico. Dentre as quais se destacam osprocessos de composição por justaposição, amálgamas,derivação por afixos, derivação imprópria.

São relevantes os efeitos expressivos do termodesacontecido, para transmitir a desesperança do eu lírico /enunciador e o seu sentimento de insignificância:

Sou um sujeito desacontecido Rolando borra abaixo como bosta de cobra......................................................................................Meu desnome é Antônio Ninguém.Eu pareço com nada parecido.

O poema é concluído com dois versos que reiteram aangústia expressa pelo sujeito desacontecido e finalizado porum estranho desnome, manifestando uma paradoxalnegativa do existir.

Ainda que sem uma análise mais detalhada dos efeitosde sentido obtidos com esse uso, cabe registrar quedespertam a atenção do leitor os versos marcados pelaconstrução insólita de um prefixo des - que significa “açãocontrária ou de um estado primitivo ou a cessação de algumestado primitivo” (CUNHA,1997, 249) Paradoxalmente, aexistência de um poema e de um nome, além, é claro, dosujeito da enunciação marcados nos pronomes meu, eu e napessoa do verbo, sou, apontam para um sujeito acontecido.

Num dos poemas de Manoel de Barros, já citado,destaca-se a criação do verbo monumentar no qual oenunciador explora o sema de grandiosidade presente notermo para juntá-lo, paradoxalmente, a coisas menores,

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miúdas ou de grandezas tidas como opostas(empobreceram / Cristo monumentou a Humildade).

Venho de nobres que empobreceram.Restou-me por fortuna a soberbia.Com essa doença de grandezas:Hei de monumentar insetos!(Cristo monumentou a Humildade quando beijou ospés dos seus discípulos. (2004, 61)

Em versos moldados por apenas um termo, José PauloPaes tece uma crítica à sociedade, em seus diversosaspectos, de modo irônico e lúdico (afinal, para ele poesia ébrincar com as palavras) apenas justapondo versos depalavras únicas criadas pelo processo de amálgama,fundindo palavras próprias do mundo ideológico e doeconômico com outras cujos traços semânticos apontampara juízos de valor.

Seu Metaléxico

economiopiadesenvolvimentirutopiadaconsumidoidospatriotáriossuicidadãos. (1986, 68)

Fusão que, como se observa, reforça ainda que deuma forma lúdica a crítica à sociedade contemporânea. Aqui,as idéias são expostas a partir dos amálgamas e o

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direcionamento do processo enunciativo não se explicita,pois o pronome contido no título mais indica um terceiroque o interlocutor.

Gilberto Mendonça Teles usa de amálgama no poemaFalavra para traduzir o processo da criação poética. Assim,o poema é produto de um fazer que nasce do imbricamentoda fala, da palavra e da lavra, numa reflexão assumida peloenunciador pelo uso da primeira pessoa:

Ainda sei da fala e sei da lavrae sei das pedras nas palavras áspedras.E sei que o leito da linguagem leixapedregulhos na letra. É como o logroda poeira na louça ou como o lixonos baldios do livro.

Ainda sei da língua e sei da linhado luxo e suas luvas, amaciandoos calos e os dedais. E sei da falae do ato de lavrá-la na falavra. (2002, 504)

Em Leminski (1995), no poema O mínimo do máximo,termos formados por justaposição, como em: espaçotempoávido/ lento espaçadentro, ou por derivação com acréscimode afixos, como em destempestades, ou por mudança declasse gramatical, como em: vai e vem como coisa/ de ou,de nem, ou de quase, têm uma importância fundamental naconstituição do sentido.

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O mesmo ocorre em Carlos Drummond de Andrade,no poema Eterno: que discute a modernidade e o desejo depermanência:

Eternalidade eternite eternaltivamente eternuávamos eternissíssimoA cada instante se criam novas categorias doeterno. (1988, 257)

explorando todas as possibilidades do termo eterno,desdobrando o adjetivo em outro adjetivo — eternal, cujosufixo remete à grandiosidade, — e criando o substantivoeternalidade, que adensa o sentido do termo, fazendo comque se estenda e permaneça no substantivo eternite, nacircunstância, eternaltivamente, no processo, eternuávamos,acentuado pela supressão do jogo de desdobramento nasuperlativização, com o auxílio do redobro, do sentido dotermo — eternissíssimo.

4. O Processo de Desconstrução

O processo de desconstrução de palavras para delasextrair outras tem-se mostrado muito expressivo. Como nopoema de José Paulo Paes, Epitáfio para um banqueiro,

negócio ego ócio cio

o (1986, 90)

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em que ao decompor uma palavra encontra outras que,associadas, lhe permitem desenvolver uma crítica irônica ebem-humorada ao individualismo e à sociedade, pois comoem ‘seu metaléxico”, o enunciador deixa palavras soltas paraque um outro as apanhe e o acompanhe no seu percursoreflexivo.

Também, em Gênero, de Adélia Prado, o enunciador,um eu lírico feminino, utiliza o recurso criando um jogo degrande expressividade por meio do qual transmite uma visãode mundo e de um eu que se coloca diante de um dilema,expresso nos termos barro e oca e também artisticamentepelo barroca: Eu sou de barro e oca. / Eu sou barroca. (1991,180)

Mesmo sem desconstruir, é frequente o aproveitamentode palavras cujos significantes são partes de outras, comonos versos de Mar, de Vinicius de Moraes:

...................................................E ouço as cantigas antigas...................................................

E anseio em teu misterioso seioNa atonia das ondas redondasNáufrago entregue ao fluxo forte Da morte. (1980, 198)

Esses são quatro traços do emprego lexical quemarcam em maior ou menor grau toda a poesia do séculoXX. Devo ressaltar duas questões: devido às dimensões desteartigo, há apenas um pequeno número de poetas citados, masos empregos apontados são recorrentes e podem ser

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localizados na maioria dos poetas desse século; também,lembro que apresento aqui um recorte e que essas palavrassó concretizam um sentido por estarem em determinadoscontextos, ou seja, seus valores semânticos advêm do fatode estarem presentes nas vozes de enunciadores contrutoresde um discurso poético.

Discurso e Estruturas Sintáticas

Quando se trata de observar a questão sintática,especialmente na linguagem literária, o primeiro problema quesurge é que a frase, quando isolada de um contexto e definidacomo tal, não consegue abarcar o enfoque discursivo. Adesignação de frase é bastante variável, não cabe no âmbitodeste trabalho nenhuma discussão a respeito dasclassificações. Como a intenção não é focalizar a frase em si,mas as combinações frequentes numa determinada época,como elementos contitutivos de um discurso poético,empregarei os termos frase e oração com base na gramáticatradicional: aqui a idéia de frase completa do ponto de vistaestrutural, a oração que tem sujeito e predicado (verbo +possíveis complementos). E frase nominal aquela em que nãose estrutura em torno de um verbo.

Mesmo que inversões nos elementos frasaismantenham espaço no fazer poético, essa não é a escolhamais frequente dos poetas. O que se observa é que a estruturasintática na poesia desse período ora acompanha aorganização da frase prosaica, com ordem direta e o registrodos nexos lógicos; ora apresenta uma organização bastantefragmentada, na qual não aparecem orações principais, nemfrases completas.

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Em Neologismo, de Manuel Bandeira, essa sintaxeprosaica traduz os sentimentos do enunciador de modosimples e intimista.

Beijo pouco, falo menos ainda.Mas invento palavrasQue traduzem a ternura mais fundaE mais cotidiana.Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.Intransitivo:Teadoro, Teodora. (1974, 281)

Poema curto, em que o ritmo poético é determinadomais pela distribuição do assunto nos versos quepropriamente por uma estrutura. Algumas oraçõesjustapostas, alguns conectivos (mas, que, e), além da ordemdireta. Forte simplicidade e o aspecto apelativo do poemacentra-se no jogo linguístico com o léxico — pronomepessoal oblíquo, te, + verbo adorar = teadorar —, criação deum novo verbo que se junta ao pronome objeto – colocando-o na destinação do processo, sua flexão do novo verbo quese assemelha ao nome da amada.

No poema de Alberto da Cunha Melo já citado, Aspenélopes urbanas não têm ajuda dos deuses, em que asintaxe prosaica que junta termos comuns reproduz amonotonia do dia do eu lírico /enunciador. O conteúdo dopoema poderia ser escrito num único parágrafo,assemelhando-se a um parágrafo padrão da prosa.

Observe-se a transformação: “Os meninos fazemtantas coisas iguais que espero tua chegada: únicoacontecimento do meu dia. Mas, quando o trinco é aberto

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devagar sei que não chegas para mim. A noite já devorou tuaspalavras maduras, teu modo antigo de chegar. Teu alvoroçofoi substituído por um certo respeito pelas coisas distantes,e eu queria ser amada ou pisada como uma coisa viva” (1979,118).

Bastante frequentes são poemas nos quais nãoaparece uma única oração principal. Como, geralmente, énessa forma que um pensamento se estrutura, os nexosficam para o leitor.

Trata-se de descrições, quadros, cenas justapostas.Esse é o caso de Família, poema de Carlos Drummond deAndrade também citado anteriormente.

Três meninos e duas meninas,sendo uma ainda de colo.A cozinheira preta, a copeira mulata,o papagaio, o gato, o cachorro,as galinhas gordas no palmo de hortae a mulher que trata de tudo............................................................

Nesse poema encontramos como formas verbaissendo, que apenas introduz uma explicação, quase umaposto; e trata, numa oração adjetiva, repetida em todas asestrofes, como determinante de mulher: e a mulher que tratade tudo. Essa linguagem fragmentada transmite ao leitor aimpressão do registro de pequenas cenas.

Em Dante Milano, no poema Vazio, parece haver umadefinição, uma sensação de vacuidade, no entanto, o poema

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registra impressões: O leitor acrescenta um copulativo entreo título e os versos: Vazio é

Este céu que me leva ao fim de tudo,Eternidade vista num momento,Olhar imenso de consolo mudo,Aparência que lembra o esquecimento... (2004, 17).

Ou, ainda, em Poeta, de Vinícius de Moraes (1980,314),poema construído por fragmentos, como se fossempequenos flashes em que o eu lírico / enunciador descreveo fazer poético. Novamente cabe ao leitor construir os nexosentre o título e cada estrofe do poema que, paralelamente,se estruturam por um substantivo topicalizador,determinado por uma oração adjetiva, concluída por umaoração adverbial final.

O Poeta

Olhos que recolhemSó tristeza e adeusPara que outros olhemCom amor os seus.

Mãos que só despejamSilêncios e dúvidasPara que outras sejamDas suas viúvas.

Lábios que desdenhamCoisas imortaisPara que outros tenhamSeu beijo demais.Palavras que dizem

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Sempre um juramentoPara que precisemDele, eternamente.

Nesses casos, e noutros de poemas compostos apartir de frases nitidamente nominais, como em Água-fortede Manuel Bandeira, o que se tem são reflexões de um euque se oculta por trás de descrições com “pitadas” dereflexões marcadas especialmente pelos adjetivos:

O preto no branco,O pente na pele:Pássaro espalmadoNo céu quase branco.

...............................

No escuro recesso,As fontes da vidaA sangrar inúteisPor duas feridas.

Tudo bem ocultoSob as aparênciasDa água-forte simples:De face, de flanco,O preto no branco. (1974, 253)

Em Gilberto Mendonça Teles, encontramos novamentea necessidade de o leitor construir um nexo entre o título eas estrofes – anulação é: e a exploração das virtualidadesdas formas nominais dos verbos, em especial o infinitivo.

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Anulação

Ocupar o espaçocontido na sombra,ser o pó do espesso,o vão da penumbra,

o dó sem começo,o nó sem vislumbre,o invisível traçodo não-ser: escombro.

Ser zero, ou nem isso:letra morta, timbredo vazio no osso.

Ser aquém do nome— o só do soluçode coisa nenhuma. (2002, 488).

É de se notar que o título é um substantivo formado apartir de uma base verbal – anular, mais um sufixo indicadorde processo. Como os processos enumerados ao longo dosversos e das estrofes que procuram uma “definição” paraanulação.

Em Vertical, do mesmo poeta, repete-se oprocedimento.

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Vertical

Andar quase em silênciosobre rastos antigose descobrir o mesmodesespero.

Mas verna mudez repentinados homens (e dos pássaros)um rito de renúncia,e imaginá-los vivos,em vertical, povoandoa mesma solidão. (2002, 691)

Na maioria dessas composições há um ocultamentodo eu lírico /enunciador por trás da ausência de formasverbais flexionadas e de pronomes indicativos de pessoa. Éuma enunciação impessoal: o sujeito se oculta por trás dasformas impessoais e sua subjetividade deve ser buscada emoutros traços constitutivos. O discurso aponta para umareflexão, lembra um solilóquio, mas diferente dessa forma, oenunciador não se apresenta.

Em síntese, cotejando os dados obtidos, nota-se umasintaxe mais próxima da prosa e da oralidade, também umarecorrência à fragmentação da sentença ou oração; um eulírico /enunciador, sujeito da enunciação que frequentementese oculta; um léxico prosaico, com um uso expressivo deneologismos, uma forte manipulação dos significados daspalavras seja pela mudança de sua classe mais comum, para

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uma outra; seja pela criação de novas palavras ou mesmopelo desdobramento de seus significantes, tornando-a maisplástica e expressiva.

Para finalizar, é preciso salientar que os usosapontados embora tenham sido apresentados em separado,não existem independentes. São recursos de que os poetasdispõem para construção de seus discursos. Ainda quepecando por excesso, lembro que palavras e frases são amaterialidade do discurso que se mostra ao leitor, mas queda sua constituição participam fatores sócio-históricos esituacionais que não podem ser ignorados. Também não medetive na interpretação dos efeitos de sentido e deexpressividade dos usos apontados, há apenas algunstraços, algumas pinceladas que podem servir de ponto departida para análises mais aprofundadas, pois o objetivodeste artigo é um rápido painel sobre alguns usosexpressivos da língua portuguesa no século XX.

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Zenaide Bassi Ribeiro Soares*

MANOEL DE BARROS: O DESANGUE E O DE PALAVRAS

MANOEL DE BARROS: THE ONE OFBLOOD AND WORDS

Autor e TextoAuthor - Text

PALAVRAS-CHAVE

RESUMO

ABSTRACT

KEY WORDS

R.TEMA S.Paulo nº 54 jul/dez 2009 P. 60-77

Este artigo pretende mostrar a poesia de Manoel de Barros, quereinventa o homem, um ser conjugado com o cosmo e a natureza,capaz de transitar entre o mundo contemporâneo e os valorestradicionais, em perpétuo recomeço.

* Com formação em Comunicação Social, Ciências Sociais e Letras, fez mestradoem Ciências Sociais e doutorado em Comunicação e Artes. Diretora de Pesquisae Extensão das Faculdades Integradas Teresa Martin - UNIESP.

Ilogismo. Sacralidade. Mito. Canto inaugural. Acriançamento.

Illogicalness. Consecration. Mith. Inaugural song. Render infantile.

This article intends to show Manoel de Barros poetry whichreinvents the man, a living creature connected to the cosmos andnature, capable of traveling between the contemporary world andthe traditional values, in an everlasting start.

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Zenaide Bassi Ribeiro Soares

Q uando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo – escreveu Guimarães Rosa – alertando para o sagrado, que, intangível, dilui-

se no ar, inscrevendo-se no poético que resgata o tempomítico. O mesmo sagrado que ilumina a poesia de Manoel deBarros, o poeta que “conseguiu casar a simplicidade da falado bugre com a simplicidade da linguagem da poesia moderna,quebrando, de vez, as fronteiras entre prosa e poesia”, comoobserva Orlando Antunes Batista.1

O que sustenta a encantação de um verso (além doritmo) é o ilogismo, ensina Manoel de Barros. A prática desseilogismo ocorre no território que lhe é adequado, um espaçosagrado escolhido pelo poeta, num pantanal imaginário. Éali que Manoel de Barros faz da natureza a sua casa, o seu

MANOEL DE BARROS: O DESANGUE E O DE PALAVRAS

MANOEL DE BARROS: THE ONE OFBLOOD AND WORDS

1 Ver A antiapocalíptica voz da Terra: a poética de Manoel de Barros. In TEMA nº 25. 1995. p.11.

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santuário, a sua cosmogonia. Ali, como Eros, a força deatração amorosa que leva a gerar as coisas e os seres, ele iráordenar o caos, unindo-o com a terra, a divindade fértil que éo útero da vida , a mãe que nutre e protege.

Para ordenar o caos, o poeta vai transfazer o caos emcosmos, o que é pré-coisa em poesia. Assim, o poeta vaidesvendar, com festejos de linguagem, o sapo nu com voz dearauto anunciando excentricidades. Apontar ruínas queenfrutam. Enxergar pregos primaveris, pregos com naturezavegetal para que possam brotar e florescer na primavera.

É no Livro de pré-coisas, no poema em prosa Anúncio,que o autor irá explicar o território imaginário, seu espaçosagrado de criação literária. A sacralidade do espaço ficaexplícita quando o poeta desvincula a palavra Anúncio de seusentido corriqueiro e lhe confere o status de Anunciação. Alíhá nódoas de imagem, que ocultam arcanos e tambémrevelam, nesse espaço sagrado, um pouco do patrimôniomítico dos índios Kadiweu:

Este não é um livro sobre o Pantanal. Seriaantes uma anunciação. Enunciados como quecontrastivos. Manchas. Nódoas de imagens.Festejos de linguagem. Aqui o organismo dopoeta adoece a Natureza. De repente umhomem derruba folhas. Sapo nu tem voz dearauto. Algumas ruínas enfrutam. Passamlouros crepúsculos por dentro dos caramujos.E há pregos primaveris.(Atribuir natureza vegetal aos pregos para queeles brotem nas primaveras...Isso é fazernatureza. Transfazer).Essas pré-coisas de poesia.

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Em Arranjos para assobio, prossegue o ilogismo, afusão homem e natureza, a busca pela essência dopensamento telúrico. Nesse livro há uma sessão intituladaExercícios Cadoveos, onde aparece o bugre Aniceto, querememora fragmentos do patrimônio mítico de seu povo, osíndios Kadiweu. Estes inutensílios, segundo informa opróprio Manuel de Barros, foram retirados da mitologiarecolhida por Darcy Ribeiro. Nos registros de Darcy Ribeiro2

sobre o patrimônio mítico dos índios Kadiweu, oantropólogo procurou preservar o caráter oral dasnarrativas, adotando uma linguagem bastante sugestiva, quese não chega a transcrever os próprios termos usados pelonarrador indígena, recupera a espontaneidade e leveza deseu fraseado típico, preservando parte de sua substânciaartística.

Manoel de Barros, ao se interessar pelas recriaçõesmíticas de Darcy Ribeiro, enquanto experimento imagético elinguístico, decidiu incorporá-las em seus poemas. Ao retratarAniceto, o poeta recorre a uma montagem de frasesindependentes, mas que no fim se articulam perfeitamente entresi, como a decomposição de imagens numa pintura cubista.

Se arruma por desvãos como os lagartosSe propaga no solMacega invade seus domínios de guspe ............................................................. Ai abandono de cócoras

2 Ver Kadiweu. Petrópolis: Vozes. 1980.

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O bugre, apesar da opressão do branco que domina edistribaliza, detém sua capacidade de atuar no ciclo derenovação cósmica, mantendo seus liames com o passadomítico. Sua fala expressa imagens que traduzem a natureza,como faz o poeta que o tem como modelo:

Meu canto reboja.Não tem margens a palavra.Sapo é nuvem neste invento.Minha voz é úmida como restos de comida.A hera veste meus princípios e meus óculos.Só sei por emanações por aderências porincrustações.

A fusão com a natureza é evidente ao personificar ovegetal (a hera) e reunir de modo sutil elementos abstratos econcretos (princípios e óculos) recobertos de hera, abrindopara o leitor, através da natureza, os caminhos datranscendência.

O seu aprendizado foi construído longe dos padrõesescolares, ocorre por emanações, aderências, pois não sesustenta no cartesianismo mas na força da terra, das águas,das imagens, das sonoridades, dos vôos da imaginação:

Eu escrevo o rumor das palavras.Não sou sandeu de gramáticas.

(O Livro das Ignorãças)

Nos resíduos das primeiras falas eu ciscomeus versosA partir do inominadoe do insignificanteé que eu canto

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O canto inaugural é tatibitati e ventoUm verso se revela tanto mais concreto quantoseja seu criador adejante.

(Arranjos para assobio)

Esse criador adejante, que suspende o tempo e invadeo reino atemporal do mito, resgata os instantes primeiros dainvenção do mundo, quando as coisas ainda não tinham nome.Recompõe um universo que se aproxima da criança, longe dalinguagem adulta estabelecida, para enxergar as coisas porigual como os pássaros enxergam3. Naquele instante mágico,o mundo acabara de ser criado, estava em festa deinauguração, com as palavras livres, soltas, desarticuladas,que podiam ficar em qualquer posição, completamentedivorciadas da linguagem culta, comprometida com umasociedade profana, individualista, desvinculada da natureza.Uma sociedade que ao desagregar-se de valores tradicionaisdivorcia-se das grandes transcendências.

Esse tempo mágico, recém-criado, é apresentado pelopoeta:

Por viver muitos anos dentro do matomoda aveO menino pegou um olhar de pássaroContraiu visão fontana.Por forma que ele enxergava as coisas porigualComo os pássaros enxergam.As coisas todas inominadasÁgua não era ainda a palavra água

3 Ver Poemas rupestres, parte 1. Rio de Janeiro: Record, 2007.

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Pedra não era ainda a palavra pedra;E tal.As palavras eram livres de gramáticas ePodiam ficar em qualquer posição.Por forma que o menino podia inaugurar.Podia dar às pedras costumes de flor.Podia dar ao canto formato de sol.E, se quisesse caber em uma abelha, eraSó abrir a palavra abelha e entrar dentrodelaComo se fosse a infância da língua.

Construindo um tecido poético denso de sentidos, opoeta afasta-se do mundo profano e, de um modo quasereligioso, busca recuperar a pureza da linguagem, num tempomuito antigo, quando as palavras viviam ainda na primeirainfância:

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Carrego meus primórdios num andor.Minha voz tem um vício de fontes.Eu queria avançar para o começo.Chegar ao criançamento das palavras.Lá onde elas ainda urinam na perna.Antes mesmo que sejam modeladas pelasmãos.Quando a criança garatuja o verbo para falar oque nãotem.Pegar o estame do som.Ser a voz de um lagarto escurecido.Abrir um descortínio para o arcano.

(Livro sobre o nada)

Para chegar ao acriançamento das palavras é precisodesaprender o que o cartesianismo ensina, desconstruiro que foi aprendido, para chegar ao inominado, ao estadocoisal, para em seguida iniciar uma nova cosmogonia,inaugurar uma nova vivência, reinventando os modosarcaicos de expressão, densos de poesia e sacralidade:

Sente-se pois então que árvores, bichos epessoas têm uma natureza assumida igual. Ohomem no longe, alongado quase e suasreferências vegetais e animais. Todos sefundem na mesma natureza intacta. Sem asquímicas do civilizado. O velho quase-animismo...................................................................................................................................................................................

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Era só água e sol de primeiro este recanto.Meninos cangavam sapos (...) As coisas aindainominadas. Como no começo dos tempos4.

No começo dos tempos, escorando-se nos mitosKadiweu, Manoel de Barros colhe inutensílios, termo queremete à desvalorização da poesia pela sociedade modernae, incarnado no bugre, mergulha na natureza que o rodeia parareencontrar o fundo eterno das coisas.

Esse mergulho remete a um tempo circular, reversível,eterno, inesgotável. O tempo mítico primordial, cósmico, quese presentifica como fonte viva e fresca, pronta a fortalecer oespírito. Esse tempo revela um espaço onde vive um andarilhoque vem de coisas de nada, coisas que ele ajunta nos bolsospor formas de pentes, formigas de barranco, vidrinhos de guardarmoscas5 (...).

É nesse mundo que Bernardo vive, em estado de árvore,ligando três mundos: o subterrâneo, a terra e o céu. Nosubterrâneo mergulha com suas raízes agarradas à terra úmidada seiva que nutre o caule forte que se levanta para aluminosidade do sol, coberto pela copa, cabeleira alta que pairaentre o céu e a terra, farta de folhas, flores, frutas e pássaros.

Figura recorrente na obra manoelina, Bernardo sereveste de sabedoria e imortalidade. Eterno, vem do oco domundo e vai para o oco do mundo. Perfeitamenteharmonizado com a natureza, Bernardo-árvore acolhepássaros, brisas, borboletas. Sábio, regenera-se, ressurge,muda de forma, como entidade transcendente que é:

4 Ver Livro de pré-coisas: roteiro para uma excursão poética ao pantanal. Rio de Janeiro: Record, 2003.5 O guardador de águas. Rio de Janeiro: Record, 2006

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A adesão pura à natureza e à inocência nasceramcom ele. Não sei se os jovens de hoje, adeptosda natureza, conseguirão restaurar dentro delesa inocência. Não sei se conseguirão matar dentrodeles a centopéia do consumismo. Porque jádesde nada, o grande luxo de Bernardo é serninguém. Por fora é um galalau, por dentro nãoarredou de criança. É ser que não conhece ter.Tanto que inveja não se acopla nele.

(Livro de pré-coisas)

Bernardo vive a plenitude do ser, porque ignora o ter, ecom isso alcança um estado de graça, já que não é agredidopela ambição, a cobiça, a inveja. É um ser do passadoesboçado, quem sabe, para o futuro, para um novo tipo desociedade menos agressiva, mais solidária, onde o trabalhoé reinventado para transfazer a natureza:

No meu serviço eu cuido de tudo quanto é maisdesnecessário nesta fazenda. Cada ovo deformiga que alimenta a ferrugem dos pregos eutenho de recolher com cuidado. Arrumo paredesenverdeadas pros caramujos foderem. Separoos lagartos com indícios de água dos lagartoscom indícios de pedra. Cuido das larvas tortas.Tenho de ter em conta o limo e o ermo. Doucomida pra porco. Desenralho harpa dos brejos(...) Derrubo folhas de tarde. E de noiteempedreço. Amo este trabalho. Todos os seresdaqui têm fundo eterno.

O fundo eterno dos seres é o passado míticoreencontrado ao mergulhar na natureza. Esse mergulho,

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sensual e lúdico, desvenda o ato poético em si, queconjuga ato e fala, com a absorção do real pela Linguagem.Construída de material fluido, a linguagem de Manoel deBarros tem a luminosidade da pintura, recorre a Braque,lembra Van Gogh. Em certos momentos é dadaista, aoconceber a mudança da função institucional de um objeto:

Desinventar objetosO pente, por exemplo.Dar ao pente funções denão pentear. Até queele fique à disposição de ser uma begônia. Ouuma gravanha.Usar palavras que ainda não tenhamIdioma.

(O Livro das Ignorãças)Vai além do dadaísmo ao retirar a função institucional

de pentear até que o pente possa ser transformado num servivo como uma planta, uma flor. Ou fazer poesias compalavras que ainda não tenham idioma, como o pentetransformar-se numa gravanha, palavra ainda nãodicionarizada, talvez por isso sem idioma.

Ao lembrar Van Gogh, o poeta incorpora o pintor queamava o sol, o amarelo, a luz, o fogo, os girassóis:

Um girassol se apropriou de Deus:Foi em Van Gogh

(O Livro das Ignorãças)

A luz que encantava Van Gogh inunda sua obra poéticaentremeada pelas águas do pantanal de onde ressalta aimportância dos sentidos para conhecer o mundo:

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Para apalpar as intimidades do mundo é precisosaber:.....................................................................................Que um rio que flui entre 2 jacintos carregamais ternura que um rio que flui entre 2lagartoscomo pegar na voz de um peixequal o lado da noite que umedece primeiro

A presença da água é muito forte em sua obra. Na regiãorica de flora e fauna, o poeta via a água e o rio. O rio era umacobra-de-vidro, numa visão surrealista:

Escuto meu rio:é uma cobrade água andandopor dentro de meu olho

Por dentro do olho, a imagem do rio se reflete emmovimento. O que está fora - o rio – invertido como numespelho se reflete dentro do olho, lembrando uma tela deMagritte. É o rio andante que olha de dentro do olho parafora.

Manoel de Barros prefere as palavras de inventar àsde informar. Sua invenção nega o pensar cartesiano, oraciocínio lógico, para valorizar o pensamento mágico,concreto, infantil, recuperando, através da analogia, o saborda imagem:

Pertenço de fazer imagens.Opero por semelhanças.Retiro semelhanças de pessoas com árvores

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de pessoas com rãs de pessoas com pedras

(Livro sobre o nada)

A imagem que antecede a palavra conserva uma poesiaque libera a imaginação. Nomear a imagem pode matar a poesia:

O rio fazia uma volta atrás de nossa casa era aimagem de um vidro mole que fazia uma volta atrásda casa.Passou um homem depois e disse: Essa voltaque orio faz por trás de sua casa se chama enseada.Não era mais a imagem de uma cobra de vidroquefazia uma volta atrás da casa.Era uma enseada.Acho que o nome empobreceu a imagem.

(O Livro das Ignorãças)

O poeta reverte a lógica por intermédio do pensamentomágico, introduzindo o fantástico e o estranho na vidacotidiana:

Eu tive uma namorada que via errado. O que elavianão era uma garça na beira do rio. O que ela viaeraum rio na beira de uma garça. Eladespraticava asnormas [...] Com ela as coisas tinham quemudar decomportamento [...] Falou por acréscimo que elanão

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contemplava as paisagens. Que eram aspaisagensque a contemplavam.

(Memórias inventadas – a segunda infância)

Um símbolo é recorrente na obra de Manoel de Barros:o caracol/caramujo.

Que é um caracol? um caracol é:a gente esmarcom os bolsos cheios de barbantes, correntesde latãomaçanetas, gramofones, etc.Um caracol é a gente ser:por intermédio de amar o escorregadioe dormir nas pedrasÉ a gente conhecer o chão por intermédio de tervisto umalesma na paredee acompanhá-la um dia inteiro arrastandona pedraseu rabinho úmidoe mijado.Outra de caracol:é, dentro de casa, consumir livros cadernos eficar parado diante de uma coisa até sê-la.Seria:um homem depois de atravessado por ventos erios turvospousar na areia para chorar seu vazio..........................................................................................

(Gramática expositiva do chão)

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“A luxúria verbal encontrada na lírica de Manoel de Barrosnos mostra que, para o poeta, o signo pantanal é uma Sodomaàs avessas. A volúpia do contacto do poeta com a naturezaobriga-o a perceber a realidade de forma não só filosófica mastambém sensual e porque não dizer de uma ambiência erótica,onde a imagem poética é quem revela a natureza do orgasmolírico”6. Essa sensualidade é gerada no chão, na terra fértil,adubada com esterco, de onde brotam palavras cheias de corcomo “os girassóis de Van Gogh”, registrados em Face Imóvel.Ou como a amante terra, que abraça e consome:

Ir a terra me recebendome agasalhandome consumando como um seloum sapatocomo um bule sem boca

(Compêndio para uso dos pássaros)

A receita para assegurar a sensualidade está registradaem Matéria de poesia:

“Deixar os substantivos passarem anosno esterco, deitados de barriga, até queeles possam carrear para o poema umgosto de chão – como cabelos desfeitosno chão – ou como o bule de Braque –áspero de ferrugem, mistura de azuis eouro – um amarelo grosso da terra,carvão de folhas.”

A poesia de Manoel de Barros é onírica, convive com ofantástico, o imaginário, o humor e o nonsense:6 Ver A antiapocalíptica voz da Terra: a poética de Manoel de Barros. In TEMA nº 25 1995. p.26.

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A noite caiu da árvoreMaria pegou ela pra criare ficou preta...Ví um rio indo embora de andorinhas

Em Matéria de poesia, o poeta realiza um jogo dehumor, num poema lúdico, um hai-kai, onde trata de umaconcha, que como um osso, envolve um molusco precioso:a ostra. Para dizer, através de metalinguagem, que qualquermaterial serve para poesia, até um pequeno molusco. E anoite desse animal é metáfora para indicar a clausura emque vive a ostra.

O osso da ostraA noite da ostraEis um material de poesia

O poeta areja a linguagem como as minhocas arejam aterra. Para arejar a lingua portuguesa ele se aproxima dapintura, da linguagem dos índios e das crianças até convertê-la na linguagem dos pássaros:

.............................................................

É muito transitiva a dos pássarosNão carece de conjunções nem de abotoadurasSe comunica por encantamentosE por não ser contaminada de contradiçõesA linguagem dos pássarosSó produz gorgeios

(Retrato do artista quando coisa)

.............................................................

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A língua dos Guaranis é gárrula: para eles émuitoMais importante o rumor das palavras doque o sentidoQue elas tenhamUsam trinados até na dor.

Na língua dos Guanás há sempre uma sombradoCharco em que vivem.Mas é língua matinalHá nos seus termos réstias de um sol infantil.Entendo ainda o idioma inconversável daspedras.É aquele idioma que melhor abrange o silênciodasPalavras.Sei também a linguagem dos pássaros – é sócantar.

(Ensaios fotográficos)

O poeta Manoel de Barros é um andarilho que transitaentre o mundo contemporâneo e os valores tradicionais.Nessa caminhada constrói um novo paradigma. Ou recuperao paradigma perdido do homem genérico, complexo, variadoe múltiplo, de que fala Edgar Morin.

Aos 93 anos de idade, escrevendo um novo livro, a mãocomo sempre, o poeta confessa quem é o verdadeiro Manoelde Barros7:

7 Ver O Estado de São Paulo, Caderno 2, edição de 04/11/09 p. 1 (Bilhetes poéticos).

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“...somos dois. Um é biológico, outro é letral.Ambos somos verdadeiros. Um é de sangue.Outro é de palavras. O de sangue é comum: come,bebe água e até quebra copos. O ser letral gostade fazer imagens para confundir as palavras. Egosta de usar palavras pra destroncar as imagens.Tipo assim: eu vi um passarinho pousado nomuro da tarde. As palavras servem para meenganar e para enganar os outros. Quem escrevesobre si mesmo procura sua própria glória, disseCristo. Eu procuro. Não sei me pular”.

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Roberto de Camargo Damiano*

PRECONCEITO ÉTNICO NA LITERATURA BRASILEIRADESTINADA À INFANCIA E À JUVENTUDE

ETHNIC PREJUDICE IN BRAZILIAN LITERARY PRODUCTIONORIENTED TO INFANCY AND YOUTH

Autor e TextoAuthor - Text

PALAVRAS-CHAVE

RESUMO

ABSTRACT

KEY WORDS

R.TEMA S.Paulo nº 54 jul/dez 2009 P. 78-91

O objetivo deste estudo é promover uma reflexão sobre literaturae preconceito étnico, verificando de que forma este se insere naprodução literária brasileira orientada para a infância e ajuventude.

* Bacharel em Sistemas de Informação . Licenciado em Letras pelas FaculdadesIntegradas Teresa Martin onde fez especialização em Leitura e Educação. Mestrandoem Teoria Literária.

The objective of the present study is to promote a reflection aboutethnic prejudice, observing the way such a fact is inserted in theBrasilian literary production oriented to infancy and youth.

Literatura. Infância. Juventude. Mito da infância dourada.Preconceito étnico.

Literature. Infancy. Youth. Myth of golden infancy. Ethnic prejudice.

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Roberto de Camargo Damiano

A té inícios do século XVIII, na Europa, a criança era vista como um pequeno adulto, não lhe sendo destinada qualquer educação especial.

Na Idade Média, cabia ao menino seguir a profissão do pai,que desde cedo lhe ensinava o seu ofício. Mais tarde, com arevolução industrial, acelerou-se a urbanização; a famíliaextensa começou a ser substituída pela família nuclear eevidenciou-se a necessidade de um novo tipo de educaçãopara os filhos, que já não deveriam, obrigatoriamente, seguira profissão do pai. Nesse momento, a instalação de escolaspara a educação formal das crianças atendia aos maisrecentes interesses do Estado de disseminar novos valoressociais, conhecimentos básicos que respondessem àsnecessidades da nova organização político-econômica dasociedade. Esta nova organização centrava-se no interessena homogeinização cultural dos cidadãos e valorização da

PRECONCEITO ÉTNICO NA LITERATURA BRASILEIRADESTINADA À INFANCIA E À JUVENTUDE

ETHNIC PREJUDICE IN BRAZILIAN LITERARY PRODUCTIONORIENTED TO INFANCY AND YOUTH

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ideologia nacionalista, que fortalecia a identidade nacional,uma das balizas do Estado-Nação e, nas artes, doRomantismo.

Assim, no século XVIII, fiel ao ideário romântico, surgiuo folklore, considerado essencial para a construção epreservação da identidade nacional. Ao mesmo tempo, paradiminuir o isolamento da criança que vivia à parte do mundoadulto, ocorreu a popularização da literatura infantil e,particularmente, dos contos de fada, o que, também,implicava o resgate dos contos populares e a disseminação,entre os infantes, da ideologia dominante, com sua cargade valores adequados àquele momento histórico.

Desse modo, afirmou-se no imaginário social o mitoda criança angelical e pura, associado aos padrõesreligiosos da Igreja Católica, criança essa que devia serprotegida no casulo da sua inocência, longe dasimoralidades do mundo, da sexualidade, dos pecados eperigos mundanos. Nesse quadro, afirmou-se o mito dainfância dourada, que se consolidou na literatura, emalgumas obras de autores consagrados como Baudelaire,Victor Hugo, Raul Pompéia, Casimiro de Abreu, entre outros.

No poema lírico de Casimiro de Abreu, Meus oito anos,

a infância é apresentada, em todas asestrofes como um período da vida em quetudo era calmo e sereno (...). A harmonia,no relacionamento familiar, destaca-senaquelas manhãs risonhas (...), conformeanalisa Tereza Telles1.

1 TELLES, Tereza. Chico Buarque na sala de aula: leitura, interpretação e produção de textos. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

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Essa infância dourada, de que certa literatura trata,terá sido conhecida por quantas crianças brasileiras? Asoprimidas, as discriminadas, as sem ternura, asabandonadas, quem se lembrou delas?

Conforme Antonio Cândido2 em vários momentos daHistória da literatura brasileira autores se engajaram emcausas sociais e essa tendência foi muitas vezestransformada em movimento. Assim, é possível concluir-seque fatores sociais podem ser elementos constituintes daestrutura de uma obra literária. A estrutura artística pode,propositadamente ou não, reproduzir de forma simbólica aestrutura social.

Jorge Amado escreveu Capitães da areia, cujosprotagonistas são meninos de rua, pequenos ladrões e

2 CÂNDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2004.

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assaltantes que vivem à beira do mar, em Salvador. JoséLouzeiro, num texto forte, rápido e violento, escreveu“Infância dos mortos”, obra que, no cinema, em 1980,recebeu o título de Pixote, a lei do mais fraco. Conta a históriade meninos pobres, internos num abrigo de Camanducaia,que, vitimizados por violência dentro da instituição,promovem uma rebelião e fogem pelas ruas, brincam emchafarizes públicos, perambulam pelas cidades, cheios deesperança e desespero, para enfrentarem novas situaçõesdolorosas.

Particularizando este artigo na questão da negritude,cabe perguntar como vivem e como são vistas as criançasnegras pela literatura brasileira contemporânea?

Aqui se define uma preocupação deste trabalho, queé promover uma reflexão sobre o preconceito étnico,

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verificando de que forma ele se insere na literatura orientadapara a infância e a juventude.

A obra de arte espelha a sociedade na qual foi gerada?Acreditando que o indivíduo é fruto de uma mediaçãocultural e a questão do preconceito perpassa a formaçãoideológica num embate do qual o escritor nem sempre temconsciência, aqui se tem a intenção de verificar como aquestão da negritude se coloca em alguns textos de autoresconsagrados publicados no Brasil.

Situação do Negro, Hoje:Vive o Brasil uma Democracia Racial?

Apesar de inúmeros estudos publicados porcientistas sociais que, inclusive com dados empíricos,comprovam a existência no país de forte preconceito sociale étnico, o Brasil tem sido sempre apresentado como ummaravilhoso caldeirão onde se integram diferentes grupos,que vivem a plenitude de uma democracia racial invejável.Para desmentir essa crença, que é frequentemente reiteradapor grupos políticos situados no centro do poder, pesquisarealizada em 2003 pelo CEM-Cebrap3, apresenta dadosdiscordantes.

A distribuição dos habitantes no território urbanomostra que nas áreas mais ricas e com maior disponibilidadede serviços públicos, há grande predomínio de não-negros.Nesse “espaço branco”, os que se autoclassificaram depretos ou pardos no censo não chegam a 20% da população.

3 Centro de Estudos da Metrópole do CEBRAP-Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

UNIESP 84

Nos distritos mais ricos, esse número nem chega a 10%. Nasregiões em que a população negra ultrapassa os 40%, a altaprivação social, entendida como forte incidência de famíliasde baixa renda, baixa escolaridade e grande presença dejovens, alcança até 85% dos habitantes. Nos territórios degrande maioria branca, a alta privação é inexistente oupequena. Embora não existam leis que determinem onde onegro pode morar, os mecanismos discriminatórios permitemprever com enorme precisão os locais de moradia de negrose de brancos de classe média e alta.

São Paulo é a cidade brasileira com o maior númeroabsoluto de negros (3,1 milhões), à frente do Rio de Janeiro(2,4 milhões) e de Salvador (1,8 milhão).

A distância é um grande problema que o negro tem deenfrentar. Os negros ultrapassam 30% dos habitantes àmedida que se vai em direção à periferia, chegando aos 50%em alguns distritos nos limites do município.

A discriminação racial no Brasil vai além dadesigualdade explicável por condições socioeconômicas.Diversos estudos sociológicos mostram que, para as mesmasprofissões e para a mesma escolaridade, os negros ganhamsalários mais baixos. A segregação racial também se manifestaespacialmente. O território é um elemento extremamenteimportante para as políticas sociais, pois é um fator dereprodução da desigualdade. O isolamento territorial setraduz em isolamento social e econômico.

O professor Antonio Sérgio Guimarães, da Universidadede São Paulo, ressalta a complexidade da discriminação racialno país:

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“Embora não tenhamos formas abertas dediscriminação racial, a cor e a aparência operamsempre através de outros mecanismos efatores cuja utilização, como modo dediscriminação, consideramos normais, taiscomo a pobreza, a pouca escolaridade, aestética negra e a origem regional. Ou seja, paratermos certeza de que um preto tenha sofridouma discriminação puramente racial é precisoque ele seja paulistano, de classe média, bemeducado e bonito.”

Elza Berquó, da Academia Brasileira de Ciências eprofessora da UNICAMP, sintetizou o desafio com relação aopreconceito racial:

É necessário desconstruir os silêncios quemuitas vezes podem ser traduzidos comoracistas na sociedade brasileira4.

No ensaio “Multiculturalismo e educação”, ahistoriadora Maria Aparecida da Silva confronta a idéia demulticulturalismo à de uma educação anti-racista. Omulticulturalismo teria, em síntese, o propósito da tolerânciaa outras culturas, o que implica a idéia de “concessão”,enquanto a educação antirracista seria uma proposta maiscombativa em relação às políticas, concepções e práticas quereiteram a primazia de um grupo sobre outros.

Existe, efetivamente, no Brasil, tanto na família comona escola, um lamentável silêncio sobre a temática dopreconceito étnico. Se a Resolução do Conselho Nacionalde Educação, que instituiu diretrizes curriculares nacionais

4 Folha de São Paulo, edição de 21 de setembro de 2003. Caderno: Folha Cotidiano, página C1.

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para a educação das relações étnico-raciais, estimulassepráticas literárias orientadas para esse tema, é possível queesse silêncio fosse quebrado com certa velocidade. Épossível mesmo que, se livros de literatura infantil focalizandoo preconceito fossem adotados desde a pré--escola, essesilêncio poderia ser quebrado de forma quase imediata, poisa literatura, como poderosa construção simbólica penetra aconsciência do indivíduo tanto no nível mais profundo comoem nível imediato, possibilitando, por exemplo, a discussãodo tema, reflexões, a explosão de emoções, a tomada deconsciência, a dissolução do tabu.

A Literatura Engajada e aQuestão do Preconceito

O tema preconceito lembra a existência de gruposhistoricamente discriminados no Brasil e em muitos outrospaíses. Ou seja, o preconceito na sociedade não aconteceao acaso, mas tem alvos específicos - os grupos hojechamados de minorias, e que, em muitos casos, nem chegama ser minoria do ponto de vista demográfico. No caso doBrasil, não se pode falar em maioria branca, pois, conforme oIBGE, as populações negra e parda, somadas, constituemligeira maioria em relação ao contingente que se declaroubranco.

A dificuldade de se falar de etnias no Brasil é muitogrande e resulta do passado escravista que deixou marcasprofundas. Essa dificuldade fica evidente no texto seguinte,de Ziraldo5:

5 Os meninos morenos. São Paulo: Melhoramentos, 2004

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Um dia, o funcionário do recenseamento foientrevistar meu pai. ‘Nome, idade, sexo’.Papai foi respondendo. ‘Cor?’ E o papai:‘Moreno, uai!’. Aí, o funcionário embatucou:‘Moreno não tem aqui no formulário, SêoGeraldo’. Papai: ‘Uai, como é que não tem?’ Eo funcionário: ‘Tem preto, branco e pardo’.‘Pardo!?’, exclamou meu pai com indignadaestranheza. E completou: ‘Meu filho, eu soupardo???’ O funcionário respondeu rápido,como se defendesse o papai de uma ofensa:‘Não, de jeito nenhum, Sêo Geraldo!’. E opapai: ‘Eu sou preto?’ (isso ele perguntoumenos indignado). O funcionário foi rápido:‘Claro que não, Sêo Geraldo. Imagina! OSenhor não é preto!’. ‘Então...’, disse meu pai,‘você vê aí’.

Negrinha

Negrinha, de Monteiro Lobato, conta a história de umamenina negra, maltratada por dona Inácia, sua patroa, queera tão religiosa quanto perversa. Viúva e sem filhos,transforma Negrinha em um saco de pancadas, com judiaçõese frenesis, beliscões, cócres, tapas, cascudos e pontapés -todos esses recursos que a aliviavam de suas raivas eindisposições, azedumes e queixas. A menina sofria os maustratos sem poder reagir ou compreender, tornando-se, dessemodo, uma criança muda e assustada. Certo dia, porém, donaInácia recebe a visita de suas sobrinhas, louras e ricas, eacaba permitindo, depois de uma resistência inicial, queNegrinha brinque com elas. Negrinha fica encantada com umaboneca de louça que falava mamãe. Depois da partida das

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meninas, Negrinha passou a sonhar com a boneca,descobrindo uma nova consciência de si e do mundo.Embora dona lnácia já não a perseguisse tanto, a nostalgia aenvenenava. Negrinha parou de comer. E morreu da mesmamaneira que havia vivido: sem atenção ou cuidado.

Nesse conto, Monteiro Lobato vai muito além detratar do tema preconceito para apresentar forte denúnciasobre a situação dos descendentes de ex-escravos,utilizando sua habilidade e talento literário para construirum libelo político.

A Cor da Ternura

Esta obra focaliza a atualidade. Na escola, a meninasente as marcas do preconceito: “boneca de piche”,“cabelo de bom-bril”. A mãe recomenda que finja não ouviros xingamentos e a menina finge que concorda:

- E se no caminho o Flávio me xingar de negrinha?- Não quero saber de encrenca, pelo amor de Deus! Você pega e faz de conta que não escutou nada. Calei-me. Quem era eu para dizer-lhe que já estava cansada de fazer de conta?

Assim, Geni Guimarães descreve uma passagemde sua protagonista, a menina que deixa o grupo familiarpara enfrentar o mundo exterior, agressivo, quando vaià escola. Agora era uma estrutura social mais complexaque a da família e integrá-la exigia adaptação, o que nãoera fácil.

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Na escola a professora ensinava que os escravostinham sido humilhados, perseguidos, oprimidos e ela ficaimaginando que pertence a uma raça inferior. Tinha escritoum poema sobre a princesa Isabel, queria apresentá-loem público, mas na hora de declamar ficou muda.

Resolveu esfregar a perna para eliminar a cor preta,mas a pele ficou ferida sem que a cor desaparecesse. A mãea socorre, cura as suas feridas. A menina conhecia asconsequências:

Dentro de uma semana, na perna só uns riscosdenunciavam a violência (...). Só ficavam aschagas da alma esperando o remédio do tempoe a justiça dos homens.

O Menino Marrom

Quando se usa a palavra menino, em um textoliterário, existe um pressuposto tácito de que se trata deuma personagem branca. Observando os títulos O meninomaluquinho e O menino marrom, ambos de Ziraldo,verifica-se que o primeiro menino distingue-se pela personalidadee o segundo, pela cor da pele. Assim, não é necessáriodizer que o primeiro é branco. Isto se deve à ideologiaconstruída ao longo dos séculos que deu ao branco o papelcentral de uma cultura, enquanto o negro teve, na maiorparte do tempo, sua voz calada pela chibata. É verdade quetraços da cultura negra foram assimilados no processotransculturativo, mas isso não altera a percepção de queos elementos mais relevantes do processo civilizatórioforam trazidos pelo branco europeu, que, armado, teve, nopaís, poder de polícia, domínio econômico, marcando,ainda, sua presença na literatura.

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O título O menino marrom por isso pode serconsiderado sintoma e comprovação desse fenômeno, pordar destaque ao que, num diferente contexto histórico, nãoteria destaque e por estabelecer que o adjetivo marrom ésuficiente como definição, ficando o caráter e a personalidadeem segundo plano. Além disso, é importante destacar queesse título chama a atenção para o que não costuma sermencionado: a cor da pele. Num país como o Brasil, em queos negros continuam sendo quase invisíveis, indicar e darrelevo à questão racial é provavelmente um modo deevidenciar o problema, tirando-o do limbo, em que muitosgostariam que ficasse escondido para sempre.

AMADO, Jorge. Capitães daareia. São Paulo: Companhiadas Letras, 2009.

ARIÈS, Philippe. Históriasocial da criança e da família.Rio de Janeiro: Guanabara,1981.

BETTELHEIM, Bruno. Apsicanálise dos contos defada. São Paulo: Paz e Terra,1992.

BOSI, Alfredo. Históriaconsisa da literaturabrasileira. São Paulo: Cultrix,1997.

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CNE - Conselho Nacional deEducação. Diretrizes curricularesnacionais para a educação dasrelações étnico-raciais e para oensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Brasília:Diário Oficial da União, n° 118 de22/06/2004, seção 1, página 11.

FERNANDES, Florestan.Integração do negro nasociedade de classes. SãoPaulo: Ática, 1978.

91 TEMA

GUIMARÃES,Geni. A cor daternura. São Paulo: FTD, 1994

LOBATO, Monteiro. Negrinha.São Paulo: Brasiliense, 1994.

LOUZEIRO, José. Infância dosmortos. Rio de Janeiro: Record,1977.

NICOLELIS, Giselda Laporta.Amor não tem cor. São Paulo:FTD, s/d.

SOARES, Zenaide Ribeiro. Osegredo da ilha que fugiu domapa. São Paulo: Lume, 1992.

TELLES,Tereza. Chico Buarquena sala de aula: leitura,interpretação e produção detextos. Petrópolis, Rio deJaneiro: Vozes, 2009.

ZIRALDO. O menino marrom.São Paulo: Melhoramentos,1986.

— O menino maluquinho.São Paulo: Melhoramentos,1998.

— Os meninos morenos. SãoPaulo: Melhoramentos, 2004.

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Simone S. Goh*

METALINGUAGEM E ORALIDADE EMMONTEIRO LOBATO

METALANGUAGE AND ORALITY IN MONTEIRO LOBATO

Autor e TextoAuthor - Text

PALAVRAS-CHAVE

RESUMO

ABSTRACT

KEY WORDS

R.TEMA S.Paulo nº 54 jul/dez 2009 P. 92-103

* Doutoranda em Filologia e Língua Portuguesa - FFLCH / Universidade de São Paulo.Professora das Faculdades Integradas Teresa Martin - UNIESP.

O objetivo deste trabalho é resgatar a metalinguagem de Monteiro Lobatoapresentada em um corpus único e cronológico e demonstrar que ele registramarcas de oralidade, criando um discurso que o próprio autor denomina de“conversa em mangas de camisa”. Elegemos como corpus A Barca de Gleyrepor julgarmos ser uma obra especial, em que o próprio Lobato relata suasconsiderações lingüísticas ao longo de quarenta anos em correspondênciamantida com o amigo e também escritor Godofredo Rangel. Analisaremos odiscurso do autor, no que tange a sua própria metalinguagem, a presençadas repetições e termos gíricos, que contribuem para tornar o textoepistolográfico “uma conversa com um amigo, um duo”.

The aim of this work is to ransom Monteiro Lobato’s metalanguage presentedin a unique and chronological corpus and to demonstrate that it containsorality marks, creating a speech the author himself denominates“conversation in shirt sleeves”. We elected the corpus A Barca de Gleyre,judging this is a special opus, in wich Lobato himself relates his linguisticconsiderations along forty years in held correspondence with the friend andalso writer Godofredo Rangel.We will analyse the author’s speech, in wichconcerns his own metalanguage, presence of repetitions and slang, wichcontributes to make the epistolary text in a conversation with a friend, a duo.

Metalanguage. Monteiro Lobato. Letters. Orality. Literature.

Metalinguagem. Monteiro Lobato. Cartas. Oralidade. Literatura.

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1. O Corpus

A obra A Barca de Gleyre reúne quarenta anos de correspondência de Monteiro Lobato enviada a seu amigo Godofredo Rangel,

também autor. O que torna esse material singular é a ordemcronológica das missivas, sendo que todas versam sobrelíngua, linguagem e a literatura de seu tempo; iniciam-seem 1903 e a última carta é datada de 1948.

Na biografia oficial de Lobato, Cavalheiro (1955,p.111) relata que nas férias de junho de 1903, dá-se o inícioà troca de cartas entre os amigos, ou seja, um ano antesde Lobato formar-se bacharel em Direito. Seu endereçado,Godofredo Rangel, a quem Lobato algumas vezesdenominou “anjo do cenáculo”, fez parte dos sessenta e

METALINGUAGEM E ORALIDADE EMMONTEIRO LOBATO

METALANGUAGE AND ORALITY IN MONTEIRO LOBATO

Simone S. Goh*

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dois alunos que com Lobato chegaram ao quinto ano deCiências Jurídicas e Sociais.

“Sigo logo para a fazenda e quero de lácorresponder-me contigo longa eminuciosamente, em cartas intermináveis.Responda sem demora se está disposto aser caceteado á distancia1 – telecaceteado!Pode dirigir a carta a Taubaté, para ondesigo nestes três dias.” (A Barca I , p.32)2

Dava-se início à correspondência, porém, Lobatoestipulou algumas regras. Pediu a Godofredo, primeiramente,que abandonasse as delicadezas, os tratamentos e que nãoelevasse sua figura, pois para o autor, ambos tinham igualvalor.

“E agora, um puxão de orelhas: Por quequer usar etiqueta comigo ? Tuas cartasvivem cheias de ‘faça o favor, se não forincomodo’, e mais formulas da humanahipocrisia. São tropeços. Quando te leio,vou dando topadas nisso. Faça como eu.Seja bruto, chucro, enxuto.” (A Barca I,p.52).

Desde o início, a correspondência com o amigosignificou para Lobato muito mais que troca de informaçõeslinguísticas ou literárias, o escritor realmente tentava manter

1. Monteiro Lobato tinha um sistema ortográfico próprio. Por coerência e em concordância coma edição consultada, conservamo-lo.2. Todas as referências às citações do corpus seguem o seguinte critério: A Barca I ou II -primeiro ou segundo tomo e na sequência a respectiva página.

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uma conversação. Logicamente não há troca ou tomada deturnos, porém ocorre uma continuidade tópica, em queLobato retoma assuntos e torna o discurso fluido. O escritorentendia que as missivas eram um exercício para que ele e oamigo aperfeiçoassem seu estilo, a partir dos comentários ereflexões que faziam.

“Você estira o rabinho de rato epistolarpara que eu veja como está gordo e forteno estilo; eu faço o mesmo. Mas queassuntos, que temas, podem existirdentro da caixa?” (A Barca I, p.220)

Infelizmente, foram editadas apenas as missivas deLobato , pois apesar de todo incentivo que teve do amigo,Godofredo jamais revelou as suas. Não sabemos por quantaspassou esse interlocutor, apenas que tocou sua pacata vidaem uma cidade interiorana de Minas Gerais e editou algunslivros, não obtendo tanto sucesso quanto o escritortaubateano. As cartas, contudo, tiveram importância em suavida, caso contrário não partilharia por tanto tempo dessaamizade à distância, mantida pelas “conversas em mangasde camisa”.

2. Metalinguagem Lobatiana

A operação de conhecimento acerca de algo, que éorganizado a partir de uma descrição, explicação ou criaçãoé reconhecida por Chalhub (1986, p.7) comometalinguagem. A obra A Barca de Gleyre é com base nesseconceito uma obra metalinguística. Por meio da síntese doprocesso comunicacional, notamos que Monteiro Lobato

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(fonte) organiza suas palavras, codifica sinais, que sereferem à língua (objeto) e os envia a Godofredo Rangel(destinatário), utilizando cartas (canal). As cartas apresentamvárias funções articuladas por grau de importância.

“Perguntas quantas horas literatizo.Nem uma, meu caro, porque só leio o queme agrada e só quando estou comapetite. Ler e comer, só quando háapetite.”( A Barca I, p.48).

No trecho temos uma mensagem de cunhoconfessional, com verbos em primeira pessoa, predomínioda função emotiva, mas no momento em que Lobato salientaa ideia de ter apetite por literatura, a função poética tambémse faz presente. Já no excerto, a seguir Lobato questionaGodofredo sobre a morte de um amigo, faz-nos crer queobteria uma resposta. Utiliza o canal para reafirmar suacomunicação, função fática seguida pela poética.

“E o Vilalta de que morreu? Foi pena –sabia português como pretendemossabe-lo. Mas era mau de entranhas.Sarcástico e implacável. Com certeza fezalguma perversividade contra a Morte, eesta, danada, o levou”. (A Barca I, p.268).

Nota-se também que Lobato faz referência a umalinguagem anterior ou requisita nomeadamente a presençade outros escritores e de outras linguagens na criação dotexto de suas cartas, essa intertextualidade está relacionadaà metalinguagem. Autores como : Camilo Castelo Branco,

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Camões, Sílvio Romero, Rodolfo Teófilo, João do Rio entreoutros são citados ,criticados, elogiados.

Durante o exercício epistolar o escritor critica suapostura linguística, de maneira que ao agir como seupróprio crítico, Lobato e sua obra são modificados einfluenciados, pois o exercício reflexivo propicia o crescerdo autor. Suas ideias, no que dizem respeito à língua, foramjulgadas antagônicas por vários pesquisadores, dando aoescritor um caráter de complexidade, porém acreditamosque essa divergência de Lobato é fruto de seu refletir e sepermitir mudar à medida que descobria novos modelos epolia seu próprio estilo.

Organizamos ao longo do trabalho um quadro paraverificarmos como ocorreram as consideraçõesmetalinguísticas do autor, notamos que ao longo de 611cartas datadas entre 1903 e 1948, os anos de 1915 e 1916foram os mais significativos, em torno de 117 cartas foramenviadas, contendo metalinguagem. Por outro lado, quantomais Lobato se distanciava das atividades literárias menosele escrevia e quando o fazia não discutia com o amigoquestões sobre a língua, e sim assuntos pessoais ecomerciais.

Em 1945, a três anos de sua morte, Lobato ainda sepreocupa com assuntos concernentes à língua, cita emuma das cartas que a boa literatura está relacionada àsimplicidade nas construções. O escritor taubateanoprimeiramente desprestigiou a língua portuguesa dePortugal, para tempos depois enaltecê-la, reconheceu asdiferenças existentes entre a língua daqui e d’além mar edemonstrou quão difícil foi conciliar esses fatos com arealidade dos leitores brasileiros.

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3. Repetições nasMissivas Lobatianas

Ao lidarmos com cartas, gênero de nosso corpus, éessencial o aspecto interacional do discurso e torna-seassim imprescindível a presença de repetições, uma vez seressa uma das principais estratégias de formulação textualda língua falada. A análise de um discurso escrito nãoinvalida nosso percurso, pois o remetente das cartas,Monteiro Lobato, deixa clara sua intenção “que as cartassejam escritas em língua mangas-de-camisa como a falada”.

O escritor utiliza as repetições como mecanismos decoesão, recurso retórico e para obter efeitos semânticos.Não faz uso desse recurso para aquisição da linguagem,pois é notório o conhecimento que o autor tinha do léxicoda língua.

“Faça como eu seja bruto, chucro,enxuto.” (A Barca I, p.52)“...mas me é muito mais comodo, maislépido, mais saído.” (A Barca I, p.79).

Os exemplos apresentam a coesão referencial,ocorre a remissão dos referentes por meio da reiteraçãode sinônimos, nas formas bimembres e trimembres. Nofragmento a seguir, verifica-se que o autor reitera o termoliteratura a fim de promover a compreensão da idéia emquestão, com objetivo didático, o que para Marcuschi(2002) promove a presença retórica.

“O gênero carta não é literatura, é algoá margem da literatura, porque literatura

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é uma atitude – é a nossa atitude diantede um monstro chamado público.” (ABarca I, p.17).

Os efeitos semânticos ocorrem por meio da repetiçãode itens lexicais e morfemas, esses elementos produzemintensidade, reiteração e continuidade no discurso, o quenotamos no fragmento a seguir:

“E o pobre leitor vai tropeçando, vaidando topadas na má sintaxe,extraviando-se nas obscuridades eimpropriedades.”(A Barca I, p.223).

As repetições são formas significativas utilizadas porLobato para conseguir o comportamento linguístico idealem relação às cartas.Quanto aos tipos de repetições,encontramos contíguas e não-contíguas, porém não seapresentam como repetições reais da modalidade falada dalíngua, são usadas de forma intencional pelo autor.

“Quando me virá a cristalização definitiva? Tra-la-á ocasamento, com a ordem e o método de Purezinha? Talvez,talvez.” (A Barca I, p.190).

“Trata-la-á o casamento, com a ordem eo método de Purezinha ? Talvez, talvez.”( A Barca I,22, 1908).

A repetição contígua talvez, talvez sugere aintensificação do sentido do advérbio talvez, de maneiraque a reiteração dos elementos lingüísticos enfatiza a

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expressão como se houvesse graus distintos, em quetalvez, talvez fosse um grau superior a forma simples, casosimilar ocorre com o pronome quantas que aparece naseqüência.

Já nos exemplos abaixo temos repetições não-contíguas dos mesmos itens lexicais que se encontram noâmbito de um mesmo enunciado ou em enunciadossubsequentes, havendo identidade entre forma repetida eseu referente.

“... esse pulo não vai assim ao jeito dospulos ginásticos; é pulo metafórico,pulo imperceptível.” (A Barca II, p.51).

“Desse livro só me interessarei por meia dúzia deexemplares, que oferecerei a meia dúzia de pessoas.”(ABarca II, p.70)

As repetições utilizadas por Monteiro Lobatoobjetivam criar um contínuo entre as modalidades dalíngua e garantir a expressividade do discurso e a interaçãocom seu interlocutor Godofredo Rangel.

4. A Gíria nas MissivasLobatianas

A gíria está incorporada ao registro oral dalinguagem, o que garante a espontaneidade, descontraçãoe afetividade existente na língua falada. Nesse sentido,

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constata-se que a linguagem desenvolvida por Lobatotenta se aproximar da língua falada quando da utilizaçãode termos gíricos. O escritor taubateano vê-se em umuniverso único, do qual fazem parte ele e seu interlocutorGodofredo Rangel, utiliza palavras e expressões gíricas paramanter a identidade entre ambos. Elencaremos algunsexemplos:

(1) “O escritor que escreve mal é umimundo, um Fedorento, um chulepento.”(A Barca I, p.249).(2) “Quem conduz a humanidade a esseestilo é o Mestre-escola, é o GramáticoLetrudo.”( A Barca I, p.6).(3) “Ás vezes o tu entra na frase que é umabeleza; em outras é o você, e comosacrificar essas duas belezas só porqueum coruja, um Bento José de Oliveira, umFreire da Silva não querem ?”( A Barca I,p.80).

As sufixações parasitárias que ocorrem em 1 e 2derivam dos termos chulo e letra, respectivamente e operamcomo intensificador. Temos assim chulepento, que conformeSilva é aquele que exala mau cheiro, significado reiterado porLobato e letrudo, que pelo contexto seria aquele conhecedordas letras. Em 3, coruja faz referência à ave, uma característicacomum nas gírias é a alusão a animais, designa de maneirafigurada sabedoria e conforme Viotti (1956) pode significarmulher feia e velha, o que corrobora com o sentido pejorativodado pelo escritor taubateano.

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A linguagem gírica presente nas cartas vem quebrar,nos momentos certos, o tom formal do discurso eproporcionar ao mesmo maior espontaneidade.

5. Considerações Finais

Lobato solicita ao seu interlocutor que pratique umalíngua menos formal, próxima à falada, porém ele mesmo nãoprocede dessa forma. Lobato aproxima-se da língua faladano que diz respeito ao léxico, fato também observado porPinto (1994) e Leite (1999). Na epistolografia lobatiana hápresença de traços oralizantes, porém o que prevalece é alingua escrita culta, fruto da própria vivência do autor.

Com referência à metalinguagem, a maior contribuiçãodesta pesquisa consiste na amostra e análise dos discursosmetalinguísticos lobatianos, que a partir de 1903 colaborampara a própria construção do autor. Sem dúvida o processoestilístico utilizado por Lobato em suas cartas é um misto delinguagem literária, apego à norma culta, com nuances deoralidade, que resulta em uma linguagem própria, alinguagem epistolográfica lobatiana.

Notas

1. Monteiro Lobato tinha um sistema ortográficopróprio. Por coerência e em concordância com aedição consultada, conservamo-lo.

2. Todas as referências às citações do corpus seguemo seguinte critério : A Barca I ou II – primeiro ousegundo tomo e na sequência a respectiva página.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAVALHEIRO, Edgard. MonteiroLobato - vida e obra. São Paulo:Nacional,1955.

CHALHUB, Samira. A metalinguagem.São Paulo: Ática, 1986.

LEITE, Marli Quadros. Metalinguageme discurso – a configuração dopurismo brasileiro. São Paulo:Humanitas, 1999.

MARCUSCHI, Luiz Antonio. Arepetição na língua falada comoestratégia de formulaçãotextual. In: KOCH, Ingedore G.Villaça (org). Gramática doPortuguês Falado. Campinas:UNICAMP, 2002.

MONTEIRO LOBATO, JoséBento. A Barca de Gleyre.Tomos 1 e 2. São Paulo:Brasiliense, 1948.

PINTO, Edith Pimentel. (org).O escritor enfrenta a língua.São Paulo: FFLCH-USP, 1994.

SILVA, F. Dicionário de gíria.5a.ed.São Paulo: Prelúdio, s/d.

VIOTTI, Manuel. Novo dicionárioda gíria brasileira. 2a.ed. SãoPaulo: Gráfica Bentivegna,1956.

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