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A Adaga de Médici

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A Adaga de Médici

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R I O D E J A N E I R O • S Ã O PA U L OE D I T O R A R E C O R D

Cameron West

A Adaga de Médici

2009

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Nota do Autor

Reb, o narrador desta história, inspirou-se no homem que escreveu:

“O esforço supera qualquer obstáculo”

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Prólogo1491

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Com exceção de Deus e dos padeiros, toda a Itália estava ador-mecida durante a noite sufocante de agosto e o momento da grande descoberta — ou seja, todos, menos o inventor, que re-cuou atônito, afastando-se do calor de sua forja, com a adaga ainda esfriando, imponderável, na palma da mão. A lâmina agu-çada reluzia ao brilho alaranjado da forja, enquanto gotas de suor aglomeravam-se como frutinhas silvestres nos pelos de seus punhos vigorosos.

Colocando a adaga com a ponta para cima em um torno, o homem ergueu uma marreta pesada e bateu na ponta da arma com toda a sua força. A marreta de ferro se partiu como um me-lão maduro. Usando seu extraordinário poder de raciocínio, ele precisou esforçar-se para explicar o milagre. Só existia uma res-posta. Um ingrediente desconhecido havia sido acrescentado a essa liga metálica experimental.

Contemplando o firmamento de sua janela, o gênio refletiu sobre outra questão ainda mais profunda. Seria a sua inacreditá-vel descoberta utilizada para o bem ou para o mal? Enquanto as-sistia solenemente às fagulhas da sua forja subindo pela chaminé até os céus aveludados, o homem de Vinci tomou uma decisão.

E passaram-se cinco séculos.

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Vinte Anos Atrás

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Um

Afundei no sofá preto de couro do escritório espaçoso do meu pai, recostando-me em uma almofada que parecia um chiclete imenso e sedoso. A tensão no ar fazia o aposento vibrar. Dei uma olhada de relance para meu pai, que estava debruçado sobre a mesa, os cotove-los apoiados no tampo forrado de couro, a testa apoiada em uma das mãos. Seu rosto estava a uns 15 centímetros do intercomunicador, um objeto parecido com uma caixa, separado do telefone, cujo som era ainda pior do que os de hoje em dia. Metido entre os dedos da sua outra mão estava um lápis nº 2 que ele agitava para a frente e para trás.

A voz que saía do intercomunicador era a do guarda-marinha Hec-tor Camacho, falando em nome da Guarda Costeira.

— Sinto muitíssimo, senhor — disse Camacho, com uma isenção de ânimo profissional.

Meu pai estremeceu como se tivesse pisado em uma tachinha.— Está me dizendo que ele pode ter caído em qualquer ponto em

um raio de 150 quilômetros?— Estou dizendo é que...— Não conseguiu encontrar o avião? Não consegue entender a

importância disso, as consequências devastadoras... — O lábio superior do meu pai brilhava de suor.

— Procure acalmar-se, Dr. Barnett — disse Camacho. — Sei como deve ser difícil para o senhor, perder o... hã, o Sr. Greer.

— O Henry! — gritou meu pai, como se tivesse se lembrado de alguma coisa importante. — Deus... o Henry. — Eu sabia que

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Henry Greer era o piloto e o portador do malote que meu pai en-viara à França para pegar uma página das anotações de Leonardo da Vinci.

— Ele era seu parente? — indagou Camacho.Meu pai fingiu não ouvir.— Então não há como recuperar esse avião, de jeito nenhum?— Ele caiu em águas muito profundas, e provavelmente em alta

velocidade, senhor.Meu pai partiu o lápis amarelo e jogou as duas metades no chão.— Meu Deus!Remexi-me no sofá e comecei a achar que talvez fosse melhor sair

para dar uma volta. Mas fiquei.— Pois é — disse Camacho. — Sinto muito.Meu pai ficou calado durante o que me pareceu um minuto inteiro

antes que eu percebesse que estava chorando. Isso me impressionou a tal ponto que senti lágrimas brotando também nos meus olhos.

Pela caixinha, a voz de Camacho disse:— Senhor... hã, doutor?— Pode me telefonar se encontrarem alguma coisa? — pediu meu

pai, desesperado. — Qualquer coisa. Uma folha de papel. Um pedaço de folha de papel.

— Mas sem dúvida, senhor.— Um documento de qualquer tipo. Qualquer coisa em que haja

algo escrito.— Nós lhe telefonaremos imediatamente se recuperarmos alguma

coisa, por pouco que seja.Meu pai então se recompôs.— Obrigado, Hector — disse. — Até logo.— Até, senhor — disse Camacho e desligou.Meu pai ficou olhando o intercomunicador durante muito tempo.

Levantei-me e fui até onde ele estava, o barulho dos saltos dos meus sapatos abafado pelo espesso carpete marrom. Quando pus a mão no seu ombro, percebi que sua camisa estava molhada de suor.

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— Papai? — chamei-o, baixinho.Ele ergueu a cabeça vagarosamente e me olhou, choroso.— Ela se foi, meu filho — sussurrou. — Ela se foi.

Nas noites de julho, a umidade em Georgetown era tão intensa que parecia que tinham pendurado uma cortina de plástico de chuveiro na frente da lua. Às vezes, depois que minha mãe e meu pai me da-vam um beijo de boa noite e fechavam minha porta, eu saía rápido da cama e me ajoelhava diante da janela no segundo andar, abrindo-a e metendo cabeça para fora, para espiar a noite. Semicerrando os olhos, contemplava a lua amarelada e enevoada, e sentia o ar condicionado saindo por um lado e o ar quente e pegajoso penetrando pelo outro, até começar a suar ou um mosquito me picar.

Na noite do acidente aéreo, fiquei deitado de barriga para cima na cama, apoiado nos cotovelos. Minha mãe inclinou-se sobre mim, ves-tida com aquele seu roupão de algodão azul-claro, o rosto bem limpo, sem maquiagem. Inspirei o aroma de seu sabonete preferido, damasco, da Caswell Massey, na esperança de aliviar parte da minha apreensão. Fitei os olhos de minha mãe enquanto ela afofava meu travesseiro. Os olhos dela são da cor do carvalho, pensei. A serenidade que normal-mente irradiavam estava ausente naquela noite. E ela apertou demais o lençol ao redor dos meus pés. Chutei-o para afastá-lo.

— Você lavou a roupa hoje, né?— Nada como lençóis limpinhos, não? — disse mamãe, conse-

guindo sorrir. — Pronto, você já pode se acomodar agora.Seria impossível me acomodar. Deitei a cabeça na cama e minha

mãe puxou as cobertas até o meu queixo.— Papai vai vir me beijar?Ela suspirou.— Acho que não, filhinho. Não sei quando ele vai voltar. Ele está...

sabe, bastante chateado. — E aí cobriu a boca com a mão. Se chorasse, eu certamente teria um pesadelo.

— Mas foi um acidente — disse eu. — Não foi culpa dele.

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— Eu sei, mas... — Ela se sentou na beirada da cama e pôs a mão no meu peito. Quis segurá-la, mas meus braços estavam presos dos lados do meu corpo como os de uma múmia.

— Seu pai se sente responsável — disse ela. — Se ele não tivesse comprado as anotações para o museu ou se tivesse ido buscá-las em pessoa, em vez de mandar o portador do malote... Ele está mesmo... muito chateado, sabe.

— Ele vai se sentir melhor amanhã? E a festa no museu? Ainda vai haver festa? Não vai, vai? — Só o zunido baixo do ar condicionado. — É provável que ninguém nunca mais encontre a Adaga de Médici — eu disse, com um suspiro. — O que o Leonardo diria se soubes-se disso?

— O que aconteceu hoje foi uma tragédia. Para muita gente.— Eu podia ter feito alguma coisa para ajudar. Podia ter feito algu-

ma coisa.— Meu querido, você só tem 11 anos. Não podia ter feito nada.

Agora durma, sim? Tudo vai terminar bem.Ela me deu um beijo no rosto e puxou de leve o lóbulo da minha

orelha.— Sonhos dourados e um bom-bocado para você — murmurou ela

no meu ouvido. — Sonhos dourados e um bom-bocado.— Um bom-bocado bem grande — disse eu, inspirando ainda uma

vez mais o perfume dela. — Ah, mamãe...— Já sei. A luzinha da parede.Ela parou perto da porta, ligou a luzinha conectada a uma tomada

na parede e apagou a luz do teto.— As sombras dançam felizes...— ... na luz de naninha do Reb — murmurei, terminando nosso

ritual noturno. Ela percorreu o corredor, sem produzir ruído, mas fa-zendo o piso antigo ranger nos pontos habituais.

Tudo vai terminar bem. Tudo vai terminar bem. Gostaria de poder ter feito alguma coisa — pilotado o avião, talvez. Tudo vai terminar bem. Tudo.

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Estava sonhando com gravetos estalando em uma fogueira quando o grito da minha mãe me acordou. Sentei-me na cama na mesma hora e olhei pela janela, surpreso por ver tanta claridade. Seria a fogueira do sonho? Um segundo grito me tirou do meu transe onírico. Senti cheiro de fumaça e percebi que a luz vinha de labaredas de verdade, subindo lentamente pelas paredes externas da nossa casa de madeira.

— Mamãe! Papai! — gritei, quando uma janela explodiu em al-gum lugar no andar térreo. A fumaça passava por baixo da minha porta e subia como um fantasma vindo me pegar. Pulei da cama; o tapete me pareceu estranhamente quente sob meus pés descalços. Correndo para a janela, abri-a e empurrei a tela para que caísse. Em todos os lados, ao meu redor, as labaredas lambiam as paredes da casa. Olhando para cima, vi as tabuinhas de madeira que formavam o telhado pegando fogo e lançando brasas como se um milhão de vaga-lumes estivessem pairando no céu noturno. As sirenes dos caminhões de bombeiros pe-netraram o rugido do incêndio, e ouvi minha mãe gritando meu nome de algum lugar dentro da casa.

— Mamãe! — gritei, recuando de gatinhas, pela janela, de modo que os pés passassem antes do corpo. Fiquei pendurado no parapeito, segurando-o com todas as minhas forças, olhando para dentro do meu quarto, esperando alguma coisa acontecer... não sabia o quê. Minhas mãos começaram a tremer, mas continuei agarrado ao parapeito.

Exatamente quando o primeiro caminhão de bombeiros entrou correndo na nossa rua estreita, a porta do meu quarto abriu-se de su-petão e vi minha mãe de pé à porta, emoldurada pelas chamas. Nossos olhos encontraram-se, e ela gritou: “Reb! Pula!” A camisola dela esta-va pegando fogo. As vozes dos bombeiros me chamavam lá de baixo — ecos de um desfiladeiro distante. Quando minha mãe estendeu os braços para a frente e deu dois passos na minha direção, a casa estre-meceu e o teto veio abaixo, com um som que me lembrou mil ossos se partindo, esmagando minha mãe e levando-a para o além.

Por um momento, fiquei paralisado, suspenso em um lugar onde as garras do horror não podiam me tocar. Então, apoiando os pés no reves-

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timento de ripas de madeira da casa, uma dúzia de farpas penetrando nas minhas solas, empurrei a parede e girei em pleno ar, descrevendo um arco sobre a calçada e mergulhando na direção do chão. Ouvi gri-tos quando atingi o gramadinho junto ao grande olmo perto do meio-fio e rolei, colidindo com o tronco da árvore.

Depois o mundo todo escureceu.

Não me recordo do nome do médico que me disse que meus pais ti-nham morrido no incêndio. Mas sei que era homem, pois a voz era grossa e tinha vindo de algum ponto acima de uns cavalos-marinhos dourados que flutuavam no mar da gravata azul real.

— Pode olhar para mim, meu filho? — perguntou ele.Olhei para as criaturas estranhas, de caudas enroladas, invejando

sua imobilidade sedosa.— Estou olhando para o senhor — respondi, sem inflexão na voz.Ele segurou meu rosto nas suas mãos frias, engoliu em seco e disse

de novo, baixinho, quase chorando:— Está conseguindo me ver, meu filho?Percebi que ele estava provavelmente pensando nos próprios filhos.

Senti pena dele, por ser obrigado a me dar essa notícia. Mesmo assim, não consegui olhar para ele. Apenas deixei que me desse a notícia en-quanto eu me misturava aos cavalos-marinhos. Não era exatamente novidade.

Não sou filho de ninguém, pensei.

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O Presente

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Dois

Quebrei a janela panorâmica do terceiro andar do enorme chalé no momento exato em que o piso inteiro explodiu. Aterrissei de barriga para baixo sobre o telhado coberto de neve do segundo andar, desci deslizando de braços esticados à minha frente como o Super-Homem, 10 metros de piche íngreme. Tiros irromperam dos bosques próximos, arrancando nacos de ardósia em torno de mim. Fiz uma força enorme para virar o corpo antes de o telhado acabar.

Deslizei por sobre o beiral, os pés na frente, agarrando a imensa calha com as pontas dos dedos. Um dos homens na floresta berrou alguma coisa em russo. Ouvi dois tiros de metralhadora e o metal estilhaçando-se em volta de mim. A parte da calha à qual me agar-rei rangeu e rompeu-se, e eu caí de uma altura de 6 metros, mal conseguindo manter o pedaço de latão irregular sob minhas botinas. Agachei-me ao atingir a ladeira acentuada lá embaixo e desci o mor-ro catapultado pelo impulso, como um snowboarder em uma pista double-diamond.

Quatro caras pularam em dois snowmobiles, ligando os ruidosos motores de dois tempos, e partiram em meu encalço.

Saquei minha pistola do coldre de ombro, mirei o snowmobile que estava à extrema direita e abri fogo. O motorista levou as mãos ao peito e o veículo colidiu com uma árvore e explodiu.

Com o segundo veículo colado em mim, entrei em uma clareira inclinada e irregular. Cinquenta metros à minha frente, uma única asa-delta vermelha e amarela decolava do alto de um despenhadeiro. Mi-rando a asa-delta, agachei-me, sentindo a contração do salto nas coxas

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e um frio na barriga ao me preparar para o mergulho. Num instante, o chão sumiu e minha prancha evaporou-se no ar; o snowmobile atrás de mim manobrou bruscamente, a tempo de parar na beira do precipício.

Arqueando as costas, alonguei cada fibra dos meus braços e dedos para alcançar a asa-delta, passei zunindo pela asa e agarrei a armação frontal. A asa-delta mergulhou bruscamente. Com um pouco de força nos braços e alguns malabarismos, eu poderia ter voltado a subir, mas me inclinei para a frente e para a direita, e começamos a girar. Um, dois, três, quatro segundos eletrizantes, girando como um saca-rolhas, se passaram antes que eu neutralizasse o movimento com meus 90 quilos, desse um puxão na armação da asa-delta com toda a força, e a manobrasse de forma a fazê-la sair planando tranquilamente sobre o lago azul congelado.

A voz do diretor do estúdio dois fez-se ouvir pelo meu fone de ouvido.— Nooossa mãe do céu, Reb! O que aconteceu lá em cima?Prendi meu cinto de segurança à armação da asa-delta. Minhas

mãos tremiam, mas não do ar gelado da montanha. Era o “barato”, o tremor que sempre tenho quando voo ou caio. Não comento o “bara-to” com ninguém.

— Você pegou a parte do pulo na asa-delta? — disse eu no micro-fone de lapela, sentindo o refluxo da adrenalina.

— Claro que sim! Foi espetacular! Só que todo mundo aqui está enfartando. Quem mandou girar a asa-delta? Alguém te mandou...

— Marty, não houve nenhum acidente, houve?— É, não houve, não.— Então, por favor, me agradeça, sim. E depois, diga: “Perfeito”.

Não se esqueça de dizer isso.— Tá bem, tá bem — grasnou ele. — Obrigado, e um “Mais-que-

Perfeito” para você.— De nada.Eu tinha feito uma cena de arrebentar. Tinha sido fora de série,

mesmo. Mas eu sabia que seria. Sabia, quando convenci o Charlie,

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piloto da asa-delta, a descrever um parafuso em pleno ar. Ele não que-ria, é claro, mas prometi que daria tudo certo.

— Pense só em como a gente vai poder contar vantagem depois dessa — disse eu. — E além disso, qualquer coisa é só você abrir o cinto e saltar de paraquedas. — Eu só não disse ao Charlie que o meu paraquedas tinha ficado no trailer.

Nove câmeras filmando — uma só tomada. Uma manhã de traba-lho perfeita, e minha participação no filme estava encerrada. Mais tar-de eles iriam divulgar os cartazes do ator principal, o garboso e sempre impassível Tom Sloane, pedindo desculpas à linda moça que pilotava a asa-delta: “Desculpe chegar sem avisar.” Mas enquanto isso não acon-tecia, o Charlie estava me cumprimentando pelo meu desempenho. Sorri abertamente, soltei uma das mãos e puxei o lóbulo de uma das orelhas, torcendo para ele não perceber o meu “barato”.

Quando voltamos para o set, todos nos deram tapinhas nas costas e nos aplaudiram, todos agradeceram uns aos outros e trocaram despe-didas temporárias. Procurei terminar logo tudo aquilo, depois troquei de roupa e vesti uma camiseta preta e justa, jeans desbotados, jaqueta de couro de aviador e botinas Beatle feitas sob medida.

Estava me preparando para ir embora quando a produtora, uma mulher esguia chamada Rhonda, só cabeleira ruiva e lábios grossos, veio para o meu lado com o próprio ator principal a reboque.

Tom era quase da minha estatura e parecia-se muito comigo, cabe-los pretos ondulados e olhos castanhos, e por isso eu era o seu dublê. Sua melhor qualidade, porém, além dos seus dentes bonitos, era o qui-che de espinafre com cogumelos da sua esposa.

Ouvi a Rhonda dizendo a ele:— Está brincando? Com essa cena no trailer, o filme podia ser só

você na cama dormindo o tempo todo, que a gente ainda faturava 150 milhões. E isso só no país, hein.

Hoje eu tinha caído e voado, e ainda por cima curtido um “barati-nho”. Meti as mãos nos bolsos.

Tom me concedeu um rápido vislumbre do seu famoso sorriso.

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— Puxa, Reb, que loucura, rapaz, como eu fiz aquilo, hein?— Você não teve opção — respondi, dando de ombros. — Os caras

queriam acabar com você.— Boa resposta — disse Rhonda. — Coisa de macho, mesmo. Mas

e aquele parafuso, hein, Reb? Um dia desses você se ferra, homem. Não sabe o que quer dizer “perigo”?

— Perigo é o meu nome — disse eu, dando um sorriso forçado.Ela deu uma risada.— Vamos comemorar todos juntos, rapazes.— Ah, infelizmente não vai dar — respondi, virando na direção do

meu Jaguar XK-E 68 azul metálico. — Deixei umas toalhas molhadas na máquina de lavar. — Senti meu estômago contrair-se e percebi que era melhor dar o fora dali rapidinho.

Tom virou-se para a Rhonda.— Toalhas? — disse, indignado. — Que negócio é esse de toalha?Enquanto eu saía de fininho, ouvi a Rhonda botando panos

quentes:— Coisa de dublê... sabe, uns caras diferentes, meio deslocados...Parei no acostamento da estrada no primeiro lugar deserto que en-

contrei, caí de joelhos e vomitei sobre umas flores silvestres. A Rhonda quase tinha acertado. Mas eu não vou me ferrar um dia desses. Eu me ferrei já faz muito tempo.

O sol estava se pondo sobre um mar cintilante quando subi a curta estrada que leva até meu bangalô de Malibu. Deixei o motor funcio-nando uns instantes antes de desligá-lo, sem querer ouvir os estalidos solitários do sistema de exaustão do ar condicionado, nem o único car-deal cantando só para si mesmo, como se não importasse eu estar só de novo.

Relutante, entrei na casa, despi-me depressa, e vesti apressado meus velhos shorts de praia, uma camiseta esburacada, e meus tênis de corrida Etonic sei-lá-o-quê. Precisava sair e correr. Não queria. Mas precisava... respirar... suar.

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Às vezes, quando corro, esqueço-me de onde estou, até de quem sou, e me torno um selvagem de tanguinha, descalço — uma varinha em pé, feita de sangue e músculos, voando através de um capinzal alto e árvores molhadas, os macacos soltando seus gritos ao meu redor, e uma pantera espreitando-me, farejando meu odor e salivando.

Minha cabeça fica lúcida e tranquila naquela selva, de modo que consigo ver a fera negra antes que ela salte, e desviar-me, ou, na pior das hipóteses, olho-a nos olhos e rio antes que ela enterre seus dentes longos e brancos no meu pescoço. Vivo me esquivando para ganhar meu pão, e já sei como é a morte. Soube no segundo em que o teto caiu sobre a minha vida, no segundo em que soltei o parapeito. Na última vez em que morri, não tive chance de rir. Por isso é importante soltar aquela risada agora.

Percorri o circuito de 7 quilômetros das colinas de Malibu, alon-guei os músculos no caminho para a garagem até parar de suar, depois entrei e tomei uma ducha. Preparei mariscos com gengibre e ceboli-nha francesa fresca, abri uma garrafa de vinho, me servi de um copo e fui para a sala de estar levando meu jantar.

A “Pastoral” de Beethoven tocava suavemente ao fundo. Meus olhos fitaram de relance, no outro extremo da sala, depois das fileiras de li-vros de arte que preenchiam minhas estantes, as depressões no carpete recém-colocado, onde uma poltrona Morris pesada estava antes. Ten-tei não olhar aquele espaço vazio, mas minha força de vontade me abandonara desde que Emily partira três semanas antes, levando con-sigo sua poltrona. Não lhe pedi para ir embora, mas ambos sabíamos que nosso relacionamento estava destinado a fracassar. Vim para casa depois de uma filmagem e a encontrei fazendo as malas, dividindo as poucas coisas que tínhamos comprado juntos. As depressões de Emily não foram as primeiras. Naquele momento, jurei, uma vez mais, que seriam as últimas.

Ela dissera que não tinha raiva de mim, tinha raiva de si mesma — sendo terapeuta — porque vivia pensando que podia convencer gente instável a criar um lar. Não evitei que ela recitasse a ladainha dos

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meus pecados, embora já a tivesse escutado antes: eu assumia riscos beirando a autodestruição, tinha sentimentos de perda e sofrimento não resolvidos, tinha medo da intimidade e não conseguia me com-prometer. Devolvendo-me sua chave da porta à saída, disse-me que eu devia refletir sobre meus sonhos, depois terminou com a acusação de que eu era “obcecado pela Ginevra de’ Benci”.

Pedi perdão a Emily, do fundo do coração. Sabia que não era o homem certo para ela — nem para ninguém. Ela acariciou meu rosto com ternura, dizendo que assumia total responsabilidade pelos próprios erros. Escutei com toda a atenção o som dos sapatos dela no caminho que levava à casa, afastando-se, depois a porta do carro se abrindo e se fechando e o ruído do motor acelerando e desaparecendo quando ela se afastou. Depois não ouvi mais nada a não ser o canto do cardeal, nos meus ouvidos sempre o triste som de ser o erro de alguém.

Fui até onde estavam as depressões e sentei-me de pernas cruzadas no chão entre elas, amortecido pelo meu Orlon e por uma dor antiga. Meu olhar ergueu-se até a reprodução emoldurada do retrato de Ginevra de’ Benci, de Leonardo da Vinci — minha querida amiga Ginny — a única mulher a quem consegui me apegar.

— Ginny... — disse eu. — Me ajude. — Apertei os olhos com for-ça, massageando minhas têmporas pulsantes enquanto lágrimas rola-vam em torno das minhas narinas e sobre meus lábios. O sabor salgado delas me entristeceu mais ainda. Comecei a voltar ao passado, à época em que o tempo não tinha parado ainda, e aterrissei na National Gal-lery de Washington, onde meu pai fora curador de Arte Renascentista, e eu tinha passeado com meus pais pela Sala Widener Rembrandt, toda revestida de lambris de carvalho.

Sobre o rebuscado revestimento de madeira pendiam tesouros in-críveis, cada quadro, uma explosão de emoções, captando para sempre os sentimentos mais íntimos do tema, resgatando o pintor da poeira do tempo e dos ossos esquecidos. Ali, entre A Mulher com o Leque de Penas de Avestruz, O Filósofo, Menina com Vassoura, e o retrato de sua amada esposa, Saskia, sentava-se Rembrandt em pessoa.

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Ficávamos ali, meus pais e eu, a um metro do rosto do grande mes-tre — seu rosto macilento, enrugado, mais triste que o salgueiro-cho-rão mais triste — e meu pai sempre apontava com o dedo longo para diferentes partes da densa pintura e nos dizia que Rembrandt tinha 59 anos quando pintou o quadro, Saskia já havia morrido, e ele perdera as graças dos aristocratas, fora à falência e estava desesperado. “Mas olhe o chapéu dele”, dizia meu pai. “Como é delicado e macio, como o preto não é só preto, é tecido.”

Minha mãe pegava minha mão, como sempre fazia diante do auto-retrato, e um vento lúgubre passava através de nós vindo de 300 anos atrás. Mamãe e eu não conseguíamos tirar os olhos dos olhos de Rem-brandt; ambos sabíamos que estávamos enxergando a própria alma do pintor.

Ergui minha taça de vinho.— Ao sofrimento e à perda... e à desgraça — disse eu a Rembrandt

e a mim mesmo, tomando um gole. — E a você. — Cumprimentei Ginevra de’ Benci, lembrando-me das muitas vezes em que eu tinha ido ver minha Ginny escondido dos meus pais, minhas botinas Beatle tiquetaqueando enquanto eu passava por todos os turistas aglomerados como ovas de lagosta.

Seu retrato, o único quadro de Leonardo da Vinci nos Estados Uni-dos, fora a maior aquisição do período do meu pai como curador. Ele tinha comprado o quadro do príncipe de Liechstenstein por 5 milhões de dólares, nessa época a maior soma já paga por uma obra de arte. Para papai ela era muito especial. Para mim, era mais do que especial; tinha cativado meu coração curioso muito antes de eu poder tocar a moldura dourada, protegida por vidro do contato com a humanidade. E quando finalmente consegui tocá-la, Ginny se tornou minha única confidente.

Ela ouvia paciente minhas listas secretas de desejos natalinos, sem jamais alfinetar a minha consciência. Estava me esperando de braços abertos no primeiro dia em que vim da escola de ônibus sozinho. E também estava lá todos os dias depois desse, quando eu ia ver meu pai.

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Ginny e eu ficávamos juntos enquanto ele terminava o seu trabalho, o lugar inteiro só para nós dois. Éramos um espetáculo à parte.

Leonardo pintou o retrato de Ginevra em 1474 mais ou menos, quando ela já estava com 26 anos. Meu pai me contou que ela se considerava agressiva como um tigre, embora a pintura de Leonardo a faça parecer tão tristonha e meiga quanto a última pétala de uma rosa solitária.

Eu me perguntava o que ela teria conversado com ele, ali ao pé do junípero. Leonardo provavelmente pintara as mãos dela — mãos talvez ainda mais belas que as da Mona Lisa — e eu ficava furioso ao lembrar que alguém tinha serrado a pintura a óleo sobre madeira, 20 centímetros acima da base, só por maldade. Ninguém tinha o direi-to de cometer uma injustiça dessas com Ginny, nem tampouco com Leonardo. Ninguém.

Meu jantar esfriou. Cutuquei um marisco com o garfo, mas depois pus de lado, sem fome. Bebi o resto do vinho com voracidade, deixan-do escorrer umas gotas pelo meu queixo, que me mancharam a cami-sa. O telefone tocou. Pondo o prato e a taça na mesa, atendi.

Uma voz rouca sussurrou:— Rollo Eberhart Barnett?A primeira coisa que pensei foi que era um desses vendedores da

Publisher’s Clearing House, tentando me convencer a participar de algum sorteio: um homem com laringite.

— É o filho do Dr. Rollo Barnett, que foi curador da National Gallery?

— É, sim...Ouvi o homem tossindo asperamente e depois pigarreando.— Eu conhecia o seu pai.— Quem está falando?— Tenho algumas coisas para lhe dizer. Coisas importantes.— Do que está falando?— Tem uma passagem reservada para você no balcão da American

Airlines no Aeroporto de Los Angeles.

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— Uma passagem? Espere aí, é melhor me explicar que negócio é esse.

— Preciso conversar com você sobre o incêndio.Uma bile amarga me subiu à garganta. Os gritos da minha mãe

ecoaram na minha cabeça, vindos de duas décadas antes.— O que tem o incêndio?— Vá ao balcão — instruiu a voz rouca — e peça a passagem reser-

vada para Rollo Barnett. Não marquei o horário do voo, mas é melhor você vir amanhã bem cedo.

Fiquei um instante de pé com o fone colado à orelha, olhando para o jardim, apreensivo, confuso e amedrontado.

Um esquilo subiu correndo o tronco da árvore ao lado do meu deque. Esquilo, árvore, escuridão, estrelas. Cadê a lua? Ah, está ali. Espiei a lua até ver seu rosto familiar. O ar que me enchia os pulmões não era capaz de esfriar as chamas em minha mente. Percebi que ainda estava com o fone colado à orelha e o recoloquei no gancho com força.

Procurei o número do telefone da American Airlines e telefonei para lá. Uma funcionária chamada Kayla atendeu e me disse que al-guém tinha reservado uma passagem de primeira classe de Los Angeles para Denver, com horário em aberto.

— Aí diz quem reservou? — perguntei.— Um tal Sr. Harvey Grant — respondeu ela.— Harvey Grant... — murmurei. — Quem é esse Harvey Grant,

caramba?— Como disse, senhor?— Ah, perdão, eu estava falando sozinho.— Gostaria de marcar o voo agora?Passei os dedos pelos cabelos e senti alfinetadas incômodas se espa-

lhando pelo meu pescoço e ombros.— Senhor?— Hã, sabe o que é, não gosto muito de viajar de avião, só isso.— Eu também não. Posso fazer uma reserva para o senhor?

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— Bom, Kayla — respondi, devagar. — Acho que pode, sim. Qual é o primeiro voo amanhã de manhã?

Às 8h50 seguinte meu carro já estava no estacionamento do aeroporto e eu estava no terminal, com uma passagem no bolso de trás da calça e um envelope da American Airlines na minha mão crispada.

Encostei na parede ao lado de uma banquinha de nozes com toldo vermelho e branco e abri o envelope. Minha mão tremia um pouco; seria o início de um “barato”, já assim tão cedo? Lá dentro não tinha bilhete nenhum, só dois fax: instruções para ir a um determinado en-dereço em Denver e um artigo fotocopiado do Denver Post do dia an-terior. A matéria dizia:

Veneza, Itália No que está sendo chamado de uma tragédia extraordinária, Fausto Arrezione, proprie-tário de uma livraria-antiquário, morreu hoje em um incêndio que destruiu seu estabelecimento e tudo que havia nele, inclusive uma inestimável folha com anotações de Leonardo da Vinci. No início da semana, Arrezione havia telefonado para a Gallerie dell’Accademia, um museu e escola de arte renoma-do, para relatar a descoberta do documento que su-postamente continha um desenho do que Da Vinci descrevia como os “Círculos da Verdade” e aos quais, em vários de seus cadernos, se referia, dizendo se-rem a chave para o paradeiro da legendária Adaga de Médici.

Desde 1491, quando Lourenço de Médici en-comendou a Leonardo a arma para comemorar a morte do irmão mais novo de Médici, ela está en-volta em mistério. Giuliano, o irmão caçula, foi fa-talmente ferido por inimigos que pretendiam tirar a família florentina do poder. Leonardo nunca en-tregou a adaga. A lenda que a cerca começou com a descoberta, em 1608, de um manuscrito chamado Códice Arundel, no qual Leonardo anotou as seguin-tes palavras ao lado de um desenho de uma adaga magnífica:

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Através da algazarra do aeroporto, ouvi mentalmente a voz do meu pai pronunciando as palavras de Leonardo, palavras que eu havia de-corado ao lado do meu pai, o meu cotovelo encostado no dele no chão da sala de estar, a sua manga de algodão oxford roçando a manga do meu pijama de flanela:

“Aconteceu algo que não consigo explicar. Enquan-to fundia a adaga para Il Magnifico, dei com uma mistura de metais que depois de formada ficou qua-se tão leve quanto o ar. Por mais que me esforce, não consigo fazer com que retorne à fase líquida, nem pude fazer essa liga deformar-se, nem causar-lhe mossa alguma. E essa lâmina tem um fio mais afiado do que qualquer outro já visto pelo homem. O mundo certamente não está preparado para receber um material que poderia transformar-se em armas indestrutíveis e fatais. Não há como possa provir daí algum bem. A guerra é uma loucura bestial. Mas vis-lumbro, além da nossa era, um futuro glorioso no qual a ciência reinará benevolente, quando o homem, destituído de todo e qualquer mau propósito, poderá utilizar essa extraordinária descoberta para o mais nobre dos fins. Portanto, guardarei esta adaga para esse homem do futuro. E os Círculos da Verdade o levarão até ela.”

“Os Círculos da Verdade”, repeti comigo mesmo, em voz alta. O homem de Vinci, que comprava pássaros engaiolados para libertá-los, tinha descoberto uma liga indestrutível e sentiu a responsabilidade de mantê-la secreta para um homem do futuro. Tinha escondido a Adaga de Médici em algum lugar, quase 500 anos atrás, e deixado o segredo de seu paradeiro em algum tipo de mensagem codificada, que chamou de “Círculos da Verdade”.

Li rapidamente o último parágrafo da matéria, embora já adivi-nhasse o que dizia:

Em 1980, outra folha, encontrada em Amboise, França, que se pensava conter os “Círculos da Verda-de”, foi tragicamente destruída quando o avião par-

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ticular que a transportava para a National Gallery of Art de Washington, D.C., caiu no oceano Atlânti-co, matando o piloto portador do malote, que viajava sozinho. Desde esse incidente, ninguém tinha mais esperança de recuperar a legendária adaga, até essa descoberta recente, que os peritos dizem que podia incluir uma duplicata dos “Círculos”. Um porta-voz da Galleria dell’Accademia insistiu em confirmar que embora as anotações tenham sido vistas por alguém do museu, ninguém tinha tirado uma fotocópia delas. Pelo visto, as anotações se perderam no incêndio.

Apalpei o envelope. Não havia nada além disso. Dobrei a folha que continha as instruções e o artigo, meti-os no bolso da calça e comprei um saquinho de castanhas de caju torradas. O saco era vermelho e branco, como o toldo. Fui andando a esmo até um portão de embar-que deserto, sentei-me e meti algumas castanhas salgadas na boca, es-magando-as até transformá-las em pasta e a minha mandíbula começar a doer.

Leonardo. Meu pai. Os Círculos da Verdade. A Adaga de Médici. Quem seria Harvey Grant?

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