A África e os estudos africanos no Brasil

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/7/2019 A frica e os estudos africanos no Brasil

    1/8

    A frica e os Estudos Africanos no Brasil: Passado e Futuro 1

    Valdemir Zamparoni

    Uma das coisas que mais chamavam a ateno no passado e at hoje atrai o olhar demuitos visitantes estrangeiros a composio racial brasileira, fortemente marcada pelamiscigenao da qual em graus variados, a depender da regio do pas, sobressai acomponente de origem africana. No preciso ser antroplogo, socilogo ou acadmicode qualquer tipo para notar tal caracterstica. emprica, faz parte do senso comum se

    propalar que o Brasil um pas de negros e mestios. Alis, cada vez mais mestio deacordo com os dados censitrios de 2000 a partir dos quais o IBGE conclui que "nosltimos dez anos, houve reduo das unies entre pessoas da mesma cor" (1). Hojecerca de 76 milhes de pessoas (cerca de 44%) se assumem oficialmente como "pretas"e "pardas", o que faz com que o Brasil tenha o maior contingente de afro-descendentes

    do mundo (2). Embora por vezes os acadmicos sejam cegos e surdos ao senso comum,nesse caso no dava para evitar esta incontornvel pedra que se interpunha no caminho, moda da pedra drumondiana, e a academia brasileira, da medicina histria, passando

    pelas emergentes cincias sociais, produziu desde meados do sculo XIX, umaavalanche de teses e argumentos, que por vezes nos soam disparatados, acerca do tema.

    No passado a produo acadmica estava interessada na "questo negra", no "problemanegro", hoje est interessada nas "relaes raciais", o que no deixa de ser a outra faceda mesma velha moeda: o que interessou no passado e quase at os dias de hoje foramos negros e mestios no Brasil com pouca ou nenhuma referncia frica. Pode parecerque se esteja aqui fazendo caricatura, mas fica dessa literatura do passado a sensao deque esses negros brasileiros caram do cu ou brotaram da terra tal qual a cana-de-

    acar que cultivavam nos engenhos. Tnues e raras so as referncias frica e sculturas africanas dos quais originaram. Era quase um paradoxo: tnhamos negros e atmesmo africanos mas nada da frica.

    H uma dcada escrevi um texto no qual dizia que a marca da escravatura e ahegemonia branca tinham obscurecido a realidade e criado uma "invisibilidade", uma"farsa de olhar e no ver, ou no querer ver" que se traduzia particularmente no ensino

    brasileiro no qual, com raras excees, a presena negra estava restrita a algumaslamrias nas poucas pginas dedicadas escravatura e a frica e os africanos mastambm a sia apareciam no como possuidores de historicidade prpria mas comomeros apndices na histria da expanso europia. Passado esse captulo da histria

    europia desapareciam misteriosamente, deixavam de "existir".

    Qualquer brasileiro que tenha passado pelo primeiro grau certamente j ouviu falar dascidades-Estado gregas, do Imprio Romano, do Sacro Imprio Romano-Germnico, das

    potncias aliadas; de Alexandre, Nero, dos vrios Luzes, Napoleo, Churchill,Roosevelt, Hitler ou Stlin, mas quem j ouviu falar dos Ashantis, Iorubs, Hausss,Fulas, Bakongos, Makondes, Xhosas, Macuas e Swahlis? E do imprio doMonomotapa, dos reinos do Daom, do imprio Vtua, da Rainha Jinga, de MussaKeita, de Sundjata, de Chaka e Ngungunhane, Amlcar Cabral, Patrice Lumumba, Julius

    Nyerere ou Samora Machel? Algum j estudou a respeito? O que se sabe sobre essesnomes seno algumas palavras superficiais?

    1 Texto Publicado em Cincia e Cultura. vol.59 no.2 So Paulo Apr./June 2007

  • 8/7/2019 A frica e os estudos africanos no Brasil

    2/8

    Infelizmente, isso no se restringe histria: nas universidades brasileiras poucas so asdisciplinas destinadas ao estudo das literaturas ou artes africanas. Estas, em geral seinfiltram nas disciplinas dedicadas literatura e artes portuguesa, inglesa ou francesa,isso na feliz hiptese das pessoas encarregadas das mesmas serem docentes sensveis aesses assuntos.

    Essa prtica ilusionista no apangio da dita "histria tradicional" ou conservadora.Marxistas ou no, ortodoxos ou adeptos da "histria nova" todos parecem ser modernosadeptos de Hegel (3). Naquela mesma ocasio afirmei que o Brasil precisava reconhecerde fato que era herdeiro cultural da frica, que a construo da identidade passava "peloconhecimento da prpria histria, no no sentido de resgat-la idealisticamente, mas defaz-la presente como referncia cultural"(4). Pois bem, qual a referncia cultural quetemos da frica e dos africanos no Brasil? Qual a imagem da frica e dos africanos quecirculam em nossos meios miditicos e acadmicos e que ajudam a formar nossaidentidade?

    A resposta que o que ainda hoje predomina a de uma frica extica, terra selvagem,como selvagem seriam os animais e pessoas que nela habitam: miserveis, desumanos,que se destroem em sucessivas guerras fratricidas, seres irracionais em meio aos quaisassolam doenas desvastadoras. Enfim, desumana. Em outra vertente o continente reduzido a uma cidade, nem mesmo um pas. O termo frica passa, nesses discursos, aservir para referenciar um lugar qualquer extico e homogneo.

    Essas imagens no so aleatrias. Foram gestadas na Europa ao longo de sculos etomaram corpo no Brasil. Recentes estudos mostraram que os nossos homens decincia, particularmente mdicos, participaram ativamente da discusso e produo deconhecimento no mbito do racismo cientfico. Mas o pice dessa discusso ganhoucorpo no Brasil justamente no momento em que estava sendo questionada alegitimidade da escravido.

    Finda a escravatura, em 1888, parece que uma amnsia tomou conta do Brasil. Naverdade, no era uma amnsia natural mas proposital. Era preciso extirpar da histria

    ptria aquilo que era considerada uma ndoa prejudicial nova imagem do Brasil agoracada vez mais europeu devido ao crescente incentivo migrao branca em substituio fora de trabalho escrava. O Brasil no podia ficar de fora da nova moda europiarepresentada pelo positivismo, evolucionismo e darwinismo. Textos de Darwin eSpencer eram popularizados sobretudo na imprensa paulista, representante duma cidade

    progressista, "cientfica e laboriosa", suas teses impregnavam nossa emergente literaturanaturalista (5). Mas no se tratava apenas de importao equivocada edescontextualizada como a muitos pareceu(6). O declnio irreversvel da escravaturacomo sistema j vislumbrado com a sucessiva legislao abolicionista do ltimo quarteldo sculo XIX exigia repensar o futuro. As idias do darwinismo social no estavam

    pois fora do lugar; suas teses passaram a servir como critrios redefinidores dasdiferenas sociais no momento em que a relao senhor/escravo agonizava. A abolioem 1888, e a instalao da Repblica no ano seguinte, exigiam repensar a identidadenacional. Qual nao? O que fazer com o ex-escravo, agora tornado ao menosoficialmente cidado da nova repblica? A nova identidade nacional se fez visandoacentuar a diferena e a superioridade brasileira face aos vizinhos latino-americanos,

    republicanos sim, mas majoritariamente indgenas. Ao Brasil era preciso buscar ocaminho para inserir-se no rol das naes ditas superiores, por definio, brancas.

  • 8/7/2019 A frica e os estudos africanos no Brasil

    3/8

    Apesar de sua violncia e horror o trfico criara um fluxo cultural da frica para oBrasil e daqui para l, inclusive com a manuteno ou criao de novos laos familiaresdos dois lados do Atlntico como foi o caso das comunidades de "brasileiros" na fricaocidental, em especial o caso dos "aguds" no Benin e dos "tabon" em Gana, mastambm na Nigria e Togo (7), a partir de sua extino, isto paulatinamente

    desapareceu. Ficaram os laos simblicos cada vez mais tnues e a frica cada vez maisdistante. No universo do discurso oficial foi ainda mais grave. Tomemos um singeloexemplo: um livro didtico de "Histria do Brazil" para "uso da infncia brazileira",

    publicado em 1914 dedica trs sucintas frases escravido: uma meno chamada"Lei do Ventre Livre 1871; outra "Lei dos Sexagenrios" e outra abolio. A

    palavra escravo e escravido, portanto, so mencionadas somente trs vezes. Anecessidade de esconder das novas geraes, o nosso passado escravocrata e nossaimensa populao de origem africana, era to forte por parte das classes dirigentes

    brasileiras que no h ao longo desta obra de "histria ptria" nenhuma outra referncia escravido, que deu existncia ao pas (8).

    O momento seguinte em que vai emergir novamente a necessidade de se discutir aidentidade nacional se deu com a Semana de Arte Moderna de 1922, cuja existncia estassociada no s circulao das novas idias artsticas europias mas, principalmente, emergncia no cenrio nacional de novas classes sociais em particular a chamada"classe mdia" urbana cuja expresso poltica foi o chamado movimento tenentista. ASemana de 22, se propunha a repensar nao, a brasilidade, em oposio Europa com

    base na exaltao nas artes e literatura das nossas florestas, o nosso falar, a nossacomida, o nosso jeito de ser, o nosso folk-lore, a nossa gente, movimento que lanou as

    bases para o mito das trs raas, como componentes essenciais da nossa formao, queser amplamente explorado aps a Revoluo de 30 e particularmente durante o Estado

    Novo. Nesse momento foi preciso recolocar os negros na existncia nacional. Mrio deAndrade viajou pelo interior do Brasil em busca de nossas "razes" e coletou prticasculinrias, cantos de trabalhos e contribuies culturais de diversas origens africanas; osnegros foram pintados particularmente por Portinari que ao retratar um "lavrador decaf" escolheu com o modelo um negro, acentuando-lhe os traos fenotpicos, e no umdos imigrantes europeus que foram justamente trazidos para a lavoura cafeeira oudescritos, ainda que de maneira paternalista e caricata por Monteiro Lobato.

    No mbito acadmico a resposta necessidade de se repensar o lugar do negro naidentidade brasileira veio tona com o I Congresso Afro-Brasileiro realizado emRecife, em 1934 e a segunda edio em Salvador em 1937, com Gilberto Freyre, Edson

    Carneiro, Manuel Querino. Nesses eventos a frica no era objeto prprio de estudo.Era to somente referida. O que se queria efetivamente era compreender a dita "questonegra", para a constituio de uma imagem de povo, para a formao do carternacional brasileiro, alis ttulo de famoso livro (9). Em que pesem as diferenasinterpretativas, esse grupo rompeu com as teses de Nina de Rodrigues e passou aencarar a mulatidade brasileira como positiva. O mulato, e o mestio em geral, deixoude ser visto como o ser degenerado e passou a simbolizar, em sentido positivo, a sntesecultural brasileira. J em 1923, o jurista negro Evaristo de Moraes no artigo "Brancos,negros e mulatos"(10) dizia que a "fuso tnica" era essencial e traria benefcios para acivilizao. A disseminao distorcida dessa formulao, que alguns creditam a GilbertoFreyre, seu mais conhecido apologista, levou paulatinamente definitiva consolidao

    do mito das trs raas e a instituio de outro, este sim da lavra de Freyre: o de que oBrasil era sui generis pois, contrariamente a outras experincias escravocratas no

  • 8/7/2019 A frica e os estudos africanos no Brasil

    4/8

    mundo, era uma democracia racial. Todos quantos conhecem a obra de Freyre sabemque ele assentava suas teses sobre a premissa de uma especificidade colonial

    portuguesa. Para ele a alma portuguesa devido ao carter miscigenado do prpriopovo portugus e ao cristianismo era inatamente aberta miscigenao e avessa aqualquer forma de racismo.

    No Brasil, antes que o mito da democracia racial se propagasse, as imagens de que africa era sinnimo de atraso e barbarismo contaminou at mesmo os prprios negros

    brasileiros que buscavam distanciar-se da mesma, conforme apontava artigo publicadopelo Getulino, um jornal negro:

    "Segundo doutrina de um 'cara' qualquer 'yankee' a Amrica para os americanos.Nesta conta no entrou o negro, o chim, o nippon etc., ainda que nascidos ali. Deste,porm, o negro o que mais tido como indesejvel. E, naturalssimo, portanto, queessa gente assim oficialmente repudiada trate de dar o fora da terra madrasta ondetiveram a felicidade de nascer. Que v para a frica, expulse, se puder, os donos

    daquela 'pinia', banque o domador de feras, aprenda o idioma indgena, ou faaprevalecer o seu, vista uma tanga ou faa com que o preto indgena vista casaca e aspretinhas, tambm indgenas, usem p de arroz e carmim, ou que as que vo metam-seem tangas Tudo isso est muito bom, mas, que preto brasileiro pense em aderir a essaidia, eu reputo o mximo de absurdo no mnimo de tolerncia possvel. A frica paraos africanos, meu nego. Foi para o teu bisav cujos ossos, a esta hora terra reverterame em p se tornaram. A frica para quem no teve o trabalho de cultivar e darvitalidade a um imenso pas como este. A frica para quem quiser, menos para ns,isto , para os negros do Brasil que no Brasil nasceram, criaram e multiplicaram. Nem

    por brincadeira, se pense que negro brasileiro faa alguma cousa que preste em frica. // No seria melhor que tu fosses mais brasileiro, isto , que tu fosses patriota em

    benefcio desta terra bendita que te viu nascer, que te acolhe como me carinhosa, estaterra que nossa // nossa j ouviu? Nossa porque fomos ns que a edificamos, nsque lhe demos tudo, at o sangue, para lhe garantir a integridade quando das invases deestrangeiros. O Brasil para os brasileiros, que quer dizer para os negros, j ouviu?/ / ns estamos em nossa casa" (11)

    IDENTIDADE BRASILEIRA Em que pese a negao em se aproximar da frica, odiscurso de uma lucidez mpar. Eram cientes de que a volta para frica impunha doiscaminhos: adaptar-se aos hbitos da terra ou tornar-se opressor dos povos locais, comofizeram os negros norte-americanos na Libria. No reivindicam nenhuma pertena

    identitria frica, mas ao Brasil, terra que ajudaram a construir. Reconhecem-seenquanto brasileiros e sabiam claramente que esta era sua terra. Isso poderia ter tidodesdobramentos polticos na medida em que no transferiam a satisfao de suasnecessidades nem a resoluo de seus problemas para uma terra distante.

    Logo aps a Revoluo de 30 surgiu em So Paulo, em 1931, a Frente Negra Brasileira,como uma organizao inspirada no esprito nacionalista ento em voga. A formaorganizativa e o discurso era extremamente prximo do Movimento Integralista que

    preconizava, direita, a defesa dos valores nacionais. O slogan dos integralistas era"Deus, Ptria e Famlia" e da Frente Negra era "Deus, Ptria, Raa e Famlia". Paratermos uma idia de como se posicionavam em relao ao tema da raa ento em

    ebulio, tomemos trecho de artigo de seu rgo oficial, A Voz da Raa: "Que nosimporta que Hitler no queira, na sua terra, o sangue negro! Isso mostra unicamente que

  • 8/7/2019 A frica e os estudos africanos no Brasil

    5/8

    a Alemanha Nova se orgulha da sua raa. Ns tambm, ns brasileiros, temos raa. Noqueremos saber de arianos. Queremos o brasileiro negro e mestio que nunca traiu nemtrair a Nao" (12) Este discurso claramente se ope ao arianismo em moda semultrapassar entretanto a definio de raa ento aceita como critrio identitrio. A fricae os africanos no jogam aqui qualquer papel na constituio da identidade negra

    brasileira.

    Ps Segunda Guerra Mundial e com a falncia dos regimes defensores do racialismo,emergiu no ambiente acadmico brasileiro uma nova gerao que no pactuava comFreyre e que claramente se distanciava do discurso racialista. Caio Prado Jr, FlorestanFernandes e depois Otvio Ianni entre outros discpulos de Roger Bastide, comearamem So Paulo a estudar o negro sob perspectivas novas, fossem inspiradas por Weber,fosse por Marx: os temas passaram a ser a escravido enquanto sistema de opresso ealienao e os modernos conflitos raciais, relaes de classe. A frica e os africanos,contudo, continuaram ausentes.

    A frica s re-emergiu no Brasil, numa perspectiva das relaes internacionais eanticolonialista com Jos Honrio Rodrigues(13) em obra que coincidiu com odesencadear da luta armada de libertao nacional na Guin-Bissau e Angola e com achamada poltica externa independente levada a cabo pelo governo Jnio Quadros. desse perodo a criao de trs centros de estudos africanos existentes ainda hoje noBrasil. Em 1959 foi fundado o Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) naUniversidade Federal da Bahia; em 1961 o Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiticos (IBEAA) ligado presidncia da Repblica, fechado com o golpe militar; em1963, o Centro de Estudos e Cultura Africana, junto Faculdade de Filosofia daUniversidade de So Paulo, hoje denominado Centro de Estudos Africanos (CEA) e, em1973, o Centro de Estudos Afro-Asiticos (CEAA) do Rio de Janeiro, uma espcie deherdeiro do IBEAA.

    Aps o golpe militar de 1964, novamente o Brasil afastou-se da frica e voltou asubordinar sua poltica externa africana aos interesses colonialistas portugueses.Principalmente aps o AI-5 (1968) os militantes portugueses e africanos exilados noBrasil foram perseguidos e, por alguns anos, falar de frica, principalmente dascolnias portuguesas onde os movimentos nacionalistas assumiam paulatinamente suaopo socialista, constitua tabu e motivo para prises. Mas, aos poucos, nos anos 1970com a expanso da luta armada nas ento colnias portugueses, a frica voltou cena,agora no mais restrita aos meios acadmicos mas como uma nova fora na constituio

    identitria brasileira em particular entre a comunidade negra. Muitos eram militantes deorganizaes clandestinas de esquerda e tinham a convico de que a luta dos negrosbrasileiros deveria ser inspirada mais na luta travada na frica do que no movimentonegro norte-americano. Mas essa no era uma posio unnime o que levou adissidncias (14). Por fim, em 1978 foi criado o Movimento Negro Unificado. Sob umregime ditatorial, e como os temas mais candentes da realidade brasileira no podiamemergir, houve de uma maneira catrtica, certa apropriao pela esquerda brasileira dostemas levantados pelos movimentos de libertao africanos. Aos poucos, contudo, e medida que esfriavam as notcias sobre as ex-colnias, a presena dos temas "africanos"foi perdendo espao para uma agenda das questes raciais muito mais pautada pelaexperincia da discusso das relaes raciais norte-americanas.

  • 8/7/2019 A frica e os estudos africanos no Brasil

    6/8

    A partir de 1972/73 o prprio regime militar comeou a perceber a irreversibilidade dosprocessos de independncia, e que se manter em oposio aos mesmos era franquear ospromissores mercados a outros parceiros e desenhou-se aquilo que ser conhecida comoao diplomtica pragmtica. J no importava a cor fsica ou ideolgica dos parceiros,desde que comprassem produtos brasileiros. Essa poltica gestada numa das fases mais

    repressivas da ditadura militar brasileira sob comando do general Garrastazu Mdici, foiseguida por seu sucessor general Geisel; o Brasil passou ofensiva reconhecendo adeclarao unilateral de independncia proclamada pelo Partido Africano para aIndependncia da Guin e Cabo Verde (PAIGC) e foi um dos primeiros pasesocidentais a reconhecer o governo do Movimento Popular para Libertao de Angola(MPLA). Para se ter idia de tal pragmatismo coube a um general Figueiredo ser o

    primeiro presidente brasileiro a visitar a frica.

    Os anos 1980 foram marcados por um refluxo nas atividades voltadas para frica,talvez como um reflexo de igual refluxo nas relaes econmicas entre o Brasil e aquelecontinente, igualmente afetados pela crise, mas principalmente porque com a "Abertura"

    poltica pde-se finalmente resgatar os estudos acerca das relaes raciais brasileiras,agora com a perspectiva de constituio de uma sociedade democrtica.

    Mas qual o lugar da frica no atual cenrio brasileiro? Com certa simplificao,podemos dizer que de, maneira geral, prevalece em um polo certa imagem hegeliana, eno outro, no menos exotizante, uma "Mama frica", originria, profunda, virgem,

    paradisaca, que serviria de inspirao para uma poltica anti-racista no Brasil: persegue-se uma histria da "verdadeira frica", de um tempo na qual esta viveria num paraso,conspurcado pelo colonialismo. Os africanos e a frica que se busca sob esta

    perspectiva aquela colocada num freezer, onde a cultura se inscreve num tempomtico, que se repete, onde no h criao, nem histria (15). Essa imagem mitificadada frica tem dado lugar a usos e abusos (16). Nessa mesma tica cria-se um tipo "oafricano", uma cultura "africana" que supostamente corresponderia ao continente. difcil crer que essa busca de inspirao, a-histrica, na histria, possa efetivamenteajudar de maneira slida na formao de uma conscincia poltica e social anti-racista.

    Temos j desde 2002 uma lei federal (10.639) que torna obrigatrio o ensino da histriada frica e da cultura afro-brasileira do ensino fundamental ao mdio, mas o desafiofundamental que encontramos capacitar pessoas para que ambas os plos dicotmicossejam superados. O que fazer diante desse quadro? Minha contribuio e de meuscolegas, poucos ainda verdade, tem sido no sentido de batalhar para que os estudos

    africanos ampliem espao no Brasil, principalmente atravs da introduo de cursos nasuniversidades que capacitem, mesmo que superficialmente, novos formadores sociais. Enisso temos tido certo xito. H vinte anos havia no Brasil cerca de meia dzia dedisciplinas voltadas para os estudos africanos em universidades brasileiras, hoje seunmero incontvel e continua a crescer. Nestes ltimos anos tem sido realizadosdezenas de concursos pblicos para professores de estudos africanos em universidades

    pblicas. As instituies privadas seguem caminho semelhante. Multiplicam-se pelopas afora cursos de "especializao", de extenso e de "capacitao" de professores.Surgiu finalmente no pas um programa de ps-graduao em estudos africanos e asagncias de fomento cientfico e acadmico, federais e estaduais, parecem finalmentedespertar de sua letargia quanto ao tema e ainda que timidamente, ensaiam passos para

    apoiar iniciativas e novos liames entre a as comunidades acadmicas brasileira eafricanas. Enfim, h um onda crescente que envolve tambm a publicao de livros e

  • 8/7/2019 A frica e os estudos africanos no Brasil

    7/8

    materiais didticos diversos. Tudo isto nos parece extremamente importante poisenquanto a frica permanecer desconhecida dos brasileiros, tanto direita, quanto esquerda, tanto os reacionrios racistas, travestidos de liberais, quanto os que labutamarduamente para sua extino, vo continuar prisioneiros de uma viso da frica que foicriada para dominar.

    Valdemir Zamparoni pesquisador do Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) edocente da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

    NOTAS E REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    1. www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/26122003censofamiliashtml.shtm .

    2. Populao total: 169.872.856 sendo branca: 91.298.042 (53,75%); parda: 65.318.092

    (38,45%); preta: 10.554.336 (6,21%); amarela: 761.583 (0,44%); indgena: 734.127(0,43%). Cf.http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/populacao/cor_raca_Censo2000.pdf.

    3. Hegel, G. W. F..Lecciones sobre la filosofia de la histria universal. Buenos Aires,Revista de Occidente, 1946.

    4.. Zamparoni, V. "Estudos africanos no Brasil: Veredas". In Revista de EducaoPblica, v.04, n.05, pp. 105-124, 1995.

    5. Scwarcz, L. M. O espetculo das raas. So Paulo, Companhia das Letras, p. 32.1993.

    6. Skidmore, T. Preto no branco. Raa e nacionalidade no pensamento brasileiro. Riode Janeiro, Paz e Terra, 1976.

    7. Guran, M. "Da bricolagem da memria construo da prpria imagem entre osAguds do Benim". In Afro-sia, 28, pp. 45-76, 2002 e do mesmo autorAguds osbrasileiros do Benim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Gama Filho, 2000; Amos, A. M."Afro-brasileiros no Togo: a histria da famlia Olympio, 1882-1945",In Afro-sia, 23,

    pp.173-194, 1999 e Amos, A. M. e Ayesu, E. "Sou brasileiro: histria dos tabom, afro-brasileiros em Acra, Gana", In Afro-sia, 33, pp. 35-65, 2005 e ainda Law, R. "Acomunidade brasileira de Uid e os ltimos anos do trfico atlntico de escravos, 1850-66."In Afro-Asia, 27, pp.41-77, 2002.

    8. Lacerda, J. M. de. Pequena Histria do Brazil, por perguntas e respostas para usoda infncia brazileira. [Revista e aumentada por Luiz Leopoldo Fernandes Pinheiro],Rio de Janeiro, Francisco Alves & Cia, 1914, pp. 129-130.

    9. Para uma anlise do significado de tal postulao ver o pioneiro: Moreira Leite, D. Ocarter nacional brasileiro: histria de uma Ideologia. 4 ed., So Paulo, Pioneira,

    1983. (1 edio de 1954).

    http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/26122003censofamiliashtml.shtmhttp://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/populacao/cor_raca_Censo2000.pdfhttp://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/populacao/cor_raca_Censo2000.pdfhttp://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/26122003censofamiliashtml.shtmhttp://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/populacao/cor_raca_Censo2000.pdfhttp://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/populacao/cor_raca_Censo2000.pdf
  • 8/7/2019 A frica e os estudos africanos no Brasil

    8/8

    10. Getulino, Ano I, n. 23, 30/12/1923.

    11. Getulino, ano II, n. 64 de 20/12/1924.

    12. A voz da raa, ApudBastide, Roger. "A imprensa negra do estado de So Paulo",

    Estudos Afro-brasileiros, So Paulo, 1983, p. 133.

    13. Rodrigues, J. H. Brasil e frica outro horizonte. Rio de Janeiro, CivilizaoBrasileira, 1961.

    14. Esses grupos estavam reunidos no Rio de Janeiro e em 1972 em decorrncia dediscordncia um grupo criou a Sociedade de Intercmbio Brasil-frica (Sinba). Em1975 o grupo se reunificou e criou o Instituto de Pesquisa da Conscincia Negra(IPCN). Cf. http://arv_afrobrasileiras.blig.ig.com.br/, em 10/12/2003.

    15. Mudimbe, V. Y.The idea of Africa. Bloomington, Indiana University Press; London,

    James Currey, 1994.

    16. Sansone, L. "Da frica ao afro: uso e abuso da frica entre os intelectuais e nacultura popular brasileira durante o sculo XX".In Afro-sia, v. 27, pp. 249-269, 2002.