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A África Fora de Casa - Sociabilidade, Trânsito e Conexões Entre Os Estudantes Africanos No Brasil
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E MUSEOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUO EM ANTROPOLOGIA
Ismael Tcham
A FRICA FORA DE CASA
Sociabilidade, trnsito e conexes entre os estudantes africanos no Brasil
Dissertao de Mestrado
Recife-PE, 2012
Ismael Tcham
A FRICA FORA DE CASA Sociabilidade, trnsito e conexes entre os estudantes africanos no Brasil
Dissertao de Mestrado apresentada junto ao
Programa de Ps-Graduao em Antropologia /
(PPGA) da Universidade Federal de Pernambuco/
(UFPE), como requisito para a obteno do ttulo de
Mestre em Antropologia.
Orientador: Prof.Dr. Antonio Motta
Fevereiro, 2012.
Catalogao na fonte
Bibliotecria Maria do Carmo de Paiva CRB-4 1291.
T249a Tcham, Ismael. A frica fora de casa : sociabilidade, trnsito e conexes entre os
estudantes africanos no Brasil / Ismael Tcham. - Recife: O autor, 2012. 99 f. ; 30 cm.
Orientador: Prof. Dr. Antonio Motta. Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco,
CFCH. Programa de Ps-Graduao em Antropologia, 2012. Inclui bibliografia e anexos.
1. Antropologia. 2. Intercmbio educacional. 3. Programas de
intercmbio de estudantes frica - Brasil. 3. Integrao social. 4. Pluralismo cultural. 6. Tolerncia. I. Motta, Antonio (Orientador). II. Ttulo.
301 CDD (22.ed.) UFPE (CFCH2012-48)
Ismael Tcham
A FRICA FORA DE CASA: SOCIABILIDADE, TRNSITO E CONEXES ENTRE OS ESTUDANTES AFRICANOS NO BRASIL.
Dissertao apresentada ao programa de Ps-
graduao em Antropologia da Universidade
Federal de Pernambuco como requisito
parcial para a obteno do ttulo de Mestrado
em Antropologia.
Aprovado em: 15 de fevereiro de 2012.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Antonio Carlos Motta de Lima (Orientador)
Programa de Ps-Graduao em Antropologia - UFPE
Prof. Dr. Peter Schrder (Examinador Titular Interno)
Programa de Ps-Graduao em Antropologia - UFPE
Profa. Dra. Rachel Rocha de Almeida Barros (Examinadora Titular Externa)
Instituto de Cincias Sociais - UFAL
________________________________________________________________ Profa. Dra. Mnica Franch (Examinadora Titular Externa)
Programa de Ps-Graduao em Antropologia - UFPB
Recife-PE, 2012
Dedicatria
A minha famlia,
pela compreenso e o estmulo
em todos os momentos.
Agradecimento
Ao longo desta minha trajetria acadmica que corresponde o mestrado e
das etapas precedentes, muitos foram os momentos de realizaes positivas, percalos,
agruras e alegrias e, muitas ocasies de emoes fortes e contraditrias que terminavam s
vezes com lagrimas nas madrugadas aquecidas de saudades de tudo que me pertencia. So
quase (10) dez anos vivendo como peregrino de saber. Apesar da distncia com o solo
ptrio nunca vivi solitariamente esta aventura.
Pois, admito ser uma vivncia rica em experincias, procedimentos e
condutas na busca pela educao superior que levo como uma lio em minha orientao na
vida social e acadmica. O meu agradecimento vai, pois, para todos aqueles que, mais do que
me ajudaram e seguem ajudando-me, longe ou perto, estando sempre ao meu lado.
Os meus sinceros votos de gratido tambm vo, para aqueles que, mais do
que transmitiram o conhecimento, sempre me incentivaram na procura da Sabedoria, aquela
que no se aprende nos livros...
Citar nomes agora pode ser extremamente arriscado, de modo que, posso
correr o risco de deixar algum injustamente esquecido. Ainda assim, gostaria de fazer alguns
agradecimentos especficos:
Ms Juliana Holanda, Prof. Dr. Moises de Melo Santana, Prof.
Dr. Antonio Freitas a vocs um obrigado especial por se fazerem sempre presentes e me darem, continuamente, fora
para prosseguir.
Ao Prof. Dr. Antonio Mota, a quem agradeo pelas oportunidades que me
ofereceu em participar de vrios congressos, encontros, cursos e seminrios. Agradecimento
especial pelo apoio, orientao excelente e as conversas, que mais do que esclarecer ou
fornecer pistas de investigao, foram autnticas de terapias para renovar energias e
continuar o trabalho.
Deste sempre procurei que o mestrado no fosse uma aquisio egosta de
conhecimentos, mas que constitusse, desde a primeira aula at a ltima linha da dissertao,
uma forma de melhor servir a sociedade e principalmente populao pesquisada.
Para finalizar, agradeo a receptividade de todos interlocutores traduziu-se
num importante fator de incentivo ao longo de toda a realizao desta dissertao, tendo
mesmo levado criao de laos de amizade, de forma que, por altura da minha aprovao no
processo seletivo de doutorado recebi no meu facebook seus correios desejando felicidades.
Espero que este trabalho constitua um instrumento, ainda que muito pequeno, possa
proporcionar s nossas universidades e gestores dos pases signatrios dos acordos de
cooperao educacional um maior debate para despertar na direo de uma efetiva insero do
diferente, identificado neste caso, pelos palopianos vinculados ao Programa Estudante
Convnio de Graduao.
RESUMO
A mobilidade espacial com fins de estudos um processo histrico e se manifesta de diversas
formas dependendo de acordos firmados entre os pases ou instituies envolvidos e seus
reflexos so sentidos em todas as dimenses de quem a vive. Pois, construo de uma poltica
de intercmbio coerente tem que ter por base duas preocupaes indissociveis: por um lado
regulao dos fluxos dos intercambistas e, por outro, a criao de instrumentos que facilitem o
acolhimento e a integrao destes. Desta forma, a presente pesquisa tem como finalidade de
compreender as dinmicas e os processos de sociabilidade e de reconfigurao identitria dos
estudantes oriundos dos Pases Africanos de Lngua Portuguesa-PALOP, vinculados ao
Programa Estudante Convnio de Graduao - PEC-G em duas Universidades Federais no
Nordeste do Brasil: UFPE e UFAL. Metodologicamente, o trabalho foi organizado em trs
partes: primeiramente realar, a partir de uma perspectiva diacrnica, a presena dos
estudantes estrangeiros nas universidades e nas escolas desde a Idade Mdia com destaque na
histrica mobilidade estudantil no contexto africano. Posteriormente averiguarmos os laos
culturais entre o Brasil e a frica tomando-os como determinantes estruturais que justifiquem
em parte a presena dos palopianos nas duas Instituies pesquisadas para depois realizar o
nexo com suas implicaes econmicas, polticas e da evoluo de aes diplomticas
recentes nas duas direes. Por fim, o enquadramento terico deste trabalho diversificado,
conjugado com os dados coletados no campo. Compondo um discurso vivo dos palopianos
relativo sociabilidade entre si e com o outro, revelando percepes de estigmas e esteretipos construdos socialmente, o que sinaliza a particularidade de seus percursos e
vivncias nesta dispora. Conclui-se mostrando que a mobilidade estudantil uma tendncia
global contempornea. Neste sentido ela sensibiliza a adoo de polticas de integrao
especificas, resguardando valores como diversidade e tolerncia.
Palavras-chave: circulao, internacional, estudante, sociabilidade, integrao, mobilidade
ABSTRACT
The spatial mobility with study purposes is a historical process and is manifested in different
ways depending on the agreements signed between countries or institutions involved and their
effects are felt in all dimensions of those who live it. Construction of an exchange student
coherent policy must be based on two inseparable concerns: one regulating the flow of
exchange students, and secondly creation of tools that facilitate the reception and integration
of them. So, this research aims to understand the dynamics and sociability processes and
identity reconfiguration of the students from the African Portuguese Speaking Countries-
PALOP, bound to the Graduate Student Program Agreement - PEC-G in two Federal
Universities in Northeast Brazil: UFPE and UFAL. Methodologically, the work was
organized into three parts: firstly to punctuate from a diachronic perspective the presence of
foreign students in universities and schools since the Middle Ages with emphasis on the
historical student mobility in African context. Later we ascertain the cultural links between
Brazil and Africa taking them as structural determinants in part to justify the presence of the
students from the African Portuguese Speaking Countries in two researched institutions then
take nexus with its economic implications, political and recent evolution of diplomatic actions
in both directions. Finally, the theoretical framework of this work is diverse, in conjunction
with field data collected. Composing alive speech on students from the African Portuguese
Speaking Countries of sociability among themselves and with the "other", revealing
perceptions of stigma and stereotypes socially constructed, which signals the particularity of
their journeys and experiences in abroad. It concluded by showing that student mobility is a
contemporary global trend in this direction, to sensitize the adoption of specific integration
policies safeguarding the values of diversity and tolerance.
Keywords: circulation, international, student, sociability, integration, mobility
Sumrio
Introduo 1
Estrutura e desenvolvimento do trabalho
Perspectiva metodolgica adotada 5
PARTE 1 FRICA EM MOVIMENTO 12
1.1. A mobilidade internacional de africanos--------------------------------------------------12
1.2. A frica de volta ao Brasil-------------------------------------------------------------------18
1.3. PEC-G/PEC-PG: Cooperaes Bilaterais Educacional entre o Brasil e a frica-----21
PARTE 2 - EXPERINCIAS E CONTRASTES DA VIDA FORA DE CASA 26
2. 1. Trnsitos e conexes: os estudantes africanos no Brasil---------------------------------26
2.2. Quando os estudantes chegam ao Brasil ---------------------------------------------------30
2.3. Permanncia e manuteno-------------------------------------------------------------------34
2.4. Lugares, convivncias e adaptao----------------------------------------------------------37
2.5. Como eles pensam sobre os que lhes acolhem?------------------------------------------46
PARTE 3 - TEATRALIZANDO AS DIFERENAS 53
3.1. Torneios amistosos ou campo de batalha?----------------------------------------------53
3.2. Nos espao urbano: festas, msica e a pertena------------------------------------------61
3.3. Permanncia e mudanas de hbitos--------------------------------------------------------66
3.4. E o futuro a quem pertence?-----------------------------------------------------------------69
CONSIDERAES FINAIS 75
Referncias bibliogrficas 84
ANEXOS
Anexos-----------------------------------------------------------------------------88
Quadro I: Mobilidade dos estudantes entrevistados-----------------------------------------88
Quadro II: Mobilidade de Estudantes do PEC-G do PALOP na UFPE/2011------------90
Quadro III: Mobilidade dos Estudantes PEC-G do PALOP na UFAL/2011-------------90
1
Introduo
O objetivo principal deste trabalho compreender lgicas de sociabilidade,
configurao e reconfigurao identitrias dos estudantes africanos vinculados ao Programa
Estudante Convnio de Graduao-PEC-G a partir das suas vivncias temporrias em duas
cidades nordestinas: Recife e Macei.
O Brasil um exemplo inscrito na histria de como os lugares de encontro de
culturas diferentes se tornam privilegiados na observao de culturas em movimento. As
identidades na sociedade global se movem cada vez mais na direo e na aceitao de
sociedades interculturais, onde se evidenciam uma interao de vrias identidades tnicas e
culturais.
Esta realidade social em que diversos grupos co-habitam em uma nica sociedade
nacional, compartilhando vises do mundo ligados as crena e aos valores, de uma certa
forma, faz parte do continente africano cujas dinmicas sociais e culturais de diversas
tradies ancestrais tambm abrangeram quase o mundo inteiro atravs do processos de
deslocamento forado dos seus filhos para vrias partes do planeta.
Cabecinha e Cunha (2008, p. 7) lembram que estamos diante de uma realidade
cultural contempornea e dinmica que escapa a qualquer tentativa de definio demasiado
fechada. Neste sentido, o intercultural deve ser visto como adjetivo, que nesse conceito existe
de processual.
Apesar desta dinmica social, as lgicas identitrias permanecem intimamente
ligadas aos lugares, costumes, s tradies, aos hbitos, aos valores e crenas de um
determinado povo ou grupo, de modo que quando um sujeito se desloca, ainda que seja
temporariamente, de seu habitat simblico original, isso de alguma forma causa um certo
desenraizamento de convvio familiar e de sua cultura de origem, o que, em certa medida,
acarreta no mnimo insegurana, podendo levar a um processo contnuo de socializao,
reconfigurao da identidade e hbitos a partir de outras referncias culturais e de dinmicas
sociais.
A par desta percepo, e com base na minha trajetria acadmica no Brasil,
enquanto estudante africano oriundo da Repblica de Guin-Bissau, tornou-se evidente que a
circulao dos africanos no Brasil, fundamentado nos acordos de cooperao-tcnica,
2
acadmica e cultural, inclui fatores sociais e diversas situaes subjacentes que se combinam
para distinguir a circulao internacional destes atores sociais em meio a um processo
crescente e mais amplo de mobilidade contempornea, estimulada pela globalizao e pela
internacionalizao do ensino superior. Estes acordos constituem uma real metfora da
interdependncia planetria contempornea, cuja capacidade de acolhimento de quem
desembarca, pelo pas que o recebe e da sua estratgia de integr-lo no novo circuito social
so indicadores que permitem examinar o grau de abertura de uma sociedade em relao ao
que lhe estranho, no apenas acolher o estranho, mas tambm apelar transformao
mtua a partir do encontro de diferentes grupos.
A vinda dos estudantes dos pases africanos de lngua portuguesa para o Brasil
tem caractersticas peculiares que podem no ser percebidas ao levar em conta apenas a
tendncia contempornea da circulao de pessoas em todas as partes do mundo, propiciada
pelos inmeros fatores: comrcio, turismo, religio, etc. Mas, ao invs disso, torna-se
interessante se tomarmos como ponto de partida principalmente o passado que liga o
continente africano ao Brasil.
Um passado que poderia ser narrado, tomando como ponto de partida o prprio
incio da humanidade isto , frica como o bero da humanidade. Mas interessa-nos neste
estudo apenas parte desta histria que acabou deixando marcadores culturais indelveis das
fricas na sociedade e na cultura brasileira. Convm ressaltar que tais marcadores culturais,
ancoradas, sobretudo na cor da pele negra da parte significativa da populao brasileira, assim
como sua condio histrica subalterna ainda hoje a razo para discriminar o negro no
Brasil independentemente da sua origem nacional. Discriminao que se manifesta
corriqueiramente de forma verbal e ldica e que tambm perceptvel pelos estudantes no
cotidiano da sociedade brasileira.
Com efeito, muitos estudantes africanos, vinculados ao PEC-G, tornaram-se alvo
de relaes raciais e de racismo no meio acadmico que frequentam, embora parte
significativa da populao deste pas se reconhea no continente africano o berrio da sua
afrodescendncia. A compreenso deste fato tambm tem sido uma estratgia discursiva
fundamental assumida pela Diplomacia Brasileira na retomada recente dos interesses do
Brasil em relao aos pases africanos e destes com o Brasil.
Muitos estudiosos nacionais e internacionais interessados em acompanhar a ao
brasileira na frica denominam tais processos de uma reaproximao ou da diplomacia
cultural. A diplomacia brasileira acredita que haver uma natural receptividade dos africanos
s iniciativas e aes da poltica internacional brasileira pelo fato do Brasil possuir certas
3
afinidades culturais com aquele continente, resultando-se na solidariedade cultural e poltica,
o que pode explicar em parte a presena dos jovens estudantes oriundos das fricas nas
universidades brasileiras.
H mais de meio sculo que os africanos, nomeadamente os de Pases Africanos
de Lngua Portuguesa (PALOP), livremente vm para o Brasil com a esperana e um sonho
individual e familiar para realizao de suas formaes acadmicas, cujo processo articulado
no interior de uma estrutura diplomtica poltico-discursiva tomando inicialmente a histria
como fundamento para o renascimento dos interesses brasileiros na frica, facilitado pelos
interesses e necessidade de fortalecimento de aes de desenvolvimento sustentvel social e
econmico dos governos africanos.
Para o Brasil, a frica seria um ponto estratgico para sua insero e afirmao
internacional, enquanto os africanos vislumbram no Brasil uma multiplicidade de
oportunidades de cooperao para o desenvolvimento em todas as reas. comum ouvir um
jovem em Bissau expressar a dvida entre ir realizar um curso superior no Brasil ou em
Portugal. Todavia, pelo crescente aumento da presena de jovens estudantes oriundos dos
PALOP nas universidades brasileiras vinculados ao Programa Estudante Convnio de
Graduao-PEC-G pode justificar em tese a preferncia destes pelo Brasil em relao
Portugal.
A macia presena dos estudantes palopianos, sobretudo no Nordeste do Brasil,
gerou o nosso interesse e a oportunidade para ampliar e aprofundar a compreenso sobre esse
contingente de jovens estudantes que se deslocam para a referida regio, aproximando-se de
seus diversos universos sociais reconstitudos nessa dispora, assim como de suas relaes de
sociabilidade, de solidariedade, conflitos e contradies implcitos.
Para que isso fosse possvel organizou-se o presente estudo em (3) trs partes
adotando um conjunto de procedimentos metodolgicos com o intuito de especificar a escolha
desta populao, assim como o campo terico, e disciplinar a abordagem deste trabalho cujo
desdobramento encontra-se no tpico intitulado de Perspectiva metodolgica adotada, onde
se prope apresentar o problema da pesquisa e justificar a sua pertinncia, bem como explanar
tambm a razo da escolha terica diversificada e de abordagem multidisciplinar, com foco
em teoria interacionista, assim como adoo da estratgia de observao e a coleta de
informao no campo sobre a temtica estudada. No obstante, os trabalhos desenvolvidos
sobre a circulao internacional dos estudantes africanos no mundo, e em especial no Brasil,
com fins de estudos so escassos, j que as poucas referncias existentes no focalizam as
especificidades na base das quais determinados acordos acadmicos se assentam.
4
A Parte 1 desta monografia dedicada, aos processos de deslocamento de
populaes africanas no interior do continente ou mesmo alm dos limites das fronteiras
polticas impostas na Conferncia de Berlim, ocorrida em 1884, que serviu para redefinir
alguns aspetos do mapa colonial dos finais do sculo XIX. As fronteiras nacionais em frica
nasceram da imposio desta conferncia, criando um estado orgnico colonial imposto pelas
potncias colonizadoras. No incio do sculo XX, a frica estaria completamente recortada e
dividida por pases. O fato que tambm cria dificuldades em traar as rotas de deslocamento
dos africanos em direo as Amricas e em particular para o Brasil, constituindo um aspecto
da realidade histrica e cultural cuja complexidade ainda debatida.
Atualmente os acordos acadmicos tambm celebram novas formas de circulao
de cidados de vrios pases africanos pelo mundo e para o Brasil. Vale lembrar que no Brasil
o convnio educacional inicia-se no final 1919, com a presena de estudantes estrangeiros nas
escolas brasileiras. No contexto europeu, a circulao internacional para fins de estudos est
presente desde a Idade Mdia e no contexto africano a circulao dos alunos das escolas
cornicas, os chamados marrabus, remonta ao sculo XVII e marca uma das primeiras formas
de mobilidade de pessoas com fins de estudos na frica. No plano econmico, discorreu
sobre a redefinio da diplomacia brasileira em relao frica.
Na Parte 2 ocupamo-nos, atravs de diversas abordagens, em demonstrar o
quanto as experincias de mobilidades de pessoas so frteis aos processos de reconstruo
identitrias atravs da interao, sociabilidade e a trocas simblicas. Com efeito, os estudantes
vo se envolvendo num vagaroso processo de insero cultural nas cidades acolhedoras e vo
formalizando projetos pessoais mediante a interao com os outros. A presena dos
estudantes africanos nas universidades brasileiras uma tendncia que cresce a cada ano e
evidencia aspectos sociais desafiadores nos quais os estudantes revelam por meio de
narrativas com destaque s questes que vo desde a ausncia de um suporte oficial de
acolhimento, acesso moradia, at a regularizao da permanncia no Brasil, e questionam a
permanncia de normas regidas que regulam a vivncia dos conveniados no Brasil: o tempo
da permanncia no Brasil, a escolha do curso e de universidade, insero, formao e o
retorno. Possibilidades de redefinio de suas relaes com as instituies e seus processos de
sociabilidades e integrao no universo acadmico.
Outro fato contemplado nesta parte do trabalho so as narrativas de intercambistas
relativas s representaes no Brasil sobre a frica, em especial no Nordeste.
Na Parte 3 analisamos as formas de organizao social dos estudantes do PEC-G
nas suas respectivas cidades. Procuramos em linhas gerais dar conta de dimenses
5
subjacentes caracterizadoras da mobilidade e das vivncias dos estudantes africanos nas duas
Instituies de Ensino Superior do Nordeste do Brasil: a Universidade Federal de Pernambuco
e a Universidade Federal de Alagoas. Para tal, enfocamos os aspectos das motivaes e
transito no Brasil, e das impresses acerca da integrao em cada cidade, Recife e Macei,
onde se localizam os campi.
A pesquisa apoiou-se em alguns estudos de caso sobre os estudantes africanos
vinculados ao PEC-G das outras regies do Brasil, por exemplo, do socilogo senegals
Pascal Kaly e do moambicano Carlos Subuhnna, que reforaram a nossa compreenso da
presena africana e seus conflitos no Brasil, conflitos esses s vezes gerados entre si, ou seja,
entre grupos nacionais que se evidenciam com clareza nos palcos de interaes como nas
festas africanas e nos torneios de futebol organizados regularmente pelos prprios estudantes.
Nesta parte do trabalho optamos tambm por apresentar as informaes obtidas no
campo onde os interlocutores revelam suas percepes sobre o meio social em que vivem nas
cidades, as universidades em que estudam e ainda sobre os obstculos e benefcios esperados
do convnio, festas e dificuldades de estar fora de casa e de conviver com Outros,
processos de discriminao racial e da dura rotina acadmica nesta dispora bem como as
expectativas de sucesso e reconhecimento profissional em seus pases de origem, ou em
outros mercados onde possam exercer atividades profissionais nas suas reas de formao.
Finalmente, o ltimo tpico, denominado de Consideraes Finais serve como
sntese de diferentes olhares e percursos dos entrevistados nesta dispora, abrindo novas
perspectivas para pesquisas futuras.
Perspectiva metodolgica adotada
Nesta dissertao adotou-se o estudo de caso, para averiguar os processos de
reconfiguraes identitrios dos estudantes africanos oriundos dos pases da lngua
portuguesa/PALOP vinculados ao Programa Estudante Convnio de Graduao (PEC-G) da
Universidade Federal de Pernambuco/UFPE e da Universidade Federal de Alagoas/UFAL1. A
proposta do estudo visa responder questes como: o que acontece com os estudantes africanos
nas cidades do Recife e Macei? E como descobrir de que modo este trnsito afeta as suas
1 Doravante passar-se- a denominar os estudantes oriundos do PALOP-(Pases Africanos de Lngua Oficial
Portuguesa), genericamente de palopianos.
6
identidades e vises de mundo? Para tentar responder as questes levantadas acima, decidiu-
se realizar a pesquisa somente com os estudantes oriundos de Pases Africanos de Lngua
Oficial Portuguesa-PALOP.
Tal medida deve-se, em primeiro lugar, ao fato deles corresponderem ao maior
contingente de estudantes africanos no Brasil, se confrontado com nmero de estudantes
oriundos de pases africanos francofonos e anglofonos. Em segundo lugar, a escolha dos
palopianos deve-se, em certa medida, pela razo de possurem entre si um histrico colonial
comum e, em terceiro lugar, por escolherem o Brasil para realizar seus estudos, um pas
marcado pelos laos histricos que ligam s antigas colnias de Portugal, o que por si,
constitui uma dimenso significativa a ter em conta.
A propsito houve tambm a preocupao de restringir a pesquisa aos estudantes
vinculados ao Programa /PEC-G, por estes representarem concretamente os acordos bilaterais
entre o Brasil e os PALOP. Com efeito, pretendeu-se com este estudo dar uma pequena
contribuio no sentido de encontrar uma resposta parcial das questes supracitadas sob o
ngulo de quem passa pela experincia da vivncia estudantil noutro pas na sua dimenso
ntima e humana, assim como outras questes que se colocam sobre a circulao dos
estudantes africanos no Brasil.
Desse modo as opes metodolgicas adotadas, derivaram-se diretamente da
especificidade dos atores sociais a serem estudados, dos objetivos anunciados e dos
pressupostos tericos que os informam. Neste sentido, optou-se desde o incio pelo
enquadramento terico diversificado e de abordagem multidisciplinar, com foco em teoria
interacionista, enquadramento que possibilitou desenvolver simultaneamente uma estratgia
de observao e a coleta de informao no campo sobre a temtica em estudo.
Um dos tericos utilizados foi Goffman (1993), que ressalta a importncia de
entenderem-se as interaes entre indivduos enquanto construes discursivas que se
relacionam, intrinsecamente, com as esferas mais amplas do social, do poltico, e de
formaes ideolgicas e culturais dentro de um processo que retrata o macro-social nas
manifestaes interacionais dos falantes, e vice-versa.
A perspectiva analtica interacionista Goffmaniana, privilegia a experincia vivida
dos indivduos, interpreta o funcionamento da sociedade luz das interaes e procura
entender o que essas interaes significam para a construo mental e prtica das realidades
sociais. Goffman (1967, p. 2) advoga que seus estudos interacionais esto focados num
aspecto geral de interesse dos etngrafos. Seguindo a tradio de Goffman, colhemos
narrativas que evidenciam as interaes entre diversos grupos de estudantes africanos. A
7
perspectiva estruturalista se faz presente neste trabalho para enriquecer o presente estudo,
sobretudo por opor-se interpretao da realidade na perspectiva interacionista2.
A corrente terica estruturalista prioriza as estruturas sociais em relao s
escolhas individuais, diminui as aes e interaes sociais estrutura social e entende-as
como um conjunto de padres de relacionamento, dotados de uma existncia prpria e
independente dos indivduos ou grupos que nela ocupam posies. Segundo Bourdieu (1990,
p. 9, 21) o real, na concepo interacionista, seria o que as pessoas definem como tal, isto , o
mundo social reduzido s representaes que dele fazem os agentes, e ento a tarefa das
cincias sociais consistiria em produzir uma explicao das explicaes produzidas pelos
sujeitos sociais.
Ao optarmos por este campo de pesquisa o leitor poderia questionar-se se haveria
algo de novo num campo emprico que to bem o observador conhece, como neste trabalho,
por exemplo. Se haveria, de fato, interesse em discutir e analisar as consequncias sociais da
vivncia dos estudantes africanos no Nordeste do Brasil, regio que apresenta na sua
formao social o maior ndice populacional com descendncia africana. Neste sentido,
partimos do pressuposto de que a vinda dos africanos ao Brasil a partir da abolio da
escravatura no s tem interesse como h necessidade de ampliar estudos sobre ela.
Todavia, no se quer ter a pretenso de contar a nossa prpria histria, nem
descobrir respostas imediatas para um problema complexo, mas procura-se trazer a lume as
implicaes sociais resultantes de decises ou conjunto de decises tomadas, histrias de
atores sociais envolvidos interaes e sociabilidades que dela resultam, e resultados de estar
com o outro no recinto deste. A escolha pelo estudo de caso como mtodo de pesquisa para
esse trabalho foi julgada como sendo a mais adequada, por ser capaz de levar em conta
diversos pontos de vista, ao levar em conta que um objeto pode ser uma unidade que se
analisa, uma entidade ou um programa. Evidencia-se como um tipo de pesquisa com forte
cunho descritivo na qual o pesquisador pode no pretender intervir sobre o fenmeno, mas
conhece-lo tal como ela aparece.
Para Becker (1993, p. 107) um estudo de caso no precisa ser apenas descritivo.
Pode ter um profundo alcance analtico, pode interrogar a situao, pode confrontar a
situao com outras j conhecidas e com as teorias existentes. Para esse autor, o estudo de
caso pode ajudar a gerar novas teorias e novas questes para as futuras investigaes, e
2 GOFFMAN, E.Interactional Ritual: essays on face-to-facebehavior. New York: Anchor Books, 1967. Disponivel em http://www.taddei.eco.ufrj.br/AntCom/RodriguesJr.pdf: Acesso realizado em 20 de novembro de
2011.
8
destaca a pesquisa qualitativa como um dos princpios caractersticos. uma investigao que
se assume como particularstica, debruando-se sobre uma situao especfica, procurando
descobrir o que h nela de mais essencial. Consiste na observao detalhada de um contexto e
de um acontecimento especfico (o caso). Requer a observao de diversas variveis, de
modo a comparar e constatar com outros casos e interativo (BECKER, 1993, p. 108).
Portanto, foram depois destas orientaes terico-metodolgicas, facilitadas pela
intimidade travada com o campo, que a pesquisa foi possvel de ser desenvolvida. Houve,
contudo, o cuidado de manter um dilogo sempre aberto com os nossos interlocutores,
explicando-lhes o objetivo da pesquisa e fazendo com que eles interviessem nas discusses.
Mas, somente as estratgias de observao participante e as de investigao de tipo intensivo-
qualitativo permitiram uma aproximao intimidade dos estudantes palopianos.
Partindo desses princpios, o objetivo era fazer falar os interlocutores o mais
descontrada e livremente possvel. Tal maneira de falar colocou os interlocutores num
esforo de fazer funcionar a memria. Um recurso que a Antropologia legitima como a forma
pela qual as pessoas do sentido as suas experincias vividas e interpretam seu mundo
(CALDEIRA, 1989, p. 29). No entanto, o recurso memria pode possibilitar muito mais,
medida que permite descortinar situaes de conflitos, festas, jogos, e outros eventos sociais,
bem como os processos de construes de identidades, uma vez que memria e identidade
encontram-se imbricadas, pois o processo de memorizao possibilita reconstruir e redefinir
continuamente as identidades, tanto individuais quanto coletivas dos grupos:
A memria algo vivo e como tal encontramos armazenadas nela uma srie de
lembranas precisas e completas de eventos presenciados e vivenciados. claro
que ela seletiva e, por outro lado, na recuperao da histria vivida, a histria
presente servir de parmetro. Realmente, pode-se falar com propriedade numa
dialtica prpria da memria, medida que o passado referencial para orientar
nossos passos no presente e o presente serve como ponto de referncia para uma
releitura, interpretao e atribuio de sentido ao passado (BERNARDO, 2007, p.
32).
Na mesma direo Caldeira (1989, p. 21) ressalta o aspecto social da memria,
aponta a memria de um grupo social como produzida socialmente, no se tratando apenas de
uma produo coletiva: ela associa o passado ao presente, trazendo experincias do grupo que
as interpretam e reinterpretam o passado, usando essas interpretaes para dar sentido sua
experincia presente e legitimar diferentes interesses. Assim, as vises sociais do passado no
9
so fixas, mas sujeitas a reinterpretaes, as quais o presente e as condies sociais do grupo
mudam.
Entrevistas pouco estruturadas deram oportunidade espontaneidade de dilogo e
negociao. Com efeito, o resultado foram treze (13) histrias de atores que participam do
PEC-G na UFPE e na UFAL, cada uma delas com suas origens, trajetrias e circunstancias
nicas. Para a entrevista, adotou-se uma sequncia temporal, de modo a propiciar uma
evoluo espontnea dos nossos interlocutores do passado para o presente, e do presente para
o futuro.
No que diz respeito ao passado, procurou-se explorar memrias, marcas,
sentimentos de pertena, motivaes em estudar no Brasil e outras questes. Buscou-se saber
a relao de atores com o pas de destino, e concretamente com o local de estudos, ainda no
pas de origem, assim como os conhecimentos, expectativas, redes sociais e meios sedutores,
e suas, diferenas sentidas ao desembarcar, primeiras impresses, facilidades e dificuldades
enfrentadas no destino. Com efeito, permitiu nossos interlocutores a reconstruo do passado,
no somente por meio da fala, como tambm nos comportamentos revelados
involuntariamente.
Convm ressaltar que alm das entrevistas, houve circunstncias de interaes
informais com os interlocutores, assim como com outros membros do PEC-G e de seus
colegas brasileiros/as, que permitiram complementar a nossa busca por meio da observao
direta e participativa nos eventos frteis e de manifestaes ricas de simbolismo de valores e
vises diferentes de mundo.
As entrevistas em Recife e Macei foram realizadas no perodo de frias
acadmicas entre Janeiro, Fevereiro e Maro de 2011. Tiveram uma durao mdia de uma
hora e meia. Quase todas as entrevistas ocorreram no recinto domstico dos interlocutores, na
intimidade da casa, favorvel tambm nossa observao, j que permite o pesquisador
inteirar-se de como o pas de origem ou a pertena cultural reconfigurada no interior do lar,
assim como captar a absoro da cultura local.
As restantes aconteceram em espao pblico, no bar restaurante Nova Kis, em
frente Padaria Universitria, na Avenida General Polidoro, bairro Cidade Universitria, em
Recife, num dia de domingo, no silncio de um bar quase vazio. Outro aspecto interessante
foi a possibilidade de alguns entrevistados falarem em crioulo; recurso que Ncia Tavares, de
Cabo Verde, residente em Macei, adicionou estrategicamente sua fala para ativar a
memria de tempos de convvio com a famlia.
10
Outros critrios foram empregados para selecionar os entrevistados. Um deles foi
o de tempo de estadia no Brasil. Esse critrio justifica-se fundamentalmente pelo menos em
duas perspectivas: cultural e terica.
A primeira baseia-se no fato de determinadas culturas africanas privilegiarem o
fator tempo ou a idade de uma pessoa. Nestas culturas acredita-se que o conhecimento, a
experincia de vida somente vem com a idade, ou tempo de permanncia em determinado
lugar. Os primeiros a chegarem ao Brasil so tambm a memria do grupo; aqueles que
enfrentaram uma infinidade de acontecimentos. Quando um velho morre uma biblioteca
que desaparece, dizia o poeta Maliano Amad Ampat B3. Desta forma se associa a idade,
ou os anos vividos num determinado lugar, sabedoria. Os primeiros que aqui
desembarcaram so os que primeiro ouviram falar da Serra da Barriga e assistiram pela
televiso a aprovao da Lei 10.639 / 03, e os debates sobre as cotas para Negros no Brasil.
A segunda refere-se s vertentes tericas que reconhecem a existncia de uma
scio-dinmica prpria na relao entre quem estava e quem chegou, conforme defende
ELIAS e SCOTSON, (1994). O comportamento de quem est fora de lugar pode variar de
acordo com a fase em que estiver, defende (MACHADO, 2002, p. 36). Contudo, houve
cuidado em selecionar os entrevistado/as em etapas diferentes da chegada ao Brasil, os mais
antigos esto no Brasil h 3 (trs) ou mais de 4 (quatro) anos. Os entrevistados mais recentes
esto na etapa inicial de intercmbio, chegaram h menos de 2 (dois) anos.
Convm informar que no momento inicial do estudo, em que se tentou definir sua
metodologia, provocou de imediato diversos problemas, dentre eles, a ideia de alargar o
campo de pesquisa atingindo pelo menos estudantes do PEC-G em quatro universidades
federais do Nordeste Brasileiro, UFAL, UFPE, UFPB e UFS, escolha que poderia, em funo
de limitao de tempo exigido para elaborao de uma dissertao de mestrado, inviabilizar
um trabalho desta natureza.
Ao mesmo tempo, deparou-se com a ideia de limitar a pesquisa exclusivamente
aos estudantes de um pas, mas adotou-se a iniciativa de definir um universo maior de atores
atingindo uma representatividade geral dos palopianos, fundamentada, pois, na ideia de que
tal medida poderia no s possibilitar apreenso de hbitos de cada ator, como tambm de
captar particularidades que caracterizam a vinda dos angolanos, cabo-verdianos, guineenses,
3 Hampt B (1900-91) participou da elaborao dos primeiros estudos que usam as fontes orais de maneira
sistemtica, como em "Histria Geral da frica", publicada pela UNESCO em 1980. Se escritos como esse e
outros de carter sociolgico e filosfico so mais conhecidos, o relato autobiogrfico tem o mrito de revelar a
trajetria desse mestre da transmisso oral e comprovar a fora da "oralidade deitada no papel" (nas palavras do
autor).
11
moambicanos e sotomenes ao Brasil e, com isto, encontrar em cada histria de vida, tanto o
que de mais nico as distingue, como o que de mais comum os ligam.
A partir de contatos intensos de estudantes desses pases, evidenciou-se o fato de
que suas histrias esto imbricadas; portanto, a histria de um complementava a outra4. Neste
sentido, procuramos realizar uma entrevista equilibrada com estudantes de nacionalidades
distintas. Em nossa defesa, encontramos Boudon (1990, p. 127), segundo o qual, quanto mais
as cincias sociais avanam, mais se torna evidente a impossibilidade de qualquer tentativa de
unificao de campo e metodologia. Acompanhamos o cotidiano destes nas universidades
durante quase um ano, principalmente em Recife, local onde at ento ramos pouco
conhecido. Perodo o qual segundo Becker (1993, p. 86) seria suficiente para observaes
mltiplas que convena de que nossa concluso no est baseada em alguma expresso
momentnea e passageira das pessoas que estudamos.
De modo semelhante, as circunstncias que cercam as aes das pessoas s vezes
mudam de acordo com uma programao temporal regular. As pessoas podem no ter
a ideia da temporalidade de seu comportamento, mas o pesquisador tem que ter, pois
os dados coletados em pocas diferentes refletem realidades diferentes. Em geral
quando observamos durante um perodo longo de tempo, acreditamos que no
confundimos um fenmeno que no muda, e que tivemos a oportunidade de observar
processos de mudana podem estar ocorrendo (BECKER, 1993, p. 87).
No incio, no houve a preocupao com os grupos na sua totalidade; deu-se
maior ateno a atores particulares que teriam sido transformados em referncias no seio dos
grupos por viverem mais tempo no Brasil, cujas aes influenciam em muitos casos os
estudantes recm chegados. Participamos como observador de pelo menos cinco (5) festas,
uma referente comemoraes da independncia da Guin-Bissau em setembro de 2010 e
outra de Angola em Abril do mesmo ano, e mais duas em Macei, uma das quais referiu-se ao
encerramento da Semana de Cultura Africana, e a outra a do Dia da frica, em maio. Alm
delas houve muitos convvios de carter festivo que aconteceram nas residncias.
Propusemo-nos tambm a participar como observador em cerca de dez (10)
torneios de futsal masculino e feminino, realizados no perodo de setembro de 2010 a maio de
4 Alm de j mencionado, grupos interligados das partes de uma organizao ou um programo, como o caso
dos estudantes do PEC-G, significa que nossa tentativa de compreender qualquer aspecto especifica do que
vemos provavelmente exige que ns tenhamos algum entendimento de seus outros aspectos principais. As
observaes que registramos exigem que ns prestamos ateno a outros aspectos observveis, por mais que
sejam inesperados ou desagradveis para ns, para que faam algum sentido (BECKER, 1993, p. 90).
12
2011, nas instalaes esportivas da UFPE, sendo possvel compreender o que est por trs
dessa mesma realidade. Apesar da tenso apresentada, esses jogos de futsal tornaram-se a
nica atividade grupal fixa e eventos significativos para as comunidades africanas em Recife.
Enfim, a motivao da escolha do Brasil para realizao de estudos, questes
relacionadas a dificuldades encontradas nas cidades do destino quanto insero social,
perspectivas de retorno ao pas de origem, contrastes no local de estudos, tambm
prevaleceram como critrio de seleo do universo de anlise. As informaes recolhidas
foram transcritas e depois digitalizadas, enviadas aos entrevistado/as, para eventuais consultas
e, depois, submetidas descrio e anlise de natureza qualitativa.
Parte 1 - frica em movimento
1.1. A mobilidade internacional de africanos
Os fluxos migratrios no contexto africano remontam historicamente aos
processos ancestrais. Teria sido talvez um continente onde se deu a maior mobilidade
humana, no s pelo fato de ter sido bero da humanidade, mas tambm por razes que vo
desde as complexas questes climticas no interior da frica, aos processos violentos da
islamizao, conflitos entre os diferentes imprios e reinos, at o recente processo de
colonizao que se iniciou com a invaso do continente pelas potncias coloniais, levando seu
povo a deslocar-se constantemente. Alm dessas questes apontadas, sempre existiram na
frica deslocamentos de populaes de uma regio para a outra pelas razes variadas. Mas,
constata-se que os registros existentes sobre a mobilidade dos africanos no interior do prprio
continente quase sempre vista como:
uma maneira de escapar da pobreza, da morte por desnutrio. Para alguns autores, o
movimento migratrio no continente africano apresenta uma especificidade motivada
por conflitos tnicos e, sobretudo polticos e, estes so fatores que tornam difcil
anlise da migrao internacional na frica e, sobretudo, ao sul do Saara (CASTLES
e MILLER, 2004, p. 172).
13
A circulao de pessoas alm dos limites das fronteiras polticas de cada pas
africano em direo aos pases vizinhos parece no ser vista por muitos estudiosos como
estratgia de concretizao dos projetos de vida pessoal ou familiar, mas apenas como simples
estratgia de sobrevivncia. Projetos que envolvem propsitos de cunho afetivo, emocional,
religioso, de sade ou intelectual, no so motivos levados em considerao para o
deslocamento dos indivduos.
Portanto, talvez pela homogeneizao terica e metodolgica, muitos analistas so
conduzidos a no colocar foco nas divises polticas, nas diferenas lingusticas, tnicas e
culturais que distinguem os povos daquele continente. Com efeito, tais tendncias tericas
fazem com que os fluxos migratrios na frica sejam invisibilizados ou reduzidos a
abordagens de perspectiva de fuga.
As diversas vertentes de abordagem terica sobre o processo de mobilidade social
no mundo tambm no levam em conta a circulao dos estudantes no contexto africano,
embora seja uma realidade secular em frica. No contexto europeu a circulao internacional
para fins de estudos est presente desde a Idade Mdia com a criao das primeiras
universidades (Bolonha, Paris, Oxford). Essas universidades contavam com professores e
estudantes de diferentes regies e pases, formando comunidades internacionais.
Os estudantes de origens diferentes reuniam-se em torno de um objetivo comum,
o conhecimento. Com o avano dos estados nacionais modernos, a universidade sofreu um
processo de nacionalizao. Contudo, esse processo no eliminou as necessidades do carter
internacionalista da produo do conhecimento cientfico, especialmente no sculo XX,
apesar de as universidades ficarem subordinadas s necessidades e presses dos estados, das
sociedades e do mercado, no contexto do desenvolvimento nacional5:
Na era antes de Cristo h registros que jovens da sociedade romana iam Grcia (Atenas, Rodes, Alexandria, Prgamo) para estudar. Professores gregos eram
importados para fundar escolas em Roma. Nos sculos XII e XIII estabelece-se o conceito de Universidade na Europa (Universidade de Salamanca - 1218). Na
Renascena d-se incio ao estmulo para os intercambistas (Florena, Cambridge,
Basel). No sculo XIX, com a expanso da Revoluo Industrial, outros pases
comeam a exportar intercambistas (China e Japo). No ps 2. Guerra Mundial h
mudana no conceito de "viagens de estudos", passando a ser o foco no aprendizado
para convivncia pacfica entre os povos. Em 1950 ocorre o incio dos estudos da
educao para a PAZ. Frana e Alemanha iniciaram o movimento de programas
governamentais para intercmbio cultural (CHARLE & VERGER apud JURANDIR ZAMBERLAM, GIOVANNI CORSO, LAURO BOCCHI, JOAQUIM FILIPPIN,
WLADYMIR KULKAMP, 2009, p. 23).
5 Objetivo de atual processo de internacionalizao de ensino inculcar nos mesmos, na equipe acadmica e na
equipe administrativa, novos conhecimentos, novas habilidades e atitudes que lhes permitam atuar de maneira
eficaz num meio global, interdependente, internacional e multicultural, (STALLIVIEIRI, 2008, p.3).
14
Pois, observou-se que historicamente um dos aspectos mais importantes que
sempre propiciaram circulaes, no interior do continente africano, foi a migrao com fins de
estudos. Este processo iniciou-se no contexto africano desde que os fencios comearam a
estabelecer colnias na costa africana do Mediterrneo, por volta do sculo X a.C. Um povo
que teve seu epicentro no norte da antiga Cana, ao longo das regies litorneas dos atuais
Lbano, Sria e Israel. A civilizao fencia caracterizou-se por uma cultura comercial
martima empreendedora que se espalhou por todo o Mediterrneo durante o perodo que foi
de 1550 a.C. a 300 a.C.
Neste perodo inicial os contatos entre africanos Subsaarianos com os fencios e
outros povos muulmanos tinham carter mercantil, envolvendo, sobretudo a troca de objetos
e produtos de necessidades bsicas. Mais tarde verificou-se um processo intenso de
islamizao, sobretudo de povos principalmente de etnias Fula e Malinque da frica
subsaariana, estes j com profundos conhecimentos do Alcoro realizavam longas viagens de
misses no interior do continente africano, s vezes sem volta, e estabeleciam escolas
cornicas em lugares distintos: aceitavam e recebiam alunos vindos de diferentes regies da
frica; l esses alunos permaneciam estudando por muitos anos. Tais estabelecimentos
escolares persistem em vrios lugares da frica contempornea, coabitando com as
instituies modernas de ensino, denominados de madrassa6. No pretendemos aqui analisar
exaustivamente diversos aspectos de tal histria de imigrao para fins de estudos no interior
do continente africano nem tal seria possvel, por causa de propsitos anunciados neste
trabalho, pretendemos antes apresent-las como exemplos e evidenciar a nossa estranheza
pelo fato de negligenciar sua pertinncia na anlise terica contempornea sobre os
movimentos migratrios internacionais. Da nossa leitura, alm de enfatizarmos sua
persistncia considemos tambm importante no s pela travessia das fronteiras, como
tambm por envolver o deslocamento espacial a um povoado, e tratar-se da migrao num
perodo longo, em que os alunos passam por um processo de transformao social e cultural
significativa.
6 O islamismo fez sua entrada no continente a partir da frica do Norte, do Egito ao Marrocos, sendo uma das
primeiras regies a ser conquistadas pela expanso inicial rabe-islmica (sculos VII e VIII). Dos sculos X a
XVI, mercadores muulmanos contriburam para o surgimento de importantes reinos na frica Ocidental, que
floresceram graas ao comrcio feito por caravanas que, atravessando o Saara, punham em contato o mundo
mediterrneo ao das estepes e savanas do Sudo Ocidental e frica centro-ocidental. A converso de certos
monarcas africanos fez no s o isl avanar como criou uma florescente cultura. Assim, cidade de Tumbuktu
(no atual Mali) era, no sculo XIV, um ncleo urbano conhecido pelo alto nvel de suas escolas islmicas, que
atraam muulmanos de vrias partes do mundo (RVISTA PANGE, 2005).
15
A partir desta observao pode-se concluir que a circulao ou mobilidade de
pessoas em processo de qualificao, ainda que se apresente como tendncia da circulao
internacional contempornea, tem razes na antiguidade, sobretudo no interior do continente
africano. No obstante, de interesse terico citar Geertz (2001) j que traz para este trabalho
questes pertinentes sobre um dos aspectos subjacentes mobilidade internacional estudantil
para distintas regies do mundo em busca da qualificao tcnica e profissional.
Esse autor chama ateno para a possibilidade do atual contexto mundial de integrao
produtiva e da interdependncia econmica poderem estar sendo pensadas considerando suas
repercusses no campo social e cultural. Nesta perspectiva Geertz afirma:
a cultura e a poltica da segunda metade do sculo XX como um mundo em pedaos, no qual os conceitos de nao, estado, cultura e poltica, pensados respectivamente como fronteiras, instituies, comportamentos, crenas e poderes no
se aplicam mais. A viso de um mundo definido geogrfica e culturalmente como um
consenso em torno de elementos fundamentais, tais como concepes, sentimentos e
valores comuns, parece pouco vivel diante de tamanha disperso, circulao e
desarticulao (GEERTZ, 2001, p. 219).
Para esse autor so as falhas, as disperses, as mobilidades humanas e as fissuras
que parecem demarcar a paisagem da identidade coletiva. Apesar desta afirmao a
circulao para fins de estudos ao longo dos ltimos anos tem apresentado forte tendncia de
crescimento, sobretudo nos pases em vias de desenvolvimento. Ao examinarmos os dados
estatsticos da UNESCO de intercmbios acadmicos internacionais neste incio de milnio,
chama a ateno o fato de a mobilidade de estudantes intercambistas internacionais apontar
para um aumento cada vez mais expressivo de pessoas que esto em circulao com fins de
estudos.
Assim, de acordo com as estatsticas publicada em 2006 da UNESCO, pelo
menos 2,5 milhes de estudantes de ensino superior se encontravam fora de seus pases de
origem comparando com os percentuais dos cinco anos anteriores que era de 1,75 milho
representando um aumento de 41% desde 1999 (UNESCO 2006)7.
Contudo, a UNESCO ressalta que o aumento da circulao de estudantes pelo
mundo deve ser analisado tambm considerando a expanso geral da educao superior cujo
aumento no nmero de matrculas passou de 92 para 132 milhes nos perodos de 1999 e
2004, o que representou um crescimento de 40%. Ainda tomando como referncia o mesmo
7 Cf. Global Education Digest 2006. Comparing Education Statistics Across The World. UNESCO. Institute for
Satistics. Montreal, 2006. Disponvel em: http://www.uis.unesco.org/TEMPLATE/pdf/ged/2006/GED2006.pdf.
Acesso realizado em: janeiro de 2010.
16
documento da UNESCO (2006), o volume de estudantes internacionais teve um impacto
significativo nos pases anfitries, considerado os principais receptores desse pblico.
De acordo com as estatsticas, seis pases recebem mais de 67% dos estudantes
internacionais de todo o mundo: os Estados Unidos (23%), o Reino Unido (12%), Alemanha
(11%), Frana (10%), Austrlia (7%) e Japo (5%). Ainda ressalta o documento que as
populaes de estudantes internacionais cresceram quase trs vezes mais rpido (41%) do que
o nmero de matrculas nacionais nestes pases (15%):
Pelas estatsticas da OCDE (2002), h uma crescente demanda em termos relativos de estudantes que realizam estudos fora de seu pas de origem. Entre os pases da
OCDE observa-se que os pases que mais concentram estudantes estrangeiros,
agregando mais de 80% dos mesmos so: Estados Unidos (34%), Reino Unido (16%),
Alemanha (13%), Frana (11%), Austrlia (8%) e os outros 18% restantes se
encontram mais dispersados (PELLEGRINO, 2002, p. 24).
Pelas informaes recentes deste balano demonstra-se um volume expressivo de
estudantes estrangeiros no mundo. O caso da frica subsaariana vem confirmar o crescimento
deste contingente, pois apresenta um crescimento desta populao. De acordo com a
UNESCO, a mobilidade dos estudantes africanos da regio subsaariana para outras regies ou
pases trs vezes mais elevada do que o percentual global: cinco pases africanos tm mais
estudantes de curso superior estudando fora do que em seu pas: Cabo Verde, Comores,
Djibout, Guin-Bissau e Togo, UNESCO (2006, p. 37, 38)8. Vale lembrar que se tratam de
pases pequenos com a mdia de um milho de habitantes.
De acordo com a UNESCO, dos 194.000 (cento e noventa e quatro mil)
estudantes no exterior procedentes da frica subsaariana, Zimbbue tem o maior grupo no
exterior (17.000), seguido por Nigria (15.000), Repblica de Camares (15.000) e Qunia
(14.000). Quanto aos destinos dos estudantes procedentes da regio subsaariana, as
observaes do documento UNESCO (2006) mostram que em primeiro lugar est
preferencialmente a Europa Ocidental (51%) e o segundo destino est na prpria regio
subsaariana (21%), seguida pela Amrica do Norte (20%). O Oeste Asitico e Pacfico,
Emirados rabes, Amrica Latina e Caribe so destinos que apresentam menores volumes de
8 No geral as estatsticas da Diviso de Populao das Naes Unidas - UNPD, o nmero estimado da populao
emigrante africana no mundo at 1990 era de 16.351.076 milhes de pessoas e em 2005 verificou-se um
aumento no volume que passou para 17.068.882 milhes de africanos, considerando homens e mulheres juntos
(DESIDRIO, 2006, p. 102).
17
estudantes africanos. Os estudantes de educao superior que permanecem na frica vo para
a frica do Sul e para os pases da frica do Norte9.
O Brasil participa neste cenrio de mobilidade internacional ou de circulao
estudantil de jovens subsaarianos com mais de 11% da mdia mundial. Segundo Desidrio
(2006, p. 167) baseado nos registros do Ministrio das Relaes Internacionais Itamaraty,
ingressaram nas Universidades brasileiras pelo PEC - G, durante o perodo de 2000 a 2006
um volume de 2.342 estudantes africanos. Pela ampliao de acordos de cooperao entre o
Brasil e os pases subsaarianos, a vinda de estudantes africanos ao Brasil aumentou
significativamente. Se comparada aos demais estudantes estrangeiros, os estudantes
subsaarianos representam o volume mais expressivo. Verifica-se ainda uma demanda
constante de solicitaes de vagas no Programa e nas Instituies de Educao Superior, pois,
cada vez mais, estudantes africanos chegam ao Brasil para realizarem seus estudos10
.
Desde os anos 1960, parte significativa do contingente dos estudantes africanos no
Brasil realizou seus estudos na UFPE e na UFAL. A vinda dos estudantes s cidades de
Recife e Macei cresce cada vez mais. No entanto, difcil de determinar o nmero preciso
dessa populao devido limitao da informao. Estima-se que atualmente existe nos dois
Estados do Nordeste Brasileiro mais de 200 estudantes africanos vinculados ao PEC-G,
conforme demonstra o quadro de alunos matriculados nas duas instituies, que se segue
(vide anexo II).
9 De acordo com os dados do Censo Demogrfico de 2000, antes de qualquer subdiviso de interesse, observa-se
que residem no Brasil um contingente total de 15.568 africanos (DESIDRIO, 2006, p. 87). 10
O universo do ensino superior impressiona o seu crescimento acelerado e sua insero na globalizao em
marcha. O Relatrio (2006) da UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura
- mostra os nmeros da expanso da educao superior nas ltimas seis dcadas: em 1950 eram 6,5 milhes de
estudantes universitrios no mundo; em 1960, 13 milhes; em 1980, 61 milhes; em 1995, 82 milhes; em 1999,
92 milhes e, em 2004, 132 milhes. Levando-se em considerao as taxas de crescimento assumidas pela
UNESCO e OCDE (Organizao para Cooperao e Desenvolvimento Econmico), pode-se estimar que hoje,
aproximadamente 168 milhes de estudantes freqentam o ensino superior.
18
1.2 A frica de volta ao Brasil
No que diz respeito s relaes entre o Brasil e a frica, especialmente aos
processos migratrios, deve-se levar em conta que eles se iniciam a partir do processo de
escravido apesar de algumas pesquisas revelarem que ao longo da histria, a frica e o
Brasil eram territrios contnuos que separaram-se por meio de fenmenos da natureza,
conforme aborda vrios estudos geolgicos, caracterizados atualmente pela descontinuidade
territorial marcada pelo Oceano Atlntico (SARAIVA 1999, p. 31).
Em todo caso, a lgica do processo escravagista, baseada na imigrao forada
dos africanos ao Brasil, iniciada no sculo XVI, reaproximou culturalmente esse continente
do Brasil. Para a grande maioria de estudiosos brasileiros, a mo-de-obra escrava foi o que fez
pulsar a organizao social da colnia portuguesa e da organizao do Estado Imperial no
Brasil. A frica passou a ocupar ento um papel central na formao da sociedade e na
dinmica da cultura brasileira. Tal processo de imigrao forada estendeu-se at final do
sculo XIX, inaugurando a primeira dispora africana na terra do Pau Brasil (SARAIVA
1999).
Com o fim das primeiras formas do processo escravista transatlntico por meio da
promulgao da Lei urea assinada pela Princesa Isabel em 1888, seguiu-se o processo de
retorno dos ex-escravizados e seus descendentes para frica concretamente ao atual Benin,
Libria e Nigria levado a cabo pelo Estado Colonial Brasileiro (SARAIVA 1999). A partir
do ano 1900 o Brasil interrompe todas as formas de relaes com a frica subsaariana, exceto
com a frica do Sul e mantm acordos bilaterais com os pases da frica do Norte. Durante
as primeiras dcadas do sculo XX, o Brasil se concentrou no processo interno de
desenvolvimento social e econmico.
No curso deste processo de transformao, a elite brasileira incentivou um macio
fluxo migratrio dos europeus e asiticos enquanto a frica travava suas lutas anti-coloniais.
Convm lembrar que faremos ao longo do texto o uso do termo imigrao por corresponder
ao tipo de circulao que pretendemos estudar, na qual se define, segundo Hall (2003), como
a sada de um cidado ou cidados que entram num pas que no o de origem. O fenmeno da
imigrao pode ser definido de acordo com o tempo de estadia imigrante na sociedade de
destino. Desse modo pode ser denominado imigrante temporrio ou permanente.
Na primeira metade do sculo XX, inmeros esforos cientficos e tericos
levados a cabo pelas diversas vertentes de abordagens tericas (Movimento Eugenista
19
Brasileiro) teriam recomendado a preveno contra a imigrao dos africanos para o Brasil, e
mesmo aps um perodo de mais de meio sculo de suspenso de relaes entre o Brasil e os
pases da frica Subsaariana no inicio do sculo XX, perodo em que o Brasil se concentrou
aos seus projetos, enquanto os pases africanos arrancavam os regimes coloniais das suas
terras por meio de lutas pela independncia poltica.
Durante todo esse perodo da luta anti-colonial africana, a memria africana no
Brasil foi silenciada, sobretudo no governo de Juscelino Kubitschek. O Brasil, pas com a
maior populao de origem africana na dispora escravagista, estabeleceu diretrizes de
cooperao externa voltada para a Europa, a sia e os pases latino-americanos, mas no se
posicionou no perodo de efervescncia poltica na frica.
O Estado brasileiro acompanhou de forma tmida, sem nenhuma reao explcita,
a independncia de mais de 20 pases africanos no incio da dcada de 1960 (SARAIVA
1992, p. 32). Mas, nunca foi de fato possvel cortar o cordo umbilical que uniria para
sempre o Brasil e o continente africano. Somente em 1961, o presidente Jnio Quadros iria
reorganizar a poltica externa brasileira que favorecia o retorno da diplomacia brasileira
frica com aes concretas. A partir da registrou-se uma reciprocidade, por meio de
instalaes de instituies consulares em Acra, Tunis e Dacar depois em Bissau e Lom.
Africanos provenientes de pases recm-independentes, chegando ao Brasil com fins de
estudos, inauguravam uma nova modalidade migratria dos cidados africanos.
O restabelecimento de relaes com a frica Subsaariana, de acordo com Reis,
(2010, p. 142) deve-se em parte necessidade de celebrar a autonomia da diplomacia
brasileira em relao aos Estados Unidos. O contexto desta experincia no Brasil coincide
com o auge dos processos de descolonizao observados no continente africano. O Brasil
apostaria na frica como novo espao para negociao de novos acordos bilaterais buscando
fortalecer relaes Sul-Sul. Uma aproximao cultural com alguns pases africanos pode ser
pensada como estratgia que facilitaria a viabilidade de interesses, pretenses e expectativas
econmicas em relao frica.
Embaixador de Cabo Verde Daniel Pereira, em uma conferncia ministrada em
Recife, no dia 26 de maio de 2011 intitulada: Novas Parcerias para o Desenvolvimento da
frica assegurou que nas ltimas dcadas do sculo XX frica e Brasil ampliaram acordos
de cooperao bilateral propiciando um fluxo constante de pessoas com interesses diferentes.
A maior populao africana no Brasil est vinculada s instituies de ensino pblico e
privada, enquanto que a frica importa do Brasil as empresas, as fbricas e os empresrios de
distintos ramos de negcios, assim como produtos industriais e miditicos.
20
Com a eleio do presidente Luiz Incio Lula da Silva em 2002, o Brasil adotou
como prioridade a abertura e a reabertura de postos diplomticos, tanto de embaixadas como
de reparties consulares, no continente africano, que haviam sido fechados durante
administraes anteriores, passando de 18 para 30 no total. Em contrapartida o nmero de
embaixadores africanos no Brasil foi elevado de dezesseis para vinte e cinco entre 2003 a
200611
. No plano econmico, a redefinio da diplomacia brasileira em relao frica tem
favorecido significativamente o setor empresarial. Isso pode ser constatado pelo crescente
nmero de empresas brasileiras, sobretudo as exportadoras de servios, que l esto
realizando projetos.
Para Pereira, essas aes fizeram com que o comrcio brasileiro com a frica
crescesse mais de 200%, segundo dados do Ministrio das Relaes Exteriores.
Consequentemente, o nmero de vos e rotas martimas entre Brasil e frica multiplicou-se
por cinco. Carlos Lopes afirma que se olharmos para o crescimento das relaes da frica
com outras economias emergentes como a China, ndia ou os pases do Golfo, o Brasil j fica
para trs. Tambm importante sublinhar que a frica cresce como continente acima dos 6%
ao ano, mas h pases, como Angola, superando os 20% por ano. Por todas essas razes
justifica-se pelo menos em parte o novo interesse do Brasil pela frica, lembra Carlos Lopes,
Sub-Secretrio Geral das Naes Unidas e encarregado do Instituto para Formao e Pesquisa
(Unitar), em Genebra - Sua (Conferncia em agosto de 2011, Salvador/BA).
Pereira lembra que para fortalecer ainda mais a cooperao do Brasil com os
pases africanos, preciso superar um difcil obstculo, em aspectos cientficos, sociais e
culturais: a ausncia de conhecimento sobre a frica por grande parte da populao,
sobretudo no meio acadmico e empresarial. A frica no tema corrente na academia que
apenas h pouco tempo tornou timidamente obrigatrio o estudo da histria da frica no
ensino fundamental e mdio nas escolas pblicas do Brasil, a partir da aprovao, em 2003,
da Lei 10.639, pelo governo Lula, diz Lopes (Conferncia, agosto de 2011). Vale frisar que
determinadas Instituies de Ensino Superior, como a Universidade de So Paulo (USP) e a
Universidade Federal da Bahia (UFBA), sempre tiveram um ncleo de estudos africanos.
Outras instituies de ensino superior instituram ncleos de estudos afro-brasileiros e
africanos.
11
Cludio Ribeiro, coordenador do grupo de estudos sobre frica, da Pontifcia Universidade Catlica de So
Paulo (PUC-SP).
21
A propsito, ainda so poucas as pesquisas acadmicas acerca de temticas
africanas no Brasil12
. No campo empresarial, segundo Daniel Pereira, embaixador de Cabo
Verde, existem enormes oportunidades para pequenas empresas, mas apenas grandes
corporaes, como Petrobrs, Camargo Correa, Norberto Odebrecht, Companhia do Vale do
Rio Doce, etc, tm conseguido se firmar nos pases africanos, ampliando, pois, a presena
empresarial brasileira no continente africano 13. Mas, no apenas no plano econmico que
o Brasil e o continente africano esto ampliando e fortalecendo suas relaes, tambm no
plano educacional e cultural na qual ocupamos a analisar seguidamente.
1.3 PEC-G e PEC-PG: Cooperaes Bilaterais Educacional entre o Brasil e a frica
Ao fazermos uma rpida retrospectiva sobre o Convnio Educacional Brasileiro,
identificamos de imediato que desde 1919, j se registrava a presena de estudantes
estrangeiros no Brasil. Tratava-se de estudantes oriundos de Argentina, Chile, Uruguai e
Paraguai que estavam no pas por iniciativas isoladas cursando Ensino Superior na Escola
Militar e na Escola Naval. Em 1941, registrou-se um aumento do nmero de estudantes
estrangeiros nas escolas brasileiras, intensificando-se a partir da a necessidade de celebrao
formal de Convnios de Cooperao Cultural Bilateral que inclua o aspecto educacional. a
partir deste momento que se tem a denominao de estudante-convnio, isto , selecionado
por via diplomtica, com fundamento nesses Acordos Bilaterais do Brasil para atender a
outros pases, especialmente os latino-americanos.
No que diz respeito ao convnio educacional entre o Brasil e os pases africanos,
este se institui a partir de uma ao diplomtica pioneira da Universidade da Bahia-UBA,
12
Vale lembrar que em 20 de agosto de 2008, o Governo Lula enviou para o Congresso Nacional o projeto de
Lei n. 3891/08 sobre a criao da Universidade Federal da Integrao Luso-Afro-Brasileira-UNILAB, uma
instituio de ensino superior pblica sediada na cidade de Redeno, Cear, sendo aprovado em 13 de maro de
2009. A UNILAB estar voltada aos PALOP, Timor Leste e Macau, seu objetivo visa a integrao de CPLP
(http://www.unilab.edu.br/).
13
O comrcio externo brasileiro com os pases africanos no perodo de 2005 cresceu 26%, ao efetuar um recorte
percebemos que o comercio do Brasil com os pases africanos de lngua portuguesa - PALOP cresceu 225%. O
saldo positivo para o Brasil ronda em torno de 640 milhes de dlares. De forma geral o comrcio entre o Brasil
e os pases africanos at outubro de 2007 aumentou significativamente passando de (5) bilhes para (12, 8)
bilhes de dlares. Daniel Pereira acrescenta que a populao mundial corresponde a (7) bilhes de habitantes, a
frica fornece a esse cenrio cerca de (1) bilho de pessoas, o que demonstra ser um mercado importante
FONTE: (Conferncia apresentada por Daniel Pereira, Embaixador de Cabo Verde, Macei, 23 de outubro de
2008).
22
atravs do Centro de Estudos Afro-Orientais CEAO com Itamaty. De acordo com Reis
(2010, p. 141) essas duas instituies foram responsveis pelo estabelecimento de
intercmbios com os pases africanos. Os pesquisadores e religiosos de matriz africana da
Bahia tinham interesse nessa aproximao educacional com os povos nags ou iorubs na
perspectiva de ter contato direto com os ancestrais e reativar conexes culturais e religiosas:
A vinda dos estudantes oriundos dos pases da frica Ocidental (iorubs e nags) significava a reativao dos laos culturais e religiosos. A vivncia destes atores
sociais no Brasil era fundamental para os pesquisadores buscarem razes da
africanidade bahiana nos estudantes iorubs e nags. Portanto, contato com os
estudantes significava encontro com ancestrais. (REIS, 2010, p. 147).
Neste sentido, podemos afirmar que o vis religioso tambm era uma das
perspectivas que impulsionaram o estabelecimento de cooperao educacional entre o Brasil e
os pases africanos no incio da dcada de 1960. Sendo que o primeiro grupo de estudantes
africanos chegou Bahia em 07 (sete) de dezembro de 1961. Um contingente composto de
quinze estudantes, dentre os quais 05 (cinco) de Gana, 04 (quatro) de Senegal, 2 (dois) Cabo
Verde, 1 (um) camarons e 3 (trs) mestios de origem francesa. Estes ltimos vieram realizar
curso de ps-graduao, j que dentro dos critrios estabelecidos pelo Itamaraty, no haveria
restries para bolsas de ps-graduao para estudantes oriundos da universidade de Dakar no
Senegal, diz Reis (p. 148).
Em 1964, o Programa Estudante Convnio de Graduao PEC-G recebe o seu
nome que vigora at hoje em documento do Ministrio de Relaes Exteriores MRE. Em
1967, uma comisso ministerial elaborou o primeiro instrumento normativo com 19 clusulas,
adequado ao padro de um convnio regular e institucionalizado, o qual regulamentava a
oferta e a distribuio das vagas de acordo com o pas, a seleo dos candidatos e a forma de
direcionamento do estudante-convnio nas Instituies de Ensino Superior IES.
Entretanto, no inicio dos anos 70 do sculo XX que a presena dos estudantes
africanos nas universidades brasileiras se tornou visvel, fato decorrente inicialmente da
euforia do processo das independncias dos pases africanos de colonizao portuguesa. Em
1974, celebra-se a reviso do 1 Protocolo de Acordo acrescentando mais clusulas, com a
finalidade de atualizar e tornar simples e operacional, bem como para atender crescente
demanda desse perodo, na qual registrou o ingresso mais de 1.600 estudantes. A partir desse
ano o PEC-G deixa de restringir-se aos pases latino-americanos ampliando o carter formal
para os pases africanos:
23
O estudante-convnio um aluno especial, selecionado diplomaticamente em seu pas pelos mecanismos previstos no Protocolo do PEC-G e dentro dos princpios
norteadores da filosofia do Programa. Este visa cooperao bilateral na rea
educacional, graduando profissionais de nvel superior, dos pases signatrios dos
Acordos de Cooperao (Manual - PEC-G, P. 30).
Em 1981, foi assinado entre a Secretaria de Ensino Superior - SESu do Ministrio
da Educao - MEC e o Departamento de Cooperao Cultural, Cientfica e Tecnolgica do
MRE, um documento Adicional ao Protocolo, com a finalidade de ofertar o ensino do
portugus para os estudantes estrangeiros nas universidades brasileiras, bem como assinatura
do 3 Protocolo para disciplinar o tempo de permanncia do estudante-convnio e a
integralizao nos cursos.
Na dcada de 1990, foi concluda a verso atual como 5 Protocolo e traz em seu
contedo as diretrizes definidas no Manual do Estudante-Convnio; a partir dele o PEC-G
daria prioridade aos pases que apresentassem candidatos no mbito de programas nacionais
de desenvolvimento socioeconmico, acordados entre o Brasil e os pases interessados, por
via diplomtica.
A mobilidade dos estudantes africanos do PALOP nos perodos aps a
independncia de seus pases se dava em maior frequncia com a antiga Unio Sovitica.
Com o fim da Unio Sovitica em final de 1991, uma forte tenso foi gerada na esfera poltica
e econmica nos pases africanos recm-independentes, desencadeando um processo de
realinhamento poltico e ideolgico e de necessidade de integrao desses pases a uma nova e
nica ordem mundial.
Tal processo perpassava a recomposio das estruturas educacionais e
consequente requalificao de recursos humanos desses pases atravs dos acordos
internacionais, parcerias estas promovidas entre os pases para adequao s exigncias de
desenvolvimento, que vo mais alm de celebraes nacionalistas ou partidrias, e atendem
aos modelos de desenvolvimento impostos pelos pases hegemnicos. Os intercmbios
passaram a ser o nico instrumento importante na promoo de novas oportunidades de
formao, possibilitando aos cidados desses pases a obteno de experincias profissionais e
de novas tecnologias. Pellegrino sustenta que:
a circulao internacional de estudantes qualificados ou em vias de qualificao deve ser considerado importante na medida em que no circulam somente pessoas,
mas tambm circulam, sobretudo ideias que favorecem o intercmbio de expresses,
saberes e signos de regies e culturas, enquanto mecanismo importante
manuteno de vnculos transnacionais. A mobilidade de pessoas qualificadas
permite manter maiores nveis de relacionamentos com os pases parceiros devido
uniformizao de cdigos administrativos e profissionais, consequentemente, gera
24
tambm maior nmero de retornos, contudo, do ponto de vista de ser esta migrao
um brain exchange ou brain gain(PELLEGRINO, 2002, p. 23)14.
A cooperao na rea de educao tem sido um instrumento importante para
impulsionar o desenvolvimento por meio da formao de recursos humanos dos pases em
vias de desenvolvimento. A circulao de pessoas, com objetivos da educao formal, parece
ser uma tnica recorrente nas sociedades africanas contemporneas. Hoje, perceptvel a
presena dessa nova categoria de migrantes temporrios ou intermedirios nas universidades
brasileiras. Eles vivem e interagem durante um perodo relativamente prolongado, criando
vnculos sociais profundos nas universidades e nas cidades por onde transitam.
Para Delours (2001, p. 47) as universidades constituem arenas privilegiadas de
interao composta de teias relacionais onde circulam os diferentes discursos que vo
construir subjetividades e na qual os indivduos podem tomar conscincia de suas reais
condies de vida; por isso mesmo, o campo no qual se desenrola parte de uma luta poltica,
fruto de um processo cultural e histrico na fixao dos significados em uma dada sociedade.
Essas subjetividades esto vinculadas s condies de produo da existncia, tanto no
aspecto material quanto imaterial. De acordo com esse autor, a existncia da diversidade, e
consequente diferenciao nesses aspectos, no interior da universidade, possibilita o
surgimento de contedos culturais e simblicos que refletem concepes e interesses distintos
ou mesmo conflitantes.
Apesar disso, Cohen (1997) chama a ateno para pontos fundamentais ao
entendimento das contra-tendncias da globalizao: as mudanas rpidas e densas no mundo
econmico e sua relao com os setores das comunicaes; as formas de migrao
internacional pelos modelos permanente ou temporrio, e a relao de cidadania que se
vincula ao contexto, que altera as transaes, interaes e concentraes de determinados
segmentos do mundo econmico em determinadas cidades; o cosmopolitanismo e o localismo
que atuam na criao e promoo de culturas locais ampliadas como cultura cosmopolita; e
por fim a desterritorializao da identidade social como desafio hegemonia do Estado-
nao.
14
A noo de brain drain abordado na anlise de processo de migrao refere-se aos recursos humanos
qualificados e que estejam no efetivo exerccio da profisso em locais fora de seu pas. Ela pe em evidncia os
aspectos negativos dessa migrao, por se tratar de uma evaso de profissionais qualificados necessrios aos
interesses de desenvolvimento social do pas. Nesse sentido, em oposio viso tradicional de brain drain, uma
nova perspectiva abordada como brain gain refora a ideia de que h outra maneira de perceber o fenmeno,
enfatizando que poderia haver nessa reverso, impactos positivos que as migraes de pessoas qualificadas
geram como inverses (remessas), criao de redes que promovem intercmbio e Cooperao, circulao do
conhecimento e impulsionam a formao de capital humano nos pases de origem (MARQUES, 2003, p. 34).
25
A mobilidade de pessoas, sob uma nova lgica espacial que Castells (1999, p.
468) chama de espao de fluxos, propiciou a fragilidade das fronteiras nacionais alcanada
pela etapa atual do modo de produo capitalista, tendo em vista a produo, a circulao e o
consumo de bens materiais e financeiros e produziu efeitos nas esferas no apenas econmica
e financeira, mas tambm nas dimenses social e cultural.
Sassen (1998, p. 95) sustenta que a globalizao aumentou o volume de fluxos
migratrios e apresenta uma tendncia de crescimento. Os diferentes tipos de mobilidade
sejam laborais, de refugiados, de migrao permanente, ou temporrio estudantil, so
categorias de migrantes que estariam presentes em um mesmo pas, e trariam, portanto,
dificuldades de implantao de polticas governamentais nacionais e internacionais. Importa
frisar que estariam tambm dentro do tema circulao a problemtica da diversidade tnica e
do racismo, aspectos subjacentes, mas que, s vezes, so ofuscados por metforas como a do
hibridismo, que no avana alm das fronteiras tambm hbridas, dificultando lidar, assim,
com a complexidade da questo da diferena, no se levando em conta que a diversidade
ainda constitui a forma de distino entre os indivduos que compem a populao receptora e
as procedentes das outras sociedades, com suas diferentes lnguas e diversas prticas culturais.
Cohen (1997, p. 47) destaca que a relevncia da circulao internacional no
contexto da globalizao no somente inevitvel como tambm potencialmente positiva.
Esse deslocamento massivo dever ser entendido como parte das estratgias de sobrevivncia,
de impulso para alcanar novos horizontes, e a globalizao, neste contexto, age como fator
de estmulo ao aumentar o fluxo de informaes a respeito dos padres de vida e das
oportunidades existentes ou imaginadas em outros pases.
A mobilidade internacional torna-se ainda mais importante, enquanto fenmeno
que se amplia e diversifica os lugares, gerando uma dinmica intensa, e que envolve no
somente aqueles que compem os grupos em movimento, os quais vivem as consequncias
dessa mobilidade espacial, mas tambm as famlias dos migrantes, os locais de origem e as
sociedades receptoras, que participam efetiva e conjuntamente desse cenrio ou desta
realidade social. A partir destes acordos entre o Brasil e os pases africanos novos fluxos e
circulao de pessoas aumentaram reciprocamente luz de dispositivos e aberturas
necessrias na vigncia dos acordos.
No curso deste processo de deslocamento temporrio dos estudantes africanos
para o Brasil, concretamente ao Nordeste Brasileiro, chama a ateno, alm de assuntos
relacionados aos seus pases de origem, um outro fato interessante a lembrar: a questo
relacionada aos seus processos de sociabilidade, insero social e cultural desses estudantes
26
num pas com a existncia de processos de discriminao e racismo. Imagine-se o que
acontece com a percepo e a vivncia destes estudantes, quase todos pretos africanos nesse
contexto, em particular no interior do espao acadmico nesta dispora, enfrentado os
percalos de viver e conviver ainda que temporariamente, fora de casa.
Convm frisar que este trabalho no se trata de uma pesquisa sobre fenmeno
social da migrao, mas de uma perspectiva que procura analisar as dinmicas sociais dos
estudantes africanos em trnsito, no Recife e em Macei; partindo dos princpios de que a
mudana de contextos simblicos ainda que temporrio, e a exposio diversidade, so teis
reconstruo dos liames de sociabilidade e, por extenso, de reconfiguraes de identidades;
pois os processos de sociabilidade que delas decorrem constituem um dos aspectos
fundamentais que tero proeminncia nos prximos captulos.
PARTE 2 - EXPERINCIAS E CONTRASTES DA VIDA FORA DE CASA
2. 1. Trnsitos e conexes: os estudantes africanos no Brasil
Os fluxos de contingente de estudantes vindos das ex-colnias de Portugal em
frica aumentam cada vez mais nas regies do Nordeste Brasileiro, quer em nmero quer em
termos da diversidade de origem tnica, passando a apresentar um perfil escolar e etrio que,
pelas suas especificidades, contribui positivamente na reconfigurao do perfil do corpo
discente, na dinmica intercultural do espao acadmico e no processo de internacionalizao
do conhecimento promovido pelas instituies acolhedoras.
As experincias dos jovens angolanos, cabo-verdianos, guineenses e
moambicanos que fizeram travessia do atlntico na perspectiva de realizarem seus estudos
nas universidades brasileiras, demonstram por meio de relatos, serem uma experincia frtil,
na medida em que, apesar de estarem em trnsito, a interao com os brasileiros e de outros
intercambistas estrangeiros e a troca simblica que dela decorre no espao intra e extra
universitrio nesta dispora, cria uma atmosfera favorvel para que esses atores sociais
redesenhem imagens de si e dos outros, num processo de redescoberta dos prprios pases
de origem e de reclassificao do outro conforme diz (DUBAR 2000).
27
Neste sentido parece ser oportuno trazer a percepo de Bhabha acerca da
circulao contempornea de pessoas:
Encontramo-nos no momento de trnsito em que espao e o tempo se cruzam para
produzir figuras complexas de diferena e identidade, passado e presente, interior e
exterior, incluso e excluso. Isso porque h uma sensao de desorientao, um
distrbio de direo no alm: um movimento incessante, que o termo francs au-del exprime to bem aqui e l, de todos os lados, fort/da, para l e para c, para frente e para trs (BAHBHA apud LOPES e BASTOS, 2010, p. 9).
Segundo Hall (2003) a proliferao de modalidades de identidades ambivalentes
numa multiplicidade entrecruzada e dinmica, das identidades culturais contemporneas, cujo
carter plural e plstico, contextual e interativo, mutvel e entrelaado. Parece, no entanto,
que o prprio questionamento sobre as identidades e socializao reflete as dramatizaes
articuladas com experincias de mobilidade cuja ansiedade est encravada em molduras
duplas de vida. Sposito (1993), ao revisitar os clssicos, verificou que desde Durkheim,
desenvolveram-se reflexes sobre a socializao a partir de diversas perspectivas, de acordo
com o prprio contexto histrico, com concepes distintas de sociedade, dos atores sociais e
das interaes, exprimindo modelos determinados de sociedade e de cultura. Hoje, vrios
autores questionam se tais paradigmas, produzidos no contexto de certa concepo clssica de
sociedade, so capazes de explicar os processos sociais que ocorrem na sociedade
contempornea, no bojo das profundas transformaes