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A ALFABETIZAÇÃO PRECOCE E PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ESCRITA VERONEZI, Ana Mirtiz - UTFPR [email protected] Eixo Temático: Psicopedagogia Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo O objetivo deste trabalho é lançar dúvidas sobre o processo de alfabetização precoce, o qual tem se iniciado aos três, quatro anos, considerando-se o papel desempenhado por diferentes fatores necessários para a aquisição da escrita, tais como a maturação biológica, a prontidão motora e a maturação psicológica e intelectual do indivíduo a ser alfabetizado e letrado. Embora ainda não seja possível prever o sucesso ou fracasso de uma criança através de testes para suas diferentes habilidades, o respeito às etapas do desenvolvimento infantil que levam à capacidade de aprender a ler e escrever pode evitar problemas escolares ou facilitar o aprendizado da escrita, pois escrever não é meta do processo de desenvolvimento da criança nos primeiros anos de sua vida, mas é um processo social importante que se torna possível graças a um conjunto de habilidades desenvolvidas pelo indivíduo. Por volta dos seis anos, a criança já possui a capacidade de distinguir fonemas e começa a relacioná-los com seus grafemas e apresenta maturação psicológica e biológica para a fase escolar. Para o desenvolvimento dessa hipótese sobre a relação de dificuldades de aprendizado da escrita como consequência de um processo de escolarização cada vez mais precoce, este trabalho fará uma breve discussão sobre a escolarização precoce e sobre o desenvolvimento da fala e da escrita, uma vez que a linguagem oral precede a linguagem grafada – a qual tenta transcrever a oralidade com recursos gráficos –, para chegar ao ponto principal deste texto, que é a possível relação entre a alfabetização precoce e os problemas de aprendizagem, sempre focando no respeito à individualidade da criança, mas respeitando um parâmetro mínimo para que todas possam ser inseridas no universo da língua escrita. Palavras-chave: Escrita. Alfabetização precoce. Problemas de aprendizagem da língua escrita. Introdução Desde a década de 1970, as pesquisas na área de aquisição da leitura e escrita começaram a desmistificar a crença de que ler / escrever era uma continuação do falar, pois

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A ALFABETIZAÇÃO PRECOCE E PROBLEMAS DE

APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ESCRITA

VERONEZI, Ana Mirtiz - UTFPR [email protected]

Eixo Temático: Psicopedagogia

Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo O objetivo deste trabalho é lançar dúvidas sobre o processo de alfabetização precoce, o qual tem se iniciado aos três, quatro anos, considerando-se o papel desempenhado por diferentes fatores necessários para a aquisição da escrita, tais como a maturação biológica, a prontidão motora e a maturação psicológica e intelectual do indivíduo a ser alfabetizado e letrado. Embora ainda não seja possível prever o sucesso ou fracasso de uma criança através de testes para suas diferentes habilidades, o respeito às etapas do desenvolvimento infantil que levam à capacidade de aprender a ler e escrever pode evitar problemas escolares ou facilitar o aprendizado da escrita, pois escrever não é meta do processo de desenvolvimento da criança nos primeiros anos de sua vida, mas é um processo social importante que se torna possível graças a um conjunto de habilidades desenvolvidas pelo indivíduo. Por volta dos seis anos, a criança já possui a capacidade de distinguir fonemas e começa a relacioná-los com seus grafemas e apresenta maturação psicológica e biológica para a fase escolar. Para o desenvolvimento dessa hipótese sobre a relação de dificuldades de aprendizado da escrita como consequência de um processo de escolarização cada vez mais precoce, este trabalho fará uma breve discussão sobre a escolarização precoce e sobre o desenvolvimento da fala e da escrita, uma vez que a linguagem oral precede a linguagem grafada – a qual tenta transcrever a oralidade com recursos gráficos –, para chegar ao ponto principal deste texto, que é a possível relação entre a alfabetização precoce e os problemas de aprendizagem, sempre focando no respeito à individualidade da criança, mas respeitando um parâmetro mínimo para que todas possam ser inseridas no universo da língua escrita. Palavras-chave: Escrita. Alfabetização precoce. Problemas de aprendizagem da língua escrita.

Introdução

Desde a década de 1970, as pesquisas na área de aquisição da leitura e escrita

começaram a desmistificar a crença de que ler / escrever era uma continuação do falar, pois

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para o desenvolvimento da leitura e escrita o sujeito precisa de instrução, enquanto a fala é

uma habilidade natural, desenvolvida como instrumento de sobrevivência e comunicação

dentro da espécie humana e, assim, anterior à escrita.

No Brasil, há alguns anos, era normal que as crianças da rede pública aprendessem a

ler na primeira série do ensino fundamental, sendo a pré-escola um período para o

desenvolvimento de habilidades manuais, de interação com o outro e para ambientação com o

espaço escolar. Nas escolas particulares, a alfabetização tinha início geralmente no período

pré-escolar, por volta dos cinco / seis anos, e a criança ingressava no Ensino Fundamental

com noções razoáveis de escrita e leitura.

Gradativamente, adiantou-se o processo de aquisição da leitura e escrita, e em algumas

instituições as crianças começaram a ser expostas ao processo de alfabetização desde os dois

anos de idade, quando já são incentivadas e brincarem com letras e números e a, no mínimo,

reconhecerem a grafia de seus nomes.

Devido à enorme discrepância entre a alfabetização inicial nas escolas públicas e

particulares e por pressões sociais1, o MEC – Ministério da Educação e Cultura – instituiu o

Ensino Fundamental de nove anos2 através do qual prevê que todas as crianças já cheguem à

segunda série do Ensino Fundamental (antiga primeira série) pré-alfabetizadas na língua

portuguesa padrão, para que todas as crianças sejam inseridas no processo de escolarização

com bom desempenho social, psicológico, intelectual e motor, uma vez que os municípios não

conseguiam ofertar vagas no ensino pré-escolar de acordo com a quantidade de público. Ou

seja, a série pré-escola cedeu lugar para a 1ª série oficialmente, a qual é obrigatória para todas

as crianças na rede pública, seja mantida pela prefeitura, subsidiada pelo governo estadual ou

pelo governo federal.

Na prática, o que o governo fez então foi mudar o nome das séries da escolarização

fundamental, para que todas as crianças começassem a ser alfabetizadas por volta dos cinco,

seis anos, mas as conseqüências a médio e longo prazo não foram bem avaliadas ou não se

pensou em medidas paliativas para o combate a excessos na área da instrução formal, pois se

quando a idade inicial e oficial para o aprendizado era de sete anos as crianças já eram 1 A capacidade “precoce” de a criança decodificar a escrita é visto por muitos pais como sinônimo de boa qualidade da escola e de crianças com futuro profissional mais promissor. 2 art. 32 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação: " O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão [...º].”

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expostas desde os cinco ou quatro anos ao processo de leitura e escrita, hoje com o

adiantamento para cinco, seis anos está levando muitas instituições a pensarem na

alfabetização desde os dois, três anos.

Quanto escrever era um processo motor desenvolvido gradativamente com exercícios

manuais e atividades para desenvolvimento de habilidades espaciais na criança, já havia

algumas que enfrentavam problemas dentro da escolarização regular e necessitavam de algum

apoio para superarem tais dificuldades, o que temos visto hoje é a inserção da criança desde

muito jovem ao universo da escrita.

A Escolarização Precoce

Por ser um processo-chave para compreensão do funcionamento das funções cerebrais,

a aquisição da escrita tem sido estudada por diferentes autores de áreas diversas, como

psicolinguística, neurolinguística, psicologia e fisiologia. Como lembra Abaurre (CASTRO,

1996, p. 113), os dados linguísticos coletados no processo de aquisição da escrita infantil são

singulares e variáveis. Entretanto, mesmo nas variações há traços comuns que “marcam” o

processo e que podem ser importantes aliados dos pesquisadores para compreensão de um

determinado objeto de estudo do interesse do pesquisador.

Por exemplo, elementos da língua escrita começam a ocorrer gradativamente na

produção escrita infantil. È o que acontece com a “regularização” de verbos irregulares por

crianças abaixo dos quatro anos (às vezes cinco anos) na fala em um primeiro momento e a

assimilação gradual das irregularidades linguísticas, os marcadores temporais para passado,

presente e futuro também começam a aparecer gradativamente na escrita infantil (SILVA,

2009, p. 180).

Quanto ao período para alfabetização, Emília Ferreiro (FERREIRO, 2000, p. 38) não

refuta a hipótese de a criança já adentrar esse processo entre os quatro e seis anos de idade,

mas a psicolinguista e psicóloga argentina defende que o interesse da criança pode ser

despertado pelos cuidadores ou pais, sem haver uma alfabetização formal como muitas

escolas e pais têm defendido. A autora ainda foca nas experiências educativas para crianças de

quatro, cinco, anos em que ninguém as obriga a aprender, mas lhes oferecem materiais

adequados para tais práticas (2000, p. 48).

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Ou seja, Ferreiro não incentiva o início precoce da alfabetização, pois a autora

(FERREIRO, 2000, p. 39) defende que aos seis anos a criança precisa estar exposta a material

escrito de qualidade, através de adultos lendo para ela para que este jovem aprendiz perceba a

importância do ato de leitura e consequentemente da escrita e os valorize, começando assim

um processo de alfabetização o mais natural possível, o qual levará ao letramento desse

aprendiz.

Porém, o processo de escrita não é natural da espécie humana, pois este requer

algumas habilidades – mais especificamente cinco, para a autora – as quais precisam estar

presentes para que a alfabetização ocorra. Tais processos são a simbolização, que é a relação

presente entre os objetos e seus significados, a discriminação entre letras e traços comuns

sobre a folha de papel, a discriminação letra/fonema –, pois se a criança tiver dificuldades

para compreender determinado som ela não conseguirá grafá-lo, a compreensão da

organização do texto na página, e aquisição do conceito de “palavra” para que a criança possa

adentrar o processo de escrita.

Todos os fatores acima podem ser considerados importantes, mas a simbolização é de

todos o processo inicial para a alfabetização pelo fato de as letras serem, em essência,

símbolos relacionados a sons. De modo semelhante, as palavras são representações para

“conceitos” ou signos lingüísticos do mundo, e a temporalidade – objeto de estudo deste

trabalho – é, também, simbólica; com exceção do efêmero “agora”, os demais marcadores

conversacionais exigem o desenvolvimento da construção simbólica por parte do aprendiz,

pois não será possível falar do que já aconteceu (uma vez ou várias) ou sobre o que irá

acontecer se o aprendiz não tiver bem estabelecido para si essa relação simbólica entre o

“fato” e o “momento” de sua ocorrência.

Silva (2009, p. 140) cita Emile Benveniste parta lembrar que para esse autor é a

linguagem que insere a criança na sociedade, pois a língua é o que desperta a consciência da

criança. A autora ainda diz que é “essa faculdade simbolizante, própria do homem, que

permite a formação de conceito como distinto de objeto concreto, que não é senão um

exemplar dele” (SILVA, 2009, p.140).

Entretanto, antes dos seis anos de idade, a criança não consegue diferenciar letras de

desenhos, tanto que é comum crianças pequenas misturarem, em suas tenras produções,

desenhos com letras para contarem suas histórias. Ainda, em uma etapa seguinte a criança

percebe cada sílaba como sendo formada por apenas uma letras representante, para daí em

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diante começar a adicionar outras letras às sílabas até que por volta dos seis, sete anos começa

a perceber a nasalização e começa a tentar representá-la com grafemas diferenciados até que

por volta dos sete, oito anos, todas têm consciência da nasalidade da língua e sob instrução

começa a dominá-la na grafia das palavras.

Ferreiro (2000, p. 60) diz que por volta dos seis anos a criança já consegue distinguir

letras e desenhos, o que pode ser uma pista para uma “prontidão” infantil para a alfabetização

propriamente dita após os seis anos.

A própria Ferreiro (2000, p. 60) prefere não se ater ao termo prontidão para o processo

introdutório na escrita por entender que esse dado se associa a vários fatores – sociais,

psicológicos, motores, por exemplo – mas lembra que a escrita depende de toda uma

preparação individual presente na criança.

O objetivo específico de escola deveria ser verificar a validade desse início precoce na

alfabetização, pois se a criança ainda não se encontra cronologicamente inserida como sujeito

enunciativo em uma linguagem esse processo pode ser apenas pictográfico, o que poderia lhe

causar problemas posteriores para o estabelecimento da relação gráfica, e lhe causar

problemas futuros para a aprendizagem da escrita.

O desenvolvimento da fala e a escrita

A maturação da criança, embora seja um processo não-mensurável com exatidão, pode

ser percebido pelos profissionais da área da saúde e, principalmente, da educação, pois a

escrita não começa na sala de aula com a professora ensinando as primeiras letras. É um

processo que tem início desde o nascimento da criança, quando essa entra em contato com os

sons da língua falada em sua comunidade e se apresenta concretamente em sala de aula com

um vocabulário adequado para se expressar de acordo com sua idade, o domínio de elementos

da língua oral, como uma capacidade narrativa já desenvolvida, por exemplo, e uma maior ou

menor facilidade para o aprendizado. Desse modo, a escrita é um processo que começa muito

antes da escola, e:

Quando vai para a escola, a criança já percorreu um longo caminho elaborando sua

linguagem, inserindo-se na língua de sua comunidade. Linguisticamente, a criança

não é tábua rasa. Ela é perfeitamente proficiente em sua língua materna e continua a

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aprender outras modalidades da fala/linguagem, dentro e fora da escola. Isto é, a

operar com objetos lingüísticos. Assim, a escola vai lhe proporcionar o acesso a

outras gramáticas a partir de modalidades escritas pertencentes a modalidades

escritas (MUSSALIM; BENTES, 2000, p. 229).

Assim sendo, desde o nascimento, cada som emitido pela criança ganha um

significado (MUSSALIM; BENTES, 2000, p. 225), e aos poucos ela aprende a interagir com os

demais de sua comunidade linguística. Tal processo inicia-se com o infante entendendo

estruturas complexas e gradativamente também as produzindo Chomsky (CASTRO, 1996, p.

115), numa velocidade assustadora e quase inexplicável, pois, como lembra, elas estão

expostas a fragmentos da língua, mas conseguem unificá-los e produzir falas infinitas.

Por volta dos dois, três anos, a criança começa a narrar pequenos fatos, embora ainda

não domine o aspecto temporal, mas desde antes dessa idade já tenta assimilar as historinhas

infantis, que lhes são narradas por seus pais ou cuidadores. A escrita está, então, em processo,

pois a criança está adquirindo vocabulário, além de tentar usar palavras significativas para sua

comunidade para se expressar.

Aos quatro, cinco anos, as trocas fonéticas tendem a desaparecer, pois a criança já tem

um senso apurado dos sons de sua língua e consegue ouvir sua própria fala e adequá-la ao

ambiente em que está. Nesse momento, os fonemas da língua são “reais” para a criança, que

já consegue se expressar com desenvoltura, narrar histórias mais complexas e começa a

dominar a relação tempo/ação dos acontecimentos.

No aspecto sensório-motor, a criança por volta dos cinco, seis anos, também se mostra

mais hábil manualmente, pois sua coordenação motora fina está bem desenvolvida. Além

disso, ela mostra-se capaz de dominar movimentos mais apurados e tem maior habilidade com

objetos, o que facilita a preensão do lápis e a capacidade de escrever dentro das linhas.

Ainda, algumas pesquisas demonstram que por volta dos seis anos o cérebro já

apresenta uma lateralização pré-definida. Assim, a criança consegue ter noções concretas de

espacialidade e de direita/esquerda, sua visão foca em um ponto específico – pois também já

está bem definido qual é o olho dominante da criança – e sua audição está mais apurada para

as diferenças da sua fala em relação a dos demais de seu grupo linguístico. Nesse momento,

as trocas fonéticas em relação a sua comunidade tendem a desaparecer, pois a criança irá

ajustar sua fala à de sua comunidade.

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Então, com a linguagem bem desenvolvida, com os aspectos sensório-motor geral e

fino desenvolvidos, com capacidade de estruturar narrativas tendo domínio do aspecto

temporal, torna-se mais fácil o processo de alfabetização da criança e, consequentemente, seu

letramento3.

Ainda de acordo com Silva (2009, p. 187), é nessa relação com as outras pessoas do

discurso, e com a atualização constante deste, que a criança toma sua posição de locutor,

opera sua entrada através de formas e mecanismos (como a presença de marcadores

temporais, por exemplo) no semiótico e semântico da língua de sua comunidade, uma vez que

a comunicação exige domínio de elementos linguísticos e extralingüísticos, como símbolos,

gestos, interpretações contextualizadas etc.

Como Lemle também defende, o estabelecimento das relações simbólicas dos signos é

fundamental para que o processo de alfabetização possa acontecer efetivamente (LEMLE,

1995, cap. 2), pois somente com essa habilidade de interpretar essas “representações”

desenvolvida a criança é capaz de realizar o discurso com seu funcionamento subjetivo e

referencial (SILVA, 2009, p. 187), isto é, apenas nesse momento a criança começa a interagir

voluntariamente com sua comunidade de fala.

Com esse desenvolvimento completo da oralidade infantil, a criança está pronta para

adentrar o universo da escrita e tentar simbolizar a fala e seus pensamentos por meio de

grafemas da língua escrita, aprendendo a operar com suas regras e elementos limitadores da

tão rica expressão verbal.

A alfabetização precoce como possível causa para problemas de aprendizagem

Como visto até aqui, não é possível separa o desenvolvimento global da criança,

incluindo seu completo desenvolvimento oral, como elementos fundamentais para o processo

de alfabetização. No entanto, o que tem sido visto são escolas “queimando” etapas com o

consentimento ou sob a pressão dos pais, pois há uma ânsia pela aprendizagem precoce da

leitura e escrita, como se esse desenvolvimento pudesse dar vantagens intelectuais futuras à

criança. Como resultado, as clínicas e consultórios de diferentes especialidades estão

3 Letramento difere-se de alfabetização por ser esta a decodificação de grafemas e a compreensão de palavras, enquanto o letramento é a capacidade que o indivíduo adquire de compreender uma informação de modo global.

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recebendo pacientes muito jovens, ora porque ainda não sabem falar determinado som, ora

porque confundem letras, ora porque são dispersivos e querem brincar, quando lhes é imposto

participar de determinada atividade escolar na educação infantil.

Nesse momento, surgem rótulos variados: a criança que ainda não consegue ler e

escrever, pelo fato de, na maioria das vezes, não entender o papel da escrita ou não ter alguns

aspectos individuais desenvolvidos o suficiente para a realização de tal atividade, é

considerada com suspeita de dislexia4; a criança que se distrai e não quer estudar é tida como

um indivíduo com TDAH5, quando às vezes ela não está preparada para a tarefa que lhe estão

impondo.

As estatísticas mostram que em 2007 menos de 30% das crianças da 4ª série do Ensino

Fundamenta no Brasil conseguiram assimilar o conteúdo de Língua Portuguesa previsto para

sua série (ONG MOVIMENTO..., 2007.) – embora tais dados ainda não possam ser

considerados confiáveis, pois não há uma exigência de testes avaliativos para a alfabetização

de crianças.

Não podemos afirmar que a escolarização precoce seja o elemento que mais influencie

ativamente nesses dados, mas quando o governo implantou a escolarização de nove anos para

o Ensino Fundamental, uma das justificativas foi assegurar que todas as crianças tivessem

acesso à alfabetização desde os seis anos de idade e, consequentemente, aos sete anos as

turmas seriam mais homogêneas – dentro de suas limitações.

Entretanto, não se enfatizou a necessidade de um trabalho de estímulo ao

desenvolvimento das habilidades infantis necessárias para que a alfabetização seja bem-

sucedida – talvez porque o governo soubesse que em muitas regiões do Brasil a educação

infantil ainda seja restrita a poucos na rede pública e que nas cidades em que esse serviço se

estende a quase toda a população o foco esteja em oferecer um lugar, com alimentação,

higiene e atividades lúdicas, para que as crianças possam permanecer ao longo do dia para

enquanto seus pais trabalham.

Torna-se imperativo, ainda, dizer que se houver o desenvolvimento bem-sucedido do

processo de decodificação, que engloba atividades para o desenvolvimento da acuidade

4 Dificuldade leve, moderada ou severa para aquisição da leitura e escrita, mas que pode ter seus sintomas amenizados com um tratamento adequado. 5 Transtorno e Déficit de Atenção e Aprendizagem, o qual causa o não aprendizado, seja pelo fato de o aluno não conseguir se concentrar no conteúdo e/ou pelo fato de ele não conseguir permanecer muitos minutos executando a mesma atividade.

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auditiva, visual, cognitiva e motora, espera-se que a criança não tenha problemas no

percurso do letramento (compreensão da leitura) e escrita, e que este processo seja

eficaz e tranquilo. Pois de todas as faixas etárias a mais fácil de ser alfabetizada é a criança.

E como também destacou a Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos

Deputados:

O processo de alfabetização implica a descoberta do princípio alfabético, o segredo

do funcionamento do código, que reside nas correspondências entre grafemas e

fonemas. Além disso, implica um trabalho cognitivo permanente, que leva à

identificação e correção das discordâncias entre o que é esperado e o que é

percebido. Para realizar esse trabalho – eminentemente intelectual – a criança

precisa assimilar, com rapidez e precisão, os níveis de informação presentes no

texto, utilizando as competências da decodificação.

No entanto, as crianças têm um limite mínimo, variável de criança a criança, e já que

não é possível mensurar com exatidão qual a idade em que a criança está apta para a

alfabetização, o mais adequado seria deixar uma “margem segura” de tempo, preparando-a,

seja nas escolas de educação infantil, seja em casa, com estímulos ao seu desenvolvimento

global – e não apenas “adultização”6 das crianças, pois a idade de cinco ou seis anos já pode

ser vista como um tanto precoce para a introdução de todas as crianças no universo da escrita;

exigir, então que já estejam lendo aos cinco, seis anos, parece estar lhes causando transtornos

e bloqueios que podem prejudicá-las seriamente em seu contato e relacionamento com o

universo da língua escrita.

Tais bloqueios e problemas, aliados às expectativas de seus pais e da falta de

preparação da escola para lidar com esse público extremamente frágil e com a pressão da

sociedade, têm levado a diagnósticos precipitados e a conclusões evasivas sobre problemas de

aprendizagem, os quais muitas vezes se encaixam dentro de um ou mais distúrbio, e enquanto

a ciência diz que o índice de pessoas portadoras desses distúrbios é baixo, pois pesquisas

6 Na atualidade, as crianças são incentivadas e se comportarem como pequenos adultos, com hábitos de consumo e atitudes sociais semelhantes aos de faixas etárias mais velhas, o que tem sido visto como um empecilho para o processo de maturação psicológica de tais crianças, uma vez que tudo parece ser permitido quando não se tem ainda consciência de todas as relações simbólicas, familiares, sociais e relacionais em suas comunidades.

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mostram que fatores genéticos contribuem com 0.9% dos casos, enquanto uma análise

neuropsicológica inclui de 3 a 5% das crianças em idade escolar neste diagnóstico

(BERTUCCI; DINIS, 2007, p. 139), em algumas escolas o índice tem superado todas as

expectativas da ciência, sendo que os responsáveis pelos diagnósticos muitas vezes são a

própria escola ou uma determinada especialidade, sem muitos critérios e avaliações.

Considerações Finais

Embora a idade cronológica não seja correspondente em todas as crianças, é possível

afirmar que poucas conseguem desenvolver as habilidades necessárias para uma alfabetização

regular antes dos seis anos de idade e, se bem apoiadas pelo meio em que se encontram,

talvez aos cinco anos algumas já estejam aptas para serem alfabetizadas, mas antes desse

período talvez seja exigir-lhes habilidades que estão além de suas atribuições psicobiológicas,

e essa falta de preparação das escolas e a falta de bom-senso paterno talvez estejam tornando

esse processo simples – se bem desenvolvido – em um processo muito mais complexo, com

cobranças por parte da família e sentimento de incapacidade ou de frustração para parte dos

aprendizes.

Consequentemente, a introdução precoce ao universo da escrita pode interferir no

desenvolvimento escolar normal da criança, pois se não há habilidades requeridas para que o

processo de alfabetização ocorra, o pequeno aprendiz pode não ser capaz de aprender e

acompanhar outros colegas nesse processo.

Não se trata apenas de se estabelecer uma idade mínima, mas a alfabetização exige

uma série de fatores, incluindo-se e acentuando-se a relação cognitiva do aprendiz com a

linguagem; assim, esperar que uma criança muito pequena os tenha pode lhe trazer

transtornos em alguma área de sua vida, escolar ou psicossocial; e mesmo que esta consiga,

gradativamente e com auxílio de diferentes profissionais, seguir pelo processo de

escolarização, para ela o período escolar deixará de ser um processo “natural” por que passam

todas as crianças, sendo provavelmente visto como um período de frustrações, incapacidade e

a busca por superação constante.

REFERÊNCIAS

BERTUCCI, Liane Maria; DINIS, Nilson Fernandes (Org). Mútltiplas Faces do educar:

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processos de aprendizagem, educação e saúde, formação docente. Curitiba: Editora UFPR, 2007. CASTRO, Maria Fausta Pereira de (Org.). O método e o dado no estudo da linguagem. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996. COMISSÃO DE EDUCAÇÃO E CULTURA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. Alfabetização Infantil: Os Novos Caminhos – Relatório Final. In: Seminário O Poder Legislativo e a Alfabetização Infantil: Os Novos Caminhos. Brasília. Disponível em: <http://www.pfl.org.br/alfateizacao/relatorio_final.pdf>. Acesso em 15 set. 2003

FERREIRO, Emília. Com todas as letras. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2000.

LEMLE, Miriam. Guia teórico do alfabetizador. 1ª ed. São Paulo: Ática, 1993. O N G M OV I M E N TO t o d o s p ela e d u c a ç â o. D i s p o n í v e l e m: <http://www.todospelaeducacao.org.br/Numeros.aspx?action=42>. Acesso em jun. 2009 MUSSALIM, Fernanda.; BENTES, Ana. C. (Orgs.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. São Paulo: Editora Cortez, 2000. SILVA, Carmem Luci da Costa. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Capinas: Pontes, 2009.