A alma humana- ser e operações segundo Santo Tomás de Aquino

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  • 7/24/2019 A alma humana- ser e operaes segundo Santo Toms de Aquino

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    A alma humana: ser e operaessegundo Santo Toms de Aquino[1]

    Na antiga filosofia grega, os maioresproblemas acerca da alma humanagiravam em torno de quatro questesprincipais:

    sua natureza (ser);

    sua origem (causa);

    as relaes que mantm com o corpo(operaes);

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    s u a s o b r e v i v n c i a a o c o r p o(imortalidade).

    Esses problemas foram abordados exausto por Plato e Aristteles, que,apesar das posies antagnicas notocante a vrias questes atinentes alma, influenciaram grandemente aCristandade em distintos momentos

    histricos.

    conhecida a posio de Plato segundoa qual a alma humana por natureza

    totalmente espiritual, sendo a sua uniocom o corpo acidental. Aristteles, por suavez, matiza a tese platnica frisando que aalma , sim, de natureza espiritual, masforma com o corpo uma unio substancial.

    Estes princpios, no que diz respeito aoproblema da sobrevivncia da alma aps a

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    morte, tero profundos reflexos na doutrinadestes que so os dois maiores filsofosgregos: Plato, partindo da premissa daabsoluta espiritualidade da alma, e de elaestar no corpo como em uma priso segundo a sua famosa expresso , notem problemas em afirmar que a alma deper si imortal, dada a sua imaterialidade econseqente incorruptibilidade, e que faraps esta vida um retorno ao mundo dasId ias (das Formas arquet p icasabsolutamente separadas da matria).

    Para Aristteles, embora espiritual, a alma imortal to-somente no que tange sfunes do intelecto.

    Para chegar a esta concluso, o Estagiritaprecisou superar algumas aporias, e nesteponto vale registrar o seguinte: embora asua concluso seja acertada e congruentecom os princpios de que parte, h

    imprecises conceptuais em sua teoria,zonas de zombra que sero esclarecidas,

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    eliminadas, resolvidas por Santo Toms deAquino, muitos sculos depois. O DoctorCommunis, sem abrir mo do arcabouometafsico que informa a psicologiaa r i s t o t l i c a , i n o c u l a n e l a o saperfeioamentos realizados por suasntese magistral entre a teoria deAristteles do ato e da potncia e oconceito platnico de participao lanando novas luzes sobre o problema. E,como no poderia deixar de ser, o Anglicotambm lhe acrescenta boa dose de

    teologia crist, partindo dos dadosrevelados na Sagrada Escritura.

    No tocante origem da alma, para Plato

    evidente que ela se d fora do corpo,alm de possuir em relao a ele umaprimazia ontolgica e cronolgica. ParaAristteles, a alma humana co-originadacom o corpo, com o qual forma uma

    unidade substancial, e o compostohilemrfico humano corpo (matria) e

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    alma (forma) desenvolve as suaspotncias com o passar do tempo. Haveriauma evoluo neste desenvolvimento: daalma vegetativa passar-se-ia sensitiva, eda sensitiva intelectiva. No o caso deapontar, neste breve texto, os reflexosdessa premissa de Aristteles na obra doAquinate, mas registre-se que ela conduziuo autor medieval a uma tese que aindahoje d margem a muita discusso entreos tomis tas , no tocante a suasconseqencias teolgicas e morais: a alma

    seria infundida por Deus depois de o corpo com relao potncia sensitiva estar apto a receb-la, o que levou algunsdefensores do aborto a se apoiar em SantoToms de Aquino para justificar suas

    teorias, embora a part i r de umainterpretao totalmente forosa e errnados textos do mestre medieval.

    A filosofia e a teologia crist dos primeirossculos encontraram em Plato o autor

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    que presumivelmente convalidaria, doponto de vista filosfico, a mensagembblica. Isto bastante claro, por exemplo,em Clemente de Alexandria e Orgenes(sc. III). Um pouco mais tarde, SantoAgostinho ratifica a autoridade de Plato,expurgando da obra do mestre gregoalgumas mitologias e teses de cartergnstico. No tempo de Santo Toms deAquino, sculos depois, a Cristandadelatina depara-se com a descoberta deAristteles pelo vis da hermenutica

    rabe (sobretudo averrosta), e, como sabido, a recepo da obra do Estagiritapor parte de telogos cristos e tambmpelo Magistrio foi permeada de umadesconfiana profunda: a de que se

    tratasse de algo contrrio f. SoBoaventura, por exemplo, aponta em seuComentrio aos Dez Mandamentos que,desde os estudos na Faculdade de Artesde Paris, ainda jovem, teve pssima

    impresso de Aristteles, porque esteafirmava que o mundo eterno

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    contrariando frontalmente a letra e oesprito do Livro do Gnesis.

    Neste ambiente totalmente adverso recepo da obra do Estagirita no maiorplo cultural da Cristandade medieval,Paris, Santo Toms se afasta doneoplatonismo cristo e opta clara ecorajosamente por Aristteles. A histriadas querelas em que se envolveu (paraexpurgar a obra do Estagirita dos erros da

    interpretao averrosta, no seio daCristandade) arquiconhecida nos diasatuais; e, especificamente, com relao aotema da alma, o Aquinate assimila osprincpios da teoria aristotlica, no sem

    lhe fazer preciosssimos aperfeioamentose correes.

    1. Natureza da alma

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    Aps acolher a formulao de Aristtelesno livro II do Peri Psich de que a alma oato primeiro de um corpo naturalorganizado, Santo Toms salienta que ela de natureza imaterial, ou seja, espiritual.Mas a sua espiritualidade no evidente,razo pela qual preciso realizar acercadeste tema uma sutil e diligente inquirio(diligens et subtilis inquisitio SumaTeolgica, I q.87, a.1). Ora, o princpiointelectivo, chamado de mente ou

    intelecto, possui uma atividade prpriaque independente do corpo no tocante causa eficiente: entender e querer. Assim,embora o corpo sirva para a inteligncia epara a vontade como causa instrumental,

    os atos prprios dessas duas potnciasno mantm com o corpo uma relao dedependncia necessria, do ponto de vistada causalidade eficiente: ter crebro, porexemplo, no garante por si a alunos de

    matemtica o entendimento dos teoremasexpostos pelo professor em sala de aula,

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    pois in actu exercito o entendimento absolutamente imaterial e no radica nasfunes cerebrais, que esto para elecomo uma espcie de substrato material,apenas, com potncias predisponentesaos atos propriamente humanos deentender e querer, mas no ao modo decausa eficiente. Na prtica, necessriodispor as potncias intelectivas e volitivaspara o exerccio timo de sua atividadenotica por meio da aquisio de hbitos,que, na metafsica tomista, so o

    intermedirio entre a potncia e o ato.

    Seja como for, aqui apresenta-se umproblema: se a alma a forma substancial

    do corpo tese aristotlica acolhida porSanto Toms , como poderia realizaralgumas operaes sem o corpo? Aresoluo de Santo Toms parte dapremissa de que a inteligncia humana ,

    antes de tudo, potncia para os inteligveis,ou seja, pode ela conhecer todas as

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    naturezas. Ora, tal conhecimento no podeser obstado pelos limites fsicos damatria, pois neste caso o nicoconhecimento possvel seria o sensitivo,como ocorre com os animais irracionais,cujo mximo grau de abstrao da matria a chamada potncia estimativa, anloga potncia cogitativa nos homens.

    Portanto, o intelecto, no ato de entender, imaterial, e ser imaterial aqui significa que

    no depende da matria seja em suaessncia, seja em sua atividade. Naverdade, as operaes do intelecto tm porobjeto essncias abstratas e universais ebuscam enunciar relaes necessrias,

    universais e intemporais, o que exclui ahiptese de serem realizadas por rgoscorporais pois estes nos apresentam ocontingente, o particular e o temporal.Nesse sentido, como afirma o filsofo

    espanhol Juan Cruz Cruz em suaapresentao edio espanhola da

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    Questo Disputada Sobre a Alma, oesprito humano possui finitude atual einfinitude virtual.

    Diz a este respeito Santo Toms:

    No existe dificuldade alguma em admitirque a capacidade de uma substnciaintelectual finita se estenda a coisasinfinitas (...), dado que a sua capacidade

    intelectiva de algum modo infinita, poisno delimitada pela matria. Da quepossa conhecer o universal, o qual decerto modo infinito, na medida em quecontm em si coisas infinitas em potncia.

    (Toms de Aquino, De An, a. 18, ad 3).

    Noutras palavras, embora seja copartcipe,juntamente com o corpo, da essncia

    humana, a alma racional o transcende noexerccio formal dos seus atos prprios

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    o que demarca a sua intr nsecaimaterialidade. Neste tpico, convmsalientar que, quando se fala deimaterialidade da inteligncia, se estf a l a n d o , a o m e s m o t e m p o , d eimaterialidade da vontade, a qual umapetite intelectivo do bem. Isto quer dizer oseguinte: no ato de volio, a almatambm opera sem depender formalmentedo corpo, embora este sirva de substratoinstrumental para os quereres humanos,na medida em que todo conhecimento das

    coisas passa, de alguma forma, peloaparato sensitivo (senso comum, memria,potncia imaginativa e potncia cogitativa),e a vontade para atuar alimenta-se, comoveremos adiante, de formas imateriais

    subministradas pela inteligncia.

    2. Substancialidade da alma

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    Verificada a primeira caractersticaessencial da alma humana, ou seja, a suaintrnseca espiritualidade, que lhe demarcaa diferena especfica com relao almados animais irracionais e alma dosvegetais incapazes de transcenderformalmente matria , precisoconsiderar a seguinte propriedade: suasubstancialidade. Em Santo Toms, ademonstrao dessa propriedade corrigeas incertezas e ambigidades daantropologia aristotlica.

    Na citada Questo Disputada Sobre aAlma, h um artigo sobre essa questo emq u e s e a r r o l a m a l g u m a s t e s e s

    inadmissveis para o Aquinate: as defilsofos materialistas, de uma parte, queno c red i t avam nenhum ca r te rsubstancia l a lma rac ional e aequiparavam a outras formas naturais

    contingenciadas pela matria; e a depensadores platnicos que, no obstante

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    afirmarem ser a alma uma substncia,q u e r i a m c r e d i t a r a e l a u m atranscendentalidade absoluta em relaoao corpo, chegando a dizer que o homem a alma. Esta premissa para o grandegnio medieval absurda, pois implicadesprezar o corpo como um dos elementosconstitutivos da essncia humana. Ora, aevidncia da essencialidade do corpo nocomposto humano leva o Doutor Anglicoa dizer o seguinte, depois de uma srie depremissas harmonicamente ordenadas

    entre si:

    Deve-se concluir que a alma, para podersubsistir por si (per se potens subsistere),

    no tal que forme uma espcie completa,mas entra na espcie humana como formado corpo. Assim, se pode dizer que a almaseja uma forma que substncia. (Tomsde Aquino, De An. a. 1)

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    Pois muito bem. Sabedor de que o operarsegue o ser (operari sequitur esse), ouseja, de que nada pode operar senoenquanto , e tendo demonstrado aespiritualidade da alma racional (e, porconseguinte, a sua independncia comrelao ao corpo no que tange suaoperao tima: entender e querer), oAquinate recorre fina distino entreessnc ia e se r pa ra apon ta r asubstancialidade da alma. Em resumo, aalma humana, mesmo sendo imaterial,

    possui uma radical distino metafsicacom relao imaterialidade da essnciadivina: nela h composio de essncia eato de ser, ao passo que em Deus hidentidade mxima, sendo a Sua essncia

    simplesmente ser (esse simpliciter).

    Isto quer dizer o seguinte: o ser da almahumana no simplcimo, em sentido

    metafsico, mas composto, pois nele sedo ato e potncia. Por exemplo, a alma

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    racional tem potncia para entender(intelecto possvel) e entende em ato(intelecto agente), sendo o conhecimento

    justamente este movimento imaterial,acidental, da potncia intelectiva. Deus, aocontrrio, o que entende, pois tudo nEle o Seu prprio conhecer, ao passo que aalma humana no se identifica em termosabsolutos com o seu prprio entender: ela, como se frisou acima, finita em ato einfinita em potncia, ao passo que Deus absolutamente infinito em ato, no

    havendo nEle potncia passiva alguma.Deus o Prprio Ser Subsistente, aopasso que todos os entes tm o serparticipado por Ele. Exclua-se, pois, dohorizonte metafsico o Ipsum Esse

    Subsistens, e toda a realidade dos entesse tornar aportica.

    Eis a distino metafsica que representa,

    para alguns tomistas, uma das grandes

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    novidades do Aquinate no tocante a estetema:

    a alma humana ontologicamentesimples (dada a sua imaterialidade), emetafisicamente composta (dada a suacomposio de essncia e ser).

    3. Unio da alma com o corpo humano

    Dadas estas duas caractersticas principaisda alma humana (espiritualidade esubstancialidade), Santo Toms no

    encontra dificuldade alguma em fazer suaa tese aristotlica da unio entre alma e

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    corpo, assumindo neste ponto os conceitosdo hilemorfismo do Estagirita. A alma aquilo por meio do qual o corpo humanopossui o ser em ato, e isto prprio deuma forma. Portanto, a alma humana aforma do corpo. (Toms de Aquino, De An.a.1, ad.7).

    D u a s s o , p o i s , a s p r i n c i p a i scaractersticas dessa unio:

    1.) ela substancial. Para evidenciar istoSanto Toms lembra que, quando a almaabandona o corpo, no resta nada nele deprioriamente humano, a no ser a

    aparncia, e dizer isto significa que ocadver no tem potncia para atualizarnenhuma das atividades prprias edistintivas do ente humano. Assim, se aalma estivesse no corpo [acidentalmente]

    como um marinheiro [est] num navio[metfora usada por vrios filsofos

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    platnicos], no imprimiria o carter deespcie a esse corpo. (Toms de Aquino,De An. a.1, ad.7).

    2.) justamente por ser substancial, essaunio abarca o ser e o operar. A alma estunida ao corpo para a sua perfeiosubstancial, isto , para a completude daespcie humana, e tambm para a suaperfeio acidental, ou seja, para isto aque chamamos conhecimento intelectivo,

    ao qual a alma chega por meio dossentidos, sendo este o modo de conhecerconatural ao homem (Toms de Aquino,De An. ibid, ad.7.).

    Em sntese, no homem h uma s almaque abarca todas as operaes daspotncias inferiores (vegetativas esensitivas) e superiores (intelectivas e

    volitivas). Eis as palavras claras de SantoToms: Sendo a alma uma forma

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    substancial, que constitui o homem emdeterminada espcie de substncia, [preciso dizer que] no existe uma formasubstancial intermdia (...), mas o homem,dada essa alma, aperfeioado segundoos diversos graus de perfeio, em razodo seu modo de ser [primeiramente] corpo,de ser corpo [vegetativo e] animado e [porfim, de ser] alma racional. (Toms deAquino, De An. ibid, ad.9.).

    Segundo esta teoria, a alma racional no uma dentre tantas formas no compostohumano tese da pluralidade das formasno homem , mas uma nica perfeioent i ta t iva que absorve e abarca

    formalmente todas as funes daspotncias superiores e inferiores. Sendosimples quanto essncia, a alma humana potencialmente mltipla, enquanto princpio de variadas operaes. E como a

    forma aperfeioa a matria no apenasquanto ao ser, mas tambm no tocante ao

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    operar, necessrio que a alma, sendoforma [imaterial] nica, aperfeioe aspartes do corpo de variados modos,afirma o Doutor Anglico (Toms deAquino, De An. ibid, ad.14.).

    Neste ponto vale mencionar que a tese dapluralidade das formas no compostohumano era quase unanimementedefendida na Universidade de Paris notempo de Santo Toms. E mais: o

    escndalo causado pela teoria tomista(demonstrada por ele filosoficamente, e,dcadas depois, referendada peloMagistrio da Igreja) contribuiu para afamosa condenao de 1277 pelo bispo

    Estvo Tempier da tese da unicidadeda forma substancial da alma humana. Ahistria do embate solitrio de Toms deAquino com praticamente todos os mestresdo seu tempo (telogos e filsofos), assim

    como com vrios irmos de f, aponta parao papel que cabe ao verdadeiro filsofo

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    (amicus Plato, sed magis amica veritas)como defensor da verdade: levar osprincpios at o fim, ainda que arcandocom o nus do oprbio, do desprezo, dacondenao. O fato que, anos depois damorte do Aquinate, a verdade de sua teoriaimps-se, e a escola tomista ao longo de700 anos t ra tou de mos t ra r asabsurdidades e aporias da tese pluralista.

    4. As faculdades da alma: primaziaontolgica da inteligncia e da vontade

    Em meio vastssima gama de operaesrealizadas pela alma humana, SantoToms enfatiza a excelncia de suas duasfaculdades principais: a inteligncia e a

    vontade.

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    A vontade: movimento apetitivo-intelectivotendencial ao bem

    Em vrias passagens de sua imensa obra,Santo Toms frisa que a vontade oapetite intelectivo do bem. Em primeirolugar, ela apetece o bem em sentidouniversal (bonum in communi). Assim, todavez que o homem quer algo, o quer naforma intelectiva de um bem. Por exemplo:

    um estuprador, embora cometa um atomoralmente condenvel, deseja noinstante em que o pratica um bem, umgozo psicofsico (que, em si, no pode serdito mau); um ladro, por sua vez, deseja

    algo que tambm no pode ser dito mauem si (os bens de ordem material); e assimtambm o suicida, que comete esse atoterrvel desejando um bem psicolgico (prfim a seus tormentos, sejam quais forem);

    etc. A imoralidade intrnseca de todasessas aes humanas est no fato de que,

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    nelas, o querer est desordenado, nodelibera no ato a respeito da hierarquiados bens ontolgicos que integram arealidade, nem acerca da forma comodevem ser adquiridos pelo homem. Sejacomo for, o bem o que a vontade busca,ao querer, e mesmo quando age mal ela movida sub ratione boni sob a razo debem. Eis, em sntese, a teoria tomista emsuas linhas gerais.

    Impe-se agora uma distino. Afirmou-seque a vontade quer, com necessidade, obem em sentido geral. Mas e com relaoaos bens particulares? Elas os querercom igual necessidade? A resposta de

    Santo Toms enftica: no. Naconcepo do Aquinate, os bensparticulares (bona particularia) no podemdeterminar a vontade necessariamente, eessa radical indeterminao manifesta a

    indifferentia objectiva da vontade, ao passoque o ato de escolha, em si, manifesta a

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    indifferentia subjectiva. E aqui residepropriamente a liberdade humana: somoslivres para querer ou no querer estes ouaqueles bens, e em razo disto se diz quea vontade a instncia inexpugnvel daliberdade humana. Somente um Bemabsoluto e infinito poderia repousarabsolutamente a vontade humana, e este Deus. Por isso, na viso beatfica daessncia divina impossvel para ohomem querer algo que no seja Deusmesmo, ou seja, impossvel para ele

    pecar, escolher o mal, desviar-se do fim,pois sua inteligncia e sua vontade estodeificadas pela apreenso formal (econseqente volio perfeita) do fim ltimoe inesgotvel que Deus. Nesse estado

    de contemplao da essncia do PrprioSer, a potncia volitiva humana locupleta-se, chega ao pice, alcana a felicidade naposse efetiva do bem.

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    A liberdade de eleio conhecida porns como livre-arbtrio a faculdadeconjunta da inteligncia e da vontade,conforme diz o Aquinate numa famosapassagem (libero arbitrium dicitur essefacultas voluntatis et rationis, Toms deAquino, Suma Teolgica, I, q. 83, arts. 3 e4). Essa simples frase, alm de mostrar oquo equidistante est Santo Toms tantodo intelectualismo como do voluntarismo,revela uma verdade fundamental daantropologia tomista, a saber: no h

    nenhum ato propriamente humano que noproceda da inteligncia e da vontade, doentendimento e da volio. Os atos novoluntrios no so uma propriedade dohomem, pois outros animais tambm os

    realizam. Somos portanto livres no ato deescolha (electione), que radica na vontade,sendo esta o apetite intelectivo do bem.

    A doutrina pode ser ento sintetizada:

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    a vontade humana tem como objetoformal prprio o bem (em sentido geral), esua propriedade essencial a liberdade.Mas esta s pode ser exercida comrelao aos bens particulares que se lheapresentam. Com relao ao Bemsupremo e infinito, que Deus, a vontadeno livre, no sentido de que, diante dEle,possuindo-O em ato, ela no est empotncia para no quer-Lo.

    A inteligncia: movimento de apreenso

    imaterial dos entes.

    bastante conhecida a etimologia dapalavra intelecto: intus legere (ler por

    dentro). Ela indica que a inteligncia algocapaz de ir alm da superfcie das coisas,

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    descortinar-lhes as essncias, as causas,a finalidade. Em sentido prprio, ainteligncia potncia para a apreenso(imaterial) da forma de todos os entes. ,na linguagem da gnosiologia aristotlico-tomista, potncia para os inteligveis.Neste contexto, no ocioso salientar queas coisas so inteligveis na exata medidaem que tm ser, pois o no-ser ininteligvel e a inteligibilidade tem raizna forma dos entes. A forma , pois,princpio de operao e tambm de

    inteligibilidade. Isto significa o seguinte:pela forma substancial os entes operam, epela operao conhecemos as suasessncias, embora jamais as esgotemos,dada a natureza dbil da nossa inteligncia

    (comparada de Deus e dos Anjos),alm do fato de as coisas terem em si algoda inesgotabilidade do Prprio SerSubsistente, de onde provm, razo pelaqual, por mais que conheamos as coisas,

    o conhecimento no se esgota poispara esgotar-se precisaramos conhecer a

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    causa causarum de todas elas: Deus (oque, segundo a Sagrada Teologia, sacontecer aos bem-aventurados, no cu).A este respeito especiosa a frase deSanto Toms em seu Comentrio aoCredo: Nenhum filsofo jamais conseguiuinvestigar perfeitamente sequer a naturezade uma mosca (...sed cognitio nostra estadeo debilis quod nullus philosophus potuitunquam perfecte investigare naturam uniusmuscae. Toms de Aquino, Comentrio aoCredo, Promio).

    No contexto do presente tema, interessa-nos apenas aludir a duas caractersticasprprias do intelecto humano, que

    receberam a seguinte terminologia doAquinate herdada da teoria doconhecimento de Aristteles: intelectopossvel e intelecto agente.

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    Toms de Aquino, em di ferentespassagens de sua obra, comeaabordando primeiramente o intelectodivino, antes de referir-se ao humano,sendo a nota distintiva da intelignciadivina ser Ato Puro sem mescla denenhuma potncia passiva. Ou seja: nums ato, Deus contm em si todos osinteligveis da ordem do ser. Conhecendo-Se perfeitamente, Ele conhece o que , oque foi, o que era, o que ser e tambm oque seria. Deus, portanto, no est em

    potncia para conhecer nada alm do quej conhece, pois isto demarcaria umaimperfeio no seu Ser, pois conhecer algonovo , de alguma forma, receber umaperfeio, e sendo Ele omniperfeito no h

    nenhuma nova perfeio que possaadquirir. Deus conhece perfeitamente ascoisas antes mesmo de elas serem,conhece as suas essncias, os seus fins,as suas substncias e respectivos

    acidentes; conhece a matria de que sofeitas, a forma que as especifica, o seu

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    modo de operar, como e quando operam,quais os desvios a que esto sujeitasnuma ordem de causalidade acidental (peraccidens), aonde vo chegar numa ordemde causalidade necessria (per se), etc.H vrias outras caractersticas dainteligncia divina, mas estas bastam parao tema em foco. E como tambm no ocaso de abordar aqui as caractersticas dointelecto dos Anjos segundo o DoutorComum, passemos ao humano.

    Pois bem: a inteligncia humana est,inicialmente, em potncia para entendertudo. Em termos simples: logo que o corpohumano animado, ou seja, recebe a sua

    forma substancial que a alma, ainteligncia tabula rasa, vazia, ainda nopreenchida por nenhum contedointeligvel. Comeamos a vida, por assimdizer, com a inteligncia zerada. Ora, como

    fato insofismvel que transitamos dapotncia ao ato conhecendo o que antes

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    no conhecamos, isto indica tambmhaver nessa forma imaterial um poderativo. Assim, potncia para os inteligveischamar Santo Toms intelecto possvel, eao ato de apossar-se imaterialmente deles,intelecto agente.

    No trataremos nesta comunicao domodo da apreenso imaterial dos entespela inteligncia humana, mas registrem-se algumas de suas caractersticas. A

    primeira: ela por abstrao. Isto querdizer que chegamos ao conhecimento daessncia dos entes abstraindo-lhes asqididades materiais. Diz o Aquinate: aessncia das coisas materiais abstrada de

    suas notas individuantes (quidditas reimaterialis abstracta a notis individuantibus) o objeto prprio do conhecimentohumano. Em suma, conhecemos ouniversal por meio do particular, o

    necessrio por meio do contingente ouacidental, o imaterial por meio do material,

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    o inteligvel por meio do sensvel. E aquichegamos segunda caracterstica dohumano modo de entender: ele porraciocnio. Assim, alcanamos verdade que uma certa adequao entre ainteligncia e as coisas no num flashintuitivo, mas aos poucos, raciocinando,elaborando premissas e delas extraindocorolrios necessrios. Por isto, com muitadificuldade a inteligncia humana vaiassimilando os conceitos das coisas,descobrindo-lhes as essncias, ou, como

    se disse acima, a sua forma inteligvel.

    A histria do tomismo legou-nos umaimensa bibliografia a respeito da teoria do

    conhecimento de Santo Toms de Aquino,apontando inmeras caractersticas domodo de chegar verdade, assim como oque seriam as instncias especulativa eprtica do intelecto humano. No

    possvel fazer neste breve texto refernciaa todos estes aspectos, mas o que foi dito

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    acima basta para concluir, ao modo desntese:

    O intelecto a faculdade precpua daalma humana, intrinsecamente espiritual.Uma forma imaterial finita, aberta aoinfinito. Finita em ato (porque composta deessncia e ser, sendo a essncia o limitedo seu ato de ser) e infinita em potncia(porque capaz de assimilar todos osinteligveis na ordem do ser).

    5. Origem da alma humana.

    Arroladas algumas das pr incipaiscaractersticas da alma humana, chega-se

    questo capital: De onde ela provm?Seria ela um produto, uma conseqncia

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    natural da concepo, como ocorre com osanimais irracionais?

    A argumentao, aqui, segue a seguintelinha:

    O que independente da matria emseus atos prprios no pode provir dela.Ora, o intelecto humano, no ato deconhecer, independente das potncias

    sensitivas (includas aqui as vegetativas;no caso, as neurolgicas). Logo, ele nopode ser gerado naturalmente pelaconcepo.

    Para Santo Toms, a alma intelectiva,devido sua natureza espiritual eimaterial, no pode ser produto de umapreexistente substncia material (ou seja:

    da unio do vulo com o espermatozide),pois no plano ontolgico o que de grau

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    inferior no tem potncia para gerar osuperior. E tambm no pode ser produtode uma preexistente substncia espiritualdo mesmo grau ontolgico, ou seja, quepossua a mesma essncia, pois asubstncia espiritual, sendo una eimaterial, no se transmuta em outra. Enem de uma finita substncia espiritualsuperior, como a dos Anjos, que no tmnenhuma parte com a matria, pelomesmo motivo do argumento anterior: algoimaterial no pode perder a unidade, pois

    de per si indecomponvel e nomultiplicvel (s podendo haver muitosindivduos da mesma espcie onde h oprincpio material de individuao).

    Logo, a alma humana s pode receber oser por criao, e isto s cabe ao PrprioSer Subsistente, Deus. (cfme. SumaTeolgica, I, q. 90, arts. 2 e 3, resp.)

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    Em resumo: a alma racional criadadiretamente por Deus e infundida no corpohumano.

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    1- Devemos ao Dizionario Enciclopedico

    del pensiero de San Tommaso dAquino,de Battista Mondin a estrutura destacomunicao. Foram feitos ajustes e vriosacrscimos ao texto do telogo italiano,assim como supresses de pontos ao

    nosso ver imprecisos.