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MASSAUD MOJSJ;:S A I I ANALISE LITERARIA EDITORA CULTRIX São Paulo

A análise literária - Massaud Moisés

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A análise literária - Massaud Moisés

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  • MASSAUD MOJSJ;:S

    A I I

    ANALISE LITERARIA

    EDITORA CULTRIX So Paulo

  • A Anlise Literria*

    *At a 4' ed. o presente livro ch~IIJQ_tl;S~f'r'tm'e'TiTise Literria. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou usada de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrnico ou mecnico, inclusive fotocpias, gravaes ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permisso por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas crticas ou artigos de revistas.

    A Editora Pensamento-Cultrix Ltda. no se responsabiliza por eventuais mudanas ocorridas nos endereos convencionais ou eletrnicos citados neste livro.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Moiss, Massaud A anlise literria / Massaud Moiss.

    So Paulo : Cultrix, 2007.

    16' reimpr. da l' ed. de 1969. ISBN 978-85-316-0011-1

    !. Crtica literria 2. Literatura - Histria e crtica !. Ttulo.

    07-0356 CDD-801.95

    Edio

    ndices para catlogo sistemtico: 1. Anlise literria 801.95

    O primeiro nmero esquerda indica a edio, ou reedio, desta obra. A primeira dezena direita indica o ano em que esta edio, ou reedio, foi publicada.

    Ano

    16-17-18-19-20-21-22-23 07-08-09-10-11-12-13-14

    Direitos reservados EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA

    Rua Dr. Mrio Vicente, 368 - 04270-000- So Paulo, SP Fone: 6166-9000- Fax: 6166-9008 E-mail: [email protected]

    http://www.pensamento-cultrix.com. br

  • SUMARIO

    PREFCIO 11

    I. LIMITES DA ANALISE LITERARIA 1J

    1. Explicao do ttulo 13 2. Fundamentos e extenso da anlise literria: sua relao

    com a crtica e a historiografia literria 14 3. Relao entre a anlise literria e a teoria literilria 20 4. Especificidade da anlise literria 21 5 . Sntese do concci to e da prtica da anlise literria 22

    II. PRINC1PIOS GERAIS DE ANALISE LITERARIA 25

    1. O texto como ponto de partida da anlise literria 25

    2. Contedo e forma, significado e significante 25 3. Palavras com significado e palavras de relao 26 4. Nveis estruturais da palaVl"!\ 28 5 . Denotao 28 6. Conotao l9 7. As foras-motrizes 31 8. Elementos extrnsecos, formais e intrnsecos 33 9 . A deduo e a induo na anlise fitei.iria 3~

    10. Anlise microsc6pica e anlise macroscpica 36 11. Fases de anlise literria 37 12 . Sugestes pralticas 38

  • III. PRINC1PIOS PARTICULARES DE ANALISE LITERARIA 40

    1. INTRODUO 40

    2. . ANLISE DE Tl!Xro POTICO 41 a. Prdiminares 41

    Metfora. Universo Potico 41 Metfora. Palavra-Chave 42 O Tempo na PoesiI 43 O Espao e o Enredo na Poesia 44 Anlise da Poesia E.pica 45 Os Aspectos Formais 48

    b. Texto Lrico. "Cano", de Cecllia Meireles 50 e. Texto Epico. "Doze de Inglaterra", de Cames 67

    3. ANLISE DE TEXTo EM Pl!.oSA 84 a. Preliminares 84

    Prosa. Denotao e Conotao 84 Microanlise 86 Macro anlise 87 A Ao 89 O Tempo 101 o Espao 107 As Personagens 110 O Ponto de Vista 113 Recursos Narrntivos 114

    b. O Conto, "Um Ladro", de Graciliano Ramos 116 e. A Novel. Memrias de um Sargento de MiU.rozs,

    de Manuel Antni de Almeida 143 d. O Romance. Os Maias, de Ea de Queirs 168

    4. ANLISE DE Trui:To TEATl!AL 202 a. Preliminares 202

    O Teatro e a Litei:atw:a 202

  • O Teatro e as demais Artes 203 Representabilidade 204 Comdia e Tragdia 20.5 Estrutura 20.5 Componentes Fundamentais de uma Pea 206 Microanlise e Macroanlise 209 As Personagens 211 Qualidades de uma Personagem 213 A Ao 214 Situao Dramtica 216 O Pensamento 218

    b. A Comdia. o Judas em Sbado de Aleluia, de Martins Pena 220

    e. A 'fragdia. Frei Lu/s de Sousa, de Almeida Garrett 243

  • PREFACIO

    Embora o prefcio se torne dispensvel as mais das vezes, creio que no caso do presente livro se fazem imprescindveis algumas consideraes preliminares. 2 que a anlise literria constitui terreno to controverso quanto o prprio conceito de Literatura. Mas no s por isso: reflete uma filosofia da cincia literria e tambm uma filosofia da cincia pedaggica, pois que lhe est implcita toda uma concepo dos estudos literrios e dos fins ltimos que se deseiam obter. De onde !fe colocarem duas questes, guisa de prembulo: como analisar? e por que analisar?, remetendo a primeira para uma teoria literria, e a segunda para uma pedagogia. Aquela, procuro responder com as pginas que se seguem, destinadas ao estudante de Letras, can-didato a professor vu/ e a critico literrio, e ao leigo interessado em tais assuntos. Ainda que as pa/.avras possam e devam falar por si, julgo necessrio .ressa/.tar alguns pontos, que no cabem no mbito do livro propriamente dito.

    Primeiro: entendo que no h, nem pode haver, modelo$ fixos de anlise literria. Ao contrrio, a meu ver cada estu-dante deve desenvolver suas pr6prias aptides a partir de um exemplo de comportamento diante do texto, no de uma anlise j realizada. que esta, por melhor que seja, sempre limita o progresso do estudante. Da que, neste livro, o leitor no encon-trar anlises feitas, mas em processamento, anlogas s que pode empreender: oferece-lhe a tcnica, o mtodo, .no esquemas pre-concebidos ou rgidos.

    Segundo: visto que a anlise deve conduzir critica liter-ria (bem como a outros setores dos estudos literrios, como se procurar mostrar no primeiro capitulo), seria ultrapassar a rea deste livro se os exemplos dados contivessem anlise prontas. Por outro lado, sempre que o estudante buscasse contacto com trabalhos em que o tratamento analtico tivesse sido amplamente

  • aproveitado, bastava reco"er aos bons crticos, como um Macha-do de Assis, que l enontrria paradigmas de ;uzo literrio, for-osamente baseado numa. enlise anterior. Portanto, tento mos-trar como se fax anlise, no sentido de desmonte e interpretao dos textos, deixando o espao aberto ao estudante para desen-volver suas faculdades e opes .

    . . T ai modo de compreender o fenmeno da anlise literria radica, est-se a ver, numa pedagogia, e at numa didtica da Literatura. Entretanto, apenas importa referir neste prefcio, a primeira, uma vez que a segunda se evidencia no conjunto do livro: tenho para mim que a anlise literria encerra objetivos. pedag6gicos ou formativos, ou seja, a edificao tica do estu-dante, realizada quando~ este pratica, com o mximo de rigor e objetividade, a fragmentao interpretativa dos textos, e con-fronta seus resultados com as pginas que outros estudiosos con-sagraram s mesmas obras.

    Talvez por isso mesmo, o presente livro no dispensa o pro-fessor (salvo no caso do leigo); opostamente, implica acima de tudo uma situao concreta, em sala de aula ou fora dela, em que se proceda marcha analtica, como a propomos, seguindo a curva ascensionl da aprendizagem suposta pela seqncia das aulas. Diga-se de passagem que esta obra fruto de situaes concretas idnticas s que pretende espelhar. ,

    Por fim, julgo aconselhvel que o leitor, visando ao melhor aproveitamento deste livro, o perco" na ordem em que se apre-senta, pois foi concebido e elaborado como uma unidade, no como captulos aut6nomos.

    :MAssAUD Mo1sS

    NOTA A 5. EDIAO Com ttulo novo, a presente obra volta a circulr pe]a quinta vez.

    Alm de inteiramente revisto, o texto sofreu emendas de forma e vrios acrscimos, seja na parte analftica, seja na terica, que visam ao melhor entendimento de alguns tpicos.

    M.M.

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  • I. LIMITES DA ANLISE LITERRIA

    l. A fim de evitar mal-entendidos, um livro como este deve abrir com uma explicao de seu ttulo: A Anlise Literria.

    Para tanto, impe-se consider-lo nos elementos que o integram, ou seja, anlise e literria. Antes, porm, cumpre salientar que este livro constitui um roteiro, to prtico quanto possvel, e no um compndio ou manual que esgotasse a matria: esta obra pretende conter uma srie de sugestes e de indicaes para os interessados em realizar a tarefa a que os termos do ttulo con-vidam. Todavia, fujamos de entender o adjetivo prtico como ausncia de orientao terica: esta vem baila sempre que o exigir a questo da anlise literria, cujo exame constitui a meta deste livro. Na verdade, a teoria e a prtica marcham sempre juntas, mas a tnica incide sobre a segunda, no sobre a pri-meira: recusando a teoria pela teoria, todas as generalizaes e abstraes sero convocadas no ,propsito da prtica e da exe-gese textual. - -

    Quanto anlise, define-ee como um processo de conheci-mento da realidade que no exclusivo de cincia alguma, nem mesmo de filosofia alguma, religio alguma ou arte alguma. Sem-pre que um objeto, um conceito, uma equao matemtica, uma idia, um sentimento, um prob1ema, etc., decomposto em suas partes fundamentais, est-se praticando a anlise. Dessa forma, analisar o corpo humano significa fragment-lo nas unidades que o compem: cabea, tronco e membros; a cabea, por sua vez, apresenta orelhas, olhos, boca, nariz, testa, ossos temporais; od-pitais, etc.; cada olho contm: retina, ris, cristalino, etc-.; e assim por diante. De onde a anlise literria consistir em des-montar o texto literrio com vistas a conhec-lo nos ingredientes que o struturam.

    Falta saber que que se entend~ pelo adjetivo literria, equivalente expresso texto literrio. A noo de texto lite

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  • rano relaciona-se estreitamente com o conceito de Literatura. Quanto a mim, Literatura a expresso, pela palavra escrita, dos contedos da fico, ou imaginao. Se bem observarmos, o prprio enunciado implica a idia de "texto", ao colocar nfose sobre o fato de ser a Literatura expressa por meio da palavra escrita. Sendo assim, inscreve-se na categoria de texto literrio todo escrito que exprimir fico, ou imaginao. Entretanto, trata-se de um conceit amplo, capaz de abranger qualquer folha de papel em que uma pessoa extravase fico, ou imaginao. Como eGcapa dos quadrantes deste livro demorar no eX:ame de tal questo, pede a prudncia que a simplifiquemos, lembrando que somente se consideram literrios os textos que se proponham especficos fins literrios, vale dizer, o conto, a novela, o roman-ce, a poesia e o teatro (este, apenas enquanto texto, no enquan-to representao) 1 .

    2. Posto o qu, procuremos equacionar os fundamentos e a extenso da anlise literra. O primeiro ngulo a iluminar

    aquele em que a anlise literra confina com a crtica e a historiografia literria. Em relao primeira, pode-se dizer que toda crtica literria, seja de que tipo for, pressupe anlise, isto , a) ainda quando o crtico no exponha ao leitor a des-montagem que procedeu dos textos literrios que interpreta e julga, ela est presente nas suas observaes e juzos, como sua base e ilustrao;' b) ainda quando no a efetue com o lpis na mo, o crtco empreende-a mentalmente; e) ainda quando no se d conta de que sua postura diante do texto primero analtica e depois crtica, l est ela no ato de ler e desmem-brar, quase que por instinto, o texto em seus principais ncleos.

    Em suma: criticar sempre implica analisar. Mas defenda-mo-nos de concluir que, inversamente, analis'

  • cumpre seu dever ao realizar a anlise de uma obra, quando ela constitui somente uma pre{Jilrao a uma segunda leitura con-centrada e viva, que deve ser uma espcie de recriao" 2, ou seja, uma preparao para a crtica literria. _

    Desse modo, nenhuma anlise literria, por mais brilhante e pormenorizada que seja, vale 'por si, precisamente porque lhe est vedado o poder de manipular juzos de valor, qu~ constitui atributo da crtica literria. A anlise fornece crtica os dados indispensveis a que ela exera seu mister judicativo, mas nunca a substitui ou a dispensa. Mesmo no grau colegial do ensino da Literatura traduz deslize metodolgico fazer gravitar e. leitura do texto em torno de sua anlise, sem orientar o educando ao menos a uma tentativa de julgamento. E no ensino superior das Letras, torna-se incua qualquer anlise textual que no indu-za, direta ou indiretamente, sua crtica: que apenas por um ingente esforo, de resto andino, podemos conduzir o alii.no a separar a anlise da crtica, e, quando o conseguimos, estabelece-se a mecanizao e o sem-sentido do ensino e do aprendizado da Literatura.

    As relaes entre a anlise e a historiografia literria so mais fceis de circunscrever. Como sabemos, a his~oriografia apenas se interessa em ordenar os textos numa seqncia ou continuidade linear, segundo uma dada perspectiva. Todavia, no se trata de uma organizao artificial de textos, isto , de uma arrumao de obras pelo seu aspecto externo, sem indagar de seu contedo. Na verdade, quer os textos, quer a anlise so impres cindveis historiografia literria, mas tanto uns como outra servem_ aos objetivos precpuos da metodologia historiogrfica. Noutros termos: o historiador literrio no pode escapar de ba-sear-se nos textos nem conhece meio de fugir ( sendo lcido) obrigao de submet-los ao crivo analtico; entretanto, seu alvo no reside nos textos em si prprios, nem na anlise, seno no arranjo deles conforme o ritrio do rel6gio ou dos estilos, tendo em vista discriminar os ' laos que prendem as obras que integratn uma literatura.

    Equacionado tal aspecto da questo, impe-se um paralelo com o crtico literrio: ao passo que este se vale da anlise textual para alicerar seus juzos, o historiador literrio a utiliza

    2 Guy Michaud, L'Oeuvre ses Techniques, Paris, Nizct .(19,7), p. 17.

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  • para fazer Histria, ou seja, descrever as obras, os fatos, os autores, e procurar estabelecer-lhes conexes, profundas ou super-ficiais, to-somente elaborando valoraes quando interpreta, no 06 textos em si, mas os vnculos que os estreitam no curso do tempo. Embora correndo o risco de levantar problemas capazes de conduzir-nos para fora dos limites deste livro, ou de pertur-bar-lhe a clareza, vale a pena deter um momento a ateno neste pormenor.

    De dois modos, diversos porm intimamente correlatos, o historiador pode proceder no cumprimento de suas funes: 1) quando se preocupa acima de tudo com os fatos, a biografia dos escritores e das obras, a fortuna dos textos, os nexos destes com a conjuntura cultural em que foram produzidos, est fazendo historiografia externa; 2) quando lhe importa especialmente o contedo das obras, examinando-as do prisma das idias, pensa-mentos e sentimentos (temas, clichs, motivos, mundividncias, etc.) que perduram no fio do tempo, est realizando historio-grafia interna. Enquanto no primeiro caso anlise textual se concede importncia secundria, no segundo, torna-se pressu-posto insubstituvel. Por outro lado, bvio que ambos os enfoques historiogrficos apresentam vrios ponto!; de contacto: na verdade, dificilmente se pode aplicar um sem o apoio do outro. Significa que no existe historiografia externa pura, nem hi6toriografia interna pura, porquanto a simples razo de ser historiografia (ou seja, referir-se a eventos histricos) j denota uma identidade essencial entre as duas formas de conhecimento da realidade literria.

    Posto o qu, exemplifiquemos: a Histria da Literatura Brasileira, de Slvio Romero, pertence historiografia externa, corno atesta o seu gosto pela sistematizao de correntes e de acontecimentos e pelo exaustivo arrolamento de nomes. Toda-via, o historiador busca sempre externar juzos de valor, funda-mentados na anlise, ainda que manifeste precisamente nesse ponto suas fraquezas e preconcepes filosfico-cientficas. Ao contrrio, a obra homnima de Jos Verssimo insere-se na histo-riografia interna, a tal ponto que acaba parecendo uma sucesso de ensaios, em vez de uma viso cronolgica da Literatura Brasi-leira. Entretanto, o aspecto ensastico no destruiu de todo o carter externo, que ali comparece, quando menos para su.sten-tar, como arcabouo, o edifcio de idias que o autor pretendeu erguer em torno de figuras matrizes da nossa evoluo literria.

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  • Aqui chegados, vrific-se que, no desvendamento das rela-es entre a historiografia e a anlise, descrevemos um percurso que vai da primeira para a segunda. Pede a boa ordem do pensamento que invertamos a 'seqncia do raciocnio, moven-do-noo da anlise para a historiografia. Que se observa? Obser-va-se que a anlise literria dispensa, em princpio, as achegas historiogrficas, visto que objetiva, justamente, libertar o texto do peso morto dos preconceitos e das convenes ou das idias passadas em julgado, a fim de redescobri-lo vivo, dinmico, ines-gotvel e novo. No entanto, a realidade dos fatos mostra que, notadamente quando se trata do passado remoto, nenhum texto se deixa sondar em profundidade sem o auxlio da historiografia. que, a rigor, toda anlise textual contextual. E -o no porque o afirmamos a priori, mas porque assim o ensina, reite-radamente, a experincia.

    Por outras palavras: o desmembramento de um texto pe a descoberto problemas e dvidas que ele prprio nem sempre consegue resolver, simplesmente porque o texto (qualquer texto) remonta a uma ou mais tbuas de referncia, cujo conhecimento se torna imperioso quando se pretende chegar aos sentidos ocul-tos na malha expressiva. Um escrito constitui sempre um ser vivo, empregando regras (ainda que somente sintticas), aberto aos influxos de fora, da cultura em que foi produzido, da Ln-gua em que foi elaborado, da sociedade que o motivou, dos valores em vigncia no tempo, etc. Se a tudo isso que o envolve, que lhe enforma a circunstncia orginra, se atribuir o nome do contexto, imediato depreender que, efetivamente, toda an-lise textual acaba sendo contextual. Entenda-6e que a tnica contnua a recair no texto, mas evidente que se amplia desme-suradamente o campo da perquirio dos contedos textuais quando se lhes conhecem as relaes com o meio exterior em que foram gerados. Quer dizer que no o contexto que impor-ta, o texto, mas este, sem aquele, corre o risco de perma-necer impermevel s sondas analticas 8

    3 "William Empson, por exemplo, estudou muitos poemas do' sculo XVII sem tomar em conta quaisquer informaes ou esclarecimentos de ordem histrica. No foi difcil a Rosemund Tuve demonstrar que as interpretaes de Empson eram freqentemente inexatas e insustentveis, pois a compreenso de uma metfora de Donne ou de Marvell muitas vezes impossvel sem o conhecimento do substrato teolgico, da viso do mundo, d filosofia da vida a que tais poetas aderem, e sem o cnhed-mento das convenes retricas e dos processs estilistices utilizados por

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  • Ora, a que tem lugar a historiografia literria. Tome-mos como exemplo um romance de Balzac: a obra pode e deve ser analisada como pea autnoma, em si, desligada de toda conexo com o exterior, mas somente alcanaremos compreender--lhe a estrutura interna e os seus contedos (o tema do Amor, da Natureza, do Dinheiro, etc.) se recorrermos sua circuns-tncia, a saber, a esttica romntica em geral, o Romantismo francs, a situao poltica da Frana da metade do sculo XIX, a formao do escritor (suas leituras e predilees estticas, etc.), sua vida de profissional da pena, e assim por diante. Entenda--se, porm, que a achega historiogrfica no constitui um prin-cpjo imutvel ou um imperativo categrico: o prprio texto (romance, poema, conto, etc.) que a prescreve, no oo funda-mentos ideolgicos e estticos do analista. Espero que fique claro tratar-se de situao-limite, isto , caso o analista no per-ceba, ou no exista, liame entre o texto e o contexto, parecer--lhe-, ou ser-lhe-, de todo desnecessrio recorrer historio-grafia. O contrrio sucede quando certos analistas, de orienta-o "cientfica" e apriorstka, enxergam no texto as vinculaes textuais que prejulgam existir, no as que podem existir.

    De onde, creio imediato inferir que as relaes da anlise literria com as chamadas formas de conhecimento se estruturam de modo semelhante: se m texto implica questes psicolgicas, obviamente o analista deve reportar-se . cooperao da Psicolo-gia (supondo que esteja habilitado a tanto ... ) ; se implica ques-tes filosficas, h de recorrer Filosofia, e assim por diante. Portanto, adotar tal procedimento sempre que o texto o deter-minar, no porque a isso o arrastem suas opinies e convices ideolgicas, Compreendo no ser fcil a ningum abstrair ,ou neutralizar seus preconceitos, temperamento, idiossincrasias, voli-es, fantasias, etc. durante o processo de anlise literria, mas cumpre ao analista experimentar assumir a iseno requerida pelo pr6prio movimento da sua inteligncia e sensibilidade ao interpretar o texto que sua curiosidade elegeu. Que ele, ao menos, se esforce por impedir que a deformao inerente ao ato de analisar chegue a ponto de induzi-lo a atribuir ao texto aquilo que no possui ou no pode possuir. Exemplo: asseverar a exis-tncia de luta de classes nos romances machadianos, ou deixar

    tais autores" (Vtor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 2. ed,, rev. e imm,, Coimbra, Almedina, 1969, pp. 556-557).

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  • de perceber o conflito social nas obras de Jorge Amado antes de Gabriela, Cravo e Canla.

    Por fim, e a modo de concluso deste tpico, diga-se que, assim como a anlise textual funciona de suporte para a histo-riografia literria, assim a histria interna da Psicologia, da Sociologia, etc., pode beneficiar-se do texto literrio. Exemplo: as obras de Balzac exibem documentos de psicologias individuais, de uma sociedade, etc., de todo ponto teis a uma viso que se deseja global do sculo XIX francs. Evidentemente, so documentos indiretos, nos quais a experincia surge filtrada pela imaginao, mas que documentos melhores que os artsticos para reconstruir, por dentro, uma poca ou um temperamento? Claro, no constituem os nicos documentos a que se pode e se deve recorrer para se obter uma interpretao total da personalidade de Balzac e da sociedade em que viveu .. Entretanto, o historia-dor da cultura os empregar sempre que desejar uma elucidao mais ampla e profunda do sculo XIX francs, quer seu enfoque seja o psicolgico, quer o sociolgico, ou outro anlogo. consabido que as relaes entre a Psicologia, a Sociologia, etc. e a Lite_ratura provocam interminveis indagaes e polmicas, cuja anlise extrapola deste livro 4 Note-se, porm, a ttulo de ilustrao, o quanto uma obra como a Sociologia do Renasci-mento, de Alfred Martin, deve a informaes de estrito cunho literrio, derivadas do prprio intuito de estudar sociologica-mente a Renascena Por certo que o historiador compulsou documentos de vria natureza e arrolou dados de mltipla ori-gem, mas entre eles esto igualmente os fenmenos literrios, como a mostrar que, sem o seu concurso, tomar-se-ia duvidosa uma interpretao sociolgica da metamorfose renascentista A explicao reside no fato de que a Renascena se encontra tanto em Erasmo como em Rabelais, e estando ausente a considerao do papel desempenhado pelo Gegundo, torna-se insatisfatrio qual-quer estudo que se pretenda integral daquela poca histrica.

    3. No tpico inicial, ensejou lembrar que a noo de texto literrio radica, terminantemente, num conceito de Litera-

    tura, que o autor destas linhas espera ter esclarecido no momento oportuno. Pois bem, agora' importa que se atente para um aspecto correlato; e no menos relevante, ligado teoria liter-

    4 Ren Wellek e Austin Warren, Teoria Literaria, tr. espanhola, Madrid, Gredos (1953), pp. 120 e ss., e 483 e ss.

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  • ria. Numa palavra: p~ra frutificar, a anlise literria pressupe sempre uma teoria da Literatura, porquanto sem ela conduz a nada, ou a superfidalid~des. Quer dizer: ao defrontar-se com o texto, o analista h de estar munido da aparelhagem adequada a seu mister, mas ainda necessita apetrechar-se de uma slida e cristalina fundamentao em teoria e filosofia da Literatura. Acima de tudo, precisar estar seguro da orientao critica a seguir (ou em que. sua anlise viria a enquadrar-se) e do con-ceito e limite dos gneros literrios. As cegas, a tarefa anal-tica resulta intil.

    Bem por isso, a metodologia que norteia este livro apia-se em determinadas bases doutrinrias, expostas nA Criao Lite-rria, as quais assomam por vezes superfcie do texto, mas no geral lhe esto apenas implcitas. Explica-se o fato do seguinte modo: nesta obra, procura-se oferecer antes umas preliminares metodolgicas que um mtodo de anlise literria. Todavia, que se entende por "preliminares metodolgicas"? Entende-se uma srie de tcnicas a servio de um mtodo, isto , um meio de chegar a um fim qualquer. Desse modo, as tcnicas aqui suge-ridas almejam servir, no a um mtodo especfico, mas a qual-quer mtodo de investigao textual, seja qual for a bagagem doutrinria de quem o emprega. Assim sendo, tanto um estu-dante orientado segundo as tendncias estticas como outro que prefere a orientao sociolgica devero encontrar aqui um guia para a anlise do texto literrio', que adaptaro s suas escolhas ideolgicas. No se lhes vai impor um mtodo, nem menos um mtodo rgido, mas propor-lhes algumas normas metodolgicas referentes ao comportamento analtico, to abertas quanto pos-svel nessas casos, e to flexveis quanto o a prpria matria literria ou o reclama o bom senso. Utilizando-as, acredita-se que o analista estar apto a desmontar e interpretar o texto. Depois disso, poder trat-lo como lhe aprouver, j agora numa etapa em que dever adotar a postura de um crtico (quer dizer, dever buscar a valorao da obra literria), e no a de um analista no sentido rigoroso do vocbulo.

    4. Mais ainda: pretende-se sugerir modos de procedimento ana-ltico gerais e particulares, ou seja, que atepdam ao carter

    prprio de qualquer obra literria (que consiste em exprimir imaginao, ou fico, pela palavra escrita - nunea demais repetir) e diversificao dos textos, pois que cada gnero, espcie ou frma literria, impe um comportamento analtico

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  • especial. Noutros termos: tentar-se- chegar a uma srie de sugestes que possam ser eficazes para todo texto literrio, e a outras que poosam aplicar-se a cada gnero, cada espcie e, mesmo, a cada frma. Estas ltimas visam a fornecer um mo-delo para o tratamento das obras literrias uma a uma.

    Como argumentar em favor de tal flexibilidade metodol-gica? Primeiro que tudo, h que no perder de vista que nenhum_ processo analtico, por mais aperfeioado qu~ seja, pode servir de panacia para todas as obras literrias. Em segundo lugar, e muito mais importante, ~- 3: 2~91?5l~ ,.~era,, 4 9.He, As:.21

  • f .... , -,.,

    ~ normas destinadas anlise independente de cada gnero, esp-;5 cie ou frma, as quais, por sua vez, remetero para a anlise

    de cada obra em particular, alvo derradeiro do analista.

    5 Para terminar ests notas preliminares, vem a prop6sito focalizar alguns p0ritos antes de passar ao captulo seguinte: p;~f!Er.: anlise constitui, precipuamente, um modo de

    ler, de ver o texto e de, portanto, ensinar a ler e a .ver. As mais das vezes, o estudante l. mal, v mal o texto, na medida elll. que apen~.~ petcorre as linhas graficamente dispostas, reco-nhecendo as palavras e a sintaxe que as aglutina, mas sem saber para que ncleos de interesse dirigir sua ateno. . Por . qu? Porque deseja ver tudo, e depois no consegue selecionar os melhores aspectos do texto, ou porque desconhece como ver o que o texto encerra: no primeiro caso, peca por exagero, por demasia; no segundo, por apatia, indiferena ou despreparo. Quando a apatia ou indiferena corre por conta de males fsicos (defeitos visuais, etc.) ou psquicos (neurose, etc.), ultrapassa o nosso mbito funcional. Quando o despreparo de ordem cultural, tambm C:abe ao estudante preencher a lacuna com estudo e meditao. E se promana de uma inadequao voca-cional, igualmente h pouco que fazer. Quando, porm, o des-preparo decorre exclusivamente de uma falha metodolgica, isto , o. estudante no apresenta nenhuma das fraquezas supostas, mas .nem. por isso alcana destrinar o texto de modo correto -, ento que entra o mtodo de anlise para auxili-lo. Por-tanto, este livro . pretende postular uma tcnica de leitura para aqueles que1 estudantes hoje; viro no futuro a ter obrigao .de ensinar Literatura aos adolescentes que freqentam o curso secun-drio. Isto : ensinar-lhes a ler em profundidade, como preco-nizava Fidelino de Figueiredo, no apenas a leitura superficial e distrada.

    Compreende-se, assim, que escusa ao consulente deste livro esperar dele mais do que lhe pode ou deseja oferecer, ou seja, uma receita mgica para transJorm-lo da noite para o dia em leitor inteligente e profundo, nem . menos insinuar que a tarefa analtica seja fcil. Ao contr_~i, ~ de ter rese!l~s~~gue se .. _:~~!,_~;, ~~~. ;~~~esa ,jif1~i.L"'s"'"~~atu.iar..,QJJ~':~L re; i.tl: r~ some ~S .... ~-~a ~iyg~gp,,,m~.Q.:.. A anlise constltUI um bito, quase um vcio intelectual, que rouba o gosto das leituras ldicas, mas que, em compensao, enriquece o leitor

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  • '' com novas experincias, um hbito que no pode com le!turas "dinmicas" e .~e passatempo. ser adquirido """ dllEnsinar a ler implica conduzir o leitor ou o edu-

    cando a ver, a escolher do texto o mais importante, mas no propriamente a julg-lo, o que constitui desgnio da crtica lite-rria, embora para l o convide. Bem por isso, quem analisa, assfoala no texto a parte obietiva e imediata, no a parte subje-tiva e mediata, pois esta escapa dos propsitos da anlise, alm de reclamar um longo tirocnio na aplicao de um conjunto de informaes de ordem cultural, afetiva, etc., que nenhum livro, sozinho, poder dar. Nem mesmo uma biblioteca inteira. :ne onde, esta obra contm apenas sugestes de caminhos e de pro-cessos, pressupondo que o seu aproveitamento ser relativo s possibilidades de cada um e a traquejo resultante de sua per-sistente adoo.

  • I I' metforas; h que considerar o seu "por qu?". E ao respon-

    d-Jo, penetramos no plano das foras-motrizes, em que deter-minado poeta se autonomiza e se distingue dos demais que lan-aram mo do "branco" e cognatos: a presena dele em Cruz e Sousa vincula-se ao sentido trgico de sua vida, e nsia trans-cendental que lhe espicaou a existncia, ao passo que para Alphonsus de Guimaraens corresponde ao misticismo e medieva-lismo; num, o branco trgico, noutro, mstico. Conquanto tal verificao esteja longe de esgotar o assunto (haveria que demonstr-lo coni o texto, em seus aspectoo principais), exem-plifica a obrigao que o analista tem de interrogar o texto em seu "como" e seu "por qu?". Somente com tais indagaes o texto se franqueia curiosidade do leitor.

    Quz1ito. A leitura em pr~fundidade pressupe sempre que ~J.exto .._lit~.i::rio, sendo composto de metforas, a bgy.p por natureza, ou seja, guarda uma multiplicidade de sentidoo. I,.~r mal significa no perceber a extenso dessa ambi~dade ou apenas perceb-la sem poder compreend-la ou justific-la, por meio das perguntas assinaladas no item anterior.

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  • II. PRINC1PIOS GERAIS DE ANALISE LITERRIA

    Visto que a anlise literria confina com uma rea de ml-tiplas facetas e implica uma srie de pressupostos (alguns deles aflorados no captulo anterior, e outros que viro baila no curso desta e das demais partes do livro), entende-se por prin-cpios gerais de anlise literria uma primeira tentativa de siste-matizao e esclarecimento. Por outro lado, no cabe examinar aqui a contribuio e as limitaes da "explicao de texto" con-forme a praticam os franceses desde h muito: evidentemente que constitui um processo . vlido e til (e a1 est a cultura francesa para o atestar), mas de crer que sua tendncia uni-formizao deve ser posterg~da em favor de uma tcnica aberta e dinmica. Pois tendo em mira um anlise menos padroni-zada que se orga~aram os seguintes princpios orientadores.

    1. Embora redundante, creio necffisrio sublinhar que o campo da anlise literria o texto e apenas o texto, porquanto

    os demais aspectos literrios e extraliterrios (a biografia dos escritores, o contexto cultural, etc.) escapam anlise e perten-cem ao setor dos estudos literrios, segundo conceituam ~e~_ Wellek_ e-Austin _Warren em sua Teoria da .Literatura. Entre-tant~, como j ficou assente, tais zf!-a~-lixnit~~-fes-sero-perlustradas sempre que o texto o requerer, a fim de clarificar pontos obscuros. E perlustradas apenas naquilo que interessa ao texto: o analista pode, por exemplo, excursionar para a biografia do autor, mas voltar obrigatoriamente ao texto, pois o ncleo de sua ateno sempre reside no texto. Em suma: o texto ponto de partida e ponto de chegada da anlise literria.

    2. * on.stj.tui quase um trusmo afirmar a ipdissolubilidade da forma e do contedo. Todavia, quando se trata de proceder

    '~ '. - o' ) '

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  • ao desmembramento e interpretao do texto, possvel (e at aconselhvel por vezes) distinguir as duas faces do texto liter-rio: a que aparece graficamente disposta, como um objeto, ou seja, a forma, e a que lhe est implcita, ou seja, o contedo ou o fundo . ., Desde Saussure, receberam as denominaes res-pectivas de significante e significado. Portanto, a anlise pode referir-se s duas camadas do texto. Entenda-se, porm, que o significante no pode nem deve ser examinado em si, pois acaba conduzindo a nada ou a uma simples fragmentao grosseira do texto (ainda que processada com o auxlio do computador), ou sua parfrase.

    Exemplo: resulta incuo ou criticamente irrelevante sub-meter um poeta ao computador e reduzir-lhe o vocabulrio a umas tantas famlias. Indubitavelmente que serve de precioso auxiliar para o trabalho de anlise (e de crtica), porm jamais como fim em si mesmo, pois o mero fato de o computador poder executar a tarefa j indica o carter mecnico e subalterno do procedimento, quando encarado em si. Que vale saber que deter-minado poeta utiliza cinqenta vezes a palavra "fogo" e cogna-tos em suas composies? A que induz a verificao? Nenhum computador o dir, nem basta a estatstica, por si s, para fazer compreender e avaliar o poeta. V-se, portanto, que a anlise do significante deve levar ao significado, j que est a seu servio: temos de analisar o significante para compreender o significado; partimos sempre do significante para o significado, pois ,que no h outra maneira de perquiri-lo.

    '','?nesse modo, a anlise no deve ser da palavra pela palavra, mas da palavra como intermedirio entre o leitor e um contedo de idias, sentimentos e emoes que nela se coagula. Ou, se preferirem, anlise da palavra como veculo de comunicao entre. o escritor e o pblico.-,;.Assim entendida, a palavra surge como um cone 11 , isto , como objeto grfko pleno de sentidoo, varivel dentro de uma escala complexa de valor. E enquanto cone, enquanto expresso de significados vrios, que a palavra tem de ser analisada.

    3. Todavia, nem todo vocabulrio disposio do poeta ou do romancista composto de palavras-cone. Como se sabe,

    5 Charles Sanders Peirce, Semi6tica e Filosofia, tr. brasileira, S. Paulo, Cultrix, 1972, pp. 115 e ss.; Charles Morris, Signs, Language, and

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  • no dicionrio est arrolado em ordem alfabtica o arsenal pr-prio do escritor. E antes que se afirme que seu problema con-siste no modo como o expfora, ou seja, .l'lo modo como junta as palavras, assente-se que ali as palavras j denunciam uma r.ela-~ tiva classificao, que por sua vez fundamenta a organizao das

    gramticas. De um lado, h palavras com significado em si (substantivos, adjetivos, verbos, advrbios), e outras sem signi-ficado, palavras de relao, ou com significao latente ( prono-mes, preposies, conjunes). Na prspectiva do dicionrio, as primeiras que intere6saro ao analista. Mas acontece que ele se debrua sobre uma pea literria ( pqema, conto, romance, etc.), em que a Lmgua se exprime viva, e no sobre o dicio-nrio. ~em por isso, no corpo de um poema ou de um conto, as psies podem ser trocadas, e a preposio acabar valendo mais do que um substantivo. No , porm, o que ocone normal-mente, pois palavras de relao apenas funcionam como instru-mento de ligao entre as partes do discurso literrio.

    Via de regra, portanto, o analista atentar nas palavras com significado, e dentro de uma ordem que ser sujeita a mudanas em cada caso particular: verbo, substantivo, adjetivo, advrbio, pronome, preposio e conjuno, sem mencionar as interjeies e os vocativos, que apenas reforam palavras e oraes. Assim, o ncleo do discurso literrio o verbo; a ele, o analista h de conferir especial ateno .

    . Tambm no se perdero de vista os sinais de pon~o, especialmente os designativos da interrogo e da exclamao, e as reticncias. No poucas vezes, o exame circunstanciado des-ses recursos ritmo-emotivo-conceptuais pode clarar o sentido de

    . uma estrofe, at ento . refratria sondagem do leitor. Tanto assim que uma gralha tipogrfica, alterando um sinal, capaz de comprometer todo o poema. Atente-se, por exemplo, para os . versos ~tes, pertencentes ao primeiro soneto da trilogia "aminho", de Camilo Pessanha: "Vou a medo na aresta do fdfuro / Embebido em saudades do presente ... "' Se as reti-cncias fossem trocades por um ponto final ou exclamao, o significado vago e duradouro do referido presente ( prsente-etemo) desapareceria, ou, pelo menos, s abrandaria, enfraque-cendo a significao da estrofe e, por refleX:o, do poema todo.

    Behavior, Nova Iorque, George Braziller, 1955, pp, 191 e 192; W. K. Wimsatt, Tbe Verbal Icon, Nova Iorque, Noonday (1962).

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  • 4. A essa hierarquia horizontal corresponde uma hierarqui& vertical dos elementos que integram a camada dos signifi-

    cantes. Como sabemos, uma palavra pode ser estudada em 1) sua estru~ura fontica e morfolgica, 2) em suas vinculaes sintticas com as palavras vizinhas, ou 3) em sua estrutura semn-tica. Ou, 'Se quisermos, em sua camada fontica, morfolgica, sinttica e semntica, nessa mesma seqncia ascendente de importncia. A anlise fontica em si no passa de um exerccio escolar, apenas til quando provocado por aspectos de contedo, ou quando sugere perspectivas textuais que doutro modo pode-riam fugir anlise. Assim, a anlise do~ fonemas que compem, por exemplo, o primeiro verso do conhecida soneto de Cames, - "Sete anos de pastor J.ac servia Labo" --. somente vale, do ponto de vista literrio, se conduzir a um entencllinento melhor do

  • sentido dos vocbulos no dicionrio recebe o nome de denotao, ou significado denotativo, dir-se-ia que o analista examina o cociente denotativo de cada.termo, como uma indispensvel tarefa prvia: escus{ldo passar fase seguinte da anlise sem proce-der pesagem do cociente denotativo das palavras fundamentais do texto. Obviamente, no estou aconselhando que o analista v ao dicionrio por causa de todas as palavras do texto, pois seria admitir que ele no tem memria nem cultura: se mental-mente sober do peso denotativo das palavras do texto, tanto melhor; se no, s lhe resta consultar os dicionrios.

    Por isso, o que pretendo observar que a atribuio da carga denotativa das palavras constitui operao preliminar, seja realizada ou no com o auxilio de um vocabulrio especializado. Por outro lado, o analista deve prevenir-se contra a facilidade de emprestar s palavras o primeir.o, ou qualquer, significado que aparece no dicionrio: h que buscar aquele que mais se ajusta ao texto. Por exemplo, a palavra "gentil" que Cames emprega no. seu soneto "Alma minha gentil, que te partiste", no deve ser tomada no sentido de "amvel" ou de "fidalga", mas no de "formosa". Neste caso, como se v, o conhecimento do contexto Cultural se torna imprescindvel; todavia, o texto que o impe, no os preconceitos de quem o interpreta. 6. Conhecida a denotao das palavras, passa-se a examin-las

    dinamicamente, ou do ponto de vista da conotao, a fim de lhes averiguar o cociente conotativo, vale dizer, o sentido ou os sentidos que adquirem na relao com as demais, no corpo do texto. Aqui se situa a empresa bsica dos estudos literrios, em qualquer de suas modalidades, a anlise, a crtica, a historio-grafia, a teoria. Visto ser a anlise que nos ocupa no momento, atenhamo-nos relevncia da conotao apenas desse prisma.

    Entendamos, primeiro, que o cociente conotativo de uma palavra ou expresso est relacionado com o grau de complexi-dade sinttica adquirido no contacto com as outras palavras ou expr.::sses~ Assim, quando o poeta diz "Oh! que saudade que tenho/Da aurora da minha vida", percebe-se qu~ o cociente cono-tivo das palavras praticamente de grau 1 (um). Na verdade, ressalvado o fato de a palavra "saudade" conter determinada riqueza emotiva e sentimental, todas as demais palavras dispem--se numa relao sinttica linear, que lhes empresta um cociente de primeiro grau (em ordem ascendente), .facilmente acessvel mdia dos leitores. Nem as palavras "aurora" e "vida" pos

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  • suem sentido diverso daquele que se apreende de imediato, ou seja, "aurora da minha vida" quer dizer "infncia" e apenas. 'infncia". A prpria sintaxe, disposta em ordem direta, ele-mentar, e armada sobre um verbo desprovido de maior contedo ( "tenho"}, denuncia a precariedade conotativa dos versos de Casimiro de Abreu. .

    Compare-se com o seguinte exemplo, situado no outro extremo: "Corao oposto ao mundo,/Como a famlia verdade!" ( Fernando Pessoa). Note-se que os versos no encemun nenhu-ma palavra estranha ao leitor comum de poesia, nem ostentm aquele hermetismo oriundo de uma sintaxe rebuscada e de um vocabulrio precioso, como no Barroco. Ao contrrio, sintaxe e vocabulrio primam pela simplicidade estrutural, mas guardam uma complexidade que resiste invaso do leitor desprevenido ou distrado. Levantemos apenas um vu do problema, guisa de exemplo de procedimento analtico: "oeosto" que significar? "Contrrio", "adversq", "colocado em face de", "no outro lado"? Em verdade, significa tudo isso mas no s6 isso~ pois. a- diver-Sidade conotativa do adjetivo acaba por transformar o substantivo que modifica ("corao") e a prpria palavra "mundo". Ao falar em "corao", referir-se- o poeta apenas ao 6rgo? Claro que no, mas tudo quanto o termo assinala, isto , o corao como sede dos sentimentos, emoes e volies, o corao como sinnimo do prprio poeta, ou do Homem. E "mundo'.', que significar? Para responder questo, precisamos perconer toda a obra do poeta, pois "mundo" no apenas o lugar geogrfico a que se ope o "corao". Basta isso para evidenciar a riqueza conotativa das palavras que integram os versos pessoanos. E o primeiro verso menos complexo que. o segundo. Como afir-m-lo? Pela anlise. Vefamos o segundo verso, a partir da vrgula. Como interpretar esse sinal de pontuao? Eis a uma das maiores dificuldades dos versos: que se entende por "como"? Mera compara?- -Vc>st\llaro poei:a que "a familia verdade" assim como o "corao [] oposto ao mundo"? Ou que o "corao [] oposto ao mundo" assim "como a famlia ver-dade"? Ou o "como" somente uma conjuno coordC?ativa, inclusive reforada pelo sinal de exclamao existente depois da palavra "verdade"? Ou querer o poeta dizer que uma das formas dramticas de saber "como a famlia verdade" reside cm sentir o "corao oposto ao mundo?" Diremos que tudo isso e mais o que a sensibilidade do analista for capaz de apreender, por-

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  • quanto o prprio texto que deflagra suas intuies: no se geram no vazio, mas no dilogo com o texto; resultam de o contexto abrigar os ingredientes condicionantes, no de qualquer a priori (e se tal ocorre, a falha culpa o analista, no o texto). Em te5umo: o texto pessoano encerra alto ndice conotativo, diga-mos 10 (dez), para contrapor ao texto de Casimiro de Abreu. '7 . Espero que o leitor compreenda tratar-se de dois breves e

    fceis exemplos, a modo de ilustrao da noo de ndice conotativo. Por outro lado, seria preciso investigar a obra toda dos poetas mencionados para confirmar a observao que os ver-sos sugeriram. E quando o fizssemos, acabaramos percebendo que, de maneira geral, o fenmeno apontado se repete. Desen-volvamos esta idia, partindo de um lugar-comum; evidentemente, nem tudo num poeta somente penria conotativa (qual o exem-. plo de Casimiro de Abreu), nem tudo fartura conotativa (qual o exemplo pessoano ). Todos sabemos que o poeta brasileiro escreveu poemas de maior ressonncia lrica (como "Amor e Medo") do que aquele de onde extramos os versos referidos, e que Fernando Pessoa resvalou para trivialidades ao compor as Quadras ao Gosto Popular. Portanto, ningum asseverar ser foroso que um poeta se revele mau ou excelente em tudo quanto criou, mas que deva ser porcentualmente maior a quanti-. dade de poemas conotativamente escassos para que um poeta se enquadre entre os poetas menores; e que seja porcentualmente maior a quantidade de poemas conotativamente superiores para que o poeta se situe entre os grandes. Quer dizer: analisada a obra inteira de um poeta, h de existir fatal repetio de uma das possibilidades (isto , para a pobreza ou para a riqueza cono-tativa); e se ocorrer equivalncia (teoricamente falando, claro), estamos em face de poeta mediano ou indeciso.

    Pois bem, essa recorrncia da pobreza conotativa (que faz um poeta secundrio), e da riqueza conotativa (que reflete um poeta maior), traduz ainda a persistncia de entidades mais pro- _ fundas que a simples reiterao sinttica ou tSemntica. Refuo-me ao fato de que as constantes conotativas encerram a perma-nncia de certos padres de comportamento perante a realidade, de certos modos de ver o mundo, de certos valores, de certas solues para os problemas hum:ms, de certas idias fixas. de certos moldes mentais, a que damos o nome de foras-motrizes. Mais do que repetio sinttica ou semasiolgica, constitui uma

    constncia filosfica, ou, se. se quiser, esttico-filos6fica, visto

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  • implicar uma forma especial de . interpretar o mundo - uma mundividncia ou cosmoviso. fa....s .. ~
  • t-la com as outras "obsesses" da filooofia de vida machadiana. Estou cnscio de que o -roer~ apontar uma das foras-motrize.s de Machado de Assis peca por evocar problemas que no cabe discutir no momento, mas posso assegurar que a anlise ( empre-endida antes destas consideraes; se no, era incidir no gratuito que se pretende combater) o justifica plenamente. Na terceira parte deste livro espero demoristrar a assertiva.

    8. Atingido o nvel das foras-motrizes, ter-se- alcanado o limite da anlise, quando ento o espao abrangido pelo

    analista s& alarga em todas as direes. Neste ponto, faz-se neces-srio repor uma distino anterior e enriquec-la com novos ele-mentos. Vimos que, partindo de fora para dentro, se divisam dois planos na obra literria, o da forma e o do contedo, ou o do significante e o do significado. E as.sentamos 1) que se trata de uma dissociao provisria, e 2) que a tnica da anlise deve incidir no segundo termo, no no primeiro. Pois bem: a anlise das foras-motrizes desvenda a existncia de ingredien-tes que nem sempre se encerram na mesma obra, mas fora, posto que determinados por ela.

    Da que' ss.._~~na itiWc:I~"~~~~~.,.,~~~.J.l JJ.,@lt; tn~ha~a com elementos extrms"[JJ, r;J,e!l!.!!J.HifJz!!J!!.ts e f},,.!./:/J,f,,, tos intrm-

    ~ecos 6 .'...,05" primeiros referem-se aos ..J?S,tps exteriores da obra, ao contexto em que se inscreve, e por isso poderiam ser chama-dos de Cf?!JM~{Jt,fi.; como a biografia do autor e da obra, as relaes do texto com a Poltica, a Histria, a Sociologia, a Antropologia, a Estatstica, etc. Os elementos f rm.ais dizem tesp:ito J .... Qbi; elll si, e por isso p';ci;"ID.7o;;.f~nd1r-se com' os extrnsecos, como a anlise do tecido metafrico, a ironia, a ambigidade, o ritmo, a mtrica, a tcnica de composio, etc.

    ~~~~i~:~;~:.~~~~;~~~~rr~~~~~!t~~~~~%~~~~ka~ &ii:'Ji~919'.t'"~~.,,~~;;;~~~"'~~"'qte se e;~%'i~a- "~~ tedo", ou camada em que circulam as foras-motrizes . Obser-ve-se que, para chegar a elas, tivemos de partir do exterior para o interior, atravs de duas muralhas que procuram dificultar o

    6 Richard Moulton, The Modern Study of Lterature. An Intrc>-duction to Literary Theory and Interpretation, Chicago, The University of Chicago Press, 1915, cap. V; Ren Wellek e Austin Warren, op. cit., pp. 115 e ss.; Wayne Shumaker; Elements of Critica! Theory, Berkeley/Los Angeles, Univcrsty of California Press, 1964; caps. 5 e b.

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  • assdio do leitor: os aspectos extrnsecos e os formais. Mas fatal que, ali chegande, tenhamos de retroceder, porquanto no raro a compreenso das foras-motrizes exige que o analista recm:-ra aos aspectos formais e extrrnsecos.

    Explique-se: no assevero que, obrigatria e sistematica-mente, se deva recorrer ao contexto de uma obra quando a estamos analisando; nem que, caso se imponha tal necessidade, o contexto h de ser deste ou daquele tipo. Apenas procuro frisar o seguinte: 1) uma anlise literria que se pretenda com-pleta e profunda acaba apelando para aspectos externos; 2.t,.Q

    ~~-~~~~~f~-~~;;~;~~=~ei~t:~~i a de ~~51:tosr~ excusa de a convocar para a anlise. No entanto, se se tornar imperioso o recurso biogrfico, temos de utiliz-lo, sob pena de malbaratar a compreenso integral do texto.

    Po:r exemplo, para bem equacionar a mundividncia de Machado de Assis - aquela. que se entrev em sua obra -, parece evidente que temos de considerar suas leituras, notada-mente a Bblia e os escritores ingleses e franceses. Entenda-se que no afirmo ser imprescindvel sempre e exclusivamente que o analista lance mo da biografia de Machado de Assis para com-preender-lhe a obra, mas foroso que nela busque achegas para esclarecer aspectos que doutro modo continuariam mal-interpre-tados, como, por exemplo, seu pessimismo ou ceticismo. Outra no a mzo por que o clssico estudo de Lcia Miguel Pereira a respeito do criador de Capim funde inextricavelmente a bio-grafia e a obra do escritor: parece incontestvel que a estudiosa falhou por exagero, pondo demasiada nfase nos dados biogr-ficos, mas tambm se afigura. insofismvel que a obra macha-diana motiva a aplicao do mtodo; em suma, a estudiosa pisou em falso quando generalizou, no quando vislumbrou relaes necessrias entre a vida e os romances de Machado de Assis. Anlogo radocinio servir para compreender as vinculaes entre a obra literria e a Poltica, a Sociologia, a Economia, etc.

    Exemplo algo diverso pode ser colhido em Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Para dissecar e interpretar a obra, pouco ou nada importa a circunstncia biogrfica que levou o ficcio-nista a prefeito de Palmeira dos fodios, vilarejo encravado no interior alagoano. Entretanto, corre o risco de minimizar o impacto da narrativa quem deixar de referi-la ao chamado "pol-gono das secas": fico geograficamente looilizada, Vidas Secas

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  • requer o conhecimento das condies especficas do cenrio nor-destino. A fim de evitar-mal-entendidos, compreenda-se que no estou dizend ser indispensvel visitar o quadro mesolqgico da caatinga, visto que a informao de terceiros pode, at certo ponto, suprir-lhe a falta. Quero dizer simplesmente que no tomar em considerao o habitat em que transcorre Vidas Secas implica a reduo perigosa de sua problemtica social.

    Por fim, e guisa de exemplo oposto, vejamos Ma no Escuro, de Clarice Lspector: o romance desenvolve-se no Rio de Janeiro, mas podia dar-se em qualquer regio do planeta. Todavia, uma anlise rigorosa nos, conduziria a interpret-lo como obra tpica Jo estado atual do inundo aps a guerra de 1939. que nenhuma obra se desliga totalmente de seu ambiente histrico. De forma tal que a aferio do grau de condiciona-mento ao meio constitui um dos objetivos da anlise: o valor da obra depende de uma srie de fatores, dentre os quais se salienta o nvel de aproximao e distanciamento da realidade. Da que um romance seja tanto mais pobre quanto mais copia a vida, e tanto mais rico quanto mais a recria: no se espera de uma obra de fico que espelhe fielmente o mundo, mas que, reorganizando-o, nos ensine a v-lo de modo amplo e profundo.

    Em concluso: a anlise literria no pode nem deve ser ou s extrnseca, ou s formal, ou s intrnseca, salvo em teo-

    Ser integral 7 , totalizante, incorporando todas as "aproxi-maes" textuais, sempre consoante as pr6prias caractersticas da obra, no as convices e idiossincrasias do crtico ou do estu-dante.

    9. Posto o qu, ressaltemos um pormenor metodolgico entra-nhado no tpico anterior, e que se refere marcha da

    anlise. Quando o estudante procede como temos-sugerido (isto , considerando o texto sua matria-prima), nem. por isso se torna isento ou impessoal. Noutros termos: ao investigar a obra lite-rria no encalo das foras-motrizes e admitindo que elas deter-minam a interao das camadas formais e contextuais, o ana-lista carrega uma srie de idias feitas, ou, ao menos, de infor-maes que lhe vieram de outras leituras, de interpretaes de outrem obra em causa, de sua cultura geral, etc. Por certo

    1 Raul H. Castagnino, El A.nlisi.r Literario, Buenos Aires, Ed. Nova (19.5.3).

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  • que seria de esperar uma iseno plena, mas isto absolutamente utpico, pois que sempre. alguma coisa de subjetivo e aprio-rstico permanece. Por outro lado, no se entenda a iseno diante da obra como despreparo ou ignorncia, mas como tenta-tiva de evitar que se distora a substncia do texto forando-a a encaixar-se nas preconcepes conscientes ou inconscientes do crtico. Em vista disso, o ideal que o analista reduza ao mxi-mo os apriorismos deformantes e mantenha apenas as informaes conectadas com a tarefa indagadora. Pede-se-lhe que procure ser to "objetivo" quanto possvel, ou melhor, que coloque antes o texto e depois suas prevenes, anelando antes compre-ender o autor na obra que nesta projetar sua ideologia, suas frustraes e tendncias psquicas. Seu esforo consistir em captar o texto como virgem, em estado original, intocado por qualquer sensibilidade, e no em buscar nele somente determi-nadas idias ou sensaes previamente escolhidas.

    Portanto, a caminhada analtica corresponde a um duplo e simultneo processo de deduo-induo: partindo do texto, o analista -deduz, e as dedues, iluminadas e alargadas por suas informaes, o convidam a pesquisar os nexos contextuais e formais; chegando a e'ise ponto, o analista induz elementos que servem para ampliar a perspectiva das foras-motrizes. Realizada toda a tarefa analtica assim conduzida, j se pode proceder avaliao da obra atravs de suas foras-motrizes, empresa essa que, como sabemos, fica de fora da anlise e pertence crtica literria.

    10. H que considerar a existncia de dois tipos, ou processos, fundamentais de anlise literria, de resto subentendidos

    nos princpios anteriores: anlise microscpica, ou da microes-trutura literria, e anlise macroscpica, ou da macroestrutura literria. No primeiro caso, a ateno converge principalmente para as mincias da obra. No segundo, encara-se a totalidade da obra, potica, em prosa ou teatraL Os dois processos se com-pletam, porquanto a microanlise deve forosamente levar ma-croanlise, e esta assenta obrigatoriamente sobre os pormenores, ao menos quando se trata de exemplificar.

    Assim, podemos analisar um episdio dOs Lusadas e dele remontar para o poema todo, e/ ou, intentando examinar-lhe a totalidade, descer para as minudndas ilillltrativas. No primeiro caso, a anlise pode ser pardal ou geral, dependendo sempre dos

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  • objetivos em mira : pode-se investigar um s aspecto do texto, ou ambicionar ver todos ou quase todos os seus aspectos. Ocor-re, ainda, que se pode aplicar uma das modalidades de enfoque analtico em vrias obras de um autor ou de vrios autores. Assim, por exemplo, a conhecida obra de E. R. Curtius, Lite-ratura Europia e Idade Mdia Latina, concentra-se num s aspecto, o topos (os topai so clichs lingsticos de circulao universal), enquadrado em determinada rea cultural, assinalada no ttulo do livro. Decerto, pode parecer ao estudioso fora de seu alcance imediato aproveitar as lies oferecidas por essa obra, alis indispensvel sempre que nos voltamos para a Idade Mdia, mas ele pode conserv-lo como um modelo superior de utilizao dos processos analticos (e crticos, que andam juntos, sobretudo no caso d'e Curtius) . 11. Das observaes que compem este captulo podemos desen-

    tranhar as fases que devem presidir anlise literria:

    Primeira. Escolhida a obra ou fragmento dela, procede-se sua leitura integral, leitura de contacto, descontrada, ldica, que deve fornecer uma "impresso" ou "idia" geral do texto, imprescindvel para as fases posteriores da tarefa analtica;

    Segunda. Releitura de anlise (que pode e deve ser repe-tida tantas vezes quantas o texto o requerer), com o lpis na mo, assinalando no texto as passagens que mais chamam a aten-o ou que envolvem problemas de entendimento;

    Terceira. Consulta do dicionrio lexicogrfico (e de termos literrios), a fim de resolver as dvidas quanto denotao das palavras e expresses;

    Quarta. Releitura tendo em mira compreender o ndice conotativo das palavras e expresses;

    Quinta. Apontar as constantes ou recorrncias do texto, sobretudo no que toca conotao;

    Sexta. Interpretar tais constantes ou recorrncias, que constituem a camada externa das foras-motrizes, com base nos elementos do prprio texto e nas informaes que o analista j possui;

    Stima. Consultar as fontes secundrias caso o texto o reclame: histria literria, histria da cultura, biografia do autor,

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  • , , , ~r ',~
  • unidade parte, com margem maior e at diverso aspecto grfico (por exemplo, diminuio do espao entre as linhas);

    d) Indicao precisa da citao de qualquer achega extra--textual (provinda da histria literria, da histria da cultura, da biografia do escritor, etc.), semelhana da indicao da transcrio textual: a achega deve ser apropositada, necessria ao entendimento do texto, e incorporar-se anlise (fora da, ser esnobismo literrio ou falsa erudio ) ;

    e) Procurar organizar os pensamentos segundo uma ordem lgica, em que cada parte se aglutina a outra por ntima neces-sidade, e essa ordem pode ser ascendente, partindo do aspecto menor at o mais importante, ou descendente, isto , na direo contrria;

    f) Interpretar sempre, estabelecer nexos, salientar relevos, tudo com base nas perguntas referidas: como? por qu?;

    g) Redigir com clareza e esgotar cada aspecto antes de passar ao seguinte;

    h) ~ric;~a,r !:tll,J;!;~ ,c;~wc:l~f:~. Pl~~~yei~

  • III. PRlNC1PIOS PARTICULARES DE ANALISE LITERRIA

    1. INTRODUO Estabelecidos que foram os princpios gerais de anlise lite-

    rria, destinados a orientar o desmonte e a interpretao de qualquer obra literria, de qualquer dos gneros, espcies e fr-mas em que pode repartir-se, passemos aos princpios particulares, que se prestam para a anlise do texto potico, do texto em prosa e do texto teatral, autonomamente.

    Para tanto, cumpre estabelecer um conceito de poesia, de prosa e de teatro. Sem entrar na discusso mais demorada deste tpico, vou ater-me a sintetizar as observaes que a respeito de tal assunto expendi nA Criao Literria: a poesia ser enten-dida como a expresso do "eu" por meio de metforas, enquanto a prosa consistir na expre~o do "no-eu" por meio de met-foras. V-se que o conceito preconizado despreza a distino formal (versos, poema, etc.) em favor de uma distino essencial. Mais ainda: a metfora potica polivalente por nanireza, no assim a da prosa, que tende uajvalncia. Portanto, texto po-tico aquele em que se exprime poesia. Como, as mais das vezes, existem frmas especiais para que a poesia se manifeste, diremos que constituem texto potico o soneto, a balada, a can-o, a elegia, a gloga, o rond, o ronde!, a sextina, o vilancete, o poema em prosa, etc. E texto em prosa aquele em que se comunica a prosa, a saber: o conto, a novela e o romance. Nada impede, porm, que numa frrna potica se coagule a prosa, e vice-vers-a.

    Quanto ao teatro, pode ser conceituado como a arte do espao, do espetculo, e da representao 8 Por isso, o teatro

    8 Guy Michaud, op. cit., p. 179.

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  • realiza-se no palco, e distingue-se das demais artes por exigir um lugar determinado (o "teatro'', edifcio composto de tablado, auditrio, bastidores, camarins, etc.), em que os atores represen-tam um espetculo para o pblico. Ora, o texto que se destina encenao somente alcana completo carter teatral quando ocorre o espetculo; antes disso, no teatro, mas Literatura. Da que se entenda por texto teatral aquele que pode ser levado ao palco para se transformar em representao. A ns, apenas importa o texto, no sua representao, pois esta ultrapassa os parmetros literrios. Como existem moldes aos quais o teatro se adapta, diremos que constituem texto teatral a comdia e a tragdia, mais as formas subsidirias, o drama, a farsa e o melo-drama.

    2. ANALISE DE TEXTO POTICO A anlise de um texto potico deve basear-se

    a. Prellm!nares em sua essncia, no em sua forma (entendida co~o sinnimo de Mtrica). Expliquemo-nos: se a caracters-tica especfica da poesia reside antes na viso prpria que ofe-rece da realidade que no fato de ser expressa em versos, sua anlise h de implicar, sobretudo e em ltima instncia, essa concepo do mundo. Na verdade, uma primeira tarefa consis-tiria em saber se a composio versificada (ou no) que temos diante dos olhos possui a condio mnima para ser poesia. E seria tarefa indispensvel, a fim de evitar que erigssemos do texto aquilo que no pode nem pretende proporcionar, ou seja, reclamar-lhe que contenha (ou comunique) poesia quando sua bssola se inclina para a prosa. Entretanto, vamos admitir, para os fins prticos deste livro, que o poema escolhido para anlise se enquadra nos limites da poesia.

    Considerado tal ponto como pacfico, restaria Metfora. ainda sublinhar certos aspectos da essncia po-Universo Potico

    tica, sem os quais no isolamos o texto potico para os objetivos da anlise. Refiro-me ao seguinte: sabemos que _P_oesia. se identifica C()I!l(). a ~:x;presso. do"e1( l?~ meio .ele Jin8.ll_~R~!!l_coni:itatlv)L()l! de metforas poliv~~11~~~ Ora, aqui que precisamos dinorar nossa: aterio"por alguns instantes. Tais metforas, dada sua mltipla valncia, constituem-se de trs camadas (a emocional, a sentimental e a conceptual, no super-postas mas imbricadas ou inter-relacionadas), e formam verda-

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  • deiros sistemas dentro da galxia em que se estrutura o poema. Assim, cada metfora seria como que o sol de um microscpico sistema planetrio, ou, por outra, um astro em torno do qual circulariam alguns satlites. E a obra toda de um poeta seria uma combinao de galxias, ou seja, um universo, universo potico 8

    Transpondo a imagem para o vocabulrio estri-Metfora. tamente literrio, dir-se-ia que a metfora seria Palavra-chave al ali do uma palavra-chave 10, ou p avra cat sa ra 11, ou palavra-matri.Z, cercada de palavras secundrias ou dependen-tes, tudo compondo "atmosferas" poticas. E as palavras depen dentes, por sua vez, resultariam do desdobramento da palavra--chave, como se o poeta escrevesse o poema para desvendar o contedo da metfora-matriz, mas realizando um desvendamento que lhe respeita a ntima natureza, isto , de ser metfora gera-dora de outras metforas. O processo permanece ainda quando o poema exibe duas ou mais palavras-chave: sempre estaro rodeadas de outras palavras, que lhes so subordinadas e lhes constituem o prolongamento ou amplificao. Desse modo, a obra toda de um poeta constituiria uma espcie de polimetfora, ou hipermetfora, composta de todas as metforas que colabo-ram na estruturao dos seus poemas.

    Pois bem, a anlise deve convergir, inicialniente, para as palavras-chave, e posteriormente para as secundrias. Est claro que no basta apont-las: h que conhecer o nexo que as apro-xima, seu parentesco profundo, no de ordem lgica (pois no se trata de anlise lgica ... ) , mas emotivo-sentimental-concep-tual. Decerto, as metforas (como tudo num poema) obedecein a determinada ordem, mas quem a dita o prprio poema, segundo o arranjo formal eleito pelo poeta, e no segundo os postulados da L6gica. Quer dizer: o analista literrio desacor-oar se procurar num poema a concretizao dum silogismo; e, se o encontrar, o fato no pode passar despercebido, pois, ou se trata de um tipo especial de poesia (como a neoclssica, em sua vertente racionalista, quando expressa em sonetos discur-

    9 Reuben Arthur Brower, The Fields of Light. An Experiment in Criticai R.eading, Nova Iorque, Oxford University Presa, 1962, p. 91, nota.

    10 Raul H. Castagnino, op. cit., p. 129. 11 Matila C. Ghyka, apud Raul H. Castagn.i.no, op. cit., p. 129.

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  • si vos), ou de m poesia, ou de no-poesia, como a perseguida pelos partidrios da "poesia cientfica", na segunda metade do sculo XIX. De qualquer modo, L6gica e Poesia constituem duas vises antagnicas, ou divergentes, do mundo. Entre-tanto, o analista h de buscar uma espcie de hierarquia entre as metforas, uma escala de valor, a fim de surpreender aque-la( s) metfora( s) que comanda( m) o poema todo, como se fosse o ncleo da galxia.

    Chegado a esse ponto, ele ter surpreendido o mago mes-mo do poema, mas no sua decifrao total, evidentemente. Visto que o poema se constitui numa galxfa de metforas poliva-lentes, imediato compreender que a anlise jamais o esgota, salvo se for de nfima qualidade: a sondagem do texto uma aproximao incessante no encalo de um quid que tende a dis-tanciar-se medida que se lhe penetra a intimidade, e na razo direta da complexidade e densidade de seu contedo. A anlise, por isso, consiste num esforo de apreenso e no numa tcnica infalvel de sondar o interior da matria potica.

    Essa mesma relatividade dos resultados da O lempo na poesia tif perquirio analtica jus ica uma interroga-o: por que a aten deve convergir para as metforas, sendo to fugidias e ambguas? J vimos que a opo decorre da pr-pria natureza da poesia; contudo, para que alcancemos ainda mais praticidade neste tpico, vale a pena focalizar outras facetas da questo. Vejamos: a poesia , em essncia, a-histrica, a-nar-rativa e a-geogrfica. Na realidade, a poesia no se insere no tempo (embora possa escolher o tempo como tema), quer dizer no se prende s dimenses do tempo, no se apresenta numa ordem temporal, cronolgica, com um "antes" e um "depois" (um "antes" e um "depois" que balizassem a ordem do tempo, no a ordem com que as palavras se organizam no corpo do poema). Em suma: as emoes, sentimentos e conceitos que integram um poema ignoram qualquer sucessividade anloga do tempo no relgio, e apenas se arquitetam conforme um nexo psicolgico ou inerente pi:6pria substncia da poesia, dir-(Se-ia um nexo emotivo-sentimental-conceptual. Da que parea mais participar do tempo psicolgko, ou da "durao" bergsoniana, que da cronologia histrica ou fsica.

    Isso quanto ao contedo que no poema se plasma. E quanto data em que foi escfo ou criado? Na verdade, a data de elab?rao de um poema, em vez de lhe detenni.nar um ~nto

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  • no tempo espacial, to-somente assinala o momento em que a obra "nasceu" no poeta. Essa hora, demarcada pela data, exterior ao poema, e tanto faz que fosse uma ou outra (ao menos no plano do poema em si, no de sua histria externa ou da biografia literria de seu autor). Ao contrrio, o "tempo" interno do poema foge das regras do tempo histrico, e apenas conhece o "tempo" da emoo-sentimento-conceito que neles se corporifica. De onde, como dissemos, inexistirem um "antes" e um "depois" no fio do poema, e a ordem das palavras ser aparentemente linear (ou vertical, segundo a prpria seqncia da leitura): a rigor, circular, porquanto o primeiro verso e o ltimo coexistem numa circunferncia, verdadeiramente seme-lhana de uma galxia - em perptuo dinamismo. Ao contrrio do que pode parecer primeira vista, as palavras do poema no so estticas: num autntico moto-contnuo, deslocam-se no poe-ma obedientes a uma secreta lei de repulso e atrao, que se nos revela como aUGncia ou presena de afinidade ou analogia. De tal modo se movimentam em busca do enlace ou do divrcio, que a ilusria distncia temporal (isto , o tempo despendido na elocuo do poema) entre o primeiro e o derradeiro versos se dissipa quando chegamos ao eplogo do poema, pois fatalmente retomamos o segmento inicial, que s o na medida em que foi o primeiro a se mostrar na tela mental do poeta, no porque o inaugurador de uma srie gradativamente ordenada de emo-es, sentimentos e conceitos.

    De onde o poeta aborrecer a Histria, o que o espao e o equivale .a repudiar o enredo, pois no de enredo na poesia sua natureza narrar mas sugerir, evocar, des-crever ou projetar emoes, sentimentos e conceitos a um s tempo. que, como vimos, a poesia se compe de "atmosferas", ou de uma sucesso de sistemas metafricos, apenas localizados no espao do poema (por sua vez impresso no papel), mas 'fora de qualquer geografia fsica. A poesia no remete para lugar algum, nem se situa em espao algum: a-geogrfica. E a prpria Natureza que nela pode aparecer obedece ao processo de evocao ou de sugesto metafrica, o que corresponde a dizer que constitui sempre um espao ideal, meramente referencial, cuja presena no se torna, vfa de regra, imprescindvel para que a poesia se realize como tal. Entenda-se que no me refiro Natureza como reservatrio de metforas, mas como o lugar onde "acontece" o poema.

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  • Portanto, a anlise do texto potico nio se preocuparia com o tempo, nem com o enredo, nem com o espao (salvo quando este aparecer como Natureza). Assim, por exemplo, os sonetos de Cames se caracterizrll por sua inespadalidade, intemporali-dade e a-historicidade. A nica exceo plausvel, o "Sete anos de pastor Jac servia Labo'', apenas confirma a regra: entre-tanto, a uma anlise mais atenta, percebe-se que ainda essa com-posio se enquadra na caracterologia potica, pois a narrao bblica que a percorre, e na qual se fundamenta, acaba perdendo seu ar histrico ou narrativo por encerrar um alto sentido sim-

    blico, sem contar a ausncia de notao espacial ou temporal.

    Todavia, a poesia pica semelha contradizer as Anlliis da observaes anteriormente expendidas. Vejamos poesia pica at que ponto constitui mera aparncia e at que ponto h de ser tida como verdadeira exceo. Sabe-se que essa espcie potica, existente h milnios, transformou-se, no curso dos sculo, em novela e, depois, em romance, precisamente por-que participa ao mesmo tempo da poesia e da prosa. Quer dizer: quando o poeta pico lana mo da narrativa para compor peripcias de ordem blica ou histrica, em vez de criar poesia, est elaborando prosa versificada. Como a distino entre poesia e prosa se d no plano do contedo, e no da forma, a insero de tais seqncias narrativas, ainda que subordinadas aos precei-tos versificatrios, no deve iludir. Por isso, na anlise de um poema pico h que tomar em conta essas "quedas" prosaicas, l) porque constituem um dos seus mais tpicos ingredientes, e 2) porque a discriminao de tais "quedas" prepara o terreno para o julgamento crtico, ou seja, considera-se criticamente mau ou inferior o poema pico em que as "baixas" narrativas preva-lecem sobre as "subidas" lricas. Basta comparar o resduo potico dOs Lusadas, depois que lhes extramos os trechos prosaicos, com o resduo potico dO Uraguai, aps idntico procedimento: no primeiro caso, temos o poema superior, mode-lar; no segundo, o inferior, epigonal. Vem da que o analista de poesia pica deva tom'.l.r em conta as fraes em que o por-menor narrativo supera o fluxo potico propriamente dito. Por outro lado, como a narrao remete para acontecimentos hist-ricos, mitificados na psicologia do povo, e como os episdios lricos podem estar-lhes intimamente vinculados, aqui entra a necessidade de o estudioso socorrer-se de achegas contextuais. Por exemplo: Os Lusadas e O Uraguai s podem ser devida-

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  • mente interpretados quando conhecida a conjuntw:a :scio-econ-mico-cultural dos sculos -XVI e XVIII, respectivamente.

    Interromper-se- neste ,ponto a funo do analista do poema pico? Acredito que no. Ademais do que fica assinalado, cabe~ -lhe orientar sua ateno no sentido da macroestrutura do poema, pois ela reflete o talento inventivo do rapsodo. Por macroes-trutura, entende-se o arcabouo que sustenta o poema todo, o modo como se engrenam suas partes maiores (introduo, narra-o e eplogo), formando a unidade do conjunto: o nexo entre as peripcias, os planos dramticos, etc. Alm disso, haveria que anotar a presena do "iaravilhoso" (isto , a interferncia dos deuses na ao dos heris), da Natureza divisada como pano de fundo da ao, e das personagens que a impelem.

    Portanto, alm das metforas, o analista considerar tais aspectos no exame da poesia pica. De modo semelhante, mas sem preocupar-se com o "maravilhoso" e com a macroestrutura, proceder quando se tratar de poesia narrativa (como, por exem-plo, o romanceiro- medieval hispnico, as glogas e os abcs nor-destinos) e a satrica, sempre tendo em mente que constituem manifestaes menores de poesia, ou limtrofes da prosa de fico.

    Registrese, p_or fim, que tais observaes se referem poe-sia pica tradicional, vigente at o sculo XVIII. Com as trans-formaes introduzidas pela esttica romntica e subseqentes, a poesia pica despojou-se de seu carter narrativo, mas preser-vou os demais ingredientes: eis por que, apesar da aparncia contrria, a poesia pica continua a ser cultivada. T. S. Eliot, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima so alguns dos exemplos modernos no gnero. Sucede, porm, que a rejeio da peripcia faz que a poesia pica dos nossos dias se assemelhe poesia lrica. Na verdade, semelhana epidrmica, uma vez que as diferenas bsicas entre as duas esp-cies poticas permanecem intactas, e que 11s analogias entre as duas modalidades de pica so patentes. Basta confrontar os poetas supramencionados com alguns lricos deste sculos, como Rainer Maria Rilke, Juan Ramn Jimnez, Mrio de S-Carneiro, Vinkius de Morais, e com os poetas picos clssicos: aproxi-mam-se mais destes que daqueles, na medida em que prevalece a viso cosmognica, centrada na primeira pessoa do plural ("ns"), sobre a viso microscpica, centrada no "eu". E como os picos modernos abandonaram a categoria narrativa, desaparecem as "quedas" e o tonus potico mantm-se inalte-

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  • rado, salvo se entendermos as incurses lricas como rebaixa-mento da temperatura pca. Para que a idia no fique sem ilustrao, socorramo-nos de um poema de Jorge de Lima:

    Qualquer que seja a chuva desses campos devemos esperar pelos estios; e ao chegar os seres e os fiis enganos amar os sonhos que restarem frios. Porm se no surgir o que sonhamos e os ninhos imortais forem vazios, h de haver pelo menos por ali os pssaros que ns idealizamos. Feliz de quem com cnticos se esconde e julga t-los em seus prprios bicos, e ao bico alheio em cnticos responde. E vendo em torno as mais terrveis cenas, possa mirar-se as asas depenadas e contentar-se com as secretas penas.

    Como se observa, trata-se de um soneto, conespondent~ ao poema XXVI do Canto Ide Inveno de Orfeu (1952), sabida-mente um poema pico de gigantescas propores ( 10 Cantos), espcie. de epopia moderna, refaco dOs Lusadas em nvel a um s tempo nacional e universal, fundindo ciclopicamente as imagens mais desencontradas, numa tenso de contrrios sem par em nossos dias. Portanto, selcionamos um brevssimo frag-mento de um vasto poema, de modo que a leitura do soneto demandaria idntico procedimento nos demais textos para evi-denciar toda a sua epicidade. Assumindo-o como exemplo de pico moderno, que elementos permitem tal classificao?. Pri-meiro: a inespacialidade; certo que o poeta se refere a '.'cam-pos'', "chuva'', "estios", mas que "campos", "chuva", "estios"? onde? Note-se a meno a "qualquer que seja a chuva", que colabora para tornar vaga a geografia do poema; acrescente-se que as estrofes seguintes no incluem acidente geogrfico algum, tornando mais incerta a localizao da cena. Segundo: o emprego da primeira pessoa do plural ("ns") nas duas quadras e da ter-ceira pessoa do singular ("ele") nos tercetos, uma e outra anti-lricas por excelncia. Terceiro: a intemporalidade, casada inespacialidade. Qarto: o carter csmico e mtico, que advm dos aspectos anteriores e do clima geral do poema, dado pela vaguidade qe "sonhamos" (sonhamos o qu?), "ninhos imor-tais", de "pssaros que ns idealizamos''. Quinto: o transcen-dentalismo da atmosfera que banha o poema, resultante no. s dos aspectos precedentes como da preocupao pelos ltimos fins

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  • do Homem, luz duma tica estica, manifesta nos tercetos, notad.amente o primeiro vrso do primeiro ("Feliz de quem com' cnticos se esconde") e o derradeiro do segundo ("e contentar-se com as secretas penas").

    Nesta altura de nossas ponderaes, julgo Os aspectos formais ter-se esclarecido o seguinte ponto: para a

    anlise, no interessam, regra geral, os acidentes formais do poe-ma. Ou por outra, tanto faz, em princpio, que se trate de um soneto, de uma cano, etc., porquanto o comportamento anal-tico ser o mesmo em qualquer caso. Fique claro, porm;' que no se deve esperar de uma ode (composta segundo os padre:; tradi-cionais) aquilo que oferece um soneto, e vice-versa, a partir do fato de o soneto, composto de catorze versos, se prestar para a expresso de certos contedos que se afiguram inadequados ode, de estrutura mais elstica e de varivel nmero de versos e estrofes; a conciso do soneto repudia a solenidade e a elo-qncia da ode, e vice-versa. Para prevenir-se contra equvocos nesse domnio, o estudioso dever municiar-se de um dicionrio de termos literri~s, ou/ e de uma teoria da Literatura, a fim de informar-se da natureza da frma literria que se prope inter-pretar. Entenda-se que tais informaes ho de servir ao intento analtico to-somente e no como alvo em si. Em igual plano se situam as teorias mtricas, isto , o trabalho de aprender a escandir ou censurar um verso apenas vale, em se tratando de anlise, para a compreenso e posterior julgamento de alguma particularidade a solicitar considerao especial. ~ que a anlise de poesia rejeita a tarefa mecnica postulada pela retrica tradi-cional, e apenas requer o auxlio da notao tcnica quando necessria ao entendimento do texto. Espero ter ficado claro que no estou predicando ignorncia de tais recursos; simplesmente defendo que o seu mero emprego ainda. no constitui anlise literria, e que a versificao deve ser aprendida num estgio anterior a ela, como aquisio de implementas bsicos para a sondagem do texto.

    Por outro lado, no importa diretamente anlise a nomen-clatura com que se designam os acidentes mtricos: na verdade, um estudante pode analisar um poema sem saber que o ritmo do verso decorre da utilizao de espondeus ou de troquem; 12 ,

    12 Edward B. Jenkinson e Jane Stouder Hawley (ed.), On Tea-ching Literature, Bloomington/Indiana, Indiana Universicy Press ( 1967), pp. 83 e ss.

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  • e, em contrapartida, acabar no analisando poema algum se se concentrar apenas na escanso dos versos; assim procedendo, efe-tuar simplesmente um exerccio escolar. de metrificao, jamais uma anlise literria.

    Supondo que estejam conhecidos os scidentes formais do poema e dirimidas as dvidas quanto natureza potica da com-posio, o estudante poder paSiSar a analis-la. Mas se, durante o trabalho, emergir alguma perplexidade de ordem formal ou mtrica, recorrer s fontes especficas para desfaz-la. Em suma: a retrica ou preceptstica potica ser consultada sempre que se tornar imprescindvel elucidao do texto; sua funo, por isso mesmo, ancilar, consistindo antes num meio que num fim.

    Igualmente, anlise de poesia importam somente de modo subsidirio a rima, a cesura, a estrofao, etc. O prprio ritmo, ou musicalidade, to congenial essncia da poesia, s merece ser considerado pelos significados que transporta 18 Quer dizer: quando divisado o poema em si, pouca diferena faz que se estru-ture em estrofes regulares de versos rigorosamente escandidos, ou cesurados, e rimados, ou, pelo contrrio, em estrofes livres e versos soltos e brancos. Entenda-6e que tais recursos so secun-drios do ngulo da anlise, o que no impede que se tornem importantes a outros respeitos. Casos h em que uma olhadela de relance rima de um poema pode conduzir revelao de uma fraqueza estrutural, na medida em que o poeta se obrigou a empreg-la por causa de um conjunto de fatores nem sempre fceis de circunscrever, dentre os quais se salientam a moda lite-rria em voga ou o preconceito contra o verso livre. Penso, por exemplo, nos excessos a que arrastou o respeito parnasiano pela rima. Tambm pode suceder de o leitor defrontar-se com um soneto de estrambote (composto de dois quartetos e trs ter-cetos, em vez de dois); nesse caso, apenas lhe resta analisar o poema tendo em vista o apndice ocasonal.

    Fora de tais casos, em que a prpria obra determina a con-duta a seguir, a anlise de texto potico dispensa os expedientes formais. Repito: oxal compreendam no estar eu preconizando que se deva d,esconhec-los, pois equivaleria a defender uma formao escolar falha, evidencivel quando se impe a ateno sobre os aspectos formais, como nos exemplos mencionados. Apenas pretendo colocar nfase no fato de que, para a anlise,

    13 Elizabeth Drew, Poetry, 7." ed., Nova Iorque, Deli, 1967, p. 41.

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  • a prosdia mtrica .funciona como mero subsdio, jamais como fim em si mesma, Na verdade, transformar em meta da anlise essa til, mas acessria, achega informativa seri como se "o ~stu~~te de Arq~tetura fosse encorajado a despender seu tempo 1dentif1cando a cmgem das pedras reunidas para compor formas arquitetnicas, ou o estudante de Pintura a analisar a construo do cavalete de Rembrandt" u.

    Resumindo, a anlise do texto potico percorre as seguintes etapas: 1) examinar a camada denotativa; 2) examinar a camada conotativa (conforme as sugestes dos itens 5 e 6 dos "Prin-dpios Gerais de Anlise Literria"), e que podem ser cumpridas autnoma ou simultaneamente, de acordo com o poema ou/ e as prprias tendncias de quem executa a tarefa; 3) assinalar as "atmosferas" poticas e as respectivas "palavras-chave"; 4) inter-pretar, ato que consiste em organizar as "atmosferas" poticas e as respectivas' "palavras-chave", segundo sua importncia, que pode acompanhar ou no a ordem das estrofes, a ver qual a predominante no poemii; interpretar tambm significa compreen-der, isto , selecionar e aglutinar as "atmosferas" poticas no intuito de saber como se conciliam numa unidade, ou t>eja, como se agrupam harmonicamente apesar do relativo contraste entre elas, ou se reduzem ao fim de contas a uma s, tendo em mira o ulterior enquadramento da fora-motriz subjacente na cosmoviso do escritor, dad.a por idntica prospeco em toda a sua obra.

    b. Texto Urico

    CANO l Pus o meu sonho num mvio

    e o navio em cima do mar; - depois, abri o mar com as mos, para o meu sonho naufragar.

    5 Minhl!ll mos ainda estio molhadas do azul das ondas enttcabertll.ll, e a cor que escorre dos meus dedos colore as areias desertas.

    9 O vento vem vindo de longe, a noite se curva de frio; debaixo da gua vai morrendo meu sonho, dentro de um navio ...

    13 01orarei qurmto for preciso, pru:a fazer com que o mu cresa,

    14 Wayne Shumaker, op. cit., p. 64.

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  • e o meu navio chegue ao fundo e o l!lCU sonho desapaxea.

    17 Depois, tudo estar perfeito: praia lisa, guas ordenadas, meus olhos socoo como pedras e as minhas duas mos quebradas.

    Anlise Embora esteja assente que o texto constitui ponto de partida e de chegada da enlise literria, tornar-se-ia

    postio dar ao estudante para analisar um poema cujo autor fosse elidido, porquanto na prtica ningum desconhece o autor da obra analisada, nem a obra em que se insere um fragmento a destrinar. E se porventura ignorar tais informaes, h que busc-las, pois que, ausentes, podem prejudicar mais do que favo-recf!r a tarefa analtica. Observe-se que se trata de algumas informaes elementares, externas, a ttulo de stuar a obra em causa no tempo e no espao. Nada mais. Fora da, o prprio texto que -deve monopolizar a ateno. Alis, tais informaes poderiam ser dadas como bvias se fosse declarado entre parn-teses,' no final do poema, o nome do Autor, o ttulo da compo-sio e da obra em que se inscreve. Como preferimos conferir o mximo de nfase aos textos, damo-las agora, a modo de intro-duifo a uma tcnica de anlise do poema: trata-se da "Cano", pertencente ao volume Viagem, de Ceclia Meireles ( 1901-1964 ), publicado em Lisboa, em 1939, que a conGagrou como uma das mais altas vozes lricas do Modernismo brasileiro.

    A seguir, convido o leitor a percorrer o poema uma ou mais vezes. Feito o qu, j podemos ambos empreender a cami-nhada metodolgica que conduz sua anlise: vamos antes pro-curar mostrar como se processaria a anlise que realiz-la. Vale dizer: elaboraremos a mecnica da anlise, como a expor um modo de se ler em profundidade, no o texto final em que a anlise se efetiva; no vamos efetuar uma anlise, mas sugerir ao leitor como deve agir para chegar a ela, simplesmente porque o result.ado escrito da anlise no pode ser ensinado, fruto da capacidade e das tendncias de cada um; o mtodo de anlise pode ser equacionado, no o texto que o apresenta. Mesmo porque a anlise deve ser entendida como mera prepa-rao para a crtica e a historiografia. Lembra-se disso o leitor? Esclarecido esse aspecto, vamos ao poema.

    O primeiro ponto a observar diz respeito existncia de alguma palavra cujo sentido denotativo nos escapa ou nos levante dvidas. Percorrendo uma a uma as palavras: do poema, perce-

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  • be-se que talvez s6 o voebulo "perfeito" pode causar especre., Decerto, cada pessoa faz uma idia do que seja, mas para evitar

    mal~entendidos, vamos ao, dicionrio. Que ficamos sabendo? Que "perfeito" significa: "que s tem qualidades boas", ou "to-tal, cabal, rematado, completo", etc. Assim, todas as palavras oferecem significao denotativa transparente. O problema reside em sua significao conotativa. Para tanto, vamos sondar o poema palavra a palavra, a ver-lhes os significados e os nexos que as aproximam.

    Primeira Estrofe O primeiro vocbulo do poema "pus": que dizer dele? Que se trata da primeira pessoa do singular do pretrito perfeito do verbo "pr", est evidente. Tambm evidente que a ao representada pelo verbo est no passado. Portanto, h que assinalar o tempo do verbo que encabea o poema, pois dever ter alguma importncia, que a anlise dos restantes vocbulos revelar. A seguir, note-se o possessivo "meu", explicvel pela atitude egocentricamente lrica assumida pela poetisa. O adjetivo modifica o substantivo "sonho", que aparece em termos absolutos: sonho de qu? qual o seu contedo? sonho no sentido literal ou/e no sentido amplo? As duas' primeiras indagaes permanecem suspensas ou sem resposta, e pode-se adiantar que se trata de "sonho" como "devaneio", "aspirao vaga, indefinida, ideal", elaborada em vglia ou de olhos semicerrados, e no como manifestao psico-fisiolgica durante o sono. Se outra razo no houvesse para sustentar essa interpretao, bastava atent

  • que prolonga ou grifa a sensao inerente ao sonho encarado abstratamente. Apenas para testar a relao estreita e nica entre as palavras que integram o primeiro verso, procedamos a uma substituio, colocndo outro veculo em lugar do navio. Ainda que tivesse idntico nmero de slabas (como "carro"), o sentido do poema todo mudaria, o que significa que outra seria a composio resultante, porquanto o vocbulo "navio" determina uma "lgica", psicolgica e emocional, que se alteraria caso a palavra fosse trocada. Da se concluir pela necessidade estrita do vocbulo "navio" na ordem do pensamento potico que na cano se coagula. Certo, podia-se admitir um equiva-lente para "navio", como "barco" (sobretudo no sentido brasi-leiro), mas o tom e o nvel da sensao se modificaria, no obstante o sentido geral pudesse persistir. Terminado o teste, j podemos prosseguir. 2. No segundo verso ("e o navio em cima do mar"; ) , repe-

    te-se a palavr-a "navio", e surge o "mar" como decorrncia imediata: portanto, nada de novo, pois o mar aparece com a mesma indeterminao e vaguidade que consagram as palavras componentes do verso inicial. Contudo, no pode passar desper-cebido o seguinte: subentendido o verbo "pr" no mesmo tempo em que aparece no segmento anterior, v-se que a poetisa quem pe o' navio em seu lugar prprio, isto , em dma do mar. O fato de ela prpria o fazer j denuncia o quanto o navio deve ser compreendido metaforicamente, porquanto apenas como metfora se pode aceitar que a poetisa coloque, com suas mos, um navio em cima do mar. (Diria algum: afinal, trata-se de um poema lrico... Nada mais enganoso; fcil dar exemplo de poetas que resvalam na prosa quando compem suas obras, precisamente por no conseguir criar tais metforas como objetos ou entidades concretas.) E entendido metaforicamente o ato de dispor o navio em cima do mar, percebe-se que o clima abstrato e indefinido do verso introdutrio, que se afiguraria menos eloqente por caW>a do carter concreto do navio, recobra toda a sua intensidade: efetivamente, o "sonho" e o "navio" esto no plano abstrato ou subjetivo da poetisa (ou melhor, do "eu" do poema, j tempo de o dizer), ainda que em graus distintos, o "sonho" no grau universal, merc de seus atributos vagos, e o "navio" num grau relativo, em conseqncia de sua natureza concreta. Refora ainda mais esse cariz abstratizante e vago o fato de a poetisa colocar o navio em cima do mar,

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  • como se apanhasse um barco de papel e o depositasse num tan-que de praa. Por certo .que .o nmero de silabas pode