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Pietro Gori A ANARQUIA PERANTE OS TRIBUNAIS achiamé Rio de Janeiro

A Anarquia Perante Os Tribunais

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  • Pietro Gori

    A ANARQUIAPERANTE OSTRIBUNAIS

    achiamRio de Janeiro

  • Pietro Gari

  • sUMRIo

    Prefcio /7

    Texto da defesa de Gari / 19

    Uma acusao monstruosa / 22

    O que o anarquismo / 31

    Os equvocos da pronncia / 48

    O ideal revolucionrio / 58

    Palavras finais /60

  • PREFCIO

    Nascido em Messina, Itlia, em 3 de agostode 1859, Pietro Gori devotou-se propaganda edefesa dos ideais libertrios em termos que fazemdele uma figura destacada da histria do anar-quismo.

    Os recursos familiares permitiram-lhe que es-tudasse em Livorno e em Pisa, doutorando-se emDireito, nesta ltima universidade, em 1889, coma tese "Misria e Delito".

    Desde os 18 anos, porm, que j realizava con-ferncias para operrios e estudantes, ao mesmotempo que colaborava em diversos peridicos.

    Acusado de propaganda subversiva e de pro-motor de greves, e ainda por ter publicado o ops-culo Pensamentos Rebeldes, Pietro Gori foi jul-gado em 1880, no Tribunal de Pisa, mas o defen-sor, o grande criminalista italiano Enrico Ferri,conseguiu a sua absolvio.

    Voltou a ser julgado, por propaganda ilegal,em 1890, com mais 20 operrios, pela participa-o em uma conferncia promovida pelas associa-es populares de Livorno no to de Maio desseano; e dessa vez foi condenado a um ano de pri-

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  • so, pena que seria revogada em recurso - seminteresse prtico, alis, pois Gori aguardara o jul-gamento na situao de priso preventiva, que seprolongou bastante.

    Foi nessa altura, na priso, que Pietro Gori co-meou a revelar os seus talentos poticos, escre-vendo trs volumes de versos, publicados em Mi-lo com o ttulo Prises e Batalhas; a edio, de10.000 exemplares, esgotou-se em poucos dias.

    Juntando-se ao advogado e anarquista italia-no Saverio Merino na defesa dos companheiros -Gori exerceu sempre intensamente a advocacia -,os dois, e ainda Errico Malatesta e AmilcareCipriani, seriam talvez, em 1891, os militantesmais ativos e entusiastas do movimento anarquis-ta italiano.

    Em 8 de abril de 1891, Pietro Gori participou,em Milo, de um comcio internacional sobre "di-reito ao trabalho", o qual contou tambm com re-presentaes espanholas, francesas e russas; e emagosto desse ano, foi delegado ao Primeiro Con-gresso Operrio Italiano, tambm em Milo, en-cabeando a linha socialista antiautoritria que seops com denodo linha autoritria defendida pelosocialista Filippo Turati.

    No ano seguinte (14 e 15 de outubro de 1892),no congresso operrio de Gnova, inevitvel aciso entre anarquistas e socialistas-parlamenta-ristas - nasce ento, alis, o Partido Socialista lta-

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  • liano -, e Pietro Gori assume o papel de maiorrelevo, contrariando vigorosamente as propostasde Andrea Costa (outro grande nome do movimen-to anarquista italiano, que trocou em 1879 pelosocialismo revolucionrio, de cujo partido era de-putado em 1892).

    De 1892 em diante, Gori participou de diver-sas agitaes operrias e realizou excurses portoda a Itlia, organizando sociedades de resistn-cia e de instruo.

    Em Milo, e com outros companheiros, fun-dou o jornal O Amigo do Povo e a revista cientfi-ca Luta Social, peridicos objeto de sucessivasapreenses policiais que estiveram na origem deoutros tantos processos-crime.

    Na segunda metade de 1894, j muito perse-guido, Gori viu-se forado a sair da Itlia, refugi-ando-se primeiro em Lugano (Sua) - paradeirohabitual dos exilados polticos -, passando da Alemanha e, depois, a Bruxelas, onde EliseReclus o convidou a reger um curso de "Sociolo-gia Criminal" na Universidade Nova.

    " Os insistentes pedidos de extradio do go-verno italiano obrigaram Pietro Gori a procurarrefgio, sucessivamente, na Inglaterra, Holanda,Noruega, Sucia, Irlanda, e, finalmente, em NovaIorque, desdobrando-se sempre Gori numa incan-svel e intensissirna atividade de conferencista;assim, e s no ano de 1895/96, Gori percorreu em

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  • estradas-de-ferro perto de 33.000km, realizandocerca de 300 conferncias.

    Voltando a Londres, em 1896, uma tuberculo-se o impediu de acompanhar Louise Michel aosEstados Unidos, mas Pietro Gori prosseguiu coma sua atividade de propagandista libertrio, quer naPrssia (Hamburgo, Berlim, Dresden), quer no Im-prio Austro-Hngaro (Praga, Viena, Budapeste).

    De novo enfermo - estamos em princpios de1897 - Gori tem de voltar Itlia, onde no inco-modado imediatamente pelas autoridades, mas ficasujeito, contudo, ao regime de liberdade vigiada.

    Chegamos a 1898 e so conhecidos os aconte-cimentos que agitaram a Itlia: primeiro, em maio,as barricadas de Milo e as centenas de desem-pregados que foram mortos, s porque pediam poe trabalho ao rei Humberto I; depois, em 1O desetembro, o atentado do anarquista italiano LuigiLucheni imperatriz Elizabeth (Sissi) da Austria,que sucumbiu aos ferimentos recebidos.

    Embora no seja conhecido com detalhe oenvol vimento direto de Pietro Gori no primeirodaqueles eventos, o certo que o Tribunal de Guer-ra de Milo o condenou severamente: na pena prin-cipal de oito anos de priso - seguida de desterrocom domiclio imposto, por mais 10 anos -, acres-cida da medida de segurana de trs anos deinternamento em regime de vigilncia pessoal, eainda na pena acessria de interdio definitivado exerccio da profisso (a advocacia).

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  • Ora, Pietro Gori - que respondera revelia,pois por cautela passara clandestinidade - con-seguiu chegar Frana, onde se manteve algumtempo com a ajuda de Sbastien Faure; da pas-sou para Barcelona, embarcando para BuenosAires em junho de 1898.

    Na Argentina, Gori foi professor de crimi-nologia, fundou a revista Criminologia Moderna,e, em 25 de maio de 1901, promoveu a constitui-o da Federacin Obrera Regional Argentina(FORA), que rapidamente agregou cerca de250.000 membros, transformando-se na mais im-portante central sindi cal argentina (anarco-sindi-calista).

    Regressando a Roma em 1903, Pietro Gori di-rige' com Luigi Fabbri, a revista O Pensamento, eat morrer foi um infatigvel propagandista li-bertrio, quer em conferncias quer em reuniespopulares.

    Falecido em 8 de janeiro de 1911, na ilha deElba (em Portoferraio), o ltimo discurso proferi-do por Pietro Gori - ento j bastante atingido pelatuberculose - foi o elogio fnebre de Andrea Costa(que falecera em 19 de janeiro do ano anterior).

    Autor de vasta obra potica (Cancioneiro dosRebeldes e outros livros de versos), Gori escre-veu no exlio a letra da clebre cano "Addio Lu-gano Bella", epopia poltica dos proscritos li-bertrios do fim do sculo 19; e escreveu ainda

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  • vrias obras jurdicas (de sociologia criminal, so-bretudo) e polticas - estas ltimas, as chamadasConferncias Politicas, reunidas em 10volumes.

    ***o funeral de Pietro Gori constituiu uma im-

    pressionante manifestao de pesar e no exa-gero dizer que quase todo o Elba o acompanhouat a sepultura, chorando a perda de um homembom, leal e generoso, que causa anarquista de-dicara o melhor do seu esforo e saber.

    Lutador desinteressado pelo ideal da anarquia,do qual sempre se afirmou fervoroso adepto e de-fensor, Gori era, sinceramente, amado pelo povo,e essa sua popularidade impressiona vivamente,sobretudo por se tratar de um intelectual- advo-gado, poeta, socilogo e professor universitrio.

    Simplesmente, Pietro Gori nunca se afastoudo povo e, ao contrrio, chegava a revelar-se qua-se ingnuo no seu apostolado e at na metodologiado seu combate.

    Homem puro, Gori era admirado por todos pe-los seus sentimentos humanitrios - e dele se di-zia que tinha a preocupao de que ningum gri-tasse a palavra "morte" fosse contra quem fosse.

    Lia-se no Le Libertaire: "para ns ... PietroGori est.sempre vivo. As suas obras, o seu pen-samento, o magnfico exemplo de toda a sua vida,no desapareceram da nossa memria, e no jul-

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  • garemos nunca honr-lo melhor, seno quando nosabraarmos, possudos de um novo ardor, cha-ma do ideal a que sucumbiu".

    E, curiosamente, em apontamento necrolgicosobre Gori, uma semana aps sua morte, escreveuMussolini: "Ns, socialistas, diante dos despojosde Pietro Gori, levantamos, enlutados, as nossasbandeiras!"; o busto de Gori, porm, levantado sobreo seu tmulo, no cemitrio de Rosignano (na Tos-cana), seria mutilado mais tarde pelos fascistas.

    Os escritos e intervenes orais de Gori norelevam muito, ou no relevam decisivamente, noplano da elaborao doutrinria e ideolgica.

    Nessa medida que Pietro Gori prestou, fun-damentalmente, uma poderosa contribuio, em-penhado como se mostrou sempre na defesa in-transigente dos ideais anarquistas, quer na difu-so deles, quer na sua justificao sociolgica,nunca se poupando a esforos numa atividade ecom um entusiasmo e um esprito de sacrificionotveis.

    A essa tarefa emprestou trs qualidades apre-civeis, que muito concorreram para o xito dasua propaganda: a formao jurdica, que era gran-de; a preparao cultural, que no era inferior, e,finalmente, a arte de advogado e os dotes oratrios,que arrastavam os ouvintes a grandes movimen-tos de alma. Sob o ngulo das idias, propriamen-te ditas, Pietro Gori foi sempre um convicto parti-

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  • drio do comunismo libertrio - na linha de Kro-potkin, Malatesta e Cafiero -, tal como este co-meou a desenhar-se a partir do congresso da Fe-derao do Jura, em La Chaux-de-Fonds, em 1880.

    Portanto, e ainda mais que os coletivistas an-tiautoritrios que seguiam Bakunin, no defendiaPietro Gori apenas a coletivizao dos meios de pro-duo, mas tambm que fossem postos em comumos prprios bens de consumo, cuja repartio nodevia ser regulada pelas associaes de trabalha-dores (de acordo com as prestaes de trabalho),cabendo antes fazer valer o princpio de que taisbens deviam ser distribudos em harmonia com afrmularde cada um segundo as suas possibilida-des, a cadaum segundo as suas necessidades".

    Isto, no plano dos princpios; especificamen-te, a conjuntura poltica italiana obrigou PietroGori a bater-se intrepidamente contra o parlamen-tarismo dos socialistas, ttica legalista essa queGori denunciava como o "prejuzo mais perni-cioso que causa ao movimento socialista e oper-rio", desviando as atenes do proletariado para --"fins absolutamente secundrios e muitas vezesinconclusivos, sobretudo quando se trata de pol-tica e de governo" (conferncia-programa, inti-tulada "Socialimo legalista e socialismo anrqui-co", proferida em Milo, em 4 de abril de 1892apud Pietro Gori, Conferenze Politiche, Milo,1948).

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  • A esse iderio se manteve fiel Pietro Gori ato fim de seus dias.

    ***A pea forense que se segue, documenta as

    alegaes finais- ou discurso de defesa- de PietroGori no chamado processo-crime dos "Anarquis-tas de Gnova", e compendia, em certo sentido,os princpios ideolgicos professados pelo autor.

    ] se disse que Gori foi alm do mais, advo-gado; e no fica ma] acrescentar que foi um gran-de advogado.

    Estagiou no escritrio de' um dos mais: reno-mados causdicos milaneses do seu tempo - o so-cialista Turati --, com quem cedo se iniciou na pr-tica da profisso.

    Ora, a envergadura intelectual de Pietro Gori,apoiada numa eloqncia impetuosa, tudo foramatributos que o levaram rapidamente a um lugarde grande prestgio nos tribunais italianos em ge-ral - e no foro milans, em particular.

    Foi chamado a intervir, assim, em numerosascausas (sobretudo em processo$ polticos movi-dos contra anarquistas), e, precisamente por isso- porque havia defendido Santo Caserio por duasvezes em causas polticas anteriores -, PietroGori chegou a ser implicado no atentado que aque-le perpetrou contra o presidente francs Sadi-Carnot.

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  • Quanto ao discurso que ora se publica, a lei-tura dele - pela sua simplicidade e clareza - por sis se explica.

    Vrios anarquistas italianos - entre os quaisse contava o pintor de Livorno Plinio Nomellini-foram processados pelo crime de "associao demalfeitores", infrao penal que costuma receberO tratamento reservado aos crimes de terrorismo,ou contra a segurana do Estado, e que, no caso(art. 248 do Cdigo Penal Italiano), era punidocom uma pena que tinha o limite mnimo de cincoanos de priso.

    No seria muito escrupulosa a acusao p-blica em relao aos indcios que autorizasssemsemelhante imputao (extensiva, a princpio, aoprprio Gori - que no chegou, porm a ser pro-nunciado), e assim o fez sentir, calorosamente,Pietro Gori, que aproveitou para denunciar, comardor, as irregularidades da instruo policial e osvcios de vida social italiana, ao mesmo tempo queexpunha - e o fez com brilhanti smo - aquilo aque ele chamava as teorias socialistas anrqui-cas.

    de acreditar que muito se receasse pelo des-fecho do julgamento, pelas sucessivas vagas dehisteria que as autoridades deixavam abater sobreos anarquistas, em conseqncia da onda de aten-tados, da autoria de anarquistas individualistas,que assombravam os governos.

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  • A srie j era longa, antes de junho de 1894, ej depois de 11 de julho de 1892, data da execu-o de Ravachol: em 23 de julho de 1892,Alexander Berkman dispara e fere o magnata doao Henry Clay Frick; em maio de 1893, PaoloSehicchi lana uma bomba sobre o consulado es-panhol de Gnova; em 9 de dezembro do mesmoano, Auguste Vaillant atenta, tambm com dina-mite, contra a Cmara dos Deputados francesa;em 12 de fevereiro de 1894 - o processo dos"Anarquistas de Gnova" aguardava o julgamen-to -, mile Henry lana o pnico (ainda bomba)no caf de Saint-Lazare (e depois do julgamento,no dia 24 do mesmo ms, Santo Caserio apunhalaSadi-Carnot).

    Logo se alcana, assim, que seria da maiorexpectativa o ambiente volta do julgamento dos"Anarquistas de Gnova"; e melhor se compreen-de, em conformidade, que Pietro Gori usasse dasnecessrias cautelas em um discurso que podia serapenas uma pea jurdica, mas que mais do queisso, pois trata-se tambm de uma interveno po-ltica que ilustra, documentalmente, um dos pero-dos mais expressivos da histria do anarquismo,ou, com mais rigor, da histria do comunismolibertrio - se no se quiser atribuir-lhe um senti-

    " do mais amplo ou um significado mais atual.

    Alfredo Gaspar17

  • TEXTO DA DEFESADEGORI

  • Senhores Juizes:

    Depois do rasgado vo ao cu da cincia e dosentimento dessa guia do pensamento jurdico ita-liano, conhecida pelo nome de Antonio Pellegrini,meu amigo e mestre, dou comeo minha tarefavivamente comovido e quase desesperado, falan-do do ponto de vista social destes homens e des-tas idias, que a iludida multido inconsciente tam-pouco conhece e entende. Mas as minhas pobrespalavras, se bem que reflitam a tumultuosa im-presso da solenidade do momento, brotaro, semembargo, do corao, e tero aos vossos olhos omrito, porventura o nico, da singeleza e da leal-dade.

    E, por dever de lealdade, permiti-me antes decontinuar que faa constar uma coisa e faa uma de-clarao.

    O senhor Siro Sironi, ex-chefe da polcia deGnova e chefe atualmente na capital da Itlia,cornprazeu-se em denunciar-me, a mim tambm,como cmplice destes homens para delinquir con-tra as pessoas, a propriedade, a ordem pblica, epara cometer na companhia deles todos os dispa-rates de que fala o art. 248 do Cdigo Penal.

    A Cmara do Conselho do Tribunal de Gno-va, em num ato de relativa justia, absolveu-meda acusao.

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  • Ora bem, Senhores Juzes, eu tenho vvssimoempenho em declarar o seguinte: que, se profes-sar as nobres idias anarquistas delito, se denun-ciar as iniqidades de uma civilizao odiosa, secombater todas as formas de tirania e de explora-o, se ter os olhos fixos na aurora do porvir incor-ruptvel e se levar multido de mseros e oprimi-dos a boa nova da liberdade e da justia, se tudo isso delito, ento de todos esses fatos sou tambm cul-pado e fizestes mal em absolver-me. E se as vos-sas leis o consentem, rogo-vos que me abris as gra-des daquela jaula, enobreci da neste momento, epermiti-me que me sente ao lado destes honrads-simos malfeitores, para responder como acusadors estranhas acusaes que hoje a sociedade (de-mos-lhe este nome) lana contra estes homens.

    Uma acusao monstruosa

    Disse a acusao pblica que este no oprocesso das idias; e eu tento que sim, que o pro-cesso das idias, e, algo pior ainda, o processo dasintenes.

    Tentou o Sr. Delegado sustentar que todo oindivduo livre de pensar como quiser. Isto diz-se, e verdade; mas tambm esta uma de tantasmentiras convencionais sobre as quais se baseia acaduca e bamboleante organizao social.

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  • Livre de pensar, segundo se pretende, entre asimpenetrveis paredes do crnio? Mas neste caso,ilustre magistrado do Ministrio Pblico, muito obri-gado pela vossa liberalidade e pelas vossas leis.O pensamento humano no tem necessidade des-ta concesso. Ele exercita no ntimo de todo o or-ganismo pensante os direitos imprescritveis deum soberano que no tem a prepotncia dos des-confiados inquisidores ou torpes policiais.

    E a liberdade de propagar e defender este pen-samento o que as leis sbias e livres (se leis sbi-as e livres pode haver) devem, no somente con-sentir, mas tambm garantir.

    Mas o meu egrgio adversrio no o entendedeste modo e chega at a afirmar que este proces-so no um processo poltico. Por qu? Acaso porpoltica deve entender-se somente a arte mesqui-nha de fazer e desfazer ministrios? E no notais,em todas as manifestaes, que qualquer discus-so poltica atualmente uma questo essencial-mente social? No vos dais conta de que os in-telectos perspicazes e os espritos sedentos deidealismo elevado e humano, olhando tanto paraa substncia das coisas como para a sua forma ri-da, tendem para uma grande obra de renovao,atravs das modestas e perenes demonstraes dainjustia econmica que fere os trabalhadores, osquais so (quer queira, quer no queira o SenhorDelegado) os nicos produtores de toda a riquezasocial?

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  • Mas o atual defensor das leis quer que estaobra de crtica e de reconstruo ideal seja somenteprivilgio e monoplio dos filsofos ... segundo dizo acusador pblico. E pe-no nervoso que estesoperrios, estes trabalhadores, que so os mais in-teressados nesta elevada questo, que ao fim e aocabo problema eterno da vida social (e que hoje problema essencialmente operrio), se preo-cupem e se ocupem com amor destas idias, des-tes debates, destas aspiraes. O operrio ideal dosenhor Procurador devia ser o pacfico ruminan-te, sem sensaes e sem pensamentos, que se dei-xasse tranqilamente, e sem protestar, conduzirpor aquele que tivesse a astcia de se munir deum persuasivo basto e de um par de tesouras.

    Mas estes trabalhadores, que esto sempre emrude e perptua luta com a fadiga e a misria di-rias (uma e outra, herana dolorosa do povo) le-vantam a cabea e protestam contra esta classeque extrai dos seus msculos as melhores foras,sem lhes corresponder com a adequada compen-sao; estes homens aspiram a dias melhores paraa sua classe desprezada; aspiram a um futuro deliberdade e de bem-estar para todos; proclamamque os operrios - estes desconhecios criadoresdo bem-estar e da sociedade - tm o direito de sesentar mesa do grande banquete social, qualos seus esforos conjugados trouxeram baixelasto ricas e manjares to requintados; demonstramque tudo quanto existe de belo e de til sobre a

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  • Terra foi produzido pelo seu esforo; afirmam queo nico vnculo que envolve a destru da falangedos novos catecmenos o trabalho, que hoje seconverte para eles em estigma de inferioridadesocial, mas que amanh ser para todos o nicobraso de nobreza; e ainda que em volta deles rujaa mar das paixes egostas e vis, desfraldam va-lorosamente ao vento uma bandeira e serenamen-te enfrentam as perseguies mais idiotas e os es-crnios mais amargos.

    E, todavia, nesta bandeira est escrita uma pa-lavra de esperana e de amor para todos os de-serdados, para todos os oprimidos, para todos osfamintos da Terra, ou seja, para todas as multi-des infinitas e benemritas sobre as quais seenvaidece, rindo s gargalhadas, uma pequena mi-noria de privilegiados.

    Ah! Acaso estes seres no tm direito a pen-sar, s por que no so filsofos? No tm o direi-to de manifestar os seus pensamentos em voz alta?Por que se lhes probe professarem publicamenteessa f num futuro mais eqitativo e mais huma-no? Como se o trgico e vergonhoso presente fossea ltima etapa da humanidade na sua incessanteperegrinao at a conquista dos ideais! ... Sim, isto um delito, um atroz delito de grande amor aoshomens, livremente professado em uma socieda-de na qual o antagonismo dos interesses determi-na o dio entre os indivduos, entre as classes, entreas naes; um dio imenso que faz sangrar os co-

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  • raes sensveis, uma injustia sem limites quepermite ao parasita rebentar de indigesto ao ladodo produtor que morre de fome. Est aqui toda asntese do problema.

    A anlise feita cotidianamente pelo cam-pons, o qual se pergunta como poss vel que ele,cansando-se dia e noite a cavar a terra, fustigadopelos ventos do inverno e queimado pelos raiosde sol do vero, permanece sempre pobre e eco-nomicamente sujeito a um patro que nem umagota de suor derramou sobre aqueles campos, quenenhum esforo muscular dedicou queles despre-zados trabalhos dos quais a humanidade extrai oselJ po dirio.

    , A anlise continua-a o operrio da indstria,'o qual v sair dos seu trabalho, com o dos seuscompanheiros, torrentes de riqueza, que, em vezde proporcionarem o bem-estar da famlia dos ver-dadeiros produtores, como so os operrios, aca-bam por encher a gaveta do capital, que sem avirtude fecunda do trabalho seria uma coisa per-feitamente intil no mundo.

    A anlise completam-na todos os trabalhado-res, desde o martimo que desafia o perigo de miltempestades para nos trazer os artsticos objetosjaponeses e as prolas preciosas para as senhoraslnguidas, sempre preocupadas sobre como ofe-recerornelhor as recepes facilitadas pelos ren-dimentos ... dos demais, at ao esqulido profes-

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  • sor, ao qual a ptria no d sequer a milsima par-te do que paga a esses uniformizados agentes, in-cumbidos, pelo modo mais breve, de exterminaro prprio semelhante em guerra "aberta" e "leal",e, se tm oportunidade, de convencer os plebeuscom o "argumento" de que no vale a pena levan-tarem demasiado a voz quando tiverem fome.

    Mas estas anlises, estas demonstraes po-dem fazer-se ... in pectore; ai daqueles que as de-nunciem!. .. A verdade (especialmente quando averdade amarga e nua) deve dizer-se sotto voce.Melhor ainda nem falar dela: deste modo, nose tm dores de cabea nem incmodos. No casocontrrio, um Sironi qualquer, ainda que seja co-mendatore, os faz encarcerar (pelo menos) em me-nos tempo do que canta o galo, trama uma lendaromntica que logo transmite autoridade judici-ria: fala enigmaticamente de certos indcios apu-rados pela espionagem ... (respeitabilssima) e de-pois de haver associado estes homens, honradosna desgraa comum, em uma deteno preventi-va, encontra por fim um tribunal que os associapara responder (in solidum) no termos do art. 248do Cdigo Penal, at que o Ministrio Pblico,atando-os mesma cruz, os associa de novo aoprazer coletivo de desfrutarem meio sculo depenas, entre recluses e detenes.

    E muitos destes, como se provou j, nem se-quer se' conheciam, nem uma s vez se haviam

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  • cruzado no caminho do trabalho e da misria quelhes so comuns.

    Deviam encontrar-se e associar-se na bancadada desgraa; porque hoje, menos que nunca se po-de chamar a esta bancada a bancada da desonra.

    Certamente que uma cadeia invisvel e idealunia, ainda que se desconhecessem, os seus esp-ritos sonhadores de justia e de uma paz lumino-sa; e despertaram do seu belssimo sonho com asalgemas nos pulsos, amontoados como feras pol-ticas entre os ferros desta jaula que os encerra.

    Ah, nobres malfeitores! Eu renovo a minhasaudao e insisto na honra que tenho, do alto destasolene tribuna, de poder reivindicar as idias queme unem a mim, em liberdade, com todos vs,encarcerados. E renovo a minha petio acusa-o pblica: se estas idias so delito, encarcerai-me a mim tambm e juntai-me a estes homens.

    Entre estes malfeitores, sim entre eles me sen-tiriaorgulhoso; no entre aqueles outros que emRoma e nestes mesmos dias se vem conduzidosem carruagens e sem algemas ao Supremo Tribu-nal, porque tiveram a fortuna de fazer milhes ...Mas perdoai-me, j me esquecia dos referidos se-nhores do capital, se bem que zelosos guardiesda propriedade em teoria, mas que se deleitavam,abolindo, praticamente, a propriedade dos de-mais ... em beneficio prprio, e que todos vs, ami-gos acusados, ainda que demolidores tericos da

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  • propriedade, como privilgio de classe, e reivin-dicadores da riqueza inteira para a sociedade in-teira, no haveis nunca deitado a vossa mo so-bre o que os primeiros tm de suprfluo (apesarde saberem que todo esse suprfluo era fruto dosvossos suores e das vossas privaes), e vosconservasteis puros para terem o direito de gritar,em plena cara dos outros: "vos sois uns ladres!"

    E sem embargo, a misria tem-vos atormenta-do vrias vezes, a necessidade vrias vezes vos temestimulado e haveis sabido resistir-lhe; e enquan-to os restantes roubavam para satisfazer as suasorgias, nenhum de vs tirou aos demais nem se-quer cinco centavos para a vossa alimentao, nempara dar de comer aos vossos filhos, que vos pe-diam po; vs permanecesteis firmes, pobres, hon-rados at o escrpulo, at o ridculo; e o represen-tante da lei pede, sem embargo a vossa condena-o, como se tivesseis sido malfeitores.

    Os demais, os provocadores, os devoradoresde milhes, esses obtero porventura a liberda-de... para roubar outros tantos.

    So estes, Senhores Juzes, os homens quedeveis julgar! E monstruoso o raciocnio do Sr.Delegado do Ministrio Pblico. Est de acordoem que todos os rus so incapazes de delinqir.Mais ainda: est de acordo em reconhecer que socapazes de colaborar em todo o gnero de obrasboas e generosas, como trabalhadores infatigveise cidados sem mancha.

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  • Reconhece, e convm comigo, ainda que o notenha dito, que a estes homens para os quais pedeuma condenao, sentir-se- sempre orgulhoso econsiderar-se- honrado, e depois da condenao,em apertar-lhes a mo.

    Mas como ... ! Depois de todas estas declara-es, no se vos queimavam os lbios quando paraestes homens, que vs prprios reconheceis defonte segura como honrados, pedis, tantos "pr-mios" de vigilncia e de priso?

    Ou o meu grande amor causa me apaixona,ou haveis esquecido a norma mais elementar detoda a legislao penal.

    Que lei, e que Magistrado, qualquer que seja(ainda que superficialmente consciente e sereno)pode condenar indivduos que no delinqiram eque so incapazes de delinqir? E eu pergunto-vos: que crime cometeram estes homens?

    E vs responder-me-eis: Nenhum. Mas (ajun-tareis) dados os princpios que dizem professar,para alcanar os seus fins polticos e sociais, de-vero cometer isto, praticar aquilo e aqueloutro, eo mais que a lei prev como delito. Por isso vosdizia: isto , de fato, um processo de intenes, ena verdade, durante os debates, vrias vezes seme escapou a palavra delito intencional. Direimais: isto no e apenas um processo de intenes. um processo probabilidade de que os acusa-dos tenham, dentro de algum tempo, a inteno

    3IJ

  • de realizar um determinado fato previsto e punidopelo Cdigo Penal.

    Isto j o cmulo, no da represso jurdica,mas da represso policial.

    o que o anarquismoDe onde vm e quem so, todos o vemos. A

    que tendem estes indivduos?A questo social, que to antiga como o an-

    tagonismo entre dominados e dominadores, atra-vessa hoje um perodo crtico e uma soluo (queuns desejam pacfica, outros crem que ser ine-vitavelmente violenta) se impe ao velho mundoem bancarrota. E at o mais cego (excetuando oSr. Delegado do Ministrio Pblico) v os relm-pagos sangrentos que rasgam as nuvens carrega-das de eletricidade.

    Nestas obscuras pocas de transio, a partedos que escoltam o futuro perigosa. A palavrade advertncia confunde-se com o grito de revol-ta; o livre pacto de fraternidade entre os que so-nham e os que entrevem um novo mundo, inter-pretado como um contrato entre ladres quepreestabelecem o modo de repartirem entre si osdespojos do prximo; a crtica formada com ele-vados argumentos de transformao em beneficiode todos interpretada como um ataque maligno de

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  • espritos rebeldes a ordens decrpitas que os orto-doxos julgam santas e inderrogveis.

    Mas o que h de inderrogvel neste mundo, oque h de imutvel nas multiformes leis dos ho-mens?

    Sem embargo, nesta luta secular das novascontra as velhas idias; nesta fase aguda, entre umapoca moribunda (como um velho carregado deachaques) e outra poca que desponta no horizon-te, radiosa como uma aurora, h uma estranha esintomtica semelhana de episdios. Assim comono novo o confronto entre a atual poca hist-rica, de inegvel decadncia, melhor dito, de des-moronamento do paganismo. burgus, sem maismisso cvica e sem mais ideal, e o desmorona-mento apocalptico do antigo paganismo, arrasta-do pela galhardia esfuziante d jovem cristianis-mo.

    Ento, como agora, de entre a turba menos-prezada se levantaram homens, pobres de cinciamas ricos de sentimentos, os quais combatiam odesregramento dos poderosos e dos parasitas.

    Naquela revolta da multido, incendiada pelapropaganda crist, precisamente Emlio de La-veleye viu j a gnese do socialismo.

    Socialismo todo sentimental, disparidade im-pulsiva. Melhor: irrupo apaixonada de almas ge-nerosas contra as flagrantes monstruosidades so-ciais, comprovao serenamente cientfica do an-

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  • tagonismo entre os direitos do povo, sempre po-bre e explorado, e os privilgios dos ricos, dospatres, sempre refratrios liberdade e ao bem-estar dos oprimidos.

    Ah! Se eu vos lesse, representante da lei, asveementes invetivas que aquelas almas rebeldes- que foram os santos padres da Igreja=Ianaramcontra os ricos, acaso vos sentireis impelidos a. imitar o vosso colega, e superior hierrquico, oProcurador de Milo, que em um jornal das vos-sas preferncias, se comprazeu em recriminar asopinies dos santos sobre a riqueza e a proprie-dade privada, opinio reproduzida no dito peri-dico do livro de Laveleye, que tenho mo, OSocialismo Contemporneo, e que principia comuma insolente definio de So Baslio: "O rico um ladro", e termina, depois de formular osmaisterrveis improprios contra os privilegiados da,Terra, com esta comunstica considerao de SoClemente: "Em boa justia tudo deveria perten-cer a todos. a iniqidade o que faz a proprieda-de privada".

    E Laveleye, que foi um ardoroso socialistacristo, tira como concluso que: " impossveller atentamente as profecias do Antigo Testamen-to, e lanar ao mesmo tempo uma vista de olhossobre as condies econmicas atuais, sem se sen-tir impelido a condenar este estado de coisas emnome do ideal evanglico".

    33

  • Mas os santos padres da Igreja, homens sim-ples e rsticos, recriminavam pessoalmente os ri-cos porque ignoravam (o que a cincia veio a en-sinar mais tarde) a rigidez das leis histricas, queno permitem se atribua maldade dos indivdu-os o que produto da injustia dos sistemas econ-micos e polticos que at o presente tm prejudi-cado o gnero humano.

    Por isto, os socialistas anarquistas modernos,quando falam de exploradores, quando se lanamcom desdm a afrontar os burgueses e a combat-los, no porque lhes atribuam, a ttulo de malda-de, a culpa das misrias sociais. Sabem muito bemque a pobreza fisiolgica, intelectual e moral daplebe enganada deve atribuir-se a todo um siste-ma de coisas que inevitavelmente converte uns emescravos e outros em tiranos.

    Mas, como dizia h pouco, o que mais aproxi-ma na sua fisionomia complicada a poca na qualsurgiu o primeiro apostolado batalhador do cristia-nismo com o momento histrico que atualmentevem surgindo, belo como um jovem gladiador pelonovo conceito de humanitarismo, vem a ser a no-vidade da dominao face s manifestaes dasidias de renovao social.

    Caifs (diga-se sem inteno maliciosa) era umacusador pblico dos seus tempos, e pediu a con-denao do justo, como sedutor e instigador dasplebes contra as leis do Estado e contra a uti possi-detis dos ricos, dos escribas e dos fariseus.

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  • E eu penso que se o art. 248 do Cdigo PenalItaliano nos parece novo, velha , no entanto, aacusao, velhos so os mtodos e os objetivosque a aconselham.

    a guerra no confessada e dissimulada; aguerra surda, implacvel ao pensamento, um diareligioso, ontem poltico, hoje social.

    Mas antiga e gloriosa a falange dos malfei-tores' imortais na histria. E sobre a nossa cabea- oh, Senhores Juizes! - fala ainda com a mudaeloqncia do sacrifcio, esta luminosa figura deCristo, o anarquista da tnica vermelha de h 18sculos, como disse Renan, crucificado comomalfeitor entre os malfeitores.

    A histria incorruptvel deu razo ao rebeldeda Galilia e condenou os seus juzes. Desde omais vil dos patbulos, ele, o primeiro que trouxea boa-nova aos pobres e aos martirizados, oinexorvel acusador dos ricos e dos hipcritasfariseus, o rebelde justiceiro dos vendilhes dotemplo, fala ainda, atravs dos sculos, a lingua-gem humana que a muitos, depois da santificaodo seu sofrimento, pareceu e parece ainda palavradivina.

    E aquela outra tnica vermelha, que neste diarevive na nossa memria com o aniversrio da suamorte, a de Garibaldi, o proscrito, o malfeitor, ocondenado forca por aquea mesma dinastia queda sua mo recebeu dois reinos? No vos re-cordais?

    35

  • Ah! Entre essas duas tnicas vermelhas, fla-mejando no princpio e no fim destes 18 sculos,quantas nobres vidas dizimadas ou condenadaspela tirania!

    esta a sorte comum a todos os percursores.Amide se pensa (e s vezes com relativa boa-f)encarcerar e condenar estes malfeitores, estes mal-vados, e estes homens no foram seno as van-guardas de geraes novas.

    , por conseguinte, histria velha, a destes pro-cessos de malfeitores ... honradssimos. E, compequenas diferenas, as imputaes so sempre asmesmas. Os perseguidos de ontem, convertidosem dominadores, perseguem no dia seguinte asvanguardas, com idnticos motivos de acusao.

    Sem embargo, o passado deveria ser uma li-9para nosdemoritrar que nenhuma perseguio suficiente para deter uma idia, se esta verda-deira e justa. ' '

    Um ilustre sacerdote, Lamennais, escrevia hum sculo, nas suas Palavras de um Crente, estassantas exortaes aos cristos do seu tempo.

    Podem repetir-se, dirigidas aos odiados cris-tos da nossa poca:

    "Lembrai-vos das catacumbas.Naqueles tempos, conduziam-vos ao patbulo,

    abandonavam-vos s bestas ferozes nas colinas, paradiverso da plebe, arrojavam-vos aos milhares para ofundo das minas e dos crceres, pisavam-vos como se

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  • fosseis a pedra das praas pblicas, confiscavam-vosos vossos bens e, para celebrardes os vossos proscri-tos mistrios, no vos deixavam mais que o p da terra.

    Que diziam os vossos perseguidores?Diziam que vs predicveis doutrinas perigosas,

    que a vossa seita (assim lhe chamavam) perturbava aordem e a paz pblica, que, violadores das leis e ini-migos da humanidade, ameaveis o mundo.

    E no meio de tanta desventura, sob esta agresso,que pedieis vs? A .liberdade.

    Reclamveis o direito de no obedecer seno aovosso Deus, de o servir e o adorar segundo a vossaconscin cia.

    E quando, ainda que enganando-se na sua f, ou-tros vos reclamaram este segundo direito, ele foi res-peitado por vs, como pedisteis um dia aos pagosque o respeitassem.

    Sim, respeitaram-no para no renegarem a mem-ria dos vossos antecessores, em homenagem s cinzasdos vossos mrtires. E se no vos recordais dos ensi-namentos de Cristo, recordai-vos ao .menos das ca-tacumbas".

    Eu gostaria que algum liberalote ou volterianohomem de governo dos nossos dias lesse de novoe meditasse neste livrinho do fervoroso sacerdo-te. Algo poderia aprender nele sobre isto que muitose predica e pouco se pratica: o culto da liberdade.

    E agora vol temos causa.Quem so estes socialistas anarquistas? Vs

    j o sabeis, Senhores Juizes. Ali naquela jaula37

  • estais vendo uma numerosa e escolhida represen-tao deles.

    So trabalhadores ntegros e alegres, estudio-sos de corao e inteligentes, como Lus Galleani,artistas inovadores, como Plnio Nomellini, bur-gueses que, havendo renunciado aos privilgios eaos prejuzos da sua classe, so paternalmenteacolhidos pela grande famlia do povo que esperaos seus inevitveis destinos.

    So operrios, como o bravo Faina e o peque-no Barobino, que tm corao e mente para sentire pensar, e que julgam ter o direito de pensar emvoz alta.

    Todos eles, como todos os homens que obser-vam desapaixonadamente as coisas do mundo, tmdirigido a si prprios as seguintes simples pergun-tas:

    Por que que a maioria dos homens, aindaque trabalhe e produza, se v constrangi da a serpobre e a manter com o seu suor uma minoriaociosa, cuja nica ocupao consiste em consu-mir os produtos do trabalho alheio?

    Por que que a terra, que a natureza deu porherana comum a todos os homens, foi por algunsfracionada, fraudulenta e violentamente, e dividi-da em seu exclusivo beneficio? Que se diria se omesmo se tivesse feito com o ar e a gua, elemen-tos necessrios vida? Dir-se-ia que era um rou-bo sacrlego? Mas o ar e a gua - um fluido e

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  • lquido rebeldes, anrquicos - foram subtradosem grande parte ao monoplio dos privilegiados.

    Mas acaso a terra no tambm um elementoessencial vida coletiva? Acaso no deveria ser,por natureza e destino prprio, herana comumdo gnero humano?

    E as mquinas, os instrumentos de trabalho,as casas, os meios de troca ede produo, a seremprivilgio de alguns, acaso no o seriam melhordos trabalhadores, que com o seu suor transfor-maram esses bens em instrumentos produtivos efecundos - do que daqueles que nada fizeram, quejamais produziram? '

    Mas no, dizem os socialistas anarquistas;tampouco isto seria justo,

    Tudo, desde os instrumentos de trabalho atos bens de consumo, desde a terra maquinaria,desde as minas at os meios de troca e da produ-o, sendo tudo fruto da cooperao social, tudodeve ser proclamado patrimnio da sociedade in-teira,

    E precisamente nesta afirmao que o idealluminoso da fraternidade surge como um flo-rescimento espontneo desta harmonia de interes-ses entre o indivduo e a sociedade, desta admir-vel comunho dos direitos de cada homem comos direitos da espcie inteira.

    Com um exemplo simples e claro, Lamennais,sempre no livrinho de que vos falava h pouco,

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    r-"

  • sintetiza a necessidade jurdica e natural do co-munismo. Vamos ouvi-lo outra vez:

    "Se numa colmia algumas abelhas gananciosasdissessem: todo o mel que est aqui nosso, e dispu-sessem vontade dos frutos do trabalho das demais,que seria das outras abelhas?

    A Terra como uma grande colmia e se pessoah a quem falte o necessrio, isso significa que outrastm a mais. E ento a justia e a caridade desaparece-ram da Terra".

    Quem pode deixar de duvidar de que ajustiae a caridade se alberguem ainda sobre esta Terra,minada pela iniqidade, quando tantos e tantos ca-recem do necessrio?

    Nas humanas abelhas, muitas esto condena-das a fabricar o mel, e outras, poucas, reservam-se o direito de ... o devorar. E as laboriosas atperderam o ferro.

    , pois, a socializao da colmia e do mel,ou, deixando a linguagem figurada, a socializa-o de todas as riquezas, aquilo a que os socialis-tas anarquis tas pedem.

    E proclamam, como primeira necessidade, aabolio da propriedade privada, causa direta do pri-vilgio econmico, e indireta do monoplio polticode algumas classes sobre as demais da sociedade.

    Os anarquistas esto na vanguarda do socia-lismo, mas no so, no fundo, seno a legio mais

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  • ....

    batalhadora do grande exrcito socialista. O ma-gistrado do Ministrio Pblico quis argumentar as-sim: "Aos socialistas, entendo-os e admiro-os. Sorazoveis; procuram conquistar o poder pblico,e, por conseguinte, movem-se na rbita das nos-sas leis. Mas os anarquistas esto fora da lei;predicam a revoluo como nico meio para atin-girem o seu ideal".

    Deixo aos colegas socialistas (permitem-meque lhes chame colegas, por muito antiptica quelhes seja a palavra), incumbidos da defesa, a de-monstrao de que os socialistas tambm querema abolio da propriedade privada, necessidadefundamental de toda a transformao em sentidofrancamente socialista, e o protesto contra esteimplcito atestado de inocuidade que o MinistrioPblico prodigalizou ao seu partido.

    Compreende-se perfeitamente que isto sejaapenas uma astcia de acusao; porque se os rusfossem simplesmente socialistas, ento o racioc-nio do Senhor Delegado seria muito diferente.

    Porque, enfim, cientificamente falando, os anar-quistas no so seno os socialistas mais radicais,e tm em vista, contemporaneamente, a aboliode toda a espcie de explorao do homem pelohomem, e a abolio de toda a autoridade do ho-mem sobre o homem, com a abolio do Estado ouGoverno, ou seja qual for o rgo centralizadorque pretenda impor a vontade de uns poucos, oude muitos, autonomia e ao livre acordo.

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  • este um ideal irrealizvel? .. Vs, SenhoresJuzes, sois incompetentes para o julgar. A verda-de que a histria marcha irresistivelmente da ti-rania para a liberdade. Os dias, os anos, os scu-los, so os passos, os perodos, as etapas destaimensa mas incessante viagem da humanidade.

    Quo mesquinhas se afiguram estas academi-as jurdicas com o seu cortejo de dores humanas,face ao rolar infinito das coisas no imenso cu dotempo e do espao! Porque se a fatalidade histri-ca arrasta a sociedade humana at aquela metaideal, ansiada por estes caluniados apstolos daplebe, nenhuma condenao, por feroz que seja,poder impedir ou deter, nem por um segundo, airresistivel marcha. E uma lei de gravitao social,rgida e inviolvel, como a lei da gravitao fisica.

    No impeais, pois, o pensamento dos homens,filsofos ou operrios que sejam, que prescutama finalidade desta lei suprema da vida social, epermiti que o mais difcil problema (o da vida co-letiva) encontre por fim o seu Newton.

    E j que o Ministrio Pblico, a propsito daanarquia, disse coisas to extraordinrias, porqueinexatas, j que incorreu em tantas inverossimi-lhanas, escutai por um momento o que sobre estamatria disse um filsofo autntico, Bovio, aoqual, em nome da Ordem dos Advogados, da qualfao parte nominalmente, envio uma respeitosasaudao. No seu magistral livro A Doutrina dosPartidos na Europa, escreve:

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  • "J que a revoluo, para cumprir a misso que oseu ciclo lhe destina, se apresenta como social, o par-tido revolucionrio por excelncia deve ser anrqui-co; deve apresentar-se no como adversrio desta oudaquela forma de Estado, mas de todo o Estado, por-que ali onde v o Estado, v privilgios e misrias, vdomina dores e sditos, classes diretoras e classes de-serdadas, v poltica e no justia, v cdigos e nodireitos, v cultos dominantes e no religies, exrci-tos e no defesas, escolas e no educao, v o extre-mo luxo e a extrema carncia; e como quer que seja opontfice, o rei, o presidente, o diretrio, o ditador, ele sempre o Estado; divide em duas palies a comuni-dade, e enquanto mais divide (com este ou outro nome)mais domina.

    Orgulhoso e altaneiro com os sditos, invejosocom os vizinhos, o Estado , no interior, a agresso, e,no exterior, a guerra. Sob o pretexto de ser o agasalhoda segurana pblica, , por necessidade, desapossadore violento; com o pretexto de custodiar a paz entre oscidados e as palies interessadas, o provocador deguerras intemas e extemas. Chama bondade obedi-ncia, ordem ao silncio, expanso destruio, civi-lizao dissimulao.

    , como a Igreja, filho da ignorncia comum e dadebilidade dos demais. Aos homens adultos, manifes-ta-se como : o maior inimigo do homem, desde onascimento morte .

    ...Anrquico o pensamento e a histria vai at aanarquia. O pensamento de cada indivduo aut-nomo, e todos os pensamentos dos homens formamum pensamento coletivo que move a Histria, esgo-

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  • tando a vitalidade do Estado e pondo em relevo cadavez mais a antinomia insupervel entre o poder cen-tral e a liberdade do homem.

    Justifica o Estado como quereis, consagrai-o,confundindo-o com o Deus subtrado Igreja, fazei-o imperialista, democrtico, burgus, monrquico,republicano, e sempre tereis de sentir-vos a amamen-tar um tirano, contra o qual protestareis continua-mente em nome do pensamento e da natureza"

    omais feroz anarquista no teria pronunciadocontra o Estado, o Governo ou qualquer outro r-go centralizador, uma acusao to terrvel.

    Os anarquistas militantes, que so essencial-mente socialistas, entendem a anarquia como umfim poltico do socialismo; e filsofos e econo-mistas insignes, entre os quais se pode citar Spen-.cer, na Inglaterra, e o professor Loria, na Itlia,do implicitamente razo aos anarquistas quandoconsideram o Estado e o Governo como superes-truturas do regime econmico.

    De fato, na Antigidade, sendo os patrcios ospossudores das riquezas, eram estes que forma- .vam o governo, zeloso defensor dos seus interes-ses, com desprezo dos direitos das plebes. E asagitaes provocadas pelas leis agrrias, com osGracos, e as revoltas dos escravos, com Espartacoe Tito Vzio, foram o grande protesto daquelestempos contra a explorao econmica e a subse-qente tirania poltica do patriciado.

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    -.

  • N a Idade Mdia, quando os senhores feudais,em guerras aventureiras, se apoderaram, por meioda pilhagem, das terras, povoaes e cidades, es-tenderam tambm o seu duplo senhorio, econ-mico e poltico, sobre os servos da gleba e o exr-cito multicolor dos vassalos. Mas ainda aqui a basedo privilgio poltico era o privilgio econmico;ali onde o clero possua uma extensa superficiede terrenos e vastas comunidades religiosas, o seupoder, baseado nos interesses materiais, conver-tia-se em poltico e assumia a mais feroz das tira-nias - a das almas e sobre as conscincias.

    O ano de 1789 surgiu, saudado como uma au-rora, depois da noite escura da Idade Mdia. Aburguesia levantou-se, reivindicadora, e entre tor-rentes de sangue proclamou os direitos do homem.Mas a declarao dos direitos ficou somente es-crita no papel e nada mais. E a igualdade civil, talcomo era realmente, no passava de mais umamentira, ante a desigualdade econmica.

    Os trabalhadores que haviam despertado aosom da Marselhesa e haviam ajudado a burguesiaa derrubar a Bastilha e a rechaar a Europareacionria que murmurava junto das fronteirasfrancesas, deram-se conta mais tarde de que sehavia efetuado uma simples mudana de auto ri -dades, e nada mais.

    E estes trabalhadores, obrigados a cansarem-se eternamente sobre as terras dos outros, sobreas mquinas dos outros, no fundo das minas dos

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  • outros, passaram da condio de servos de assa-lariados. Os amos tiveram na mo a vida fisiol-gica destes escravos modernos: os assalariados.

    Podero estes ter uma vida intelectual, umavida moral? ,

    E como a liberdade fisiolgica mantm a ple-be das cidades e dos campos em uma ainda maistriste misria da inteligncia e do corao, destemodo a riqueza capitalista assegurou burguesiatriunfante o monoplio do poder poltico.

    Por isso os anarquistas, de acordo com as de-mais escolas socialistas na crtica do capital e dariqueza e na abolio da propriedade privada, ti-ram como concluso que a supresso do privil-gio econmico conduz supresso do Estado e .livre associao dos soberanos individuais, con-graados nos interesses e harmnicos na comuni-dade do trabalho e do bem-estar.

    Assim, os anarquistas, havendo aprendido nahistria e na experincia que o Estado e o Gover-no no foram nem so outra coisa seno os instru-mentos da defesa do privilgio econmico de al-gumas classes, pensam que, quando desapareceresse privilgio com o triunfo do socialismo, tam-pouco o Es tado e o Governo tero razo de exis-tir.

    A esse alto problema, Senhores Juzes - j osabeis -, se sacrifica todo aquele que tem inteli-gncia e corao.

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  • ***A VidaModerna, um peridico literrio deMi-

    lo com grande tiragem, acaba de publicar umainformao sobre o socialismo.

    Este inqurito resultou num verdadeiro plebis-cito de simpatia pelo grande ideal de renovao,por parte dos mais ilustres homens de cincia eartistas italianos.

    Ora bem, de todas estas respostas mais ou me-nos heterodoxas, pemiti-me que leia a de um anar-quista militante cujo nico e exclusivo mrito con-siste em no esconder a mnima vibrao do seupensamento.

    Leio uma parte desta resposta s porquecondensa brevemente tudo quanto j expus de mo-do truncado e desunido:

    "O socialismo, que na sua aplicao integral con-duz ao comunismo cientfico, ser um ordenamentoeconmico, no qual a harmonia do interesse de cadaum com o interesse de todos resolver o antagonismosangrento entre os direitos do indivduo e os da esp-cie. Mas no socialismo, que a base econmica dasociedade futura, devem estar praticamente concilia-dos os dois grandes princpios da igualdade e da li-berdade. Da o atrevido e mal compreendido concei-to de anarquia: a liberdade das liberdades. Esta seramanh a coroao poltica necessria do socialis-mo, como sucede hoje com a corrente francamentelibertria. A anarquia no o socialismo autorit-

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  • rio, a humanidade que afoga o indivduo.No como adesordem burguesa, o homem que esmaga a huma-nidade. Mas resume o ideal de um acordo espont-neo das vontades e das soberanias individuais, dodesfrute do bem-estar criado pelo trabalho de todos,sem explorao: est aqui a idealidade econmica, semcoao; est aqui a idealidade poltica, do verdadeirosocialismo" .

    Aqui esto os homens que deveis julgar, se-nhores Juzes. Aqui esto as idias que estes ho-mens professam.

    Os equvocos da pronncia

    Mas os fatos pelos quais vm acusados, os fa-tos pelos quais vm pronunciados como "associa-o de malfeitores" luz do disposto no art. 248do Cdigo Penal- "contra a administrao da jus-tia, ou de f pblica, ou a segurana pblica, con-tra os bons costumes ou a ordem familiar, ou con-tra a pessoa ou a propriedade" -, os fatos, os fatos,oh! acusador pblico, quais, quantos, onde esto?

    Quando, onde e como, Lus GalIeani e os seuscompanheiros atentaram contra a chamada justi-a' quando que subtraram documentos em fa-vor de potentados (como outros fizeram impune-mente), quando que venderam ou compraram,ou reduziram sentenas judiciais?

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  • Quando atentaram contra af pblica?Acaso falsificaram moedas, ou duplicaram

    cheques bancrios, ou roubaram o errio, ou cor-romperam deputados ou ministros, ou se deixa-ram corromper atravs de alguma cruz de co-mendador ou custa do ttulo de senador?

    Onde, quando atentaram contra a seguranapblica? Onde esto as bombas, os explosivos, asmquinas infernais por eles fabricadas?

    O senhor representante do Ministrio Pblicodeve ter partido a cabea ao imaginar uma bombano inocentssimo tubo apreendido a um dos rus.Desenvolveu esforos sobre-humanos para o car-regar com palavras ... explosivas. Mas o tubo conti-nuou na mesma, inofensivo, eloqente prova dainocncia destes indivduos; e a ficou vazio, va-zio como este processo, inchando unicamente coma fantasia mrbida de uma polcia sem escrpu-los. De que outra forma puseram estes homens emperigo a segurana pblica?

    Acaso so comerciantes que falsificam o vi-nho, ou industriais gananciosos que, para poupa-rem, amanh poro em perigo, nas minas ou nasfbricas, a vida de milhares de operrios produto-res? So porventura alguns Mouravieff - fim desculo, que restabeleceu a ordem entre as plebesfamintas descarregando metralha sobre os est-magos vazios?

    Como e quando atentaram contra os bons cos-.tumes e a ordem das famlias? No so estes, Se-

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  • nhores Juzes, os que se valem da misria paracomprarem o amor de jovens desesperadas, os queestupraram virgens, valendo-se do dinheiro ou dasua autoridade de patres, no so estes os bri-lhantes "Don Juan" que pervertem as esposas po-bres.

    Sonharam, verdade, com uma famlia quefosse o resultado espontneo do amor, e no o pro-duto artificioso de um negcio legal, muitssimasvezes na base do interesse. Sobre a fisionomia tra-dicional da famlia de que fala o cdigo, sonha-ram injetar a seiva jovem de um sentimento queno tem as hipocrisias do calculismo, nem osconvencionalismos das leis: o amor livre. O amorque aceita o vnculo da nica lei, que em si mes-mo encerra o prmio e a sano: a lei da natureza.Estes indivduos no querem destruir a famlia.Querem regener-Ia, purific-Ia - nada mais.

    Perguntai-o aos velhos, perguntai-o s suas es-posas, perguntai-o a suas mes, queles pobres fi-lhos do povo que tendes visto s portas deste edi-fcio com os olhos vermelhos de lgrimas, inter-rogando em silncio os vossos semblantes, oh! Se-nhores Juzes, leiais neles a sorte dos seus entesqueridos; perguntai-o a estes velhos e a estas mu-lheres.

    seguro que vos respondero que os 35 ho-mens que a acusao pblica qualifica de malfei-tores, so filhos, maridos e pais amorosssimos.

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  • Responder-vos-o que a sua condenao equiva-le ao desmoronamento econmico e moral destasangustiadas fami1ias. E a petio cruel da acusa-o pblica j deferiu um terrvel golpe nos cora-es destas gentes que, chorosas, esperam; e apena que para estes homens se pede, isto sim, que um verdadeiro atentado paz, tran-qilidade destas laboriosas famlias inocentes.

    Onde, quando, por fim, atentaram contra aspessoas ou a propriedade? Elas querem o desa-parecimento-da burguesia, como classe privilegia-da, mas no a morte dos burgueses.

    Como anarquistas, consideram que quem nas-ce filho de milionrio no tem mrito algum, nemsequer tem o direito a gozar dessas riquezas, por-que no as produziu; do mesmo modo, no po-dem atribuir ao rico a culpa de ser rico.

    verdade que a riqueza excessiva de uns de-riva da excessiva misria de outros, j que bvio concluir que, se h quem tenha demasiado,haver por conseguinte quem tenha pouco.

    Mas no para matar todos os burgueses queos socialistas anarquistas declaram a guerra bur-guesia, seno para suprimir as causas da explora-o e da misria dos trabalhadores. uma guerraao sistema econmico e poltico, mas guerra deprincpios e de argumentos.

    E esta luta no nasceu das recomendaes dossocialistas ou dos anarquistas, mas de uma fata-

    51

  • lidade histrica. A sua origem est no antagonis-mo de classes. Ser a eliminao das classes noseio da grande famlia de socialistas dos trabalha-dores fraternais, solidrios e livres, que a far ces-sar. Esta luta, inevitvel, ser tanto mais spera eferoz quanto mais desapiedada for a reao. A vio-lncia dos de cima determina inevitavelmente aviolncia dos de baixo. A liberdade verdadeira,grande, completa: eis aqui a mais eficaz medidapreventiva contra o chamado delito poltico ousocial no , ao fim e ao cabo, para quem o obser-ve bem, seno o protesto sangrento do pensamen-to maltratado. Falando de delito poltico quanto anarquia, certamente que o nosso esprito, Senho-res Juzes, recorre retaliao terrivel que a vin-gana escolhida pelas almas exacerbadas contra acnica sociedade dos potentados e dos homens dogoverno que confiam poltica a cura das enfer-midades sociais.

    E perguntar-vos-eis: no se confessam anar-quistas os dinamitistas pari sienses? No declaramquerer transformar o mundo, destruindo-o com di-namite?

    Ah, Senhores Juizes ... Antes de julgardes es-tes homens, que entrevem a era feliz da humani-dade rejuvenescida, fora do sonho negro de umagrande purificao por meio de incndios e deexplosivos, necessrio descer primeiro ao infer-no dos sofrimentos e das misrias, no qual as al-mas se converteram em cinzas.

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  • Antes, necessrio compreender por que len-to processo psicolgico estes espritos, estes co-raes chegam ao extremo, transbordando dios.

    Nem a propaganda destes sedutores, a cujasfileiras me orgulho de pertencer, j que foi sem-pre obra de espritos inquietos e rebeldes a reno-vao da civilizao, nem os violentos artigos dojornal, influram de modo algum nas motivaesimpulsivas desses cavaleiros da morte e do ideal.

    Simples e vs palavras no podem semear tan-to dio, tanta rebeldia. a demonstrao diria eperene das inquietaes sociais que arrasta estesvoluntrios do patbulo a efetuar o protesto tre-mendo e ruidoso. S a vertigem de um profundoespasmo moral capaz de levantar dos abismosdo oceano humano, esgotado por tempestades tonegras, estes tomos ignorados, at sensualida-de espantosa que faz tremer o mundo adormeci-do, no meio das suas orgias, dos seus direitos edos oprimidos, e sacudir os sonhos voluptuososcom retumbantes fragores. Certamente que as ge-raes vindouras, resgatadas pelo amor e pelo ci-vismo, se espantaro com estas trgicas raivas deum sculo agonizante. Mas ento a estranheza serlegtima, porque a razo e o esprito de fraternidadee, de solidariedade tero dominado quanto h ain-da de agressivo e de atavismo bestial no organis-mo da casta humana.

    Mas acaso as instituies atuais tm o direitode se queixar do que sucede por obra dos dina-

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  • mitistas e dos apunhaladores, quando certo queelas se refugiam no militarismo, que , como es-creve Leon Tolsti, a escola da violncia?

    Tm o direito de se surpreender estes gover-nantes do povo, que fazem consistir toda a lgicado governo na boca das espingardas e na pontadas baionetas, e que crem poder legalizar a vio-lncia dos poderes constitudos com o enorme pre-texto da razo de Estado?

    E digo-vos, Senhores Juizes, anarquista fer-voroso como sou e me orgulho de ser, sabido como que o anarquismo militante procede na Itlia dedois nomes gloriosos: Mario Pagano e CarloPisacane -, digo-vos, repito, que abomino o san-gue e a violncia, e que a vida de um semelhante sagrada para mim, como sagrada (e dou teste-munho disso diante do banco doloroso onde estoestes 35 honrados homens) para todos os anarquis-tas, que so coraes nobres que choram a doralheia muito mais que a prpria dor.

    Mas quando depois de tanta acumulao demisrias e de injustias sobre os dbeis, os pobrese os indefesos, vemos algumas dessas almas tor-turadas levantarem-se, terrveis como a tempesta-de, contra os satisfeitos e os poderosos da Terra,no seremos ns, seguramente, que nos unamosaos que nos julgam e condenam, porque, materia-listas em filosofia, e deterministas em sociologia,cremos que seria ridculo instaurar um processo

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  • ao surgimento do entusiasmo, qualquer que seja oterror e a runa que da possa ter resultado;

    Digo isto para sustentar que loucura quererinferir dos atos individuais e impulsivos de algu-mas pessoas uma qualquer responsabilidade mo-ral para todos aqueles que professam as mesmasidias polticas e sociais. Ferozmente absurdo se-ria pronunciar sobre estes rus um juzo que sedeixasse influenciar de alguma maneira pelo medode exploses, sucedidas em outros lugares, e con-tra cujos autores a sociedade j se vingou, alisde um modo bastante impiedoso.

    No contra a pessoa nem contra a proprie-dade que atentam os anarquistas, que acima detudo pretendem formar uma sociedade na qual oroubo e o homicdio sejam impossveis. A expro-priao que eles querem ser feita pelo povo, embenefcio de todos, ou, como se diria em direitoadmini strativo , por razes de utilidade pblica.Fulano rouba um relgio a sicrano, em proveitoprprio? Isto o roubo.

    Os camponeses de uma regio pem em co-mum os campos por eles cultivados e por outrosexplorados, e declaram-nos propriedade social,convidando os antigos donos a trabalhar neles, emconjunto, ou alargarem-nos, substituindo, emumapalavra, a propriedade de todos propriedade deuns poucos? Est aqui a expropriao legtima,por motivo de utilidade pblica; isto o que ns,

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  • socialistas anarquistas, chamamos reivindicaodas riquezas sociedade inteira.

    lmaginai que a esta socializao da terra sesegue desde logo, por obra de outros trabalhado-res, a socializao das mquinas, das minas, e detodas as fontes de riqueza e de produo, e tereisuma nova economia pblica, que substituir o in-teresse privado, destruindo o antagonismo dasclasses. Tereis, emuma palavra, o socialismo. Co-roai-o com a liberdade verdadeira, ntegra, e tereisa anarquia.

    Que relao pode ter este luminoso ideal como art. 248 do Cdigo Penal Italiano? Dizia bemBaradino, no obstante os sustos do Senhor Dele-gado do Ministrio Pblico. Fazer a apologia doroubo, seria fazer a apologia da sociedade bur-guesa. De fato, pode-se compreender que emumasociedade na qual, como a vida demonstra, oshonrados beneficios do capital se tiram daquelaparte do trabalho que no se paga ao operrio, epor conseguinte resultam em verdadeiros os pr-prios roubos legais, dizia eu, tanto a desgraadafatalidade social que arrasta Carlo Moretti, o pro-tagonista dos Desonestos, de Rovetta, a roubar odinheiro da caixa, como a imperiosa necessidadefisiolgica que obriga Valjean, em OsMiserveis,de Victor Hugo, a arrebatar, com violncia, umpo, dos muitos que havia, para aplacar a fomedos seus, que morriam de inanio.

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  • Mas perante tais fatos, mesmo perpetradospor causas privadas, no h necessidade de ser so-cialista ou anarquista para encontrar para eles umajustifi cao.

    Basta simplesmente ser um homem de bomsenso e de bom corao para concluir, precisamen-te de acordo com uma personagem da bela e ver-dadeira comdia de Rovetta, "que para ter o direi-to de julgar e condenar um homem, necessriohaver passado, sem culpa, pelas mesmas circuns-tncias, em virtude das quais o outro cedeu e caiu".

    E at a cincia do Direito Penal ensina que "anecessidade no conhece a lei", e Francesco Car-rara, como corolrio jurdico do direito vida,concluiu que "roubo cometido por necessidade no delito, j que fatalmente no conflito entre o su-premo e inviolvel direito existncia e o menore transitrio direito de propriedade privada, noh dvida alguma de que a superioridade e o tri-unfo devem estar do lado do direito vida, que soberano entre os direitos humanos".

    Este , nem mais nem menos, o argumento doanarquista ao julgar os ataques privados propri-edade privada. E , como todos podem ver, o ar-gumento do bom senso e do bom corao, que as-socia a alta fantasia do poeta francs ,conclusojurdica do criminalista italiano.

    De tudo quanto, apressadamente e de boa-f,acabo de vos expor, Senhores Juzes, podereis for-mar um critrio sinttico, exato e objetivo das teo-

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    l

  • rias socialistas anrquicas; e concluireis (confionisso) que elas no constituem seno um ideal deigualdade e de liberdade, porventura, ousado (sequereis), mas muito contrrio a um ilcito crimi-nal e menos ainda com relao ao art. 248 do C-digo Penal.

    o ideal revolucionrioMas estes indivduos, acrescenta a acusao

    pblica, no so anarquistas tericos, como Hen-rique Ibsen ou Elise Rclus; professam idiasanarquistas revolucionrias, e podero passar fa-cilmente do direito ao.

    A revoluo ... ! esta a palavra que vos faztanto medo? E no haveis aprendido na histriaque todo o autntico progresso humano est mar-cado por um trao sangrento, e que tanto no cam-po poltico como no cientfico foram sempre mi-norias inconformistas que empunharam a bandei-ra da verdade, em torno da qual caram, comba-tendo, ou triunfaram, arrastando atrs delas maio-rias inconscientes?

    No vos recordais que aos grandes facciososdo renas cimento italiano se chama hoje percurso-res, mrtires; que os revolucionrios pela ptria seconverteram atualmente em figuras monumentais?

    No pensais, por fim, que as mesmas leis emnome das quais pedis - oh, acusador pblico? - a

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  • condenao dos meus amigos, que a mesma for-ma sacramental com a qual vs - oh, SenhoresJuzes! - comeareis a vossa sentena, nasceramdo sangue de uma grande revoluo? Esprtaco,Guilherme TeU, Danton, Kossuth, Garibaldi: aquiest a revoluo; Cristo, Confcio, Lutero, Gior-dano Bruno, Galileu, Darwin: aqui est ainda arevoluo.

    Eis ainda aqui o presente, que se revela ao pas- .sado e prepara o futuro. Dilacerai a Histria, sequereis destroar a gloriosa legenda da revolu-: .o. Arrebatai das mos das crianas que vo escola os livros que, falando de Brutus que apu-nhalou por amor liberdade, e de Rienzi, propan-gadista por amor ao povo, ensinam que a revo-luo o dever sagrado contra a tirania. E proibas peregrinaes do vosso forte povo martimo,que leva coroas de homenagem esttua de Ba-li IIa, o pequeno fundeiro cujo nome querido atodos os oprimidos, porque da sua mo partiu aprimeira pedra contra os prepotentes opressores.

    "Ser revolucionrio, Senhores Juzes, no querdizer "ser violento".

    Quantas vezes, na histria, a violncia no es-teve da parte das leis e dos seus defensores, e aordem, ao contrrio, da parte da insurreio e dosseus militantes' Ser revolucionrio pela grandeidia da justia social, quer dizer pr a fora cons-ciente ao servio dos direitos dos trabalhadores;

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  • conspirar com o pensamento e com a ao pararestabelecer a ordem verdadeira no mundo, com apacificao dos nimos na harmonia 40s interes-ses e das liberdades individuais. Neste sentido, sorevolucionrios os meus amigos, acusados nos pre-sentes autos. Estes dizem ao povo: "tu s a maio-ria; tu s o direito e a fora. Basta que tu queiras,. e o dia da redeno ser realidade para ti". E aostrabalhadores: "vs sois os mais importantes, oscriadores do bem-estar dos' demais. Basta que oquereis, eo bem-estar estar garantido para vs eas demais criaturas humanas".

    Imaginai, Senhores Juzes, que este raciocniose converte, como inevitavelmente se converterna conscincia matriz do proletariado e a revolu-o ter-se- feito.

    Nem toda a fora do exrcito e da polcia sersuficiente para deter este entusiasmo humano, eesta f e esta juventude.

    H algo mais forte que o medo e o caprichodos governantes e das classes dominadoras: airresistvellei da histria e esta anuncia-nos a ine-vitvel vitria do proletariado.

    Palavras finais

    Avaliai, pois, Senhores Juzes, que seriedadepodem ter estes processos, constru dos sobre a de-

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  • lao de confidentes subornados, ante a serena fa-talidade da histria.

    No quero, no posso, no devo entrar nas vs-ceras dbeis, muito dbeis na verdade, deste pro-cesso. Os valentes colegas, aos quais foi distribu-da essa anlise, dissecaro as ntimas obscurida-des processuais, aberrativo fruto da fantasia po-tica do senhor Sironi.

    Mas apressando-me concluso desta jlar-ga defesa, devo manifestar-vos, ainda que no sejanovo nem ingnuo nestas coisas, a impresso dedesgosto que me causou todo o sistema acusatriodo senhor Sironi.

    Numa grande ria melodramtica de salvadorda sociedade, este egrgio comendador falou-vos da organizao anrquica de Gnova e de Sam-pierdarena, assegurou-vos a existncia de crculos ede grupos de propaganda e de ao. E, a pergun-tas do Juiz-Presidente, e nossas, a respeito de quemo houvesse informado de ambas as coisas, o se-nhor chefe da polcia respondia invariavelmente:"por meio de confidentes cujos nomes no possorevelar".

    Ah! assim o sistema de acusao annimaque se quer inaugurar na Itlia nos processos po-lticos? Se a voz da acusao permanecesse nasombra e encontrasse o menor eco nas vossas cons-cincias, Senhores Juzes, seria mil vezes melhorque a ignorsseis e pouparieis palavras.

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  • Far-vos-ia estourar de riso se vos contasse umadestas perversas brincadeiras de que s vezes soalvo estes desgraados da nossa sociedade que opovo indentifica com o mais breve e depreciativodos vocbulos - bufos - e convencer-vos-ia emseguida da sua imbecilidade intelectual e moral.Permiti-me que vos d s uma amostra.

    No Crculo de Estudos Sociais de Milo, hcerca de dois anos, apareceram duas sinistras fi-guras que despertaram, a mim e a outros, suspei-tas de ue eram espies. Preparamos, ento, umacomdia. Um amigo, empregado no comrcio, esem filiao poltica, tinha uma estranha seme-lhana com o advogado Saveiro Merlino.

    Pedimos-lhe que desempenhasse o papel des-te ltimo como se houvesse vindo a Milo incog-nitamente, j que o verdadeiro Merlino se viainsistemente perseguido pela polcia.

    Os dois suspeitos, ouvindo falar de Merlinoem Milo, propuseram-se convid-Io a comer nasua casa.

    O suposto Merlino acei tou com entusiasmoaquele convite, pago pelos fundos secretos da po-lcia. Mas a um sinal combinado dos espies,quando atravessava a galeria, foi detido o nossoamigo por uma nuvem de policiais, que acredi-taram seriamente, em vista da denncia formal,ter capturado com as suas garras o verdadeiroMerlino.

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  • Bastou que a imprensa zombasse desteespisdio para que logo o pusessem em liberda-de.

    Este fato pode ser um termmetro, SenhoresJuzes, para graduarem devidamente as delaesdos confidentes respeitveis do senhor Sironi.

    E se isto no bastasse, permiti-vos que vos leia,muito mais eloqente que a minha pobre palavra,uma pgina das lies de direito criminal do meurespeitvel mestre, o professor Francesco Carrara,a propsito da f que os magistrados conscientespodem prestar aos confidentes annimos.

    [Nesta parte, o defensor l, no meio da maiorateno, algumas contundentes pginas do pro-fessor Carrara contra a acusao secreta e con-tra a espionagem poltica, com a exortao aosjuizes de gritarem o "procul esto, profanis ", aestes mtodos dignos da antiga inquisio. Logoretoma a sua defesa.]

    Depois destas pginas de nobre e justo des-prezo do mais ilustre campeo da escola penalclssica, contra estes sistemas acusatrios, dignosde outros tempos, que mais poderia eu acrescen-tar, para demolir o edifcio de acusao, o qual sedesmorona e cai pelo seu prprio peso?

    A Lus Galleani toca-lhe, verdade, uma gran-de culpa. Encontra-se registrada, pela ordem, no

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  • lugar respectivo da Cmara do Conselho. Oh!,amigo Galleani! Tu havias falado uma vez, en-quanto o trem cruzava velozmente a estao deSampierdaren com o terrvel agitador milansPietro Gori - sabes? - com aquele cujos passos apolcia espia incessantemente, como a ti.

    Perdoa-me, meu amigo. Quem teria podidoimaginar que aqueles fraternais abraos deveriam.um dia, em teu prejuzo, pesar na balana da Jus-tia? Quem poder pensar que depois de tanto san-gue derramado pela causa da liberdade, depois detantos rios de tinta e tantas torrentes de retricaconsagradas a celebrar os fatos de uma nova It-lia, uma costeleta devorada em conj unto no res-taurante de uma estao, entre a chegada e a par-tida do trem, poderia constituir o elemento de umaconspirao de dinamitistas, e que um aperto demos dado sem mistrio a um amigo que passa,poderia, indiciar a prova de uma associao demalfeitores? Alm destes tremendos contatos comum amigo de passagem, em plena estao de trens,que outros fatos concretos poderieis imputar aGalleani? E se so estes ntimos contatos com oespantoso agitador milans que sobretudo pesame agravam a posio de Galleani, por que que oodiado alvo da polcia foi absolvido, e pode ago-ra, a coberto da inviolabilidade da toga, vingar-secom este discurso da honra que lhe negaram, noo deixando enfileirar ao lado destes temerriosmalfeitores?

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  • Senhores Juzes:O meu dever de amigo dos rus, solidrio com

    as idias por eles professadas, o meu piedoso ofi-cio de defensor destes homens e destes princpi-os, acabo de o cumprir, no certamente com habi-lidade' mas sim com f sincera.

    vossa bela e gloriosa Gnova chegava euesta manh da minha Milo, forte e .laboriosa,com a memria cheia de impresses indelveisque me recordavam aquele "Mestre das BelasArtes".

    Se verdade que a arte reflete o esprito dotempo, ali naquela palestra do gnio italiano, pal-pita hoje, Senhores Juzes, uma acentuada nota derebeldia, contra a qual todos os Sironi e insetosdeste mundo nada podem. a onda das misriashumanas que se transbordam num grito de dor ede protesto dos pincis e cinzis dos artistas.

    Desde o ltimo Esprtaco, do escultor Ripa-monti, s Reflexes de um Faminto, de Lorgoni,todo o problema da nossa poca se agita admira-velmente, e grita, e ameaa, naquelas figuras enaquelas telas.

    Por que razo que o senhor Sironi no tramaum processo contra a arte moderna, como instiga-dora do dio de classe e da apologia de crimes?Por que no denuncia todos aqueles artistas, finaflor do gnio italiano jovem, como constituindouma associao de malfeitores?

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  • Mas tu, Plnio Nomellini, paga-as por todos.A ti, pintor nato do azul e da luz, a palavra anar-quia no te meteu medo.

    Seguiste com olhos apaixonados as flgidasconstelaes do firmamento e compreendeste queum cdigo indito, mas inviolvel, o regula: a leida natureza. Contemplaste o florescimento anr-quico dos prados e neles leste tambm a mesmalei natural, que nenhum legislador humano podeencerrar em um livro, a no ser que a adultere. Ena espontnea harmonia das cores, das formas edas foras da vida, advinhaste uma espontnea har-monia de direitos e de interesses na humanidadelibertada.

    Amante da verdade, nua e bela, acariciaste-anas tuas telas. E o senhor Sironi v nelas um sm-bolo: ele odeia os smbolos. Tambm os impera-dores que torturaram os primeiros cristos odia-vam a cruz. Os subordinados do comendador maistarde, nas tuas telas, viram claramente p]anos...de fortificaes.

    Hoje a brutal realidade tirou-te a liberdade,roubou-te o mundo ideal dos teus sonhos lumino-sos, e atirou-te para o banco do sacrifcio, entreGalleani, aprumado e leal, e Barabino, em cujasveias de marinheiro irreverente corre certamenteo sangue fervente do genovs Balilla.

    Era necessrio que a arte, precursora do tem-po, tivesse aqui a sua representao, entre o enge-nho e o trabalho.

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    Mas todos vs - oh!, 35 acusados! -, levantaias vossas cabeas ante os vossos juzes, sem medonem temores. O povo, este juiz soberano, este povoaudaz e tenaz desta nobilssima cidade, j vos ab-sol veu a todos.

    Dizem-no e repetem-no os estremecimentosde afeto e de simpatia que vos acompanharamdiariamente at as portas do crcere.

    E agora, Senhores Juzes, julgai-os j, vs pr-pnos.

    Decidi se delito reclamar para os deserdadosa sua parte de felicidade, se criminosa a sua mis-so de liberdade, de paz, em prol da cansada raahumana.

    Vs no querereis, no ousareis condenar es-tes serenos combatentes de uma idia, por culpasque no lhes cabem.

    Nos fins deste sculo, nascido de uma revolu-o a qual escreveu com sangue e promulgou como fogo dos seus canhes a declarao dos direitosdo homem; nesta Gnova, respeitvel pela mem-ria de dois grandes revolucionrios: CristvoColombo, sonhando diante do vosso encantadorgolfo com um mundo novo para o oferecer ve-lha Europa, e Jos Mazzini, desejando uma Itlia- modelo de verdades e de justia entre as gentes;dois grandes solitrios, dois grandes perseguidose escarnecidos pelo vulgo, composto por almastontas e nscias; nesta Gnova, repito, e ante este

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  • povo fiel s suas tradies de liberdade, uma con-denao do pensamento, como seria acci tar notodo ou em parte as concluses do delegado doMinistrio Pblico, significaria um ultraje a estassolenes recordaes.

    E, vs, Senhores Juizes, absolvereis. Tenho fmsso.

    Porque se acreditais poder deter o caminho dasidias da redeno social com os anos de reclusoe de vigilncia; se vos declarsseis competentespara julgar as imprescritveis manifestaes dopensamento humano que trabalha pela paz e a fe-licidade dos homens; se vos detenninsseis a mar-car as frontes serenas daqueles ntegros trabalha-dores com o estigma de uma suposta infmia, oque afinal no seria para eles seno o batismo dosacrifcio, oh! ento, ainda que eu esteja longequando proferirdes a vossa sentena, lembrai-vos,oh! Juzesl , destas minhas ltimas e honradas pa-lavras: Por cima da vossa sentena, est a senten-a da Histria; por cima dos vossos tribunais, esto tribunal incorruptvel do porvir.

    [Ruidosos e prolongados aplausos -- em. voreprimidos pelo Presidente, A calorosa demons-trao renova-se na rua, pela multido entusias-mada, ao grito de "Vivam os amados malfeito-res! "]

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