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 A Anorexia em Mulheres e a Melancolia Giovana Luiza Marochi A supervalorização da estética, bem como o culto à magreza na atualidade, tem contribuído para a manifestação da anorexia    patologia que incide na população numa  proporção de nove mulheres p ara cada hom em. Além de um aumento de procura por atendimento psicológico por parte dessas meninas/mulheres e/ou seus familiares; tem havido, nos últimos anos, um constante aumento do número de blogs e websites voltados para a anorexia. Esses espaços são de  participação majoritariamente feminina e neles é possível encontrar trocas de experiências, fotos, dietas, diários confessionais e até promoção de práticas de vigilância alimentar bem como concursos de privação. Podemos pensar na recusa alimentar dessas garotas enquanto manifestação histérica, enquanto a busca de um acesso à feminilidade a partir de um suporte na imagem do corpo de mulheres magras e vistas por elas como desejáveis aos olhos masculinos. No entanto, o que nos faz questão é a tentativa de compreender o que faz essas garotas irem além disso a que inicialmente se propõem (pois nunca estão suficientemente magras), ultrapassem o limite do sentirem-se desejadas e, em algum nível, se deem a morrer. Pensamos que a chave para essa compreensão está na relação entre a anorexia e a melancolia, já apresentada por Freud em 1895 no rascunho G. Freud, no Rascunho G, aponta o seguinte:

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A Anorexia em Mulheres e a Melancolia

Giovana Luiza Marochi

A supervalorização da estética, bem como o culto à magreza na atualidade, tem

contribuído para a manifestação da anorexia  –  patologia que incide na população numa

 proporção de nove mulheres para cada homem.

Além de um aumento de procura por atendimento psicológico por parte dessas

meninas/mulheres e/ou seus familiares; tem havido, nos últimos anos, um constante

aumento do número de blogs e websites voltados para a anorexia. Esses espaços são de

 participação majoritariamente feminina e neles é possível encontrar trocas de

experiências, fotos, dietas, diários confessionais e até promoção de práticas de

vigilância alimentar bem como concursos de privação.

Podemos pensar na recusa alimentar dessas garotas enquanto manifestação

histérica, enquanto a busca de um acesso à feminilidade a partir de um suporte na

imagem do corpo de mulheres magras e vistas por elas como desejáveis aos olhos

masculinos. No entanto, o que nos faz questão é a tentativa de compreender o que faz

essas garotas irem além disso a que inicialmente se propõem (pois nunca estão

suficientemente magras), ultrapassem o limite do sentirem-se desejadas e, em algum

nível, se deem a morrer. Pensamos que a chave para essa compreensão está na relação

entre a anorexia e a melancolia, já apresentada por Freud em 1895 no rascunho G.

Freud, no Rascunho G, aponta o seguinte:

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(a) O afeto correspondente à melancolia é o luto  –  ou seja, o desejo de recuperar

algo que foi perdido. Assim, na melancolia, deve tratar-se de uma perda  –  uma

 perda na vida pulsional.

(b) A neurose nutricional paralela à melancolia é a anorexia. A famosa anorexia

nervosa das moças jovens, segundo lhe parece (depois de cuidadosa observação)

é uma melancolia em que a sexualidade não se desenvolveu.

Para compreendermos o primeiro apontamento de Freud partiremos para

o texto “Luto e Melancolia” (1917, p. 278), no qual ele escreve que: 

“embora a perda que vimos ocorrer na melancolia nosseja desconhecida, podemos supor que sua consequênciaserá um trabalho interior semelhante ao do luto e, portanto, a perda explicaria a inibição também presentena melancolia. Entretanto, a inibição melancólica nos parece enigmática, porque não podemos ver o que estariaabsorvendo de tal maneira o doente. Além disso, omelancólico nos mostra uma característica ausente noluto: a extraordinária depreciação do sentimento-de-si,

um enorme empobrecimento do ego”.

 Nesse texto Freud escreve que na melancolia, diferente de no luto, o

resultado não foi um processo normal de retirada da libido do objeto, o que se

seguiu foi que a libido liberada, em vez de ser transferida para outro objeto, foi

recolhida para dentro do ego e foi utilizada para produzir uma identificação do

ego com o objeto perdido - Sabemos que para que haja identificação, é

necessária a construção e eleição do objeto. Acreditamos que a identificação

mencionada por Freud nesse texto refere-se mais à incorporação, própria do

narcisismo primário e, portanto, do eu ideal, anterior à relação de objeto do que

 propriamente a uma identificação que se deu a partir de uma relação objetal.

Assim, a sombra do objeto caiu sobre o ego e passou a julgá-lo como se ele

fosse o objeto abandonado, a agressividade impossibilitada de ser dirigida ao

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objeto, volta-se contra o eu e o deprecia. Freud acrescenta que “O conflito entre

o ego e a pessoa amada transformou-se num conflito entre a crítica ao ego e o

ego modificado pela identificação”, que lemos incorporação.(p.108)

Assim, se o amor pelo o objeto não pode ser renunciado, ele se refugia na

incorporação narcisista, retornando ao próprio eu do indivíduo. Por isso a

melancolia se refere a uma neurose narcísica caracterizada por um conflito entre

ego e superego, pois o melancólico se retira narcisicamente para seu mundo

interior e deseja, agora, no lugar do objeto, alcançar o amor de seu superego

(ideal). Aí os esforços do ego pra corresponder a essa instância que quanto mais

severa for (e, nesses casos, o é) menor a possibilidade de satisfazê-la. Na

melancolia, para ser objeto de investimento amoroso do superego o ego tem que

se mostrar como o que não é: todo ideal!

Além disso, segundo Freud, a predisposição à melancolia está

diretamente relacionada à escolha objetal do tipo narcísico, mediada muito mais

 por uma necessidade de ser amado do que propriamente de amar. De acordo com

ele, observa-se, nesses tipos de escolhas, uma regressão do investimento

libidinal do objeto para a fase oral da libido, fase anterior à escolha de objeto.

Em “Breve estudo do desenvolvimento da libido, visto à luz das

 perturbações mentais” (1924ª), Abraham faz uma diferenciação dentro da fase

oral da libido. Ele diz que no nível primário, a libido da criança está ligada ao

ato de sugar –  o qual é um ato de incorporação. Acrescenta que a criança ainda

não é capaz de distinguir entre o seu próprio ego e o objeto. “Ainda não há uma

diferença entre a criança que mama e o seio que amamenta”. Além disso, a

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criança ainda não possui sentimentos de ódio nem de amor; seu psiquismo

encontra-se livre de todas as manifestações de ambivalência.

 No nível secundário da fase oral, denominado por Abraham de oralcanibalesco, é possível observar uma passagem do ato de sugar para o ato de

morder, ato este que representa os impulsos sádicos. Nesse estágio, o ego

incorpora o objeto em si próprio e, assim, o destrói. É nessa fase que a atitude

ambivalente do ego para com seu objeto começa a se desenvolver e um conflito

aí se instala. Abraham acrescenta que, de acordo com suas observações, o

melancólico não consegue dirigir sua agressividade para o mundo externo, pois

está tentando fugir de seus impulsos sádico-orais.

Em seguida, nesse mesmo texto, Abraham explicitará que a psicogênese

da melancolia encontra-se ligada, entre outros fatores, aos “desapontamentos

amorosos” ocorridos em momentos iniciais da vida do paciente. Este

desapontamento primário, quando revivido na vida ulterior pode provocar uma

depressão melancólica. Mais precisamente, quando “a ocorrência do primeiro

desapontamento amoroso importante se dá antes de que os desejos edipianos

houvessem sido superados”. O bebê, então, desapontou-se com seu primeiro

objeto de amor: a mãe; o que veio desencadear um trauma que não foi passível

de ser simbolizado.

De acordo com Magtaz (2008), as ideias de Abraham não se referem

somente à psicogênese da melancolia. Referem-se, também, à constituição do

ideal, herdeiro do narcisismo; pois existe, em todos os sujeitos, uma ilusão de

 posse do objeto que deve ser desfeita e elaborada ao longo da vida  –  passagem

do ego ideal para o ideal do ego.

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  Pensamos que o melancólico passou por uma perda amorosa negativa

que não o possibilitou superar seus desejos edipianos saudavelmente para que

ele fosse impulsionado a investir em outros objetos e a refazer ligações. Algo

falhou na fantasia organizadora que introduz o Édipo, ele ficou marcado por um

apego pré-edípico à sua mãe e, assim, preso no ego ideal. A medida em que fica

 preso no ego ideal é como se não pudesse correr o risco de sofrer um novo

desapontamento amoroso ao investir em outros objetos; é como se houvesse um

esvaziamento da libido que, ao não ser dirigida para o mundo externo, não há a

 possibilidade de satisfazer-se com nada que venha de fora, nem com o outro,

nem com a comida –  e aí o rechaço a esses dois.

É na adolescência que a anorexia eclode, pois este é um período de

apropriação da própria identidade, do próprio corpo e da sexualidade. A

anorexia pubertária testemunha esse conflito, pois o apagamento dos caracteres

sexuais secundários a partir do emagrecimento revela uma dificuldade de

apropriação de um corpo próprio, adulto e feminino. Sabemos que a passagem

 para a feminilidade está ligada a uma renúncia da mãe onipotente e ao recalque

da atividade fálica; pois é somente com a percepção de que a mãe é castrada que

se torna possível, para a menina, abandoná-la como objeto de amor. Pensamos

que anoréxica não teve essa condição.

Segundo Jaques André (2001), a experiência da menarca, como marca de

identificação entre mãe e filha, aparece como momento fundamental na

sexualidade da menina, pois lança a menina numa possibilidade de abertura para

o mundo  –   ao despertar o desejo dos homens. Para o autor, a sexualidade na

menina põe em risco a integridade narcísica, suscitando angústias próximas ao

registro arcaico. Ele afirma que a anorexia é uma resposta a essa angústia

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 primitiva: angústia de separação e intrusão; “a anoréxica responde pelo ato de

fechar todas as saídas”. 

Isso nos leva a pensar que ao não menstruar, é como se a anoréxicaestivesse negando qualquer possibilidade de identificação com sua mãe; é como

se não houvesse separação suficiente para que a identificação se fizesse possível,

como se de um corpo não pudessem existir dois, diferenciados; e, assim, de

alguma forma, mãe e filha permanecem próximas a uma indiferenciação

narcísica  –   próximas, pois não se trata de uma psicose, e sim de uma

 permanência na fase de negação da existência do objeto enquanto tal.

Assim, pensamos que na anorexia, bem como na melancolia, houve uma

falha na primeira fase do desenvolvimento sexual: a fase oral; pois é ela que

aponta para os primeiros investimentos objetais do eu; os quais são falhos tanto

numa quanto noutra.

Então, vemos a melancolia como sendo o sofrimento subjacente à

anorexia, pois:

1)  A inibição presente na melancolia é vista por nós, como a inibição das

funções alimentar e sexual na anorexia;

2) 

O esforço do ego em se fazer todo ideal para que possa ser amado pelo

superego na melancolia é análogo ao esforço da anoréxica de apresentar um

corpo fálico, desprovido de sexualidade e do qual ela se orgulha, pois é

desprovido de humanidade;

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3)  A extraordinária depreciação do sentimento de si apontado por Freud como

característico da melancolia é observável nas constantes críticas que a

anoréxica faz a si e ao próprio corpo;

4)  A relação entre eu e objeto que se constituiu de forma traumática na

melancolia e impossibilitou que as relações objetais fossem investidas

satisfatoriamente fazendo com que a libido retornasse ao próprio ego na

melancolia é, também, verificável na anorexia, na qual há um investimento

maciço no eu, no corpo e em sua imagem, e uma pobreza de investimentos

objetais.

Portanto, é por fechar a boca e as outras saídas que a anorexia se revela

como um sofrimento narcísico que envolve uma tentativa de elaboração de um

trauma que se deu num tempo anterior à perda do objeto, talvez mesmo de

fusão, anterior ao próprio objeto. Acreditamos que a magreza da anoréxica

responde a um conflito que atende por um lado, a ficar numa posição

indiferenciada, e por outro, a fazer-se separar. É sob uma posição melancólica de

recusa às ligações objetais, aos caracteres secundários e ao sexual que ela

 permanece infantilizada, ao mesmo tempo que a recusa à demanda do outro para

que coma representa uma tentativa de fazer surgir um esboço de diferenciação e,

assim, de desejo; como se, o dar-se a morrer fosse um grito em prol de se fazer

existir.

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Referências Bibliográficas:

ABRAHAM, K. (1924). Breve estudo do desenvolvimento da libido visto à luzdas perturbações mentais. In: Teoria Psicanalítica da libido. Rio de Janeiro:Imago, 1970.

ANDRÈ, Jaques. Feminilidade adolescente. In: CARDOSO, M. R. (org). Adolescência: Reflexões Psicanalíticas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001.

FREUD, S. (1895) Estudos sobre a histeria. In:  Edição Standard Brasileira das

Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud . Rio de Janeiro: Imago, 1976.v. II

FREUD, S. Luto e Melancolia. (1917 [1915]). In:  Edição Standard Brasileira

das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud . Rio de Janeiro: Imago,1976. v. XIV.

MAGTAZ, A. C. (2008). “Distúrbios da oralidade na melancolia”. Tese de

Doutorado em Psicologia Clínica. PUC de São Paulo.

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