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8/19/2019 A Anorexia Em Mulheres e a Melancolia
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A Anorexia em Mulheres e a Melancolia
Giovana Luiza Marochi
A supervalorização da estética, bem como o culto à magreza na atualidade, tem
contribuído para a manifestação da anorexia – patologia que incide na população numa
proporção de nove mulheres para cada homem.
Além de um aumento de procura por atendimento psicológico por parte dessas
meninas/mulheres e/ou seus familiares; tem havido, nos últimos anos, um constante
aumento do número de blogs e websites voltados para a anorexia. Esses espaços são de
participação majoritariamente feminina e neles é possível encontrar trocas de
experiências, fotos, dietas, diários confessionais e até promoção de práticas de
vigilância alimentar bem como concursos de privação.
Podemos pensar na recusa alimentar dessas garotas enquanto manifestação
histérica, enquanto a busca de um acesso à feminilidade a partir de um suporte na
imagem do corpo de mulheres magras e vistas por elas como desejáveis aos olhos
masculinos. No entanto, o que nos faz questão é a tentativa de compreender o que faz
essas garotas irem além disso a que inicialmente se propõem (pois nunca estão
suficientemente magras), ultrapassem o limite do sentirem-se desejadas e, em algum
nível, se deem a morrer. Pensamos que a chave para essa compreensão está na relação
entre a anorexia e a melancolia, já apresentada por Freud em 1895 no rascunho G.
Freud, no Rascunho G, aponta o seguinte:
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(a) O afeto correspondente à melancolia é o luto – ou seja, o desejo de recuperar
algo que foi perdido. Assim, na melancolia, deve tratar-se de uma perda – uma
perda na vida pulsional.
(b) A neurose nutricional paralela à melancolia é a anorexia. A famosa anorexia
nervosa das moças jovens, segundo lhe parece (depois de cuidadosa observação)
é uma melancolia em que a sexualidade não se desenvolveu.
Para compreendermos o primeiro apontamento de Freud partiremos para
o texto “Luto e Melancolia” (1917, p. 278), no qual ele escreve que:
“embora a perda que vimos ocorrer na melancolia nosseja desconhecida, podemos supor que sua consequênciaserá um trabalho interior semelhante ao do luto e, portanto, a perda explicaria a inibição também presentena melancolia. Entretanto, a inibição melancólica nos parece enigmática, porque não podemos ver o que estariaabsorvendo de tal maneira o doente. Além disso, omelancólico nos mostra uma característica ausente noluto: a extraordinária depreciação do sentimento-de-si,
um enorme empobrecimento do ego”.
Nesse texto Freud escreve que na melancolia, diferente de no luto, o
resultado não foi um processo normal de retirada da libido do objeto, o que se
seguiu foi que a libido liberada, em vez de ser transferida para outro objeto, foi
recolhida para dentro do ego e foi utilizada para produzir uma identificação do
ego com o objeto perdido - Sabemos que para que haja identificação, é
necessária a construção e eleição do objeto. Acreditamos que a identificação
mencionada por Freud nesse texto refere-se mais à incorporação, própria do
narcisismo primário e, portanto, do eu ideal, anterior à relação de objeto do que
propriamente a uma identificação que se deu a partir de uma relação objetal.
Assim, a sombra do objeto caiu sobre o ego e passou a julgá-lo como se ele
fosse o objeto abandonado, a agressividade impossibilitada de ser dirigida ao
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objeto, volta-se contra o eu e o deprecia. Freud acrescenta que “O conflito entre
o ego e a pessoa amada transformou-se num conflito entre a crítica ao ego e o
ego modificado pela identificação”, que lemos incorporação.(p.108)
Assim, se o amor pelo o objeto não pode ser renunciado, ele se refugia na
incorporação narcisista, retornando ao próprio eu do indivíduo. Por isso a
melancolia se refere a uma neurose narcísica caracterizada por um conflito entre
ego e superego, pois o melancólico se retira narcisicamente para seu mundo
interior e deseja, agora, no lugar do objeto, alcançar o amor de seu superego
(ideal). Aí os esforços do ego pra corresponder a essa instância que quanto mais
severa for (e, nesses casos, o é) menor a possibilidade de satisfazê-la. Na
melancolia, para ser objeto de investimento amoroso do superego o ego tem que
se mostrar como o que não é: todo ideal!
Além disso, segundo Freud, a predisposição à melancolia está
diretamente relacionada à escolha objetal do tipo narcísico, mediada muito mais
por uma necessidade de ser amado do que propriamente de amar. De acordo com
ele, observa-se, nesses tipos de escolhas, uma regressão do investimento
libidinal do objeto para a fase oral da libido, fase anterior à escolha de objeto.
Em “Breve estudo do desenvolvimento da libido, visto à luz das
perturbações mentais” (1924ª), Abraham faz uma diferenciação dentro da fase
oral da libido. Ele diz que no nível primário, a libido da criança está ligada ao
ato de sugar – o qual é um ato de incorporação. Acrescenta que a criança ainda
não é capaz de distinguir entre o seu próprio ego e o objeto. “Ainda não há uma
diferença entre a criança que mama e o seio que amamenta”. Além disso, a
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criança ainda não possui sentimentos de ódio nem de amor; seu psiquismo
encontra-se livre de todas as manifestações de ambivalência.
No nível secundário da fase oral, denominado por Abraham de oralcanibalesco, é possível observar uma passagem do ato de sugar para o ato de
morder, ato este que representa os impulsos sádicos. Nesse estágio, o ego
incorpora o objeto em si próprio e, assim, o destrói. É nessa fase que a atitude
ambivalente do ego para com seu objeto começa a se desenvolver e um conflito
aí se instala. Abraham acrescenta que, de acordo com suas observações, o
melancólico não consegue dirigir sua agressividade para o mundo externo, pois
está tentando fugir de seus impulsos sádico-orais.
Em seguida, nesse mesmo texto, Abraham explicitará que a psicogênese
da melancolia encontra-se ligada, entre outros fatores, aos “desapontamentos
amorosos” ocorridos em momentos iniciais da vida do paciente. Este
desapontamento primário, quando revivido na vida ulterior pode provocar uma
depressão melancólica. Mais precisamente, quando “a ocorrência do primeiro
desapontamento amoroso importante se dá antes de que os desejos edipianos
houvessem sido superados”. O bebê, então, desapontou-se com seu primeiro
objeto de amor: a mãe; o que veio desencadear um trauma que não foi passível
de ser simbolizado.
De acordo com Magtaz (2008), as ideias de Abraham não se referem
somente à psicogênese da melancolia. Referem-se, também, à constituição do
ideal, herdeiro do narcisismo; pois existe, em todos os sujeitos, uma ilusão de
posse do objeto que deve ser desfeita e elaborada ao longo da vida – passagem
do ego ideal para o ideal do ego.
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Pensamos que o melancólico passou por uma perda amorosa negativa
que não o possibilitou superar seus desejos edipianos saudavelmente para que
ele fosse impulsionado a investir em outros objetos e a refazer ligações. Algo
falhou na fantasia organizadora que introduz o Édipo, ele ficou marcado por um
apego pré-edípico à sua mãe e, assim, preso no ego ideal. A medida em que fica
preso no ego ideal é como se não pudesse correr o risco de sofrer um novo
desapontamento amoroso ao investir em outros objetos; é como se houvesse um
esvaziamento da libido que, ao não ser dirigida para o mundo externo, não há a
possibilidade de satisfazer-se com nada que venha de fora, nem com o outro,
nem com a comida – e aí o rechaço a esses dois.
É na adolescência que a anorexia eclode, pois este é um período de
apropriação da própria identidade, do próprio corpo e da sexualidade. A
anorexia pubertária testemunha esse conflito, pois o apagamento dos caracteres
sexuais secundários a partir do emagrecimento revela uma dificuldade de
apropriação de um corpo próprio, adulto e feminino. Sabemos que a passagem
para a feminilidade está ligada a uma renúncia da mãe onipotente e ao recalque
da atividade fálica; pois é somente com a percepção de que a mãe é castrada que
se torna possível, para a menina, abandoná-la como objeto de amor. Pensamos
que anoréxica não teve essa condição.
Segundo Jaques André (2001), a experiência da menarca, como marca de
identificação entre mãe e filha, aparece como momento fundamental na
sexualidade da menina, pois lança a menina numa possibilidade de abertura para
o mundo – ao despertar o desejo dos homens. Para o autor, a sexualidade na
menina põe em risco a integridade narcísica, suscitando angústias próximas ao
registro arcaico. Ele afirma que a anorexia é uma resposta a essa angústia
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primitiva: angústia de separação e intrusão; “a anoréxica responde pelo ato de
fechar todas as saídas”.
Isso nos leva a pensar que ao não menstruar, é como se a anoréxicaestivesse negando qualquer possibilidade de identificação com sua mãe; é como
se não houvesse separação suficiente para que a identificação se fizesse possível,
como se de um corpo não pudessem existir dois, diferenciados; e, assim, de
alguma forma, mãe e filha permanecem próximas a uma indiferenciação
narcísica – próximas, pois não se trata de uma psicose, e sim de uma
permanência na fase de negação da existência do objeto enquanto tal.
Assim, pensamos que na anorexia, bem como na melancolia, houve uma
falha na primeira fase do desenvolvimento sexual: a fase oral; pois é ela que
aponta para os primeiros investimentos objetais do eu; os quais são falhos tanto
numa quanto noutra.
Então, vemos a melancolia como sendo o sofrimento subjacente à
anorexia, pois:
1) A inibição presente na melancolia é vista por nós, como a inibição das
funções alimentar e sexual na anorexia;
2)
O esforço do ego em se fazer todo ideal para que possa ser amado pelo
superego na melancolia é análogo ao esforço da anoréxica de apresentar um
corpo fálico, desprovido de sexualidade e do qual ela se orgulha, pois é
desprovido de humanidade;
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3) A extraordinária depreciação do sentimento de si apontado por Freud como
característico da melancolia é observável nas constantes críticas que a
anoréxica faz a si e ao próprio corpo;
4) A relação entre eu e objeto que se constituiu de forma traumática na
melancolia e impossibilitou que as relações objetais fossem investidas
satisfatoriamente fazendo com que a libido retornasse ao próprio ego na
melancolia é, também, verificável na anorexia, na qual há um investimento
maciço no eu, no corpo e em sua imagem, e uma pobreza de investimentos
objetais.
Portanto, é por fechar a boca e as outras saídas que a anorexia se revela
como um sofrimento narcísico que envolve uma tentativa de elaboração de um
trauma que se deu num tempo anterior à perda do objeto, talvez mesmo de
fusão, anterior ao próprio objeto. Acreditamos que a magreza da anoréxica
responde a um conflito que atende por um lado, a ficar numa posição
indiferenciada, e por outro, a fazer-se separar. É sob uma posição melancólica de
recusa às ligações objetais, aos caracteres secundários e ao sexual que ela
permanece infantilizada, ao mesmo tempo que a recusa à demanda do outro para
que coma representa uma tentativa de fazer surgir um esboço de diferenciação e,
assim, de desejo; como se, o dar-se a morrer fosse um grito em prol de se fazer
existir.
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Referências Bibliográficas:
ABRAHAM, K. (1924). Breve estudo do desenvolvimento da libido visto à luzdas perturbações mentais. In: Teoria Psicanalítica da libido. Rio de Janeiro:Imago, 1970.
ANDRÈ, Jaques. Feminilidade adolescente. In: CARDOSO, M. R. (org). Adolescência: Reflexões Psicanalíticas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001.
FREUD, S. (1895) Estudos sobre a histeria. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud . Rio de Janeiro: Imago, 1976.v. II
FREUD, S. Luto e Melancolia. (1917 [1915]). In: Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud . Rio de Janeiro: Imago,1976. v. XIV.
MAGTAZ, A. C. (2008). “Distúrbios da oralidade na melancolia”. Tese de
Doutorado em Psicologia Clínica. PUC de São Paulo.
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