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A ARGUMENTAÇÃO FUNDADA EM CONSEQUÊNCIAS DE NEIL MACCORMICK, A MODULAÇÃO DOS EFEITOS DAS DECISÕES DO STF EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS CONTRIBUINTES Roberta Simões Nascimento 1 Sumário: Introdução; 1. Considerações sobre a modulação dos efeitos das decisões; 2. A modulação dos efeitos no julgamento da COFINS sobre as sociedades civis de profissionais liberais e no entendimento que deu origem à Súmula Vinculante nº 8; 3. A teoria de Neil MacCormick sobre a argumentação fundada em consequências; 4. As noções de razões de segurança jurídica e de excepcional interesse social em matéria tributária; Considerações finais; Referências. RESUMO: A argumentação fundada em consequências, uma das preocupações de Neil MacCormick, tem sido cada vez mais observada nas decisões do STF em matéria tributária, especialmente por ocasião da modulação dos efeitos, mas não da maneira por ele idealizada. À luz da teoria de MacCormick e da CF/88, tem-se que o uso da modulação dos efeitos das decisões prevista, autorizada no art. 27 da Lei nº 9.868/99, deve ser feito em consonância com os direitos fundamentais dos contribuintes, garantindo-lhes o direito à repetição do indébito tributário quanto à exação declarada inconstitucional, bem como determinando a abstenção do 1 Advogada do Senado Federal. Coordenadora-Geral de Direito Previdenciário da Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Previdência Social. Mestranda em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. Pós-graduanda em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Gama Filho. Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito do Recife – UFPE. 1

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A argumentação fundada em consequências, uma das preocupações de Neil MacCormick, tem sido cada vez mais observada nas decisões do STF em matéria tributária, especialmente por ocasião da modulação dos efeitos, mas não da maneira por ele idealizada. À luz da teoria de MacCormick e da CF/88, tem-se que o uso da modulação dos efeitos das decisões prevista, autorizada no art. 27 da Lei nº 9.868/99, deve ser feito em consonância com os direitos fundamentais dos contribuintes, garantindo-lhes o direito à repetição do indébito tributário quanto à exação declarada inconstitucional, bem como determinando a abstenção do Fisco na cobrança de valores tidos, por longo tempo e reiterado entendimento jurisprudencial, como indevidos. A desconsideração desses aspectos na apreciação da manipulação dos efeitos das decisões tributárias, por qualquer motivo, é equivocado do ponto de vista teórico e técnico e não se coaduna com o desígnio aspirado pelo texto constitucional.

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A ARGUMENTAÇÃO FUNDADA EM CONSEQUÊNCIAS DE NEIL MACCORMICK, A MODULAÇÃO DOS EFEITOS DAS DECISÕES DO STF

EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS CONTRIBUINTES

Roberta Simões Nascimento1

Sumário: Introdução; 1. Considerações sobre a modulação dos efeitos das decisões; 2. A modulação dos efeitos no julgamento da COFINS sobre as sociedades civis de profissionais liberais e no entendimento que deu origem à Súmula Vinculante nº 8; 3. A teoria de Neil MacCormick sobre a argumentação fundada em consequências; 4. As noções de razões de segurança jurídica e de excepcional interesse social em matéria tributária; Considerações finais; Referências.

RESUMO:

A argumentação fundada em consequências, uma das preocupações de Neil MacCormick, tem sido cada vez mais observada nas decisões do STF em matéria tributária, especialmente por ocasião da modulação dos efeitos, mas não da maneira por ele idealizada. À luz da teoria de MacCormick e da CF/88, tem-se que o uso da modulação dos efeitos das decisões prevista, autorizada no art. 27 da Lei nº 9.868/99, deve ser feito em consonância com os direitos fundamentais dos contribuintes, garantindo-lhes o direito à repetição do indébito tributário quanto à exação declarada inconstitucional, bem como determinando a abstenção do Fisco na cobrança de valores tidos, por longo tempo e reiterado entendimento jurisprudencial, como indevidos. A desconsideração desses aspectos na apreciação da manipulação dos efeitos das decisões tributárias, por qualquer motivo, é equivocado do ponto de vista teórico e técnico e não se coaduna com o desígnio aspirado pelo texto constitucional.

Palavras-chaves: Neil MacCormick. Argumentação fundada em consequências. STF. Modulação dos efeitos. Questões tributárias. Garantias individuais dos contribuintes.

1 Advogada do Senado Federal. Coordenadora-Geral de Direito Previdenciário da Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Previdência Social. Mestranda em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. Pós-graduanda em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Gama Filho. Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito do Recife – UFPE.

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INTRODUÇÃO

Este trabalho visa a abordar a importância da modulação dos

efeitos das decisões do STF nas discussões tributárias para a garantia dos

direitos dos contribuintes, com fundamento paralelo na teoria de Neil

MacCormick sobre a argumentação fundada em consequências. Para isso, faz-

se necessário uma breve digressão acerca do instrumento previsto no art. 27

da Lei nº 9.868/99 a fim de evidenciar a tendência hodierna do alargamento

seu uso e da crescente feição política que essa técnica de decisão vem

assumindo. Destaca-se que essa ferramenta pode ser determinante,

especialmente nas discussões em matéria tributária, para o impacto que o

entendimento do STF acarreta sobre a carga fiscal, o consumo e a renda de

dezenas de milhões de contribuintes, nos julgamentos das causas tributárias.

Em um segundo momento, analisando as decisões dos RREE nº

377.457 e nº 381.964, sobre a incidência da COFINS sobre as sociedades civis

de profissionais liberais, e os RREE nº 556.664, nº 559.882, nº 559.943 e nº

560.626, que deram origem ao enunciado da Súmula Vinculante nº 8, acerca

da inconstitucionalidade do prazo decenal de prescrição e decadência das

contribuições sociais, demonstra-se o perigo da não ou da má-utilização da

manipulação dos efeitos nos julgamentos das questões tributárias para os

direitos dos contribuintes.

Em seguida, explica-se a teoria de Neil MacCormick sobre a

argumentação fundada em consequências, revelando o projeto desse autor no

sentido de atribuir às consequências um importante fator a ser considerado por

ocasião da tomada de uma decisão jurídica.

Por último, propõe-se uma nova forma de analisar as noções de

razões de segurança jurídica e de excepcional interesse social em matéria

tributária, à luz da teoria de Neil MacCormick sobre a argumentação fundada

em consequências, bem como dos direitos fundamentais dos contribuintes,

para a aplicação do art. 27 da Lei nº 9.868/99.

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1. CONSIDERAÇÕES SOBRE A MODULAÇÃO DOS EFEITOS DAS

DECISÕES.

Estabelece o art. 27 da Lei nº 9.868/99 que, ao declarar a

inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de

segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo

Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os

efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu

trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

A razão de ser dessa técnica decisória do controle concentrado

diz respeito à tentativa de amenizar as consequências eventualmente gravosas

das decisões no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade, que

pudessem dissuadir o julgador de declarar a inconstitucionalidade de algum

dispositivo. Isso porque, em regra, pelo princípio da nulidade, a declaração de

inconstitucionalidade de uma lei tem efeitos ex tunc e implica na sua exclusão

do ordenamento jurídico como se nunca houvesse existido. Naturalmente,

situações consolidadas podem perder respaldo legal.

Na prática, o art. 27 permite um balanceamento entre o princípio

da nulidade e o princípio da segurança jurídica, a ser utilizado de forma

excepcional, somente quando a aplicação da regra geral implicar maior

distanciamento da vontade constitucional. Ao mesmo tempo, tem-se que o art.

27 em comento caracteriza a autorização legal para a utilização do argumento

consequencialista, assim entendido como justificação de acordo com a qual a

decisão faz sentido em relação ao mundo.

A despeito de ter sido idealizado para o controle abstrato de

constitucionalidade, o STF admitiu a sua extensão também ao controle

incidental, por ocasião do julgamento do RE nº 197.9172, envolvendo o número

2 RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MUNICÍPIOS. CÂMARA DE VEREADORES. COMPOSIÇÃO. AUTONOMIA MUNICIPAL. LIMITES CONSTITUCIONAIS. NÚMERO DE VEREADORES PROPORCIONAL À POPULAÇÃO. CF, ARTIGO 29, IV. APLICAÇÃO DE CRITÉRIO ARITMÉTICO RÍGIDO. INVOCAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA RAZOABILIDADE. INCOMPATIBILIDADE ENTRE A POPULAÇÃO E O NÚMERO DE VEREADORES. INCONSTITUCIONALIDADE, INCIDENTER TANTUM, DA NORMA MUNICIPAL. EFEITOS PARA O FUTURO. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL. 1. (...) 7. Inconstitucionalidade, incidenter tantun, da lei local que fixou em 11 (onze) o número de Vereadores, dado que sua população de pouco mais de 2600 habitantes somente comporta 09

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de vereadores do Município de Mira Estrela. Naquela oportunidade, aplicou-se

o art. 27 da Lei n 9.868/99 para diferir o início da eficácia da decisão, em

respeito aos mandatos dos então vereadores, estabelecendo-se que a nova

composição determinada não alcançaria aquela legislatura. A partir desse

caso, a Corte passou a admitir, de forma igualmente excepcional, a declaração

de inconstitucionalidade com efeitos ex nunc ou pro futuro também no controle

concreto, cumpridos os seus requisitos de a medida ser aprovada por dois

terços de seus membros e a presença das razões de segurança jurídica ou

excepcional interesse público.

Com efeito, a técnica em comento, aliada aos mecanismos de

vinculação dos precedentes jurisprudenciais no Brasil, de que são exemplos a

súmula vinculante, a súmula impeditiva de recursos, a repercussão geral e a

objetivação do recurso extraordinário, reforça ainda mais a influência que o

entendimento do STF tem sobre a carga fiscal, o consumo e a renda de

dezenas de milhões de contribuintes.

Fazendo uso dessa ferramenta, o STF pode, acolhendo os

argumentos ad terrorem da Fazenda Pública, determinar a cobrança de um

tributo de forma retroativa, na contramão de entendimento jurisprudencial

antigo e reiterado, ou impedir a repetição de indébito por parte do contribuinte,

quanto a tributos pagos tempestivamente e, após, declarados inconstitucionais.

Essas duas situações, amparadas pelas queixas orçamentárias, são a

preocupação que motivou o presente trabalho.

No próximo item, mostra-se a perversa manipulação dos efeitos

permitida pelo art. 27 da Lei nº 9.868/99 em dois casos, em detrimento dos

direitos fundamentais dos contribuintes e na contramão da proposta de Neil

MacCormick para a consideração das consequências por ocasião da

justificação das decisões judiciais.

representantes. 8. Efeitos. Princípio da segurança jurídica. Situação excepcional em que a declaração de nulidade, com seus normais efeitos ex tunc, resultaria grave ameaça a todo o sistema legislativo vigente. Prevalência do interesse público para assegurar, em caráter de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de inconstitucionalidade . Recurso extraordinário conhecido e em parte provido. (STF, RE 197917, Relator(a):  Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 06/06/2002, DJ 07-05-2004 PP-00008 EMENT VOL-02150-03 PP-00368)

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2. A MODULAÇÃO DOS EFEITOS NO JULGAMENTO DA COFINS SOBRE

AS SOCIEDADES CIVIS DE PROFISSIONAIS LIBERAIS E NO

ENTENDIMENTO QUE DEU ORIGEM À SÚMULA VINCULANTE Nº 8.

Na sessão de 17.09.2008, ao julgar os RREE nº 377.4573 e nº

381.964, o STF declarou legítima a revogação da isenção no recolhimento da

COFINS sobre as sociedades civis de prestação de serviços de profissão

legalmente regulamentada (prevista no art. 6º, II, da LC nº 70/91). Assim, à luz

do entendimento do Supremo, desde o advento da Lei nº 9.430/96, tais

sociedades deveriam ter passado a recolher a COFINS. Nos recursos,

sustentava-se que era ilegítima a revogação da LC nº 70/91 – que isentava a

cobrança – por uma lei ordinária (a Lei nº 9.430/96) que determinou a cobrança

quanto a tais sociedades civis.

O entendimento das recorrentes encontrava amparo no âmbito do

STJ, exigindo-se que somente lei da mesma espécie poderia revogar outra.

Deve-se destacar que havia o enunciado da Súmula de Jurisprudência do STJ

(nº 276: “As sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas

de COFINS, irrelevante o regime tributário adotado”) em vigor desde 2003, e

que embasava o não-pagamento.

Por essa razão, foi suscitada a possibilidade de modulação dos

efeitos, por analogia, em atenção ao disposto no art. 27 da Lei nº 9.868/99,

com vistas a que os efeitos da declaração de constitucionalidade fossem

prospectivos, de forma a impedir a cobrança por parte do Fisco

retroativamente. Por ocasião dos debates, o Min. Menezes Direito assim se

manifestou:

3 Contribuição social sobre o faturamento - COFINS (CF, art. 195, I). 2. Revogação pelo art. 56 da Lei 9.430/96 da isenção concedida às sociedades civis de profissão regulamentada pelo art. 6º, II, da Lei Complementar 70/91. Legitimidade. 3. Inexistência de relação hierárquica entre lei ordinária e lei complementar. Questão exclusivamente constitucional, relacionada à distribuição material entre as espécies legais. Precedentes. 4. A LC 70/91 é apenas formalmente complementar, mas materialmente ordinária, com relação aos dispositivos concernentes à contribuição social por ela instituída. ADC 1, Rel. Moreira Alves, RTJ 156/721. 5. Recurso extraordinário conhecido mas negado provimento.(STF, RE 377457, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2008, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008 EMENT VOL-02346-08 PP-01774)

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O que me preocupa muito, Senhor Presidente, são os efeitos dessa decisão no tocante às pessoas atingidas, porque se nós não admitirmos a possibilidade teórica de aplicar a analogia para determinar a modulação dos efeitos, nós podemos ter uma execução em cascata que pode gerar uma consequência extremamente gravosa.

Nada obstante, a votação desse ponto ficou empatada (cinco a

cinco), não atingindo o mínimo de dois terços dos Ministros necessário para a

modulação dos efeitos, embora o Min. Celso de Mello também tenha se

manifestado quanto à existência de “justas expectativas no espírito dos

contribuintes” quanto ao não-pagamento. Com isso, a decisão foi retroativa à

edição da Lei nº 9.430/96, e permitiu-se à Fazenda Pública cobrar o retroativo,

respeitado o prazo decadencial.

Aqui, percebe-se a inexistência de preocupação dos Ministros do

STF no que diz respeito às consequências jurídicas do julgamento em tela para

noção arraigada de “direitos fundamentais dos contribuintes”.

Nesse sentido, inclusive, vem em boa hora a sugestão do

Anteprojeto do Novo CPC, em cujo art. 847, inciso V, estabelece que

Art. 847. Os tribunais velarão pela uniformização e pela estabilidadeda jurisprudência, observando-se o seguinte:(...)V - na hipótese de alteração da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica;

Em um caso como o dos RREE nº 377.4574 e nº 381.964,

certamente esse dispositivo proposto garantiria que a mudança no

entendimento da questão somente teria efeitos prospectivos, impedindo a

4 Contribuição social sobre o faturamento - COFINS (CF, art. 195, I). 2. Revogação pelo art. 56 da Lei 9.430/96 da isenção concedida às sociedades civis de profissão regulamentada pelo art. 6º, II, da Lei Complementar 70/91. Legitimidade. 3. Inexistência de relação hierárquica entre lei ordinária e lei complementar. Questão exclusivamente constitucional, relacionada à distribuição material entre as espécies legais. Precedentes. 4. A LC 70/91 é apenas formalmente complementar, mas materialmente ordinária, com relação aos dispositivos concernentes à contribuição social por ela instituída. ADC 1, Rel. Moreira Alves, RTJ 156/721. 5. Recurso extraordinário conhecido mas negado provimento.(STF, RE 377457, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2008, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008 EMENT VOL-02346-08 PP-01774)

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cobrança retroativa de tributo, no caso concreto, até então tido por isento ou

não devido.

Seguindo por outra vertente, por ocasião do julgamento dos

RREE nº 556.6645, nº 559.882, nº 559.943 e nº 560.626, o STF aplicou a

modulação dos efeitos para conferir eficácia ex nunc à decisão sobre a

inconstitucionalidade dos arts. 45 e 46 da Lei nº 8.212/91, que estabeleciam o

prazo de 10 (dez) anos para a prescrição e decadência para as contribuições

sociais. Entendeu-se que tais dispositivos legais violavam o art. 146, inciso III,

alínea b, da CF/88, de acordo com o qual somente lei complementar pode

dispor sobre normas gerais em matéria tributária, especialmente sobre

prescrição e decadência tributárias, tendo em vista que as contribuições sociais

têm indiscutível natureza tributária, sendo espécie de tributo.

Com o entendimento adotado no sentido de conferir eficácia ex

nunc, consideraram-se legítimos aos recolhimentos efetuados antes de

11.06.2008 e não impugnados até a mesma data, seja pela via judicial, seja

pela administrativa. É dizer, o Fisco ficou livre de devolver as quantias

indevidamente cobradas e pagas à luz do entendimento de que tais prazos

eram de 10 (dez), e não de 05 (cinco) anos, para aqueles que não submeteram

contestação, na via judicial ou administrativa até a data do julgamento. Alguns

números chegaram a estimar que a União ficou livre de devolver aos

contribuintes cerca de R$ 12 bilhões já recolhidos com base no prazo

declarado inconstitucional6.

5 PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA TRIBUTÁRIAS. MATÉRIAS RESERVADAS A LEI COMPLEMENTAR. DISCIPLINA NO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. NATUREZA TRIBUTÁRIA DAS CONTRIBUIÇÕES PARA A SEGURIDADE SOCIAL. INCONSTITUCIONALIDADE DOS ARTS. 45 E 46 DA LEI 8.212/91 E DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 5º DO DECRETO-LEI 1.569/77. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO PROVIDO. MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. I. PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA TRIBUTÁRIAS. RESERVA DE LEI COMPLEMENTAR. (...) IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO PROVIDO. Inconstitucionalidade dos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/91, por violação do art. 146, III, b, da Constituição de 1988, e do parágrafo único do art. 5º do Decreto-lei 1.569/77, em face do § 1º do art. 18 da Constituição de 1967/69. V. MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA DECISÃO. SEGURANÇA JURÍDICA. São legítimos os recolhimentos efetuados nos prazos previstos nos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/91 e não impugnados antes da data de conclusão deste julgamento.(STF, RE 556664, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 12/06/2008, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-216 DIVULG 13-11-2008 PUBLIC 14-11-2008 EMENT VOL-02341-10 PP-01886) 6 Segundo reportagem do Jornal Valor Econômico de 13.06.2008.

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Assim sendo, somente lograram ser contemplados com a eficácia

retroativa (efeitos ex tunc), e, portanto, puderam obter o ressarcimento da

Fazenda Pública, aqueles que formalmente questionaram a cobrança. Não se

disciplinou a situação daqueles que, embora tenham se irresignado, obtiveram

resposta desfavorável já transitada em julgado.

Com efeito, não parece haver motivo razoável que justifique tal

distinção entre os que contestaram a cobrança do tributo e os simplesmente

pagaram para fins de submissão ou não dos indivíduos ao entendimento da

Corte Suprema sobre matéria constitucional. É critério arbitrário separar os

contribuintes dessa forma e isso implica grave afronta ao princípio da isonomia

tributária, na medida em que todos foram igualmente lesados pela aplicação de

lei inconstitucional. Tendo contestado ou não, todos os contribuintes que

pagaram as contribuições sociais com base nos arts. 45 e 46 da Lei nº

8.212/91, quando já prescritas ou decaídas, deveriam ser compensados com o

direito de receber de volta do Fisco.

A CF/88, art. 150, inciso II, é clara ao estabelecer que é vedado à

União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir tratamento

desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente. Trata-

se esse princípio de verdadeira garantia fundamental do contribuinte, de

observância obrigatória, não só por parte do legislador infraconstitucional e da

Administração Tributária, mas, igualmente, pelo Supremo Tribunal Federal

quando do julgamento de questões tributárias. Além de sua aplicação no

momento de instituição dos tributos, o princípio igualmente merece ser aplicado

na deliberação sobre a repetição do indébito tributário, como no caso vertente.

A propósito, lembre-se que o contribuinte tem direito à restituição

da quantia paga indevidamente a título de tributo. A modulação de efeitos em

prol da Fazenda Pública, tal como vem ocorrendo com frequência no âmbito do

STF, achincalha essa garantia e finda por estimular a edição de mais atos

legislativos criadores de obrigações tributárias inconstitucionais, na confiança

do Poder Público de que os efeitos de eventual decisão desfavorável por parte

do STF serão manipulados em prol da Fazenda Pública.

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É dizer, tais julgados implicam consequências graves à noção que

se tem sobre os direitos fundamentais dos contribuintes.

Vale salientar que no ensejo dos julgamentos dos RREE nº

556.6647, nº 559.882, nº 559.943 e nº 560.626, o STF também aprovou o

enunciado da Súmula Vinculante nº 8, in verbis: “São inconstitucionais o

parágrafo único do artigo 5º do Decreto-Lei nº 1.569/1977 e os artigos 45 e 46

da que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário”. A mesma

limitação temporal da decisão (efeitos ex nunc para os que não contestaram

até 11.06.2008), embora não contida de forma expressa, prevaleceu na ratio do

verbete, como se observa do item V do julgado.

Considerando os dois episódios expostos acima, resta

evidenciada, mais do que nunca, a importância destacada pela ordem jurídica à

modulação dos efeitos das decisões do STF em matéria tributária, bem como a

necessidade de se refletir sobre critérios para a correta aplicação do art. 27 da

Lei nº 9.868/99, considerando como principais as consequências para os

direitos fundamentais dos contribuintes, como se pondera no item a seguir,

com os apontamentos de Neil MacCormick, e no subsequente, onde são

propostos novos parâmetros sobre a questão.

3. A TEROIA DE NEIL MACCORMICK SOBRE A ARGUMENTAÇÃO

FUNDADA EM CONSEQUÊNCIAS.

7 PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA TRIBUTÁRIAS. MATÉRIAS RESERVADAS A LEI COMPLEMENTAR. DISCIPLINA NO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. NATUREZA TRIBUTÁRIA DAS CONTRIBUIÇÕES PARA A SEGURIDADE SOCIAL. INCONSTITUCIONALIDADE DOS ARTS. 45 E 46 DA LEI 8.212/91 E DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 5º DO DECRETO-LEI 1.569/77. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO PROVIDO. MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. I. PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA TRIBUTÁRIAS. RESERVA DE LEI COMPLEMENTAR. (...) IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO PROVIDO. Inconstitucionalidade dos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/91, por violação do art. 146, III, b, da Constituição de 1988, e do parágrafo único do art. 5º do Decreto-lei 1.569/77, em face do § 1º do art. 18 da Constituição de 1967/69. V. MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA DECISÃO. SEGURANÇA JURÍDICA. São legítimos os recolhimentos efetuados nos prazos previstos nos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/91 e não impugnados antes da data de conclusão deste julgamento.(STF, RE 556664, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 12/06/2008, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-216 DIVULG 13-11-2008 PUBLIC 14-11-2008 EMENT VOL-02341-10 PP-01886)

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No capítulo sexto de seu livro Retórica e Estado de Direito (Rio

de Janeiro: Elsevier, 2008), sob o título “Argumentação fundada em

consequências”, Neil MacCormick se propõe a refletir sobre a seguinte

questão: “Em que medida as decisões podem ser justificadas ou tornadas

corretas a partir de suas consequências?”.

Duas posições extremas se apresentam: 1) consideração de

todas as consequências, ainda que remotas, com vistas a produzir o “maior

benefício líquido”; e 2) total desconsideração das consequências, ainda que

próximas. A primeira alternativa exclui a possibilidade de justificação racional

das descisões, já que a cadeia de consequências é infinita. A segunda visão

“ignora a extensão em que a natureza e a qualidade das decisões e atos são

constituídas em si mesmas pelas consequências pretendidas, imaginadas ou

desejadas por aquele que decide”, bem como “ignora a extensão em que tanto

a prudência quanto a responsabilidade em relação aos demais exige que nós

prestemos séria atenção às consequências previsíveis de nossos atos e

decisões, antes de efetivamente praticá-las ou tomá-las, tanto mais quanto

maior for a importância do ato ou decisão em questão” (p. 136).

MacCormick dá atenção à posição intermediária: “um certo tipo de

raciocínio consequencialista tem importância decisiva na justificação das

decisões jurídicas” (p. 136). Isso porque as consequências podem ser

utilizadas para comparar possíveis decisões conflitantes, com vistas a concluir

qual delas poderia ser universalizada.

A primeira dificuldade está na extensão das consequências que

os julgadores devem considerar, especialmente porque as consequências

sociais são difíceis de calcular, especialmente no longo prazo. A segunda

dificuldade está na própria avaliação das consequências, a partir da definição

de critérios. MacCormick procura fugir dessas duas armadilhas.

É bem verdade que os argumentos consequencialistas implicam

necessariamente elementos avaliativos subjetivos. Contudo, para MacCormick,

é possível encontrar certa objetividade na hora de preferir uma ou outra

decisão, umas ou outras consequências.

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Explica MacCormick que, para se alcançar uma decisão

adequadamente justificada, é necessário atender as seguintes condições: 1)

adequação ao sistema jurídico (impossibilidade de contradizer regras jurídicas);

e 2) adequação ao mundo (coerência com as suas consequências). Na opinião

de MacCormick, a argumentação jurídica – dentro dos limites marcados pelos

princípios da universalidade, consistência e coerência – é essencialmente uma

argumentação consequencialista.

Nesse sentido, o juízo sobre as consequências promovidas ou

indesejadas deve estar adequado aos valores relevantes para o Direito em

aplicação, ainda que de forma implícita. É dizer, jamais uma consequência

pode ser utilizada para superar o direito do ordenamento ou, nas suas próprias

palavras, as “regras jurídicas validamente estabelecidas” 8. Se o julgamento

envolve o Direito Tributário, por exemplo, tem-se que os direitos fundamentais

dos contribuintes são valor essencial. Seguindo essa lógica, observa-se que a

prática do STF tem sido equivocada na ponderação das consequências das

decisões em matéria tributária, na medida em que tem considerado

preponderante o equilíbrio das finanças públicas.

Explica Neil MacCormick que exame das consequências é feito de

forma hipotética e, quanto mais provável seja sua ocorrência, maior deve ser o

peso dado a determinado resultado. As consequências são inevitáveis, assim

diz: “É, portanto, altamente provável que o resultado de certas decisões sobre

o Direito seja a produção de comportamentos que ou se conformem ou tirem

vantagens das oportunidades oferecidas por elas, ou, de outro modo, que

ajustem os negócios e as práticas de sorte a se conformarem a elas.” 9.

É bem verdade que as consequências a que MacCormick se

refere são as por ele chamadas de “jurídicas”, sob o sinônimo de “implicações

lógicas”. Assim, diferem do que se entende por resultado ou das

consequências fáticas ou práticas, como as econômicas ou sociais. O projeto

de MacCormick fica bastante claro quando dos seus comentários sobre o

julgamento R v. Dudley and Stephens, envolvendo dois náufragos que foram

condenados por homicídio após passarem vários dias em um bote à deriva e

8 MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 139.9 MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 147.

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matarem o auxiliar de cabine para comer sua carne. Como bem explica o

Professor Manuel Atienza, “o conceito de consequência, utilizado por

MacCormick, não coincide com o que se entende como tal na tradição

utilitarista” 10. Eis o sentido a que se refere o MacCormick11:

(...) para declarar um direito em particular (jus dicere) é necessário, no papel de juiz imparcial, declarar que tal direito está disponível em todos os casos semelhantes. Assim, como uma pessoa prudente e cautelosa, qualquer juiz deve olhar, dentre o conjunto de situações possíveis, qual terá que ser coberta, do ponto de vista jurídico pela sentença proposta. Tal consideração do conjunto de casos possíveis é necessária para uma avaliação adequada da aceitabilidade da decisão tomada no caso presente.

O exame das consequências é feito de forma hipotética e, quanto

mais provável seja sua ocorrência, maior deve ser o peso dado a determinado

resultado.

MacCormick reconhece que nem sempre a justificação das

decisões a partir de suas consequências é expressa nos acórdãos ou

verbalizada durante os julgamentos. Contudo, isso não quer dizer que o juízo

sobre elas não esteja presente. Em sua opinião, inclusive, esse juízo é

inevitável e faz parte de qualquer julgamento. Assim, pretende ele que as

decisões deveriam justificadas e a partir de um procedimento claro, como o por

ele sugerido e explicado supra.

Da teoria de MacCormick sobre a argumentação fundada em

consequências, o mais importante é captar que jamais o argumento

consequencialista pode ser empregado para superar as regras jurídicas

validamente estabelecidas, ao contrário do que vem ocorrendo no STF, como

já demonstrado no item anterior.

4. AS NOÇÕES DE RAZÕES DE SEGURANÇA JURÍDICA E DE

EXCEPCIONAL INTERESSE SOCIAL EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA.

10 ATIENZA, Manuel. As razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2006, p. 134.11 MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 142.

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Como cediço, a técnica decisória de modulação dos efeitos das

decisões, tem-se constatado, por vezes é recusada sem qualquer motivo ou é

rechaçada sob argumentos como as necessidades de desenvolvimento

econômico do país e de equilíbrio das finanças públicas.

Parte desse problema se deve ao fato de que o art. 27 da Lei nº

9.868/99 não definiu de forma clara os critérios para a modulação, tendo-se

valido das vagas expressões “segurança jurídica” e “interesse social”, dando

margem a que a decisão sobre o ponto assuma incontrolável feição política.

Esse fato assume feições contornos ainda mais graves nas demandas que

envolvem o direito tributário. Isso porque a correta modulação dos efeitos nas

causas tributárias é condição essencial para que sejam resguardadas as

garantias individuais dos contribuintes previstas na Constituição da República

de 1988.

Além disso, por outra vertente, vislumbra-se que o problema

também está relacionado ao modelo equivocado por intermédio do qual o STF

tem avaliado as consequências das suas decisões, por ocasião dos

julgamentos. Aqui, acredita-se, também, que a teoria jurídica ainda carece de

um modelo adequado no que diz respeito à ponderação sobre as

consequências práticas das interpretações jurídicas.

De forma pioneira, Neil MacCormick fornece algumas balizas

muito importantes que deveriam nortear a atuação do Supremo. Com base na

sua teoria, é possível criar um passo a passo para a utilização da

argumentação fundada em consequências. Em primeiro lugar, o juízo sobre as

consequências está sempre presente como etapa da tomada de decisão.

Consequentemente, a referida ponderação deve restar consignada. Em

seguida, tem-se que as consequências não podem ser utilizadas contra legem.

Nesse sentido, deve-se conscientizar para a necessidade de

colocar o contribuinte no centro das discussões, quando do julgamento de

causas tributárias, como titular de direitos fundamentais. Essa circunstância,

inclusive, já foi reconhecida pelo próprio STF, no ensejo do julgamento da

ADIMC nº 712, cuja ementa, por suas clareza e importância, transcreve-se na

sequência:

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AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI N. 8.200/91 (ARTS. 3. E 4.) - CORREÇÃO MONETÁRIA DAS DEMONSTRAÇÃOES FINANCEIRAS DAS PESSOAS JURIDICAS - REFLEXO SOBRE A CARGA TRIBUTARIA SOFRIDA PELAS EMPRESAS EM EXERCICIOS ANTERIORES - A QUESTÃO DAS LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR (TITULARIDADE, ALCANCE, NATUREZA E EXTENSAO) - "PERICULUM IN MORA" NÃO CONFIGURADO, ESPECIALMENTE EM FACE DAS MEDIDAS DE CONTRACAUTELA INSTITUIDAS PELA LEI N. 8.437/92 - Suspensão liminar da eficácia das normas impugnadas indeferida por despacho do relator. Decisão referendada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal. - O exercício do poder tributário, pelo Estado, submete-se, por inteiro, aos modelos jurídicos positivados no texto constitucional que, de modo explícito ou implícito, institui em favor dos contribuintes decisivas limitações a competência estatal para impor e exigir, coativamente, as diversas espécies tributárias existentes. Os princípios constitucionais tributários, assim, sobre representarem importante conquista político-jurídica dos contribuintes, constituem expressão fundamental dos direitos individuais outorgados aos particulares pelo ordenamento estatal. Desde que existem para impor limitações ao poder de tributar do estado, esses postulados tem por destinatário exclusivo o poder estatal, que se submete a imperatividade de suas restrições. - O princípio da irretroatividade da lei tributaria deve ser visto e interpretado, desse modo, como garantia constitucional instituída em favor dos sujeitos passivos da atividade estatal no campo da tributação. Trata-se, na realidade, a semelhança dos demais postulados inscritos no art. 150 da Carta Política, de princípio que - por traduzir limitação ao poder de tributar - e tão-somente oponível pelo contribuinte a ação do estado. - Em princípio, nada impede o poder público de reconhecer, em texto formal de lei, a ocorrência de situações lesivas a esfera jurídica dos contribuintes e de adotar, no plano do direito positivo, as providencias necessárias a cessação dos efeitos onerosos que, derivados, exemplificativamente, da manipulação, da substituição ou da alteração de índices, hajam tornado mais gravosa a exação tributaria imposta pelo estado. A competência tributaria da pessoa estatal investida do poder de instituir espécies de natureza fiscal abrange, na latitude dessa prerrogativa jurídica, a possibilidade de fazer editar normas legais que, beneficiando o contribuinte, disponham sobre a suspensão ou, até mesmo sobre a própria exclusão do crédito tributário. - Controvérsia jurídica em torno do tema delineada nas informações prestadas pela Presidência da Republica.(STF, ADI 712 MC, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, TRIBUNAL PLENO, julgado em 07/10/1992, DJ 19-02-1993 PP-02032 EMENT VOL-01692-02 PP-00265 RTJ VOL-00144-02 PP-00435)

Também na ADI nº 939, acerca da tentativa de instituição do

Imposto Provisório sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de

Créditos e Direitos de Natureza Financeira. Nessa oportunidade, consolidou-se

de forma definitiva o posicionamento no sentido de que as limitações ao poder

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de tributar constantes da CF/88 são garantias individuais dos contribuintes,

firma na interpretação conjugada dos art. 5º, § 2º, com o art. 60, parágrafo

único, inciso IV, ambos da CF/88.

Avançando nessa linha de raciocínio, na esteira dos comentários

do item anterior, defende-se que os direitos fundamentais dos contribuintes,

além de serem observados por parte do legislador infraconstitucional e pela

Administração Tributária, também devem ser contemplados pelos magistrados,

por ocasião dos julgamentos, especialmente no âmbito do STF, que detém a

última palavra sobre quaisquer discussões constitucionais.

Essa preocupação com os direitos fundamentais dos contribuintes

também é essencial quando do juízo de adequação da decisão judicial ao

mundo, momento em que são consideradas as possíveis implicações das

interpretações. No caso do STF, isso significa o momento de modulação dos

efeitos autorizada no art. 27 da Lei nº 9.868/99.

Igualmente, deve ser fortalecido o entendimento de acordo com o

qual o Estado deve reparar o dano causado ao contribuinte que foi obrigado a

recolher de forma indevida um tributo e, da mesma forma, abster-se de

proceder de modo contrário às justas expectativas criadas no âmbito da

confiança dos contribuintes.

Comentando a polêmica em torno dos efeitos retroativos da

declaração de inconstitucionalidade das normas tributárias, assim se posiciona

o Hugo de Brito Machado:

(...) sempre que a declaração de inconstitucionalidade resultar agravamento da situação do cidadão frente ao Estado, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade não podem retroagir. O destinatário das garantias constitucionais é o povo, que nelas encontra proteção contra o arbítrio estatal. No dizer de Linares Quintana, a Constituição tem por finalidade essencial garantir a liberdade, a dignidade e o bem-estar dos homens na sociedade, impondo limitações aos governantes.

Na aplicação do art. 27 da Lei nº 9.868/99, tem-se uma situação

clássica de autorização legal para argumentar com base nas consequências,

sendo esse raciocínio a maneira correta de aplicar essa norma jurídica.

Todavia, tanto a doutrina, como a jurisprudência, ao comentar o art. 27 da Lei n

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9.868/99, olvidam as reflexões sobre a necessidade de averiguar se os efeitos

da declaração são favoráveis ou não aos cidadãos.

Outrossim, a segurança jurídica e o interesse social que devem

preponderar são os que garantem a máxima efetividade das normas

constitucionais que versam sobre as limitações constitucionais ao poder de

tributar e que asseguram os direitos fundamentais dos contribuintes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Brasil, como em qualquer outro Estado que se pretenda

democrático de direito, é a Constituição da República que estabelece as

balizas da organização político-jurídica, fixando direitos e garantias aos

cidadãos e estabelecendo um conjunto de obrigações e de limitações, dentre

elas as que se referem ao poder de tributar.

A despeito de a cultura jurídica brasileira em matéria de tributos

ser excessivamente impositiva e de inexistir a conscientização do cidadão

sobre os seus direitos fundamentais como contribuinte, isso não significa que

os operadores do direito, especialmente os julgadores da Corte Suprema,

devam descuidar dos impactos que as decisões em matéria tributária

acarretam às centenas de milhões de brasileiros que pagam tributos.

No mínimo, deveria ser observada a proposta de Neil MacCormick

no sentido de que “um certo tipo de raciocínio consequencialista tem

importância decisiva na justificação das decisões jurídicas” 12. Nesse sentido, a

decisão deveria atender as seguintes condições: 1) ser adequada ao sistema

jurídico (impossibilidade de contradizer regras jurídicas); 2) ser adequada ao

mundo (coerência com as suas consequências)

A modulação dos efeitos das decisões em matéria tributária, nos

termos propostos, deve considerar os direitos de o contribuinte repetir o

indébito das quantias pagas a título de tributo de forma indevida, quando a

exação é declarada inconstitucional. Da mesma forma, em respeito às

12 MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 136.

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expectativas legítimas geradas na esfera da confiança do contribuinte, faz-se

imperiosa a determinação no sentido de que a Fazenda Pública se abstenha de

cobrar retroativamente tributos cuja isenção era amplamente reconhecida pelos

tribunais pátrios e que, somente muitos anos depois, o STF venha a afirmar

sua consonância com o Texto Constitucional. A desconsideração desses

aspectos na apreciação da manipulação dos efeitos das decisões em matéria

tributária, por qualquer motivo, não se coaduna com o desígnio aspirado pelo

texto constitucional.

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