a Arq Bras

Embed Size (px)

Citation preview

Livro 03 CONSERVAO E RESTAURO Arquitetura Organizao: Mrcia Braga Unidade 1 Histria e evoluo conceitual do restauro arquitetnico Mrcia Braga Unidade 2 O projeto de interveno em bens culturais imveis Cristina Coelho Unidade 3 Tcnicas construtivas nas alvenarias histricas, no Brasil Nelson Prto Ribeiro Unidade 4 Patologias nas construes histricas Rosina Trevisan Unidade 5 Tcnicas de restaurao Rosina Trevisan

1

Unidade 1 Histria e evoluo conceitual dos critrios do restauro arquitetnico Mrcia Braga DEFINIES Retirado de Recomendaes e Diretrizes para a adoo de princpios comuns sobre a conservao e restaurao do patrimnio cultural na Europa Apel (Acteurs du patrimoine europen et legislation - 2001). Conservao restauro A conservao-restauro deve ser definida como qualquer interveno direta ou indireta efetuada sobre um objeto ou monumento, para salvaguardar a sua integridade fsica e garantir o respeito pelo seu significado cultural, histrico, esttico e artstico. Esta definio condiciona a natureza, a extenso e limites das medidas que podem ser tomadas, assim como das intervenes que podem ser levadas a cabo no patrimnio cultural. Patrimnio Cultural Entende-se por patrimnio cultural todo aquele que sendo objeto, construo ou ambiente, a sociedade lhe atribua um valor especial, esttico, artstico, documental, ecolgico, histrico, cientfico, social ou espiritual e que constitua um patrimnio cultural essencial a transmitir s geraes futuras. Diagnstico O diagnstico compreende a identificao, a determinao da composio e avaliao das condies dos bens culturais; a identificao, a natureza e extenso das alteraes, a apreciao das causas da sua degradao e a determinao do tipo e extenso do tratamento necessrio, assim como o estudo das informaes existentes relacionadas.

2

Documentao A documentao compe-se de imagens e texto que retratem o historial de todos os processos efetuados e a exposio do raciocnio que ter estado por trs deles. Fazem parte dessa documentao, os documentos e relatrios de exame, a proposta de tratamento, o consentimento e observaes do proprietrio, os documentos e o relatrio ilustrativo do tratamento efetuado, assim como as recomendaes para intervenes futuras. Manuteno A manuteno deve ser definida como intervenes rotineiras visando manter a integridade dos bens culturais. Conservao preventiva A conservao preventiva consiste na realizao de intervenes indiretas visando o retardamento da degradao e impedindo desgastes pela criao de condies otimizadas para a conservao dos bens culturais de forma que essas medidas forem compatveis com a sua utilizao social. A conservao preventiva compreende tambm o tratamento correto, transporte, utilizao, acondicionamento em reserva e exposio. Pode tambm implicar questes que tenham a ver com a produo de rplicas com intuito de preservar os originais. Hoje temos conceitos definidos sobre como e o qu preservar, conservar e restaurar, fruto de experimentos e reflexes que se desenvolveram ao longo de sculos. As idias evoluem e as definies so abrangentes. O objetivo manter o original dentro da diversidade das manifestaes culturais. O desenvolvimento histrico do restauro arquitetnico na Europa - antes e depois do Iluminismo - duas propostas antagnicas (Violet-le-Duc e John Ruskin) - a definio de uma escola moderna de restauro no sculo XX (Camillo Boito, Gustavo Givannoni )

3

Cada poca e cada sociedade buscam e renegam o seu passado de acordo com a sua viso daquele momento. O reconhecimento de uma obra como produto cultural resultado desta conscincia histrica que, atravs do tempo seguiu uma trajetria, a qual resumiremos neste texto. Na poca do Renascimento h grande interesse pela cultura grega clssica e os artistas deste perodo inspiram-se na Antigidade grega para exprimir uma linguagem renovada. Era comum que edifcios que no prestassem mais para uso do momento fossem desmantelados para reutilizao de algumas partes, ou alterados para que melhor correspondessem aos padres estticos e necessidades vigentes. Contudo, havia tambm dentro deste contexto exemplos de obras nas quais os acrscimos eram removidos para que retornassem sua feio mais antiga, ou mesmos complementos que mantinham o aspecto original da edificao. Contradies de um tempo que j mostrava preocupao com a conservao de monumentos que eram considerados significativos. O sculo XVIII caracteriza-se pelo renovado interesse pela cultura clssica (movimento denominado de Iluminismo) que, atravs da difuso de livros e estampas, proporcionou maior conhecimento aos artistas e estudiosos da poca. As descobertas de Paestum, Herculano e Pompia, assim como o avano das pesquisas cientficas, contriburam para a crescente preocupao com a manuteno do patrimnio artstico e arquitetnico, bem como para um aumento no controle nas escavaes arqueolgicas. deste perodo o incio do turismo motivado pelo conhecimento de bens culturais. Em Roma, no sculo XIX iniciar a reavaliao dos monumentos arquitetnicos sob novos conceitos de anastilose1 e de reintegrao2, que ajudaram a cessar o perodo das espoliaes. Para o correto uso do mtodo de anastilose era necessrio um profundo conhecimento dos estilos arquitetnicos e algumas reintegraes foram executadas com materiais diferentes dos originais, seja no intuito de consolidar estruturas em perigo, seja como complementos estticos. Mas estas solues no foram quelas predominantes neste perodo.Anastilose - recomposio com partes originais do monumento, de forma identificvel a distncia. 2 Reintegrao - recomposio de partes faltantes de que no modifiquem o aspecto da obra.1

4

A influncia do historiador de arquitetura, escritor, desenhista e construtor francs Viollet-le-Duc (1814 1879) no restringiu-se ao seu pas. Este erudito colocava-se na posio do arquiteto criador da obra para justificar os complementos executados, na busca da composio de uma unidade estilstica arquitetnica. Devemos situlo historicamente para melhor compreender sua metodologia. A revoluo francesa ocasionou uma grande onda de vandalismo nos monumentos histricos. Estamos tambm em pleno movimento ecltico, onde todos os estilos arquitetnicos so utilizados. Falsos histricos criados por Violet-le-Duc so duramente atacados por John Ruskin (1819 1900), crtico ingls que depois de 20 anos de atuao de Viollet-le-Duc, surge com uma nova viso para conservao dos bens culturais. Ruskin acredita que as obras arquitetnicas no podem receber nenhum tipo de complemento e valoriza as runas a ponto de recomendar que projetos de arquitetura sejam pensados considerando tambm seu estado de conservao depois de alguns sculos. A influncia de seu pensamento mais difundida no incio do sculo XX, mostrando uma contnua oscilao de pontos de vistas, sempre parciais, pelo interesse na conservao dos bens culturais. Camillo Boito (1836 1914) assume na Itlia e uma posio intermediria entre Violet-le-Duc e Ruskin. Diante da complexidade da situao, Boito coloca os seguintes princpios no III Congresso de Engenheiros e Arquitetos de 1883, em Roma, para obras de restaurao arquitetnica: 1234567Diferena de estilo entre o novo e o velho. Diferena de material de construo. Supresso de perfis e ornamentos Mostra de pedaos velhos retirados, em local aberto e ao lado do monumento. Inciso em cada pedao renovado com a data do restauro ou com um sinal convencionado. Epgrafe descritiva incisa sobre o monumento. Descries e fotografias dos diversos perodos do trabalho, dispostas no edifcio ou num local prximo a ele, ou descrio publicada pela impressa. Notoriedade.

8-

Estes princpios nortearo uma nova lei italiana de 1902, que reformulada em 1909 (n.185), para a conservao dos monumentos e

5

objetos da antigidade e de arte. Em 1931, a Conferncia de Atenas ir adotar estes princpios para um plano internacional e Gustavo Giovannoni (1873 1947), acadmico seguidor de Boito, ir defender esses critrios que unificavam a arte do restauro e a colocava sobre base cientfica. Giovannoni amplia o conceito de conservao do monumento para conservao do seu entorno, o que lhe valeu uma crescente impopularidade perante a crescente especulao imobiliria. As Cartas Patrimoniais, frutos de encontros nacionais e internacionais que sero abordadas a seguir, mostraro o desenvolvimento destes princpios, adequados s diversas localidades e situaes. Algumas cartas patrimoniais Carta de Atenas 1930 Carta de Veneza 1964 Conferncia de Quito 1967 Carta Europia 1975

A Carta de Atenas (1931) reflete a preocupao internacional para com diretrizes comuns relacionadas conservao do patrimnio cultural mundial. Diante da diversidade dos casos, predominou uma tendncia para princpios gerais que dentre eles Cristina Coelho salienta os seguintes em sua dissertao de mestrado: As doutrinas e princpios gerais da restaurao, afirmando a particularidade de cada monumento no que se refere soluo proposta (cada caso merece uma anlise [ou ao] especfica); a utilizao dos edifcios monumentais de modo a garantir a continuidade de sua vida. A administrao e legislao dos monumentos histricos, consagrando o direito da coletividade sobre a propriedade privada e a necessidade de proteger os monumentos de interesse histrico, artstico ou cientfico, pertencentes s diferentes naes. A valorizao dos monumentos quanto ao entorno, garantindo a ambincia e as perspectivas principais. Os materiais de restaurao e a utilizao de materiais e tcnicas modernas, sem alterao do aspecto e do carter do edifcio a ser restaurado.

-

-

6

-

-

-

A deteriorao dos monumentos pelos agentes atmosfricos requer aprofundamento das pesquisas nas reas das cincias fsicas, qumicas e naturais. A tcnica da conservao deve ser definida a partir de anlises criteriosas das causas dos degrados. A conservao de monumentos e a colaborao internacional (,) definindo meios de cooperao tcnica e moral; definindo o papel da educao e o respeito aos monumentos, e a utilidade de uma documentao internacional para a prtica preservacionista de cada nao. anastilose dos monumentos da Acrpole.

A situao do ps-guerra europeu resultar num consenso explicitado atravs da Carta de Veneza (1964), que ratifica e desenvolve conceitos da carta anterior. Dezesseis artigos compem as resolues deste encontro, que resumiremos a seguir: O monumento inseparvel do meio onde se encontra. O entorno do monumento tambm deve ser mantido. A restaurao uma atividade interdisciplinar composta de: anlise histrica crtica ou arqueolgica da obra, contextualizao museolgica, avaliao tcnica de materiais que atuem na nova situao. O programa atual da edificao deve adequar-se a sua estrutura sem alter-la substancialmente, com uso de tcnicas modernas que devem ser reconhecveis. Conservar e revelar os valores estticos e assim respeitar as contribuies de todas as pocas, no objetivando uma unidade estilstica. Todo trabalho de reconstruo deve ser evitado, sendo recomendado somente a anastilose. A documentao dos trabalhos deve ser analtica, crtica e com fotografias. Tais relatrios devem tambm anteceder a restaurao.

-

-

-

A Conferncia de Quito (1967)3 procura adequar os princpios da Carta de Veneza s culturas latino americanas valorizando tambm o acervo sociolgico e o folclore nacional. Dentre as recomendaes

pases participantes: Brasil Equador, Estados Unidos da Amrica,, Guatemala, Espanha, Mxico, Peru, Repblica Dominicana e Venezuela.

3

7

propostas salientaremos aquelas que so mais especficas ao continente sul americano: investigao histrica nos arquivos espanhis e portugueses; que seja redigido novo documento substituindo o Tratado Interamericano sobre a proteo de bens mveis (1935), que seja capaz de reduzir os riscos do comrcio ilcito; que sejam criados cursos com bolsas de estudos para formao de pessoal capacitado conservao e preservao; que o turismo seja incentivado de forma a valorizar e desenvolver as localidades;

-

-

As funes dos Estados seriam de: ter uma legislao adequada preservao, que decises seriam tomadas por um rgo centralizado que contaria com uma equipe tcnica e com auxlio de especialistas estrangeiros; que planos nacionais de ao deveriam ser integrados regionalmente; que fomentasse uma conscincia pblica para preservao e conservao.

-

A Carta Europia do Patrimnio Arquitetnico (1975) reafirma a vontade de promover uma poltica comum e uma ao concentrada de proteo deste patrimnio, sendo estes os princpios: - o patrimnio europeu no formado somente dos monumentos mais importantes, mas tambm do conjunto de edifcios que constituem as cidades e os vilarejos tradicionais nos seus ambientes naturais ou construdos; - o testemunho do passado documentado pelo patrimnio arquitetnico constitui um ambiente essencial para o equilbrio e o desenvolvimento cultural do homem; - o patrimnio arquitetnico constitui um capital espiritual, cultural, econmico e social de valor insubstituvel; - a estrutura do conjunto de edifcios histricos favorece o equilbrio harmnico das sociedades; - o patrimnio arquitetnico tem um valor educativo determinante;

8

-

este patrimnio est em perigo; a conservao integrada minimiza a destruio e requer meios jurdicos, administrativos, financeiros e tcnicos; a colaborao de todos indispensvel para o sucesso da obra de conservao integrada o patrimnio arquitetnico constitui um bem comum deste continente.

No Brasil Antecedentes, a criao do SPHAN e seu desenvolvimento Compromisso de Braslia 1970 e outros que se seguiram A conjuntura atual a produo e a formao do profissional conservador-restaurador

A criao do SPHAN em 1936 (ento Secretaria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional) marca incio de um perodo de aes de preservao do nosso Patrimnio, que at este momento no contava com legislao adequada, nem com equipe tcnica competente. Houve tentativas anteriores de estabelecimento de leis principalmente estaduais, mas que no foram eficazes diante da inconstitucionalidade quando tratavam de propriedades particulares. O Ministro da Educao (1934-45) Gustavo Capanema encomenda a Mrio de Andrade um projeto para a criao de rgo que se ocupe da preservao do Patrimnio Nacional e este intelectual o elabora com uma estrutura que considera as diferentes manifestaes da cultura brasileira (arte arqueolgica, arte amerndia, arte popular, arte histrica, arte erudita nacional e estrangeira, artes aplicadas nacionais e estrangeiras). Para direo do SPHAN escolhido Rodrigo de Mello Franco de Andrade, fica no cargo de 1937 a 1967. Este perodo conhecido como a fase herica. Apesar do projeto de Mrio de Andrade abordar diversos segmentos culturais, a ao do rgo neste momento concentrou-se nas necessidades mais imediatas que eram de: inventariar bens mais significativos da nossa cultura, socorrer com urgncia alguns monumentos que encontravam-se em abandono e

9

introduzir a normalidade constitucional com a figura do tombamento.4 Renato Soeiro o segundo diretor do SPHAN, e permanece neste cargo de 1967 a 1979. O rgo passa a ser uma diretoria (DPHAN) e posteriormente a instituto (IPHAN). Em 1970 acontece o primeiro encontro nacional sobre Preservao do Patrimnio Histrico e Artstico, que resultou no Compromisso de Braslia que ressalta a necessidade de classificao de bens culturais de interesse nacional e regional (estados e municpios). Em 1976 so criadas diretorias regionais e a nova poltica de tombamento voltada para conjuntos urbanos. A criao de cursos para formao profissional de conservadores e restauradores tambm data desta poca. A Bahia sediou o segundo encontro, que resultou no Compromisso de Salvador (1971) que se orientou largamente para questes legais e financeiras relativas preservao de bens culturais. Outros encontros sucederam (p. ex.: Carta de Petrpolis em 1987 , Carta de Cabo Frio, 1989) que ressalvam a necessidade da participao da sociedade civil contra a especulao imobiliria. 5 Em 1992 h a Conferncia Geral das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente no Rio de Janeiro que estabelece princpios sobre desenvolvimento sustentvel, onde a proteo do meio ambiente dever constituir parte integrante do processo de desenvolvimento e no poder ser considerada isoladamente. Em 1995 O Documento Regional do Cone Sul expresso pela Carta de Braslia sobre Autenticidade. Estabelece que novos usos devero ser precedidos de um diagnstico para estudo de viabilizao, com elementos introduzidos reversveis e harmnicos. Atualmente o IPHAN desenvolve vrias parcerias, sendo estas algumas delas: com Ministrio da Cultura atravs do Pronac6, do Projeto Monumenta/BID7 de revitalao de centros urbanos e com o BNDES na conservao e restaurao de monumentos.

Saia, Lus. Revista Arquitetura n. 17, 1977. Coelho, Cristina. Dissertao de Mestrado (2003) 6 Pronac rgo que concede a permisso para iseno de impostos para financiamento de projetos culturais. 7 BID Banco Interamaricano de Desenvolvimento5

4

10

Algumas instituies mantm cursos de especializao e conservao e restauro, dentre eles o CECI8 de Pernambuco, o CECOR9 de Minas Gerias, o CECRE10 da Bahia, as Escolas Oficinas de Salvador11 e Joo Pessoa, a ABER12 em So Paulo. As Faculdades de Arquitetura e Urbanismo das Universidades Federais da Bahia, do Rio de Janeiro e de Pernambuco tm cursos de mestrado e doutorado na rea de conservao do patrimnio cultural. O panorama da conservao e restaurao de arquitetura no Brasil tambm reconhecido atravs dos congressos promovidos pela ABRACOR13, fundada em 1980. A profisso ainda no reconhecida pelo MEC, mas acreditamos que brevemente novas possibilidades de formao sero concretizadas. A iniciativa privada participa deste momento, ainda que as obras de restauro apresentem uma imprevisibilidade maior do que obras comuns e necessitem de um estudo prvio detalhado. Sendo assim, a legislao permite um percentual maior de ajustes de contrato para imprevistos. O que percebemos agora que h um interesse mais difundido sobre a questo da conservao do patrimnio em nosso pas e esperamos que com este breve resumo tenhamos contribudo para este fim.

8 9

CECI Centro de Conservao Integrada Urbana e Territorial CECOR Centro de Conservao/Restaurao de Bens Culturais

CECRE Curso de Especializao em Conservao e Restaurao de Monumentos e Conjuntos Histricos 11 Restaurao da Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus 12 ABER Associao Brasileira de Encadernao e Restauro 13 ABRACOR Associao Brasileira de Conservadores e Restauradores de Bens Culturais

10

11

Bibliografia APEL, Acteurs du patrimoine europen et lgislation, Ed. ECCO 2001. CESCHI, Carlo. Teoria del Restauro. Ed. Mario Bulzoni, Roma 1970. DUARTE, Maria Cristina Coelho. Palcio Anchieta o testemunho de uma transformao. Dissertao de mestrado defendida no Programa de Ps-Graduao em Arquitetura. Rio de Janeiro, FAUUFRJ, 2003 LEMOS, Carlos A . C.. O que patrimnio histrico. Ed. Brasiliense, So Paulo 1982. SPHAN/PR-MEMRIA. Proteo e revitalizao do patrimnio Cultural no Brasil: uma trajetria. Ed. Minc 1980. www.iphan..gov.br

12

Unidade 2 O PROJETO DE INTERVENO EM BENS CULTURAIS IMVEIS ARQUITETNICOS E URBANOS Cristina Coelho

1. INTRODUO O bem cultural imvel arquitetnico , talvez, o que apresenta maior complexidade no momento da elaborao do projeto de interveno. Neste caso, conservao fsica soma-se uma gama de fatores que nela interferem e que determinam suas diretrizes. A comear por sua condio de patrimnio cultural, dotado de significados e representaes, passando por sua utilizao - a adequao dos espaos antigos a novos usos, pela necessidade de atualizao ou, muitas vezes, de introduo de novas instalaes prediais que garantam a segurana e a possibilidade de um uso atual, at a definio de materiais e tcnicas atuais adequadas e compatveis aos presentes no edifcio. Alm dos fatores relativos ao programa de necessidades e s tcnicas construtivas depara-se, tambm e principalmente, com fatores histricos e tericos: o critrio da interveno - como garantir a manuteno da autenticidade do bem e a atualidade da interveno proposta? Como preservar a representao da memria coletiva atendendo a interesses individuais? Como eleger o que deve, ou no, ser mantido e preservado? Enfim, todos essas questes, entre outras, permeiam o projeto de conservao/restaurao do bem imvel. Quando se trata de projeto de interveno em espaos pblicos, as dificuldades so ainda maiores. Aos fatores de ordem fsica,

13

tcnica, histrica, terica e da utilizao agrega-se os fatores decorrentes da gesto urbana, da viabilizao da implantao, da mitigao dos impactos ambientais urbanos, das comunidades usuria e moradora, etc.. Tudo isso para dizer que os projetos de conservao e/ou restaurao arquitetnica e/ou urbanstica so projetos de grande

complexidade e devem, portanto, serem objetos de trabalho de equipes multidisciplinares, formadas por profissionais de vrias reas de conhecimento como de arquitetura e urbanismo, de arte, de engenharia, de arqueologia, de histria, de cincias sociais, etc.. Convenciona-se chamar a equipe dos projetos dessa natureza de Equipe de Restaurao. Mas, para o espao que todas as informaes convergem e se materializam a partir do trabalho do arquiteto. Cabe a ele a deciso e a conduo da interveno. No entanto, essa condio de detentor de poder , muitas vezes, sinistra ao arquiteto, que acaba por querer imprimir sua marca, colocando em risco a soberania do passado. A interveno no bem cultural requer discrio e honestidade. Os personagens principais so o passado, o presente e o futuro reunidos na histria e representados na memria. No entanto, o que se tem notado com o envelhecimento das cidades que, cada vez mais, o olhar preservacionista deve ser aplicado, seja pelos que preservam os testemunhos do passado seja pelos que constroem o presente e planejam o futuro. Cada imvel, cada canto de cidade, seja ele recente ou antigo, deve ser visto sob um olhar preservacionista, seja para manter, seja para eliminar, seja para modificar ou para introduzir o novo em qualquer contexto. A tarefa de

14

preservar o passado, construir o presente e planejar o futuro, tecendo o fio da histria, coloca os planejadores e executores das cidades na condio de missionrios.

2.

CRIAO

X

RESTAURAO/CONSERVAO

a

dualidade da preservao Quando se atua em preservao do patrimnio arquitetnico atua-se na esfera da dualidade entre o antigo e o novo, entre criar (inventar) e preservar (manter/conservar). Em arquitetura, o ato de criar pressupe a inveno de um novo elemento que vai coexistir, atravs de sua concretizao pela obra, com uma estrutura preexistente, seja ela antiga ou recente.

2.1. Projetando o novo O projeto de arquitetura para a construo de um novo edifcio nasce de um tema e quanto mais claramente este tema estiver delineado, mais facilmente o projeto ser determinado ou

desenvolvido, e o seu produto concebido melhor responder situao proposta. O tema a origem do projeto e dele derivam toda a sorte de aes necessrias elaborao do projeto. O tema , na verdade, a solicitao do cliente. Cabe ao arquiteto dar forma (soluo arquitetnica) ao tema proposto. A partir do tema, o primeiro passo do profissional arquiteto realizar a coleta de dados e elaborar o programa de necessidades. A coleta de dados compe-se da reunio de todas as informaes que dizem respeito ao terreno (dimenses, topografia, orientao solar e

15

elementos preexistentes vegetao, edificaes, etc.) e seu entorno (caractersticas do logradouro pblico, edifcios circunvizinhos, etc.); s exigncias espaciais concernentes ao uso proposto e aos usurios; s legislaes vigentes (PDU Plano Diretor Urbano -, Cdigos de Obras, Cdigos de Preveno e Combate a Incndio, etc.); aos materiais de construo e revestimento disponveis no mercado; s solues construtivas e tecnolgicas que respondam s necessidades do tema e garantam modernidade obra, etc. o conhecimento de todas essas informaes, somadas elaborao de um programa de necessidades coerente com o uso proposto, que permitem que o processo criativo se estabelea atravs da projetao. O programa de necessidades formulado a partir do uso proposto e se caracteriza pela relao dos espaos e metragens quadradas necessrios ao desenvolvimento das atividades propostas. O programa de necessidades deve ser organizado em forma de fluxograma de modo a facilitar e ordenar o raciocnio durante o processo de projetao. Figura 1 Exemplo de Programa de Necessidades - fonte: NEVES, 1989: 46 Figura 2 Exemplo de Fluxograma - fonte: NEVES, 1989: 68 Com esse conjunto de informaes o projeto ala vo at o momento da concepo, o momento em que se acredita ter encontrado a soluo, a partir da criao racional, para o problema arquitetnico que se delineou com a coleta dos dados e a formulao do programa de necessidades. o momento em que se caracteriza o objeto

16

arquitetnico, define-se a forma e organiza-se os espaos. Este o Estudo Preliminar. durante a fase de elaborao do Estudo Preliminar que o processo criativo se d com maior expresso, embora ele esteja presente em todas as fases do projeto podendo se manifestar, tambm, durante a execuo da obra. Mas, o momento mximo da criao no projeto de arquitetura o surgimento da forma, do objeto arquitetnico que vai se materializar a partir das solues tcnicas e da prpria execuo na obra. Esse objeto ser, de fato, um elemento novo na cidade e dever primar pelo carter de novidade, buscando convergir para si todos os olhares, seja pelo destaque seja pela integrao ao contexto. O Estudo Preliminar s se conclui, portanto, no momento em que os atores envolvidos cliente e arquiteto - se sentem plenamente satisfeitos com a proposta desenvolvida, que deve atender

satisfatoriamente o tema proposto. H casos em que se torna necessrio desenvolver vrios estudos at encontrar o que mais se adeqe s necessidades do tema e do cliente. Esta etapa do processo de projetao tem uma grande importncia no contexto do projeto como um todo. Afinal, um bom estudo preliminar a garantia de um bom projeto e, por conseqncia, de uma arquitetura de qualidade. Mas, a execuo da obra requer informaes tcnicas precisas. Assim, a partir da aprovao do Estudo Preliminar pelo cliente, partese para o desenvolvimento do projeto agregando-se todas as solues tcnicas necessrias boa compreenso do projeto, possibilitando, assim, sua aprovao nos rgos competentes. O produto dessa etapa denomina-se Projeto Bsico.

17

Uma vez aprovado o Projeto Bsico, parte-se para o que se chama de detalhamento. a etapa do Projeto Executivo, composto pelo conjunto de informaes necessrias ao pleno entendimento do edifcio proposto permitindo, assim, a correta execuo da obra. O Projeto Executivo implica no desenvolvimento de desenhos extremamente detalhados e especificados dos elementos

arquitetnicos como telhados, esquadrias, guarda-corpos, etc, e do assentamento dos materiais de acabamento, como pisos, revestimentos de paredes, forros, bancadas, etc. Alm dos desenhos, torna-se necessria a elaborao do Caderno de Especificaes Tcnicas e do Caderno de Encargos. O primeiro relaciona todos os materiais empregados na obra e o segundo descreve os procedimentos tcnicos necessrios realizao dos servios da obra. Para a elaborao desses documentos pode-se contar com o auxlio de catlogos de produtos e bibliografia tcnica disponvel no mercado. Todas as etapas descritas acima se estendem tambm aos Projetos Complementares de Engenharia (estrutural, instalaes prediais, combate a incndio e instalaes especiais), que devem interagir entre si sob a coordenao do arquiteto autor do Projeto de Arquitetura, de modo a garantir a compatibilidade dos diversos projetos, evitando, assim, problemas futuros na execuo da obra. Diante desse quadro, do conjunto de projetos e documentos que, juntos, possibilitam a execuo correta da obra, se poderia pensar que o trabalho dos profissionais projetistas foi concludo. Mas, isso no verdade. A fiscalizao da execuo da obra, por parte desses profissionais, de fundamental importncia. Ela , de fato, a garantia de que a obra ser executada conforme os projetos concebidos e aprovados. impressionante verificar como a cultura da construo

18

civil no Brasil a do retrabalho ou da ignorncia da informao. Como se no bastassem tantas informaes, os construtores muitas vezes se vm no direito de alterar definies de projeto visando minimizar custos ou facilitar (acelerar) o trabalho dos operrios que, em alguns casos, no so qualificados para o trabalho. H tambm que considerar que muitos profissionais - arquitetos, engenheiros e projetistas - deixam a desejar quanto disponibilidade de informaes bsicas e necessrias correta execuo da obra, dificultando, assim, o trabalho dos construtores. Este , portanto, o panorama do trabalho do arquiteto quando se trata de uma obra nova. Mas, quando se fala em obra de reforma e, mais especificamente, de conservao e de restaurao de edifcio de valor histrico reconhecido pelos rgos oficiais de preservao ou, ainda, da construo de um edifcio novo ou uma reforma em imvel localizado em rea de entorno de bem tombado, o contexto acima exposto se amplia consideravelmente ganhando maior complexidade.

2.2. O universo da conservao/restaurao materiais e mtodos O conjunto edificado e os espaos pblicos de valor histrico encontram-se dispersos na cidade e no campo, muitas vezes intercortados por elementos novos que registram, nas estruturas ambientais, o carter de temporalidade, demonstrando que passado e presente interagem continuamente. Garantir a permanncia das estruturas do passado sem, no entanto, impedir o surgimento de novas estruturas o desafio, cada vez mais presente, dos arquitetos planejadores e preservadores.

19

O edifcio antigo de valor histrico, ou o stio histrico, requerem intervenes, obviamente com a necessidade de mant-los aptos a abrigar as atividades humanas nos moldes atuais, que

garantam a manuteno dos suportes das representaes que atribuem a eles o especfico valor. H que salientar, aqui, que toda adequao de espaos preexistentes a novos usos tem limitaes que esses mesmos espaos impem, na medida em que, muitas vezes, no podem ser alterados. No entanto, a interveno no bem imvel arquitetnico de valor cultural pode dar-se de diversas formas. Embora o termo restaurao seja usado para a maioria das intervenes executadas nos bens culturais, o carter dessas intervenes no so, necessariamente, de restaurao. Pode-se classificar os tipos de interveno de preservao como sendo:

-

restaurao; Restaurao , naturalmente, o termo mais antigo e, por isso, o

mais conhecido. Atualmente, caracteriza-se por representar a interveno que devolve a unidade potencial da obra, que preenche as lacunas, que recompe a imagem.

-

conservao / consolidao;

Caracteriza-se pela interveno na matria de que se constituem os edifcios para garantir-lhes integridade fsica - estrutural ou esttica. Os materiais envelhecem e apresentam patologias que aumentam, em variedade e profundidade, devido aos nveis cada

20

dia mais altos de poluio ambiental, alm dos atos de vandalismo que vm, cada vez mais, sendo praticados contra os monumentos. Atualmente a cincia e a tecnologia oferecem uma srie de instrumentos de diagnose e medidas teraputicas capazes de reparar a matria danificada possibilitando ampliar, com isso, a vida dos edifcios. A necessidade de atualiz-los, atravs da introduo de novas instalaes prediais e de novos espaos necessrios a abrigar o programa de uso adequadamente, acarreta, em muitos casos, a necessidade de acrscimos de rea construda, seja pela introduo de entrepisos, quando os ps direitos preexistentes o permitem, seja pela criao dos chamados anexos novas construes acopladas ou no ao edifcio antigo.

-

Reconstituio

O processo de reconstituio mais conhecido a Anastilose. Caracteriza-se pela re-unio de fragmentos dispersos. Pompia expe vrias intervenes que da Anastilose se utilizaram.

-

Adaptao a novo uso

Tambm conhecida como retrofit, reciclagem ou reabilitao de espaos preservados. Trata-se da interveno que busca adaptar os espaos preexistentes para abrigar atividades diferentes para as quais eles foram projetados ou construdos. Esta uma prtica muito comum hoje em dia, uma vez que garante a permanncia do

21

edifcio sem o risco da sua obsolescncia, mantendo preservado, assim, o espao da cidade. Nesse tipo de interveno, a definio do novo uso deve ser feita com muito cuidado. Deve-se atentar para a vocao e as limitaes dos espaos antigos. Introduzir um novo uso que no se harmonize com essas caractersticas fadar o edifcio degradao acelerada.

-

reconstruo

a recriao de um edifcio desaparecido no local original. No entanto, esse um critrio bastante questionado atualmente, mas a opo por ele pode ser justificvel face a vrios fatores como, por exemplo, quando se tratar de edifcio que desempenhou papel vital em uma composio monumental; ou quando se tratar de edifcio relacionado a personagens ou eventos muito importantes para uma nao; ou qualquer outro motivo que o justifique. Porm, h que ressaltar a importncia da existncia de registros fidedignos que possibilitem tal reproduo. Existem casos em que a reproduo se deu a partir de suposies resultando em algo que no necessariamente era a reproduo do original.

-

rplica

Cpia exata de um original ainda existente. Os custos e dificuldades de produzir rplicas arquitetnicas tornam esse fenmeno muito raro. A prtica da rplica se aplica mais

22

comumente aos bens mveis. Em geral, as esculturas situadas em locais pblicos e sujeitas ao das intempries, poluio e vandalismo so substitudas por rplicas, e passam a integrar acervos museogrficos, como o caso da Esttua de David, de Michelangelo, em Florena (Itlia).

2.3. Projetando a preservao O projeto dessas intervenes segue, em princpio, as mesmas etapas do projeto de arquitetura de um edifcio novo. Mas, a cada etapa acrescenta-se novos elementos que devem ser considerados, investigados e aplicados. A comear pela coleta de dados que, no projeto de conservao/restaurao, tem outro nome, chama-se cadastramento. O cadastro um elemento comum no nosso dia-a-dia, trata-se do conjunto das informaes que caracterizam um determinado elemento. Em arquitetura e, mais especificamente, em preservao arquitetnica, o cadastro rene todas as informaes que caracterizam o objeto em voga. Integra, alm de todas as informaes listadas para a coleta de dados do Projeto de Arquitetura, o levantamento da histria do edifcio no seu aspecto arquitetnico, suas caractersticas originais e as alteraes que sofreu ao longo do tempo at chegar atualidade; o levantamento da histria dos usos e dos usurios; a identificao do grau de proteo a que o objeto da interveno sujeito; a representao da relao do edifcio no entorno; o levantamento arquitetnico - grfico e fotogrfico - atual; o relatrio do estado de conservao, das patologias e seus diagnsticos; o levantamento das exigncias dos rgos de preservao a que o edifcio est sob

23

custdia, e outros elementos que se mostrarem necessrios de acordo com as especificidades do objeto em questo. Nota-se, assim, que o cadastramento a coleta de dados somada a uma srie de informaes que permeiam o contedo histrico do bem e sua condio de representao da memria social e coletiva. Se, no Projeto de Arquitetura, a multidisciplinaridade do trabalho se manifesta na fase de elaborao do projeto, no Projeto de Conservao/Restaurao a multidisciplinaridade se apresenta

necessria desde a etapa de cadastramento. Nessa etapa j se deve contar com a presena, alm do arquiteto especialista em conservao/restaurao engenheiro(s) arquitetnica, em do historiador; do(s)

especialista(s)

conservao/restaurao

arquitetnica; do cientista social; do especialista em restaurao de arte; do arquelogo com experincia em arqueologia histrica; do antroplogo, etc. Outros profissionais podem se somar a essa equipe conforme a especificidade do tema proposto. A multidisciplinaridade do trabalho ganha, a cada etapa, mais personagens. medida que o projeto avana, cresce a necessidade de agregar profissionais especializados nas diversas reas da conservao. A etapa de cadastramento uma etapa relativamente longa e trabalhosa, se compararmos com a etapa de coleta de dados do Projeto de Arquitetura. Ela segue princpios e mtodos que, uma vez respeitados, garantem maior fidelidade das informaes. A fidelidade das informaes coletadas o primeiro passo para a caracterizao correta do problema arquitetnico e, portanto, para a definio de sua soluo ideal. Mas, o conhecimento especfico, a experincia e a sensibilidade dos profissionais envolvidos so condio sinequanon

24

para a definio de uma interveno que, alm de consolidar e reforar a importncia do monumento, agrega-lhe valor. importante observar que a etapa de cadastramento no se conclui por completo. Muitas vezes h que se dar por encerrada essa etapa mesmo quando ainda no se tem resposta para algumas perguntas. O que se deve tentar, no entanto, exaurir as possibilidades e formular hipteses coerentes e fundamentadas na pesquisa efetuada. medida que os projetos vo sendo desenvolvidos e as obras vo sendo executadas, podem surgir novas informaes, que devem ser consideradas e, caso necessrio, deve-se alterar a proposta de interveno. muito comum interromper obras de

restaurao/conservao devido ao aparecimento de um dado novo, e conseqente necessidade de interpret-lo e definir para a reconduo ou no das diretrizes do projeto. Toda nova informao extrada, durante a execuo das obras, sobre as caractersticas originais e as transformaes do edifcio devem ser registradas tanto em forma de dados do cadastramento quanto de Relatrio de Acompanhamento de Obra. A elaborao do Relatrio de Acompanhamento de Obra uma tarefa importantssima para a garantia do fiel registro da interveno. Vencida a etapa de cadastramento, embora com limitaes, parte-se para a elaborao da Proposta de Interveno, em nvel de Estudo Preliminar. A Proposta de Interveno prescinde de escolhas sobre o que manter e como manter; o que retirar e como retirar, e o que acrescentar e como acrescentar. No entanto, as escolhas que se fazem necessrias, quando se trata de projetos de interveno arquitetnica em bens de interesse histrico-cultural, devem ser exaustivamente investigadas e fundamentadas de modo a minimizar os riscos de se cometer crimes ao patrimnio cultural, de mutil-lo.

25

Nesse momento, o arquiteto deve curvar-se ao antigo e respeitar sua superioridade. Assim, o novo proposto, quando necessrio, no pode e no deve, sob nenhuma hiptese, concorrer com a estrutura preexistente reconhecida como detentora de valor histrico, muito menos confundir o leitor quanto ao momento da sua introduo. Este aspecto do trabalho , na verdade, o grande vilo desses projetos. O lema marcar a interveno vem sendo interpretado de maneiras muito diversas. Desde propostas que introduzem elementos que se integram com o antigo sem, no entanto, roubar-lhe a cena, ao mesmo tempo que so verdadeiramente atuais, at propostas que, para se mostrarem atuais, se fazem de solues que no se destacam do conjunto e concorrem fortemente com o antigo. Integrar-se com o antigo no significa reproduzir as representaes presentes no antigo, mas estabelecer uma relao harmnica em ritmo, proporo e forma com a estrutura preexistente.

2.4. O papel do novo e do antigo no tecido urbano Embora se tenha feito a distino, durante o desenrolar desse item, do enfoque de projeto do edifcio novo para o do edifcio antigo ou do edifcio novo inserido em stio ou conjunto histrico, importante dizer que, na verdade, toda interveno na cidade, seja ela obrigatoriamente comprometida ou no com a estrutura preexistente que a envolve, necessariamente comprometida com essa estrutura. Seja para refor-lo, seja para contrap-lo, o entorno do bem objeto da interveno deve sempre ser considerado. E, cada vez mais, os arquitetos devem projetar e intervir na cidade com o olhar de preservadores e construtores do suporte (abrigo) da cultura.

26

3.

O PROJETO E A OBRA DE CONSERVAO/RESTAURAO Os projetos de restaurao so momentos potencialmente

interessantes de realizao de um efetivo resgate da histria do bem e da sociedade que o construiu. O processo de recuperao, conservao, habilitao ou restaurao de um bem imvel envolve uma srie de etapas, conforme comentado brevemente no item anterior, que sero aqui melhor detalhadas. Essas etapas podem ser apresentadas conforme demonstrado abaixo:

3.1.

Cadastramento

a) Pesquisa histrica e iconogrfica; A pesquisa histrica e iconogrfica tem papel fundamental na definio das diretrizes de projeto, mas uma das etapas mais difceis de se realizar, face disperso em que se encontram os registros histricos. A pesquisa histrica deve ser construda a partir de diversas fontes de informao: os registros oficiais (certides, escrituras, decretos, plantas, etc.); a reviso bibliogrfica (pesquisa na bibliografia disponvel); a iconografia histrica (fotos, desenhos, ilustraes antigas, etc.); a histria oral (o que contado por antigos moradores, por membros da famlia dos proprietrios, etc.); os artigos jornalsticos, peridicos e outras fontes possveis. Como se pode notar, a pesquisa histrica trata-se de um trabalho complexo e requer, portanto, a presena de um profissional da rea especfica trabalhando em conjunto com o arquiteto. Muitas vezes, encontra-se na bibliografia existente, ou nas entrevistas executadas, informaes contraditrias. Nesses casos, no se deve excluir nenhuma das verses at que se consiga comprovar qual a que procede. H casos em que a pesquisa simplesmente no consegue elucidar as dvidas que surgiram. A pesquisa histrica requer, portanto, interagir com outras pesquisas na busca do conhecimento pleno do edifcio ao longo de sua existncia. Assim, o levantamento arquitetnico, junto com as plantas

27

histricas que foram encontradas, servir de base para a interpretao da evoluo do edifcio ao longo do tempo, desde a sua fundao at os tempos atuais. Esse trabalho de anlise deve gerar como fruto o que se chama de plantas cronolgicas o registro grfico em planta e em elevao que ilustra as alteraes, devidamente datadas, que o edifcio sofreu ao longo de sua vida. Mas, muito da histria do Brasil j se perdeu, e com ela foi, tambm, a histria dos seus personagens, sejam eles humanos ou materiais. Dessa forma, h que se lanar mo da pesquisa arqueolgica. A arqueologia alimenta a pesquisa histrica e atravs da produo de conhecimento a partir dos remanescentes da cultura. A arqueologia histrica tem contribudo muito para a elucidao de fatos histricos, especialmente no que se refere aos remanescentes arquitetnicos e urbanos. Figura 3 Planta cronolgica da Igreja de So Joo Batista de Carapina-ES. Desenho da autora, 1993 (ufba) b) Levantamento arquitetnico detalhado; O levantamento arquitetnico destinado ao registro grfico de um edifcio de importncia histrica realizado a partir de mtodos especficos que permitem maior preciso na medio, permitindo o registro fiel das irregularidades e imperfeies que o edifcio apresenta e, tambm, dos detalhes dos elementos arquitetnicos, integrados e ornamentais presentes no edifcio. Antes do incio dos trabalhos de levantamento deve-se fazer uma vistoria preliminar para verificar quanto segurana de acesso ao imvel e, se necessrio, tomar as providncias cabveis de modo a permitir o acesso seguro dos tcnicos da equipe de projeto. Para a realizao do levantamento arquitetnico utiliza-se, alm da trena, prumos, mangueiras de nvel, nvel de bolha e outros instrumentos de leitura e documentao que se fizerem necessrio. Materiais que, aparentemente, so utilizados apenas nas obras tm sua utilizao antecipada para a etapa de cadastramento. Em muitos casos torna-se necessrio, tambm, lanar mo de trabalhos de topografia, especialmente para um registro fidedigno do terreno. As medies devem ser precedidas da realizao de croquis que permitam o registro das informaes a serem coletadas e oriente os trabalhos. A partir da, deve-se definir os nveis de medio, a partir dos quais sero tomadas as medidas horizontais e verticais. Os nveis so marcados com o auxlio de mangueiras de nvel ou com teodolitos (equipamentos utilizados para medies topogrficas).

28

Para minimizar as possibilidades de erros, recomenda-se que as medidas horizontais de cada pavimento sejam tomadas todas em um mesmo nvel, uma vez que as paredes antigas, muitas vezes, apresentam desaprumos. Considerando essa possibilidade, muito comum por sinal, a tomada das medidas em alturas diferentes num mesmo pavimento, somada s perdas correspondentes catenria da trena, aumentam em muito a possibilidade de erros. Outro cuidado que se deve ter ao tomar as medidas horizontais de triangular. Cada compartimento deve ser medido em todos os lados e nas diagonais necessrias para formar tringulos. Esta tcnica permite o registro grfico das angulaes existentes entre as paredes, normalmente diferentes de 90 ou, como costumem dizer, fora de esquadro. As medidas verticais devem ser tomadas todas a partir do nvel que foi determinado no incio do levantamento, de forma a permitir registrar corretamente os desnveis, to comuns, nos pisos e forros e/ou tetos. Alm disso, todas as medidas devem ser tomadas com o auxlio de prumo, evitando que elas sejam registradas incorretamente. Ao tomar as medidas, tanto horizontais quanto verticais, devese evitar mover a trena desnecessariamente para medidas consecutivas. Ou seja, para medir horizontalmente todos os trechos de uma parede que contm vrios vos, deve-se fixar a trena com o zero em um canto e as medidas devem ser tiradas de forma acumulada, registrando-se a leitura da trena a cada trecho at o fim da parede. Para tirar as medidas verticais, fixa-se o zero no nvel preliminarmente marcado em todo o pavimento e processa-se a leitura acumulada at o teto e, depois, at o piso. Figura 4: Planta de levantamento da Capela de So Joo Batista de Carapina-ES. Desenho da autora, 1993 (ufba) Todos os elementos arquitetnicos devero ser medidos tomando-se os mesmos cuidados acima relatados. Para o levantamento desses elementos so utilizados tambm rguas rgidas, nveis de bolha, paqumetros e outros instrumentos de preciso. Utiliza-se, ainda, para auxlio nas medies, o recurso da fotografia, no entanto, deve-se tomar alguns cuidados para evitar possveis equvocos. Recomenda-se adotar tcnicas de fotogrametria14.

- Tcnica de determinao das curvas de nvel, nos levantamentos cartogrficos, por meio de pares de fotografias tiradas simultaneamente por duas cmaras mantidas a distncia constante uma da outra. (in Novo Dicionrio Aurlio Editora Nova Fronteira)

14

29

Alm do registro da planta, cortes e fachadas, torna-se necessrio o registro dos materiais de revestimento e dos sistemas construtivos. Para tanto, orienta-se criar simbologias para os diversos materiais encontrados no edifcio de modo a registrar esses aspectos. Dessa forma, costuma-se produzir duas plantas baixas de levantamento: a planta cotada com o registro de todas as medidas feitas in loco e a planta falada que demonstra os materiais e os sistemas construtivos. O levantamento arquitetnico permite, alm do registro da configurao atual do edifcio, a identificao de alteraes realizadas no bem. de extrema importncia que o levantamento seja acompanhado pelo arquiteto especialista, que deve observar com ateno cada detalhe do edifcio e avaliar, a partir do conhecimento em arquitetura e em tcnicas construtivas tradicionais, a integridade do bem. b) Levantamento fotogrfico minucioso; O edifcio deve ser registrado fotograficamente ou por outros meios que permitam a visualizao do seu aspecto anteriormente obra de interveno. O registro fotogrfico deve abranger todos espaos internos, todas as fachadas e todos os elementos arquitetnicos, integrados e ornamentais, alm de detalhes da estrutura, da cobertura, das instalaes, etc. O registro fotogrfico deve mostrar, tambm, a insero do edifcio no seu entorno. O levantamento fotogrfico deve ser, preferencialmente, organizado em forma de fichas fotogrficas, onde o elemento fotografado identificado em planta, assim como o ngulo da foto. A ficha fotogrfica deve conter, alm da planta de identificao do elemento, todos os dados relativos ao filme e tomada da foto, assim como observaes relativas ao contedo da foto. Figura 5: Ficha Fotogrfica da Capela de So Joo Batistia de Carapina, ES. Desenho da autora, 1993 (ufba) c) Vistoria do estado de conservao e das patologias; Assim como as medidas, o estado de conservao deve ser minuciosamente verificado e relatado. O relatrio do estado de conservao deve ser organizado por grupos de elementos construtivos e deve se utilizar de todos os recursos necessrios para ilustrar as patologias identificadas (desenhos, fotos, etc.). d) Mapeamento de danos

30

O mapeamento de danos o registro grfico, o mais fiel possvel, do estado de conservao e das patologias identificadas no edifcio. Para tanto, deve-se criar uma simbologia para determinar cada uma das patologias encontradas, como perdas de materiais de revestimento; lacunas em alvenarias e outros elementos construtivos; irregularidades em esquadrias, telhados, etc.; rachaduras; desnivelamentos, etc. O mapeamento de danos deve ser feito em escala adequada que permita a compreenso. Por exemplo, o mapeamento de danos das alvenarias pode ser feito na escala de 1/50, mas o mapeamento de danos de esquadrias j deve ser desenvolvido em escala maior (1/20, 1/10, etc.) de modo a permitir a melhor representao dos degrados. Figura 6: Corte com Mapeamento de Danos da Capela de So Joo Batista de Carapina, ES. Fonte: COELHO, 1993 (ufba) Figura 7 Perspectiva de levantamento da Capela de So Joo Batista de Carapina, ES. Fonte: COELHO, 1993 (ufba) e) Diagnstico do Estado de Conservao O edifcio antigo como um paciente que apresenta sintomas de degradao e/ou patologias que devem ser corretamente diagnosticadas para que se possa buscar solues que evitem definitivamente, ou retardem bastante, a reincidncia do problema. O Diagnstico do Estado de Conservao deve ser feito com base no relatrio do estado de conservao e no mapeamento de danos, buscando identificar as causas dos degrados neles registrados. Para tanto, a investigao deve considerar todo o universo que envolve o bem cultural como os fatores climticos; as caractersticas do solo; as edificaes do entorno; as intervenes urbansticas; os atos de vandalismo; as formas de utilizao do bem; as caractersticas da construo original e das intervenes que a sucederam; etc. f) Prospeces arquitetnicas e arqueolgicas O edifcio contm, nele prprio, muitas informaes, aparentemente ocultas, a respeito de suas configuraes e usos passados. Muitas informaes podemos extrair, entretanto, a partir da atenta observao. Mas, para que se possa realizar uma pesquisa mais profunda, torna-se necessria a realizao de prospeces pesquisas realizadas no prprio bem -, que devem seguir os critrios de uma pesquisa arqueolgica.

31

A Arqueologia a cincia que estuda o homem atravs da sua cultura material, e tem se revelado eficaz no trabalho de recuperao histrica, no s para suprir a ausncia de dados bibliogrficos, mas tambm para dialogar com os documentos escritos existentes. Pode-se dizer que a arqueologia a grande ferramenta para a produo do conhecimento sobre a cultura material. A realizao de prospeces arquitetnicas e arqueolgicas devem ser precedidas e orientadas por um Projeto de Arqueologia (ver item 3.2), que pode ser implantado em etapas dada diversidade de situaes em que se encontram os bens imveis. A situao ideal, porm, tanto para a pesquisa arqueolgica quanto para o projeto de restaurao, que a primeira possa ser realizada integralmente antes da elaborao do segundo. Mas, isso nem sempre possvel face s razes diversas, especialmente em decorrncia de o imvel estar em uso. Figura 8: Desenhos de arqueologia de Anchieta. IPHAN: 1998:

3.2.

O Projeto de Arqueologia

O Projeto de Arqueologia, como j foi dito, pode ser desenvolvido e executado em etapas, e objetiva complementar a pesquisa histrica, produzindo novos conhecimentos a respeito do bem. Conhecimentos que esto ocultos por revestimentos de pisos e paredes podem ser revelados atravs da arqueologia, que, muitas vezes, responsvel por grandes contribuies para a construo histrica dos bens culturais.

32

As etapas do Projeto de Arqueologia15 so: Etapa I A Avaliao do Potencial Arqueolgico a) Elaborao do Projeto de Prospeces Arqueolgicas b) Execuo das Prospeces Arqueolgicas Etapa II - A Pesquisa Arqueolgica a) Elaborao do Projeto de Pesquisa Arqueolgica b) Execuo da Pesquisa Arqueolgica Etapa III - A Utilizao dos Vestgios Etapa I A Avaliao do Potencial Arqueolgico A Etapa I ocorre no perodo de elaborao dos projetos e , portanto, anterior s obras civis deles advindas. Nesta etapa a Arqueologia dever gerar novos conhecimentos sobre o bem e cruzlos com os provenientes da pesquisa histrica para poder auxiliar nas definies do Projeto de Restaurao. a) Elaborao do Projeto de Prospeces Arqueolgicas Esta fase tem o objetivo de definir quais reas e elementos da edificao devero ser escavados ou prospectados pela Arqueologia. Esta definio de responsabilidade da Equipe de Restaurao. Os pontos de partida, necessariamente, sero os dados advindos das pesquisa histrica e do levantamento arquitetnico que, de preferncia, devero ter sido realizadas antes dos trabalhos de Arqueologia. Quando possvel, devero ser utilizados outros mtodos de investigao que auxiliem no diagnstico do bem, como por exemplo a utilizao de GPR - ground penetration radar ou radar de solo - esta ferramenta de trabalho de extrema valia tanto para a os objetivos da Arqueologia, quanto para os da Arquitetura, pois ela- extrado do Manual de Arqueologia Histrica em Projetos de Restaurao. IPHAN, Monumenta/BID, 2001 (verso Preliminar)15

33

detecta anomalias no solo e nas paredes, anomalias estas que indicam a presena de, por exemplo, estruturas arquitetnicas ou esqueletos enterrados e vos emparedados. b) Execuo das Prospeces Arqueolgicas a execuo do Projeto de Prospeces Arqueolgicas. Toda a execuo da pesquisa dever ser orientada pelo Arquelogo Coordenador da pesquisa e acompanhada pelo(s) Arquiteto(s) Responsvel(is) pelo levantamento e projeto arquitetnicos. Ao final dos trabalhos dever ser apresentado, pelo arquelogo coordenador da pesquisa, o Relatrio Final. Caso a Equipe de Restaurao determine, poder ser necessrio que Relatrios Parciais sejam produzidos. As reas escavadas no devero ser preenchidas at que se confirme seu destino dentro do Projeto de Restaurao do bem, no que se refere exposio, ou no, dos vestgios arqueolgicos aps a concluso das obras. A deciso da Equipe de Restaurao nortear os trabalhos que devero ser realizados conforme as recomendaes da Etapa III.

Etapa II - A Pesquisa Arqueolgica A Etapa II s ser realizada se os resultados obtidos durante a Etapa I indicarem para a necessidade de complementao e aprofundamento das pesquisas arqueolgicas. Caso positivo, a Etapa II poder ser realizada na seqncia da Etapa I, durante o desenvolvimento dos projetos e anterior s obras civis previstas no projeto de restaurao propriamente dito ou, se isso no for possvel, durante a realizao das obras civis, com a finalidade de complementar as pesquisas iniciadas na Etapa I. No caso de ser

34

realizada durante as obras, faz-se necessrio que os cronogramas das diferentes atividades estejam coordenados, objetivando o bom andamento dos trabalhos. Dessa forma, a Equipe de Restaurao dever definir o cronograma ideal a ser cumprido, priorizando as pesquisas arqueolgicas nas primeiras etapas da obra. No decorrer das escavaes arqueolgicas estaro sendo produzidos dados que venham a inovar ou confirmar/refutar os extrados da pesquisa histrica. O resultado desta produo o enriquecimento das bases de formulao para a elaborao do projeto arquitetnico da interveno a ser executada. a) Elaborao do Projeto de Pesquisa Arqueolgica A partir do resultado da Etapa I (Avaliao do Potencial Arqueolgico) e do Anteprojeto de Arquitetura, ser elaborado o Projeto de Pesquisa Arqueolgica, produto desta fase. Este projeto ter o objetivo de aprofundar os conhecimentos produzidos na Etapa I. A elaborao do Projeto de Pesquisa Arqueolgica dever ser coordenada por arquelogo com experincia em Arqueologia Histrica e dever contar, necessariamente, com a participao do Arquiteto responsvel pelo desenvolvimento do projeto arquitetnico de interveno, bem como de todo o restante da Equipe de Restaurao. Esta interdisciplinaridade fundamental para que a execuo das atividades das diferentes reas do Projeto de Restaurao se desenvolvam harmoniosamente. Este Projeto dever ser levado anlise e aprovao dos rgos de preservaes competentes. b) Execuo da Pesquisa Arqueolgica a execuo do Projeto de Pesquisa Arqueolgica. O Arquelogo Coordenador da pesquisa dever sempre contar com o acompanhamento do Arquiteto responsvel pelo projeto arquitetnico e de tcnicos dos rgos fiscalizadores. Esta fase da pesquisa poder ser executada antes ou durante o perodo de realizao das obras de restaurao. Ao final dos trabalhos dever ser apresentado, pelo Arquelogo Coordenador da pesquisa, o Relatrio Final. Caso a

35

Equipe de Restaurao determine, poder ser necessrio que Relatrios Parciais sejam produzidos. As reas escavadas no devero ser preenchidas at que se confirme seu destino dentro do Projeto de Restaurao do bem, no que se refere exposio ou no dos vestgios arqueolgicos squisa aps a concluso das obras. A deciso da Equipe de Restaurao nortear os trabalhos que devero ser realizados conforme as recomendaes da Etapa III.

Etapa III - A Utilizao dos Vestgios A Etapa III acontece aps a concluso das etapas anteriores e a forma de sua realizao depende da deciso, pela Equipe de Restaurao, quanto incorporao, ou no, dos vestgios

evidenciados pela pesquisa arqueolgica ao uso do bem. Esta incorporao se d atravs da exposio dos vestgios evidenciados pelas pesquisas, em parte ou integralmente. Neste caso, o trabalho de arqueologia, nesta etapa, visa ou a proteo dos vestgios expostos na pesquisa e posterior preenchimento das reas escavadas, caso seja definido pela no exposio dos vestgios; ou a consolidao e o agenciamento desses vestgios para ficarem expostos

permanentemente, caso seja definido pela exposio dos mesmos. Cada uma dessas etapas, conforme exposto acima, s poder ser realizada a partir de um projeto previamente definido e aprovado pelos rgos competentes. A execuo desta Etapa est diretamente ligada proposta de implementao do uso no Projeto de Restaurao, definido no Projeto de Arquitetura a partir dos resultados das Etapas I e II. Ela derivar em duas situaes distintas: a integrao dos vestgios arqueolgicos

36

ao uso do bem e a no integrao dos vestgios arqueolgicos ao uso do bem. A primeira prescinde da deciso, por parte da Equipe de Restaurao, de garantir no projeto a exposio dos vestgios arqueolgicos aps as obras, integrando-os s estruturas e aos espaos resultantes da interveno. A segunda prescinde da deciso, tambm por parte da Equipe de Restaurao, da no exposio dos vestgios arqueolgicos aps as obras. Neste caso, eles serviram para produzir conhecimento sobre o bem, mas no devem permanecer expostos seja pela incompatibilidade com o uso proposto, seja pela pouca importncia que tm no contexto histrico do bem.

a) A integrao dos vestgios arqueolgicos ao uso do bem: Esta integrao pode ser total culminando na implantao de um Museu-Stio Arqueolgico, como o criado na Igreja de Nossa Senhora da Assuno (Anchieta/ES), cuja Equipe de Restaurao optou por expor quase a totalidade das estruturas expostas. Ou parcial, quando a Equipe de Restaurao optar por exposio parcial dos vestgios, como no caso do forno da primeira Casa da Moeda do Brasil, que permaneceu exposto no Pao Imperial (Rio de Janeiro/RJ). Em ambos os casos fundamental que a Equipe da Restaurao avalie a necessidade da elaborao de projetos especficos, tais como: exposio sobre as Pesquisas Arqueolgicas no Projeto de Restaurao; drenagem e consolidao dos vestgios que permanecero expostos; agenciamento; museografia; sinalizao e comunicao visual; luminotcnica; manual de conservao do Museu-Stio Arqueolgico; educao patrimonial;

37

-

e outros.

b) A no integrao dos vestgios arqueolgicos ao uso do bem: Neste caso as reas escavadas devero ser forradas com telas plsticas (ou tiras de plstico) e posteriormente preenchidas com sedimento.

3.3.

O Projeto de Restaurao Arquitetnica/Urbanstica

Aps a concluso do cadastramento e da primeira etapa da pesquisa arqueolgica Avaliao do Potencial Arqueolgico -, quando esta se fizer necessria, parte-se para o desenvolvimento do Projeto de Restaurao Arquitetnica ou Urbanstica que, por sua vez, tambm desenvolvido em etapas, como j mencionado no item 2 e detalhado abaixo: a) Definio das Diretrizes Projetuais A partir do conhecimento das teorias de restauro e das Cartas Patrimoniais; da experincia anterior em projetos de restaurao e do conhecimento aprofundado do bem objeto da interveno e seus graus de proteo, deve-se definir as diretrizes projetuais. Trata-se de definies preliminares quanto aos critrios da interveno o que manter; o que remover; como manter; como remover; o que acrescentar; como acrescentar; etc. b) Definio do uso e do programa de necessidades A escolha do uso e a construo de um programa de necessidades devem basear-se nas caractersticas do bem. O edifcio antigo, construdo para determinado uso, apresenta limitaes para abrigar usos atuais, no entanto, torna-se necessria a adaptao, desde que esta no venha a prejudicar o edifcio destituindo-o de suas caractersticas principais. Alm disso, um edifcio sem uso corre srios riscos de sofrer degradaes aceleradas e ficar fadado ao arruinamento, face permanente falta de conservao/manuteno. O uso no edifcio antigo a garantia de sua conservao. Embora o edifcio em uso, muitas vezes, no receba a conservao ideal, seja por falta de recursos financeiros seja por desconhecimento dos procedimentos recomendados para a limpeza e o reparo das estruturas e elementos arquitetnicos, ele , bem ou mal, mantido.

38

H usos que no so recomendados a determinados edifcios antigos. Assim, torna-se fundamental a experincia da equipe de restaurao e a sua capacidade de avaliar a vocao dos espaos antigos, para que se evite introduzir usos inadequados, que, muitas vezes, podem mais danificar que contribuir para a conservao desses edifcios. Definido e fundamentado o uso, parte-se para montagem de um programa de necessidades, que vai, por sua vez, demonstrar a necessidade, ou no, de criao de anexos aos edifcio antigo. O programa de necessidades deve ser agrupado por setores, possibilitando o estudo dos fluxos e de como esses setores podem ser distribudos e organizados no edifcio e nos anexos, quando estes se fizerem necessrios. c) Proposta de Interveno A definio da Proposta de Interveno requer uma grande intimidade entre a Equipe de Restaurao e o bem objeto da interveno. Quanto maior for essa interao, tanto da equipe, quanto dela com o edifcio, maiores sero as possibilidades de sucesso na definio da Proposta de Interveno. Desenvolver a sensibilidade para perceber o que o prprio monumento expressa sobre si o grande desafio desse trabalho. Alm dos fatores intrnsecos ao monumento, outros devem ser considerados no momento da Proposta de interveno, como a relao da comunidade local com o referencial da memria coletiva; a relao do edifcio com o entorno; etc. Toda e qualquer proposta que integra a Proposta de Interveno deve ser profundamente fundamentada e justificada. Nesse tipo de projeto, o gosto do arquiteto ou da equipe de restaurao no pode e nem deve prevalecer em detrimento da manuteno dos suportes e representaes da memria, que expressam a cultura atravs de dcadas e at de sculos. J nessa primeira etapa, deve-se submeter o projeto, em nvel de Estudo Preliminar, anlise prvia dos rgos de preservao competentes. Dessa forma, o projeto ser desenvolvido a partir de definies consensuais entre equipe de restaurao e rgos de preservao. As demais etapas do projeto - Projeto Bsico de Arquitetura; Projetos Bsicos Complementares de Engenharia; Projeto Executivo: detalhamento dos projetos de arquitetura e complementares, Caderno de Especificaes e Caderno de Encargos seguem os mesmos princpios e mtodos de um projeto para um edifcio novo. Os fluxogramas apresentados a seguir demonstram

39

como as etapas de cadastramento e projetos se estruturam e se relacionam16.

- Foram construdos a partir das informaes contidas no Manual para Elaborao de Projetos Bsicos de Arquitetura do Programa Monumenta/BID e IPHAN.

16

40

Estudos e Projetos

Projeto Bsico de Restaurao do Patrimnio Edificado

Levantamento e Diagnstico

Projeto Bsico de interveno

Projeto Executivo de Restaurao

Levantamento planaltimtrico e mtrico arquitetnico

Pesquisa Histrica

Memorial Descritivo

Projeto Arquitetnico

Memorial Descritivo

Especificao de materiais e servios

Planta Situao

Planta Locao

Descrio, anlise tipolgica e arquitetnica

Descrio e anlise do contexto

Proposta de interveno

Proposta Tcnica Todas as plantas necessrias.

Projetos Arquitetnicos

Projeto do mobilirio urbano com especif. e detalhamento

Planta Baixa

Fachadas

Inventrio dos bens artsticos, mveis e integrados

Proposta de reutilizao ou mudana de uso

Especificao de materiais e tcnicas

Planta Situao e locao

Cortes

Planta Cobertura Projetos Complementares Planta Baixa

Detalhes Fachadas e Cortes Documentao fotogrfica Prospeces arquitetnicas e arqueolgicas

Planta de Cobertura

Diagnstico Detalhes

Figura 1 - Fluxograma das etapas de Projeto Bsico de Restaurao. Fonte: Construdo a partir das informaes contidas no Manual de Apresentao de Projetos de Preservao do Patrimnio Cultural (IPHAM -

41

Monumenta/BID)

42

Estudos e Projetos

Projeto de Interveno em espaos pblicos urbanos protegidos

Diagnstico

Projeto Bsico

Projeto Executivo

Projetos Complementares

Anlise ambiental do stio

Levantamento da rea de entorno

Planta Situao

Planta geral da rea de interveno

Dimensionamento e detalhamento definitivo dos elementos integrantes do projeto Memoriais descritivos e justificativos de clculo

Tabelas contendo especificaes tcnicas e quantificao de materiais e servios Planta geral da rea de interveno com cotas de nvel compatveis com os projetos Projeto do mobilirio urbano com especif,. e detalhamento

Planta geral da rea de entorno

Plantas alternativas propostas

Anteprojeto de paisagismo (vegetao pavimentao e mobilirio)

Levantamento planialtimtrico da rea de interveno

Levantamento da populao usuria e ativd. econmicas

Anteprojeto de programao visual

Anteprojeto do sistema virio

Projeto de paisagismo com detalhamento e especificao da vegetao e elementos construtivos Projeto de programao visual com especif. e detalhamento

Planta Situao

Planta planialtimtrica e cortes da rea de interveno Planta com indicao do paisagismo e do mobilirio existente Levantamento fundirio

Planta com informao da infraestrutura existente e proposta

Memorial descritivo

Projeto de interveno no sistema virio e de transporte com especif. e detalhamento

Planta representando as edificaes e infraestrutura existente

Levantamento das condies ambientais urbanas

Projeto de sinalizao vertical e horizontal conforme padro municipal ou estadual vigente

Levantamento da legislao urbanstica

43 Figura 2 - Fluxograma das etapas de Projeto de Interveno em Espaos Pblicos construdo a partir do Manual de apresentao de Projetos de Preservao do Patrimnio Cultural (IPHAN, Monumenta/BID)

3.4.

A obra de conservao / restaurao e suas surpresas

A obra de restaurao apresenta determinadas particularidades que a distinguem de uma obra civil para um novo edifcio ou para a reforma de um edifcio que, em princpio, no tem implicaes preservacionistas. A primeira etapa de uma obra de conservao/restaurao deve ser, obviamente aps a montagem do canteiro de obras, contemplada pelos servios de proteo dos elementos considerados de valor arquitetnico e artstico; pelos servios de proteo das reas de risco e criao de acessos seguros e pelos servios de complementao das pesquisas arqueolgicas. Em seguida deve-se buscar executar os trabalhos de consolidao estrutural e cobertura fundamental que o imvel seja imediatamente protegido e que as causas dos degrados sejam cessadas. A partir da seguem os trabalhos nas alvenarias, reviso ou introduo das instalaes prediais, recuperao das esquadrias, pisos, forros, elementos integrados, etc. Alm de apresentar uma organizao de etapas diferenciada da obra nova, a obra de conservao e restaurao apresenta uma diferena ainda maior em relao quelas obras. Trata-se das surpresas que tanto amedrontam os empreiteiros responsveis. Embora, durante a fase de cadastramento, procura-se eliminar todas as dvidas em relao s caractersticas do bem objeto da interveno, isso nem sempre possvel. Na verdade, isso , na maioria das vezes, impossvel. Sempre haver novidades que devero ser consideradas e, se for necessrio, o projeto dever sofrer alterao. Quando se trata de bem cultural, nenhuma informao a respeito de sua memria poder passar despercebida. H que lembrar sempre que o momento da obra , em princpio, nico e deve, portanto, ser valorizado como a oportunidade mxima de recuperao, consolidao e construo da memria cultural. A grande dificuldade desse aspecto esbarra na forma de contratao das obras pelo setor pblico, sob a Lei 8.666 que regula os processos licitatrios. Esta lei estabelece, entre outras coisas, que ganha a concorrncia quem oferecer o menor preo global da obra, desde que atendidas todas as exigncias estabelecidas no Edital de Licitao. Este o primeiro dificultador do processo, uma vez que a prtica o enxugamento generalizado dos preos por parte das empresas concorrentes visando ganhar a licitao. Essa prtica dificulta qualquer manobra de recursos no momento em que as surpresas se manifestam e apontam para a necessidade de alterao do escopo da obra.

44

Essa dificuldade fica aparentemente minimizada face possibilidade de aplicao de aditivos na ordem de 50% do valor contratado. Este percentual s se aplica para obras de restaurao. As outras modalidades de servio podem ser aditivadas em at 25% do valor contratado. Alm da dificuldade acima relatada, outro fator que incide sobre a qualidade das obras de restaurao / conservao a pouca disponibilidade, no mercado, de mo-de-obra qualificada para a execuo de servios dessa natureza. O fato de uma empresa ser certificada para esse tipo de obra no garante que ela tenha nos seus quadros profissionais qualificados para esse trabalho. muito comum as empresas subempreitarem servios com profissionais externos aos seus quadros. Uma alternativa de evitar grandes transtornos em obras dessa natureza contratar por etapas, reduzindo, assim, os escopos dos contratos e possibilitando um melhor monitoramento dos eventos na obra. No entanto, quando se trata de uma obra do setor pblico, muitas vezes, isso no possvel. Embora o panorama parea ser desanimador, a realidade que a nossa sociedade est caminhando para alternativas que devero auxiliar grandemente nos processos de recuperao do patrimnio urbano e arquitetnico de valor histrico/cultural. Trata-se das iniciativas de qualificao profissional para profissionais da rea da construo civil para atuar no restauro, alm de pesquisas que busquem desenvolver metodologias especficas de oramentao desse tipo de obra, minimizando ainda mais as defasagem dos preos dos servios de restaurao e de conservao. Relatrio de Acompanhamento de Obra Uma obra de conservao / restaurao deve ser completa e fielmente registrada. Todos os servios devem ser relatados e ilustrados em detalhes e, se necessrio, registrados graficamente. O produto desse registro o Relatrio de Acompanhamento de Obra que deve conter, alm do registro dos procedimentos na obra, o registro das novas descobertas em relao ao edifcio; das alteraes de projeto delas proveniente e das atas das reunies de fiscalizao.

45

Este documento se traduz em documento da memria e, portanto, da histria do bem objeto da interveno, devendo ser material de pesquisa para futuras intervenes tanto no prprio edifcio para o qual foi gerado, quanto em outros edifcios. O Relatrio de Acompanhamento de uma determinada obra pode auxiliar na pesquisa de outro edifcio histrico com caractersticas semelhantes, fornecendo bases para o conhecimento dos sistemas construtivos e de outras caractersticas comuns entre eles.

As Built Aps concluda a obra de conservao / restaurao deve-se fazer o as-built, que se caracteriza por ser o registro grfico do edifcio aps as intervenes executadas, ou seja, de como o edifcio ficou depois da obra. Sobre isso, seria natural pensar que o projeto elaborado a partir do qual a obra foi executada dispensaria a necessidade de um registro ao seu final. Isso pode at acontecer nos casos em que obra seguiu risca tal projeto e no apresentou surpresas. Situao esta quase impossvel. Como relatado ao longo do texto, com base em experincia prtica em vrias intervenes, uma obra de conservao / restaurao sempre vai apresentar novidades. So muitos elementos ocultos que s se revelam a partir de procedimentos cirrgicos como o caso de uma interveno fsica no bem cultural imvel arquitetnico ou urbano.

46

Estudos e Projetos

Obra de Restaurao

Servios tcnicos e profissionais

Servios preliminares

Procedimentos de execuo

Servios gerais

Sondagens/ensaios

Estudos e projetos

Aprovaes, licenas e alvars

Instalao canteiro de obras

Prospeces, remoes demolies e protees especiais Remoes/ demolies

Arqueolgicas Andaimes e escoramentos Protees especiais Cobertura povisria

Fundaes/estruturas

Arquitetura/urbanismo

Instalaes hidro-sanitrias

Instalaes eltricas e eletrnicas

Fundaes / estrutura

Instalaes mecnicas

Instalaes, preveno e combate a incndio

alvenarias estruturais de vedao

Oramento/cronograma especificaes

Maquetes e fotos consolidao/ estabilizao

revestimentos

Pisos

Vos, quadros e fechamentos

Ferragem

Coberturas, forros e beirais

Escadas, grades e guarda-corpos

Muros, arrimos e caladas

Tratamento de pintura e impermeabilizaes

47

Instalaes prediais e urbanas

Figura 3 - Fluxograma das etapas de obra de restaurao construdo a partir do Caderno de Encargos de Obras de Restaurao (IPHAN,

3.5. A implementao do uso Aps a concluso da obra, o uso deve ser imediatamente implementado. Quando isso no acontece, e o imvel permanece fechado por vrios anos at a obteno de recursos para implementar o uso, a degradao passa a representar uma ameaa, considerando que imvel sem uso imvel sem conservao e, portanto, fadado ao declnio. A situao ideal a em que o edifcio, uma vez recuperado, seja devolvido ao circuito da vida urbana ou rural, ou seja, que ele abrigue imediatamente um uso que seja compatvel com suas caractersticas e com o projeto que foi desenvolvido e nele executado. O que ocorre, em algumas situaes, que o projeto prev uma determinada utilizao e, quando a obra concluda, o edifcio j est destinado a outro uso. Isso muito comum em edifcios de uso pelas administraes de governo nas diferentes instncias, onde se fazem presentes as constantes oscilaes polticas. 3.6. A conservao preventiva A conservao preventiva a garantia de prolongamento da vida til dos edifcios e dos espaos pblicos. No entanto, os procedimentos adequados de conservao dos edifcios antigos no so do conhecimento da maioria da populao, especialmente da populao que utiliza grande parte desses imveis. So pessoas de baixo poder aquisitivo e baixo grau de instruo. Esse ltimo aspecto , talvez, o maior vilo desse patrimnio cultural. Muitos edifcios antigos abandonados nas reas centrais de cidades acabam por ser invadidos por populao carente que atua de forma predatria em relao ao edifcio. Mas, no apenas essa populao com baixo grau de instruo e baixo nvel de renda que comete crimes contra o patrimnio, toda a sociedade responsvel pela degradao desse patrimnio, na medida em que ignora o valor de antigidade e sobrevalora o valor de novidade, num processo constante de substituies de materiais antigos por novos, sob a justificativa da durabilidade e da facilidade de manuteno e conservao. Mas o usurio de um edifcio antigo de valor histrico e cultural tem, por obrigao, contribuir para a conservao preventiva desse bem. A conservao preventiva abrange desde estabelecimentos de posturas e comportamentos adequados para com o patrimnio at procedimentos de limpeza e reparos que no venham a interferir negativamente nas caractersticas dos elementos e materiais construtivos.

48

Recomenda-se que em todo processo e interveno em bens imveis de interesse histrico e cultural seja produzido, ao final, um Manual de Conservao. O Manual de Conservao se destina ao usurio do imvel e deve, portanto, ser elaborado com linguagem acessvel s pessoas que no possuem conhecimento tcnico. Deve conter informaes relativas ao imvel caractersticas histricas, arquitetnicas e construtivas, assim como todos os procedimentos de limpeza e de reparos rotineiros necessrios no imvel. Deve conter, tambm, todos os cuidados de comportamento que devem ser tomados em relao ao edifcio. a disseminao da prtica da conservao preventiva que vai, com toda certeza, garantir a permanncia e transmisso dos suportes da memria histrica s geraes futuras.

49

BIBLIOGRAFIA COELHO, Cristina. Capela de So Joo Batista de Carapina. Trabalho desenvolvido para aquisio de ttulo de Especialista em Conservao e Restaurao de Edifcios Histricos pelo CECRE/UFBA em 1993. FITCH, James M. Preservao do Patrimnio arquitetnico. So Paulo: FAUUSP, 1981. 64p. ilus. 28 cm. IPHAN. Manual de Arqueologia Histrica em Projetos de restaurao. (COORDENAO: Rosana Najjar). Braslia: Grupo Tarefa/IPHAN (verso preliminar) IPHAN. Manual de Apresentao de Projetos de Preservao do Patrimnio Cultural. Braslia: Grupo Tarefa/IPHAN Programa Monumenta/BID, 2002. (verso preliminar) IPHAN. Caderno de Encargos de Obras de Preservao do Patrimnio Cultural. Braslia: Grupo Tarefa/IPHAN Programa Monumenta/BID, 2002. (verso preliminar) IPHAN. Anchieta A restaurao de um santurio. (org. Carol de Abreu). Rio de Janeiro: IPHAN-6 CR, 1998. NEVES, Laerte Pedreira. Adoo do Partido na Arquitetura. Salvador: Centro Editorial e Didtico da UFBA, 1989. - Programa Monumenta/BID, 2001.

50

Unidade 3 TCNICAS CONSTRUTIVAS DAS ALVENARIAS HISTRICAS, NO BRASIL. Nelson Prto Ribeiro

1. INTRODUO. O conhecimento das tcnicas construtivas das edificaes histricas fundamental para a escolha dos procedimentos adequados a serem utilizados na conservao/restaurao destas edificaes. Sabe-se que no apenas para a compreenso do processo de degradao das fbricas construtivas e de um diagnstico preciso, mas tambm para a consolidao das mesmas, o procedimento histrico sempre mais adequado do que o fornecido pelas modernas tecnologias com raras excees pois oferece, de maneira geral, maior compatibilidade entre o que oriundo do original e o que provm da interveno.

A carta patrimonial de Veneza releva j, no seu artigo 10, a primazia das tcnicas tradicionais sobre as tcnicas modernas, sendo que estas ltimas s deveriam ser empregadas como ltimo recurso17. Na verdade, esta pr-disposio da dcada de 30 j antev a tendncia atual de se encarar os monumentos histricos como repositrios de um saber fazer ligado Arte de Construir, fruto do acmulo de experincias e do esforo sucessivo de geraes passadas de tcnicos e artesos, de forma a que aos tradicionais valores estticos, histricos, arquitetnicos, urbansticos do monumento, seja tambm acrescentado um valor tecnolgico. Este valor tecnolgico consistiria, de acordo17

Carta de Veneza maio de 1964. in: I. Cury (org.). Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro : IPHAN, 2000. p.93.

51

com Mateus, no valor das solues tcnicas espelhadas nas intenes, na construo e na execuo das alteraes de um edifcio18.

Por outro lado, um conhecimento adequado das tcnicas construtivas empregadas em uma determinada edificao aliado ao conhecimento histrico sobre as mesmas e sobre os materiais de construo, extremamente valioso para a datao desta obra e pode prestar importantes contribuies para a filiao da mesma. Os arquelogos, ajudados pelos historiadores da arquitetura, j h algum tempo utilizam-se desta prtica.

Entretanto, as escolas de arquitetura e engenharia relegaram a um segundo plano o estudo das tcnicas tradicionais e centraram os seus esforos acadmicos nas tcnicas contemporneas em especial o concreto armado e a tecnologia do ao - de forma que profissionais da construo chamados a opinarem sobre o resguardo dos monumentos histricos encontram muitas vezes dificuldades por desconhecerem a linguagem com que foram construdos estes edifcios. Mais recentemente este hiato nos programas acadmicos das escolas de arquitetura parece ter sofrido uma tentativa de preenchimento, com a incluso no currculo de uma matria obrigatria voltada para o patrimnio arquitetnico.

As tcnicas construtivas que os portugueses trouxeram para a Amrica no deixaram de ser aquelas que estavam em curso na Europa

18

Joo Mateus. Tcnicas tradicionais de construo de alvenarias. Lisboa : Horizonte, 2002. p.15.

52

ocidental. verdade que o contato com povos no europeus orientais, africanos e rabes enriqueceu a cultura portuguesa do incio da Idade Moderna e, conseqentemente, suas prticas construtivas, mas tambm no menos verdade que a variedade bsica destas, em termos gerais, j eram conhecidas e praticadas em suas linhas mestras na Europa j de longa data, tal como a arquitetura de terra.

A arquitetura, nos seus aspectos tcnico-construtivos, fruto de dois fatores predominantes: o primeiro diz respeito ao conhecimento das tradies construtivas e ao grau de dificuldades tcnicas que estas apresentam, em especial na possibilidade de se encontrar mo de obra especializada para a execuo da mesma; e o segundo diz respeito s possibilidades fsico-geogrficas do local que fornece o material para as construes. evidente que sob o prisma deste enfoque no fica difcil explicarmos porque as primeiras construes em nosso solo eram casebres rsticos de madeira e barro cobertos com sap. Apesar disso, to logo as condies permitiram, nossos colonizadores procuraram executar construes de maior perenidade.

Excluindo as primeiras choupanas, houve uma srie de edificaes de estruturas de madeira e barro (pau a pique), com dois pavimentos e com cobertura em telha cermica. No pareciam tais construes to precrias como se tem dado a entender. Anchieta, por exemplo, referindo-se a rea do primitivo Colgio de Olinda, diz o seguinte: ainda que grande est toda cercada de parede de tijolo...; e tem duas ruas de pilares de tijolo com parreira. Por onde tambm

53

podemos concluir que o emprego do tijolo em Pernambuco, ao contrrio do que se tem afirmado, anterior ao domnio holands19.

As instrues de Roma com referncia as construes eram no sentido de se atender perpetuidade porque ainda que custe mais, sai mais barato20. A necessidade, tanto para a igreja como para a coroa, era de edificaes perenes: no regimento dado a Tom de Souza em 1548, El-Rei determinava: "fizesse ele uma fortaleza de pedra e cal e, se no a pudesse construir com esse material, que a fabricasse de pedra e barro, ou ento de taipa, ou ainda de madeira", enfim, "faa-se a fortaleza como melhor puder ser"21. Aqui, aparecem de forma ntida as preferncias do governante no sentido das tcnicas construtivas a serem utilizadas, ordenadas em escala decrescente de durabilidade.

Se nas primeiras construes do sculo XVI predominou o sistema construtivo da taipa de pilo (terra socada), por oferecer boa resistncia e ser tecnicamente mais fcil de ser construdo, logo, padres e civis, prefeririam as alvenarias de cal e pedra. Lucio Costa observa que ao contrrio do que se tem categoricamente afirmado, as edificaes em alvenaria de pedra tanto religiosas como civis j eram bastante comuns na segunda metade do sculo XVI. Foram vrias as construes jesuticas, igrejas e colgios, ento feitas com essa tcnica. Tom de Souza em uma carta de 1553 descreve So Vicente como uma igreja muito honrada e honradas casas de pedra

19

Lcio Costa. A arquitetura dos jesutas no Brasil. Revista do SPHAN. Rio de Janeiro, n 5, p. 09-103, 1941. 20 Costa. op.cit. 21 Apud: Sylvio de Vasconcellos. Arquitetura no Brasil. p.23

54

e cal com um colgio dos Irmos de Jesus22. A existncia de grandes conjuntos civis em alvenaria de cal e pedra j desde a segunda metade do sc. XVI, confirmando Costa, atestado por runas como as da Torre de Garcia Dvila, construda perto de Salvador (Tatuapera) e que evidenciam um grau de tecnologia impressionantemente grandioso e cuidadoso, em especial nas suas arcadas.

Contudo,

nem

sempre as

possibilidades

locais

de material

acompanhavam os anseios de perpetuidade da obra. Por exemplo, na regio do planalto de Piratininga (So Paulo) assim como no interior do pas, em Gois, sempre houve dificuldades para se obter pedras de boa qualidade assim como tambm cal para as argamassas, pois esta ltima era em geral fabricada de conchas existentes com abundncia no litoral. Assim, nestas regies, predominou a arquitetura de terra (taipa de pilo). Em So Paulo, apenas ao final do sculo XIX, com a primeira olaria mecanizada do pas inaugurada por volta de 1850, as construes utilizando-se tijolos cozidos comearam a suplantar as construes de taipa de pilo.

Os quadros de Franz Post pintados poca da dominao holandesa revelam que conjuntamente com algumas construes em cal e pedra convivia a tcnica da arquitetura de terra (taipa de pilo ou pau a pique), tambm em construes elaboradas (assobradadas) que atestam serem estas feitas com propsitos de perenidade: volumes mais acachapados e contornos menos definidos em relao s construes em alvenaria de cal e pedra, o espesso prancho fazendo de verga sobre a janela, os grandes beirais, precauo indispensvel22

Costa. op.cit.

55

j que no havia calhas para evitar que a gua despejada dos telhados fosse aos poucos desagregando o barro das paredes e comprometendo assim, com o tempo, a estabilidade do edifcio23. Quanto s construes ditas de pedra e barro - como, por exemplo, a igreja do Colgio Jesutico de So Paulo - representavam, de certo modo um compromisso entre essa tcnica e a de pedra e cal.

Segundo Lemos, em relao s construes na regio de So Paulo, pode-se dizer que na quase totalidade das casas ditas 'bandeiristas' h um predomnio total das paredes de terra socada (taipa de pilo), aparecendo com extrema parcimnia os paramentos de taipa de mo. Nas casas do tempo do acar, as reparties de pau-a-pique j comeam a se igualar e at a superar as de taipa de pilo nos interiores das casas. Talvez por influncia mineira, no final do sculo XVIII e incio do seguinte, j encontramos construes cujas paredes mestras externas so de taipa de pilo e todo o interior exclusivamente subdividido por meio de frontais de taipa de mo, exatamente como no litoral, onde se empregou a pedra nas 'caixas de fora'24.

Se em termos gerais, sob o ponto de vista cronolgico, podemos dizer que no territrio brasileiro a predominncia foi a da taipa no primeiro sculo de colonizao, sucedida pelas alvenarias de pedra ou mistas nos dois sculos seguintes, sendo que ao final do XIX as alvenarias de tijolo j tomavam a dianteira, pode-se tambm afirmar com a mesma generalidade que sob o ponto de vista de uma distribuio regional a

23 24

Costa. op.cit. Carlos A.C.Lemos. Casa paulista. So Paulo : Edusp, 1999. p.186.

56

taipa de pilo foi o sistema construtivo da regio de So Paulo, assim como a taipa de mo (pau-a-pique) e o adobe foi o dos mineiros e a alvenaria de cal e pedra, dos cariocas.

57

2. ARQUITETURA DE TERRA. 2.1. Histrico. Chama-se arquitetura de terra a arquitetura executada com terra crua. Embora o material para o cozimento de tijolos seja praticamente o mesmo que o utilizado nas taipas e adobes, quando este vai ao forno ganha caractersticas sobremaneira distintas, em especial

proporcionadas pelas transformaes fsico-qumicas do material slico-aluminoso do qual a argila destinada ao cozimento dever ser rica. J o material destinado terra crua, acaba sendo um material composto, uma mistura natural de aglomerados, anloga ao concreto magro vulgar, sem os elementos finos ativos25.

A prtica de se construir com terra crua existe desde que a humanidade criou o hbito de construir cidades h uns dez mil anos atrs. Ela foi especialmente cultivada em regies como a Mesopotmia, onde, acredita-se, era em arquitetura de terra os famosos jardins da Babilnia. Tambm o Egito antigo chegou a construir pirmides de terra lado a lado com as pirmides de pedra, cujas runas chegaram aos nossos dias. Na China, parte da grande muralha construda durante a