A Arqueologia Da Dor

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  • 7/23/2019 A Arqueologia Da Dor

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    DAVIDLE BRETON

    ANTROPLOGO E PRO-

    FESSOR DA UNIVERSI-

    DADE DE ESTRASBUR-

    GO,FRANA

    MnicaManir

    Escrever tem seu componen-te de dor. Escrever

    ento um compndio sobre a prpria ador em si, comezinha, aguda ou crnica parece trabalho hercleo. Qual a dorque deveras sente? O antroplogo francsDavidLe Breton adioucomopdea ampli-tude da tarefa. Mas em 2013 juntou todosos seus achados sobre o corpo, as emo-es e a modernidade e lanouAntropolo-gia da Dor, publicado no Brasil pela edito-ra Fap-Unifesp. livro de ponta para quem deseja enten-der algo que, como ele diz, envolve toda aespessura dohomem. Se a dor uma bs-sola que aponta o aparecimento de umadoena a ser tratada, afirma Le Breton,ela obedece a diversos polos e embaralhaa sagacidade; resplandece no dedo quei-mado e se cala no desenvolvimento de umcncer que em pouco tempo ser fatal.

    Acontece que o ser humano no uma

    mquina nem a dor um mecanismo,conti-nua.O eloentre o primeiro e a segunda es-t costurado por ambivalncias, afetivida-des e contextos socioculturais, que as to-mografias no conseguem mapear.Sendo a dor a principal motivao para asconsultas mdicas, Le Breton dedica par-te de seus estudos cincia de Hipcra-tes. Percebida como intil, como estril,a dor uma escria que o progresso temobrigao de dissolver. Ela se tornou umescndalo, semelhana da morte. Tocurto ficou o limiar da intolerncia que aantalgia ultrapassou o patolgico e atin-giu os partos. por a quecomea esta en-trevista. Numa semana em que o governo

    brasileiro props travas epidemia de ce-sreas, muitas vezes motivadas pelo medoda mulher de enfrentar a natureza de dar luz, esse professor de Estrasburgo res-peita, mas desconstri a dor das dores.

    E se prolonga por outros vrios aspectosdessa coisa que no raro detona a alma,mas, uma vez superada, invariavelmenterevigora a vontade de existir.

    lO Brasil campeoem cesreas.Pesqui-

    sasatribuem esse recorde,em grande parte,

    ao medo que asmulheres sentemda dor do

    parto,dita a piorde todas. Pelas suaspes-

    quisas,ela estariano topo desse ranking?

    Acho que preciso ligar essa constatao crescente analgesia da vidacotidiana. Va-le lembrar que desde a origem da humani-dade as mulheres deram luz sem a ajudada medicina, mas tendo em compensaoo apoio de mulheres da sua comunidade.

    E tudo corria muito bem. Durante o partoa dor no est ligada a doenas ou a umacidente, ela aguda e provisria, e a par-turiente sabe que logo dar luz. Algumasmulheres tm um trabalho de parto maisfcil que outras.Sentem a dor, masno ne-cessariamente a associam a um sofrimen-to. Queremviver o parto comoum aconte-cimento ntimo, traduzindo uma meta-morfose interior que exige toda a sua luci-dez. A dor est amplamente sob o impriodo sentido, as diferenas se referem aoseu grau. O sofrimento mais ou menosintensode uma mulher para outra de acor-do com a sua histria pessoal, sua filiaosocial e cultural, sua experincia num par-

    to anterior, as representaes que tem de-le, o valor que representa para ela a crian-aque vainascer, a presenaou no de ou-tras pessoasem torno,sobretudoseu com-panheiro. Portanto, falso afirmar que ador do parto a pior que existe. Milhesde mulheres ficariam chocadas ao ouvirtal opinio. Que algumas temem o parto esofrem durante o processo eu compreen-do, mas isso traduz bem uma experinciafundamental da condio humana: colo-car no mundo uma criana hoje tornou-seum processo tcnico em virtude da suamedicalizao. Conseguimos convenceras mulheres de que o parto uma expe-rincia terrvel,que deveser absolutamen-te supervisionada por homens.

    lHomense mulheres costumam manifestar

    o sofrimento de maneiradiversa?

    Existe uma diferena de gnero, mesmoque seja difcil, obviamente, penetrar naintimidade fsica de cada um. Mas resistir dor, no caso do homem, ainda tem umrelativo valor de virilidade. Encontramosissoem muitas culturas. Serhomem impli-ca resistir s provaes, sob pena de sermal reputado. Um homem delicado no, de modo nenhum, um homem. Social-mente, a mulher mais livre para expri-mir sua dor, sua feminilidade no ques-tionada. Ao contrrio, os esteretipos so-ciais apreciam essa fragilidade da mulher,que levao homema ter uma atitude prote-tora em relao a ela. Claro que o mundo

    vem mudando. As feministas mostraram aimportnciadas mulheres como profissio-nais da sade, sua proximidade da dor edo sofrimento dos outros, ao passo que oshomens, mdicos, por exemplo, so cada

    vez menos mulheres. Com frequncia

    se mantm a distncia, como puros tcni-cos.

    lMdicos ainda desenvolvem uma carapa-

    a?Ou a medicina est se humanizando?

    A carapaa existe, e muitas vezes produzdesumanidade,incompetncia, impossibi-lidade de se identificar com a angstia dapessoa e, portanto, de trat-la. Trabalhoh muito tempo na questo da dor e con-

    versei com numerosos pacientes. A expe-rincia mostra que o mdico fixado no or-ganismo s seinteressa pela dor, e no pe-lo sofrimento. Ou seja: a experincia vivi-da por seu paciente, ele nem mesmo a es-cuta. Seus olhos esto fixados nas ima-

    gens ou nos exames. Para mim, o trabalhodo mdico implica capacidade de criao,de inveno, de recuperao, um jogo en-tre o conhecimento e o que ele sente, eque o leva a retomar uma conversa ou umsintoma. O mdico que se entedia sem osaber e se refugia num parecer tcnico,acadmico, que torna os pacientes inter-cambiveis e os transforma em puros orga-nismos, corre o grande risco de decepcio-nar os atendidos em busca de refrigrio ainda que esteja em ressonncia comaqueles que, sem se darem conta, se agar-ram a seus sintomas a fim de continua-rem a existir. Penso quea eficcia terapu-tica implica um mnimo de empatia.

    l Ento o senhor valorizao efeito placebo?

    Todo dispositivo mdico, do local da con-sulta ou tratamento qualidade humanado mdico ou das pessoas encarregadasde prestar os cuidados, somado ao crcu-lo de pessoas chegado ao paciente e seuprprio desejo de sarar, tudo isso consti-tui uma frmula alqumica que interfereno processo da cura. A consulta no signi-fica apenas coletar dados para estabele-cer um diagnstico e definir o tratamen-to. Ela j uma orientao, um dispositi-

    vo de influncia, que transparece nas pa-lavras e gestos do mdico, no tom da sua

    voz, nas feies do seu rosto. Queira ouno, para o melhor ou o pior, tudo o queo paciente presume nas entrelinhas doque o especialista diz duplica o enuncia-do por ele. esse o efeito, a eficcia sim-

    blica, o impac to material de uma p ala-vra, um gesto, um ritual.

    lDrogaspsicodlicas voltarama ser

    estudadas para alvio do sofrimento, num

    primeiromomento apenasem pacientes

    terminais.O queo senhoracha dessa retoma-

    da depoisde um perodo de ostracismo?

    A importncia social da dor crnica, queafeta centenas de milhes de pessoas,mostra como so imensos os avanos a se-rem feitos para se conseguir verdadeira-mente alivi-la. Como nenhuma panaceia possvel diante da multiplicidade de da-dos implcitos a cada tipo,um paciente de-

    ve recorrer a um uso razovelde tratamen-tos conjuntos e a competncias diversas e

    jamais esperar passivamente o alvio ou acura. preciso ajudar os tratamentos anos ajudarem. As pesquisas sobre os anal-gsicos so bastante ativas, mas outros

    tratamentosesto disposio: acupuntu-ra, homeopatia, osteopatia, etc. H tam-

    bm o que chamo de tcnicas de sentido.Apoiadas numa disciplina do corpo, per-mitem exercer um controle daquilo quese sente: relaxamento, visualizao de ima-gens mentais, hipnose, auto-hipnose, me-ditao, massagens. Toda digresso pro-pcia para o alvio. Deixando de pensar noseu sofrimento, ou seja, no investindomais nele, o indivduo corta a sua energia.O envolvimento no trabalho ou em outraatividade que considere importante tam-

    bm possui impacto analgsico. O senti-mento de controle faz com que a pessoafique menos focada no incmodo.

    lComo umapessoa que foi

    torturada encara a existncia?

    A tortura o exerccio de uma crueldadeabsoluta do carrasco contra algum inca-paz de se defender. Tcnica de aniquila-mento da identidade por meio da combi-nao de violnciasfsicas e morais, elasa-turaa vtima de sofrimento com tal feroci-dade que o nico limite a morte. A cons-cincia de que so outros homens que tor-turam, e com toda a tranquilidade, acabacom a confianano mundo.Uma dor infli-gida de maneira traumtica e deliberadadeixa um trao de sofrimento mesmoaps a libertao e a cicatrizao das feri-das. O sobrevivente no consegue esque-cer,a sua existncia no mais que a som-

    bra da tragdia vivida. A clnica dos sobre-viventes de tortura implica inumerveisacondicionamentos para no reavivar oterror. Entretanto, mesmo nos piores ca-sos, alguns sobreviventes retomam umaexistncia mais ou menos propcia. Umexemplo, entre outros: durante o longotempo de tortura nas prises da ditaduramilitar, o escritor uruguaio Carlos Lisca-no tinha a convico deque, se denuncias-

    se seus amigos, os carrascos lhe arrebata-riam qualquer possibilidade de olhar es-ses amigos no rosto e um dia retomar ofioda suaexistncia.O remorsoseria avas-salador. Diante dele, a dor infligida peloscarrascos pequena, mesmo pagando opreo de exaes suplementares. Liscanose aferraapaixonadamente quilo que cha-ma de dignidade. Talvez no seja a digni-dade do militante poltico, mas uma ou-tra, mais primitiva, feita de valores sim-ples, apreendidos no se sabe quando, tal-

    vez na mesa da cozinha de casa quandocriana ou nos bancos da escola. O sofri-mento, sempre, uma questo de sentido.

    lSob a perspectivada dor,quala marca de

    uma sociedade cada vez mais envelhecida?

    O prolongamento da vida devido ao apri-moramento das condies de existncia

    resulta em inmeras patologias que noexistiam antes ou pelo menos no comtamanhafora estatstica. No basta acres-centar anos vida, importante somar vi-da aos anos. Muitos idosos vivem hojeuma velhice feliz. Mas para outros o preoparadoxal a pagar por uma existnciamais longa se traduz num crescente con-fronto com a dor, a doena, a incapacida-de, a solido, o sofrimento. Essa ser nos-sa sorte comum. fundamental que nos-sas sociedades reflitam sobre como cui-dar de uma populao que envelhece qua-se sempre afetada por dores crnicas.

    lO empregode cuidados paliativos pode,

    ao poucos, diminuiro nmerode pessoas

    querequerem a eutansia,por exemplo?

    Estudos mostram que a demanda pela eu-tansia nasce do abandono de um doenteenfrentandoum fim de vidasem significa-

    do, sem o reconhecimento dos outros,sentindo a indiferena ou a reprovaodos que cuidam dele. Mais nada confere

    valor a uma existncia que ele consideraresidual, at indigna. No entanto, o acom-panhamento, os cuidados paliativos po-dem arrancar o indivduo da sua solido,neutralizando o seu desejo de morrer erestaurando o valor da existncia. A expe-rincia na cabeceira do doente atesta amodulao assim exercida sobre o sofri-mento, s vezes a sua suspenso. O alvioda dor, se possvel, reforado pela quali-dade da presena daqueles que o cercam,uma ateno serena. No momento ltimoda existncia, o tratamento mdico no suficiente se o indivduo se submete ape-nas a tratamentos de rotina. Somenteuma fisionomiaamiga d o prazer de habi-tar as ltimas horas da vida preservando o

    valor do mundo.lNo captulo quetrata da culturaesportiva,

    o senhordestaca o boxe, que representaria

    uma figura exemplar do usosocial da dor.

    Masmuitos analistas noo consideramuma

    prticaesportiva, justamente por esse aspec-

    to violento. Comoo senhor o classificaria?

    Usoexemplar da dorno querdizerneces-sariamente violncia. Um combate umritual, que controlado. A troca de golpesno feita s cegas. E, se um boxeador ferido, o juiz pode parar o combate. O bo-

    xe consiste no s do nocaute, mas da fra-gilizaodo adversrio, por meio da inten-sidade fsica da luta e da srie de golpes.Os boxeadores precisam saber encaix-los, da os constantes rostos contundidos,as cicatrizes que marcam seu corpo.

    lA dordimensionaa felicidade?

    Sim, a dor, especialmente a crnica, arru-na a vida. Ela torna irreconhecveis os pa-cientes, que sentem que sua existncialhes foi arrebatada. Impe uma vida rom-pida, destroada. um maremoto que ar-rasta tudo sua passagem. Nada maisco-mo antes, e cada lembrana anterior ins-talao da dor est envolta na nostalgia deum nunca mais. A antiga segurana, asfamiliaridades dos comportamentos sosuspeitas. O indivduo coloca em xeque aevidncia do seu prprio ser.Da a felicida-de sentida, a sensao de renascimentoquando a dor diminui, se torna tolervelou desaparece completamente. / TRADUODETEREZINHAMARTINO

    Aduras penas

    GETTYIMAGES

    ARQUIVO PESSOAL

    Num mundo anestesiado, a dor virou escria que a medicina tem de resolver

    Padecer.A dor, emespecial acrnica, ummaremoto quearrasta tudo sua passagem

    ENTREVISTA

    Capa

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    E2 Alis DOMINGO, 12 DEJULHO DE 2015 O ESTADO DE S. PAULO