A Arte Desconstruida

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    A Arte Desconstruída

    - sobre a experiência de ‘estado de arte’  e a mente criativa – 

    Claudio Miklos (Monge Komyo) – Outubro, 2006

    Revisado em 2010

    O grande mestre em arte ShuFa (arte caligráfica chinesa) chamado Obaku Kosen (1633-1695) estava

    trabalhando na criação da obra caligráfica para o termo “O Primeiro Princípio” (exposto em uma famosa peça de

    madeira nos portões do Templo Obaku em Kyoto) em uma folha de papel. Um dos seus mais especialmente

    sensíveis estudantes estava observando. Quando o artista terminou, ele perguntou a opinião do seu pupilo - que

    imediatamente lhe disse não estar bom.

    O mestre tentou novamente, mas o estudante criticou também o novo trabalho. Várias vezes, o mestre

    cuidadosamente redesenhou os mesmos ideogramas criando uma nova obra, e a cada vez seu estudante

    rejeitava a criação de arte.

    Então, quando o estudante estava com sua atenção desviada por outra coisa e não estava olhando, o

    mestre aproveitou o momento e rapidamente destruiu a folha na qual havia escrito seu último trabalho, deixando

    uma simples folha em branco no lugar.

    "Veja! O que acha?" Ele perguntou. O estudante virou-se e olhou atentamente.

    "ESTA é verdadeiramente uma perfeita obra de arte!", exclamou. (1) 1 

    Como manifestação sensível, o processo contemplativo característico das tradições budistas

    oferece uma grande margem de experiências íntimas graças às quais, quase invariavelmente, oindivíduo percebe-se mais essencialmente integrado com o fenômeno existencial e, portanto, torna-se

    mais capaz de superar o vício angustiante da visão individualista e conflituosa. Essa experiência

    integrada deixa o praticante saudavelmente consciente dos mecanismos condicionados (e

    condicionantes) de sua mente. Esta realização é um dos pontos cruciais da experiência auto-reguladora

    da meditação, e quando corretamente vivenciada permite à mente a liberação dos aspectos

    potencialmente insalubres (porque altamente egoístas e distorcidos) do processo meramente

    representacional e concreto de apreensão das coisas. Temos aqui o aspecto mais revolucionário e

    sofisticado das tradições psico-espirituais budistas as quais, à parte seus elementos meramentereligiosos ou doutrinários, souberam iniciar o esforço milenar humano de aprendizagem e descobertas

    profundas sobre a mente e seus recursos e possibilidades.

    Este natureza direta e ao mesmo tempo inconstantemente renovadora da prática meditativa

    permite-nos atingir descobertas fundamentais  – e maravilhosamente criativas  –  sobre a natureza da

    existência. Eis porque a cultura zen-budista foi capaz de desenvolver, sobretudo no Japão, uma

    sofisticada abordagem artística e estética em vários níveis, misturando-as sem nenhum prejuízo com a

    própria experiência psico-espiritual. O conceito contemplativo Zen  –  tanto em sua condição prática ou

    1 SENZAKI, Ryoken; Reps, Paul. Zen Flesh, Zen Bones. Pág. 39 (Boston, Tuttle Publishing, 1998). 

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    como em sua natureza teórica – se inicia conflitante e difícil de abordar. Mas em determinado momento

    abre-se completamente e permite à mente “libertar-se de si mesma”  (uma imagem já exaustivamente

    discutida por mim em vários outros momentos). Contudo, durante esse processo de conflito  – e mesmo

    depois – devemos observar que a experiência de "ver" (tomando-se o termo em sua ampla significação,

    a qual extrapola em muito o mero processo físico-sensório a ele associado) torna-se crucial para o

    indivíduo. Portanto, podemos começar esse ensaio sobre a questão do processo de criativo relacionadoà arte (e ao mesmo tempo sobre o que chamo de estado de arte na vida) perguntando: o quê significa

    olhar ?

    Pensadores existenciais, modernos ou contemporâneos, abordaram o fenômeno do olhar e do

    objeto a ser olhado sob a luz de várias propostas. Algumas são muito interessantes, e contribuem para

    que possamos apreender melhor o sentido desta experiência. É claro que a visão moderna do conceito

    enfoca o olhar quase unicamente sob a perspectiva representacional pura. As suas análises e

    argumentações visam evidenciar as angústias da relação “homem-objeto”  (ou talvez fosse melhor dizer“ser-e-forma” ), o eterno pasmo que a idéia de individualidade produz quando se choca com as

    complexas interpretações que a mente (por meio de suas ferramentas sensórias) cria em função dos

    objetos externos a ela mesma. A indagação filosófica ocidental visa elucidar, se jamais for possível, o

    pasmo diante do fenômeno de olhar e ser olhado: qu em éess e que o bs erva, e como a própri a ação

    de olh ar afeta aquilo q ue éobserv ado?  Indo mais além, as indagações dizem: o quê irá nos devolver

    em descobertas e percepção, por sua vez, o objeto que sofre o escrutínio de nosso olhar?  São

    questões existenciais complexas, talvez, mas ainda assim absolutamente pertinentes, pois, mesmo que

    você seja uma pessoa que se assusta ou que despreze essas aparentemente pedantes elucubraçõesfilosóficas, o fato é que sua própria condição comum e banal  – mesmo o modo como você lida com

    seus prazeres, desejos e meras necessidades cotidianas  –  depende demais da maneira como sua

    mente é capaz de captar corretamente sua pessoalidade, seu “ser”, em relação às coisas.

    Contudo, a grande distinção entre as propostas filosóficas orientais e ocidentais está no grau de

    vivência de cada uma com o conceito da con temp lação . O comprometimento do pensamento ocidental

    está, em geral, relacionado com o mero debate sobre o processo de desarvoramento, de alienação, ou

    mesmo angústia, que são provocadas pelo olhar , o captar , o  perceber . O indivíduo, ao contemplar,

    torna-se "algo" distante de sua realidade imediata, e momentaneamente se esquece de si para torna-se

    outra coisa; o objeto observado também nos retorna um escrutínio que pode igualmente nos objetificar,

    e tal poder pode ser fonte de grandes angústias para o observador.

    No contexto oriental, o olhar torna-se um canal de relação com a ausência do "eu" comum e

    puramente representacional, e o resgate de uma subjetividade diferente, mais ampla e profunda, que

    nos permite superar o pobre condicionamento egoísta dos hábitos racionais. Quanto mais

    contemplativamente colocamos nosso olhar sobre um objeto, mais iremos exercitar nossa capacidade

    de transcender o que é objetivo e concreto  – o sujeito contempla a si mesmo enquanto olha o outro, e

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    ao fazer isso descobre novos canais de apreensão e interpretação, resgatando aquilo que na tradição

    psicológica zen-budista é denominado o “Sujeito Fundamental ” ou a “Face Original ”. O olhar, no âmbito

    da consciência, não é mecânico nem físico. Na verdade, a concepção budista apresenta as realidades

    como absolutamente desprovidas de conteúdo específico, e somente desta forma as coisas poderão

    existir: não existindo e existindo ao mesmo tempo. Como afirma o Prajnapamita Hrdaya Sutra, "não

    existem olhos, nem [o sentido da] visão" – e por conseqüência, nem mesmo o objeto a ser olhado.

    O que subjaz a ação de ver  seria o pleno fluxo de integração do sujeito (o sujeito contemplativo,

    queremos dizer) com as realidades possíveis, e suas nuances relativas; o sujeito deve perceber que

    aquilo que ele sente e interpreta não é, por mais que pareça o contrário, definitiva e absolutamente

    concreto. As coisas vistas são o que elas são, e mais nada. Sendo assim, o ato de olhar  representa

    mais do que ver a partir de uma “idéia”  ou uma “significação”  do que é visto; olhar representa uma

    aprendizagem de contemplação mais ampla do que é visto  – uma metasignificação  (se podemos assim

    definir o termo) do objeto observado, ou seja, uma significação transformada, posterior e além da merasignificação comum. Esta prática é bem mais delicada do que aquela interação angustiante entre o ser

    e a forma proposta por alguns pensadores modernos, pois ela não depende de elucubrações

    intelectuais, mas sim de profunda prática e amadurecimento contemplativo.

    Claro está que a abordagem prática oriental preocupa-se com o olhar relativo (porque passível

    de constante transformação e, portanto, livre de qualquer individualismo rígido) e quase indeterminado,

    um modo de apreensão criativo e sensível ao extremo. A proposta ocidental em alguns casos (Sartre,

    Bataille, Foucault, Lacan, etc.) aborda esta sensibilidade como contraponto às angústias do serconcreto, e tanto as linguagens como os significados sempre serão usados como ferramentas de

    relação entre os dilemas existenciais inerentes ao homem moderno  – sua culpa, seu desejo, sua ânsia

    em devorar o outro (incorporando-o ao seu próprio modo de ver o mundo) através de seus sentidos  – e

    o grande pasmo diante do incognoscível. De certa forma é como o dilema da esfinge: decifra o que

    percebe a partir de sua razão e investigação racional (e transforme o mundo em uma extensão egoísta

    de você mesmo) ou a própria relatividade das coisas irá lhe devorar. Derrida considera que o olhar

    artístico leva o próprio artista à sua ruína, pois ao ver algo, o artista o faz por apenas alguns segundos e

    depois resta apenas a memória do visto. Assim, segundo Derrida o artista é um ser angustiado, incapaz

    de recapturar a presença do olhar original, a essência do que foi visto(2). Ora, o mesmo poderia ser dito

    de todas as pessoas que, por um motivo ou outro, passam pela vida olhando aquilo que lhes importa  – 

    e enxergando apenas o espectro de sua memória interpretativa.

    Desta forma, a proposta da “mente ocidental”  (se é que seja possível realmente diferenciar

    assim a mente humana; na verdade esta distinção é bem mais íntima e interna do que geográfica) é de

    apresentar o olhar como um processo fluido de elaboração e interpretação racional do fenômeno

    cerebral que entra em contato com as impressões externas aos limites do corpo  –  processo esse

    associado ao binômio sujeito/objeto  –  para assim revelar sua real natureza (se é que ela existe). A

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    “mente oriental”  visa experimentar a percepção intuitiva do não-olhar , e exercer nesta ação todo o

    potencial de relativização que a nossa sensibilidade pode ter. Sem abandonar a óbvia relação somática

    e sensória do fenômeno de contato perceptivo, a proposta oriental visa aprofundar o modo como a

    mente entende sua auto-realidade e as realidades transitórias que percebe. Ela não pretende analisar o

    fenômeno do ser, mas de fato experimentá-lo sem qualquer resistência individualista. Em outras

    palavras, a prática contemplativa propõe uma forma transpessoal de relação do sujeito com o objeto.

    Pessoalmente, acho que falta na cultura de arte uma experimentação definitiva do olhar intuitivo,

    sob uma ótica prática semelhante à tradição zen-budista que é, dentre as diversas escolas

    contemplativas budistas, aquela que possui uma sofisticada identificação com a atualidade moderna em

    conceitos psicológicos e estéticos relacionados ao caminho de arte. Movimentos artísticos já exploraram

    o tema orientalista, e vários artistas manifestam sua simpatia a estas posturas, evidentemente, mas

    nenhum deles interessou-se em mergulhar além dos conceitos teóricos, da atraente (para o intelecto)

    poética não-convencional que a abordagem zen oferece.

    Modernos, Vanguardistas e Contemporâneos flertaram - e ainda flertam - consciente ou

    inconscientemente com verdades já anteriormente intuídas pelas filosofias liberacionistas e não-

    dualistas nascidas nas culturas do oriente, e o Zen já foi objeto de grande atenção entre vários artistas e

    intelectuais durante as décadas modernistas e pós-modernistas no final do século XX. Mas a atenção

    da cultura de arte pela linguagem sofisticada zen restringiu-se ao seu aspecto frugal e contra-cultural.

    Estes artistas e pensadores lograram obter alguns insights válidos para seus próprios estudos, mas não

    é possível detectar nenhum esforço real de reinterpretação da proposta criativa da tradição orientalcontemplativa como meio válido de estabelecimento de uma nova forma de exercer a arte: não somente

    como uma linguagem estética mas também (e principalmente) como um meio de sabedoria e

    esclarecimento humano.

    E de fato nenhum artista ou pensador de arte jamais pretendeu fazer isso – a cultura de arte não

    tem relação alguma com qualquer prática de aprimoramento psico-espiritual humano. Na verdade, não

    é incomum no meio de arte uma forte reação contra qualquer identificação da arte com conceitos

    “religiosos”, mesmo que poucos artistas entendam quão pouco há de “religioso” na abordagem

    contemplativa da estética e da arte zen.

     A Arte falha ao não resgatar o Ser  de seu pasmo? Existem aqueles que afirmam não ser do

    escopo da arte resgatar coisa alguma. Mas essa postura é, no mínimo, covarde; a arte, como qualquer

    outra manifestação humana, não pode fugir de sua influência  – não há como ela evitar os resultados, e

    ser apenas um vácuo egoisticamente auto-suficiente. Portanto, a arte falha quando não revela

    sabedorias. Digo isso porque considero a arte como uma grande manifestação do Ser. Ela não é uma

    coadjuvante nos assuntos do espírito humano. Eu não pretendo absolutamente mistificar a arte, antes

    quero apresentá-la como uma senda válida para o crescimento da consciência humana.

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    Talvez aquele caráter falho da arte ocorra não à luz do ato em si de criação (a obra é sempre

    inspiradora de insights), mas no âmbito do próprio artista e sua humanidade. Quando exercita sua

    função, o artista reproduz uma arte conceitualmente válida, dando uma aparente saciedade à questão

    comum no meio crítico e filosófico da arte, a saber: o quê faz o artista? Mas eu creio que a questão é

    outra, completamente distinta desta. A questão crucial é: o que sabe o art is ta de si mesmo ?  Adimensão individual daquele que faz arte não se coaduna (necessariamente) com a proposta artística

    em si, apesar desta ser constantemente descrita como fruto da ação do profissional de arte. O artista,

    na verdade, ainda está restrito à sua dimensão humana comum. Mas há muito mais na arte, além dos

    simples embates sobre a pertinência da obra realizada à luz das opiniões críticas, históricas ou

    relacionadas a qualquer formalismo estético.

     A Arte é vida? Costuma-se dizer na tradição zen-budista que a prática espiritual é uma forma de

    arte, onde o indivíduo aprende a olhar o mundo de uma maneira ampla e despojada. Mas o que istorealmente significa? Afinal, não são poucas as pessoas que se atraem pela proposta agradável e bonita

    de viver uma vida onde uma espécie de ideal sobre "arte transcendente" seja expresso por meio de

    amor e carinho, paz e harmonia, fraternidade e diálogo. Contudo, sem hipocrisias, pouquíssimos foram

    capazes de atingir esta proposição apesar de todo o colorido e beleza das palavras. E estes poucos

    com certeza não são contados entre as legiões de entusiasmados místicos ou crentes de vários

    escopos, antigos ou modernos. Nem mesmo entre os intelectuais e rígidos praticantes das variadas

    doutrinas existenciais, quaisquer que sejam. Existe uma mescla de sensibilidade e sobriedade que se

    apresenta imprescindível para que possamos crescer no universo de consciência humana  – e tambémna arte.

     A capacidade zen em perceber a sutileza da ação artística tem a ver com sua força, na

    qualidade de prática contemplativa, em compreender o sentido do conceito  – essencialmente Taoísta

    em sua origem – de não-fazer  (Wu Wei) subjacente às mais saudáveis e corretas formas de atuação na

    vida. O zen reconhece há centenas de anos que o indivíduo pode tornar-se capaz de exercer em sua

    vida o dom de sutil equilíbrio entre o ato de fazer e o de não-fazer típicos do processo de criação na

    arte, mas isso não significa que este indivíduo será capaz de transformar a vida em arte. Neste sentido,

    a proposta contemplativa não define a Arte (como instituição criadora de obras, movimentos ou

    conceitos artísticos) como sinônima das coisas que constituem a nossa vida. Não há "arte" em tomar

    água ou caminhar na calçada em direção à sua casa. Mas há "arte" em fazer tais coisas com a mente

    fluida e em plena atenção, retirando do ato banal aquilo que ele tem de metasignificado, retirando de

    sua concretude uma essência que, apesar de ser relativa (ou justamente por causa disso) é rica em

    descobertas – desta maneira aprendendo a discernir melhor as contradições e banalidades do mundo, e

    com isso crescendo em sua humanidade. Esta ação consciente e profunda, plena de beleza em

    significados e força expressiva em corpo e mente é denominada naquela tradição budista de “Zen Ki ”

    (ação Zen); a grande arte é feita justamente neste momento.

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    Uma qualidade fundamental no olhar criativo  implícito na “ação zen” é aquela que permite

    sutilizar   o que se vê, sente, cheira, toca, ouve. O olhar criativo extrapola os olhos e a visão; ele

    acontece em todo o corpo e se manifesta em diversos instantes, como naquela sensação agradável

    quando sentimos uma brisa ou o calor do sol, e fechamos os olhos para assim poder absorver melhor o

    prazer suave e refrescante desta experiência. Neste momento, quase sem querer, estamos olhandopara tudo sem ao menos utilizar os olhos. É uma sensação ampla, como um leve toque em nossa

    consciência. Experiências como essa podem ocorrer muitas vezes em nossas vidas, mesmo entre

    aquelas pessoas mais desesperadas e em grande sofrimento. Esse é o processo contemplativo do

    olhar acontecendo de forma tipicamente criativa e sensível, e que poderia criar uma abertura

    fundamental para que nossa experiência interpretativa atinja novas fronteiras de sabedoria e percepção

     – e a cura de muitas misérias pessoais. A imagem comum na tradição zen para este fenômeno é a do

    " portal sem porta", este portal não possui uma porta porque ele sempre está aberto e disponível para

    que possamos atravessá-lo. Precisamos apenas vê-lo em nossa mente como se estivesse aqui e agoraà nossa frente, e dar o passo crucial em sua direção.

    E, no entanto, entre o momento em que sentimos a brisa e o ato do fechar os olhos para melhor

    experimentá-la (a dizer, contemplá-la) nada realmente portentoso ocorreu, exceto uma grande abertura

    de possibilidades. A questão é: saberemos aproveitar esta possibilidade a nosso favor ? Quase sempre

    não; ela vem e passa, deixamos no máximo uma doce lembrança de um momento prazeroso. Na vida

    comum, infelizmente damos mais valor (e realidade) aos fatos irrelevantes e banais ou às nossas

    próprias misérias pessoais do que aos momentos de libertação e sutil transformação de nossosespíritos. Estes são quase sempre considerados um sonho impalpável, sem nenhum valor prático.

    No campo das artes, estes momentos de insight  frequentemente tornam-se meios para criar a

    obra, mas o fluxo de ação criativo associado a esta experiência rapidamente deixa o campo da

    sensação direta para cair no limitado âmbito da memória (a dizer, do intelecto). Este processo, usando a

    abordagem de Derrida, leva o artista à "ruína", com isso significando que ele apenas realiza algo

    limitado, talvez até pequeno. Há mais no processo, e eu defendo que o artista deva lançar-se à busca

    pelo dom de sustentar seus momentos íntimos de sensibilidade, sem permiti-los cair no lugar-comum

    das memórias mortas, e assumir tal busca com apetite para crescer em sua própria condição humana, e

    não simplesmente para crescer em sua arte.

    Mas os artistas são pessoas comuns, possuem histórias diversas e objetivam fazer arte por

    muitos motivos; eles são, sem nenhuma diferença, iguais em natureza aos outros homens e mulheres

    que, ao longo da vida, simplesmente irão dizer: "eu não quero buscar coisa alguma, desejo apenas

    realizar meus anseios pessoais, ter algum dinheiro, curtir o sucesso, criar meus filhos, alcançar

     prazeres, ou um emprego que me ofereça sucesso."   O aparente despojamento de objetivos mais

    profundos de todos nós mascara a profunda relutância que temos em encarar a vida sob a luz de um

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    processo constante de reflexão e consciência, pois mesmo que a maioria das pessoas não saiba  – ou

    não queira saber  – da implacabilidade dos atos impermanentes e inconstantes, elas não podem deixar

    de intuir a sua realidade. Eis porque, quanto mais sensível e atento for o homem, mais ele mergulha nas

    angústias do Ser – ou como diagnosticou Buddha, mais ele percebe em sua vida o sofrimento causado

    por sua ignorância.

    De fato, somos criaturas profundas e sensíveis, mas ainda não aprendemos a equilibrar nosso

    potencial perceptivo e sensório com uma atitude mais amadurecida por descobertas internas realmente

    saudáveis. A evolução da consciência humana ainda está em sua fase inicial. E a maioria da

    humanidade sofre demais com suas necessidades imediatas para prestar atenção a este potencial.

    Contudo, apesar da premência por abrigo, alimento e perspectivas sociais, a humanidade possui uma

    necessidade ainda maior de amor, discernimento correto e maturidade reflexiva. A ironia é que quanto

    mais formos capazes de aprimorar nossa percepção íntima (tida como uma meta complexa e filosófica

    demais), mais seremos capazes de solucionar justamente as terríveis necessidades básicas queconduzem a tanto sofrimento humano, e que tanto assombram nossas mentes. A ignorância é fruto das

    carências do Ser, não apenas das privações físicas ou intelectuais.

    Quando a Arte desfaz-se em suas várias partes, podemos discernir melhor o quanto a vida pode

    ser um campo fértil para as manifestações criativas do Ser. Sim, tenho convicção de que o objetivo da

    arte tanto em sua prática como em sua filosofia é levar o ser humano a um crescimento perceptivo,

    fundamentado na perspectiva metaconceitual   característica da mente essencial e não-dualista. Não

    acho que as afirmações de que não há nada a descobrir na arte ou filosofia sejam válidas, exceto nosuniversos opinativos específicos destas declarações – ou mais honestamente, de seus próprios autores.

    Podemos construir várias abordagens sobre os limites da Linguagem e do Pensamento, mas todas as

    abordagens, desde as puramente analíticas, passando pelas científicas e chegando até as religiosas,

    serão válidas exclusivamente em seus limites de alcance. Subjacentes a todas elas ainda permanecem

    as ações plenas do Homem – as ações puras, despojadas de conceitos sejam quais forem, mas plenas

    de metasignificados. Um dos grandes e recorrentes erros no comportamento humano é a tendência a

    contestar conceitos sob o prisma de lógicas completamente direcionadas para outras facetas

    fenomenológicas do objeto, como por exemplo tentar explicar a beleza da flor baseando-se na

    impressão física que a refração da luz na composição molecular da planta provoca no nervo ocular. Ao

    fazer isso, matamos a flor em seu sentido pleno de beleza, e a definimos apenas sob o aspecto

    concreto da experiência ocular de perceber cores e formas.

    É necessário desmontar a lógica de que a arte prescinde de uma prática contemplativa básica, e

    que ela se basta apenas ao ser realizada, sem mais proposições. Para realizarmos nossas metas de

    vida, precisamos desenvolver estratégias criativas e sensíveis, assumir uma posição atenta diante das

    necessidades. São tantas as nuances do comportamento humano, tantos os caminhos e teorias, que se

    torna muito difícil perceber onde está o meio-termo de tudo. Mas é justamente este meio-termo que

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    precisamos exercitar cotidianamente. É claro que nenhuma forma de ação criativa será possível sem

    que tenhamos a coragem de experimentar, de aprofundar nosso olhar nas coisas, idéias e pessoas,

    constantemente avaliando as nossas intenções e lógicas.

    Quando falo sobre o processo sutil de criação de arte como algo muito mais amplo e

    fundamental do que o meio artístico imagina, também falo da mente criativa como condição vital paratodos os aspectos da vida humana. Em um ponto de nosso tempo de existência, precisaremos resgatar

    o estado de arte  de nosso ser, aquela condição de plena integração sensível de mente e coração,

    capaz de ler com clareza a linguagem sutil das ações existenciais.

    Esta é uma questão muito importante, e mesmo que você não se imagine muito interessado

    nela, acredite-me, ela irá se apresentar à você queira ou não. Este conceito foi antecipado pela tradição

    Taoísta chinesa, e séculos depois passou quase que integralmente para a tradição Zen-Budista. Ele se

    fundamenta em uma proposta (não uma técnica, como poderíamos imaginar) de aprendizagem, quaseum treinamento, sobre como um indivíduo pode captar os fatos – quaisquer que sejam – através de um

    olhar puramente fluido e criativo. Isso é possível de ser feito, é uma coisa completamente factível para

    toda pessoa disposta a participar conscientemente das suas ações e decisões na vida. É igualmente um

    compromisso com a existência, e depende demais de uma atitude contemplativa diante do mundo. A

    questão é: como podemos contemplar e viver ao mesmo tempo? Pois muitas vezes não temos tempo a

    perder com reflexões e ponderações: precisamos agir. É neste momento que a lição zen torna-se mais

    clara e útil: na verdade, o próprio viver é o ato de contemplar, o Zen Ki é o viver em profunda

    consciência. Não existe separação, no plano da proposta consciente, entre o refletir e o agir. Portanto,não se preocupe: ao viver contemplativamente você não deixará de agir e realizar coisas concretas,

    tomar suas decisões e sentir a brisa com prazer; você simplesmente fará tudo isso com fluidez de

    percepção e criativa sensibilidade.

     Assim deve ser na Arte, assim deve ser na vida. Quando feitas através de uma clara

    compreensão de seus metasignificados, as ações são capazes de possuir uma poesia de gestos,

    pensamentos e palavras jamais imaginada. Esta é a arte além da Arte, o processo de criação sendo

    feito com força e determinação conscientes, plenamente desconstruídos em suas bases limitadoras e

    racionais.

    Claudio Miklos, mestre em Ciência da Arte (UFF/RJ)

     _______________________

    1. SENZAKI, Ryoken; Reps, Paul. Zen Flesh, Zen Bones. Pág. 39 (Boston, Tuttle Publishing, 1998).

    2.  Acho muito interessante também a analogia de Foucault (Madness and Civilization: A History of Insanity in the Age of

    Reason) sobre a loucura e a cegueira (a incapacidade de olhar); de certa forma, o indivíduo que não é capaz de olhar

    as coisas, que não as enxerga em sua real natureza, é como um louco destituído de visão. Essa abordagem é

    extremamente semelhante à proposta contemplativa budista.