A Arte e a Vida: Interseções

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    A arte e a vida: intersees

    Noli Ramme1

    A arte que se apresenta como arte considera que a arte e

    separada da vida e de todo resto enquanto que a arte que e comoa vida considera que a arte e conectada com a vida e com todoresto. Em outros termos, aquele que faz arte que se apresentacomo arte tende a vir a ser um especialista, e aquele que faz arteque e como a vida, um generalista.

    Allan Kaprow

    Resumo: Este trabalho pretende falar da existncia ou no de limites na arte a partir deuma visada sobre a situao contempornea. A superao dos gneros artsticos ocorridacom a substituio da artesania pelo trabalho com o conceito, ocorridas no comeo dosculo XX pode ser tomada como o incio de um processo de abertura total do campo da

    arte, que parece ser irreversvel e definitivo. Essa abertura pode ser entendida, nosentido duchampiano, como uma expanso sem limites do conceito arte, mantendo, noentanto, a distino entre a arte e a vida, mas pode ser entendida tambm como umasuperao dos limites entre a arte e a vida. A segunda posio nos leva a refletir sobre arelao entre a arte e a vida, sobre os limites entre elas e sobre a possibilidade, ounecessidade, de super-los.Palavras-chave: Arte e vida, arte contempornea, limites da arte.

    Abstract: This paper intends to talk about the existence of limits or not in art regardingthe contemporary situation. The overcoming of artistic genres that occurred with thereplacement of craft work by conceptual work that occurred in the early twentieth

    century represents the beginning of a process of fully opening the art field, whichappears to be irreversible and definitive. This opening can be understood in theDuchampian sense as a limitless expansion of the concept of art, while maintaining thedistinction between art and life, but can also be understood as overcoming the limits

    between art and life. The second position leads us to reflect on the relationship betweenart and life, about the boundaries between them and the possibility, or need, toovercome them.Key-words: Art and life, contemporary art, art limits.

    Uma das lies mais importantes, e perturbadoras, dasInvestigaes Filosficas

    de Wittgenstein que no podemos falar de conceitos definidos fora da rea restrita dalgica. Alm dela, todos os conceitos so empricos, isto , tratam de fenmenos que semodificam no espao e no tempo, e por isso mesmo, seu uso no est limitado porregras. Isto vlido para os conceitos de linguagem, de jogo de linguagem, de cincia etambm para o conceito arte.2

    Filsofos da arte que foram influenciados pela leitura de Wittgensteinentenderam no s que o conceito arte um conceito emprico e que, portanto, a arte

    1Professora do Programa de Ps-graduao em Filosofia da UERJ.2Que o uso de uso de um conceito no seja limitado por regras no implica que seu uso no seja guiadopor regras. Na linguagem wittgenstaniana, podemos dizer que existe uma gramtica da palavra arte, isto ,

    o modo como ela usada, seu significado portanto, depende do papel que ela desempenha em nossasprticas lingusticas. Na 23 dasIFWittgenstein afirma que falar uma lngua parte de uma atividade,de uma forma de vida.

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    no tem uma essncia passvel de ser capturada como tambm compreenderam que aprpria lgica do desenvolvimento dar arte mostra que suas transformaes nuncadeixaro de ocorrer. De fato, quando consideramos o modo como as obras de arteexistem em diferentes pocas e em diferentes lugares, percebemos uma variedade togrande de objetos que percebemos ser realmente impossvel apontar alguma

    caracterstica comum presente em todos. Ou seja, se no h uma uniformidade nosobjetos, tambm no h no sentido do termo usado para nome-los.No obstante essa diversidade da produo artstica nos fazer pensar que a arte

    diferente de vrios modos em diferentes tempos e lugares, eu gostaria de apontar queexiste pelo menos umagrande diferena, ou contraste radical, entre dois modos de fazere entender a arte. Isso claramente visvel na histria da arte ocidental, mas talvez issoseja hoje vlido globalmente. Essa diferena apareceu no momento em que um modoartesanal de fazer arte foi substitudo pela ideia de que a arte , acima de tudo, umconceito.

    Sabemos que durante muito tempo, o artista foi julgado pelo seu talento manual,um talento especfico de pintar, esculpir, representar, tocar um instrumento, etc. Esse

    talento deveria estar visvel nas obras que ele produz, de acordo com as tcnicasrelativas a cada gnero. Essa concepo da arte como produo de acordo com gnerosdeterminados perfeitamente caracterizada com a expresso Belas Artes, como diz DeDuve, para quem,

    as Belas Artes formam um sistema limitado por fronteiras internas eexternas, Internas, uma vez que o sistema compreende e justape, semmistur-las, a pintura, a escultura, a arquitetura, o desenho, a gravura,etc., e as separa das outras artes como a literatura, a msica e o teatro.E externas, porque ela exclui uma quantidade de coisas que, noentrando nem na pintura, nem na literatura, nem na msica, etc., ficam

    na impossibilidade de pertencer categoria "arte".3

    O que De Duve est dizendo que os gneros servem tanto para estabelecer limitesinternos quanto externos s obras de arte. Isto , uma vez estabelecido o que uma

    pintura, ou uma escultura, ou um romance, possvel afirmar com segurana que umobjeto qualquer que no pode ser inserido em uma dessas categorias, tambm no podeser chamado de arte. Esse critrio to fcil, e to seguro, que, como o prprio De Duveobserva, a pergunta, isto arte? no fazia sentido nenhum dentro do sistema dasBelas

    Artes. claro que sempre se podia julgar que uma pintura no era boao suficiente paraser arte, mas essa uma questo muito diferente de estar em frente a um objeto e nosaber se ele para ser visto como arte. Uma situao que se tornou comum, quando, no

    incio do sc. XX, esse sistema foi substitudo, como diz De Duve, por um novo regimede arte, ao qual ele d o nome de arte em geral. Essa nova designao, por sua vez,descreve a situao na qual nos encontramos conscientemente desde que o ready madeduchampiano provou a possibilidade de fazer arte com o que quer que seja. A arte em

    geral, continua ele, no mais um mdium, como a pintura ou a escultura, no tambm mais um estilo, ou um movimento. O que ela faz simplesmente registrar a

    potencialidade para o no importa o qu de ser arte, potencialidade que caracteriza omundo da arte de hoje. Alis, o que Duchamp queria quando props o urinol como arteera exatamente demonstrar o que sua posteridade realizou, a saber, a ampliaoilimitada do conceito arte. Neste sentido, o hibridismo que caracteriza a produo

    3De Duve, 2005, p. 85.

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    contempornea marca exatamente o fim dos limites internos arte bem como da ideiade pureza dos gneros que marcou a arte moderna.

    A diferena entre esses dois perodos, De Duve diz claramente, que na arte emgeralabsolutamente no existem limites para o que pode ser arte. Ou seja, enquanto osgneros artsticos, e sua necessria artesania impunham restries para o que se poderia

    considerar como um trabalho de arte, no mundo da arte atual o artista, liberto, comoqueria Duchamp, do domnio da mopode finalmente produzir arte com a liberdadedo pensamento. Artistas como Cildo Meireles, por exemplo, reconhecem que a arteconceitual, a despeito da sua aparente esterilidade, torna mais democrtico o fazerartstico, uma vez que qualquer coisa pode ser usada para produzir arte. E se qualquercoisa pode ser arte, ento tambm qualquer um pode ser artista.

    Evidentemente, essa abertura total do campo da arte tem gerado no pblico umagrande incompreenso, e muitas vezes, um sentimento de dvida a respeito dalegitimidade de atribuir o estatuto de arte a certos objetos que parecem no se distinguirde coisas que nunca se imaginou que pudessem ser vistas como arte, tais como umsopro, um riscar de fsforos, uma exploso, e para citar o exemplo mais famoso, um

    prosaico urinol de banheiro masculino. Muitas vezes, essa incompreenso gerasimplesmente um sentimento de rejeio por parte do pblico, e frequente oaparecimento de observaes at mesmo agressivas nos cadernos de visitas deexposies de arte contempornea. Outras vezes, o pblico aturdido e decepcionadosimplesmente questiona: mas ento, qualquer coisapode ser arte?

    A resposta : sim. Esse de fato o nosso momento atual; vivemos um tempo emque no h limites para o que pode ser arte, desde que h 100 anos o primeiro readymade duchampiano instaurou o novo regime histrico da arte ao qual ns ainda

    pertencemos. Mas, preciso fazer uma ressalva importante: que tudo possa se tornararte, no se segue que qualquer coisa arte, ou de que a arte qualquer coisa. Nemmesmo, que tudo que proposto como arte seja aceito como arte. Tudo podeser arte,mas, de fato, nem tudo o .

    Assim, enquanto que no sistema dasBelas Artes, os gneros definiam os limitesinternos e externos das obras de arte, o seu desaparecimento significou o fim dasfronteiras internas s obras de arte. Qualquer coisa pode ser arte e, uma vez dentro domundo da arte, tudo o igualmente. Isso significa que o mundo da arte tornou-se dealgum modo, maior, e a possibilidade de incluir nele qualquer coisa, nos mostra queessa expanso no tem limites. No entanto, a existncia mesma do conceitoarte indicaque, de algum modo, os seus limites externos permanecem, marcando uma separaoentre o que arte e o que no . Nesse ponto podemos apontar duas questes. Uma sobre como as coisas passam de meros objetos comuns obras de arte, e a outra sobre

    a possibilidade de ultrapassar esse ltimo limite entre a arte e a vida, superando atmesmo o uso do conceito arte.De Duve afirma que o juzo esttico que separa, nesse campo de infinitas

    possibilidades da arte em geral, aqueles objetos que se tornaro de fato arte. Maisprecisamente, o juzo esttico regulado por uma ideia de tipo kantiana, a ideia queexiste a arte em si, ou seja, de que todas as obras de arte do mundo devam possuiralguma coisa em comum, mesmo que isso no seja mostrvel nem demonstrvel4.Minha viso wittgenstaniana me impede de seguir essa soluo kantiana, embora eu sejasimptica ideia que De Duve quer preservar, a de que nomear algo como arte s podeser o resultado de uma experincia esttica entendida como uma experincia inefvel e

    pessoal. Assim, em vez dessa soluo kantiana, eu gostaria de abordar a questo de

    4De Duve, idem, p. 94.

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    como aquilo que pode ser se torna de fato arte a partir da exposio de algumas ideiasdantianas, que, a meu ver, tm mais afinidades com a filosofia de Wittgenstein do que o

    prprio Danto gostaria de admitir.

    ***

    Uma das afirmaes que se encontra repetida muitas vezes no texto de Danto ade que vivemos em uma poca de absoluta liberdade da arte. A expresso fim da arte,um dos fios condutores do seu pensamento, nomeia exatamente o fim dos limitesinternos da arte, quer dizer, o abandono de todo e qualquer cnone historicamente

    justificado, presente no desenvolvimento da arte desde o Renascimento at o fim doModernismo.

    Danto diz, na Transfigurao do Lugar-comum, que o que o artista expressa uma viso de mundo, mas no apenas uma viso pessoal, e sim a viso de uma poca nosentido histrico. Mas, como para ele a histria da arte acabou em 1964, com a Brillo

    Boxde Andy Warhol, Danto reformula esta tese dizendo que a arte se relaciona agora

    no com um momento histrico, mas com umaforma de vida, outro conceito central dafilosofia de Wittgenstein. Dito de outra forma: na arte histrica, a arte est sempreconectada a um perodo histrico de uma determinada sociedade e sua evoluo noultrapassa o desenvolvimento social. Na arte ps-histrica no h mais a ideia deevoluo na arte porque o seu objetivo (autoconscincia) foi alcanado, mas a arte

    permanece conectada a um mundo que a produz. Para designar esse mundo, Danto usa oconceito de forma de vida.5

    De acordo com Danto, teria sido Warhol quem, tendo Duchamp como precursor,demonstrou que agora podemos finalmente compreender e aceitar que todas as formasde arte so vlidas. Ele teria mostrado que no h mais um imperativo histrico parafazer arte de uma determinada maneira, isto , no existem mais os limites da histria,

    porque no existem mais as exigncias do talento especfico do artista como saberdesenhar, ou pintar, ou tocar, etc. Vivemos numa poca de extrema liberdade, comoHegel profetizou: agora tudo pode ser arte e todos podem ser artistas. hegelianatambm a ideia de Danto de que a absoluta liberdade da arte depois do fim da arte

    provm de estarmos conscientes da ausncia de liberdade que teria caracterizado operodo histrico da arte. Desse modo, a superao dos gneros e a passagem aoconceito so aspectos de um mesmo processo histrico.

    Nesse sentido, podemos afirmar que tambm para Danto qualquer coisa pode serarte, j que nada proibido. No entanto, como ele mesmo afirma vrias vezes, a arteest sempre conectada a um mundo, ou a uma forma de vida, que a produz. Na

    contemporaneidade esse mundo no mais histrico, ento no existem mais os limitesda histria. Mas existem ainda os limites da nossa forma de vida. Assim, s uma coisano nos permitida, porque impossvel: expressar uma forma de vida que no anossa. Ou seja, a nossa forma de vida que fundamenta nossas prticas artsticas, assimcomo nela que se fundam os significados da palavra arte, bem como as regras para seuuso. Do mesmo modo em que no possvel para uma pessoa viver uma vida que no a sua, impossvel fazer uma arte que expresse uma vida que no a sua.

    Nesse sentido, interessante perceber uma das diferenas entre a resposta de DeDuve e a de Danto quanto questo dos limites externos da arte. De Duve kantiano esua soluo passa pela autonomia do sujeito da experincia esttica que julga a partir de

    5

    A expresso forma de vidaobviamente vem de , que disse que imaginar uma linguagem imaginaruma forma de vida (IF, 19). Mas o mesmo se pode dizer sobre a arte: imaginar uma obra de arte imaginar uma forma de vida na que ela desempenha um papel. (Danto, 2006, p.225)

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    uma ideia reguladora. J Danto, com sua inspirao hegeliana, considera a arte umaproduo histrica e social. Mesmo a noo de conscincia histrica, que central noseu texto, no uma conscincia individual, mas uma percepo coletiva dodesenvolvimento concreto, e dialtico, das formas artsticas.

    ARTE=VIDA

    A ideia que a arte expressa uma viso de mundo carrega uma distino fundamental nateoria da arte de Danto. Obras de arte so smbolos, so representaes do mundo, ecomo representaes so ontologicamente distintas daquilo que representam. O quediferencia as obras de arte de meras coisas reais, diz Danto, o fato de que elas tm umsobre-o-qu. Obras de arte tem contedo, e a intepretao deste contedo, tendo comoreferncia o mundo da arte ao qual a obra pertence, o critrio que permite distinguir asmeras coisas comuns das obras de arte. Assim, a definio da arte de Danto coloca aquesto dos limites externos da arte de uma forma muito precisa, pois estabelece umaseparao muito clara entre a arte e a realidade. E no exagerado enfatizar que esta

    distino fundamental na filosofia da arte de Danto. Todo seu esforo terico nosentido de fornecer uma definio da arte repousa na crena de que o limite entre o que e o que no arte pode, e deve ser traado atravs de uma definio.

    No livro A transfigurao do lugar-comum Danto retoma a narrativa deNietzsche sobre a origem da tragdia e diz que a arte surgiu na Grcia Antigaexatamente quando o ritual em honra ao deus Dionsio, no qual o prprio deus se fazia

    presente encarnando na pessoa do sacerdote, foi substitudo por sua reproduosimblica na forma do teatro trgico.6 A partir desse momento, os participantes doritual passaram a constituir o coro, da mesma forma que um ator passou a representaro

    papel do deus. Nessa passagem, diz Danto, vemos uma mudana no prprio sentido dapalavra representao. No ritual, havia uma (re)apresentao do deus. No teatro, umarepresentao dele. Estes dois sentidos do termo representao estariam ligados tambmaos dois sentidos do termo aparncia. No primeiro, aparncia seria o aparecer de umacoisa, no segundo, aparncia um termo que se ope realidade. Essa segundadistino diz Danto, est na origem, tanto da arte quanto da filosofia. E tambm umadistino fundamental na teoria do Tractatus de Wittgenstein onde a distino entrelinguagem e realidade a base de uma teoria da linguagem como espelho da realidade.De fato, o prprio Danto assume que a teoria do Tractatus base para sua concepo daarte em termos simblicos:

    (...), o que me preocupa nesse momento (...) a diferena entrerealidade e arte. Procurei mostrar que essa diferena reside no fato deque a arte se distingue da realidade da mesma maneira que alinguagem quando esta utilizada de maneira descritiva (...). Isto noquer dizer que a arte uma linguagem, mas que sua ontologia coerente com a ontologia da linguagem, e que o mesmo contraste quea ope realidade existe entre esta e o discurso. (...) O valor filosficoda arte reside no fato histrico de, em seu surgimento, ter ajudado atrazer conscincia dos homens o conceito de realidade.7

    A convico com a qual Danto defende a separao entre a arte e a realidade, ou entre aarte e a vida corresponde e reconhece no s a passagem do mito ao logos, fundadora do

    6Danto, 2004, pp. 55-597Danto, idem, p. 136. Ver tambm 129-132, 134-136.

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    pensamento do ocidente, mas tambm o processo atravs do qual a prpria arteocidental adquiriu a sua autonomia. De fato, desde o Renascimento, a arte europeia foiconsolidando um lugar prprio dentro da cultura separando-se da religio, da cincia eda poltica. Nesse processo, a noo de contemplao esttica e o estabelecimento dos

    princpios e mtodos da histria da arte foram instrumentos importantes de legitimao

    da arte em seus prprios termos. Alm disso, o museu, e depois o cubo branco dasgalerias, assim como o palco e a tela de cinema tambm contriburam para a autonomiada arte, pois criaram um espao privilegiado para que a experincia esttica pudesseacontecer em suas condies ideais, separada da vida. Nesses espaos, o sujeitodesligado do mundo poderia viver uma experincia independente de todo interesse, livrede preocupaes mundanas e egostas, como queria, por exemplo, Kant. Ao final desse

    processo, surge o que ns chamamos de arte institucionalizada, um espao que Dantochama de mundo da arte. Um mundo com suas prprias regras, sua histria, seusvalores e que tem no seu centro objetos que so ontologicamente distintos dos que estofora dele.

    Essa a viso dantiana das coisas, uma viso conservadora apoiada numa

    concepo ortodoxa da histria e da cultura. Uma viso aparentemente otimista, mas sporque acredita que a nica utopia possvel j se realizou. Para Danto, basta que tenhamsido superados os limites internos da arte e que o artista tenha agora liberdade total paracriar. No possvel, nem desejvel que ele ultrapasse o ultimo limite da arte, ou seja, aseparao entre a arte e a vida. 8Sobre isso, o captulo Arte e Disturbao do livro Odescredenciamento filosfico da arte bastante sintomtico. Logo nas primeiras

    pginas Danto qualifica sua abordagem do seguinte modo:

    Neste ensaio, pretendo me ocupar dessa extraordinria profuso deformas de arte que cresceram como aglomerados nas bordas do queera tido como os limites da arte: formas de arte que parecem, na

    superfcie, querer retroceder com esses limites, colonizar, por assimdizer, a margem ocidental da vida pela arte formas de arte marcadaspor uma curiosa efemeridade e indefinio, que eu designarei de artesda disturbao.9

    O uso do termo disturbao, um neologismo em portugus, foi propositadamentepensado para evocar o seu termo prximo, masturbao. A ideia que, assim como namasturbao, imagens e fantasias produzem um orgasmo real, nas artes da disturbaose produz um espasmo existencial por meio da interveno das imagens na vida. Naviso de Danto, essas artes estariam tentando retroceder daqueles limites ultrapassadosquando o ritual dionisaco transformou-se em teatro trgico. como se os artistas

    estivessem de algum modo se vendo como xams restaurando o elemento mgico daarte, ou melhor, usando a arte para produzir algo mgico na realidade. 10Danto se refere

    8 interessante observar que Danto no se ope, e na verdade, duvida da possibilidade de estabelecerlimites entre a arte e a filosofia. Se a arte agora uma investigao conceitual sobre os seus prprioslimites, porque no poderia, por exemplo, o seu livro A transfigurao do lugar-comum, ser lido comouma obra de arte?9Danto, 2013, p. 157.10Danto considera essas tentativas patticas, mas ele reconhece que isso pode ser uma dificuldade delemesmo, de conseguir se ver como algum que participa delas. Ao mesmo tempo, se as artes disturbatriastm o seu lugar legitimo dentro da cultura, toda a teoria de Danto, no seu sentido propriamente hegeliano,est simplesmente errada. E aqui podemos lembrar o teatro de Z Celso Martinez, um exemplo bvio de

    um diretor que prope uma forma de teatro trgica, no representacional, mas ritualstica. A existncia doteatro de Z Celso pode ser vista como uma prova de que a tese de Danto est errada e que, ao contrriodo que ele diz, podemos sim retornar a um esprito trgico na arte. Mas talvez seja interessante refletir

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    inicialmente formas de arte que contm alguma radicalidade de procedimento, comopor exemplo, a performanceDead Mande Chris Burden, na qual ele se enfiou num sacoe deitou em uma rodovia. Felizmente, a morte do artista no aconteceu, mas poderia teracontecido e seria como um fato tragicamente real incorporado obra.

    Mas em outro sentido mais comum, ao qual j nos referimos acima, as artes da

    disturbao so apenas aquela que, inspiradas no ready made duchampiano buscamsuperar a distancia entre arte e realidade produzindo uma arte no imitativa. Nanarrativa de Danto como se os artistas estivessem em uma misso em busca de umaespcie de promoo ontolgica, escapando ao descredenciamento filosfico operado

    por Plato quando este condenou as artes imitativas a um modo de existncia inferioracusando-as de serem apenas cpias das cpias das Ideias.11Ao transfigurar um urinolem obra de arte Duchamp teria escalado pelo menos um degrau na escala do Ser, umavez que a obra agora no uma imitao, mas um objeto real. A arte conceitual seriauma culminao desse processo, uma vez que nela no h nem mesmo a necessidade deum objeto fsico, e a obra pode ser de fato, constituda somente por uma ideia. Nessemomento, argumenta Danto, a arte alcana o mesmo patamar da filosofia, pois torna-se

    ela mesma uma investigao conceitual.Mas, embora considere desejvel o apagamento das fronteiras entre arte e

    filosofia, Danto no pensa o mesmo sobre os limites entre a arte e a vida. Curiosamente,suas consideraes oriundas do seu interesse genuno sobre os artistas que tentaramabolir essa diferena so to pertinentes e reveladores que em algum momento nos

    perguntamos o porqu de tanta resistncia em admitir que o desejo de fundir a arte avida no s possvel quanto legitimo. E no s isso, talvez de algum modo essasfronteiras j tenham sido, pelo menos em parte, apagadas. De fato, desde o modernismoo propsito de eliminar os limites entre arte e vida j esteve presente nas poticas dosartistas. Ou seja, ao mesmo tempo em que a autonomia da arte se consolidava, que seuespao separava-se do espao comum, aparecia nos artistas o desejo de abolir adistncia entre a arte a vida.

    No entanto, como o prprio Danto reconhece, a reao espontnea (dos museus?do mercado? do sistema?) com relao s artes da disturbao justamente desarm-la

    por cooptao. Quase sempre estas obras so incorporadas aos museus e galeriastornando-se completamente inofensivas e distantes das formas de vida s quais elas

    buscavam combater. Na verdade, uma espcie de jogo de gato e rato. Ao mesmotempo em que os artistas buscam formas de ir alm dos limites da arte, sua produo incorporada expandindo os seus limites, mas jamais rompendo definitivamente comeles, pois o sistema atual das artes parece ser elstico o suficiente para incluir qualquercoisa. O artista de fato, s pode ampliar o conceito arte, contribuindo para apagar seus

    limites internos, mas no pode romper com seus limites externos, pois isso significaabandonar a prpria arte.12

    tambm sobre as diferenas entre a forma de vida que produziu um teatro como o de Z Celso e a formade vida a partir da qual Danto emergiu como um filsofo da arte.11A tese principal do livro O Descredenciamento filosfico da arte a de que Plato teria, especialmentenos argumentos anti-arte da Repblica, realizado uma espcie de desvalorizao irreversvel do valor daarte. Curiosamente, ao valorizar a passagem do mito ao logos, o grande legado da filosofia platnica, aomesmo em que defende a arte contempornea como uma arte filosfica, Danto consegue ser platonista eanti-platonista ao mesmo tempo.12A artista brasileira Lygia Clark, por exemplo, no comeo da dcada de 70, depois de uma longa carreira

    na qual desenvolveu obras que buscavam a participao do espectador e sua interao com objetossensoriais, parou de se definir como artista e passou a se concentrar no desenvolvimento de experinciassensoriais e seu uso teraputico.

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    Assim, se por um lado, fazer algo como artista significa escolher permanecerdentro das fronteiras da arte, por outro, existem cada vez mais pessoas e ou grupos

    buscando colocar na vida a liberdade e a potncia da arte sem se preocupar com ortulo, com o propsito de se libertar da assepsia que a arte necessariamente realiza.A superao completa dessa ltima fronteira parece ser o prximo passo, e talvez o

    melhor a fazer seja seguir a sugesto de Agamben e deixar a arte seguir seu prpriocaminho:

    E, com isso , abandonar tambem a ideia de que haja alguma coisacomo uma suprema atividade artstica do homem que , por meio de umsujeito, realiza-se numa obra ou numa energeiae que extraia destas oseu incomparavel valor. Diria que epreciso redesenh ar desde o incioo mapa do espac o em que a modernidade situou o sujeito e as suasfaculdades. Artista ou poeta nao equem tem a potncia ou a faculdadede criar e que , um belo dia , por meio de um ato de vontade ouobedecendo uma injunc ao divina , decide, como o deus dos teo logos ,no se sabe como e por qu , executar algo. Assim como o poeta e opintor, tambm o carpinteiro , o sapateiro , o flautista , enfim, todohomem, no so os titulares transcendentes de uma capacidade de agirou de produzir obras. Ao contrario, so viventes que no uso , e apenasno uso, de seus membros como do mundo que os circunda fazemexperincia de si e constituem -se como formas -de-vida. A arte e apenas o modo no qual o ano nimo que chamamos artista , mantendo-seem constante relao com uma pra tica , procura constituir a sua vidacomo uma forma-de-vida. A vida do pintor , do mu sico, do carpinteiro,nas quais, como em toda forma -de-vida, est em questo nada menosdo que a sua felicidade.13

    Devemos reconhecer, no entanto, que desde o modernismo, e mais ainda no ps-modernismo, a arte se tornou o lugar no qual todas as formas de produo de sentidoque no servem a algum interesse ou seguem alguma lgica determinada encontramsuporte e plena liberdade de expresso e ao. Eliminar o conceito arte em prol da vidadepende de superar a ideia da arte como transcendncia, ou seja, significa dizer que anossa sociedade no precisa mais desse espao autnomo de criao e liberdade que arteresguarda, pois a liberdade e a criao estariam finalmente incorporadas nossa formade vida. Poderia ser este talvez o verdadeiro e definitivo fim da arte.

    Referncias bibliogrficas

    Agamben, G. Arqueologia da obra de arte. Transliterao e traduo de Vincius N.Honesko.Princpios. V. 20, n.34, JulDez de 2013, pp. 349-361. Natal, RN.Danto, A.A transfigurao do lugar-comum. Traduo Vera Pereira. So Paulo: Cosac& Naify. 2005

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    13Agamben, 2013, p. 361

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