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ARTIGOS 373 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 17(3): 373-383, dezembro, 2005 Assessoria fonoaudiológica na escola: sob o efeito da escrita e sua aquisição Carolina A. P. Barcellos * Regina M. Freire ** Resumo Ao analisar criticamente o procedimento de triagem fonoaudiológica realizado nas escolas, o artigo recorta o erro na escrita e problematiza seu estatuto, alçando a vertente teórica do Interacionismo Brasileiro em Aquisição de Linguagem, que o toma como marca da posição do sujeito no discurso. A análise das posições discursivas do professor e do fonoaudiólogo diante da escrita de um aluno em processo de alfabetização permite um contraponto entre os sentidos que o professor, de sua posição de alfabetizador, e o fonoaudiólogo, de sua posição de assessor escolar, atribuem ao erro que se presentifica na escrita do aluno. A análise do que se manifesta sob a forma de erro permite sua releitura como indício do processo de aquisição da escrita, que pede apenas interpretação e não formas de superação. A experiência advinda dessa atividade dialógica entre professor e fonoaudiólogo permite o delineamento de alguns princípios teóricos que apontam a urgência do redirecionamento da atuação do fonoaudiólogo na escola. Palavras-chave: assessoria; escrita; escola; fonoaudiologia; interacionismo; linguagem. Abstract Critically analyzing the procedure of the speech therapy selection accomplished at schools, the article cuts out the mistake of the writing and impeaches its rule, raising the theoretical thinking of the Brazilian Interactionism in Language Acquisition, which takes it as the standard of the subject position in the speech. The analysis of the teacher and the speech therapist positions in face of the writing of a student who is in the process of learning how to read and write, permits a comparison between the feelings that the teacher – from his position as an educator – and the speech therapist – from his position as a school adviser – assign to the mistake that occurs in the student's writing. The analysis of what appears as a mistake reassures its rereading as a trace of the process of writing acquisition which requires only interpretation and not overcoming ways. The experience resulting from this dialogic activity between teacher and speech therapist enables the outlining of some theoretical principles pointing out to the urgency of the shift in the speech therapist's performance at school. Key-words: staff; written; school; phonologic; interactionism; language. * Mestre em Fonoaudiologia pela PUC-SP; docente do curso de Fonoaudiologia da Fatea-Lorena/SP; assessora escolar em Fonoaudiologia. ** Doutora em Psicologia da Educação e mestre em Lingüística Aplicada pela PUC-SP; professora titular do Programa de Estudos Pós-graduados em Fonoaudiologia e da Faculdade de Fonoaudiologia da PUC-SP.

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373 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 17(3): 373-383, dezembro, 2005

Assessoria fonoaudiológicana escola: sob o efeitoda escrita e sua aquisição

Carolina A. P. Barcellos*

Regina M. Freire**

Resumo

Ao analisar criticamente o procedimento de triagem fonoaudiológica realizado nas escolas, o artigorecorta o erro na escrita e problematiza seu estatuto, alçando a vertente teórica do InteracionismoBrasileiro em Aquisição de Linguagem, que o toma como marca da posição do sujeito no discurso. Aanálise das posições discursivas do professor e do fonoaudiólogo diante da escrita de um aluno emprocesso de alfabetização permite um contraponto entre os sentidos que o professor, de sua posição dealfabetizador, e o fonoaudiólogo, de sua posição de assessor escolar, atribuem ao erro que se presentificana escrita do aluno. A análise do que se manifesta sob a forma de erro permite sua releitura como indíciodo processo de aquisição da escrita, que pede apenas interpretação e não formas de superação. Aexperiência advinda dessa atividade dialógica entre professor e fonoaudiólogo permite o delineamentode alguns princípios teóricos que apontam a urgência do redirecionamento da atuação do fonoaudiólogona escola.

Palavras-chave: assessoria; escrita; escola; fonoaudiologia; interacionismo; linguagem.

Abstract

Critically analyzing the procedure of the speech therapy selection accomplished at schools, thearticle cuts out the mistake of the writing and impeaches its rule, raising the theoretical thinking of theBrazilian Interactionism in Language Acquisition, which takes it as the standard of the subject positionin the speech. The analysis of the teacher and the speech therapist positions in face of the writing of astudent who is in the process of learning how to read and write, permits a comparison between thefeelings that the teacher – from his position as an educator – and the speech therapist – from his positionas a school adviser – assign to the mistake that occurs in the student's writing. The analysis of whatappears as a mistake reassures its rereading as a trace of the process of writing acquisition which requiresonly interpretation and not overcoming ways. The experience resulting from this dialogic activity betweenteacher and speech therapist enables the outlining of some theoretical principles pointing out to theurgency of the shift in the speech therapist's performance at school.

Key-words: staff; written; school; phonologic; interactionism; language.

* Mestre em Fonoaudiologia pela PUC-SP; docente do curso de Fonoaudiologia da Fatea-Lorena/SP; assessora escolar emFonoaudiologia. ** Doutora em Psicologia da Educação e mestre em Lingüística Aplicada pela PUC-SP; professora titular doPrograma de Estudos Pós-graduados em Fonoaudiologia e da Faculdade de Fonoaudiologia da PUC-SP.

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Carolina A. P. Barcellos, Regina M. Freire

Introdução

A entrada da Fonoaudiologia nas escolas deveu-se, em parte, à preocupação dos professores com oprocesso de alfabetização de seus alunos. O fonoau-diólogo, ao eleger a triagem escolar como o lugarprivilegiado de seu fazer, acabou por fundamentaras incertezas que a escrita inicial provocava nos pro-fessores. Essas triagens, ao tomarem o erro na escri-ta da criança como sintoma de dificuldades de apren-dizagem ou até mesmo de distúrbios de escrita, trou-xeram como conseqüência uma onda de encaminha-mentos de escolares para as clínicas fonoaudiológi-ca, psicológica e psicopedagógica.

Atualmente, o fonoaudiólogo ampliou as suaspossibilidades de atuação na escola e passou a inte-grar a equipe educacional como assessor, participan-do de reuniões de planejamento escolar e propondoum debate com essa equipe sobre as relações entre oprocesso de aquisição da escrita, o letramento1, aalfabetização e os chamados distúrbios da leitura eda escrita. No entanto, o interesse dos professorestambém está nos erros que ocorrem na escritados alunos, trazendo de volta à cena a triagemfonoaudiológica, e em sua esteira, o encaminhamentode escolares para atendimento clínico.

Porém, partindo da afirmação de que há equí-vocos sustentando a atuação do fonoaudiólogo naescola, iremos, em um primeiro momento, ques-tionar o procedimento de triagem fonoaudiológicae, em um segundo momento, problematizar o errona escrita, com o intuito de desmistificá-lo comoevidência de uma condição patológica. Nosso ob-jetivo é apontar para uma outra forma de fazer Fo-noaudiologia dentro da escola que se afaste do jáestabelecido, justificá-la e indicar a amplitude deseu alcance.

A análise critica do procedimento de triagemfonoaudiológica na escola estará assentada sobreconhecimentos advindos da Lingüística, em espe-cial da vertente teórica do Interacionismo Brasilei-ro. O erro presente na escrita infantil é tomado peloInteracionismo como efeito do funcionamento dalíngua, que implica o movimento da criança diantedo processo de sua constituição como sujeito na/da escrita.

Para colocar em cena o erro em aquisição deescrita, apresentamos dados discursivos que mate-rializam a situação de assessoria escolar fonoau-diológica, revelando a demanda do professor, suasconcepções sobre o processo de alfabetização e oerro na escrita. Esses dados também revelam a

Resumen

Analizando críticamente el procedimiento de triage auditivo en las escuelas, el artículo recorta elerror de la escritura y lo pone en duda, apoyándose para eso en el pensamiento teórico del InteractionismoBrasileño en la Adquisición del Lenguaje, que lo toma como marca de la posición del sujeto en eldiscurso. El análisis de la discursividad del profesor y del fonoaudiólogo frente a la escritura de unalumno en el proceso de alfabetizaación, permite hacerse un contrapunto entre los sentidos que el profesor,desde su lugar de educador y, el fonoaudiólogo, de su lugar de asesor escolar, atribuyen al error queaparece en la escrita del alumno. El análisis de lo que se manifiesta bajo la forma de error permite surelectura como huella del proceso de adquisición de la escrita, que pide apenas interpretación y nomodos de superación. La experiencia advenida de esta actividad dialógica entre el profesor y elfonoaudiólogo, permite diseñar algunos principios teóricos que señalan la urgencia de redimensionar elmodo de actuar del fonoaudiólogo en el ámbito escolar.

Palabras clave: personal; escrito; escuela; interactionismo; lengua.

1 Segundo Tfouni (1995, p. 9), “ a alfabetização e o letramento são processos de aquisição de um sistema escrito (...) o letramento,por sua vez, focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita. Entre outros casos, procura estudar e descrever o queocorre nas sociedades quando adotam um sistema de escitura de maneira restrita ou generalizada: procura ainda saber quaispráticas psicossociais substituem as práticas ‘letradas’ em sociedades ágrafas. Desse modo, o letramento tem por objetivo investi-gar não somente quem é alfabetizado, mas também quem não é alfabetizado, e, nesse sentido, desligar-se de verificar o individuale centralizar-se no social”.

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posição da fonoaudióloga que está compromissa-da com o processo de aquisição de escrita, não coma busca de distúrbios de linguagem na escola.

Problematizar a demanda do professor e, emespecial, o erro presente na escrita infantil re-dire-ciona a atuação fonoaudiológica na escola, tirandode cena a triagem fonoaudiológica. Trata-se, emúltima instância, de aproximar o fonoaudiólogo daproposta educacional e distanciá-lo de dizeres efazeres próprios da clínica.

A fonoaudiologia escolar:críticas preliminares

A Fonoaudiologia encontra-se em um mo-mento de reflexão e revisão de sua origem,de seus fundamentos teóricos e de sua prá-tica, ou seja, num repensar de seus alicer-ces teórico-metodológicos.

Regina Freire2

O procedimento de triagem fonoaudiológica éum dos possíveis responsáveis pela concepção queo professor e a escola têm sobre o erro na escritado aluno, pelas razões que passamos a comentar.

Ao analisar a escrita da criança com o objetivode acompanhar seu processo de alfabetização, o pro-fessor preocupa-se com os erros presentes nessa es-crita. A proposta do fonoaudiólogo atuante na esco-la, desde trabalhos pioneiros e até hoje referenda-dos, era detectar alunos com alterações fonoaudio-lógicas por meio da triagem fonoaudiológica.

Estudos organizados por Ferreira (1991) e La-grotta (1997) contemplam a realização da triagemfonoaudiológica visando o posterior encaminha-mento de alunos para o atendimento clínico fo-noaudiológico e a realização de reuniões com paise professores para revelar as dificuldades dos alu-nos. As triagens, nesses estudos, também são rea-lizadas para que o fonoaudiólogo conheça a reali-dade da escola e realize ações preventivas, queevitem ou minimizem doenças fonoaudiológicasjá existentes. Os estudos organizados pelas auto-ras fornecem espaço para a legitimação do proce-dimento de triagem fonoaudiológica nas escolas,cujo objetivo é identificar problemas fonoaudio-lógicos entre os alunos. Tais problemas são de-tectados por meio de testes, exames e avaliações,

que se assentam sob a concepção de erro comoevidência de condição patológica, sem que o mes-mo seja questionado.

Cabe ressaltar os estudos de Giroto (1999), quequestiona o fato de o professor realizar o primeirodiagnóstico, ou melhor, ser o primeiro a rotular acriança, e o fonoaudiólogo escolar, na maioria dasvezes, confirmar esse parecer e acabar por patolo-gizar o aluno.

Sacaloski, Alavarsi e Guerra (2000) afirmamque o fonoaudiólogo atua na escola como assessor,participando do planejamento escolar e transmitin-do informações e sugestões da área aos professo-res, e como consultor, orientando sobre os proble-mas detectados em triagens fonoaudiológicas.

Conforme relata Calheta (2001), o fonoaudió-logo, no contexto escolar, precisa desenvolver pro-jetos de assessoria, o que a autora descreve comoinvestigações da realidade da instituição escolar eações junto aos educadores.

O trabalho de Mallmann (2001) propõe ênfaseno procedimento de triagem fonoaudiológica, quecorresponde a uma bateria de testes que verificama linguagem oral e/ou escrita da criança. Após olevantamento das alterações fonoaudiológicas dosalunos, o fonoaudiólogo orienta os professores paraque estes possam realizar atividades de estimula-ção para beneficiar o desenvolvimento dos alunos.O trabalho da autora privilegia os procedimentosde triagem fonoaudiológica e orientação, conside-rando o erro na linguagem oral/escrita como as-pecto relevante.

Um outro estudo que contempla ações conside-radas preventivas na escola é o de Souza (2002),cuja proposta objetiva, em um primeiro nível, aatuação na promoção da saúde por meio da orienta-ção aos professores e pais com relação às etapas dedesenvolvimento infantil, assim como pela realiza-ção de trabalhos de estimulação visando favorecer odesenvolvimento das habilidades necessárias para oaprendizado da leitura e escrita; no segundo nível,propõe atuar na escola por meio de triagens e ava-liações, detectando assim, precocemente, as dificul-dades surgidas no processo de aprendizagem e en-caminhando o mais cedo possível ao atendimentoclínico para promover a melhora; e, finalmente, noterceiro nível, a realização do atendimento fonoau-diológico em clínica particular.

2 Texto “Patologia de Linguagem: uma nosologia” da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (s/d).

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Carolina A. P. Barcellos, Regina M. Freire

Essas propostas de atuação foram, sem dúvi-da, as primeiras possibilidades de inserção do fo-noaudiólogo na escola, mas, diante dessas, muitasoutras ainda estão por vir.

Por muito tempo, a formação do fonoaudiólo-go norteou-se por uma visão de sujeito psicológi-co, cujo desenvolvimento é da ordem da cogniçãoe encontra-se atrelado à concepção de períodos oufases, organizadas por ordem de complexidade, quedevem ser alcançadas e ultrapassadas em direçãoao amadurecimento desse mesmo sujeito. Assim,um atraso no desenvolvimento poderia ocorrer de-vido a certas circunstâncias maturacionais ou am-bientais. Nessa visão, a criança erra por não co-nhecer o seu objeto de conhecimento – a escrita – eesse não-saber sobre o objeto remete a alteraçõesde ordem cognitiva e perceptual. Aqui não há es-paço para o que é da ordem do lingüístico, poiseste não teria autonomia; seu estatuto é reduzido àmanifestação do domínio cognitivo.

Em função dessa visão de sujeito, deve-se res-saltar também que os procedimentos de triagemfonoaudiológica em escolas procuram homogenei-zar e higienizar3 os dados de linguagem, ou seja,as triagens visam à categorização dos dados empí-ricos de linguagem e a conseqüente eliminação dosque não são categorizáveis. No entanto, são justa-mente esses dados que, por serem singulares e va-riáveis, pedem interpretação, marcam a subjetivi-dade do falante/escriba e marcam seu percurso emrelação à escrita.

O que é considerado nos procedimentos emquestão são as formas materiais da linguagem – afala e a escrita, interpretadas como manifestaçõesde aspectos perceptuais, cognitivos, maturacionais,ambientais, entre outros. E o erro, por sua vez, queemerge nessas materialidades, especialmente naescrita, é entendido como evidência de uma altera-ção no processo de desenvolvimento de linguagem,ou mesmo como um desvio, que impede a criançade atingir o estatuto de sujeito letrado.

Após a finalização do procedimento de tria-gem fonoaudiológica, o aluno é encaminhado aoatendimento clínico fonoaudiológico, para que suassupostas inadequações relativas à linguagem – oral

e/ou escrita – sejam enfim corrigidas, aproximan-do-o do padrão de normalidade. Dessa testagem aque os alunos são submetidos resulta uma conclu-são inquestionável: a crença, para pais e professo-res, de que seus filhos/alunos falharam no proces-so de aquisição da escrita, devido a uma causa ine-rente a sua constituição. Cabe a esses pais e pro-fessores aguardarem a alta fonoaudiológica.

Para problematizar o erro supostamente indi-cativo de um distúrbio de leitura e de escrita, en-fatizo o trabalho de Freire (1997), que analisa cri-ticamente os aspectos, considerados, por outrosautores, necessários para o ato de ler: percepção ediscriminação de formas e sons, associação desons com a aparência visual das letras, ligação denomes com grupos de letras e significados comgrupos de palavras, fatores auditivos, motores,visuais e de memória. Tais aspectos, elencadospela autora, perpassam o domínio orgânico/cog-nitivo, o que exclui a natureza simbólica e subje-tiva da linguagem.

Freire salienta, nesse estudo, a questão do fra-casso escolar, ou seus diversos termos parafrási-cos (distúrbio de leitura e de escrita, dificuldadesde leitura, problemas de aprendizagem, entreoutros), que atribuem à escrita o estatuto patoló-gico, cuja causa está relacionada à disfunçãocerebral, ao atraso maturacional, às alteraçõesinatas e/ou hereditárias.

A autora também afirma que o uso alternadode letras como B/P e outros pares mínimos4 nãopode ser explicado do ponto de vista perceptual,mas indica que nesse momento da aquisição da es-crita a contigüidade dessas letras permite entenderambas como formas alternativas de escrever o mes-mo; o que ocorre também com erros consideradosortográficos, em que o sentido não é afetado para oautor (aluno).

Nesses momentos, em que a criança erra naescrita, podemos afirmar, com base na abordagemteórica do Interacionismo Brasileiro, que a criançaainda não foi totalmente assujeitada por essa mo-dalidade do simbólico,5 pois somente após ser cap-turada pela linguagem é que a criança escreve comopropõe a língua. Em outras palavras, à medida que

3 Termos utilizados por Lier-De Vitto (1994) em seus estudos sobre os monólogos da infância.4 Os pares mínimos são fonemas que se distinguem por apenas um traço, de sonoridade, de ponto ou modo de articulação.5 Para o Interacionismo Brasileiro, o sujeito é assujeitado pela linguagem do Outro, e este Outro é instância de funcionamentolingüístico-discursivo, é lugar de funcionamento da língua a ser constituída. Tal concepção teórica difere da noção de sujeitopsicológico, citada no texto.

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a criança for sendo aprisionada pela trama dessamodalidade do simbólico, a escrita, ela irá se dis-tanciando da singularidade da sua escrita e seassemelhando àquela do adulto/da língua.

Freire (1997) relata dois fatos que levam acriança a se deslocar em relação a sua escrita: oprimeiro deles é o efeito-leitor, ou seja, o fato deque o leitor sofre um efeito diverso do antecipadopela criança se a sua escrita não corresponder àforma padrão. O segundo deles é o efeito-leitura,ou seja, o fato de que, ao ler, a criança se deparacom formas escritas que diferem da sua, emborasignifiquem o mesmo, o que gera efeitos que a le-vam a se interrogar e a interrogar o outro, o intér-prete da escrita padrão. Desta forma, é a interpre-tação da escrita que re-significa os chamados errosinfantis e, aos poucos, assujeita a criança à ordemda língua, apagando os traços desse percurso deconstituição.

De acordo com a autora, esse olhar sobre a es-crita possibilita reconhecer o erro como indicadordo efeito do funcionamento do texto escrito sobrea criança. Interpretar o texto infantil é uma formade escutar a criança e ouvir o que ela tem a dizersobre a escrita que a domina, e que, ilusoriamente,parece ser passível de ser dominada.

Freire conclui, nesse estudo, que o erro preci-sa ser visto como parte constitutiva do percurso deaquisição da escrita, e que não pode, isoladamentee fora do contexto clínico, ser tomado como indí-cio de um distúrbio de leitura e de escrita.

A problematização do errona escrita infantil

... erros são fragmentos que a orquestraçãodos eixos metafóricos e metonímicos fazaparecer ... erros estão submetidos à lei dofuncionamento da língua.

Lier-De Vitto (1997 p. 29)

Uma das possibilidades da assessoria escolarfonoaudiológica, tal como aqui propomos, é ouvira demanda do professor. Essa demanda, articuladaà escrita de um aluno, será o suporte empírico deum processo de decifração que parte do erro comoum indício do processo de aquisição da escrita.

Apresentamos a seguir o questionamento deuma professora sobre sua aluna da 2ª série do En-sino Fundamental, com o intuito de materializar aproposta de assessoria escolar fonoaudiológica.

Essa professora foi convidada e consentiu em par-ticipar deste estudo, levada pelo seu interesse emfalar sobre uma aluna que, segundo seu própriojulgamento, apresenta dificuldades no processo dealfabetização. A situação empírica foi gravada,transcrita e transformada em dados discursivos.

A escrita da criança, à qual a professora serefere, também é apresentada neste estudo, poiscontamos com a permissão dos pais. O termo deconsentimento destinado aos pais da criança e àprofessora foi analisado e aprovado pelo Comitêde Ética em Pesquisa da PUC-SP.

A partir do registro escrito dessa transcrição,foi possível tematizar os vários dizeres da profes-sora sobre uma aluna. E mais, a partir do registrotranscrito da situação de assessoria escolar fonoau-diológica, a posição da assessora também foi ana-lisada.

Durante a situação de que participaram ambosos profissionais, as formações discursivas domi-nantes nos dizeres da professora remetem a suapreocupação diante dos erros presentes na escritade uma aluna. Já as formações discursivas da as-sessora afastam-na da posição de orientadora e aaproximam da posição de escuta da demanda daprofessora.

Análise de dados da interação dialógicaentre fonoaudióloga e professora

F: Eu vejo que você trouxe o caderno de um aluno.P: Eu trouxe o caderno da M. da 2ª série, que nãotem trocas na fala, mas na escrita. Ela troca f/v, t/d, c/g, p/b, x/j. Esse material não está tão ruim,porque ela copiou. Mas se eu pedir para ela escre-ver um texto e eu for corrigir, tem hora que eu nãoentendo o que ela escreve, parece que está escre-vendo em outra língua... supercomplicado. A letri-nha dela também não ajuda muito.

A demanda da professora é marcada por suapreocupação com o erro na escrita de uma aluna. Oerro é apontado como algo negativo, ruim, e queprecisa ser superado, corrigido. A aparente ininte-ligibilidade da escrita da criança leva a professoraa identificar essa escrita com outra língua.

F: Por que você acha que ela troca essas letras?

A assessora em Fonoaudiologia não inicia umaorientação à professora, pois sua posição nesse mo-mento é de escuta diante da demanda que lhe che-

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ga do outro. Como um dizer remete a outros e nes-se deslizamento o sentido se manifesta, a perguntada fonoaudióloga vai nesta direção.

P: Então, é só na escrita, ela é uma menina é dis...,é desatenta, acho que um pouco deve ser isto, né?Hoje mesmo ela errou tudo, errou até não podermais. Tem dia que ela escreve tudo direitinho, temdia que ela erra tudo, então alguma coisa tambémpode estar influenciando, não sei se é alguma coi-sa em casa, que eles não comentam, mas isso nãome preocupa não, é uma família muito boa, a mãeé muito atenciosa, interessada, sabe, mas ela é mui-to... o irmão também é superdesatento, não sei,parece até educação, eles não conseguem concen-trar mesmo.

A professora afirma que a criança comete er-ros na escrita devido à falta de atenção ou a proble-mas familiares, e diz que o irmão da criança tam-bém apresenta a característica de desatenção. Paraa professora, o problema está na criança ou na fa-mília, por isso problematizar o erro junto à profes-sora, em situações como essa, cabe à assessora. Paraesta, a escrita é da ordem da língua e será analisadadentro dessa ordem em seu funcionamento.

F: como é a leitura da M.?

Mais uma vez, a assessora indaga à professorapara que ela discorra sobre a sua demanda.

P: ela lê direitinho, ela não troca na leitura, mas aleitura dela não é uma leitura boa, sabe quando apessoa lê gaguejando, é difícil de entender o queela está lendo, mas na leitura ela não troca.

A professora utiliza o termo gaguejar para ca-racterizar/desqualificar a leitura da aluna que elaconsidera inadequada. A emergência desse termo,que faz sentido no universo clínico da fonoaudió-loga, parece ter a ver com a especificidade de suainterlocutora. Por outro lado, cabe ressaltar que aescolha do termo acaba por trazer em si marcas dacondição de patológico que a professora pareceidentificar nessa criança.

P: A professora da 1ª série conta que ela já tinhacerta dificuldade mesmo na escrita, ela já veio comisso ... e nós indicamos para ela bastante leitura,para ela estar lendo bem, muito, para ela estar es-crevendo melhor. Os alunos que têm mais dificul-dade eu peço para eles lerem mais, depois conta-rem na frente o que leram, para a questão do ente-

dimento também. Mas o que a M. escreve é muitopouquinho. Ela tenta ser o mais breve possível emtudo o que ela faz, não sei se ela já tem medo deerrar.

Para a professora, o problema da criança vemde um momento anterior, ou seja, desde o início doprocesso de alfabetização a criança já era conside-rada como quem apresenta dificuldades escolarese tem medo de errar.

P: Quando ela precisa ler alguma coisa e depoisela precisa contar pra mim o que ela leu, ela temuma certa dificuldade de se expressar o que ela leu.F: Como é essa expressão?P: Então, ela não consegue coordenar o pensa-mento dela com a escrita, sabe, você tem que fi-car perguntando... ela sabe que ela sabe, mas elatem dificuldade de expressar aquilo que ela sabe,tanto na fala como na escrita. Ela fala curtinhosabe, ela fala pouco. Ela procura ser o mais brevepossível.

O discurso da professora é marcado por cren-ças de que o pensamento antecede a linguagem,sendo esta, portanto, a expressão do pensamento.Cabe à assessora em Fonoaudiologia debater coma professora sobre a natureza simbólica da lingua-gem e sua aquisição, tanto oral quanto escrita, paraque assim a assessora possa contribuir para as atri-buições de sentidos dos fenômenos analisados.

F: Você tem uma escrita da criança sem a sua cor-reção?P: O último texto que ela fez pra mim, eu até jáentreguei, mas ela errou até o nome dela, foi o queme chamou atenção. Mas o mais, ela com toda adificuldade, ela tem muito boa vontade... se a gentemandar voltar três vezes para ver o que você er-rou, vai ler pra mim o que você escreveu, às vezes,nem ela entende, ela prefere refazer o que ela fez.Ela é uma belezinha, muito meiguinha, um amor,sabe, tem essa vantagem, que dá pra trabalharmelhor com ela.

Ao falar sobre o erro na escrita da criança,emerge no discurso da professora uma marca lin-güística – o diminutivo, que aponta para um dizerno sentido positivo em relação à criança, quandona verdade ela minimiza as dificuldades ou errosna escrita da aluna.

F: Me conta sobre uma atividade que vocês reali-zam em sala de aula?

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P: Nós fizemos uma leitura de obras do MonteiroLobato, eu li pra eles e depois eles teriam que mecontar como se eu não soubesse. Até que ela escre-veu direitinho, o sentido, deu pra entender, as pa-lavras, alguma coisa estava errada. A parte de gra-mática, ela sabe, nós estamos separando sílaba,classificando sílaba, isso ela sabe bem, é a questãoda troca na escrita.

Para falar sobre uma atividade de sala de aula,a professora retoma a sua preocupação com o erroda escrita da criança. Em nenhum momento daconversa a professora desloca sua concepção emrelação ao erro na escrita, e a fonoaudióloga, emsua posição de escuta, ainda não promove esse des-locamento. Cabe, em um próximo encontro, am-bos profissionais problematizarem o erro na escri-ta da criança em questão, o que poderá promovertal deslocamento da professora em relação à escri-ta da criança e em relação à própria criança.

Análise de dados da escritade uma aluna

Apontamos anteriormente como a triagem fo-noaudiológica é um procedimento problemáticoquando aborda o erro na escrita, e a seguir questio-namos o estatuto do erro presente na escrita a par-tir do Interacionismo Brasileiro, abordagem teóri-ca cujo objeto de estudo remete às explicações so-bre a Aquisição de Linguagem.

Apresentamos a escrita da aluna a quem a pro-fessora se refere, fruto de uma solicitação aos alu-nos, em sala de aula, para que fizessem uma narra-tiva sobre um dado tema. A aluna, em questão, emum primeiro momento copia o que a professoraescreveu na lousa e em seguida escreve seu texto.Os dois momentos encontram-se em anexo e sãotranscritos a seguir:

Monteiro Lobato criou vários personagens que vi-viam suas anturas no Sítio do Piapal amarelo.Estava uma narrativa, imaginado como seriam asaventuras dessas personagens no Sítio.Não se esqueça de criar um problema bem interes-sante para a sua historia não se esqueça do título.

As diversoesPitrinho e naricinhi e dobenta sairo de carro edo nabenta falou:– Petrinho você não esgaeseu de nada não vó eunão e você Naricinho não esqueceu de nada nãoentabom da quiabouco Petri e Naricinho falaram:

– Vò eu esqueci mirroupa o que vò tiscupa eu es-queci de falar mas não esqueciachave mas suabonequinha vó vò vò vò vò olho a petra eles bate-ram na pedra esua vò se firiu e sorte que estávaperto do espital e sua vò quebrou o braço e foramde taxi e quando nastacia fiu e falou:– oque é iso do na Benta você quebrou o braço simsimE viveram felizes para sem Pre

A triagem fonoaudiológica tradicional detec-ta na escrita do aluno o erro que tanto preocupa oprofessor, de forma que os supostos erros na es-crita da criança são legitimados a partir da com-paração com a língua padrão. Dessa forma, a ocor-rência de Piapal, em vez de pica-pau será avalia-da como omissão grafêmica, e os usos de /d/ por /t/, /z/ por /s/ e /k/ por /g/ que se observam em:Pitrinho, naricinhi e esgaeseu serão consideradastrocas grafêmicas de natureza auditiva e visual.Pode-se prosseguir com esse tipo de análise, quenão passa de mera descrição, e falar da falta desegmentação ou da repetição de palavras, da nãodiferenciação entre maiúsculas e minúsculas e as-sim sucessivamente.

A triagem fonoaudiológica poderia indicar paraessa criança um atendimento clínico fonoaudioló-gico, visto que os erros presentes em sua escritapoderiam ser tomados como evidência de uma con-dição desviante na linguagem. Por isso, ao finaldessa triagem fonoaudiológica, a criança seria en-caminhada para uma terapia fonoaudiológica paraque a alteração da escrita fosse superada.

Os estudos de aquisição da escrita a partir daproposta Interacionista negam justamente os pres-supostos teóricos que apontam para uma análisepontual da escrita, ou seja, para uma análise depalavras isoladas, pois propõe um outro olhar di-ante da escrita e da criança. E para iniciar a proble-matização do erro na escrita dessa criança, volta-mo-nos para os processos metafóricos e metoní-micos que compõem as leis de funcionamento dalinguagem (Lemos, 1992). Nos processos metafó-ricos, ocorrem substituições de significantes pos-síveis na língua, ou seja, significantes ausentespodem se colocar em presença no eixo da escrita, enos processos metonímicos ocorre o encadeamen-to de significantes no eixo da contigüidade.

Na escrita, que é nosso objeto de análise, ocor-rem encadeamentos de significantes no eixo dacontigüidade ou metonímico, em outras palavras,no que está em presença na escrita: Vò eu esqueci

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mirroupa o que vò tiscupa eu esqueci de falar, masnão esqueciachave mas sua bonequinha vó vò vòvò vò olho a petra.

Considerar os eixos metafórico e metonímicona análise da escrita dessa criança permite esclare-cer, durante a assessoria escolar fonoaudiológica,os processos pelos quais o discurso – oral ou escri-to – do Outro é constitutivo na/da escrita da crian-ça. Esse saber pode sustentar um outro olhar sobrea função dos textos no processo de alfabetização,textos que indiciam um lugar de funcionamento dalíngua e geram efeitos lingüísticos sobre a criança,possibilitando o deslocamento da mesma em rela-ção à própria escrita.

As segmentações que a criança realiza na es-crita espontânea – da quiabouco; sem Pre – sãopadrões rítmicos e entonacionais presentes na ora-lidade. Nesse momento do processo de aquisiçãoda escrita da criança, os espaços em branco pare-cem registrar as pausas reais da fala. Com isso, nãoqueremos dizer que a escrita seja a representaçãoda fala, mas que ambas – escrita e fala – são ma-terialidades da mesma linguagem e obedecem a ummesmo funcionamento.

As re-elaborações (que se dão a ver na escritaoriginal da criança) ocorrem na escrita da criançasob a forma de apagamentos (don por donbenta),inserções de novas palavras (a criança escreve apalavra não no mesmo lugar onde havia uma outrapalavra), escritas sobrepostas (a criança escrevefocê, mas em seguida apaga e escreve você), entreoutras marcas, que revelam o movimento da crian-ça em relação à língua a ser constituída (Abaurre,1994). Tais reelaborações fazem referência à ter-ceira posição na aquisição da linguagem, propostapor Cláudia de Lemos. Nessa posição encontram-se na escrita da criança reformulações e correçõesque, segundo a autora, implicam o reconhecimen-to da unidade a ser substituída e a que vem a subs-tituir. Tal reconhecimento é determinado por umprocesso identificatório que se dá na linguagemcomo movimento de assemelhamento à escrita doOutro; representa um deslocamento do escriba emrelação à sua própria escrita e à escrita do Outro(Lemos, 1994).

Na escrita apresentada neste estudo, o erro nãoé sinalizador de uma condição patológica, mas simefeito do funcionamento da língua, que não cor-responde ao desvio da categorização fonética, porsinalizar uma mudança que implica movimento. Emoutras palavras, as trocas na escrita apontadas pela

professora não podem ser explicadas do ponto devista perceptual, pois a escrita, como foi dito ante-riormente, não é a simples representação da fala,mas apresenta um funcionamento autônomo e sim-bólico que, integrado a um sistema – o lingüístico– independe de discriminações perceptuais. Noentanto, para o Interacionismo Brasileiro, há ummomento no processo de aquisição da escrita cujouso de formas alternativas para escrever o mesmodecorre do fato de o sentido ser o mesmo para oautor, como pode ser analisado em: nastacia fiupor Anastácia viu; não esgaeseu por não esqueceu;Pitrinho, naricinhi, dobenta sairo de carro porPedrinho, Narizinho, Dona Benta saíram de carro;e do nabenta falou por Dona Benta falou.

Os momentos em que a criança erra na escritarevelam seu assujeitamento em processo por essamodalidade do simbólico, pois, ao ser capturadapela lingua/gem do Outro, escreverá como deter-mina a língua. Na medida em que for aprisionadapela trama da escrita, a escrita da criança se distan-ciará da singularidade, assemelhando-se à escritado Outro.

O processo de captura da criança pela língualeva-a a deslocar-se da posição que ocupa em relaçãoà própria escrita. De acordo com Freire (1997 p. 935),

(...) dois fatos levarão a criança a deslocar-se emsua relação com a escrita: um é o que chamaremosde efeito leitor, ou seja, o fato de que o leitor sofreum efeito diverso do esperado pela criança se a suaescrita não for a padrão. Outro é o que chamaremosde efeito leitura, ou seja, o fato de que ao ler a cri-ança se depara com formas escritas que diferem dasua, embora signifiquem o mesmo, ou seja, geremo mesmo efeito. Estes efeitos a levam a se interro-gar e a interrogar o outro, o intérprete da forma pa-drão. Desta forma, é a interpretação da escrita quere-significa os chamados erros infantis e, aos pou-cos assujeita a criança à ordem da língua, apagan-do os traços desses percursos de constituição.

Por sua vez, Smolka (2001), também pesqui-sadora da aquisição da escrita, não considera a al-fabetização apenas como aprendizagem da escritade letras, palavras e orações, nem tampouco consi-dera o processo de aquisição da escrita como a re-lação da criança com a mesma, mas enfatiza a cons-tituição de sentidos nesse processo, que se dá so-mente por meio de uma abordagem discursiva. Paraa autora, o que marca a aquisição da escrita infantilé a importância do diálogo entre a criança e o dis-curso do Outro.

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Os estudos relacionados possibilitam a ressig-nificação do erro na escrita dessa criança, apontan-do-o como indício do processo de aquisição, quepede apenas interpretação e não formas de supera-ção. E com a ressignificação do erro torna-se pos-sível desmistificá-lo de sua condição patológica.

O assessor em Fonoaudiologia deve questio-nar as crenças que subjazem às ações dos educado-res durante o processo de escolarização, diferen-ciando tal processo do letramento e da aquisiçãoda escrita, e contribuindo para a alfabetização dosalunos. Assim, o fonoaudiólogo assessor poderedirecionar sua ação de orientação para uma posi-ção de questionador, contribuindo para que a equi-pe educacional faça reflexões sobre o seu fazer, oque justifica a inserção da Fonoaudiologia no am-biente educacional. Isso com certeza contribuirápara um ambiente escolar centrado em seus objeti-vos e distanciado do estigma das alterações de lin-guagem oral e dos problemas de aprendizagem daleitura e da escrita

A proposição de tematizar o erro no processode aquisição da escrita permitiu a análise crítica daatuação do fonoaudiólogo na escola, pois até entãoo erro era identificado na triagem fonoaudiológicacomo indicador de uma condição desviante da lin-guagem. Ressignificar tal erro na escrita em mo-mentos de assessoria fonoaudiológica com o pro-fessor pode ampliar e fundamentar a ação do as-sessor na escola, contribuindo tanto para a forma-ção do professor como para a viabilização de umaescola mais reflexiva.

Considerações finais

A experiência fonoaudiológica na área educa-cional apontou que o que incomoda a escola é,como vimos anteriormente, o erro, interpretadocomo evidência de falhas de outra ordem que a dalinguagem e entendido pela assessora-pesquisado-ra como entidade indicativa do processo de aquisi-ção da escrita infantil.

Tematizar o erro na escrita pelo viés de suarelação com o processo de aquisição da escrita podeser um, entre vários recortes que o fonoaudiólogotem à sua escolha para estruturar sua atuação comoassessor escolar. Há, no entanto, outras maneirasde conceber a assessoria escolar fonoaudiológica,entre elas podemos citar aquela em que o assessorem Fonoaudiologia atua na elaboração e implemen-tação dos Projetos Escolares.

Este estudo trouxe também à tona alguns prin-cípios que podem contribuir para o redirecionamen-to da atuação do fonoaudiólogo na escola. Um de-les entende a assessoria escolar como momentosde questionamento entre a equipe educacional e ofonoaudiólogo assessor sobre o erro no processode aquisição da escrita, oportunidade que leva oassessor a trazer para a cena o processo de aquisi-ção da escrita, sustentado por abordagens teóricase metodológicas. Áreas das Ciências da Lingua-gem que tomam como objeto a fala e a escrita dacriança e apresentam uma outra concepção do pro-cesso de alfabetização são lugares teóricos interes-santes de serem visitados.

Um outro aspecto enfatizado neste trabalho éque, na assessoria escolar fonoaudiológica, asses-sor e professor podem criar situações discursivas aserem vivenciadas por alunos e professores comomomentos de interdiscursividade, em que a escritae a leitura sejam alvo da interpretação de todos. Ouseja, entendemos que, nas práticas discursivas, acriança em aquisição de escrita irá escrever e ler deacordo com a sua interpretação e não dentro doprevisível, do que é esperado por quem já está nolugar da língua escrita constituída. Essa leitura e aleitura que advém da escuta do professor lhe per-mitirão identificar a presença de um sujeito e dasua relação com a escrita, um sujeito que lê semconhecer as letras, mas que atribui algum sentidoao que lhe apresenta.

O assessor em Fonoaudiologia e o professorpodem também analisar a escrita de crianças, con-cebendo-a como algo que pode ainda não ser co-nhecido, estabilizado, mas que é vivo, em proces-so (sem etapas predeterminadas), a ser revelado. Oerro presente na escrita inicial deve ser tomadocomo efeito do funcionamento da língua, que im-plica o movimento da criança diante do seu pro-cesso de constituição como sujeito na/da escrita.Isso significa o afastamento da condição patológi-ca do erro e o compromisso do fonoaudiólogo coma área educacional.

Esse compromisso, a nosso ver, refere-se a pos-síveis contribuições na formação continuada doprofessor, com o intuito de atribuir novos sentidosà aquisição de escrita dos alunos. A formação con-tinuada se faz necessária, pois é fato que o profes-sor que vê o erro na escrita da criança e não sabepor que isso ocorre encontra-se, na grande maioriadas vezes, sozinho, com seus dilemas, sem encon-trar explicações ou soluções para o erro. Diante

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desse acontecimento começa a colocar as causasdo fracasso escolar do aluno no próprio aluno, emsua família ou ainda na escola. Sem o exercício dereflexão sobre a prática, o professor pode não pro-blematizar o erro do aluno afastando a temati-zação de seus múltiplos aspectos.

Em momentos de assessoria escolar, o fonoau-diólogo tem a oportunidade de auxiliar o professor aresponder perguntas e/ou aprofundar o nível dasquestões levantadas, sendo que ambos serão benefi-ciados com isso. Dessa forma, o assessor contribuipara o deslocamento da escola, criando oportunida-de para que ela se torne um lugar onde o ProjetoEducacional esteja sob contínuo questionamento.

A assessoria escolar fonoaudiológica pode con-tribuir para a formação de um professor reflexivo,comprometido com sua profissão, por meio de umtrabalho coletivo, compartilhado e cooperativo. Eo aprimoramento da formação dos profissionais quetrabalham na escola pode contribuir para o apaga-mento da patologização dos alunos.

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Recebido em novembro/04; aprovado em junho/05.

Endereço para correspondênciaCarolina A. P. BarcellosAvenida Oswaldo Aranha, 500, Vila Celeste, Lorena, SPCEP 12606-000

E-mail: [email protected]

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Anexo

Escrita da criança

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