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A Árvore do Conhecimento e a Certeza dos seus Frutos Apresentado no Seminário Livre de Filosofia dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 30 de agosto de 2000. César Schirmer dos Santos1 Boa tarde a todos, Em primeiro lugar, eu gostaria de observar que é uma honra e um prazer participar desta sessão de abertura do Seminário Livre de Filosofia dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A idéia é antiga, e claramente calcada no Questões Disputadas, promovido pelos alunos da Graduação. Nós, alunos do PPG, também queríamos promover disputas, para assim comunicarmo-nos com mais facilidade, promovendo o intercâmbio de idéias e o teste de hipóteses e argumentos a serem utilizados nas nossas dissertações e teses. Entre os promotores deste evento, foram fundamentais os papéis de Renato Fonseca e de Rogério Severo. O primeiro por insistir por muito tempo na idéia, impedindo o esquecimento. O segundo, sendo suficientemente organizado e prático para conseguir tornar fácil e concreto o que parecia tão difícil e distante. Eu, certamente, sou um cúmplice destas duas figuras, mas considero que minha principal contribuição foi ter jogado bastante gasolina na fogueira, gritando suficientemente alto para todos ouvirem. Bem, agora, aqui estamos. Queremos que este Seminário Livre que surgiu de conversas na nossa sala e no nosso site, a Masmorra, continue nos próximos semestres, e tenha a participação de estudantes de filosofia de outras universidades. Por enquanto, ainda não tivemos sucesso nestes contatos, mas estou particularmente contente, no momento, com a resposta dentro da nossa comunidade de estudantes e professores. Em primeiro lugar, nesta minha participação em uma mesa-redonda sobre este assunto, o que é a filosofia, registro que a escolha deste tema é oportuna, se observarmos alguns dos últimos acontecimentos que tocam a nossa comunidade de alunos e professores. Sem meias palavras, digo que o lançamento do último número da 1 Mestrando do PPG-Filosofia da UFRGS e bolsista da CAPES, [email protected]. 1

A Árvore do Conhecimento e a Certeza dos seus Frutos, por Cé

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Em primeiro lugar, nesta minha participação em uma mesa-redonda sobre este assunto, o que é a filosofia, registro que a escolha deste tema é oportuna, se observarmos alguns dos últimos acontecimentos que tocam a nossa comunidade de alunos e professores. Sem meias palavras, digo que o lançamento do último número da A Árvore do Conhecimento e a Certeza dos seus Frutos César Schirmer dos Santos1 Boa tarde a todos, 1

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A Árvore do Conhecimento e a Certeza dos seus Frutos

Apresentado no Seminário Livre de Filosofia dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Filosofiada Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 30 de agosto de 2000.

César Schirmer dos Santos1

Boa tarde a todos,

Em primeiro lugar, eu gostaria de observar que é uma honra e um prazer participar

desta sessão de abertura do Seminário Livre de Filosofia dos Alunos do Programa de

Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A idéia

é antiga, e claramente calcada no Questões Disputadas, promovido pelos alunos da

Graduação. Nós, alunos do PPG, também queríamos promover disputas, para assim

comunicarmo-nos com mais facilidade, promovendo o intercâmbio de idéias e o teste

de hipóteses e argumentos a serem utilizados nas nossas dissertações e teses.

Entre os promotores deste evento, foram fundamentais os papéis de Renato Fonseca

e de Rogério Severo. O primeiro por insistir por muito tempo na idéia, impedindo o

esquecimento. O segundo, sendo suficientemente organizado e prático para conseguir

tornar fácil e concreto o que parecia tão difícil e distante. Eu, certamente, sou um

cúmplice destas duas figuras, mas considero que minha principal contribuição foi ter

jogado bastante gasolina na fogueira, gritando suficientemente alto para todos

ouvirem.

Bem, agora, aqui estamos. Queremos que este Seminário Livre que surgiu de

conversas na nossa sala e no nosso site, a Masmorra, continue nos próximos semestres, e

tenha a participação de estudantes de filosofia de outras universidades. Por

enquanto, ainda não tivemos sucesso nestes contatos, mas estou particularmente

contente, no momento, com a resposta dentro da nossa comunidade de estudantes e

professores.

Em primeiro lugar, nesta minha participação em uma mesa-redonda sobre este

assunto, o que é a filosofia, registro que a escolha deste tema é oportuna, se

observarmos alguns dos últimos acontecimentos que tocam a nossa comunidade de

alunos e professores. Sem meias palavras, digo que o lançamento do último número da

1 Mestrando do PPG-Filosofia da UFRGS e bolsista da CAPES, [email protected].

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Revista de Filosofia Política, focada na pena de morte, causou bastante mal-estar e

discussão. Na minha opinião, a discussão mais importante e interessante que podemos

colher, entre as que surgiram após a discussão do que foi publicado na Revista, é

exatamente sobre a natureza e o papel da filosofia. Explico melhor.

Certamente, entre os professores do nosso Programa de Pós-Graduação, podemos

encontrar uma enorme diversidade de posições filosóficas, algumas mais tímidas,

outras mais salientes. Entre as posições que mais ficam ressaltadas no debate sobre a

Revista, estão curiosamente as de dois professores que defendem um maior diálogo

entre a Academia e o resto dos mortais. Por um lado, temos o professor Denis

Rosenfield, defendendo uma análise desideologizada de um tema polêmico como a

pena de morte. Por outro lado, temos o professor Paulo Faria, que há bastante tempo

denuncia as estratégias evasivas dos filósofos, que pretendem falar a partir de lugar

nenhum.

Creio que, levando-se em conta o que já foi publicado na Revista de Filosofia

Política, e o que talvez virá a ser publicado em resposta no próximo número, este é o

debate mais interessante que poderíamos ter sobre este tema. Na verdade, eu quero

que este debate de fato aconteça, e ofereço aos citados acima este nosso Seminário

como palco para o mesmo. Creio que deste diálogo poderíamos tirar de fato algumas

lições sobre o que é a filosofia.

Muito bem, agora passo à minha comunicação nesta mesa-redonda, limitando-me a

fazer algumas observações sobre uma imagem da filosofia que encontramos em

Descartes. Vamos, então, ao que tenho a dizer.

No Discurso do Método1 e na 1ª Meditação2 Descartes escreve que a ciência

1 "Não direi nada da Filosofia, senão que, vendo que ela foi cultivada pelos mais excelentesespíritos que viveram em vários séculos, e que todavia não se encontra ainda alguma coisa daqual não se dispute, e consequentemente que não seja duvidosa, não tenho muita presunção deesperar de encontrá-la melhor que as outras [Disciplinas]; e que, considerando como pode haverdiversas opiniões em relação a uma mesma matéria que sejam defendidas por pessoas doutas, semque se possa ter nunca mais de uma que seja verdadeira, reputo quase por falso tudo o que sejaapenas verosímil. Depois, quanto às outras ciências, na medida em que emprestam seus princípios da Filosofia, eujulgava que não podia haver nada construído que fosse sólido, sobre fundamentos tão pouco

2 "Observei, já há alguns anos, como são numerosas as coisas falsas que desde minha mais jovemidade admiti por verdadeiras e como são duvidosas aquelas que depois edifiquei sobre elas, e quepor conseguinte era preciso uma vez em minha vida tudo derrubar até o fundo e começar de novo apartir dos primeiros fundamentos, se eu desejasse estabelecer um dia nas ciências alguma coisa defirme e de durável."(1ª Meditação, AT VII, 17/ IX-1, 13)

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precisa de novos fundamentos, pois sendo a verdade uma só, e a quantidade de

posições filosóficas defendidas por pessoas muito cultas enorme, era certo que ao

menos algumas das opiniões que se apresentavam como verdadeiras nas disputas

escolásticas estavam erradas. Descartes propõe, então, que se busque um fundamento

para as ciências que seja tão evidente que não possa ser objeto de dúvida ou de disputa.

Em outras palavras, a base sobre a qual se deve edificar as ciências deve ser

inabalável, isto é, os princípios que sustentam as proposições científicas devem ser

sólidos.

Para evitar as disputas infrutíferas, e para que os conhecimentos científicos

dependentes de conhecimentos mais fundamentais não sejam abalados com a

destruição de seus falsos fundamentos, Descartes propõe que se busque princípios para

todas as ciências que não possam ser objeto de dúvida para um ser humano. O grau de

certeza próprio das afirmações científicas, então, deve ser tal que, uma vez essa

afirmação seja feita, seja necessário que um ser humano que a conceba com atenção

reconheça a sua verdade. A esse grau de certeza Descartes chama de certeza

metafísica.1 Há um outro tipo de certeza que deve ficar de fora da ciência, a certeza

moral,2 que é suficiente para as questões da vida prática. Decidir comer uma maçã,

por exemplo, é uma questão de certeza moral, pois é ridículo querer ter certeza

metafísica sobre o bem que a maçã fará ao organismo, pois tal grau de certeza

dificilmente seria alcançado antes que a pessoa morresse de fome;3 afinal, seria

1 "A outra sorte de certeza [isto é a certeza metafísica] é quando pensamos que não é de modoalgum possível que a coisa seja outra que a julgamos. E ela está fundada em um princípio demetafísica muito assegurado, que é que Deus sendo soberanamente bom e a fonte de toda verdade,visto que foi ele quem nos criou, é certo que a potência ou faculdade que ele nos deu paradistinguir o verdadeiro do falso não se engana quando a usamos bem, e que ela nos mostraevidentemente que uma coisa é verdadeira." (Princípios da Filosofia, 4ª Parte, Artigo 206)

2 "Mas contudo, a fim que eu não seja injusto com a verdade, supondo-a menos certa que ela é,distinguirei aqui duas sortes de certezas. A primeira é chamada moral, isto é suficiente pararegrar nossos costumes, ou também tão grande quanto aquela das coisas que nós não temos ocostume de duvidar em relação à conduta da vida, ainda que saibamos que pode ser o caso,absolutamente falando, que elas sejam falsas." (Princípios da Filosofia, 4ª Parte, Artigo 205)

3 "Seria de se desejar tanto de certeza nas coisas que visam a conduta da vida quanto se requerpara adquirir a ciência; mas contudo é muito fácil de se demonstrar que não se deve procurar ouesperar uma tão grande. E isso a priori, a saber a partir do fato que a composição do homem énaturalmente corruptível, e que o espírito é incorruptível e imortal. Mas isso pode ainda serdemonstrado mais facilmente a posteriori, a saber pelas consequências que se seguem. Como, porexemplo, se alguèm quisesse abster-se inteiramente de tomar qualquer nutriente, tanto e por tantotempo que enfim morre de fome, sob o pretexto que não estava certo de que não havia venenomisturado neste, e ele acreditava não estar obrigado a comer, pois não conhecia clara eevidentemente que tinha presente diante de si aquilo com o que sustenta sua vida, e que mais valeesperar a morte abstendo-se de comer do que assassinar-se a si mesmo servindo-se dos alimentos:certamente este deveria ser qualificado como louco e acusado de ser o autor da sua morte. E se, aocontrário, supuséssemos que este homem não pudesse ter outros alimentos a não ser osenvenenados, os quais, contudo, não o parecessem como tais, mas ao contrário muito saudáveis; e

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preciso analisar a maçã em busca de venenos, mas também se teria que levar em conta

a hipótese de que essa maça esteja envenenada por um veneno perfeito, que não pode

ser detectado pelos métodos de análise normalmente empregados.1 Assim, a busca de

certeza metafísica em assuntos práticos, tal como a inocente escolha de uma maçã em

um cesto de frutas, leva a danos irreparáveis para a pessoa.

Por outro lado, a exigência de certeza metafísica nas ciências é útil aos seres

humanos. Afinal, sendo o objetivo das ciências a busca de mais comodidade e saúde

nesta vida, nada melhor do que estabelecer princípios sólidos para a condução desta

tarefa. Além disso, estando os fundamentos das ciências acima de qualquer dúvida, a

filosofia frívola das escolas perde sua razão de ser, pos não ter mais nenhum objeto

para suas disputas intermináveis.2 Como Descartes escreve para a princesa

Elisabeth, alguns anos após a publicação das Meditações, a metafísica deve ocupar

pouco tempo daquele que busca a verdade; uma maior parcela do tempo deve ser

dedicada às tarefas que envolvem a imaginação, como a matemática e a geometria,

mas a maior parte do tempo deve ser dedicada às tarefas que exigem o uso da

imaginação e dos sentidos.3

Esta divisão do tempo da investigação na vida de uma pessoa corresponde, à sua

maneira, à imagem da filosofia no todo, incluindo desde a metafísica até as ciências

mais especializadas, como uma árvore. Cito a imagem: “… toda a Filosofia é como

uma árvore, cujas raízes são a Metafísica, o tronco é a Física, e os galhos que saem

desse tronco são todas as outras ciências, que se reduzem a três principais, a saber a

que nós suponhamos também que ele tenha recebido um tal temperamento da natureza, que acompleta abstinência serve à sua saúde, ainda que lhe pareça que ela não deve nutrir-lhe menosdo que aos outros homens, lhe é certo, não obstante isso, que este homem será obrigado a usarestes alimentos, e assim fazer mais o que parece útil do que o que o é efetivamente. E isto é por sitão manifesto que me espanto que o contrário possa vir ao espírito de alguém." (Carta aoHyperaspistes de agosto de 1641, Alquié II, p. 359-60)

1 A hipótese foi forjada por D. Kambouchner na Réponse à Robert Imlay — ce qui ce Conçoit et cequi se Comprend, p. 354.

2 Apesar de constar na edição original das Meditações um conjunto de Objeções e Respostas do autor aosmuito doutos que lhe dirigiram questões, não era desejo de Descartes a disputa sobre a sua filosofia, e sim oesclarecimento das suas opiniões.

3 “Enfim, como creio que é muito necessário ter bem compreendido, uma vez na vida, os princípiosda Metafísica, pois são eles que nos dão o conhecimento de Deus e de nossa alma, creio tambémque seria muito nocivo ocupar seguidamente o entendimento em meditá-los, pois ele não poderádeste modo estar disponível às funções da imaginação e dos sentidos; mas que o melhor é de secontentar em reter em sua memória e em sua confiança as conclusões que se tirou uma vez, paraempregar o resto do tempo que se tem para o estudo para os pensamentos onde o entendimento agecom a imaginação e os sentidos.” (Carta a Elisabeth de 28 de junho de 1643, AT III, 6954-15)

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Medicina, a Mecânica e a Moral …”.1 <fim da citação> À metafísica cabe o papel de

raiz desta árvore do conhecimento, ficando oculta sob a terra, mas ao mesmo tempo

sustentando firmemente o tronco desta árvore, que corresponde à física. Mas, a física

não é o fim da árvore do conhecimento. Dela saem três galhos principais, a medicina,

a mecânica e a moral. E estes galhos, por sua vez, também não são a finalidade da

investigação científica. O que realmente é útil para os seres humanos são os frutos que

se colhes dos galhos desta árvore: a preservação da saúde, a construção de artefatos

que tornam a vida mais cômoda, e o estabelecimento de regras perfeitas para a

conduta da vida.2

É importante notar que esta imagem do campo geral do conhecimento humano como

uma árvore supõe uma unidade do conhecimento. Na Regra 1, Descartes critica os que

iniciam a investigação da verdade por um campo muito específico do conhecimento,

pois estes não percebem que a luz natural ou entendimento humano é um só, tal como o

sol que ilumina todas as coisas é um só. Estes que iniciam a pesquisa por um região

muito específica de uma ciência agem como se colhessem frutos de uma árvore

diferente das outras árvores, que seriam as outras ciências. Para Descartes, nada mais

falso. Os mesmos princípios sólidos fundamentam todas as ciências, e quem inicia a

investigação da verdade conhecendo estes princípios tem mais chances de colher

melhores frutos na árvore única da ciência.

Vejamos, agora, as três principais partes da árvore do conhecimento, sua raiz, seu

tronco e seus galhos, a fim de sabermos de se fato cada uma dessas partes é objeto de

certeza metafísica. Lembremos antes que Descartes é um trialista, isto é, que no

sistema filosófico cartesiano existem apenas três substâncias: Deus, que é um ser

necessário e puramente espiritual ou imaterial; o espírito ou alma, cujo principal

atributo é pensar; a matéria ou os corpos, cujas principais propriedades são a

tridimensionalidade, a maleabilidade, a mobilidade e a divisibilidade. Deus e o

espírito humano são objeto de estudo da metafísica, e a matéria é estudada pela

física.

A indubitabilidade da existência de Deus é estabelecida na 3ª Meditação, onde a

1 Carta-prefácio à tradução para o francês dos Princípios da Filosofia, AT IX-2, 1423-28.

2 Ver Discurso do Método e a Carta-prefácio aos Princípios.

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análise das idéias presentes no espírito segundo o princípio de causalidade leva à

conclusão de que há ao menos uma idéia que corresponde necessariamente a uma

existência, a idéia de Deus, que contém um grau de realidade ou perfeição tal que o

espírito finito do homem não pode ser o seu autor. A prova da existência de Deus da 3ª

Meditação mostra que o conhecimento que Deus existe tem um grau de certeza

metafísico, pois o espírito que contempla com atenção a idéia de Deus não pode deixar

de afirmar que Deus existe.

A veracidade de Deus também serve para que seja eliminada qualquer dúvida

sobre a verdade das idéias matemáticas e geométricas, claras e evidentes por si

mesmas — na Regra 2 as verdades matemáticas parecem ser o paradigma do que

Descartes busca estabelecer para as verdades da metafísica nas Meditações. Sendo

tão simples que não podem ser duvidadas enquanto concebidas pelo entendimento, as

idéias matemáticas têm, também elas, um grau de certeza metafísico.

A indubitabilidade da existência do espírito finito do homem é estabelecida em

duas partes. Primeiro na 2ª Meditação, em um raciocínio muito singular onde o

espírito que contempla com atenção o que faz quando pensa a sentença ‘sou’ não pode

ao mesmo tempo negar que este dito é verdadeiro. Depois, com a prova da existência

de Deus, este espírito pode afirmar que existe enquanto o Deus veraz o preserva no ser

ou não o aniquila. O conhecimento que o espírito tem da própria existência então é tal

que é necessário que ele reconheça a verdade da sua própria existência toda vez que

reflete sobre as idéias que ocupam seu espírito. Este conhecimento tem um grau de

certeza metafísico.

Agora, vamos a uma questão mais complicada, o grau de certeza próprio da física.

Em primeiro lugar, algumas observações sobre as diferenças da prova da existência

dos corpos nas Meditações e nos Princípios da Filosofia. No artigo 1 da 2ª Parte dos

Princípios, Descartes diz que através de uma idéia clara e distinta, o entendimento

reconhece a existência dos objetos exteriores.1 Na 6ª Meditação, contudo, a prova da

existência dos corpos é muito diferente, pois apela a uma faculdade opaca ao

entendimento, a inclinação natural. Deixo de lado a prova da existência dos corpos da

1 "… Mas, porque sentimos, ou antes que nossos sentidos nos excitam frequentemente a aperceberclara e distintamente uma matéria estendida em largura, altura e profundidade …" (Princípios daFilosofia, 2ª Parte, Artigo 1)

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2ª Parte dos Princípios, e me ocupo da prova que aparece na 6ª Meditação.

Antes, um esclarecimento sobre a física cartesiana. O conhecimento das

propriedades geométricas dos corpos é tudo o que Descartes exige como teoria para a

física. Assim, temos já na 5ª Meditação tudo o que é necessário para se fazer física,

menos os objetos físicos, pois a existência da matéria foi posta em dúvida na 1ª

Meditação. Se Descartes estivesse propondo nas Meditações o mesmo que ele propos no

Tratado do Mundo, isto é que se estude um mundo fictício que Deus poderia ter criado,

a 5ª Meditação teria tudo o que é necessário para essa física de fábulas. Porém, nas

Meditações Descartes propõe uma física no mundo real, e então é preciso que ele prove

a existência deste mundo, para poder passar de uma física de um mundo possível a

uma física do mundo efetivo.

Bem, Descartes prova a existência da matéria na 6ª Meditação, mas apelando a

uma faculdade que fornece idéias obscuras e confusas ao espírito, a inclinação natural.

Pode uma idéia oriunda de uma faculdade tão suspeita quanto esta ser a origem de

conhecimentos que tenham um grau de certeza metafísico? Aparentemente não.

Aparentemente, não há como atribuir certeza metafísica ao que não é claro e distinto

para o entendimento.

Se o que se exige de uma idéia, para que ela possa ter um grau de certeza

metafísico, é que ela seja indubitável, então a crença na existência dos corpos

fornecida pela inclinação natural não pode de modo algum ser considerada assim tão

certa. Afinal, por mais atenção que se foque sobre essa crença, em nada esse processo

torna-a mais clara.

No entanto, uma outra noção, operante ao longo de todas as Meditações, ampara

esta crença fornecida pela inclinação natural. Trata-se da noção de incorrigibilidade.

Aquilo que é incorrigível não pode nunca ser falso, não porque seu conteúdo seja sempre

verdadeiro, mas porque o fato da sua presença ao espírito não pode ser nunca negado.

Na 1ª Meditação, por exemplo, é incorrigível que se continue acreditando na posse de

mãos, pernas e cabeça, mesmo que se suponha que nada disso existe.1 Nas sensações, é

1 "Considerarei a mim mesmo como não tendo nem mãos, nem olhos, nem carne, nem sangue, nemsentido algum, e crendo falsamente ter tudo isto." (AT VII, 23/ IX-1, 18)

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incorrigível (e mesmo em sonhos)1 que a coisa de algum modo afete o corpo, e que o

cérebro de algum modo afete o espírito.2 Na 6ª Meditação, o espirito que se propos a

raciocinar ordenadamente, não aceitando como verdadeiro nada que não seja

indubitável, encontra-se diante da crença incorrigível na existência dos corpos.

Apenas essa crença, todavia, não é suficiente para que o espírito deixe de duvidar da

existência dos corpos.

A solução de Descartes para o problema está no apelo à veracidade divina. Sendo

Deus veraz, uma crença que não pode ser corrigida deve ser verdadeira. Isto não

significa, contudo, que é verdadeiro o que é conhecido através da inclinação natural.

Só o que é verdadeiro é que os corpos existem, pois Deus é o fiador desta crença.

Mas, uma vez que com a geometria já temos toda o aparato teórico da física pronto

e acabado, a prova da existência dos corpos via inclinação natural garante a verdade

dos conhecimentos da física. Afinal, o grau de certeza da física é o mesmo grau de

certeza da geometria, pois não há nenhum conhecimento físico do mundo efetivo que

não seja um conhecimento geométrico de algum mundo possível. Então, o grau de

certeza próprio da física é a certeza metafísica.

Sabemos agora, então, que a raiz e o tronco da árvore do conhecimento fornecem

conhecimentos que devem ser reconhecidos como necessariamente verdadeiros por um

ser humano. E quanto ao conhecimento fornecido pelos galhos desta árvore? Qual o

grau de certeza da medicina, da mecânica e da moral?

Os artigos finais da 4ª Parte dos Princípios da Filosofia parecem sugerir que estas

artes têm apenas um grau de certeza moral, isto é que nestas artes basta que utilizemos

as hipóteses mais prováveis para chegar a conhecimentos que são úteis para esta

vida. Cito: "… é certo que Deus tem uma infinidade de diversos meios, por cada um

dos quais ele pode ter feito que todas as coisas deste mundo parecessem tais como

agora elas parecem, sem que seja possível ao espírito humano conhecer qual de todos

os meios ele quis empregar para fazê-las. Com o que não vejo nenhuma dificuldade em

concordar. E eu acreditaria ter muito feito, se as causas que expliquei são tais que

todos os efeitos que elas podem produzir se encontram semelhantes aos que nós vemos

1 Ver O Mundo, AT XI, 197.

2 Estes são os dois primeiros sentidos do termo ‘sensação’ no ponto 9 das 6as Respostas.

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no mundo, sem me perguntar se é por elas ou por outras que eles são produzidos. Mesmo

eu creio que é também útil à vida conhecer as causas assim imaginadas como se se

tivesse o conhecimento das verdadeiras: pois a medicina, as mecânicas, e geralmente

todas as artes às quais o conhecimento da física pode servir, não têm por fim a não ser

aplicar de tal modo os corpos sensíveis uns aos outros, de maneira que, pela sequência

de causas naturais, alguns efeitos sensíveis sejam produzidos; o que faríamos

igualmente bem, considerando a sequência de causas assim imaginadas, ainda que

falsas, que se elas fossem verdadeiras, visto que esta sequência é suposta semelhante

no que observa os efeitos sensíveis."1 <fim da citação>

Mas, então, eu pergunto, todo o esforço para dar uma base sólida para as ciências

de onde são colhidos os frutos da árvore do conhecimento de nada serve, visto que,

mesmo apoiadas em raízes metafísicas e em um tronco físico, absolutamente certos,

essas ciências ou galhos da árvore do conhecimento contentam-se em fornecer

conhecimentos prováveis? Estaria Descartes sugerindo que os fundamentos

indubitáveis mas neles mesmos infrutíferos das ciências as mantém na mesma

incerteza que havia na ciência fundada em princípios escolásticos?

Certamente, não. Trata-se apenas da permissão para utilizar hipóteses, esquemas

metódicos e suposições nas ciências, tal como podemos ver também na Regra 12. Cito:

"com efeito, desejo escrever sempre de maneira que nada afirme daquilo que costumam

pôr em controvérsia, a menos que tenha apresentado previamente as próprias razões

que me conduziram às minhas deduções e pelas quais creio que os outros também podem

ser persuadidos. [Novo parágrafo:] Mas, já que não me é facultado fazê-lo agora,

bastar-me-á explicar o mais brevemente possível qual modo de conceber tudo o que em

nós está destinado a conhecer as coisas é o mais útil ao meu desígnio. Vós não

acreditareis, se não vos aprouver, que seja assim; mas, que é que vos impedirá de vos

contentar com as mesmas suposições, se ficar visível que, sem diminuir em nada a

verdade das coisas, elas só tornam tudo muito mais claro? Será da mesma maneira que

em Geometria, em que fazeis sobre a quantidade certas suposições que não enfraquecem

de modo algum a força das demonstrações, embora costumais ter em Física uma idéia

diferente sobre a sua natureza."2 <fim da citação>

1 Princípios da Filosofia, 4ª Parte, Artigo 204.

2 Tradução da Martins Fontes, p. 74-75.

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As hipóteses ou suposições autorizam a redução das coisas elas mesmas aos seus

esquemas metódicos. Este esquema não é uma falsa representação da coisa conhecida,

e nem uma representação que pode ser posteriormente esclarecida. O esquema

metódico é uma figura, que representa a coisa de uma maneira útil e prática, embora

nem um pouco realista. O ponto de Descartes nestes textos, assim como nas 2as

Respostas, parece ser que a investigação da verdade não precisa ser realística para

ser verossímil. Assim, figuras hachuradas de diferentes maneiras podem representar

diferentes cores, mesmo que seja inverossímil que as cores reais tenham alguma

relação efetiva com as hachuras. Equações podem representar leis naturais, mesmo

que de fato não seja através dessas leis que Deus tenha ordenado o mundo. O que

importa é que essas figuras e equações podem ser tomadas tal como se fossem

verdadeiras aos olhos de Deus, para o objetivo de chegar a conhecimentos úteis para

a vida.1

Os afazeres e necessidades da vida, com suas dificuldades, urgências e problemas,

muitas vezes exigem que uma solução seja dada rapidamente, sem uma fundamentação

absolutamente verdadeira.2 Ora, como a ciência para Descartes é um meio para a

conquista de conforto e de saúde,3 a ciência que não utiliza hipóteses no seu dia-a-dia

traz danos ao conjunto dos homens, assim como o homem que adia as refeições por não

ter certeza metafísica que sua comida não está envenenada traz prejuízos à sua

própria pessoa. Ao utilizar hipóteses, as ciências submetem aquilo que investigam, a

verdade, às necessidades e aos limites dos homens. A verdade é uma só, sempre a

mesma, assim como a sabedoria humana; no entanto, a sabedoria humana não é

idêntica à verdade: só Deus é perfeitamente sábio.4 A ciência, então, mesmo tendo

fundamentos metafísicos, necessariamente verdadeiros, precisa correr o risco de tomar

por verdadeiro aquilo que é talvez falso aos olhos de Deus e dos anjos,5 para fornecer

seus frutos à humanidade. Porém, o uso de hipóteses nas ciências (nos galhos) em nada

altera a certeza metafísica na árvore do conhecimento, pois o uso de hipóteses, isto é

1 Ver o Discurso do Método, 6ª Parte, AT VI, 6128-30.

2 Ver o parágrafo final das Meditações.

3 Ver a 6ª Parte do Discurso do Método.

4 Ver a Carta-prefácio aos Princípios da Filosofia.

5 Ver as 2as Respostas.

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de figuras e equações, é legítimo pelo menos desde os Elementos de Euclides, onde uma

grandeza dada é tomada por signo de todas as grandezas possíveis.1

Concluo afirmando que no modelo de conhecimento proposto por Descartes é

exigido um tipo de fundamento inabalável nas áreas fundamentais às ciências, a

metafísica e a física, e que esta solidez do fundamento é preservada nos galhos da

árvore da filosofia, mesmo sendo preciso utilizar hipóteses ou esquemas metódicos

que de fato são irrealísticos, visto que o ser humano não pode nunca vir a ser

perfeitamente sábio. A mecânica, que estuda o desenvolvimento de artefatos a partir

do conhecimento da matéria; a moral, que estuda as regras perfeitas para a conduta

do espírito nesta vida; e, por fim, a medicina, que estuda a união entre a alma e o

corpo, são ciências menos certas do que a metafísica e a física apenas por serem

sustentadas por elas, mas não por serem objeto de certeza meramente moral.

Obrigado!

Referências

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ALQUIÉ, Ferdinand, editor. Œuvres Philosophiques de Descartes I. Paris, Dunod,1997.

_____, editor. Œuvres Philosophiques de Descartes II. Paris, Dunod, 1996.

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DESCARTES, René. Discurso do Método. Coleção Os Pensadores, volume Descartes.São Paulo, Abril Cultural, 1983, 3ª edição. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Jr.

_____. Méditations Métaphysiques. Paris, Librairie Génerale Française, 1998.Tradução de Michelle Beyssade.

_____. Regras para a Orientação do Espírito. São Paulo, Martins Fontes, 1999.Tradução de Maria Ermantina Galvão.

FICHANT, Michel. Science et Métaphysique dans Descartes et Leibniz. Paris, PUF,1998.

KAMBOUCHNER, Denis. Réponse à Robert Imlay — Ce qui se Conçoit et ce qui ceComprend. Em J.-M. Beyssade e J.-L. Marion, editores, Descartes Objecter etRépondre. Paris, PUF, 1994, p. 351-64.

1 Sobre este ponto ver Fichant, Science et Métaphysique dans Descartes et Leibniz, p. 9.