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gora Vossas Majestades se convenceram de que é preciso dar logo esse baile, não é? – perguntou Heloísa, depois que todos saíram.O Rei, a Rainha e a Formiga estranharam muito aquela pressa:– Quando se fala num baile, essa menina quer logo dá-lo! – Nunca vi menina mais precipitada! Está sempre corren-
do atrás das coisas!Heloísa resolveu ter paciência:– Mas, Majestades, não se lembram? O próprio Rei saiu correndo do
plebiscito para cuidar desse baile!– Se o Rei sai correndo, essa menina quer logo que o Rei corra o
dia todo!– Onde já se viu dar um baile correndo?– Querido, estou me lembrando que tenho de ir cuidar da minha aula!
– interrompeu a Rainha, de repente.Heloísa suspirou:“É impossível falar de um assunto até o f im com essa Rainha por perto!”– É verdade! Está justamente na hora – concordou o Rei. A Rainha despediu-se:– Preciso tratar da mudança. Até já, queridinha. Fique à vontade e
divirta-se. E saiu, deixando Heloísa muito espantada:– Nunca ouvi dizer que a Rainha fosse professora!
A Aula da Rainha
– E não é – respondeu o Rei. – Você esquece que a Rainha é comple-tamente ignorante.
– Então que aula é essa? – É que hoje a professora vai ter de faltar. A Rainha precisa substituí-la
na escola. – Mas como? Essa aula vai ser um desastre! – exclamou Heloísa, aflita.
– A Rainha, além de ignorante, é muito avoada. – Não se preocupe. O diretor da escola está de férias e quem vai
substituí-lo sou eu.– Ah! Ainda bem! Se a Rainha f icasse por sua própria conta, no colé-
gio, não sei o que seria capaz de fazer. Com Vossa Majestade na direção, f ico mais sossegada.
A Rainha apareceu nesse momento, seguida por uma porção de la-caios. Vinham carregando as bagagens.
– Nunca vi feriado duplo mais bem comemorado, e você? – pergun-tou ela, muito contente, ao passar por Heloísa.
“Esqueceu completamente das minhas reclamações sobre o baile”, pensou Heloísa.
Dois caminhões, já cheios, esperavam na porta.Havia de tudo dentro deles: mobília, louça, roupas, mas principal-
mente recordações do tempo em que a Rainha era criança: brinquedos, vestidinhos, desenhos, cadernos escolares, um dente de leite, um cachorro vivo, um cacho de cabelo e até um berço!
– Imagine se toda professora levasse uma bagagem dessas para dar uma simples aula! – comentou Heloísa com a Formiga. – O Rei, que vai dirigir a escola, não leva nada, veja.
– Por isso é que eles se dão tão bem! – respondeu a Formiga, olhando extasiada para o Rei e a Rainha. – Que casal encantador!
O Rei tinha se afastado, lendo um livro.Enquanto isso, a Rainha corria para lá e para cá, dava ordens e chegava
até a ajudar os carregadores.– Nem parece a mesma pessoa – disse Heloísa. – Ainda há pouco não
queria ouvir falar em pressa. Agora parece que, se não der essa aula ime-diatamente, o mundo vai acabar.
– Acabar não acaba – disse a Formiga. – Mas f ica um bocado atrasado.– Não sei por quê!– Porque quando chega a hora de fazer uma coisa, se você não faz essa
coisa, você atrasa o mundo todo. Não sabia?– Não.– Então não ensinaram você a ver horas direito. – Sabe do que mais? Discutir com vocês é pura perda de tempo. Pre-
f iro ir ver o que o Rei está fazendo.O Rei estava parado no portão do palácio, esperando a esposa. En-
quanto esperava, lia.“Qual será o título desse livro?”, interessou-se Heloísa.E foi espiar por cima do ombro do Rei. O título era: Direção Escolar. – Que diferença! – disse Heloísa para a Formiga. – Enquanto a Rainha
perde tempo fazendo essa mudança boba, veja o Rei como se prepara para dirigir a escola direito. Nunca vi homem mais esforçado.
Nesse momento, metade da bagagem desabou de um dos caminhões. – Desculpe, querido! É só mais um minutinho! Estou atrasando você?
– perguntou a Rainha, ansiosa. – Nem um pouco, minha querida – respondeu o Rei, sem tirar os
olhos do livro. – Você nunca me atrasa. Você só me adianta.
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Mal acabou de falar caiu-lhe uma cadeira na cabeça.“Agora garanto que vai interromper a leitura e ralhar com os
carregadores”, pensou Heloísa. Mas não: o Rei apenas coçou a cabeça dolorida e deu uma olha-
da rápida para o monte de coisas que havia no caminhão.– Muito instrutivo! Muito instrutivo! – disse.E tornou a mergulhar na leitura.Heloísa f icou intrigada:– O que ele acha muito instrutivo? O livro, a bagagem ou
receber uma cadeirada na cabeça?– Tudo. O Rei é dessas pessoas que acham tudo muito
instrutivo – esclareceu a Formiga. A Rainha, com as roupas fora do lugar e os cabelos em
desalinho, estava fazendo os empregados empilharem de novo no caminhão todas as coisas que tinham desabado.
– Podemos partir! – anunciou ela, af inal. E subiu num dos caminhões. Não foi fácil escalar o
monte de bagagens, mas conseguiu chegar lá em cima.– Por favor, querido! – gritou, lá do alto. – Suba
para o outro caminhão!– Querida, eu vou a pé – respondeu o Rei.– Mas quem vai tomar conta do que está no
outro caminhão?O Rei pensou um pouco e sugeriu:– Por que não vai com uma perna num
caminhão e outra perna no outro?A Rainha achou a ideia ótima:– Genial, querido! Só você mesmo para
encontrar uma solução tão boa!– Ela vai cair e se quebrar toda! –
gritou Heloísa, nervosa.
– Não creio – respondeu a Formiga. – Ela não iria querer prejudicar a sua própria mudança.
Os caminhões partiram, a Rainha com um pé em cada um. O Rei pôs-se a caminho da escola, lendo sossegadamente o livro.
– Quer vir assistir à aula? – perguntou a Formiga. – Claro! Essa aula eu não perco de jeito nenhum. Se a Rainha
chegar lá inteira, é claro.Ao chegarem à escola já encontraram o Rei, lendo, no portão.
A Rainha, apesar de ter ido de caminhão, ainda não tinha chegado.O Rei deu um adeusinho à Formiga e a Heloísa e voltou
a engolfar-se na leitura. Heloísa e a Formiga foram esperar na sala de aula, onde já estavam reunidas todas as crianças.
– Bom dia! – cumprimentou a Rainha entrando, como um pé de vento, logo depois.
Parecia muito bem disposta:– Estou feliz por estar com vocês!– Obrigado! – gritaram as crianças.– Demorei a chegar porque sempre escolho os
caminhos mais compridos e complicados. O Rei diz que essa é uma das minhas qualidades mais encanta-doras. Mas o que é que eu vim fazer aqui?
– Veio dar aula! – lembraram as crianças. A Rainha levou um grande susto:– Impossível! Não sou professora.– Mas hoje veio substituir a professora
– lembraram as crianças.– Meu Deus! É mesmo. Que cabeça a
minha! Sobre o que é a aula?– Vossa Majestade é quem tem
de saber.
– E agora? Esqueci completamente que tinha de preparar a lição. Como vou me arranjar?
– Arranje-se como puder – gritaram as crianças.– Oh! Obrigada. Muito obrigada. Se vocês dão licença para eu me
arranjar como puder, tudo f ica mais fácil para mim.– Que professora! – criticou Heloísa. – Em vez de preparar a lição, perdeu
um tempo enorme arrumando uma bagagem que af inal não serve para nada.– Como não serve para nada? – admirou-se a Formiga. – Tanto não serve que ela nem trouxe a bagagem para dentro da sala
de aula. Com certeza deixou aqueles caminhões, cheios de coisas, parados no portão.
– Mas, queridinha, que é que você queria? Que ela entulhasse a sala com tudo aquilo? As crianças morreriam sufocadas.
– Então para que trazer os caminhões?– Justamente para esquecê-los na hora exata. Heloísa levantou os olhos para o céu e desistiu de discutir com a Formiga.Naquele momento a Rainha segurou o giz e se dirigiu para o quadro.
“Só quero ver que aula vai sair”, pensou Heloísa.Mas no caminho para o quadro a Rainha já tinha esquecido nova-
mente que era professora.Ficou olhando para o giz, muito séria, e depois comentou com as
crianças:– Pensando bem, um giz é uma coisa extraordinária. Não é?– É – aprovaram as crianças.– Acho um giz tão extraordinário como uma estrela – disse a Rainha,
pensativa.– Também achamos – gritaram as crianças. – Vou perguntar ao Rei por que tudo é tão extraordinário.As crianças f icaram no maior alvoroço:– Não seja boba. Não pergunte nada. O Rei vai nos aborrecer com
milhões de explicações.A Rainha defendeu logo o Rei:– Que mentira! Ele nunca dá milhões de explicações.– Acertou! Acertou! Nós só dissemos isso para ver se você conhecia o Rei.
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– Que crianças espertas! – admirou-se a Rainha.E, tirando da bolsa uma fotograf ia do Rei, f icou olhando para ela. Depois de algum tempo, disse para as crianças:– Isto aqui é o que não é o Rei. – Muito bem! Passou no teste de professora. Agora pode continuar a aula.– Mas eu já disse tudo que sei. Sei que tudo é extraordinário e sei que
a fotograf ia do Rei não é o Rei. Não sei mais nada.– Para que saber mais? – gritaram as crianças.A Rainha f icou muito grata:– Que crianças boazinhas! Elas não exigem que eu saiba mais.E, tornando a pegar no giz, f icou olhando de novo para ele. De vez
em quando murmurava:– Que fenômeno! – Não entendo por que ela cismou com esse giz – disse Heloísa. – Porque era o que estava mais à mão – esclareceu a Formiga.
As crianças aproveitaram a distração da Rainha. Ninguém f icou na sua carteira.
Uns dançavam, outros cantavam, outros inventavam jogos, outros ainda pintavam ou liam livros com lindas f iguras.
Uma menina de cabelos cacheados veio cantar perto da mesa da professora.
– Que está fazendo aí? – perguntou a Rainha, acordando da distração.– Cantando – respondeu a menina.– E por que está cantando na sala de aula? – Porque, de repente, descobri que sei cantar.– Muito bem! Vejo que não desperdiçou seu tempo. Vai tirar nota dez
e passar de ano com a maior facilidade. – Sei disso – respondeu a menina.– Podem ir. A aula acabou! – anunciou a Rainha. As crianças saíram correndo, na maior algazarra. A Rainha tornou a f icar absorvida contemplando o giz.
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Não tinha passado nem meia hora, quando começaram a che-gar cartas dos pais das crianças.
Só que, em vez de reclamações, traziam os maiores elogios.Os pais avisavam que, com aquela aula da Rainha, todas as crianças
tinham passado de ano. Algumas tinham feito progressos tão grandes que haviam pulado dois ou três anos para a frente.
– Mas como os pais podem saber disso? – indagou Heloísa. – Ora, minha menina! Pois se eles moram com as crianças na mesma
casa! – respondeu o Rei. – Então aqui basta o pai dizer que o f ilho passou de ano, que o
f ilho passa?– Claro que não! Que adianta o pai dizer?Heloísa impacientou-se:– Af inal de contas, quem é que diz, aqui, se uma criança passou de ano?– A própria criança, naturalmente. Quem pode saber disso melhor do
que ela?– Os professores, lógico. – Que quer dizer “os professores, lógico”? – perguntou a Rainha,
intrometendo-se na conversa. Heloísa lembrou-se que era bobagem insistir com eles, já que
eram malucos. Calou a boca. – O que me salvou foi o Rei ter lido aquele livro sobre direção escolar –
comentou a Rainha, muito animada. – Se não fosse isso, minha aula teria sido um fracasso.
– Não vi o Rei no colégio – admirou-se Heloísa. – Ele não chegou a entrar no colégio. Achou melhor f icar lendo o livro
no portão – informou a Formiga.
Foi preciso Heloísa ir sacudi-la:– Majestade, a aula acabou!A Rainha voltou a si, espantada:– Aula? Que aula?– A aula que Vossa Majestade estava dando.– Eu? Impossível. Não sou professora!– Mas hoje veio substituir a professora. Não se lembra?– Ah! É mesmo! E dei aula direitinho?– Desculpe Majestade, mas não deu muito direitinho, não. Aliás, Vossa
Majestade não deu aula nenhuma.A Rainha f icou num estado lamentável:– Meu Deus, que desgraça a minha! Tem certeza que não dei aula,
mesmo? – Tenho, Majestade, eu estava assistindo.– E logo uma aula que era tão importante para a coroação do Rei!
Um rei casado com uma rainha como eu não pode ser coroado nunca. Coitadinho!
Heloísa e a Formiga tiveram que levá-la para o palácio, em prantos. – Viu o que você fez? – ralhou a Formiga, olhando severamente para
Heloísa.O Rei, que já tinha chegado, correu ao encontro da esposa:– Que é isso, minha querida?– Imagine, meu amor! Essa menina me contou que não dei aula nenhuma!– Não? Então, com certeza, era disso mesmo que as crianças estavam
precisando.A Rainha sorriu, entre lágrimas:– Será? – Não tenha a menor dúvida.“Pobres crianças!”, pensou Heloísa. “Que pro-
fessora substituta arranjaram para elas! Na certa amanhã vão chegar mil reclamações dos pais.”
Mas não foi preciso esperar até o dia seguinte. Heloísa tinha esquecido que o tempo, naquele reino, era contado de um modo muito diferente.