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A Cabeça Bem-Feita - gepepidotnet3.files.wordpress.com · A CABEÇA BEM-FEITA Repensar a reforma ... com ele prossegui neste trabalho, ... se possível, no conjunto em que está

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EDGAR MORIN

A CABEÇA BEM-FEITA

Repensar a reforma

Reformar o pensamento

8a EDIÇÃO

Tradução

ELOÁ JACOBINA

Copyright © 1999, Éditions du Seuil

Título original: La Tête Bien Faite - Repenser la réforme, réformer la

pensée

Capa: Simone Villas Boas

2003

Impresso no Brasil

Printed in Brazil

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Morin, Edgar, 1921-

A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento / Edgar Morin; tradução Eloá Jacobina. - 8

a ed. -Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,

2003.

128p.

Tradução de: La tête bien faite

Anexos

ISBN 85-286-0764-X

1. Educação - Ensaios. 2. Educação - Filosofia. I. Título.

Todos os direitos reservados pela

EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.

Rua Argentina, 171 - 1o andar - São Cristóvão

20921-380 - Rio de Janeiro - RJ

Tel: (0XX21) 2585-2070 Fax: (0XX21) 2585-2087

Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer

meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.

Atendemos pelo Reembolso Postal.

Este livro é dirigido a todos, mas poderia

ajudar particularmente professores e alunas.

Gostaria de que estes últimos, se tiverem

acesso a este livro, e se o ensino os entedia,

desanima, deprime ou aborrece, pudessem

utilizar meus capítulos para assumir sua

própria educação.

SUMÁRIO

PREFÁCIO .................................................................................... 9

1. OS DESAFIOS ......................................................................... 13

2. A CABEÇA BEM-FEITA ........................................................... 21

3. A CONDIÇÃO HUMANA ........................................................... 35

4. APRENDER A VIVER ............................................................... 47

5. ENFRENTAR A INCERTEZA ...................................................... 55

6. A APRENDIZAGEM CIDADÃ .................................................... 65

7. OS TRÊS GRAUS .................................................................... 75

8. A REFORMA DE PENSAMENTO ................................................ 87

9. PARA ALÉM DAS CONTRADIÇÕES ........................................... 99

ANEXOS

1. Inter-poli-transdisciplinaridade .......................................... 105

2. A noção de sujeito ............................................................... 117

7

PREFÁCIO

―Gostaria tanto de perseverar em minha educação puramente humana, mas o saber não nos torna melhores nem mais felizes.

Sim! Se fôssemos capazes de compreender a coerência de todas

as coisas! Mas o início e o fim de toda ciência não estão

envoltos em obscuridade? Ou devo empregar todas estas faculdades, estas forças, esta vida inteira, para conhecer tal

espécie de inseto, para saber classificar uma determinada planta

na série dos reinos?‖

KLEIST, Lettre à une amie (Carta a uma amiga)

DURANTE OS ÚLTIMOS dez anos, desenvolvi uma linha de

idéias que me conduziria a este livro. Cada vez mais convencido da

necessidade de uma reforma do pensamento, portanto de uma reforma do

ensino, aproveitava diversas oportunidades para refletir sobre o assunto.

Por sugestão de Jack Lang, então ministro da Educação na França,

enunciei ―algumas anotações para um Emílio* contemporâneo‖.

Imaginara um ―manual para alunos, professores e cidadãos‖, projeto que

não abandonei. Depois, por ocasião de várias palestras e vários honoris

causa em faculdades estrangeiras, inseria em meus discursos minhas

idéias em formação.

Comecei a formular meu ponto de vista em meados 1997, quando

fui chamado por Le Monde de l’éducation para ser o ―correspondente-

chefe convidado‖ do número sobre a Universidade.

_____________________

* Referência a Emílio, ou da educação, de Jean-Jacques Rousseau, Bertrand

Brasil. (N.daT.)

9

No dezembro seguinte, o ministro Claude Allègre pediu-me para presidir

um ―Conselho Científico‖ destinado a refletir sobre a reforma dos saberes

nos ginásios. Graças ao apoio de Didier Dacunha-Castelle, organizei

algumas jornadas temáticas1, que me permitiram demonstrar a viabilidade

de minhas idéias. Mas elas levantaram tantas resistências, que o relato

referente a minhas proposições ficou prejudicado de ponta a ponta.

Entretanto, meu pensamento entrara irrevogavelmente em ação, e

com ele prossegui neste trabalho, que é o seu resultado2.

Tencionei começar pelos problemas que acreditava serem, ao

mesmo tempo, os mais urgentes e os mais importantes, e indicar o

caminho para analisá-los.

Tencionei começar pelas finalidades e mostrar como o ensino –

primário, secundário, superior – podia servir a essas finalidades.

Tencionei demonstrar como a solução dos problemas e sua

submissão às finalidades deveriam levar, necessariamente, à reforma do

pensamento e das instituições.

Os que não me leram e julgam-me segundo o ―disse-me-disse‖ do

microcosmo atribuem-me a idéia bizarra de uma poção mágica, chamada

complexidade, como remédio para todos os males do espírito. Ao

contrário, a complexidade, para mim, é um desafio que sempre me propus

a vencer.

Este livro é dedicado, de fato, à educação e ao ensino, a um só

tempo. Esses dois termos, que se confundem, distanciam-se igualmente.

―Educação‖ é uma palavra forte: ―Utilização de meios que

permitem assegurar a formação e o desenvolvimento de um ser humano;

esses próprios meios‖. (Robert) O termo ―formação‖, com suas

conotações de moldagem e conformação, tem o defeito de ignorar

_____________________

1 O relato dessas jornadas foi publicado sob o título Relier les connaissances;

Seuil, 1999.

2 Agradeço a Jean-Louis Le Moigne e Chtistiane Peyron-Bonjan, que

contribuíram com suas observações críticas na releitura de meu manuscrito.

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que a missão do didatismo é encorajar o autodidatismo, despertando,

provocando, favorecendo a autonomia do espírito.

O ―ensino‖, arte ou ação de transmitir os conhecimentos a um

aluno, de modo que ele os compreenda e assimile, tem um sentido mais

restrito, porque apenas cognitivo.

A bem dizer, a palavra ―ensino‖ não me basta, mas a palavra

―educação‖ comporta um excesso e uma carência. Neste livro, vou

deslizar entre os dois termos, tendo em mente um ensino educativo.

A missão desse ensino é transmitir não o mero saber, mas uma

cultura que permita compreender nossa condição e nos ajude a viver, e

que favoreça, ao mesmo tempo, um modo de pensar aberto e livre.

Kleist tem muita razão: ―O saber não nos torna melhores nem mais

felizes.‖

Mas a educação pode ajudar a nos tornarmos melhores, se não mais

felizes, e nos ensinar a assumir a parte prosaica e viver a parte poética de

nossas vidas.

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CAPÍTULO I

OS DESAFIOS

―Nossa Universidade atual forma, pelo mundo afora, uma proporção demasiado grande de especialistas em disciplinas predeterminadas, portanto artificialmente delimitadas, enquanto

uma grande parte das atividades sociais, como o próprio

desenvolvimento da ciência, exige homens capazes de um ângulo de visão muito mais amplo e, ao mesmo tempo, de um

enfoque dos problemas em profundidade, além de novos

progressos que transgridam as fronteiras históricas das

disciplinas.‖

LICHNEROWICZ

HÁ INADEQUAÇÃO cada vez mais ampla, profunda e grave entre os

saberes separados, fragmentados, compartimentados entre disciplinas, e,

por outro lado, realidades ou problemas cada vez mais polidisciplinares,

transversais, multidimensionais, transnacionais, globais, planetários.

Em tal situação, tornam-se invisíveis:

– os conjuntos complexos;

– as interações e retroações entre partes e todo;

– as entidades multidimensionais;

– os problemas essenciais.

De fato, a hiperespecialização1 impede de ver o global (que ela

fragmenta em parcelas), bem como o essencial (que ela dilui). Ora,

_____________________

1 ... ou seja, a especialização que se fecha em si mesma sem permitir sua integração em

uma problemática global ou em uma concepção de conjunto do objeto do qual ela

considera apenas um aspecto ou uma parte.

13

os problemas essenciais nunca são parceláveis, e os problemas globais são

cada vez mais essenciais. Além disso, todos os problemas particulares só

podem ser posicionados e pensados corretamente em seus contextos; e o

próprio contexto desses problemas deve ser posicionado, cada vez mais,

no contexto planetário.

Ao mesmo tempo, o retalhamento das disciplinas torna impossível

apreender ―o que é tecido junto‖, isto é, o complexo, segundo o sentido

original do termo.

Portanto, o desafio da globalidade é também um desafio de

complexidade. Existe complexidade, de fato, quando os componentes que

constituem um todo (como o econômico, o político, o sociológico, o

psicológico, o afetivo, o mitológico) são inseparáveis e existe um tecido

interdependente, interativo e inter-retroativo entre as partes e o todo, o

todo e as partes. Ora, os desenvolvimentos próprios de nosso século e de

nossa era planetária nos confrontam, inevitavelmente e com mais e mais

freqüência, com os desafios da complexidade.

Como disseram Aurélio Peccei e Daisaku Ikeda: ―O approach

reducionista, que consiste em recorrer a uma série de fatores para regular

a totalidade dos problemas levantados pela crise multiforme, que

atravessamos atualmente, é menos uma solução que o próprio problema.‖2

Efetivamente, a inteligência que só sabe separar fragmenta o

complexo do mundo em pedaços separados, fraciona os problemas,

unidimensionaliza o multidimensional. Atrofia as possibilidades de

compreensão e de reflexão, eliminando assim as oportunidades de um

julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo. Sua insuficiência

para tratar nossos problemas mais graves constitui um dos mais graves

problemas que enfrentamos. De modo que, quanto mais os problemas se

tornam multidimensionais, maior a incapacidade de

_____________________

2 Cri d’alarme pour le 21e siècle. Dialogue entre Daisaku Ikeda et Aurélio Peccei, PUF,

1986.

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pensar sua multidimensionalidade; quanto mais a crise progride, mais

progride a incapacidade de pensar a crise; quanto mais planetários

tornam-se os problemas, mais impensáveis eles se tornam. Uma

inteligência incapaz de perceber o contexto e o complexo planetário fica

cega, inconsciente e irresponsável.

Assim, os desenvolvimentos disciplinares das ciências não só

trouxeram as vantagens da divisão do trabalho, mas também os

inconvenientes da superespecialização, do confinamento e do

despedaçamento do saber. Não só produziram o conhecimento e a

elucidação, mas também a ignorância e a cegueira.

Em vez de corrigir esses desenvolvimentos, nosso sistema de ensino

obedece a eles. Na escola primária nos ensinam a isolar os objetos (de seu

meio ambiente), a separar as disciplinas (em vez de reconhecer suas

correlações), a dissociar os problemas, em vez de reunir e integrar.

Obrigam-nos a reduzir o complexo ao simples, isto é, a separar o que está

ligado; a decompor, e não a recompor; e a eliminar tudo que causa

desordens ou contradições em nosso entendimento3.

Em tais condições, as mentes jovens perdem suas aptidões naturais

para contextualizar os saberes e integrá-los em seus conjuntos.

Ora, o conhecimento pertinente é o que é capaz de situar qualquer

informação em seu contexto e, se possível, no conjunto em que está

inscrita. Podemos dizer até que o conhecimento progride não tanto por

sofisticação, formalização e abstração, mas, principalmente, pela

capacidade de contextualizar e englobar. Assim, a ciência econômica é a

ciência humana mais sofisticada e a mais formalizada. Contudo, os

economistas são incapazes de estar de acordo sobre suas

_____________________

3 O pensamento que recorta, isola, permite que especialistas e experts tenham ótimo

desempenho em seus compartimentos, e cooperem eficazmente nos setores não

complexos de conhecimento, notadamente os que concernem ao funcionamento das

máquinas artificiais; mas a lógica a que eles obedecem estende à sociedade e as relações

humanas os constrangimentos e os mecanismos inumanos da máquina artificial e sua

visão determinista, mecanicista, quantitativa, formalista; e ignora, oculta ou dilui tudo

que é subjetivo, afetivo, livre, criador.

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predições, geralmente errôneas. Por quê? Porque a ciência econômica está

isolada das outras dimensões humanas e sociais que lhe são inseparáveis.

Como diz Jean-Paul Fitoussi, ―muitos desfuncionamentos procedem,

hoje, de uma mesma fraqueza da política econômica: a recusa a enfrentar

a complexidade...‖4. A política econômica é a mais incapaz de perceber o

que não é quantificável, ou seja, as paixões e as necessidades humanas.

De modo que a economia é, ao mesmo tempo, a ciência mais avançada

matematicamente e a mais atrasada humanamente. Hayek dizia:

―Ninguém pode ser um grande economista se for somente um

economista.‖ Chegava até a acrescentar que ―um economista que só é

economista torna-se prejudicial e pode constituir um verdadeiro perigo‖.

Devemos, pois, pensar o problema do ensino, considerando, por um

lado, os efeitos cada vez mais graves da compartimentação dos saberes e

da incapacidade de articulá-los, uns aos outros; por outro lado,

considerando que a aptidão para contextualizar e integrar é uma qualidade

fundamental da mente humana, que precisa ser desenvolvida, e não

atrofiada.

Por detrás do desafio do global e do complexo, esconde-se um outro

desafio: o da expansão descontrolada do saber. O crescimento

ininterrupto dos conhecimentos constrói uma gigantesca torre de Babel,

que murmura linguagens discordantes. A torre nos domina porque não

podemos dominar nossos conhecimentos. T. S. Eliot dizia: ―Onde está o

conhecimento que perdemos na informação?‖ O conhecimento só é

conhecimento enquanto organização, relacionado com as informações e

inserido no contexto destas. As informações constituem parcelas dispersas

de saber. Em toda parte, nas ciências como nas mídias, estamos afogados

em informações. O especialista da disciplina mais restrita não chega

sequer a tomar conheci-

_____________________

4 Le Débat interdit: monnaie, Europe, pauvreté, Arléa, 1995.

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mento das informações concernentes a sua área. Cada vez mais, a

gigantesca proliferação de conhecimentos escapa ao controle humano.

Além disso, como já dissemos, os conhecimentos fragmentados só servem

para usos técnicos. Não conseguem conjugar-se para alimentar um

pensamento capaz de considerar a situação humana no âmago da vida, na

terra, no mundo, e de enfrentar os grandes desafios de nossa época. Não

conseguimos integrar nossos conhecimentos para a condução de nossas

vidas. Daí o sentido da segunda parte da frase de Eliot: ―Onde está a

sabedoria que perdemos no conhecimento?‖

Os três desafios que acabamos de destacar levam-nos ao problema

essencial da organização do saber, de que trataremos no próximo capítulo.

Assinalemos, agora, os desafios encadeados que resultam desses três

desafios.

O desafio cultural

A cultura, daqui em diante, está não só recortada em peças

destacadas, como também partida em dois blocos. A grande separação

entre a cultura das humanidades e a cultura científica, iniciada no século

passado e agravada neste século XX, desencadeia sérias conseqüências

para ambas. A cultura humanística é uma cultura genérica, que, pela via

da filosofia, do ensaio, do romance, alimenta a inteligência geral, enfrenta

as grandes interrogações humanas, estimula a reflexão sobre o saber e

favorece a integração pessoal dos conhecimentos. A cultura científica,

bem diferente por natureza, separa as áreas do conhecimento; acarreta

admiráveis descobertas, teorias geniais, mas não uma reflexão sobre o

destino humano e sobre o futuro da própria ciência. A cultura das

humanidades tende a se tornar um moinho despossuído do grão das

conquistas científicas sobre o mundo e sobre a vida, que deveria alimentar

suas grandes interroga-

17

ções; a segunda, privada da reflexão sobre os problemas gerais e globais,

torna-se incapaz de pensar sobre si mesma e de pensar os problemas

sociais e humanos que coloca.

O mundo técnico e científico vê na cultura das humanidades apenas

uma espécie de ornamento ou luxo estético, ao passo que ela favorece o

que Simon chamava de general problem solving, isto é, a inteligência

geral que a mente humana aplica aos casos particulares. O mundo das

humanidades vê na ciência apenas um amontoado de saberes abstratos ou

ameaçadores.

O desafio sociológico

A área submetida aos três desafios estende-se incessantemente com

o crescimento das características cognitivas das atividades econômicas,

técnicas, sociais, políticas, sobretudo com os desenvolvimentos

generalizados e múltiplos do sistema neurocerebral artificial,

impropriamente denominado informática, posto em simbiose com todas

as nossas atividades. £ assim cada vez mais:

– a informação é uma matéria-prima que o conhecimento deve

dominar e integrar;

– o conhecimento deve ser permanentemente revisitado e revisado

pelo pensamento;

– o pensamento é, mais do que nunca, o capital mais precioso para o

indivíduo e a sociedade.

O desafio cívico

O enfraquecimento de uma percepção global leva ao

enfraquecimento do senso de responsabilidade – cada um tende a ser

responsável apenas por sua tarefa especializada –, bem como ao

enfraquecimento da solidariedade – ninguém mais preserva seu elo

orgânico com a cidade e seus concidadãos.

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Existe um déficit demográfico crescente, devido à apropriação de

um número crescente de problemas vitais pelos experts, especialistas e

técnicos.

O saber tornou-se cada vez mais esotérico (acessível somente aos

especialistas) e anônimo (quantitativo e formalizado). O conhecimento

técnico está igualmente reservado aos experts, cuja competência em um

campo restrito é acompanhada de incompetência quando este campo é

perturbado por influências externas ou modificado por um novo

acontecimento. Em tais condições, o cidadão perde o direito ao

conhecimento. Tem o direito de adquirir um saber especializado com

estudos ad hoc, mas é despojado, enquanto cidadão, de qualquer ponto de

vista globalizante ou pertinente. Se ainda é possível discutir num bar a

conduta da chefia do Estado, já não é possível compreender o que

deflagra o crash asiático, assim como o que impede esse crash de

provocar uma crise maior; de resto, os próprios experts estão

profundamente divididos sobre o diagnóstico e a política econômica a

seguir. Se era possível acompanhar a Segunda Guerra Mundial pelas

bandeirinhas fincadas no mapa, não é possível conceber os cálculos e as

simulações dos computadores que executam os planos da guerra futura. A

arma atômica deixou o cidadão inteiramente desprovido da possibilidade

de pensá-la e controlá-la. Sua utilização está entregue unicamente à

decisão do chefe de Estado, sem qualquer consulta a alguma instância

democrática regulamentar. Quanto mais técnica torna-se a política, mais

regride a competência democrática.

A continuação do processo técnico-científico atual – processo cego,

aliás, que escapa à consciência e à vontade dos próprios cientistas – leva a

uma grande regressão da democracia. Assim, enquanto o expert perde a

aptidão de conceber o global e o fundamental, o cidadão perde o direito

ao conhecimento. A partir daí, a perda do saber, muito mal compensada

pela vulgarização da mídia, levanta o problema histórico, agora capital, da

necessidade de uma democracia cognitiva.

19

Atualmente, é impossível democratizar um saber fechado e

esotérico por natureza. Mas, a partir daí, não seria possível conceber uma

reforma do pensamento que permita enfrentar o extraordinário desafio

que nos encerra na seguinte alternativa: ou sofrer o bombardeamento de

incontáveis informações que chovem sobre nós, quotidianamente, pelos

jornais, rádios, televisões; ou, então, entregarmo-nos a doutrinas que só

retêm das informações o que as confirma ou o que lhes é inteligível, e

refugam como erro ou ilusão tudo o que as desmente ou lhes é

incompreensível. É um problema que se coloca não somente ao

conhecimento do mundo no dia-a-dia, mas também ao conhecimento de

tudo o que é humano e ao próprio conhecimento científico.

O desafio dos desafios

Um problema crucial de nossa época é o da necessidade de destacar

todos os desafios interdependentes que acabamos de levantar.

A reforma do pensamento é que permitiria o pleno emprego da

inteligência para responder a esses desafios e permitiria a ligação de

duas culturas dissociadas. Trata-se de uma reforma não programática,

mas paradigmática, concernente a nossa aptidão para organizar o

conhecimento.

Todas as reformas concebidas até o presente giraram em torno desse

buraco negro em que se encontra a profunda carência de nossas mentes,

de nossa sociedade, de nosso tempo e, em decorrência, de nosso ensino.

Elas não perceberam a existência desse buraco negro, porque provêm de

um tipo de inteligência que precisa ser reformada.

A reforma do ensino deve levar à reforma do pensamento, e a

reforma do pensamento deve levar à reforma do ensino.

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CAPÍTULO 2

A CABEÇA BEM-FEITA

―Não se ensinam os homens a serem homens honestos, mas ensina-se tudo o mais.‖

PASCAL

―A finalidade de nossa escola é ensinar a repensar o pensamento, a ‗des-saber‘ o sabido e a duvidar de sua própria dúvida; esta é a única maneira de começar a acreditar em alguma coisa.‖

JUAN DE MAIRENA

A PRIMEIRA FINALIDADE do ensino foi formulada por Montaigne:

mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia. O significado de ―uma

cabeça bem cheia‖ é óbvio: é uma cabeça onde o saber é acumulado,

empilhado, e não dispõe de um princípio de seleção e organização que lhe

dê sentido. ―Uma cabeça bem-feita‖ significa que, em vez de acumular o

saber, é mais importante dispor ao mesmo tempo de:

– uma aptidão geral para colocar e tratar os problemas;

– princípios organizadores que permitam ligar os saberes e lhes dar

sentido.

A aptidão geral

Lembremos que o espírito humano, como dizia H. Simon, é um

GPS, general problems setting and solving.

Contrariamente à opinião hoje difundida, o desenvolvimento

21

das aptidões gerais da mente permite o melhor desenvolvimento das

competências particulares ou especializadas. Quanto mais desenvolvida é

a inteligência geral, maior é sua capacidade de tratar problemas especiais.

A educação deve favorecer a aptidão natural da mente para colocar e

resolver os problemas e, correlativamente, estimular o pleno emprego da

inteligência geral.

Esse pleno emprego exige o livre exercício da faculdade mais

comum e mais ativa na infância e na adolescência, a curiosidade, que,

muito freqüentemente, é aniquilada pela instrução1, quando, ao contrário,

trata-se de estimulá-la ou despertá-la, se estiver adormecida. Trata-se,

desde cedo, de encorajar, de instigar a aptidão interrogativa e orientá-la

para os problemas fundamentais de nossa própria condição e de nossa

época.

É evidente que isso não pode ser inserido em um programa, só pode

ser impulsionado por um fervor educativo.

O desenvolvimento da inteligência geral requer que seu exercício

seja ligado à dúvida2, fermento de toda atividade crítica, que, como

assinala Juan de Mairena, permite ―repensar o pensamento‖, mas

comporta também ―a dúvida de sua própria dúvida‖. Deve recorrer à ars

cogttandi, a qual inclui o bom uso da lógica, da dedução, da indução – a

arte da argumentação e da discussão. Comporta também essa inteligência

que os gregos chamavam de métis3, ―conjunto de atitudes mentais... que

conjugam o ‗faro‘, a sagacidade, a previsão, a leveza de espírito, a

desenvoltura, a atenção constante, o senso de oportunidade‖. Enfim, seria

preciso partir de Voltaire e

_____________________

1 Recordemos o caráter trágico da extinção progressiva da curiosidade durante os anos

de formação, ou sua limitação a um pequeno setor, que será o da especialização do

adulto.

2 Montaigne, citando Dante: “Che non men que saper dubbiar m’aggradd” (tanto

quanto o saber, agrada-me a dúvida).

3 M. Détienne e J.-P. Vernant, Les Ruses de l’intelligence. La métis des Grecs,

Flammarion, 1974, col. ―Champs‖, 1986.

22

Conan Doyle, e, mais adiante, estudar a arte do paleontólogo ou do

arqueólogo, para se iniciar na serendipididade. arte de transformar

detalhes, aparentemente insignificantes, em indícios que permitam

reconstituir toda uma história.

Como o bom uso da inteligência geral é necessário em todos os

domínios da cultura das humanidades – também da cultura científica – e,

é claro, na vida, em todos esses domínios é que será preciso valorizar o

―pensar bem‖, que não leva absolutamente a formar um bem-pensante.

O ensino matemático, que compreende o cálculo, é claro, será

levado aquém e além do cálculo. Deverá revelar a natureza

intrinsecamente problemática das matemáticas. O cálculo é um

instrumento do raciocínio matemático, que é exercido sobre o problem

settings o problem solving, em que se trata de exibir ―a prudência

consumada e a lógica implacável‖4. No decorrer dos anos de

aprendizagem, seria preciso valorizar, progressivamente, o diálogo entre o

pensamento matemático e o desenvolvimento dos conhecimentos

científicos, e, finalmente, os limites da formalização e da quantificação.

A filosofia deve contribuir eminentemente para o desenvolvimento

do espírito problematizador. A filosofia é, acima de tudo, uma força de

interrogação e de reflexão, dirigida para os grandes problemas do

conhecimento e da condição humana. A filosofia, hoje retraída em uma

disciplina quase fechada em si mesma, deve retomar a missão que foi a

sua – desde Aristóteles a Bergson e Husserl – sem, contudo, abandonar as

investigações que lhe são próprias. Também o professor de filosofia, na

condução de seu ensino, deveria estender seu poder de reflexão aos

conhecimentos científicos, bem como à literatura e à poesia, alimentando-

se ao mesmo tempo de ciência e de literatura.

_____________________

4 Lautréamont, Chants de Maldoror, in Œuvres complètes, Losfeld, 1971, p. 114.

23

A organização dos conhecimentos

Uma cabeça bem-feita é uma cabeça apta a organizar os

conhecimentos e, com isso, evitar sua acumulação estéril.

Todo conhecimento constitui, ao mesmo tempo, uma tradução e

uma reconstrução, a partir de sinais, signos, símbolos, sob a forma de

representações, idéias, teorias, discursos. A organização dos

conhecimentos é realizada em função de princípios e regras que não cabe

analisar aqui5; comporta operações de ligação (conjunção, inclusão,

implicação) e de separação (diferenciação, oposição, seleção, exclusão).

O processo é circular, passando da separação à ligação, da ligação à

separação, e, além disso, da análise à síntese, da síntese à análise. Ou seja:

o conhecimento comporta, ao mesmo tempo, separação e ligação, análise

e síntese.

Nossa civilização e, por conseguinte, nosso ensino privilegiaram a

separação em detrimento da ligação, e a análise em detrimento da síntese.

Ligação e síntese continuam subdesenvolvidas. E isso, porque a separação

e a acumulação sem ligar os conhecimentos são privilegiadas em

detrimento da organização que liga os conhecimentos.

Como nosso modo de conhecimento desune os objetos entre si,

precisamos conceber o que os une. Como ele isola os objetos de seu

contexto natural e do conjunto do qual fazem parte, é uma necessidade

cognitiva inserir um conhecimento particular em seu contexto e situá-lo

em seu conjunto. De fato, a psicologia cognitiva demonstra que o

conhecimento progride menos pela sofisticação, formalização e abstração

dos conhecimentos particulares do que, sobretudo, pela aptidão a integrar

esses conhecimentos em seu contexto global. A partir daí, o

desenvolvimento da aptidão para contextualizar e globalizar os saberes

torna-se um imperativo da educação.

O desenvolvimento da aptidão para contextualizar tende a produzir

a emergência de um pensamento ―ecologizante‖, no sentido em

_____________________

5 Cf. E. Morin, La Méthode, t. 3: La Connaissance de la connaissance e t. 4: Les Idées,

Éd. du Seuil, ―Points Essais‖ nº 236 e 303.

24

que situa todo acontecimento, informação ou conhecimento em relação de

inseparabilidade com seu meio ambiente – cultural, social, econômico,

político e, é claro, natural. Não só leva a situar um acontecimento em seu

contexto, mas também incita a perceber como este o modifica ou explica

de outra maneira. Um tal pensamento torna-se, inevitavelmente, um

pensamento do complexo, pois não basta inscrever todas as coisas ou

acontecimentos em um ―quadro‖ ou uma ―perspectiva‖. Trata-se de

procurar sempre as relações e inter-retro-ações entre cada fenômeno e seu

contexto, as relações de reciprocidade todo/partes: como uma

modificação local repercute sobre o todo e como uma modificação do

todo repercute sobre as partes. Trata-se, ao mesmo tempo, de reconhecer a

unidade dentro do diverso, o diverso dentro da unidade; de reconhecer,

por exemplo, a unidade humana em meio às diversidades individuais e

culturais, as diversidades individuais e culturais em meio à unidade

humana.

Enfim, um pensamento unificador abre-se de si mesmo para o

contexto dos contextos: o contexto planetário.

Para seguir por esse caminho, o problema não é bem abrir as

fronteiras entre as disciplinas, mas transformar o que gera essas

fronteiras: os princípios organizadores do conhecimento.

Pascal já formulara a necessidade de ligação, que hoje é o caso de

introduzir em nosso ensino, a começar pelo primário: ―Sendo todas as

coisas causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas,

e todas elas mantidas por um elo natural e insensível, que interliga as

mais distantes e as mais diferentes, considero impossível conhecer as

partes sem conhecer o todo, assim como conhecer o todo sem conhecer,

particularmente, as partes...‖ (Pensamentos, Éd. Brunschvicg, II, 72). Para

pensar localizadamente, é preciso pensar globalmente, como para pensar

globalmente é preciso pensar localizadamente.

O problema chave permanece: quais são os princípios que poderiam

elucidar as relações de reciprocidade entre partes e todo, bem como

reconhecer o elo natural e insensível que liga as coisas mais distantes e as

mais diferentes? Quais são as maneiras de pensar que per-

25

mitiriam conceber que uma mesma coisa possa ser causada e causadora,

ajudada e ajudante, mediata e imediata? No capítulo 8, ―A reforma do

pensamento‖, vamos indicá-las, sucintamente.

Um novo espírito científico

A segunda revolução científica do século XX6 pode contribuir,

atualmente, para formar uma cabeça bem-feita. Essa revolução, iniciada

em várias frentes dos anos 60, gera grandes desdobramentos que levam a

ligar, contextualizar e globalizar os saberes até então fragmentados e

compartimentados, e que, daí em diante, permitem articular as disciplinas,

umas às outras, de modo mais fecundo.

O desenvolvimento anterior das disciplinas científicas, tendo

fragmentado e compartimentado mais e mais o campo do saber, demoliu

as entidades naturais sobre as quais sempre incidiram as grandes

interrogações humanas: o cosmo, a natureza, a vida e, a rigor, o ser

humano. As novas ciências, Ecologia, ciências da Terra, Cosmologia, são

poli ou transdisciplinares: têm por objeto não um setor ou uma parcela,

mas um sistema7 complexo, que forma um

_____________________

6 ... a primeira teria irrompido na microfiísica, no início do século (cf. cap. 5, p. 56).

7 A idéia sistêmica começou, na segunda metade de nosso século, a minar

progressivamente a validade de um conhecimento reducionista. Formulada por Bertalanffy, ao longo dos anos 50, a teoria geral dos sistemas, que parte do fato de que a

maior parte dos objetos da física, da astronomia, da biologia, da sociologia, átomos,

moléculas, células, organismos, sociedades, astros, galáxias formam sistemas, ou seja,

conjuntos de partes diversas que constituem um todo organizado, retomou a idéia,

freqüentemente formulada no passado, de que um todo é mais que o conjunto das partes

que o compõem. Na mesma época, a cibernética estabelecia os primeiros princípios

concernentes à organização das máquinas que dispunham de programas informatizados e

de dispositivos reguladores, cujo conhecimento não podia ser reduzido ao de suas partes

constitutivas. Como destacamos (La Méthode, t. h La Nature de la nature, Éd. du Seuil,

―Points Essais‖, n? 123, particularmente, pp. 101-116), a organização em sistema produz

qualidades ou propriedades desconhecidas das partes concebidas isoladamente: as emergências. Assim, as propriedades do ser vivo são desconhecidas na medida de seus

constituintes moleculares isolados; elas

26

todo organizador8. Realizam o restabelecimento dos conjuntos

constituídos, a partir de interações, retroações, inter-retroações, e

constituem complexos que se organizam por si próprios. Ao mesmo

tempo, ressuscitam entidades naturais: o Universo (Cosmologia), a Terra

(ciências da Terra), a natureza (Ecologia), a humanidade (pela visão em

perspectiva da nova Pré-história do processo multimilenar de

hominização).

Assim, todas essas ciências rompem o velho dogma reducionista de

explicação pelo elementar: elas tratam de sistemas complexos onde as

partes e o todo produzem e se organizam entre si e, no caso da

Cosmologia, uma complexidade que ultrapassa qualquer sistema.

Já existiam ciências multidimensionais, como a Geografia, que vai

da Geologia aos fenômenos econômicos e sociais. Existem ciências que

se tornaram poliscópicas, como a História, e ciências que já o eram, como

a ciência das civilizações (Islã, índia, China). Agora, surgiram novas

ciências ―sistêmicas‖: Ecologia, ciências da Terra, Cosmologia.

ECOLOGIA

A idéia de sistema foi introduzida e impôs-se, sob a forma de

ecossistema, em uma ciência que, fundada no final do século XIX,

conheceu um prodigioso desenvolvimento a partir do início dos anos de

1960: a Ecologia. A noção de ecossistema significa que o conjunto das

interações entre populações vivas no seio de uma determinada unidade

geofísica constitui uma unidade complexa de caráter organizador: um

ecossistema. Como é sabido, a partir dos anos

_____________________

emergem nesta e para esta organização. A rotina, fruto da ciência disciplinar, era tão forte, que, por muito tempo, o pensamento sistêmico permaneceu afastado das ciências,

tanto naturais como humanas, e, ainda hoje, é marginalizado.

8 Como indicamos antes (La Méthode, t. l, op. cit., pp. 94-106), as noções de sistema e

de organização remetem uma à outra.

27

70 a pesquisa ecológica estendeu-se à biosfera como um todo, sendo esta

concebida como um megassistema auto-regulador que admite em seu

âmago os desenvolvimentos técnicos e econômicos propriamente

humanos que passam a perturbá-lo.

A Ecologia, que tem um ecossistema como objeto de estudo, recorre

a múltiplas disciplinas físicas para apreender o biotopo e às disciplinas

biológicas (Zoologia, Botânica, Microbiologia) para estudar a biocenose.

Além disso, precisa recorrer às ciências humanas para analisar as

interações entre o mundo humano e a biosfera. Assim, disciplinas

extremamente distintas são associadas e orquestradas na ciência

ecológica.

CIÊNCIAS DA TERRA

Nos anos 60, depois da descoberta da teoria tectônica das placas, as

ciências da Terra percebem nosso planeta como um sistema complexo que

se autoproduz e se auto-organiza; articulam-se com disciplinas outrora

isoladas, como a Geologia, a Meteorologia, a Vulcanologia, a Sismologia.

Sugerem que a diminuição de peso na extremidade continental do sudeste

asiático, sob o efeito da erosão anual devida aos ciclones, pode provocar

um contrabalanceamento no oeste da Anatólia e um empuxo causador de

tremores de terra ou erupções vulcânicas na Grécia e na Itália.

Encaminhamo-nos, como propõe vivamente Westbroek9, para uma

concepção geobiofísica da Terra, em que os caracteres físicos de origem

biológica (o oxigênio do ar, o calcário etc.) estão integrados como sistema

e onde a vida não é apenas um produto, mas também um agente da física

terrestre.

O desenvolvimento das ciências da Terra e da Ecologia revitalizam

a Geografia, ciência complexa por princípio, uma vez que

_____________________

9 Peter Westbroek, Vive la Terre. Physiologie d une planète, Éd. du Seuil, 1998.

28

abrange a física terrestre, a biosfera e as implantações humanas.

Marginalizada pelas disciplinas vitoriosas, privada do pensamento

organizador – que vai além do possibilismo de Vidal de La Blache, ou do

determinismo de Ratzell –, a Geografia, que, de resto, forneceu

profissionais à Ecologia, reencontra suas perspectivas multidimensionais,

complexas e globalizantes10

. Desenvolve seus pseudopodes geopolíticos11

e reassume sua vocação originária: como diz Jean-Pierre Allix, ―somos

necessariamente generalizadores‖12

. A Geografia amplia-se em Ciência da

Terra dos homens.

COSMOLOGIA

O cosmo fora liquidado no início do século XX pelo conceito

einsteiniano de espaço-tempo. Sua ressurreição tem início com a

descoberta de Hubble da dispersão das galáxias, a hipótese do átomo

primitivo de Lemaître, e é concluída nos anos 60, notadamente depois da

descoberta da radiação isótropa que vem de todos os pontos do Universo

e pode ser interpretada como o resíduo fóssil de um acontecimento

térmico inicial. A partir daí, impõe-se o conceito de um cosmo único, em

evolução. Para conhecer esse cosmo e conceber, sobretudo, a formação

dos nódulos, dos átomos, e as inter-retroações no interior dos astros, a

observação astrofísica é associada aos resultados das experiências

microfísicas, isto é, a disciplina do infinitamente grande à disciplina do

infinitamente pequeno; a exemplo de Pascal, alguns cosmólogos,

meditando sobre a situação humana entre esses dois infinitos, tentam

introduzir a possibilidade da vida e da consciência em sua idéia de cosmo

(princípio antrópico).

_____________________

10 Cf. Jacques Levy, Le Monde pour cité, debate com Alfred Valladao, Hachette, 1996.

Michel Roux, Géographie et complexité, L‘Harmattan, 1999.

11 Cf. Yves Lacoste, Dictionnaire de géopolitique, Flammarion, 1995.

12 L’Espace humain, Une invitation à la géographie, Éd. du Seuil, 1996.

29

Assim, a partir daí, disciplinas distintas (astronomia de observação,

física, micro física, matemática), além de uma reflexão quase filosófica,

são utilizadas de maneira reflexiva para permitir, tanto quanto possível,

uma inteligibilidade de nosso Universo.

Os atrasos

Infelizmente, a revolução das recomposições multidisciplinares está

longe de ser generalizada e, em muitos setores, sequer teve início,

notadamente no que concerne ao ser humano, vítima da grande disjunção

natureza/cultura, animalidade/humanidade, sempre desmembrado entre

sua natureza de ser vivo, estudada pela biologia, e sua natureza física e

social, estudada pelas ciências humanas.

Contudo, a nova Pré-história, desde as descobertas feitas por Louis

e Mary Leakey na garganta do Olduvai, em 1959, permite efetuar a

primeira ligação, que forma um nó górdio entre o biológico e o humano:

como ciência polidisciplinar e poliscópica, ela procura compreender a

hominização, aventura de alguns milhões de anos, que realiza a passagem

do animal ao humano e a da natureza à cultura. Precisa recorrer à

Ecologia (mudanças climáticas que estimularam a hominização), à

Genética (mutações sucessivas do australopteco ao Homo sapiens), à

Anatomia (o elo entre a bipedização e a manualização, a postura ereta do

corpo, a modificação do crânio); às ciências neurológicas (crescimento e

reorganização do cérebro); à Sociologia (transformação de uma sociedade

de primatas em sociedade humana), às teorias de Bolk (o adulto conserva

os caracteres não especializados do embrião e os caracteres fisiológicos

da juventude)13

.

Ata-se, então, o primeiro elo indissolúvel entre ciências da vida e

ciências humanas.

_____________________

13

Cf. as indicações in Le Paradigme perdu, ―Points Essais‖, n°. 109.

30

Nas ciências cognitivas, um outro elo é pesquisado entre o cérebro,

órgão biológico, a mente, entidade antropológica, e o computador,

inteligência artificial. Mas, até o presente, há mais justaposição que

ligação, e menos busca de uma linguagem comum que conflitos entre

disciplinas de pretensão hegemônica: ciências neurológicas, ciências

físicas, teorias oriundas da informação, cibernética, conceitos de auto-

organização a partir de redes de conexão etc. O mais grave é que as

ciências cognitivas, que aglutinam disciplinas ―normais‖, próprias da

ciência clássica, ignoram seu problema crucial: o objeto de seu

conhecimento é da mesma natureza que seu instrumento de

conhecimento. De modo que as ciências cognitivas constituem uma

primeira etapa de agregação, à espera da grande virada.

No que diz respeito às ciências da vida e às ciências do homem, a

situação é bem diferente. Os prodigiosos progressos da Biologia

Molecular e da Genética permitem conceber o elo entre Física, Química e

Biologia, pois é pela organização, e não pela matéria, que a vida se

diferencia do mundo físico-químico. Mas essa organização é concebida de

maneira reducionista, quando simplificada em um único movimento ADN

→ ARN → proteínas. De fato, existem hiatos, até agora não preenchidos,

entre Biologia Molecular, de um lado, e Etologia ou Parasitologia, do

outro. Enquanto a Biologia Molecular esforça-se para reduzir todo

comportamento vivo a movimentos genético-químicos, em uma outra

perspectiva das ciências biológicas desenvolveu-se uma visão etológica

que põe a descoberto a complexidade das estratégias, não apenas animais,

mas também vegetais, a inteligência e a complexidade das relações entre

macacos superiores, sobretudo os chimpanzés, a existência não de hordas,

mas de verdadeiras sociedades, entre mamíferos; quanto à Parasitologia,

ela descobre estratagemas surpreendentes nos parasitas, que se infiltram

de uma espécie a outra, sem que esse comportamento tão complicado

possa ser reduzido a um acaso genético.

31

Assim, as ciências biológicas progridem em múltiplas frentes, mas

essas frentes não estão coordenadas umas às outras e levam a idéias

divergentes. A confederação biológica está longe de ser concretizada:

falta-lhe a ligação decisiva – a idéia de auto-organização.

Além disso, mesmo as ciências especificamente humanas são

compartimentadas: História, Sociologia, Economia, Psicologia, ciências

do imaginário, mitos e crenças só se comunicam em alguns pesquisadores

marginais. Contudo, a História tende a tornar-se uma ciência

multidimensional, quando integra, em si mesma, a dimensão econômica, a

antropológica (o conjunto de mores, costumes, ritos concernentes à vida e

à morte), e reintegra o acontecimento, depois de achar que devia aboli-lo

como epifenômeno. A História, como bem acusa André Burguière14

,

tende a tornar-se ciência da complexidade humana.

O imperativo

Assim, as grandes recomposições sofrem enormes atrasos

justamente onde ainda reina a redução e a compartimentação. Mas a

Cosmologia, as ciências da Terra, a Ecologia, a Pré-história, a nova

História permitem articular, umas às outras, disciplinas até então isoladas.

Permitem responder, cada qual em sua área e a sua maneira, ao

imperativo de Pascal.

Com esse novo espírito científico, pode-se pensar também que uma

verdadeira reforma do pensamento está a caminho, porém de modo muito

desigual...

É nessa mentalidade que se deve investir, no propósito de favorecer

a inteligência geral, a aptidão para problematizar, a realização

_____________________

14 André Burguière, ―De l‘histoire évolutionniste à l‘histoire complexe‖, in Relier les

connaissances, Éd. du Seuil, 1999.

32

da ligação dos conhecimentos. A esse novo espírito científico será preciso

acrescentar a renovação do espírito da cultura das humanidades. Não

esqueçamos que a cultura das humanidades favorece a aptidão para a

abertura a todos os grandes problemas, para meditar sobre o saber e para

integrá-lo à própria vida, de modo a melhor explicar, correlativamente, a

própria conduta e o conhecimento de si.

Assim, podemos imaginar os caminhos que permitiriam descobrir,

em nossas condições contemporâneas, a finalidade da cabeça bem-feita.

Tratar-se-ia de um processo contínuo ao longo dos diversos níveis de

ensino, em que a cultura científica e a cultura das humanidades poderiam

ser mobilizadas.

Uma educação para uma cabeça bem-feita, que acabe com a

disjunção entre as duas culturas, daria capacidade para se responder aos

formidáveis desafios da globalidade e da complexidade na vida

quotidiana, social, política, nacional e mundial.

É imperiosamente necessário, portanto, restaurar a finalidade da

cabeça bem-feita, nas condições e com os imperativos próprios de nossa

época.

33

CAPÍTULO 3

A CONDIÇÃO HUMANA

―Nosso verdadeiro estudo é o da condição humana.‖

ROUSSEAU, Emílio

A contribuição da cultura científica

O ESTUDO DA CONDIÇÃO humana não depende apenas do ponto de

vista das ciências humanas. Não depende apenas da reflexão filosófica e

das descrições literárias. Depende também das ciências naturais

renovadas e reunidas, que são: a Cosmologia, as ciências da Terra e a

Ecologia.

O que essas ciências fazem é apresentar um tipo de conhecimento

que organiza um saber anteriormente disperso e compartimentado.

Ressuscitam o mundo, a Terra, a natureza – noções que nunca deixaram

de provocar o questionamento e a reflexão na história de nossa cultura –

e, de uma nova maneira, despertam questões fundamentais: o que é o

mundo, o que é nossa Terra, de onde viemos? Elas nos permitem inserir e

situar a condição humana no cosmo, na Terra, na vida.

Estamos em um planeta minúsculo, satélite de um Sol de subúrbio,

astro pigmeu perdido entre milhares de estrelas da Via-láctea, ela mesma

galáxia periférica em um cosmo em expansão, privado de centro. Somos

filhos marginais do cosmo, formados de partículas, átomos, moléculas do

mundo físico. E estamos não apenas marginalizados, como também

perdidos no cosmo, quase estrangeiros, justamente porque nosso

pensamento e nossa consciência permitem que consideremos isto...

35

Assim como a vida terrestre é extremamente marginal no cosmo,

somos marginais na vida. O homem surgiu marginalmente no mundo

animal, e seu desenvolvimento marginalizou-o ainda mais. Somos

(aparentemente) os únicos seres vivos, na terra, que dispõem de um

aparelho neurocerebral hipercomplexo, e os únicos que dispõem de uma

linguagem de dupla articulação para comunicar-se, de indivíduo a

indivíduo. Os únicos que dispõem da consciência...

Abrir-se ao cosmo é entrar na aventura desconhecida, onde talvez

sejamos, ao mesmo tempo, desbravadores e desviantes; abrir-se à physis é

ligar-se ao problema da organização das partículas, átomos, moléculas,

macromoléculas, que se encontram no interior das células de cada um de

nós; abrir-se para a vida é abrir-se também para as nossas vidas. As

ciências do homem retiraram toda significação biológica a estes termos:

ser jovem, velho, mulher, homem, nascer, existir, ter pai e mãe, morrer –

essas palavras remetem apenas a categorias socioculturais. Só readquirem

sentido vivo quando as conceituamos em nossa vida privada. A

Antropologia que exclui a vida de nossa vida privada é uma Antropologia

privada de vida.

A vida é um fungo que se formou nas águas e na superfície da

Terra. Nosso planeta gerou a vida que se desenvolveu de forma líquida no

mundo vegetal e animal; nós somos uma ramificação da ramificação

dessa evolução dos vertebrados, dos mamíferos, dos primatas, portadores

em nós das herdeiras, filhas, irmãs das primeiras células vivas. Pelo

nascimento, participamos da aventura biológica; pela morte, participamos

da tragédia cósmica. O ser mais corriqueiro, o destino mais banal

participa dessa tragédia e dessa aventura.

Michel Cassé, em um banquete no Castelo de Beychevelle, quando

um enólogo lhe perguntou o que um astrônomo via em seu copo de vinho

bordeaux, respondeu assim: ―Vejo o nascimento do Universo, pois vejo

as partículas que se formaram nele nos primeiros segundos. Vejo um Sol

anterior ao nosso, pois nossos átomos de carbono foram gerados no seio

desse grande astro que explodiu. De-

36

pois, esse carbono ligou-se a outros átomos nessa espécie de lixeira

cósmica em que os detritos, ao se agregarem, vão formar a Terra. Vejo a

composição das macromoléculas que se uniram para dar nascimento à

vida. Vejo as primeiras células vivas, o desenvolvimento do mundo

vegetal, a domesticação da vinha nos países mediterrâneos. Vejo as

bacanais e os festins. Vejo a seleção das castas, um cuidado milenar em

torno dos vinhedos. Vejo, enfim, o desenvolvimento da técnica moderna

que hoje permite controlar eletronicamente a temperatura de fermentação

nas tinas. Vejo toda a história cósmica e humana nesse copo de vinho, e

também, é claro, toda a história específica do bordelês.‖

Trazemos, dentro de nós, o mundo físico, o mundo químico, o

mundo vivo, e, ao mesmo tempo, deles estamos separados por nosso

pensamento, nossa consciência, nossa cultura. Assim, Cosmologia,

ciências da Terra, Biologia, Ecologia permitem situar a dupla condição

humana: natural e metanatural.

Conhecer o humano não é separá-lo do Universo, mas situá-lo nele.

Como vimos no capítulo anterior, todo conhecimento, para ser pertinente,

deve contextualizar seu objeto. ―Quem somos nós?‖ é inseparável de

―Onde estamos, de onde viemos, para onde vamos?‖. Pascal já nos havia

situado, corretamente, entre dois infinitos, o que foi amplamente

confirmado no século XX pela dupla evolução da Microfísica e da

Astrofísica. Conhecemos hoje nosso duplo enraizamento: no cosmo físico

e na esfera viva.

Claro, novas descobertas ainda vão modificar nosso conhecimento,

mas, pela primeira vez na história, o ser humano pode reconhecer a

condição humana de seu enraizamento e de seu desenraizamento.

Em meio à aventura cósmica, no extremo do prodigioso

desenvolvimento de um ramo singular da auto-organização viva,

prosseguimos, à nossa maneira, na aventura da organização. Essa época

cósmica da organização, incessantemente sujeita às forças da

desorganização e da dispersão, é, também, a época da reunião, e só ela

impediu que o cosmo se dispersasse e desaparecesse, tão logo acabara de

nas-

37

cer. Nós, viventes, e, por conseguinte, humanos, filhos das águas, da

Terra e do Sol, somos um feto da diáspora cósmica, algumas migalhas da

existência solar, uma ínfima brotação da existência terrestre.

Estamos, a um só tempo, dentro e fora da natureza. Somos seres,

simultaneamente, cósmicos, físicos, biológicos, culturais, cerebrais,

espirituais... Somos filhos do cosmo, mas, até em conseqüência de nossa

humanidade, nossa cultura, nosso espírito, nossa consciência, tornamo-

nos estranhos a esse cosmo do qual continuamos secretamente íntimos.

Nosso pensamento, nossa consciência, que nos fazem conhecer o mundo

físico, dele nos distanciam ainda mais.

À nossa ascendência cósmica, à nossa constituição física, temos de

acrescentar nossa implantação terrestre. A Terra foi produzida e

organizada na dependência do Sol, constituiu-se em complexo biofísico, a

partir do momento em que sua biosfera se desenvolveu. Da Terra nasceu,

efetivamente, a vida e, na evolução multiforme da vida multicelular,

nasceu a animalidade; depois, o mais recente desenvolvimento de um

ramo do mundo animal tornou-se humano. Nós domamos a natureza

vegetal e animal, pensamos ser senhores e donos da Terra, os

conquistadores, mesmo, do cosmo. Mas – como começamos a tomar

consciência – dependemos de modo vital da biosfera terrestre e devemos

reconhecer nossa muito física e muito biológica identidade terrena.

De modo que podemos, ao mesmo tempo, integrar e distinguir o

destino humano dentro do Universo; e essa nova cultura científica permite

oferecer um novo e capital conhecimento à cultura geral, humanística,

histórica e filosófica, que, de Montaigne a Camus, sempre levantou o

problema da condição humana.

A Pré-história torna-se, mais e mais, ciência fundamental da

hominização. Esta traz em si o nó górdio animalidade/humanidade.

Efetivamente, o processo de hominização de 6 milhões de anos permite-

nos imaginar a emergência da humanidade a partir da animalidade. A

hominização é uma aventura ao mesmo tempo descontínua

38

– aparecimento de novas espécies: habilis, erectus, neanderrtalensis,

sapiens, e desaparecimento das precedentes; surgimento da linguagem e

da cultura – e contínua, no sentido em que prossegue em um processo de

bipedização, de manualização, de empertigamento do corpo, de

cerebralização1, de juvenilização (o adulto conserva os caracteres não

especializados do embrião2 e os caracteres fisiológicos da juventude), de

complexificação social, processo ao longo do qual surge a linguagem

propriamente humana, ao mesmo tempo em que se constitui a cultura:

patrimônio dos saberes, know-how, crenças, mitos adquiridos e

transmissíveis de geração a geração. Assim, podemos introduzir em nossa

reflexão o problema, em parte ainda enigmático, da hominização, mas, ao

menos, sabemos hoje que teve início há muitos milhões de anos e

adquiriu um caráter não apenas anatômico e genético, mas também

psicológico e sociológico, para tornar-se cultural, a partir de um certo

período. A hominização resulta em um novo ponto de partida: o humano.

Tudo isso deve contribuir para a formação de uma consciência

humanística e ética de pertencer à espécie humana, que só pode ser

completa com a consciência do caráter matricial da Terra para a vida, e da

vida para a humanidade.

Tudo isso deve contribuir, igualmente, para o abandono do sonho

alucinado de conquista do Universo e dominação da natureza

– formulado por Bacon, Descartes, Buffon, Marx –, que incentivou

a aventura conquistadora da técnica ocidental.

Os novos conhecimentos, que nos levam a descobrir o lugar da

Terra no cosmo, a Terra-sistema, a Terra-Gaia ou biosfera, a Terra-

_____________________

1 Australopteco (crânio: 508 cm3), Homo habilis (680 cm3), Homo erectus (800 cm3.

1.100 cm3), homem moderno (1.200 cm3.500 cm3).

2 Cf. as indicações em Le Paradigme perdu (op. cit.) sobre os caracteres anatômicos e

fisiológicos não especializados do ser humano (pp. 92-100).

39

pátria dos humanos, não têm sentido algum enquanto isolados uns dos

outros. A Terra não é a soma de um planeta físico, de uma biosfera e da

humanidade. A Terra é a totalidade complexa físico-biológica-

antropológica, onde a vida é uma emergência da história da Terra, e o

homem, uma emergência da história da vida terrestre. A relação do

homem com a natureza não pode ser concebida de forma reducionista,

nem de forma disjuntiva. A humanidade é uma entidade planetária e

biosférica. O ser humano, ao mesmo tempo natural e supranatural, deve

ser pesquisado na natureza viva e física, mas emerge e distingue-se dela

pela cultura, pensamento e consciência. Tudo isso nos coloca diante do

caráter duplo e complexo do que é humano: a humanidade não se reduz

absolutamente à animalidade, mas, sem animalidade, não há

humanidade.

Ao longo dessa aventura, a condição humana foi autoproduzida pelo

desenvolvimento do utensílio, pela domesticação do fogo, pela

emergência da linguagem de dupla articulação e, finalmente, pelo

surgimento do mito e do imaginário... Assim, a nova Pré-história tornou-

se a ciência que permite a ressurreição do humano que fora eliminado

pelas fragmentações disciplinares.

O ser humano nos é revelado em sua complexidade: ser, ao mesmo

tempo, totalmente biológico e totalmente cultural. O cérebro, por meio do

qual pensamos, a boca, pela qual falamos, a mão, com a qual escrevemos,

são órgãos totalmente biológicos e, ao mesmo tempo, totalmente

culturais. O que há de mais biológico – o sexo, o nascimento, a morte – é,

também, o que há de mais impregnado de cultura. Nossas atividades

biológicas mais elementares – comer, beber, defecar – estão estreitamente

ligadas a normas, proibições, valores, símbolos, mitos, ritos, ou seja, ao

que há de mais especificamente cultural; nossas atividades mais culturais

– falar, cantar, dançar, amar, meditar – põem em movimento nossos

corpos, nossos órgãos; portanto, o cérebro.

40

A partir daí, o conceito de homem tem dupla entrada: uma entrada

biofísica, uma entrada psicossociocultural; duas entradas que remetem

uma à outra.

À maneira de um ponto de holograma, trazemos, no âmago de nossa

singularidade, não apenas toda a humanidade, toda a vida, mas também

quase todo o cosmo, incluso seu mistério, que, sem dúvida, jaz no fundo

da natureza humana.

Eis, pois, o que uma nova cultura científica pode oferecer à cultura

humanística: a situação do ser humano no mundo, minúscula parte do

todo, mas que contém a presença do todo nessa minúscula parte. Ela o

revela, simultaneamente, em sua participação e em sua estranheza ao

mundo. Assim, a iniciação às novas ciências torna-se, ao mesmo tempo,

iniciação a nossa condição humana, por intermédio dessas ciências.

A contribuição das ciências humanas

Paradoxalmente, são as ciências humanas que, no momento atual,

oferecem a mais fraca contribuição ao estudo da condição humana,

precisamente porque estão desligadas, fragmentadas e compartimentadas.

Essa situação esconde inteiramente a relação indivíduo/espécie/sociedade,

e esconde o próprio ser humano. Tal como a fragmentação das ciências

biológicas anula a noção de vida, a fragmentação das ciências humanas

anula a noção de homem. Assim, Lévi-Strauss acreditava que o fim das

ciências humanas não é revelar o homem, mas dissolvê-lo em estruturas.

Seria preciso conceber uma ciência antropossocial religada, que

concebesse a humanidade em sua unidade antropológica e em suas

diversidades individuais e culturais.

À espera dessa religação – desejada pelas ciências, mas ainda fora

de seu alcance –, seria importante que o ensino de cada uma delas fosse

orientado para a condição humana. Assim, a Psicologia,

41

tendo como diretriz o destino individual e subjetivo do ser humano,

deveria mostrar que Homo sapiens também é, indissoluvelmente, Homo

démens, que Homo faber é, ao mesmo tempo, Homo ludens, que Homo

economicus é, ao mesmo tempo, Homo mythologicus, que Homo

prosaicus é, ao mesmo tempo, Homo poeticus. A Sociologia seria

orientada para nosso destino social, a Economia para nosso destino

econômico; um ensino sobre os mitos e as religiões seria orientado para o

destino mítico-religioso do ser humano. De fato, as religiões, mitos,

ideologias devem ser considerados em seu poder e ascendência sobre as

mentes humanas, e não mais como ―superestruturas‖.

Quanto à contribuição da História para o conhecimento da condição

humana, ela deve incluir o destino, a um só tempo, determinado e

aleatório da humanidade. Todas as conseqüências sairiam da

conscientização de que a História não obedece a processos deterministas,

não está sujeita a uma inevitável lógica técnico-econômica, ou orientada

para um progresso imprescindível. A História está sujeita a acidentes,

perturbações e, às vezes, terríveis destruições de populações ou

civilizações em massa. Não existem ―leis‖ da História, mas um diálogo

caótico, aleatório e incerto, entre determinações e forças de desordem, e

um movimento, às vezes rotativo, entre o econômico, o sociológico, o

técnico, o mitológico, o imaginário. Não há mais progresso prometido;

em contrapartida, podem advir progressos, mas devem ser

incessantemente reconstruídos. Nenhum progresso é conquistado para

todo o sempre.

A História, ainda que esvaziada por algum tempo da noção de

acontecimento, de acaso e de ―grandes homens‖, enriqueceu-se em

profundidade. Assim, a tendência ilustrada, cujo exemplo, na França, é a

École des Annales*, teve a virtude não de se livrar do acontecimento e do

eventual, como pensava, mas de se tornar multidimensional, integrando o

substrato econômico e técnico, a vida quotidiana, as crenças e ritos, os

comportamentos diante da vida e da morte. Mal começa a

_____________________

* Escola dos Anais. (N. da T.)

42

reconhecer o acontecimento e o eventual, que foram reencontrados há

trinta anos, paradoxalmente, na Cosmologia, na Física e na Biologia.

Assim, todas as disciplinas, tanto das ciências naturais como das

ciências humanas, podem ser mobilizadas, hoje, de modo a convergir para

a condição humana.

A contribuição da cultura das humanidades

A contribuição da cultura das humanidades para o estudo da

condição humana continua sendo fundamental.

Em primeiro lugar, o estudo da linguagem; sob a forma mais

consumada, que é a forma literária e poética, ele nos leva diretamente ao

caráter mais original da condição humana, pois, como disse Yves

Bonnefoy, ―são as palavras, com seu poder de antecipação, que nos

distinguem da condição animal‖. E Bonnefoy enfatiza que a importância

da linguagem está em seus poderes, e não em suas leis fundamentais3.

No que concerne à literatura propriamente dita, François Bon

constata4, com razão, ―que fomos separados da literatura como auto-

reflexão do homem em sua universalidade, para colocá-la a serviço da

língua veicular... [onde] ela se torna submissa e secundária‖. É preciso

restituir-lhe sua virtude plena.

A longa tradição dos ensaios – própria de nossa cultura, desde

Erasmo, Maquiavel, Montaigne, La Bruyère, La Rochefoucauld, Diderot

e até Camus e Bataille – constitui uma farta contribuição reflexiva sobre a

condição humana. Mas também o romance e o cinema oferecem-nos o

que é invisível nas ciências humanas; estas ocultam ou dissolvem os

caracteres existenciais, subjetivos, afetivos do ser

_____________________

3 ―L‘enseignement de la poésie‖, in Quels savoirs enseigner dans les lycées, Ministério

da Educação Nacional, CNDP, 1998, pp. 63-67.

4 ―Transmettre la littérature: obstacles‖, in Relier les connaissances, Éd. du Seuil, 1999.

43

humano, que vive suas paixões, seus amores, seus ódios, seus

envolvimentos, seus delírios, suas felicidades, suas infelicidades, com boa

e má sorte, enganos, traições, imprevistos, destino, fatalidade...

São o romance e o filme que põem à mostra as relações do ser

humano com o outro, com a sociedade, com o mundo. O romance do

século XIX e o cinema do século XX transportam-nos para dentro da

História e pelos continentes, para dentro das guerras e da paz. E o milagre

de um grande romance, como de um grande filme, é revelar a

universalidade da condição humana, ao mergulhar na singularidade de

destinos individuais localizados no tempo e no espaço.

Kundera diz isso muito bem, em L’Art du roman (A Arte do

Romance)5. O romance é mais que um romance. Sabemos que o romance,

a partir do século XIX, tornou-se prenhe de toda a complexidade da vida

dos indivíduos, até da mais banal das vidas. Ele demonstra que o ser mais

insignificante tem várias vidas, desempenha diversos papéis, vive uma

existência em parte de fantasias, em parte de ações. Dostoïevski

demonstrou vivamente a complexidade das relações do sujeito com o

outro, as instabilidades do ―eu‖.

É a literatura que nos revela, como acusa o escritor Hadj Garm‘

Oren, que ―todo indivíduo, mesmo o mais restrito à mais banal das vidas,

constitui, em si mesmo, um cosmo. Traz em si suas multiplicidades

internas, suas personalidades virtuais, uma infinidade de personagens

quiméricos, uma poliexistência no real e no imaginário, o sono e a vigília,

a obediência e a transgressão, o ostensivo e o secreto, pululâncias larvares

em suas cavernas e grutas insondáveis. Cada um contém em si galáxias de

sonhos e de fantasias, de ímpetos insatisfeitos de desejos e de amores,

abismos de infelicidade, vastidões de fria indiferença, ardores de astro em

chamas, ímpetos de ódio, débeis anomalias, relâmpagos de lucidez,

tempestades furiosas.,.‖6.

_____________________

5 Gallimard, 1986, e col. ―Folio‖, 1995.

6 Manuscrito inédito.

44

A poesia, que faz parte da literatura e, ao mesmo tempo, é mais que

a literatura, leva-nos à dimensão poética da existência humana. Revela

que habitamos a Terra, não só prosaicamente – sujeitos à utilidade e à

funcionalidade –, mas também poeticamente, destinados ao

deslumbramento, ao amor, ao êxtase. Pelo poder da linguagem, a poesia

nos põe em comunicação com o mistério, que está além do dizível.

As artes levam-nos à dimensão estética da existência e – conforme

o adágio que diz que a natureza imita a obra de arte – elas nos ensinam a

ver o mundo esteticamente.

Trata-se, enfim, de demonstrar que, em toda grande obra, de

literatura, de cinema, de poesia, de música, de pintura, de escultura, há um

pensamento profundo sobre a condição humana.

Acrescentemos que todo ensino, particularmente de literatura,

poesia, música, deveria tomar consciência do fato de que, a partir do

século XIX, ocorre uma separação cultural na história européia. Enquanto

o mundo masculino adulto, das classes burguesas, é destinado à

eficiência, à dominação, à técnica, ao lucro, e o proletariado está sujeito

ao trabalho, uma parte do mundo adolescente e do mundo feminino

assume a sensibilidade, o amor, a tristeza; e vai expressar, como em

nenhuma outra civilização ou época da História, as aspirações e os

tormentos da alma humana: é justamente o que enunciam Shelley, Keats,

Hovalis, Hölderlin, Nerval, Rimbaud. Enquanto o poderio do Ocidente

europeu expande-se sobre o mundo cantando vitórias em todas as

batalhas, esses poetas cantam os sofrimentos dos humanos submetidos à

crueldade do mundo e da vida. Beethoven, em seu último quatuor, une,

indissoluvelmente, a revolta incoercível do muss es sein? a resignação

inelutável do es muss sein!. O quinteto de Schubert oferece uma dor que,

no entanto, sem deixar de ser dor, transfigura-se no sublime7.

_____________________

7 Cf. a máxima beethoveniana durch leiden freude (por meio do sofrimento, a alegria).

45

Enfim, a Filosofia, se retomar sua vocação reflexiva sobre todos os

aspectos do saber e dos conhecimentos, poderia, deveria fazer convergir a

pluralidade de seus pontos de vista sobre a condição humana.

A despeito da ausência de uma ciência do homem que coordene e

ligue as ciências do homem (ou antes, a despeito da ignorância dos

trabalhos realizados neste sentido8), o ensino pode tentar, eficientemente,

promover a convergência das ciências naturais, das ciências humanas, da

cultura das humanidades e da Filosofia para a condição humana.

Seria possível, daí em diante, chegar a uma tomada de consciência

da coletividade do destino próprio de nossa era planetária, onde todos os

humanos são confrontados com os mesmos problemas vitais e mortais.

_____________________

8 ... em meus livros L’Homme et la mon (Éd. du Seuil, ―Points Essais‖, n? 77) e Le

Paradigme perdu. La nature humaine (Éd. du Seuil, ―Points Essais‖, n? 109), assim

como a obra coletiva, dirigida por E. Morin e M. Piattelli, L’Unité de l’homme, 3 vol.

(Éd. du Seuil, ―Points Essais‖, n°.‘ 91, 92 e 93).

46

CAPÍTULO 4

APRENDER A VIVER

―Quero ensinar-lhe a viver.‖

ROUSSEAU, Emílio

―Queremos ser os poetas de nossa própria vida, e, primeiro, nas menores coisas.‖

NIETZSCHE

COMO DIZIA magnificamente Durkheim, o objetivo da educação não é

o de transmitir conhecimentos sempre mais numerosos ao aluno, mas o

―de criar nele um estado interior e profundo, uma espécie de polaridade

de espírito que o oriente em um sentido definido, não apenas durante a

infância, mas por toda a vida‖1. É, justamente, mostrar que ensinar a viver

necessita não só dos conhecimentos, mas também da transformação, em

seu próprio ser mental, do conhecimento adquirido em sapiência2, e da

incorporação dessa sapiência para toda a vida. Eliot dizia: ―Qual o

conhecimento que perdemos na informação, qual a sapiência (wisdom)

que perdemos no conhecimento?‖ Na educação, trata-se de transformar as

informações em conhecimento, de transformar o conhecimento em

sapiência, isso se orientando segundo as finalidades aqui definidas.

_____________________

1 L’Évolution pédagogique en France, PUF, 1890, p. 38.

2 Palavra antiga que engloba ―sabedoria‖ e ―ciência‖.

47

A escola de vida e a compreensão humana

Quando consideramos os termos ―cultura das humanidades‖, é

preciso pensar a palavra ―cultura‖, em seu sentido antropológico: uma

cultura fornece os conhecimentos, valores, símbolos que orientam e

guiam as vidas humanas. A cultura das humanidades foi, e ainda é, para

uma elite, mas de agora em diante deverá ser, para todos, uma preparação

para a vida.

Literatura, poesia e cinema devem ser considerados não apenas,

nem principalmente, objetos de análises gramaticais, sintáticas ou

semióticas, mas também escolas de vida, em seus múltiplos sentidos:

– Escolas da língua, que revela todas as suas qualidades e

possibilidades através das obras dos escritores e poetas, e permite que o

adolescente – que se apropria dessas riquezas – possa expressar-se

plenamente em suas relações com o outro.

– Escolas, como dissemos no capítulo precedente, da qualidade

poética da vida e, correlativamente, da emoção estética e do

deslumbramento.

– Escolas da descoberta de si, em que o adolescente pode

reconhecer sua vida subjetiva na dos personagens de romances ou filmes.

Pode descobrir a manifestação de suas aspirações, seus problemas, suas

verdades, não só nos livros de idéias, mas também, e às vezes mais

profundamente, em um poema ou um romance. Livros constituem

―experiências de verdade‖, quando nos desvendam e configuram uma

verdade ignorada, escondida, profunda, informe, que trazemos em nós, o

que nos proporciona o duplo encantamento da descoberta de nossa

verdade na descoberta de uma verdade exterior a nós, que se acopla a

nossa verdade, incorpora-se a ela e torna-se a nossa verdade3. E o que

ocorre freqüentemente com obras como Uma temporada no inferno, que –

conforme a extraordinária frase

_____________________

3 Permitam-me esta confidencia sobre a relação entre o livro e o viver: nunca deixei de

ser levado pelo viver, mas os livros foram onipresentes em meu viver e agiram

48

de Heráclito sobre o oráculo de Delfos – ―não afirma, não esconde, mas

sugere‖. Que beleza favorecer tais descobertas!

– Escolas da complexidade humana. Aqui retomamos o que

indicamos no capítulo precedente, porque o conhecimento da

complexidade humana faz parte do conhecimento da condição humana; e

esse conhecimento nos inicia a viver, ao mesmo tempo, com seres e

situações complexas.

Como é sabido desde Shakespeare, e como diz Geneviève Mathis,

―uma única obra literária encerra um infinito cultural que engloba ciência,

história, religião, ética...‖4. É o romance que expande o domínio do

dizível à infinita complexidade de nossa vida subjetiva, que utiliza a

extrema precisão da palavra, a extrema sutileza da análise, para traduzir a

vida da alma e do sentimento. É no romance ou no filme que

reconhecemos os momentos de verdade do amor, o tormento das almas

dilaceradas, e descobrimos as profundas instabilidades da identidade,

como em Dostoievski; a multiplicidade interior de uma mesma pessoa,

em Proust; assim como, em Pai Goriot e Guerra e paz, a transformação

dos seres, confrontados com o destino social ou histórico, levados pela

torrente de acontecimentos que podem nos tornar heróis, mártires,

covardes, carrascos. É no romance, no teatro, no filme, que percebemos

que Homo sapiens é, ao mesmo tempo, indissoluvelmente, Homo démens.

É no romance, no filme, no poema, que a existência revela sua miséria e

sua grandeza trágica, com o risco de fracasso, de erro, de loucura. É na

morte de nossos heróis que temos nossas primeiras experiências da morte.

É, pois, na literatura que o ensino sobre a condição humana pode adquirir

forma vivida e ativa, para esclarecer cada um sobre sua própria vida. O

adolescente não tem necessidade de literatura diluída, dita ―para a

_____________________

sobre ele. O livro sempre estimulou, elucidou, guiou meu viver, e, reciprocamente, meu

viver, para sempre interrogador, nunca deixou de recorrer ao livro. 4 ―A complexidade dentro do ensino das letras‖, comunicação no Congresso inter-latino sobre o pensamento

complexo, Rio, setembro de 1998.

49

juventude‖; como clisse Yves Bonnefoy, ―esses jovens seres esperam que

grandes sinais, carregados de mistério e gravidade, sejam erguidos diante

deles, pois bem sabem que, breve, terão de enfrentar o mistério e a

gravidade da vida‖5.

Aqui, o filósofo e o psicólogo deveriam confirmar que todo

indivíduo, mesmo o mais confinado na mais banal das vidas, constitui, em

si mesmo, um cosmo, como acusamos no capítulo 3, pp. 36-37.

– Escolas de compreensão humana. No âmago da leitura ou do

espetáculo cinematográfico, a magia do livro ou do filme faz-nos

compreender o que não compreendemos na vida comum. Nessa vida

comum, percebemos os outros apenas de forma exterior, ao passo que na

tela e nas páginas do livro eles nos surgem em todas as suas dimensões,

subjetivas e objetivas.

A literatura ―é a única que sabe representar e elucidar as situações

de incomunicabilidade, de fechamento em si, quiproquos cômicos ou

trágicos. O leitor descobre também as causas dos mal-entendidos e

aprende a compreender os incompreendidos‖ (Geneviève Mathis6).

Podemos compreender daí que não se deve reduzir um ser à mínima

parcela de si mesmo, nem à parcela ruim de seu passado. Enquanto na

vida comum apressamo-nos em qualificar de criminoso aquele que

cometeu um crime, reduzindo todos os outros aspectos de sua vida e de

sua pessoa a esse único traço, descobrimos, em seus múltiplos aspectos,

os reis gangsters de Shakespeare e os gangsters reis dos films noirs.

Podemos ver como um criminoso pode transformar-se, redimir-se, como

Jean Valgean e Raskolnikov. O que sente repugnância pelo vagabundo

que encontra na rua simpatiza de todo o coração com o vagabundo

Carlitos, no cinema. Enquanto, na vida quotidiana, somos quase

indiferentes às misérias físicas e morais,

_____________________

5 ―L‘enseignement de la poésie‖, in Quels savoirs enseigner dans les lycées, ministère

de l‘Éducation nationale, CNDP, Paris, 1998.

6 Op. cit.

50

sentimos a comiseração, a piedade e a bondade, ao 1er um romance ou

ver um filme.

Enfim, podemos aprender as maiores lições da vida: a compaixão

pelo sofrimento de todos os humilhados e a verdadeira compreensão.

Literatura, poesia, cinema, psicologia, filosofia deveriam convergir

para tornar-se escolas da compreensão. A ética da compreensão humana

constitui, sem dúvida, uma exigência chave de nossos tempos de

incompreensão generalizada: vivemos em um mundo de incompreensão

entre estranhos, mas também entre membros de uma mesma sociedade, de

uma mesma família, entre parceiros de um casal, entre filhos e pais. É o

caso de se perguntar se as chaves psicopsicanalíticas, difundidas de forma

dogmática e reducionista em nossa cultura (complexo de inferioridade, de

Édipo, paranóia, esquizofrenia, sadomasoquismo etc), não agravam a

incompreensão, criando a ininteligibilidade reducionista.

Explicar não basta para compreender. Explicar é utilizar todos os

meios objetivos de conhecimento, que são, porém, insuficientes para

compreender o ser subjetivo.

A compreensão humana nos chega quando sentimos e concebemos

os humanos como sujeitos; ela nos torna abertos a seus sofrimentos e suas

alegrias. Permite-nos reconhecer no outro os mecanismos egocêntricos de

autojustificação, que estão em nós, bem como as retroações positivas (no

sentido cibernético do termo) que fazem degenerar em conflitos

inexplicáveis as menores querelas. É a partir da compreensão que se pode

lutar contra o ódio e a exclusão.

Enfrentar a dificuldade da compreensão humana exigiria o recurso

não a ensinamentos separados, mas a uma pedagogia conjunta que

agrupasse filósofo, psicólogo, sociólogo, historiador, escritor, que seria

conjugada a uma iniciação à lucidez.

51

A iniciação à lucidez

A iniciação à lucidez é inseparável, ela própria, de uma iniciação à

onipresença do problema do erro.

É necessário, e isso desde a escola primária, que toda percepção

seja uma tradução reconstrutora realizada pelo cérebro, a partir de

terminais sensoriais, e que nenhum conhecimento possa dispensar

interpretação. Assim, a partir de testemunhos contraditórios do mesmo

acontecimento, podemos mostrar que, à vista de um acidente de carro, por

exemplo, pode haver falsas percepções que comportam, em geral,

racionalizações alucinatórias. Podemos ilustrar casos de percepção

imperfeita, por hábito ou por atenção maldefinida, desatenção a um

detalhe insignificante, interpretação precipitada de elemento inusitado e,

sobretudo, deficiência de visão de conjunto, ou ausência de reflexão. É

preciso ilustrar os casos de memorização demasiado segura, que se

autoconfirma na repetição de uma lembrança deformada. Da mesma

maneira, é preciso observar que uma preocupação de inteligibilidade,

demasiado fraca, leva a ignorar a significação de um fato ou de um

acontecimento, ao passo que uma preocupação excessivamente forte de

inteligibilidade leva a um erro racionalizador que altera essa significação.

Serão dados exemplos de decisões desastrosas, tomadas não apenas por

irreflexão, cinismo ou irresponsabilidade, mas também por processos

psíquicos de racionalização absurda ou ocultação inconsciente, destinados

a preservar a nossa paz de espírito.

Progressivamente, é no ensino secundário que se dará destaque à

oposição entre a racionalização, sistema lógico de explicação, mas

privado de fundamento empírico, e a racionalidade, que procura unir a

coerência à experiência; e, no ensino superior, tratar-se-á dos limites da

lógica e das necessidades de uma racionalidade não somente crítica, mas

também autocrítica.

Assim, da psicologia do conhecimento e da permanente aplicação

dessa psicologia em si mesmo, passar-se-á à epistemologia e ao

conhecimento crítico do conhecimento, que recorrerá às ciências

cognitivas, ainda que tão mal interligadas.

52

O aprendizado da auto-observação faz parte do aprendizado da

lucidez. A aptidão reflexiva do espírito humano, que o torna capaz de

considerar-se a si mesmo, ao se desdobrar – aptidão que certos autores

como Montaigne ou Maine de Biran exerceram admiravelmente –,

deveria ser encorajada e estimulada em todos. Seria preciso ensinar, de

maneira contínua, como cada um produz a mentira para si mesmo, ou

self-deception. Trata-se de exemplificar constantemente como o

egocentrismo autojustificador e a transformação do outro em bode

expiatório levam a essa ilusão, e como concorrem para isso as seleções da

memória que eliminam o que nos incomoda e embelezam o que nos

favorece (seria o caso de estimular a escrita de um diário e a reflexão

sobre os acontecimentos vivenciados).

Finalmente, seria preciso demonstrar que a aprendizagem da

compreensão e da lucidez, além de nunca ser concluída, deve ser

continuamente recomeçada (regenerada).

A introdução à noosfera

Ainda não existe, infelizmente, uma noologia, destinada ao âmbito

do imaginário, dos mitos, dos deuses, das idéias?, ou seja, a noosfera.

Alimentamos com nossas crenças ou nossa fé os mitos ou idéias

oriundos de nossas mentes, e esses mitos ou idéias ganham consistência e

poder. Não somos apenas possuidores de idéias, mas somos também

possuídos por elas, capazes de morrer ou matar por uma idéia.

Assim, seria preciso ajudar as mentes adolescentes a se movimentar

na noosfera (mundo vivo, virtual e imaterial, constituído de informações,

representações, conceitos, idéias, mitos que gozam de uma relativa

autonomia e, ao mesmo tempo, são dependentes de

_____________________

7 Cf. E. Morin, La Méthode, t. 4: Les Idées, Éd. du Seuil, ―Points Essais‖, n°. 303.

53

nossas mentes e de nossa cultura) e ajudá-las a instaurar o convívio com

suas idéias, nunca esquecendo que estas devem ser mantidas em seu papel

mediador, impedindo que sejam identificadas com o real. As idéias não

são apenas meios de comunicação com o real; elas podem tornar-se meios

de ocultação. O aluno precisa saber que os homens não matam apenas à

sombra de suas paixões, mas também à luz de suas racionalizações.

A filosofia da vida

O aprendizado da vida deve dar consciência de que a ―verdadeira

vida‖, para usar a expressão de Rimbaud, não está tanto nas necessidades

utilitárias – às quais ninguém consegue escapar –, mas na plenitude de si

e na qualidade poética da existência, porque viver exige, de cada um,

lucidez e compreensão ao mesmo tempo, e, mais amplamente, a

mobilização de todas as aptidões humanas.

É para o aprendizado da vida que o ensino da filosofia deve ser

revitalizado. Então, ele poderia fornecer o indispensável suporte dos dois

produtos mais preciosos da cultura européia: a racionalidade crítica e a

autocrítica, que permitem, justamente, a auto-observação e a lucidez; e,

por outro lado, a fé incerta, que será objeto do capítulo seguinte.

A filosofia, ao contribuir para a consciência da condição humana e

o aprendizado da vida, reencontraria, assim, sua grande e profunda

missão. Como já acusam as salas e os bares de filosofia, a filosofia diz

respeito à existência de cada um e à vida quotidiana. A filosofia não é

uma disciplina, mas uma força de interrogação e de reflexão dirigida não

apenas aos conhecimentos e à condição humana, mas também aos grandes

problemas da vida. Nesse sentido, o filósofo deveria estimular, em tudo, a

aptidão crítica e autocrítica, insubstituíveis fermentos da lucidez, e exortar

à compreensão humana, tarefa fundamental da cultura.

54

CAPÍTULO 5

ENFRENTAR A INCERTEZA

(Aprender a viver, continuação)

―Os deuses nos inventam muitas surpresas:

o esperado não acontece,

e um deus abre caminho ao inesperado.‖

EURÍPIDES, final de Medita

―O corpo de ensino tem de chegar aos postos avançados do mais extremo perigo, que é constituído pela permanente incerteza do mundo.‖

MARTIN HEIDEGGER

―Se não esperas o inesperado, não o encontrarás.‖

HERÁCLITO

―A era que virá há de nos mostrar o caos por detrás da lei.‖

J. A. WHEELER

A MAIOR CONTRIBUIÇÃO de conhecimento do século XX foi o

conhecimento dos limites do conhecimento. A maior certeza que nos foi

dada é a da indestrutibilidade das incertezas, não somente na ação, mas

também no conhecimento. ―Um único ponto quase certo no naufrágio

(das antigas certezas absolutas): o ponto de interrogação‖, diz o poeta

Salah Stétié.

Uma das maiores conseqüências desses dois aparentes defeitos – de

fato, verdadeiras conquistas do espírito humano – é a de nos

55

pôr em condição de enfrentar as incertezas e, mais globalmente, o destino

incerto de cada indivíduo e de toda a humanidade.

Aqui, convém fazer a convergência de diversos ensinamentos,

mobilizar diversas ciências e disciplinas, para ensinar a enfrentar a

incerteza.

A incerteza física e biológica

A primeira revolução científica de nosso século, iniciada pela

termodinâmica de Boltzmann, deflagrada pela descoberta dos quanta,

seguida pela desintegração do Universo de Laplace, mudou

profundamente nossa concepção do mundo. Minou a validade absoluta do

princípio determinista1. Subverteu a Ordem do mundo, grandioso

resquício da divina Perfeição, para substituí-la por uma relação de diálogo

(ao mesmo tempo complementar e antagônica) entre ordem e desordem.

Revelou os limites dos axiomas identificativos da lógica clássica.

Restringiu o calculável e o mensurável a uma dependência do incalculável

e do imensurável. Provocou um questionamento da racionalidade

científica, exemplificada pelas obras de Bachelard, Piaget, Popper,

Lakatos, Kuhn, Holton, Feyerabend, notadamente.

Aprendemos que tudo aquilo que é só pode ter nascido do caos e da

turbulência, e precisa resistir a enormes forças de destruição. O cosmo se

organizou ao se desintegrar. A história do Universo é uma gigantesca

aventura criativa e destrutiva, marcada, desde o início, pelo quase

aniquilamento da antimatéria pela matéria, acentuada pela queima seguida

da autodestruição de numerosos astros, da coli-

_____________________

1 No meio dos fenômenos deterministas, que obedecem a uma dinâmica não linear, há de

fato uma incerteza para predizer, devido à ausência de informação completa sobre os

estados iniciais ou sobre a emaranhada multiplicidade das interações. É o caos

determinista.

56

são de estrelas e galáxias; aventura em que uma das metamorfoses

marginais constituiu-se pelo surgimento da vida no terceiro planeta de um

pequeno sol de subúrbio.

A Biologia, por seu turno, desembocou na incerteza. Se o

aparecimento da vida corresponde à transformação de um turbilhão de

macromoléculas e a uma organização de novo tipo, capaz de se auto-

organizar, autoconsertar, auto-reproduzir, apta a retirar de seu meio

ambiente a organização, a energia e a informação, sua origem não parece

obedecer a nenhuma necessidade inevitável. Continua sendo um mistério

sobre o qual não deixam de ser elaborados roteiros2. Seja como for, a vida

só pode ter nascido de uma mistura de acaso e de necessidade, cuja

composição não sabemos dosar3. Ainda estamos profundamente inseguros

quanto ao caráter inevitável ou fortuito, necessário ou miraculoso, do

aparecimento da vida; e essa incerteza se reflete evidentemente no sentido

de nossas vidas humanas4.

_____________________

2 Cf. M. Eigen, ―Self-Organization of the Matter and the Evolution of Biological

Macromolecules‖, in Naturwissenschaft, vol. 58, n°. 465, a que se deve acrescentar o

roteiro da origem extraterrestre da vida, proposto por Crick.

3 Para essas noções, cf. E. Morin, La Méthode, t. 2: La Vie de la vie, Éd. du Seuil,

―Points Essais‖, n° 175, pp. 177-92.

4 O aparecimento da vida será um acontecimento único, devido a um acúmulo de acasos

altamente improváveis, ou, pelo contrário, fruto de um processo evolutivo, se não

necessário, pelo menos provável?

No sentido da probabilidade:

– a formação espontânea de macromoléculas adequadas à vida em certas condições, que podem ser reproduzidas em laboratório;

– a descoberta de aminoácidos nos meteoros precursores dos da vida;

– a demonstração da termodinâmica prigoginiana de que, em condições de

instabilidade, há formação espontânea de organização, donde a probabilidade de uniões organizadas cada vez mais complexas de macromoléculas, em condições

termodinâmicas apropriadas (turbilhões);

– a possibilidade, em condições de encontro e durante um longo período, de que seja

realizado um processo seletivo a favor de uniões moleculares ARN/proteínas, que se tornam aptas a se autocontestar e a metabolizar;

– a enorme probabilidade de que exista, em um Universo de milhares de mi-

57

Se as criações de ramificações e de espécies correspondem a

reorganizações e mutações genéticas, elas possuem um componente

aleatório. A aventura da vida é, em si mesma, uma história atropelada,

com catástrofes que provocam extinções em massa entre as espécies e o

surgimento de novas espécies. No meio dessa aventura, o ramo de um

ramo de um ramo de antropóides foi lançado, por sorte ou por azar, na

nova aventura da hominização...

O Sol brilha à temperatura de sua explosão. A vida organiza-se à

temperatura de sua destruição. O homem talvez não se tivesse

desenvolvido se não lhe fosse preciso responder a tantos desafios mortais,

desde o avanço da savana sobre a floresta tropical até a glaciação das

regiões temperadas. A aventura da hominização deu-se em meio à

_____________________

lhares de astros, milhões de planetas análogos à Terra; portanto, a probabilidade de

existência de seres vivos em outras regiões do cosmo.

No sentido da improbabilidade, há os seguintes argumentos:

– o salto qualitativo/quantitativo (a menor bactéria é um complexo de milhões de moléculas) e a descontinuídade radical entre a mais complexa das organizações

macromoleculares e a auto-ecorreorganização viva tornam esta altamente improvável;

– a organização viva é, em si mesma, fisicamente improvável, tendo em vista que, em conformidade com o segundo princípio da termodinâmica, é a dispersão dos

constituintes moleculares do ser vivo que obedece à probabilidade física, a qual se

realiza, efetivamente, na morte;

– muitos indícios sugerem que a vida teria nascido de uma só vez, quer dizer, que todos os seres vivos teriam um único ancestral, o que reforça a hipótese de que em sua

origem haveria um acaso extremamente improvável;

– não há nenhum sinal, nenhum vestígio de vida no Sistema Solar, nenhuma mensagem que nos venha do cosmo;

– de mais a mais, o argumento de que teria havido planetas que teriam gozado de

condições análogas a nossa não conta mais, se a vida, nesta própria Terra, foi fruto de

um acaso inaudito.

Não podemos descartar a terceira hipótese. Talvez existam, no Universo, organizações muito complexas dotadas de propriedades de autonomia, de inteligência,

até de pensamento, mas que não estariam fundadas em uma organização núcleo-protéica

e seriam (atualmente? para sempre?) inacessíveis a nossa percepção e a nosso

entendimento.

58

penúria e ao sofrimento. Homo é filho de Poros e Penia. Tudo o que vive

deve regenerar-se incessantemente: o Sol, o ser vivo, a biosfera, a

sociedade, a cultura, o amor. É nossa constante desgraça e também é

nossa graça e nosso privilégio: tudo que há de precioso na terra é frágil,

raro e destinado a futuro incerto. O mesmo acontece com a nossa

consciência.

Assim, quando conservamos e descobrimos novos arquipélagos de

certezas, devemos saber que navegamos em um oceano de incertezas.

A incerteza humana

A condição humana está marcada por duas grandes incertezas: a

incerteza cognitiva e a incerteza histórica.

Há três princípios de incerteza no conhecimento:

– o primeiro é cerebral: o conhecimento nunca é um reflexo do real,

mas sempre tradução e construção, isto é, comporta risco de erro;

– o segundo é físico: o conhecimento dos fatos é sempre tributário

da interpretação;

– o terceiro é epistemológico: decorre da crise dos fundamentos da

certeza, em filosofia (a partir de Nietzsche), depois em ciência (a partir de

Bachelard e Popper).

Conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa,

mas dialogar com a incerteza.

A incerteza histórica está ligada ao caráter intrinsecamente caótico

da história humana. A aventura histórica começou há mais de 1.000 anos.

Foi marcada por criações fabulosas e destruições irremediáveis. Nada

resta dos impérios egípcio, assírio, babilônico, persa, nem do Império

Romano, que chegara a parecer eterno. Assus-

59

tadoras regressões de civilizações e economias seguiram-se a progressões

temporárias. A História está sujeita aos acidentes, às perturbações e, por

vezes, às terríveis destruições maciças de populações e civilizações5.

Sem dúvida, a história humana sofre determinações sociais e

econômicas muito fortes, mas pode ser desviada ou contornada pelos

acontecimentos ou acidentes. Não há leis da História. Pelo contrário, há o

fracasso de todos os esforços para cristalizar a história humana, eliminar

dela acontecimentos e acidentes, submetê-la ao jugo de um determinismo

econômico-social e/ou levá-la a obedecer a um progresso telecomandado.

E chegamos à grande revelação do fim do século XX: nosso futuro

não é teleguiado pelo progresso histórico. Os erros da predição

futurológica, os inúmeros fracassos da predição econômica (apesar e por

causa de sua sofisticação matemática), a derrota do progresso garantido, a

crise do futuro, a crise do presente introduziram o vírus da incerteza em

toda parte.

Estamos destinados à incerteza do futuro que as religiões da

salvação – inclusive a salvação terrestre – acreditavam ter dominado: ―Os

bolcheviques não queriam ou não podiam compreender que o homem é

um ser frágil e inseguro, que realiza uma obra insegura, em um mundo

inseguro‖6.

Já estávamos na aventura desconhecida, desde a aurora da

humanidade, desde a aurora dos tempos históricos; estamos mais que

nunca e devemos estar conscientes. O curso seguido pela história da era

planetária desgarrou-se da órbita do tempo reiterativo das civilizações

tradicionais, para entrar, não na via garantida do Progresso, mas em uma

incerteza insondável.

_____________________

5 Cf. o belo texto de Gruzinski, ―Événements dans l‘histoire: accidents, catastrophes,

bifurcations‖, in Relier les connaissances, Éd. du Seuil, 1999.

6 D. Cosic, Le Temps du mal, Éd. L‘Âge d‘Homme, 1990, t. 1, p. 186

60

Todos os grandes acontecimentos do século – a deflagração da

Primeira Guerra Mundial, a Revolução Soviética no império czarista, as

vitórias do comunismo e do nazismo, o golpe teatral do pacto germânico-

soviético, de 1939, a derrota da França, as resistências de Moscou e

Stalingrado – foram inesperados; até o inesperado de 1989: a queda do

muro de Berlim, o colapso do império soviético, a guerra da Iugoslávia.

Hoje estamos em Escuridão e bruma, e ninguém pode predizer o amanhã.

De modo que a consciência da História deve servir não só para

reconhecermos os caracteres, ao mesmo tempo determinados e aleatórios

do destino humano, mas também para nos abrirmos à incerteza do futuro.

É preciso, portanto, prepararmo-nos para o nosso mundo incerto e

aguardar o inesperado.

Os três viáticos

Preparar-se para nosso mundo incerto é o contrário de se resignar a

um ceticismo generalizado.

É esforçar-se para pensar bem, é exercitar um pensamento aplicado

constantemente na luta contra falsear e mentir para si mesmo, o que nos

leva, uma vez mais, ao problema da ―cabeça bem-feita‖.

É também estar consciente da ecologia da ação.

A ecologia da ação tem, como primeiro princípio, o fato de que toda

ação, uma vez iniciada, entra num jogo de interações e retroações no meio

em que é efetuada, que podem desviá-la de seus fins e até levar a um

resultado contrário ao esperado; assim, a reação aristocrática do final do

século XVIII, na França, desencadeou uma revolução democrática; um

movimento revolucionário na Espanha, em 1935-1936, desencadeou um

golpe reacionário.

O segundo princípio da ecologia da ação diz que as conseqüências

últimas da ação são imprevisíveis; de modo que, em 1789, ninguém

poderia predizer o Terror, o Termidor, o Império, a Restau-

61

ração. A Revolução Soviética do século XX foi uma conseqüência

indireta da Revolução Francesa, que ainda não esgotou todas as suas

conseqüências...

O que nos leva ao segundo viático: a estratégia.

A estratégia opõe-se ao programa, ainda que possa comportar

elementos programados. O programa é a determinação a priori de uma

seqüência de ações tendo em vista um objetivo. O programa é eficaz, em

condições externas estáveis, que possam ser determinadas com segurança.

Mas as menores perturbações nessas condições desregulam a execução do

programa e o obrigam a parar. A estratégia, como o programa, é

estabelecida tendo em vista um objetivo; vai determinar os

desenvolvimentos da ação e escolher um deles em função do que ela

conhece sobre um ambiente incerto. A estratégia procura incessantemente

reunir as informações colhidas e os acasos encontrados durante o

percurso.

Todo o nosso ensino tende para o programa, ao passo que a vida

exige estratégia e, se possível, serendipididade e arte.

É justamente uma reversão de conceito que deveria ser efetuada a

fim de preparar para os tempos de incerteza.

O terceiro viático é o desafio.

Uma estratégia traz em si a consciência da incerteza que vai

enfrentar e, por isso mesmo, encerra uma aposta. Deve estar plenamente

consciente da aposta, de modo a não cair em uma falsa certeza. Foi a falsa

certeza que sempre cegou os generais, os políticos, os empresários, e os

levou ao desastre.

A aposta é a integração da incerteza à fé ou à esperança. A aposta

não está limitada aos jogos de azar ou aos empreendimentos perigosos.

Ela diz respeito aos envolvimentos fundamentais de nossas vidas. Assim,

Pascal, consciente de ser impossível dar uma prova absolutamente segura

de seu Deus, reconheceu a inevitabilidade da aposta. É o que fez o

marxista Lucien Goldmann sobre o advento de

62

uma sociedade sem classes. A fé incerta, como em Pascal, Dostoïevski,

Unamuno, Adorno, Goldmann, é um dos mais preciosos suportes que a

cultura européia produziu; o outro é a racionalidade autocrítica, que

constitui nossa melhor imunização contra o erro.

Cada um deve estar plenamente consciente de que sua própria vida

é uma aventura, mesmo quando se imagina encerrado em uma segurança

burocrática; todo destino humano implica uma incerteza irredutível, até na

absoluta certeza, que é a da morte, pois ignoramos a data. Cada um deve

estar plenamente consciente de participar da aventura da humanidade, que

se lançou no desconhecido em velocidade, de agora em diante, acelerada.

63

CAPÍTULO 6

A APRENDIZAGEM CIDADÃ

A EDUCAÇÃO deve contribuir para a autoformação da pessoa (ensinar a

assumir a condição humana, ensinar a viver) e ensinar como se tornar

cidadão. Um cidadão é definido, em uma democracia, por sua

solidariedade e responsabilidade em relação a sua pátria. O que supõe

nele o enraizamento de sua identidade nacional.

Mas o que é uma pátria? O que é uma nação? Essas questões

capitais não encontram resposta em nenhum programa ou manual. É

possível, claro, encontrar indicadores secundários no direito

constitucional e no direito internacional, mas não o essencial. Por isso é

que me permito abordar este problema para demonstrar que ele deveria

ser obrigatoriamente tratado.

O Estado-Nação

A incrível realidade do Estado-Nação, que, há dois séculos, ainda

era minoritária, e desde então invadiu e dominou o planeta, continua

pouco compreendida e, menos ainda, pensada. Os historiadores

descrevem a formação e o desenvolvimento dos Estados-Nação, mas, à

exceção de Toynbee, não cogitam sobre sua natureza. A Sociologia trata

das categorias de sociedades (tradicional, industrial, pós-industrial), mas

ignora a natureza nacional dessas sociedades. O

65

marxismo minimizou a realidade da nação, quando enfatizou o que a

divide (conflitos de classe), e não o que a unifica1.

Uma das maiores dificuldades em pensar o Estado-Nação reside em

seu caráter complexo. De fato, o Estado-Nação completo é um serão

mesmo tempo territorial, político, cultural, histórico, místico, religioso.

O Estado é um ―aparelho‖ que dispõe de aparelhos adicionais

(forças armadas, polícia, justiça, eventualmente, a Igreja), o que exigiria

um esclarecimento de conceito de aparelho2.

COMUNIDADE/SOCIEDADE

O Estado-Nação é uma sociedade territorialmente organizada. Este

tipo de sociedade é complexa em sua dupla natureza, em que é preciso

não só opor, mas também associar, fundamentalmente, a noção de

gemeineschaft ou ―comunidade‖ e a noção de gesellschaft ou ―sociedade‖.

A nação é uma sociedade, em suas relações e interesses, competições,

rivalidades, ambições, conflitos sociais e políticos. Mas é, igualmente,

uma comunidade de identidade, uma comunidade de atitudes e uma

comunidade de reações ante o estrangeiro e, sobretudo, ante o inimigo. A

história do início do século XX revela o terrível conflito interno nas

grandes nações ocidentais, que chega, às vezes, à guerra civil, e, ao

mesmo tempo, sua extraordinária solidariedade, ante o inimigo externo.

_____________________

1 Houve, entretanto, a tentativa de Otto Bauer de conceber o fenômeno nacional como

comunidade de destino, após o ensaio de Stalin, O marxismo e a questão nacional.

2 Aqui, remeto à minha análise sobre a noção de aparelho (pp. 239-47) e Estado-

aparelho (pp. 239-49), em La Méthode, t. 1: La Nature de la nature. Éd. du Seuil,

―Points Essais‖, n? 123.

66

COMUNIDADE DE DESTINO

A comunidade tem caráter cultural/histórico. É cultural por seus

valores, usos e costumes, normas e crenças comuns; é histórica pelas

transformações e provações sofridas ao longo do tempo. Segundo a

expressão de Otto Bauer, é uma comunidade de destino.

Esse destino comum, memorizado, transmitido, de geração a

geração, pela família, por cânticos, músicas, danças, poesias e livros;

depois pela escola, que integra o passado nacional às mentes infantis,

onde são ressuscitados os sofrimentos, as mortes, as vitórias, as glórias da

história nacional, os martírios e proezas de seus heróis. Assim, a própria

identificação com o passado torna presente a comunidade de destino.

A ENTIDADE MITOLÓGICA

A comunidade de destino é tanto mais profunda quando selada por

uma fraternidade mitológica. De fato, o Estado-Nação é uma pátria, uma

entidade consubstancialmente maternal/paternal, que contém, em seu

feminino, o masculino da paternidade. Transfere, para a ampla escala de

populações de milhões de indivíduos, muitas vezes oriundos de etnias

bem diversas, as calorosas virtudes das relações familiares entre pessoas

pertencentes a um mesmo lar. Assim, a Nação, de substância feminina,

comporta em si as qualidades da Terra-Mãe (Pátria-Mãe), do Lar (foyer,

home, Heimai), e ela desperta, nos momentos comunitários, os

sentimentos de amor que são, naturalmente, despertados pela mãe. Já o

Estado é de substância paternal. Dispõe da autoridade absoluta e

incondicional do pai-patriarca, a quem se deve obediência. A relação

matripatriótica com o Estado-Nação desperta o sentimento de fraternidade

mística dos ―filhos da pátria‖, perante o inimigo.

67

O mito nacional é bipolarizado. No primeiro pólo, há o caráter

espiritual da fraternidade entre ―filhos da pátria‖. No segundo pólo, a

fraternidade mitológica surge como uma fraternidade biológica, que une,

entre si, seres do mesmo sangue; o que tende a despertar o mito

secundário (e biologicamente equivocado) da ―raça‖ comum. Assim, a

idéia de nação contém um racismo virtual, que se torna presente quando o

segundo pólo prepondera.

A ―RELIGIÃO‖ NACIONAL

A mitologia matripatriótica suscita uma verdadeira religião do

Estado-Nação, que inclui cerimônias de exaltação, objetos sagrados

(bandeira, monumento aos mortos), o culto de adoração à Mãe-Pátria, os

cultos personalizados aos heróis e mártires. Como toda religião, ela se

alimenta do amor, que é capaz de inspirar fanatismo e ódio.

O Estado-Nação tem raízes na concreção material da terra, que

sustenta e constitui seu território e, ao mesmo tempo, encontra nele sua

concreção mitológica, a da Terra-Mãe, da Mãe-Pátria. Há como que uma

rotação ininterrupta do geofísico ao mitológico e, ao mesmo tempo, do

político ao cultural e religioso. O mito não é a superestrutura da nação: é

o que gera a solidariedade e a comunidade; é o cimento necessário a toda

sociedade e, numa sociedade complexa, é o único antídoto contra a

pulverização individual e a destruidora deflagração de conflitos. E assim,

em uma rotação autogeradora do todo, por seus elementos constitutivos, e

dos elementos constitutivos pelo todo, o mito gera aquilo que o gera, isto

é, o próprio Estado-Nação.

68

RUMO A ―ULTRAPASSAGEM‖

Atualmente, tudo indica que o poder absoluto do Estado-Nação

poderia e deveria ser ultrapassado. Primeiro, no próprio quadro interno da

nação, o Estado tende a se tornar demasiado abstrato e homogeneizador,

devido a seu próprio desenvolvimento técnico-burocrático. Depois, mas

principalmente, todos os grandes problemas exigem soluções

multinacionais, transnacionais, continentais, até planetárias, e necessitam

de sistemas associativos, confederativos ou federativos, metanacionais.

Contudo, se é bem evidente que, em um certo número de países

europeus, o nacionalismo agressivo/defensivo foi consideravelmente

amenizado durante as intercomunicações que se seguiram à Segunda

Guerra Mundial, não é menos evidente que o Estado-Nação está longe de

ter-se tornado um fóssil histórico. Antes de tudo, não se pode esquecer, de

modo algum, que a renovação das exacerbações nacionalistas, a partir de

1989, pode efetuar uma recontaminação de Leste para Oeste. Se, pelo

contrário, sobrevier um apaziguamento dos nacionalismos no Leste, ainda

assim, a múltipla resistência do Estado-Nação, tanto nas autonomias

descentralizadas em seu âmbito interno, quanto no surgimento de

instituições multinacionais, permanecerá forte o bastante para frear, ou

melhor, estancar os processos que tendem a criar um sistema

confederativo europeu e instâncias supranacionais de caráter planetário.

O velho internacionalismo subestimara a terrível realidade mito-

lógico-religiosa do Estado-Nação. De agora em diante, trata-se não só de

reconhecê-la, mas também de não tentar aboli-la. Trata-se de relativizá-la,

como foi relativizada, mas não abolida, a realidade provincial, a realidade

nacional. Mas, para isso, seria preciso que os sentimentos de

solidariedade européia sejam ampliados e enraizados. Será preciso que os

fundamentos mitológicos/religiosos da nação, seu caráter matripatriótico,

sejam estendidos, não apenas ao âmbito de nosso continente – já marcado

pela civilização que criou e por uma

69

comunidade de destino cada vez mais evidente –, mas também ao

conjunto de um planeta reconhecido pela espécie humana, a partir de

agora, como único lar – foyer, home, Heimat. Tal como a comunidade

nacional, a comunidade planetária tem seu inimigo, mas a diferença

radical é que o inimigo está em nós mesmos e é difícil reconhecê-lo e

enfrentá-lo. O resultado disso é que estamos apenas engatinhando nessas

tomadas de consciência e novas solidariedades.

A identidade européia (experiência de identidade entre nações)

As histórias nacionais não podem ser compreendidas isoladamente

da história européia. Seria preciso assinalar que a Europa moderna sai da

crisálida medieval ao perder o mundo (queda de Bizâncio, 1453), ao

descobrir o Novo Mundo (1492) e ao mudar o mundo (Copérnico, 1473-

1543). Desenvolve-se em um turbilhão histórico onde desordens e

antagonismos (lutas de Estados, lutas de classes, lutas de religiões, lutas

de idéias), em vez de contrariá-los, favorecem os desenvolvimentos

econômicos, políticos, sociais, culturais, não sem algumas enormes

destruições. Os Estados nacionais tornam-se soberanos absolutos em

relação a todas as instâncias que eram consideradas superiores, e estão

constantemente em guerra; mas, até o final do século XIX, fazem e

refazem coalizões para impedir a hegemonia de um único Estado sobre a

Europa. Seria preciso assinalar que, em meio à Europa das guerras,

desenvolve-se e propaga-se uma cultura européia, fundada não sobre um

modelo, mas sobre o despertar da problematização; efetuada pela volta à

fonte grega, que permite o despertar da filosofa e o avanço da ciência:

esta cultura está fundada, ao mesmo tempo, sobre um diálogo (relação,

simultaneamente, antagônica e complementar) entre religião e fé, de um

lado, e razão e dúvida, do outro. A partir daí, pode-se acompanhar o

desenvolvimento de uma cultura científica, técnica, ideológica, na qual

emergiu uma concepção humanística e emancipadora do

70

ser humano, em contradição, aliás, com a terrível opressão dominadora

que a Europa impõe ao resto do mundo. Deverá ser apontado o caráter

transeuropeu das grandes correntes culturais modernas iniciadas com o

Renascimento, que parte da Toscana e atinge São Petersburgo, do

Iluminismo, que parte de Paris, do romantismo, que parte de Iena, cm

suma, com as grandes correntes literárias, artísticas, filosóficas que

atravessam a Europa até, e incluso, o surrealismo.

Os grandes temas europeus são propagados de Oeste a Leste: o

Estado nacional, a abolição da escravatura, o humanismo, a democracia, o

desenvolvimento técnico-científico. O leste europeu, entretanto, não foi

apenas receptor mas, também, criador de civilização. No século XIX, a

grande Rússia faz nascer a mais rica cultura, tanto poética e literária,

como musical. O Império Otomano, que ameaçou Viena em duas

oportunidades – nos séculos XVI e XVII –, é, como todo império, ao

mesmo tempo opressor e civilizador. Permite a coexistência de etnias e de

religiões, o que nenhum império ou reino ocidental foi capaz de tolerar. A

Europa, em toda a sua riqueza, engloba, necessariamente, o Leste, o Norte

e o Sul mediterrâneo.

Até meados do século XX, a Europa vivera inconscientemente uma

comunidade de destino, mesmo durante as guerras que opunham e

fortaleciam os Estados nacionais e que, por meio das reversões das

alianças, impediam a preponderância de um Estado sobre os outros. Hoje,

ela tenta reconstruir-se a partir de uma consciência e de uma vontade de

destino comum. De modo que a consciência de pertencer à identidade

européia poderia favorecer o desenvolvimento de uma cidadania européia.

A identidade terrena

Enfim, precisamos conceber uma história geral da humanidade que

comece não em 1492, mas há muitos milhares e milhares de anos, com a

dispersão do Homo sapiens em todo o planeta, inclusive

71

nas ilhas do Pacífico. Após essa diaspora é que se operaram as grandes

disjunções entre fragmentos de humanidade. A Ásia e a Europa ficaram

praticamente isoladas uma da outra; o centro da África, a Oceania, as

Américas viviam de modo fechado. Mas, em toda parte, formaram-se

grandes civilizações. Uma nova história planetária tem início com

Cristóvão Colombo e Vasco da Gama. Seria preciso assinalar que, desde

o século XVI, duas globalizações, ao mesmo tempo interligadas e

antagônicas, estão em curso: a globalização de dominação, colonização e

exploração, e a das idéias humanistas, emancipadoras, internacionalistas,

portadoras de uma consciência de humanidade comum.

É na segunda metade do século XX, depois da Segunda Guerra

Mundial e da destruição nuclear de Hiroshima e Nagasaki, que surge uma

consciência de comunidade de destino. Como diz Mireille Delmas-Marty:

―Começamos a nos conceber como humanidade há cinqüenta anos.‖

Hoje, podemos conceber, ao mesmo tempo:

1. Uma comunidade de destino, no sentido em que todos os

humanos estão sujeitos às mesmas ameaças mortais da arma nuclear (que

continua a ser disseminada) e ao mesmo perigo ecológico da biosfera, que

se agrava com o ―efeito estufa‖ provocado pelo aumento do CO2 na

atmosfera, os desmatamentos em larga escala das grandes florestas

tropicais produtoras de nosso oxigênio comum, a esterilização dos

oceanos, mares e rios fornecedores de alimentos, as poluições sem conta,

as catástrofes sem limites. A tudo isso, acrescente-se ainda a explosão

mundial de novos vírus e antigos micróbios fortalecidos, a incontrolável

transformação da economia mundial; finalmente, e sobretudo, a ameaça

mundial polimorfa que retoma e produz a aliança entre duas barbáries: a

barbárie de destruição e morte, que vem do fundo das eras, e a barbárie

anônima e fria do mundo técnico-econômico.

2. Uma identidade humana comum: por mais diferentes que sejam

seus genes, solos, comunidades, ritos, mitos e idéias, o Homo sapiens tem

uma identidade comum a todos os seus representantes:

72

pertence a uma unidade genética de espécie, que torna possível a

interfecundação entre todos os homens e mulheres, não importando a

―raça‖; essa unidade genética prolonga-se em unidade morfológica,

anatômica, psicológica; a unidade cerebral do Homo sapiens manifesta-se

na organização singular de seu cérebro, em relação ao dos outros

primatas; enfim, existe uma unidade psicológica e afetiva: risos, lágrimas,

sorrisos são diversamente modulados, é claro, inibidos ou desinibidos,

segundo as culturas; mas, a despeito da extrema diversidade dessas

culturas e dos modelos de personalidade que elas impõem, risos, lágrimas,

sorrisos são universais, e seu caráter inato manifesta-se nos surdos-

mudos-cegos de nascença, que sorriem, choram, riem sem que tenham

podido imitar quem quer que seja.

3. Uma comunidade de origem terrestre, a partir de nossa

ascendência e identidade antropóide, mamífera, vertebrada, que nos torna

filhos da vida e filhos da Terra.

A consciência e o sentimento de pertencermos à Terra e de nossa

identidade terrena são vitais atualmente. A progressão e o enraizamento

desta consciência de pertencer a nossa pátria terrena é que permitirão o

desenvolvimento, por múltiplos canais e em diversas regiões do globo, de

um sentimento de religação e intersolidariedade, imprescindível para

civilizar as relações humanas (ONGs, Sobrevivência Internacional,

Anistia Internacional, Greenpeace etc. são pioneiros da cidadania terrena).

Serão a alma e o coração da segunda globalização, produto antagônico da

primeira, que permitirão humanizar essa globalização.

Existe uma correlação entre o desenvolvimento de nossa

consciência de humanidade e a consciência de nossa pátria terrena. A

pátria terrena comporta a salvaguarda das diversas pátrias, que podem,

muito bem, enraizar-se em uma concepção mais profunda e mais vasta de

―a pátria‖, desde que sejam abertas; e a condição necessária a essa

abertura é a consciência de pertencer à Terra-Pátria.

* * *

73

Assim, devemos contribuir para a autoformação do cidadão e dar-

lhe consciência do que significa uma nação. Mas precisamos também

estender a noção de cidadania a entidades que ainda não dispõem de

instituições prontas – como a Europa, para um europeu –, ou não dispõem

absolutamente de instituições políticas comuns, como o planeta Terra.

Uma tal formação deve permitir enraizar, dentro de si, a identidade

nacional, a identidade continental e a identidade planetária.

Somos verdadeiramente cidadãos, dissemos, quando nos sentimos

solidários e responsáveis. Solidariedade e responsabilidade não podem

advir de exortações piegas nem de discursos cívicos, mas de um profundo

sentimento de filiação (affiliare, de filius, filho), sentimento

matripatriótico que deveria ser cultivado de modo concêntrico sobre o

país, o continente, o planeta.

74

CAPÍTULO 7

OS TRÊS GRAUS

EXAMINEMOS aqui, muito sucintamente, como divisar as finalidades

enunciadas nos capítulos precedentes, para os três graus de ensino.

Primário

Em vez de destruir as curiosidades naturais a toda consciência que

desperta, seria necessário partir das interrogações primeiras: o que é o ser

humano? A vida? A sociedade? O mundo? A verdade?

A finalidade da ―cabeça bem-feita‖ seria beneficiada por um

programa interrogativo que partisse do ser humano.

É interrogando o ser humano que se descobriria sua dupla natureza:

biológica e cultural. Por um lado, seria dado início à Biologia; daí, uma

vez discernido o aspecto físico e químico da organização biológica,

seriam situados os domínios da Física e da Química; depois, as ciências

físicas conduziriam à inserção do ser humano no cosmo. Por outro lado,

seriam descobertas as dimensões psicológicas, sociais, históricas da

realidade humana. Assim, desde o princípio, ciências e disciplinas

estariam reunidas, ramificadas umas às outras, e o ensino poderia ser o

veículo entre os conhecimentos parciais e um conhecimento do global. De

tal sorte que a Física, a Química e a Biologia possam ser diferenciadas,

ser matérias distintas, mas não isoladas, porquanto sempre inscritas em

seu contexto.

* * *

75

Para compreender o que insere o homem no mundo físico e vivo, e

o que o diferencia dele, seria contada a aventura cósmica, tal como

podemos discerni-la atualmente (com indicações do que é hipotético, do

que é desconhecido, do que é misterioso): a formação das partículas, a

aglomeração da matéria em protogaláxias; depois, a formação das

galáxias e estrelas, a formação dos átomos de carbono entre os céus

anteriores ao nosso; depois, a constituição de macro-moléculas na terra,

provavelmente com o concurso de materiais vindos de meteoritos. O

problema do nascimento da vida seria exposto (com seus enigmas

apontados no capítulo 5, p. 57), seguido das ramificações de seus

desenvolvimentos evolutivos.

A partir da aventura da hominização (com indicação de todos os

enigmas que ainda encerra), seria colocado o problema do surgimento do

Homo sapiens, da cultura, da linguagem, do pensamento, o que permitiria

introduzir a Psicologia e a Sociologia.

As aulas de conexão bioantropológicas deverão ser dadas com a

indicação de que o homem é, ao mesmo tempo, totalmente biológico e

totalmente cultural, e que o cérebro estudado em Biologia e a mente

estudada em Psicologia são duas faces de uma mesma realidade,

destacando-se o fato de que o surgimento da mente supõe a linguagem e a

cultura.

Assim, desde a escola primária, dar-se-ia início a um percurso que

ligaria a indagação sobre a condição humana à indagação sobre o mundo.

À medida que as matérias são distinguidas e ganham autonomia, é

preciso aprender a conhecer, ou seja, a separar e unir, analisar e

sintetizar, ao mesmo tempo. Daí em diante, seria possível aprender a

considerar as coisas e as causas.

O que é uma coisa? É preciso ensinar que as coisas não são ape-

76

nas coisas1, mas também sistemas que constituem uma unidade, a qual

engloba diferentes partes2. Não mais objetos fechados, mas entidades

inseparavelmente ligadas a seu meio ambiente, que só podem ser

realmente conhecidas quando inseridas em seu contexto. No que diz

respeito aos seres vivos, eles se comunicam, entre si e com o meio

ambiente—comunicações que fazem parte de sua organização e de sua

própria natureza.

O que é uma causa? preciso aprender a ultrapassar a causalidade

linear causa → efeito. Compreender a causalidade mútua inter-

relacionada, a causalidade circular (retroativa, recursiva), as incertezas da

causalidade (por que as mesmas causas não produzem sempre os mesmos

efeitos, quando os sistemas que elas afetam têm reações diferentes, e por

que causas diferentes podem provocar os mesmos efeitos).

Assim, será formada uma consciência capaz de enfrentar

complexidades.

A aprendizagem da vida será realizada por duas vias, a interna e a

externa.

A via interna passa pelo exame de si, a auto-analise, a autocrítica. O

auto-exame deve ser ensinado desde o primário e durante todo ele. Seriam

mostrados, particularmente, os erros ou deformações que ocorrem nos

testemunhos mais sinceros e convictos; seria estudada a maneira com que

a mente oculta os fatos que contrariam sua visão das coisas: mostrar-se-ia

como as coisas dependem menos de informações do que da forma em que

está estruturado o modo de pensar.

A via externa seria a introdução ao conhecimento das mídias. Como

as crianças são imersas, desde muito cedo, na cultura de mídia, televisão,

videogames, anúncios publicitários etc; o papel do

_____________________

1 As coisas não são coisas, dizia Robert Pages.

2 ... e aprender o que nos ensina a noção de sistema (cf. Edgar Monn, La Méthode, t 1

op. cit., pp. 94-151).

77

professor, em vez de denunciar, é tornar conhecidos os modos de

produção dessa cultura. Seria preciso mostrar como o tratamento dado às

imagens filmadas ou televisionadas, notadamente pela montagem, pode,

arbitrariamente, dar a impressão de realidade (uma sucessão de planos,

por exemplo, em que vemos correr, separadamente, o predador e sua

presa, dá a impressão de que vemos, simultaneamente, o percurso do

perseguidor e do perseguido). O mestre poderia situar e comentar os

programas assistidos e os jogos praticados pelos alunos fora da classe.

Naturalmente, o ensino da língua, da ortografia, da História, do

cálculo seria integralmente mantido ao longo do primeiro grau.

Secundário

O ensino secundário seria o momento da aprendizagem do que deve

ser a verdadeira cultura – a que estabelece o diálogo entre cultura das

humanidades e cultura científica –, não apenas levando a uma reflexão

sobre as conquistas e o futuro das ciências, mas também considerando a

Literatura como escola e experiência de vida. A História deveria

desempenhar um papel chave na escola secundária, permitindo ao aluno

internalizar a história de sua nação, situar-se no futuro histórico da

Europa e, mais amplamente, da humanidade, desenvolvendo, em si

mesmo, um modo de conhecimento que apreenda as características

multidimensionais ou complexas das realidades humanas.

Os programas deveriam ser substituídos por guias de orientação que

permitissem aos professores situar as disciplinas em seus novos

contextos: o Universo, a Terra, a vida, o humano. As reciclagens que

permitissem essas integrações poderiam ser efetuadas no quadro dos

cursos de mestrado renovados, ou durante os períodos de formação em

uma escola superior ad hoc.

78

A partir daí, sob o estímulo de um professor de Filosofia ou de um

professor polivalente, os ensinamentos científicos poderiam convergir

para o reconhecimento da condição humana, no meio do mundo físico e

biológico.

Deveria ser instituído um ensino recomposto de ciências humanas,

centralizado no destino individual, no destino social, no destino

econômico, no destino histórico, no destino imaginário e mitológico do

ser humano, e orientado nesse sentido, conforme as disciplinas.

Como assinalamos, o ensino das humanidades não deve >ei

sacrificado, mas otimizado. (Uma das principais missões do professor

secundário é salvaguardar a cultura das humanidades.) Os capítulos 3 e 4

demonstram como as humanidades introduzem, ao mesmo tempo, à

condição humana e ao aprender a viver.

A Filosofia deveria ter, como um de seus pontos capitais, a reflexão

sobre o conhecimento científico e não científico, e sobre o papel da

tecnociência, maximizado em nossas sociedades.

Durante todo o curso secundário, as matemáticas serão ensinadas

como forma de pensamento lógico que efetua operações calculáveis. Um

ensino filosófico na última série e para todas as opções introduzirá a

problemática da racionalidade e a oposição entre racionalidade e

racionalização.

Por exemplo, para os franceses o ensino da história nacional,

concebida como uma história do afrancesamento, imersa na história da

Europa, que criou a história da era planetária e nela se acha integrada

desde então, será de extrema importância para a formação cidadã.

Além disso, os professores do secundário têm por dever educar-se

sobre o mundo e a cultura dos adolescentes. Sempre houve, de fato, sob a

―colaboração de classe‖, uma ―luta de classe‖ entre professores, que

dispõem do poder, e o grosso dos alunos, que criam seu underground

clandestino, realizando pequenas transgressões (copiar,

79

colar etc.). Seria preciso compreender como a luta de classe se agravou

nas trágicas condições dos subúrbios.

Seria preciso instruir-se sobre a autonomia conquistada pelo mundo

adolescente em relação à cultura familiar e à cultura escolar, a partir dos

anos 1960-70, e sobre as formas comunitárias e as regras específicas dos

grupos adolescentes, que, onde há desintegração do tecido social ou

familiar (periferia), chegam até a formação de clãs, que constituem

verdadeiras microssociedades, com seus territórios sacramentados, suas

leis de vingança, seus códigos de honra.

Trata-se, em suma, de promover o conhecimento e o

reconhecimento mútuos de dois universos, sobrepostos um ao outro, que,

no entanto, não se conhecem.

Enfim, o círculo da docência não deveria fechar-se, como uma

cidadela sitiada, sob o bombardeio da cultura de mídia, exterior à escola,

ignorada e desdenhada pelo mundo intelectual. O conhecimento dessa

cultura é necessário não só para compreender os processos multiformes

de industrialização e supercomercialização culturais, mas também o

quanto das aspirações e obsessões próprias a nosso ―espírito da época‖ é

traduzido e traído pela temática das mídias3. A esse propósito, em vez de

ignorar as séries de televisão – enquanto os alunos se instruem por elas –,

os professores mostrariam que, por meio de convenções e visões

estereotipadas, elas falam, como a tragédia e o romance, das aspirações,

temores e obsessões de nossas vidas: amores, ódios, incompreensões,

mal-entendidos, encontros, separações, felicidade, infelicidade, doença,

morte, esperança, desespero, poder, traição, ambição, engodo, dinheiro,

fugas, drogas.

_____________________

3 L’Esprit du temp;, título do livro que dediquei a essa cultura (Grasset, e Livre de

Poche, ―Biblio Essais‖ 1983).

80

Universidade

A Universidade conserva, memoriza, integra, ritualiza uma herança

cultural de saberes, idéias, valores; regenera essa herança ao reexaminá-

la, atualizá-la, transmiti-la; gera saberes, idéias e valores que passam,

então, a fazer parte da herança. Assim, ela é conservadora, regeneradora,

geradora.

A esse título, a Universidade tem uma missão e uma função

transeculares, que vão do passado ao futuro, passando pelo presente;

conservou uma missão transnacional, apesar da tendência ao fechamento

nacionalista das nações modernas. Dispõe de uma autonomia que lhe

permite executar essa missão.

Segundo os dois sentidos do termo ―conservação‖, o caráter

conservador da Universidade pode ser vital ou estéril. A conservação é

vital quando significa salvaguarda e preservação, pois só se pode preparar

um futuro salvando um passado, e estamos em um século onde múltiplas

e poderosas forças de desintegração cultural estão em atividade. Mas a

conservação é estéril quando é dogmática, cristalizada, rígida. Assim, a

Sorbonne do século XVII condenou todos os avanços científicos de sua

época, e, até o século seguinte, grande parte da ciência moderna foi

formada fora das universidades.

No século XIX, a Universidade soube responder ao desafio do

desenvolvimento das ciências, ao realizar sua grande transformação, a

partir da reforma que Humboldt introduziu em Berlim, em 1809. Tornou-

se laica, quando instituiu sua liberdade interna frente à religião e ao

poder; abriu-se à grande problematização, surgida com o Renascimento,

que interroga o mundo, a natureza, a vida, o homem, Deus. A

Universidade tornou-se, de fato, o espaço da problematização

característica da cultura européia moderna; está mais profundamente

inserida em sua missão transecular e transnacional, e aberta às culturas

extra-européias.

A reforma criou departamentos onde introduziu as ciências

modernas. A partir daí, a Universidade faz com que coexistam —

81

mas não com que se comuniquem – as duas culturas: a das humanidades e

a cultura científica.

Ao criar os departamentos, Humboldt percebera bem o caráter

transecular da integração das ciências na Universidade. Para ele, a

formação profissional (conveniente às escolas técnicas) não deveria ser

tomada como a vocação direta da Universidade, mas apenas como

vocação indireta, pela formação de uma postura de pesquisa.

Daí a paradoxal dupla função da Universidade: adaptar-se à

modernidade científica e integrá-la; responder às necessidades

fundamentais de formação, mas também, e sobretudo, fornecer um ensino

metaprofissional, metatécnico, isto é, uma cultura.

A Universidade deve adaptar-se à sociedade ou a sociedade é que

deve adaptar-se à Universidade? Há complementaridade e antagonismo

entre as duas missões: adaptar-se à sociedade e adaptar a sociedade à

Universidade; uma remete à outra em um círculo que deve ser produtivo.

Não se trata apenas de modernizar a cultura: trata-se também de

―culturalizar‖ a modernidade.

Aqui, reencontramos a missão transecular, em que a Universidade

convoca a sociedade a adotar sua mensagem e suas normas: ela inocula na

sociedade uma cultura que não foi feita para as formas provisórias ou

efêmeras do hic et nunc, mas para ajudar os cidadãos a viverem seu

destino hic et nunc, ela defende, ilustra e promove, no mundo social e

político, valores intrínsecos à cultura universitária – a autonomia da

consciência, a problematização (com a conseqüência de que a pesquisa

deve ser sempre aberta e plural), o primado da verdade sobre a utilidade, a

ética do conhecimento; donde essa vocação expressa pela dedicatória no

frontispício da Universidade de Heidelberg: ―À mente viva.‖

A Universidade deve, ao mesmo tempo, adaptar-se às necessidades

da sociedade contemporânea e realizar sua missão transecular de

conservação, transmissão e enriquecimento de um patrimônio cultural,

sem o que não passaríamos de máquinas de produção e consumo.

* * *

82

Ora, como apontamos no capítulo 1, o século XX lançou vários

desafios a essa dupla missão.

Antes de tudo, existe uma pressão superadaptativa, que leva a

adequar o ensino e a pesquisa às demandas econômicas, técnicas e

administrativas do momento; a conformar-se aos últimos métodos, às

últimas estimativas do mercado, a reduzir o ensino geral, a marginalizar a

cultura humanista. Ora, na vida como na história, a superadaptação a

condições dadas nunca foi um indício de vitalidade, mas prenuncio de

senilidade e morte pela perda da substância inventiva e criadora.

Há, ao mesmo tempo, a disjunção radical dos saberes entre

disciplinas e a enorme dificuldade em se estabelecer um ponto

institucional entre essas disciplinas (cf. capítulo 1, pp. 14-16).

Há, da mesma maneira, a disjunção entre cultura humanista e

cultura científica, a qual comporta a compartimentação entre as ciências e

as disciplinas. A falta de comunicação entre as duas culturas provoca

graves conseqüências para uma e outra (cf. capítulo 1, p. 17).

A reforma da Universidade não poderia contentar-se com uma

democratização do ensino universitário e com a generalização do status

de estudante. Falo de uma reforma que leve em conta nossa aptidão para

organizar o conhecimento – ou seja, pensar.

A reforma de pensamento exige a reforma da Universidade.

Essa reforma incluiria uma reorganização geral para a instauração

de faculdades, departamentos ou institutos destinados às ciências que já

realizaram uma união multidisciplinar em torno de um núcleo organizador

sistêmico (Ecologia, ciências da Terra, Cosmologia). A Ecologia

científica, as ciências da Terra, a Cosmologia, insistimos, são

efetivamente ciências que têm por objeto não uma área ou um setor, mas

um sistema complexo: o ecossistema e, mais amplamente, a biosfera, para

a Ecologia; o sistema Terra, para as ciências da Terra; e a estranha

propensão do Universo a formar e destruir sistemas galáxicos e solares,

para a Cosmologia. Assim, seria

83

possível conceber uma Faculdade do Cosmo (que compreenda uma seção

filosófica) e uma Faculdade da Terra (ciências da Terra, Ecologia,

Geografias Física e Humana).

A reforma instituiria uma Faculdade do conhecimento e ciências

cognitivas, ainda que, nesse último domínio, a união ocorra mais como

superposição e polêmica do que como centralização no problema

reflexivo do conhecimento do conhecimento.

Embora as ciências biológicas estejam divididas entre uma

unificação redutora na Biologia Molecular e uma compartimentação sem

unidade, seria preciso instituir uma Faculdade da vida.

Sem esperar pelas inevitáveis recomposições futuras, seria

importante criar uma Faculdade do humano (reagrupando a Pré-história, a

Antropologia Biológica, a Antropologia Cultural, as ciências humanas,

sociais e econômicas, e integrando a problemática

indivíduo/espécie/sociedade) .

A História deveria ter uma Faculdade plena e completa, onde

seriam ensinadas não só a história nacional e mundial, mas também a das

grandes civilizações da Ásia, África e das Américas.

Podemos imaginar uma Faculdade dos problemas globalizados.

Enfim, a preservação das Faculdades de Letras seria acompanhada

de uma revitalização de seu ensino, conforme sugerido anteriormente

(capítulos 3 e 4), e de uma abertura às artes, bem como ao cinema.

Tais disposições assegurariam por si sós a possibilidade de

diplomas e teses multi ou transdisciplinares.

A fim de instaurar e ramificar um modo de pensar que permita a

reforma, seria o caso de se instituir, em todas as Universidades e

Faculdades, um dízimo epistemológico ou transdisciplinar4, que retiraria

10% da duração dos cursos para um ensino comum, orientado

_____________________

4 Segundo uma sugestão do Congresso Internacional de Locarno, organizado pelo

CIRET e pela UNESCO (30 de abril-2 de maio de 1997): ―Qual a universidade do amanhã?‖

84

para os pressupostos dos diferentes saberes e para as possibilidades de

torná-los comunicantes. Assim, o dízimo poderia ser destinado:

– ao conhecimento dos determinantes e pressupostos do

conhecimento;

– à racionalidade, à cientificidade, à objetividade;

– à interpretação;

– à argumentação;

– ao pensamento matemático;

– à relação entre o mundo humano, o mundo vivo, o mundo físico-

químico, o próprio cosmo;

– à interdependência e às comunicações entre as ciências (o circuito

das ciências, que, segundo Piaget, faz com que dependam umas das

outras);

– aos problemas da complexidade nos diferentes tipos de

conhecimento;

– à cultura das humanidades e à cultura científica;

– à literatura e às ciências humanas;

– à ciência, à ética, à política;

– etc.

Ele elaboraria os dispositivos que iriam permitir as comunicações

entre as ciências antropossociais e as ciências da natureza.

Poderíamos também imaginar a instituição, em cada Universidade,

de um centro de pesquisas sobre os problemas de complexidade e de

transdisciplinaridade, bem como oficinas destinadas às problemáticas

complexas e transdisciplinares.

85

CAPÍTULO 8

A REFORMA DE PENSAMENTO

―O Iluminismo depende da educação, e a educação depende do Iluminismo.‖

KANT

―Sei tudo, mas não compreendo nada.‖

RENE DAUMAL

RECORDEMOS o segundo e o terceiro princípios do Discurso sobre o

Método1:

– ―Divisar cada uma das dificuldades, que examinarei em tantas

parcelas quanto seja possível e requerido para melhor resolvê-las...‖

– ―Conduzir meus pensamentos por ordem, começando pelos

assuntos mais simples e mais fáceis de conhecer, para atingir, pouco a

pouco, como que degrau por degrau, o conhecimento dos assuntos mais

complexos...‖

No segundo princípio encontra-se, potencialmente, o princípio de

separação, e no terceiro, o princípio de redução; esses princípios vão reger

a consciência científica.

O princípio de redução comporta duas ramificações. A primeira é a

da redução do conhecimento do todo ao conhecimento adicio-

_____________________

1 ―O primeiro é nunca aceitar coisa alguma como verdadeira, se não a souber

comprovadamente como tal; isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção...

O último é fazer, em tudo, um levantamento tão completo e um exame tão amplo, que eu

esteja certo de não ter omitido nada.‖

87

nal de seus elementos. Hoje em dia, admite-se cada vez mais que, como

indica a já citada frase de Pascal, o conhecimento das partes depende do

conhecimento do todo, como o conhecimento do todo depende do

conhecimento das partes. Por isso, em várias frentes do conhecimento,

nasce uma concepção sistêmica, onde o todo não é redutível às partes.

A segunda ramificação do princípio de redução tende a limitar o

conhecimento ao que é mensurável, quantificável, formulável, segundo o

axioma de Galileu: os fenômenos só devem ser descritos com a ajuda de

quantidades mensuráveis. Desde então, a redução ao quantificável

condena todo conceito que não seja traduzido por uma medida. Ora, nem

o ser, nem a existência, nem o sujeito podem ser expressos

matematicamente ou por meio de fórmulas. O que Heidegger chama de ―a

essência devoradora do cálculo‖ pulveriza os seres, as qualidades e as

complexidades, e, ao mesmo tempo, leva à ―quantofrenia‖ (Sorokin) e à

―aritmomania‖(Georgescu-Roegen). Esse princípio ainda se impõe na

tecnociência; mas torna-se questionado, em profundidade, na medida em

que a própria tecnociência é questionada em profundidade.

Hoje, esses princípios revelaram suas limitações, e é preciso

recorrer ao princípio de Pascal, que citamos uma vez mais: ―Como todas

as coisas são causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e

imediatas, e todas são sustentadas por um elo natural e imperceptível, que

liga as mais distantes e as mais diferentes, considero impossível conhecer

as partes sem conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo sem

conhecer, particularmente, as partes.‖

Há, efetivamente, necessidade de um pensamento:

– que compreenda que o conhecimento das partes depende do

conhecimento do todo e que o conhecimento do todo depende do

conhecimento das partes;

– que reconheça e examine os fenômenos multidimensionais, em

vez de isolar; de maneira mutiladora, cada uma de suas dimensões;

88

– que reconheça e trate as realidades, que são, concomitante-mente

solidárias e conflituosas (como a própria democracia, sistema que se

alimenta de antagonismos e ao mesmo tempo os regula);

– que respeite a diferença, enquanto reconhece a unicidade.

É preciso substituir um pensamento que isola e separa por um

pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento

disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido

originário do termo complexus : o que é tecido junto.

De fato, a reforma do pensamento não partiria de zero. Tem seus

antecedentes na cultura das humanidades, na literatura e na filosofia, e é

preparada nas ciências.

Ciências

As duas revoluções científicas do século preparam a reforma do

pensamento.

A primeira começou com a física quântica e, como já mencionamos,

desencadeia o colapso do Universo de Laplace; a queda do dogma

determinista; o esboroamento de toda idéia de que haveria uma unidade

simples na base do universo; e a introdução da incerteza no conhecimento

científico. Suscitou, notadamente em Bachelard e Popper, tomadas

epistemológicas de consciência em relação aos pressupostos do saber

científico.

A segunda revolução, realizada com a constituição de grandes

ligações científicas, faz com que se levem em consideração os conjuntos

organizados, ou sistemas, em detrimento do dogma reducionista que

imperara durante o século XIX. Como vimos no capítulo 2, há uma

ressurreição das entidades globais, como o cosmo, a natureza, o homem,

que foram picadas como salsichas, finalmente desintegradas,

supostamente porque provêm do senso primitivo pré-

89

científico, na verdade porque contêm, no âmago, uma complexidade

insuportável para o pensamento disjuntivo/redutor.

Ainda que nem todas as conseqüências dessas duas revoluções

sejam aparentes e que a segunda continue incompleta em vários domínios

(ciências da vida, ciências humanas e sociais), a complexidade invadiu o

mundo pelas mesmas vias que a baniram dele. A maior parte das ciências

descobre diversos campos em que os enunciados simples estão errados e

―onde o preconceito a favor das leis torna-se prejudicial‖2. Além disso, já

foram formados princípios de inteligibilidade do complexo, e, a partir da

cibernética, da teoria da informação, foi elaborada uma concepção de

auto-organização capaz de conceber a autonomia, o que era impossível,

segundo a ciência clássica. A racionalidade e a cientificidade começaram

a ser redefinidas e complexificadas a partir dos trabalhos de Bachelard,

Popper, Kuhn, Holton, Lakatos, Feyerabend. Também é de se esperar o

avanço pacífico de uma reforma de pensamento.

Alguns elos começaram a se formar entre as duas culturas. Alguns

pensadores científicos ocuparam o lugar deixado vago por uma filosofia

enrodilhada sobre si mesma, que já não reflete sobre os conhecimentos

transmitidos pelas ciências. Esses pensadores forneceram à cultura geral

reflexões originadas de seus saberes. Assim, Jacques Monod, François

Jacob, Ilya Prigogine, Henri Atlan, Hubert Reeves, Michel Cassé,

Bernard d‘Espagnat, Basarab Nicolescu, Jean-Marc Lévy-Leblond e

tantos outros restabeleceram as relações entre as duas culturas desunidas,

o que suscitará uma nova cultura geral, mais rica que a antiga e capaz de

analisar os problemas fundamentais da humanidade contemporânea.

_____________________

2 F. Hayek, ―The Theory of Complex Phenomena‖, in Studies in Philosophy, Politics

and Economics, Routledge and Kegan, Londres, 1967.

90

Literatura e filosofia

No século XIX, enquanto o individual, o singular, o concreto e o

histórico eram ignorados pela ciência, a literatura e, particularmente, o

romance – de Balzac a Dostoievski e a Proust – restituíram e revelaram a

complexidade humana. As ciências realizavam o que acreditavam ser sua

missão: dissolver a complexidade das aparências para revelar a

simplicidade oculta da realidade; de fato, a literatura assumia por missão

revelar a complexidade humana que se esconde sob as aparências de

simplicidade. Revelava os indivíduos, sujeitos de desejos, paixões,

sonhos, delírios; envolvidos em relacionamentos de amor, de rivalidade,

de ódio; inseridos em seu meio social ou profissional; submetidos a

acontecimentos e acasos, vivendo seu destino incerto.

Todas as obras-primas da literatura foram obras-primas de

complexidade: a revelação da condição humana na singularidade do

indivíduo (Montaigne), a contaminação do real pelo imaginário (o Dom

Quixote, de Cervantes), o jogo das paixões humanas (Shakespeare).

Melhor ainda: a literatura revela o valor cognitivo da metáfora, que

o espírito científico rejeita com desprezo. Como dizem Knyazeva e

Kurdymov: ―A metáfora é um indicador e uma não-linearidade local no

texto ou no pensamento, é um indicador de abertura do texto ou do

pensamento a diversas interpretações ou reinterpretações, para encontrar

ressonância com as idéias pessoais de um leitor ou de um interlocutor.‖3

Uma metáfora revela a visão ou a percepção que se tornaram

clichês. É nesse sentido que um poeta diz: ―A realidade é um clichê do

qual escapamos pela metáfora.‖ A metáfora literária estabelece uma

comunicação analógica entre realidades muito distantes e diferentes,

_____________________

3 E. N. Knyazeva e S. P. Kurdymov, Synergetics at the Crossroads of the Eastern and

the Western Cultures (1994), Keldish Institute of Applied Mathematics, da Academia de

Ciências da Rússia.

91

que permite dar intensidade afetiva à inteligibilidade que ela apresenta.

Ao levantar ondas analógicas, a metáfora supera a descontinuidade e o

isolamento das coisas. Fornece, freqüentemente, précisées que a língua

puramente objetiva ou denotativa não pode fornecer. Assim, quando

falamos da roupa, do corpo, do buquê, da perna de um vinho,

compreendemos melhor sua qualidade do que por meio de referências

físico-químicas.

Acrescentemos que, mesmo nas ciências, há fecundos transportes de

noções de uma disciplina para outra (cf. anexo 1, p. 108). Antonio

Machado dizia: ―Uma idéia não tem mais valor que uma metáfora; em

geral, tem menos.‖ E Descartes, que não era essencialmente cartesiano,

observava: ―Poderia surpreender que os pensamentos profundos sejam

encontrados nos escritos dos poetas, e não nos dos filósofos. O motivo é

que os poetas se servem do entusiasmo e exploram a força da imagem.‖

(Descartes, Cogitationes privatae)

Enfim, dizíamos que a complexidade não é um problema novo. O

pensamento humano sempre enfrentou a complexidade e tentou, ou bem

reduzi-la, ou bem traduzi-la. Os grandes pensadores sempre fizeram uma

descoberta de complexidade. Até uma simples lei, como a da gravidade,

permite ligar, sem reduzi-los, fenômenos diversos como a queda dos

corpos, o fato de a Lua não cair na Terra, o movimento das marés. Toda

grande filosofia é uma descoberta de complexidade; depois, ao formar um

sistema em torno da complexidade que revelou, ela encerra outras

complexidades.

A reforma em todos os níveis

A exigida reforma do pensamento vai gerar um pensamento do

contexto e do complexo. Vai gerar um pensamento que liga e enfrenta a

incerteza.

O pensamento que une substituirá a causalidade linear e

unidirecional por uma causalidade em círculo e multirreferencial; corrigi-

92

rá a rigidez da lógica clássica pelo diálogo capaz de conceber noções ao

mesmo tempo complementares e antagonistas, e completará o

conhecimento da integração das partes em um todo, pelo reconhecimento

da integração do todo no interior das partes.

Ligará a explicação à compreensão, em todos os fenômenos

humanos. Vamos repetir aqui a diferença entre explicação e compreensão.

Explicar é considerar o objeto de conhecimento apenas como um objeto e

aplicar-lhe todos os meios objetivos de elucidação. De modo que há um

conhecimento explicativo que é objetivo, isto é, que considera os objetos

dos quais é preciso determinar as formas, as qualidades, as quantidades, e

cujo comportamento conhecemos pela causalidade mecânica e

determinista. A explicação, claro, é necessária à compreensão intelectual

ou objetiva. Mas é insuficiente para a compreensão humana.

Há um conhecimento que é compreensível e está fundado sobre a

comunicação e a empatia – simpatia, mesmo – intersubjetivas.

Assim, compreendo as lágrimas, o sorriso, o riso, o medo, a cólera,

ao ver o ego alter como alter ego, por minha capacidade de experimentar

os mesmos sentimentos que ele. A partir daí, compreender comporta um

processo de identificação e de projeção de sujeito a sujeito. Se vejo uma

criança em prantos, vou compreendê-la não pela medição do grau de

salinidade de suas lágrimas, mas por identificá-la comigo e identificar-me

com ela. A compreensão, sempre intersubjetiva, necessita de abertura e

generosidade.

Os sete princípios

Podemos adiantar sete diretivas para um pensamento que une; são

princípios complementares e interdependentes.

1. O princípio sistêmico ou organizacional, que liga o

conhecimento das partes ao conhecimento do todo, segundo o elo

indicado por

93

Pascal: ―Considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo,

tanto quanto conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes.‖ A

idéia sistêmica, oposta à idéia reducionista, é que ―o todo é mais do que a

soma das partes‖. Do átomo à estrela, da bactéria ao homem e à

sociedade, a organização de um todo produz qualidades ou propriedades

novas, em relação às partes consideradas isoladamente: as emergências.

Assim também, a organização do ser vivo produz qualidades

desconhecidas no que se refere a seus constituintes físico-químicos.

Acrescentemos que o todo é, igualmente, menos que a soma das partes,

cujas qualidades são inibidas pela organização do conjunto.

2. O princípio “hologrâmico”4 põe em evidência este aparente

paradoxo das organizações complexas, em que não apenas a parte está no

todo, como o todo está inscrito na parte. Assim, cada célula é uma parte

de um todo – o organismo global –, mas também o todo está na parte: a

totalidade do patrimônio genético está presente em cada célula individual;

a sociedade está presente em cada indivíduo, enquanto todo, através de

sua linguagem, sua cultura, suas normas.

3. O princípio do circuito retroativo, introduzido por Norbert

Wiener, permite o conhecimento dos processos auto-reguladores. Ele

rompe com o princípio da causalidade linear: a causa age sobre o efeito, e

o efeito age sobre a causa, como no sistema de aquecimento, em que o

termostato regula o andamento do aquecedor. Esse mecanismo de

regulação permite, aqui, a autonomia térmica de um apartamento em

relação ao frio externo. De modo mais complexo, ―a homoestasia‖ de um

organismo vivo é um conjunto de processos reguladores baseados em

múltiplas retroações. Em sua forma negativa, o círculo de retroação (ou

feedback) permite reduzir o desvio e, assim, estabilizar um sistema. Em

sua forma positiva, o feedback é um mecanismo amplificador; por

exemplo: a violência de um protagonista provoca

_____________________

4 Inspirado no holograma, em que cada ponto contém a quase totalidade da informação

do objeto que ele representa.

94

uma reação violenta, que, por sua vez, provoca uma reação mais violenta

ainda. Inflacionárias ou estabilizadoras, são incontáveis as retroações nos

fenômenos econômicos, sociais, políticos ou psicológicos.

4. O princípio do circuito recursivo ultrapassa a noção de regulação

com as de autoprodução e auto-organização. É um circuito gerador em

que os produtos e os efeitos são, eles mesmos, produtores e causadores

daquilo que os produz. Assim, nós, indivíduos, somos os produtos de um

sistema de reprodução que vem do início dos tempos, mas esse sistema

não pode se reproduzir se nós mesmos não nos tornarmos produtores com

o acasalamento. Os indivíduos humanos produzem a sociedade nas

interações e pelas interações, mas a sociedade, à medida que emerge,

produz a humanidade desses indivíduos, fornecendo-lhes a linguagem e a

cultura.

5. Principio da autonomia/dependência (auto-organização). os

seres vivos são seres auto-organizadores, que não param de se auto-

produzir e, por isso mesmo, despendem energia para manter sua

autonomia. Como têm necessidade de retirar energia, informação e

organização de seu meio ambiente, sua autonomia é inseparável dessa

dependência; é por isso que precisam ser concebidos como seres auto-

ecoorganizadores. O princípio de auto-ecoorganização vale

especificamente, é óbvio, para os humanos – que desenvolvem sua

autonomia na dependência de sua cultura – e para as sociedades – que se

desenvolvem na dependência de seu meio geológico.

Um aspecto chave da auto-ecoorganização viva é que ela se

regenera permanentemente a partir da morte de suas células, segundo a

fórmula de Heráclito, ―viver de morte, morrer de vida‖; e as idéias

antagônicas de morte e vida são, ao mesmo tempo, complementares e

antagônicas.

6. O princípio dialógico acaba justamente de ser ilustrado pela

fórmula de Heráclito. Ele une dois princípios ou noções que deviam

95

excluir-se reciprocamente, mas são indissociáveis em uma mesma

realidade.

Deve-se conceber uma dialógica ordem/desordem/organização,

desde o nascimento do Universo: a partir de uma agitação calorífica

(desordem), onde, em certas condições (encontros aleatórios), princípios

de ordem vão permitir a constituição de núcleos, átomos, galáxias e

estrelas. Sob as mais diversas formas, a dialógica entre a ordem, a

desordem e a organização via inúmeras interretroações, está

constantemente em ação nos mundos físico, biológico e humano.

A dialógica permite assumir racionalmente a inseparabilidade de

noções contraditórias para conceber um mesmo fenômeno complexo.

Niels Bohr, por exemplo, reconheceu a necessidade de conceber

partículas físicas como corpúsculos e como ondas, ao mesmo tempo. De

um certo ponto de vista, os indivíduos, na medida em que desaparecem,

são como corpúsculos autônomos; de um outro ponto de vista – dentro

das duas continuidades que são a espécie e a sociedade –, o indivíduo

desaparece quando se consideram a espécie e a sociedade; e a espécie e a

sociedade desaparecem quando se considera o indivíduo. O pensamento

deve assumir dialogicamente os dois termos, que tendem a se excluir um

ao outro.

7. O princípio da reintrodução do conhecimento em todo

conhecimento. Esse princípio opera a restauração do sujeito e revela o

problema cognitivo central: da percepção à teoria científica, todo

conhecimento é uma reconstrução/tradução feita por uma mente/cérebro,

em uma cultura e época determinadas.

Repetimos: a reforma do pensamento é de natureza não

programática, mas paradigmática, porque concerne à nossa aptidão para

organizar o conhecimento. É ela que permitiria a adequação à finalidade

da cabeça bem-feita; isto é, permitiria o pleno uso da inteligência.

Precisamos compreender que nossa lucidez depende da complexidade do

modo de organização de nossas idéias.

A reforma do pensamento integraria, nas duas culturas, as idéias

96

capitais nascidas à margem de uma e de outra: no mundo dos

matemáticos-engenheiros-pensadores, a partir de Wiener, von Neumann,

von Foerster5. Desse modo, ela poria em comunicação essas duas culturas

que acabariam por constituir os dois pólos da cultura. Novas humanidades

emergiriam, assim, do intercâmbio entre dois pólos culturais. Essas

humanidades revitalizariam a problematização, o que permitiria a plena

emergência dos problemas globais e fundamentais. E, assim, cada futuro

cidadão, para chegar à especialização, terá de passar, então, pela cultura.

O humanismo seria regenerado. Lembremos que o humanismo

europeu atual não tem, como únicas fontes, a herança ateniense (a

soberania dos cidadãos sobre sua cidade) e a herança judaico-cristã (o

homem à imagem de Deus, Deus que adquire a carne e a forma humanas).

Recebeu a contribuição de quatro descobertas oriundas das ciências, que

situam o ser humano no mundo destruindo qualquer antropocentrismo. É

Copérnico quem retira do homem o privilégio de ser o centro do

Universo. É Darwin quem o torna descendente do antropóide, e não

criatura à imagem de seu Criador. É Freud quem dessacraliza o espírito

humano, e, finalmente, é Hubble quem nos exila nas periferias mais

afastadas do cosmo. O humanismo já não poderia ser o portador da

orgulhosa vontade de dominar o Universo. Torna-se, essencialmente, o da

solidariedade entre humanos, a qual envolve uma relação umbilical com a

natureza e o cosmo.

Isso indica que um modo de pensar, capaz de unir e solidarizar

conhecimentos separados, é capaz de se desdobrar em uma ética da união

e da solidariedade entre humanos. Um pensamento capaz de não se fechar

no local e no particular, mas de conceber os conjuntos, estaria apto a

favorecer o senso da responsabilidade e o da cidadania. A reforma de

pensamento teria, pois, conseqüências existenciais, éticas e cívicas.

_____________________

5 Cf. anexo l.pp 111 e 112.

97

CAPÍTULO 9

PARA ALÉM DAS CONTRADIÇÕES

ATUALMENTE, os problemas da educação tendem a ser reduzidos a

termos quantitativos: ―mais créditos‖, ―mais ensinamentos‖, ―menos

rigidez‖, ―menos matérias programadas‖, ―menos carga horária‖. Tudo

isso, claro, é necessário. É preciso haver mais créditos, mais

ensinamentos. É preciso respeitar o optimum demográfico da classe para

que o professor possa conhecer cada aluno individualmente e ajudá-lo em

sua singularidade. É preciso haver reformas de flexibilidade, de

diminuição da carga horária, de organização, mas essas modificações

sozinhas não passam de reformazinhas que camuflam ainda mais a

necessidade da reforma de pensamento.

De fato, os atuais projetos de reforma giram em torno desse buraco

negro que lhes é invisível. Só seria visível se as mentes fossem

reformadas. E aqui chegamos a um impasse: não se pode reformar a

instituição sem uma prévia reforma das mentes, mas não se podem

reformar as mentes sem uma prévia reforma das instituições. Essa é uma

impossibilidade lógica que produz um duplo bloqueio.

Há resistências inacreditáveis a essa reforma, a um tempo, una e

dupla. A imensa máquina da educação é rígida, inflexível, fechada,

burocratizada. Muitos professores estão instalados em seus hábitos e

autonomias disciplinares. Estes, como dizia Curien, são como os lobos

que urinam para marcar seu território e mordem os que nele penetram. Há

uma resistência obtusa, inclusive entre os espíritos refinados. Para eles, o

desafio é invisível.

99

A cada tentativa de reforma, mínima que seja, a resistência

aumenta! Como dizia Edgar Faure, depois de ter experimentado uma de

suas reformazinhas, ―o imobilismo se pôs em marcha, e não sei como

detê-lo‖. Quanto a mim, fui alvo dos sarcasmos dos Diafoirus e Trissotin

(cujo número cresceu consideravelmente desde Molière), quando sugeri

as ―cinco finalidades‖.

Como as mentes, em sua maioria, são formadas segundo o modelo

da especialização fechada, a possibilidade de um conhecimento para além

de uma especialização parece-lhes insensata. E, no entanto, o mais

limitado especialista tem idéias gerais, das quais não tem dúvidas, sobre a

vida, o mundo, Deus, a sociedade, os homens, as mulheres. E, de fato,

esses especialistas, experts, vivem de idéias gerais e globais, mas

arbitrárias, nunca criticadas, nunca refletidas. O reino dos especialistas é

o reino das mais ocas idéias gerais, sendo que a mais oca de todas é a de

que não há necessidade de idéia geral.

O bloqueio levantado pela necessidade de reformar as mentes para

reformar as instituições é acrescido de um bloqueio mais amplo, que diz

respeito à relação entre a sociedade e a escola. Uma relação que não é

tanto de reflexo, mas de holograma e de recorrência. Holograma: assim

como um ponto único de um holograma contém em si a totalidade da

figura representada, também a escola, em sua singularidade, contém em si

a presença da sociedade como um todo. Recorrência: a sociedade produz

a escola, que produz a sociedade.

Diante disso, como reformar a escola sem reformar a sociedade,

mas como reformar a sociedade sem reformar a escola?

Há a impossibilidade lógica de superar essas duas contradições que

acabamos de enunciar; mas este é o tipo de impossibilidade que a vida

sempre desdenhou.

Quanto à relação escola-sociedade, já nos referimos a ela no

capítulo 7. Como existe um circuito entre a escola e a sociedade —

100

uma produz a outra –, qualquer intervenção que modifique um de seus

termos tende a provocar uma modificação na outra.

É preciso saber começar, e o começo só pode ser desviante e

marginal. A Universidade moderna, que rompeu com a Universidade

medieval, nasceu no início do século XIX, em Berlim, capital de uma

pequena nação periférica, a Prússia. Difundiu-se, depois, pela Europa e

pelo mundo. Agora, é ela que precisa ser reformada. E a reforma também

começará de maneira periférica e marginal. Como sempre, a iniciativa só

pode partir de uma minoria, a princípio incompreendida, às vezes

perseguida. Depois, a idéia é disseminada e, quando se difunde, torna-se

uma força atuante.

A missão

É nesse sentido que podemos responder à questão colocada por Karl

Marx, em uma de suas teses sobre Feuerbach: ―Quem educará os

educadores?‖ Será uma minoria de educadores, animados pela fé na

necessidade de reformar o pensamento e de regenerar o ensino. São os

educadores que já têm, no íntimo, o sentido de sua missão.

Freud dizia que há três funções impossíveis por definição: educar,

governar, psicanalisar. É que são mais que funções ou profissões. O

caráter funcional do ensino leva a reduzir o professor ao funcionário. O

caráter profissional do ensino leva a reduzir o professor ao especialista. O

ensino deve voltar a ser não apenas uma função, uma especialização, um

profissão, mas também uma tarefa de saúde pública: uma missão.

Uma missão de transmissão.

A transmissão exige, evidentemente, competência, mas também

requer, além de uma técnica, uma arte.

Exige algo que não é mencionado em nenhum manual, mas que

Platão já havia acusado como condição indispensável a todo ensino: o

eros, que é, a um só tempo, desejo, prazer e amor; desejo e prazer

101

de transmitir, amor pelo conhecimento e amor pelos alunos. O eros

permite dominar a fruição ligada ao poder, em benefício da fruição ligada

à doação. É isso que, antes de tudo mais, pode despertar o desejo, o prazer

e o amor no aluno e no estudante.

Onde não há amor, só há problemas de carreira e de dinheiro para o

professor; e de tédio, para os alunos.

A missão supõe, evidentemente, a fé: fé na cultura e fé nas

possibilidades do espírito humano.

Portanto, é missão muito elevada e difícil, uma vez que supõe, ao

mesmo tempo, arte, fé e amor.

Eros → missão → fé

↑_______↑______↓

constitui o círculo recorrente da trindade laica, onde cada um dos termos

alimenta o outro.

Recapitulemos os pontos essenciais da missão de ensinar:

– fornecer uma cultura que permita distinguir, contextualizar,

globalizar os problemas multidimensionais, globais e fundamentais, e

dedicar-se a eles;

– preparar as mentes para responder aos desafios que a crescente

complexidade dos problemas impõe ao conhecimento humano;

– preparar as mentes para enfrentar as incertezas que não param de

aumentar, levando-as não somente a descobrirem a história incerta e

aleatória do Universo, da vida, da humanidade, mas também promovendo

nelas a inteligência estratégica e a aposta em um mundo melhor.

– educar para a compreensão humana entre os próximos e os

distantes;

– no caso dos franceses, ensinar a filiação à França, à sua história, à

sua cultura, à cidadania republicana, e introduzir a filiação à Europa;

– ensinar a cidadania terrena, ensinando a humanidade em sua

unidade antropológica e suas diversidades individuais e culturais,

102

bem como em sua comunidade de destino, própria à era planetária, em

que todos os animais enfrentam os mesmos problemas vitais e mortais.

Reencontrar as missões

As cinco finalidades educativas estão ligadas entre si e devem

alimentar umas às outras (a cabeça bem-feita, que nos dá aptidão para

organizar o conhecimento, o ensino da condição humana, a aprendizagem

do viver, a aprendizagem da incerteza, a educação cidadã). Devem

despertar, igualmente, a ressurreição da cultura pela conexão entre as duas

culturas e, como veremos agora, contribuir para a regeneração da

laicidade e o nascimento de uma democracia cognitiva.

Na França, a reforma assim concebida, necessariamente inseparável

de uma regeneração cultural, seria, ela mesma, inseparável de uma

regeneração da laicidade francesa. Na origem da laicidade, fruto do

Renascimento, está a problematização que interroga o mundo, a natureza,

a vida, o homem, Deus; e que dá vida à cultura européia moderna. A

laicidade do início do século chegou a acreditar que a ciência, a razão, o

progresso trariam soluções a todas essas questões. Hoje, já não basta

problematizar o homem, a natureza, o mundo, Deus; é preciso

problematizar o progresso, a ciência, a técnica, a razão. A nova laicidade

deve problematizar a ciência revelando suas profundas ambivalências.

Deve problematizar a razão, opondo a racionalidade aberta à

racionalização fechada; deve problematizar o progresso, que depende não

de uma necessidade histórica, mas de uma vontade consciente dos

humanos. A laicidade, assim regenerada, talvez criasse as condições para

um novo Renascimento.

A reforma de pensamento é uma necessidade democrática

fundamental: formar cidadãos capazes de enfrentar os problemas de sua

época é frear o enfraquecimento democrático que suscita, em todas

103

as áreas da política, a expansão da autoridade dos experts, especialistas de

toda ordem, que restringe progressivamente a competência dos cidadãos.

Estes são condenados à aceitação ignorante das decisões daqueles que se

presumem sabedores, mas cuja inteligência é míope, porque fracionária e

abstrata. O desenvolvimento de uma democracia cognitiva só é possível

com uma reorganização do saber; e esta pede uma reforma do pensamento

que permita não apenas isolar para conhecer, mas também ligar o que está

isolado, e nela renasceriam, de uma nova maneira, as noções pulverizadas

pelo esmagamento disciplinar, o ser humano, a natureza, o cosmo, a

realidade.

A reforma de pensamento é uma necessidade histórica fundamental.

Hoje somos vítimas de dois tipos de pensamento fechado: primeiro, o

pensamento fracionário da tecnociência burocratizada, que corta, como

fatias de salame, o complexo tecido do real; segundo, o pensamento cada

vez mais fechado, voltado para a etnia ou a nação, que recorta, como um

puzzle, o tecido da Terra-Pátria. Precisamos, pois, estar intelectualmente

rearmados, começar a pensar a complexidade, enfrentar os desafios da

agonia/nascimento de nosso entre-dois-milênios e tentar pensar os

problemas da humanidade na era planetária.

Essa é uma reforma vital para os cidadãos do novo milênio, que

permitiria o pleno uso de suas aptidões mentais e constituiria não,

certamente, a única condição, mas uma condição sine qua non para

sairmos de nossa barbárie.

104

ANEXO 1

Inter-poli-transdisciplinaridade1

A DISCIPLINA é uma categoria organizadora dentro do conhecimento

científico; ela institui a divisão e a especialização do trabalho e responde à

diversidade das áreas que as ciências abrangem. Embora inserida em um

conjunto mais amplo, uma disciplina tende naturalmente à autonomia pela

delimitação das fronteiras, da linguagem em que ela se constitui, das

técnicas que é levada a elaborar e a utilizar e, eventualmente, pelas teorias

que lhe são próprias. A organização disciplinar foi instituída no século

XIX, notadamente com a formação das universidades modernas;

desenvolveu-se depois, no século XX, com o impulso dado à pesquisa

científica; isto significa que as disciplinas têm uma história: nascimento,

institucionalização, evolução, esgotamento etc; essa história está inscrita

na da Universidade, que, por sua vez, está inscrita na história da

sociedade; daí resulta que as disciplinas nascem da sociologia das

ciências e da sociologia do conhecimento. Portanto, a disciplina nasce não

apenas de um conhecimento e de uma reflexão interna sobre si mesma,

mas também de um conhecimento externo. Não basta, pois, estar por

dentro de uma disciplina para conhecer todos os problemas aferentes a

ela.

Virtude da especialização e risco de hiperespecialização

A fecundidade da disciplina na história da ciência já foi

demonstrada; por um lado, ela realiza a circunscrição de uma área de

com-

_____________________

1 Uma primeira versão deste texto foi publicada em Carrefour des sciences, Actes du

colloque du CNRS ―Interdisciplinarité‖, CNRS, Paris, 1990.

105

petência, sem a qual o conhecimento tornar-se-ia intangível; por outro, ela

revela, destaca ou constrói um objeto não trivial para o estudo científico:

é nesse sentido que Marcelin Berthelot dizia que a Química cria seu

próprio objeto. Entretanto, a instituição disciplinar acarreta, ao mesmo

tempo, um perigo de hiperespecialização do pesquisador e um risco de

―coisificação‖ do objeto estudado, do qual se corre o risco de esquecer

que é destacado ou construído. O objeto da disciplina será percebido,

então, como uma coisa auto-suficiente; as ligações e solidariedades desse

objeto com outros objetos estudados por outras disciplinas serão

negligenciadas, assim como as ligações e solidariedades com o universo

do qual ele faz parte. A fronteira disciplinar, sua linguagem e seus

conceitos próprios vão isolar a disciplina em relação às outras e em

relação aos problemas que se sobrepõem às disciplinas. A mentalidade

hiperdisciplinar vai tornar-se uma mentalidade de proprietário que proíbe

qualquer incursão estranha em sua parcela de saber. Sabemos que,

originalmente, a palavra ―disciplina‖ designava um pequeno chicote

utilizado no autoflagelamento e permitia, portanto, a autocrítica; em seu

sentido degradado, a disciplina torna-se um meio de flagelar aquele que se

aventura no domínio das idéias que o especialista considera de sua

propriedade.

O olhar extradisciplinar

A abertura, portanto, é necessária. Acontece que um olhar ingênuo

de amador, alheio à disciplina, mesmo a qualquer disciplina, resolva um

problema cuja solução era invisível dentro da disciplina. O olhar ingênuo

– que não conhece, é óbvio, os obstáculos que a teoria existente levanta

contra a elaboração de uma nova visão – pode, em geral erradamente, mas

às vezes com acerto, permitir-se essa visão. Assim, Darwin, por exemplo,

era um amador esclarecido; Lewis Mumford tirou partido de sua falta de

formação universitária

106

especializada e até de sua falta de educação biológica, salvo por sua

paixão pelos animais e sua coleção de coleópteros. E Mumford conclui:

―Devido a essa ausência de fixação e inibição escolares, nada impedia o

alerta de Darwin a cada manifestação do ambiente vivo.‖ assim também,

o meteorologista Wegener, ao olhar ingenuamente o mapa do Atlântico

Sul, observou que o Oeste da África e o Brasil ajustavam-se um ao outro.

Retirando similares de fauna e de flora, fósseis e atuais, de ambos os

lados do oceano, ele elaborou, em 1912, a teoria do desvio dos

continentes: por muito tempo refutada pelos especialistas, por ser

‗teoricamente impossível‖, undenkbar, foi admitida cinqüenta anos

depois, principalmente com a descoberta da tectônica das placas. Marcel

Proust dizia: ―Uma verdadeira viagem de descobrimento não é encontrar

novas terras, mas ter um olhar novo.‖ Jacques Labeyrie sugeriu o seguinte

teorema, que submetemos à verificação: ―Quando não se encontra solução

em uma disciplina, a solução vem de fora da disciplina.‖

Invasões e migrações interdisciplinares

Contudo, se o caso de Darwin e de Wegener são excepcionais,

pode-se dizer de pronto que a história das ciências não se restringe à da

constituição e proliferação das disciplinas, mas abrange, ao mesmo

tempo, a das rupturas entre as fronteiras disciplinares, da invasão de um

problema de uma disciplina por outra, de circulação de conceitos, de

formação de disciplinas híbridas que acabam tornando-se autônomas;

enfim, é também a história da formação de complexos, onde diferentes

disciplinas vão ser agregadas e aglutinadas. Ou seja, se a história oficial

da ciência é a da disciplinaridade, uma outra história, ligada e inseparável,

é a das inter-poli-transdisciplinaridades.

A ―revolução biológica‖ dos anos 50 nasceu de invasões e contatos,

de transferências entre disciplinas à margem da Física, da Química e da

Biologia. Foram físicos como Schrödinger que proje-

107

taram problemas da termodinâmica e da organização física, no organismo

biológico. Em seguida, pesquisadores marginais tentaram descobrir a

organização da herança genética a partir das propriedades químicas do

DNA. Pode-se dizer que a Biologia Molecular nasceu de concubinagens

―ilegítimas‖. Nos anos 50, ela não tinha nenhum status disciplinar e só

adquiriu algum, na França, depois que Monod, Jacob e Lwoff receberam

o Prêmio Nobel. Então, essa Biologia Molecular tornou-se autônoma; e,

por seu turno, depois mostrou tendência a se fechar, a se tornar até

imperialista; mas isso, como diria Kipling, é uma outra história...

Migrações

Certas noções circulam e, com freqüência, atravessam

clandestinamente as fronteiras, sem serem detectadas pelos

―alfandegueiros‖. Ao contrário da idéia muito difundida de que uma

noção pertence apenas ao campo disciplinar em que nasceu, algumas

noções migradoras fecundam um novo terreno, onde vão enraizar-se,

ainda que à custa de um contra-senso. B. Mandelbrot chega até a dizer

que ―uma das ferramentas mais poderosas da ciência, a única universal, é

o contra-senso manejado por um pesquisador de talento‖. De fato, um

erro em relação a um sistema de referências pode tornar-se uma verdade

em relação a outro tipo de sistema. A noção de informação, originada da

prática social, adquiriu um sentido científico, preciso, novo, na teoria de

Shannon; depois, migrou para a Biologia para se inserir no gene, onde foi

associada à noção de código; este, originado da linguagem jurídica,

―biologizou-se‖ na noção de código genético. A Biologia Molecular

muitas vezes esquece que, sem essas noções de herança, código,

informação, mensagem, de origem antropossociomorfa, a organização

viva seria ininteligível.

Mais importantes são as transposições de esquemas cognitivos de

uma disciplina para outra: assim, Claude Lévi-Strauss não pode-

108

ria ter elaborado sua antropologia estrutural sem os freqüentes encontros

que teve em Nova York – nos bares, parece – com R. Jakobson, que já

havia elaborado a lingüística estrutural; além disso, Jakobson e Lévi-

Strauss não se teriam conhecido se ambos não fossem refugiados da

Europa: um escapara da Revolução Russa, algumas décadas antes; o outro

deixara a França ocupada pelos nazistas. São inúmeras as migrações de

idéias e de conceitos, as simbioses e transformações teóricas devidas às

migrações de cientistas expulsos das universidades nazistas ou stalinistas.

É a própria comprovação de que um poderoso antídoto contra o

fechamento c o imobilismo das disciplinas vem dos grandes abalos

sísmicos da História (inclusive uma guerra mundial), das convulsões e

revoltas sociais, que, por acaso, provocam encontros e trocas que

permitem a uma disciplina disseminar uma semente da qual nascerá uma

nova disciplina.

Objetos e projetos inter-poli-transdisciplinares

Certos conceitos científicos mantêm a vitalidade porque se recusam

ao fechamento disciplinar. Assim acontece com a história da École des

Annales, que, depois de ter ocupado um espaço marginal na Universidade,

agora é extremamente valorizada. A história da Annales foi constituída

pela transdisciplinaridade e dentro dela: deu lugar a uma profunda

penetração da perspectiva econômica e sociológica na História; em

seguida, uma segunda geração de historiadores introduziu a perspectiva

antropológica, em profundidade, como provam os trabalhos de Duby e Le

Goff sobre a Idade Média. A História, assim fecundada, não pode mais

ser considerada como uma disciplina stricto sensu: é uma ciência

histórica multifocalizadora, multidimensional, em que se acham presentes

as dimensões de outras ciências humanas, e onde a multiplicidade de

perspectivas particulares, longe de abolir, exigem a perspectiva global.

109

Certos processos de ―complexifkação‖ das áreas de pesquisa

disciplinar recorrem a disciplinas muito diversas e, ao mesmo tempo, à

policompetência do pesquisador: um dos casos mais flagrantes é o da Pré-

história, cujo objeto, a partir das descobertas de Leakey, na África Austral

(1959), passou a ser a hominização, processo não somente anatômico e

técnico, mas também ecológico (a substituição da floresta pela savana),

genético, etológico (referente ao comportamento), psicológico,

sociológico, mitológico (traços do que poderia constituir um culto dos

mortos e crenças em um além). Na linha dos trabalhos de Washburn e de

De Vore, a Pré-história de hoje (que se dedica à hominização) refere-se,

por um lado, à etologia dos primatas superiores para tentar conceber

como se teria dado a passagem de uma sociedade primática avançada para

as sociedades dos hominianos; e, por outro lado, à etologia das sociedades

arcaicas, ponto de chegada desse processo. A Pré-história recorre cada

vez mais a técnicas muito diversas, notadamente para datar os esqueletos

e os utensílios, analisar o clima, a fauna, a flora etc. Associando essas

diversas disciplinas em sua pesquisa, o pré-historiador torna-se

policompetente; e quando Coppens, por exemplo, chega ao término de

seu trabalho, a obra resulta na análise das múltiplas dimensões da

aventura humana. Atualmente, a Pré-história é uma ciência

policompetente e multidisciplinar. Esse exemplo mostra que a

constituição de um objeto e de um projeto, ao mesmo tempo

interdisciplinar e transdisciplinar, é que permite criar o intercâmbio, a

cooperação, a policompetência.

Os esquemas cognitivos reorganizadores

Da mesma maneira, a ciência ecológica é constituída sobre um

objeto e um projeto multi e interdisciplinar, a partir do momento da

criação (Tansley, 1935), não só do conceito de nicho ecológico, como

também do de ecossistema (união de um biotopo e uma bio-cenose), isto

é, a partir do momento em que um conceito organiza-

110

dor de caráter sistêmico permitiu articular conhecimentos diversos

(geográficos, geológicos, bacteriológicos, zoológicos e botânicos). A

ciência ecológica pôde não somente utilizar os serviços de diferentes

disciplinas, mas também criar cientistas policompetentes, que possuem,

ademais, a competência dos problemas fundamentais desse tipo de

organização.

O exemplo da hominização e o do ecossistema demonstram que, na

história das ciências, há rupturas de fechamentos disciplinares, de avanço

ou de transformações de disciplinas pela constituição de um novo

esquema cognitivo – o que Hanson chamava de reprodução. O exemplo

da biologia molecular demonstra que esses avanços e transformações

podem acontecer pela invenção de novas hipóteses explicativas, o que

Peirce chamava de abdução. A conjunção das novas hipóteses e do novo

esquema cognitivo permite articulações, organizadoras ou estruturais,

entre disciplinas isoladas e permite conceber a unidade do que era

desunido.

O mesmo acontece com o cosmo, que fora expulso das disciplinas

parcelárias e volta, triunfalmente, com o desenvolvimento da astrofísica,

depois das observações de Hubble sobre a dispersão das galáxias, em

1930; da descoberta da irradiação isótropa em 1965; e da integração de

conhecimentos microfísicos de laboratório para conceber a formação da

matéria e a vida dos astros. Desde então, a astrofísica já não é apenas uma

ciência nascida da união, cada vez mais sólida, entre física, microfísica e

astronomia de observação; é também uma ciência que deu nascimento a

um esquema cognitivo cosmológico: o que permite religar, uns aos

outros, conhecimentos disciplinares muito distintos, para considerar nosso

Universo e sua história e, ao mesmo tempo, introduzir na ciência

(renovando o interesse filosófico por este problema chave) o que, até

então, parecia partir unicamente da especulação filosófica.

Enfim, há casos extremamente fecundos de hibridação. Talvez um

dos momentos mais importantes da história científica tenha a ver com os

encontros ocorridos entre engenheiros e matemáticos,

111

primeiro, em plena guerra dos anos 40, e depois, nos anos 50; esses

encontros fizeram confluir trabalhos de matemática, inaugurados por

Church e Turing, e as pesquisas técnicas para criar máquinas

autogovernadas, que levaram à formação do que Wiener chamou de

cibernética, integrando a teoria da informação concebida por Shannon e

Weaver para a companhia de telefones Bell. Constituiu-se, então, um

verdadeiro nó górdio de conhecimentos formais e de conhecimentos

práticos, às margens das ciências e no limite entre ciência e engenharia.

Esse corpo de idéias e de conhecimentos novos desenvolveu-se para criar

o novo reino da informática e da inteligência artificial. Sua irradiação

atingiu todas as ciências, naturais e sociais. Von Neumann e Wiener são

exemplos típicos da fecundidade das mentes policompetentes, cujas

aptidões podem ser aplicadas a diferentes práticas e à teoria fundamental.

Para além das disciplinas

Esses poucos exemplos, apressados, fragmentados, pulverizados,

dispersos, têm o propósito de insistir na espantosa variedade de

circunstâncias que fazem progredir as ciências, quando rompem o

isolamento entre as disciplinas: seja pela circulação de conceitos ou de

esquemas cognitivos; seja pelas invasões e interferências, seja pelas

complexificações de disciplinas em áreas policompetentes; seja pela

emergência de novos esquemas cognitivos e novas hipóteses explicativas;

e seja, enfim, pela constituição de concepções organizadoras que

permitam articular os domínios disciplinares em um sistema teórico

comum.

Hoje, é preciso tomar consciência desse aspecto, o menos elucidado

da história oficial das ciências, que é um pouco como a face obscura da

lua. Intelectualmente, as disciplinas são plenamente justificáveis, desde

que preservem um campo de visão que reconheça e

112

conceba a existência das ligações e das solidariedades. E mais: só serão

plenamente justificáveis se não ocultarem realidades globais. Por

exemplo, a noção de homem está fragmentada entre diversas disciplinas

das ciências biológicas e entre todas as disciplinas das ciências humanas:

a física é estudada por um lado, o cérebro, por outro, e o organismo, por

um terceiro, os genes, a cultura etc. Esses múltiplos aspectos de uma

realidade humana complexa só podem adquirir sentido se, em vez de

ignorarem esta realidade, forem religados a ela. Com certeza não é

possível criar uma ciência do homem que anule por si só a complexa

multiplicidade do que é humano. O importante é não esquecer que o

homem existe e não é uma ―pura‖ ilusão de humanistas pré-científicos. Só

chegaríamos a um absurdo (de fato, já chegamos a ele em alguns setores

das ciências humanas, onde a inexistência do homem foi decretada, dado

que este bípede não entra nas categorias disciplinares).

Uma outra consciência é igualmente necessária: a que Piaget

chamava de o círculo das ciências, que estabelece a interdependência de

facto das diversas ciências. As ciências humanas se ocupam do homem;

mas este é não apenas um ser físico e cultural, como também um ser

biológico, e as ciências humanas, de certa maneira, devem ter raízes nas

ciências biológicas, que devem ter raízes nas ciências físicas – nenhuma

dessas ciências, evidentemente, é redutível uma à outra. Entretanto, as

ciências físicas não constituem o último e principal pilar sobre o qual são

edificados todos os outros; essas ciências físicas, por mais fundamentais

que sejam, também são ciências humanas, no sentido em que surgem em

uma história humana e em uma sociedade humana. A elaboração do

conceito de energia é inseparável da ―tecnização‖ e da industrialização

das sociedades ocidentais no século XIX. Portanto, em um certo sentido,

tudo é físico, mas, ao mesmo tempo, tudo é humano. O grande problema,

pois, é encontrar a difícil via da interarticulação entre as ciências, que

têm, cada uma delas, não apenas sua linguagem própria, mas também

113

conceitos fundamentais que não podem ser transferidos de uma

linguagem à outra.

O problema do paradigma

Finalmente, é preciso estar consciente do problema do paradigma.

Um paradigma impera sobre as mentes porque institui os conceitos

soberanos e sua relação lógica (disjunção, conjunção, implicação), que

governam, ocultamente, as concepções e as teorias científicas, realizadas

sob seu império. Ora, hoje em dia, emerge de maneira esparsa um

paradigma cognitivo, que começa a conseguir estabelecer pontos entre

ciências e disciplinas não comunicantes. De fato o reino do paradigma da

ordem por exclusão da desordem (que exprimiria a concepção

determinista-mecanicista do Universo) sofreu fissuras em inúmeros

pontos. Em diferentes áreas, a noção de ordem e a noção de desordem, a

despeito das dificuldades lógicas que isto acarreta, exigem, cada vez mais

instantemente, serem concebidas de modo complementar e não apenas

antagônico: no plano teórico, a ligação surgiu com von Neumann (teoria

dos autômatos auto-reprodutores) e von Foerster (order from noise);

impôs-se na termodinâmica de Prigogine, ao demonstrar que fenômenos

de organização aparecem em condições de turbulência; instala-se, sob o

nome de caos, na meteorologia, e a idéia de caos organizador tornou-se

fisicamente central a partir dos trabalhos e reflexões de David Ruelle.

Assim, a idéia de que ordem, desordem e organização devem ser pensadas

em conjunto surge de diferentes pontos de partida. A missão da ciência

não é mais afastar a desordem de suas teorias, mas estudá-la. Não é mais

abolir a idéia de organização, mas concebê-la e introduzi-la para englobar

disciplinas parciais. Eis por que um novo paradigma talvez esteja

nascendo...

114

O ecodisciplinar e o metadisciplinar

Voltemos aos termos interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e

transdisciplinaridade, difíceis de definir, porque são polissêmicos e

imprecisos. Por exemplo: a interdisciplinaridade pode significar, pura e

simplesmente, que diferentes disciplinas são colocadas em volta de uma

mesma mesa, como diferentes nações se posicionam na ONU, sem

fazerem nada além de afirmar, cada qual, seus próprios direitos nacionais

e suas próprias soberanias em relação às invasões do vizinho. Mas

interdisciplinaridade pode significar também troca e cooperação, o que

faz com que a interdisciplinaridade possa vir a ser alguma coisa orgânica.

A multidisciplinaridade constitui uma associação de disciplinas, por conta

de um projeto ou de um objeto que lhes sejam comuns; as disciplinas ora

são convocadas como técnicos especializados para resolver tal ou qual

problema; ora, ao contrário, estão em completa interação para conceber

esse objeto e esse projeto, como no exemplo da hominização. No que

concerne à transdisciplinaridade, trata-se freqüentemente de esquemas

cognitivos que podem atravessar as disciplinas, as vezes com tal

virulência, que as deixam em transe. De fato, são os complexos de inter-

multi-trans-disciplinaridade que realizaram e desempenharam um fecundo

papel na história das ciências; é preciso conservar as noções chave que

estão implicadas nisso, ou seja, cooperação; melhor, objeto comum; e,

melhor ainda, projeto comum.

Enfim, o importante não é apenas a idéia de inter- e de

transdisciplinaridade. Devemos ―ecologizar‖ as disciplinas, isto é, levar

em conta tudo que lhes é contextual, inclusive as condições culturais e

sociais, ou seja, ver em que meio elas nascem, levantam problemas, ficam

esclerosadas e transformam-se. É necessário também o ―metadisciplinar‖;

o termo ―meta‖ significando ultrapassar e conservar. Não se pode demolir

o que as disciplinas criaram; não se pode romper todo o fechamento: há o

problema da disciplina, o problema da ciência, bem como o problema da

vida; é preciso que uma disciplina seja, ao mesmo tempo, aberta e

fechada.

115

Afinal, de que serviriam todos os saberes parciais senão para formar

uma configuração que responda a nossas expectativas, nossos desejos,

nossas interrogações cognitivas? Deve-se pensar também que o que está

além da disciplina é necessário à disciplina para que não seja

automatizada e esterilizada; o que nos remete a um imperativo cognitivo,

já formulado há três séculos por Biaise Pascal, que justifica as disciplinas

e conserva, ao mesmo tempo, um ponto de vista metadisciplinar: ―Uma

vez que todas as coisas são causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes,

mediatas e imediatas, e todas estão presas por um elo natural e

imperceptível, que liga as mais distantes e as mais diferentes, considero

impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tanto quanto conhecer

o todo sem conhecer, particularmente, as partes.‖

De alguma forma, ele convidava a um conhecimento em

movimento, a um conhecimento em vaivém, que progride indo das partes

ao todo e do todo às partes; o que é nossa ambição comum.

116

ANEXO 2

A noção de sujeito

―Agir, viver, conservar o ser, essas três palavras significam a mesma coisa.‖

ESPINOSA

―A substância viva é o ser que é sujeito em verdade.‖

HEGEL

ESSA É UMA NOÇÃO ao mesmo tempo evidente e misteriosa. É uma

evidência perfeitamente banal, uma vez que qualquer um diz ―Eu‖. Quase

todas as línguas têm essa primeira pessoa do singular; se não têm o

pronome, têm pelo menos o verbo na primeira pessoa do singular, como

em latim. E há uma segunda evidência reflexiva, revelada por Descartes:

Não posso duvidar que duvido; logo, eu penso. Se penso, logo, eu sou,

isto é, eu existo na primeira pessoa como sujeito. Então surge o mistério:

o que é este ―eu‖ e este ―sou‖, que não é simplesmente ―é‖?

Será uma aparência secundária ou uma realidade fundamental? É

uma realidade fundamental para qualquer tradição filosófica. É o que

parece, também, quando Moisés pergunta ao Ser que lhe surge sob a

forma de uma sarça ardente: ―Mas quem és tu?‖ A resposta – pelo menos

tal como é traduzida em francês* – é: ―Eu sou aquele que é.‖ Significa

que o Deus de Moisés é a subjetividade absoluta.

Mas, por outro lado, quando se procura considerar a sociedade e o

sujeito de forma determinista, então o sujeito desaparece.

_____________________

* Igualmente em português. (N. da T.)

117

De fato, nossa mente está dividida em dois, conforme olhemos o

mundo de modo reflexivo ou compreensivo, ou de modo científico e

determinista. O sujeito aparece na reflexão sobre si mesmo e conforme

um modo de conhecimento intersubjetivo, de sujeito a sujeito, que

podemos chamar de compreensão. Contrariamente, ele desaparece no

conhecimento determinista, objetivista, reducionista sobre o homem e a

sociedade. De alguma forma, a ciência expulsou o sujeito das ciências

humanas, na medida em que propagou entre elas o princípio determinista

e redutor. O sujeito foi expulso da Psicologia, expulso da História,

expulso da Sociologia; e, pode-se dizer, o ponto comum às concepções de

Althusser, Lacan, Lévi-Strauss foi o desejo de liquidar o sujeito humano.

Entretanto, entre os pensadores do ser estruturalista, houve uma

volta tardia ao sujeito, como em Foucault, em Banhes; mas foi uma volta

existencial, que acompanhou a volta do eros, a volta da literatura, e não

uma volta do sujeito ao âmago da teoria.

O que eu gostaria de propor é uma definição do sujeito, partindo

não da afetividade, não do sentimento, mas de uma base biológica.

Para esta definição, é preciso admitir um certo número de idéias que

hoje começam a ser introduzidas no campo científico. Primeiramente, a

idéia de autonomia inseparável da idéia de auto-organização.

A autonomia de que falo não é mais uma liberdade absoluta,

emancipada de qualquer dependência, mas uma autonomia que depende

de seu meio ambiente, seja ele biológico, cultural ou social. Assim, um

ser vivo, para salvaguardar sua autonomia, trabalha, despende energia, e

deve, obviamente, abastecer-se de energia em seu meio, do qual depende.

Quanto a nós, seres culturais e sociais, só podemos ser autônomos a partir

de uma dependência original em relação à cultura, em relação a uma

língua, em relação a um saber. A autonomia não é possível em termos

absolutos, mas em termos relacionais e relativos.

118

Em segundo lugar, precisamos do conceito de indivíduo como pré-

requisito ao conceito de sujeito. Ora, a noção de indivíduo não é

absolutamente fixa e estável. Como sabem, houve duas tendências

contrárias na história do pensamento biológico: para uma delas a única

realidade é o indivíduo, porque, fisicamente, vemos apenas indivíduos,

nunca a espécie; para a outra, a única realidade é a espécie, já que os

indivíduos não passam de amostras efêmeras. Conforme um certo olhar, o

indivíduo desaparece; conforme um outro olhar, é a espécie que

desaparece. Essas duas visões negam-se reciprocamente. Mas acredito

que devemos tratar as duas da mesma maneira que Niels Bohr tratava a

onda e o corpúsculo: são duas noções aparentemente antagônicas, que

são, no entanto, complementares para dar conta de uma mesma realidade.

Eis, portanto, uma perspectiva que nos leva a procurar um elo

complexo entre indivíduo e espécie; e podemos aplicar o mesmo

raciocínio à relação indivíduo/sociedade.

Do ponto de vista biológico, o indivíduo é o produto de um ciclo de

reprodução; mas este produto é, ele próprio, reprodutor em seu ciclo, já

que é o indivíduo que, ao se acasalar com indivíduo de outro sexo, produz

esse ciclo. Somos, portanto, produtos e produtores, ao mesmo tempo.

Assim também, quando se considera o fenômeno social, são as interações

entre indivíduos que produzem a sociedade; mas a sociedade, com sua

cultura, suas normas, retroage sobre os indivíduos humanos e os produz

enquanto indivíduos sociais dotados de uma cultura.

Assim, temos agora uma noção bastante complexa da autonomia e

do indivíduo; falta-nos a noção de sujeito. Para chegar à noção de sujeito,

é preciso pensar que toda organização biológica necessita de uma

dimensão cognitiva. Os genes constituem um patrimônio hereditário de

natureza cognitiva/informacional da célula. Da mesma maneira, o ser

vivo, seja ele dotado ou não de um sistema neuro-cerebral, retira

informações de seu meio ambiente e exerce uma atividade cognitiva

inseparável de sua prática de ser vivo. Ou seja, a dimensão cognitiva é

indispensável à vida.

119

Essa dimensão cognitiva pode ser chamada de computacional. A

computação é o tratamento de estímulos, de dados, de signos, de

símbolos, de mensagens, que nos permite agir dentro do universo exterior,

assim como de nosso universo interior, e conhecê-los.

E isto é fundamental: a natureza da noção do sujeito tem a ver com

a natureza singular de sua computação, desconhecida por qualquer

computador artificial que possamos fabricar. Essa computação do ser

individual é a computação que cada um faz de si mesmo, por si mesmo e

para si mesmo. É um cômputo. O cômputo é o ato pelo qual o sujeito se

constitui posicionando-se no centro de seu mundo para lidar com ele,

considerá-lo, realizar nele todos os atos de preservação, proteção, defesa

etc

Eu diria, portanto, que a primeira definição do sujeito seria o

egocentrismo, no sentido literal do termo: posicionar-se no centro de seu

mundo. De resto, o ―Eu‖, como já observamos várias vezes, é o pronome

que qualquer um pode dizer, mas ninguém pode dizê-lo em meu lugar. O

―Eu‖ é o ato de ocupação de um espaço que se torna centro do mundo. E,

quanto a isso, diria que há um princípio ―logístico‖ de identidade, que

pode ser resumido na fórmula: ―Eu [je] sou eu [moi]”*. ―Eu‖ [je] é o ato

de ocupação do espaço egocêntrico; ―eu‖ [moi] é a objetivação do ser que

ocupa esse espaço. ―Eu [jé] sou eu [moi] é o princípio que permite

estabelecer, a um só tempo, a diferença entre o ―Eu‖ (subjetivo) e o ―eu‖

(sujeito objetivado), e sua indissolúvel identidade. Ou seja, a identidade

do sujeito comporta um princípio de distinção, de diferenciação e de

reunificação. Esse princípio bastante complexo é absolutamente

indispensável, pois permite qualquer tratamento objetivo de si mesmo.

Quando uma bactéria trata de suas moléculas, ela as trata como objetos,

mas trata como objetos que lhe pertencem. E trata de si mesma, para si

mesma.

_____________________

* No original, Je suis moi. A escola francesa de Psicanálise costuma utilizar o je no

sentido de instância psicanalítica encarregada de funções; o moi refere-se precisamente a

uma representação da imagem que o sujeito tem de ―si mesmo‖ (ou de seu sentimento de

identidade), o ego. Aqui utilizamos ―Eu‖ e ―eu‖ para traduzir, respectivamente, je e moi.

(N. daT.)

120

Eis, portanto, um princípio que, por esta separação/unificação do

―Eu‖ subjetivo e do ―eu‖ objetivo, permite efetivamente todas as

operações. Este princípio comporta a capacidade de se referir ao mesmo

tempo a ―si‖ (auto-referência) e ao mundo exterior (exo-referência) – de

distinguir, portanto, o que é exterior a si. ―Auto-exo-referência‖ quer

dizer que eu posso distinguir entre o ―eu‖ e o ―não-eu‖, o ―Eu‖ e o ―não-

Eu‖, bem como entre o ―eu‖ e os outros ―eu‖, o ―Eu‖ e os outros ―Eu‖.

Aliás, nós, humanos, temos dois níveis de subjetividade: temos nossa

subjetividade cerebral, mental, da qual vou falar; e temos a subjetividade

de nosso organismo, protegida por nosso sistema imunológico. O sistema

imunológico opera a distinção entre o ―si‖ e o ―não-si‖; quer dizer, entre

as entidades moleculares que não têm a carteira de identidade singular do

indivíduo e são rejeitadas, perseguidas, vencidas, enquanto as que

possuem a carteira de identidade são aceitas, reconhecidas e protegidas.

Portanto, a distinção radical imediata do ―si‖, do ―não-si‖, do ―eu‖ e dos

―outros‖ distribui valores concomitantemente: tudo o que vem do ―eu‖, do

―si‖, do ―Eu‖ é valorizado e deve ser protegido, defendido; o resto é

indiferente ou combatido. Eis o primeiro princípio de identidade do

sujeito que permite a unidade subjetiva/objetiva do ―Eu sou eu‖ e a

distinção entre o exterior e o interior.

Há um segundo princípio de identidade, inseparável, que é: ―Eu‖

continua o mesmo a despeito das modificações internas do ―eu‖ (mudança

de caráter, de humor), do ―si mesmo‖ (modificações físicas devidas à

idade). De fato, o indivíduo modifica-se somaticamente do nascimento à

morte. Todas as suas moléculas são substituídas inúmeras vezes, assim

como a maioria de suas células. Há modificações extremas no interior do

―eu‖, e chegarei a elas. A despeito disso tudo, o sujeito continua o

mesmo. Ele diz simplesmente: ―Eu era criança‖, ―Eu estava irado‖, mas é

sempre o mesmo ―Eu‖, ao passo que os caracteres exteriores ou físicos do

indivíduo se modificam. Aí está o segundo princípio de identidade, esta

permanência da auto-referência, apesar das transformações e através das

transformações.

A esse respeito, chegaremos a um terceiro e a um quarto princí-

121

pios: um princípio de exclusão e um princípio de inclusão, que estão

ligados de forma inseparável. O princípio de exclusão pode ser assim

enunciado: se pouco importa quem possa dizer ―Eu‖, ninguém pode dizê-

lo em meu lugar. Portanto o ―Eu‖ é único para cada um. Vemos isso no

caso dos gêmeos homozigotos: não há qualquer singularidade somática

que os diferencie, são exatamente idênticos geneticamente, mas são não

só dois indivíduos, mas também dois sujeitos distintos. É confortável ter

uma cumplicidade, um código comum, intuições recíprocas, mas nenhum

dos gêmeos diz ―Eu‖ no lugar do outro. Este é o princípio de exclusão.

Já o princípio de inclusão é, ao mesmo tempo, complementar e

antagônico. Posso inscrever um ―nós‖ em meu ―Eu‖, como eu posso

incluir meu ―Eu‖ em um ―nós‖: assim, posso introduzir, em minha

subjetividade e minhas finalidades, os meus, meus parentes, meus filhos,

minha família, minha pátria. Posso incluir em minha subjetividade aquela

(aquele) que amo e dedicar meu ―Eu‖ ao amor, seja à pessoa amada, seja

à pátria comum. Evidentemente, existe antagonismo entre inclusão e

exclusão. Como exemplo, temos as mães que se sacrificam por sua prole

e dão suas vidas para salvá-la e as mães que abandonam ou comem seus

filhos para salvar a si próprias. Temos o patriota que vai sacrificar-se por

sua pátria e temos o desertor que vai salvar sua própria pele. Ou seja,

temos todos, em nós, este duplo princípio que pode ser diferentemente

modulado, distribuído; ou seja, o sujeito oscila entre o egocentrismo

absoluto e a devoção absoluta.

O princípio de inclusão é tão fundamental quanto os outros

princípios. Supõe, para os humanos, a possibilidade de comunicação entre

os sujeitos de uma mesma espécie, de uma mesma cultura, de uma mesma

sociedade.

Além disso, há a tomada de posse do sujeito por um ―superego‖.

Aqui, uso como imagem esta tese de Julian Jaynes, em La Naissance de

la conscience dans l’effondrement de l’esprit bicameral1 (O nasci-

_____________________

1 Traduzido do inglês por G. Gaborit de Montjou, PUF, 1994.

122

mento da consciência no desmoronamento da mente bicameral). Segundo

sua teoria, os indivíduos dos impérios da Antigüidade possuíam duas

câmaras em suas mentes. Uma câmara era a da subjetividade pessoal, das

ocupações, da família, dos filhos, de tudo o que lhes concernia enquanto

indivíduos privados. A outra câmara era ocupada pelo poder teocrático-

político, pelo rei, pelo império, e, quando o poder falava, o indivíduo-

sujeito era possuído e obedecia às injunções desta segunda câmara. E,

segundo Jaynes, a consciência nasce no momento em que se abre uma

brecha entre as duas câmaras, que, assim, podem se comunicar. Então, o

indivíduo sujeito pode dizer a si mesmo: ―Mas o que é a cidade, o que é a

política?‖ E, eventualmente, tornar-se cidadão.

É preciso destacar, aqui, algo de muito importante: no ―Eu sou eu‖

já existe uma dualidade implícita – em seu ego, o sujeito é potencialmente

outro, sendo, ao mesmo tempo, ele mesmo. É porque o sujeito traz em si

mesmo a alteridade que ele pode comunicar-se com outrem. É por ser o

produto unitário de uma dualidade (reprodução por cisão, nos

unicelulares; por encontro de dois seres de sexos diferentes, na maioria

dos seres vivos) que ele traz em si a atração por um outro ego. A

compreensão permite considerar a outro não apenas como ego alter, um

outro indivíduo sujeito, mas também como alter ego, um outro eu mesmo,

com quem me comunico, simpatizo, comungo. O princípio de

comunicação está, pois, incluído no princípio de identidade e manifesta-se

no princípio de inclusão.

Como conseqüência do princípio de exclusão, há sempre uma

incomunicabilidade do que existe de mais subjetivo em nós; mas, graças à

linguagem, podemos comunicar, pelo menos, nossa incomunicabilidade.

Podemos, pois, enunciar que a qualidade própria a todo indivíduo

sujeito não poderia ser reduzida ao egoísmo; ao contrário, ela permite a

comunicação e o altruísmo.

Claro, o sujeito possui também um caráter existencial, porque é

inseparável do indivíduo, que vive de maneira incerta, aleatória, e

123

acha-se, do nascimento à morte, em um meio ambiente incerto, muitas

vezes ameaçador e hostil.

Agora, posso me referir a esta idéia de MacLean sobre o cérebro do

ser humano. É um cérebro triúnico; tal como na Santíssima Trindade há

três seres que são distintos, sendo, simultaneamente, o mesmo; tal como

possuímos um cérebro réptil ou paleocéfalo, que é a sede de nossos

impulsos mais elementares: a agressividade, o cio; possuímos um cérebro

mamífero, com o sistema límbico, que permite o desenvolvimento da

afetividade; enfim, temos o córtex e, sobretudo, o neocórtex, que

desenvolveu incrivelmente o cérebro do Homo sapiens e é a sede das

operações da racionalidade. Temos, portanto, essas três instâncias. O

interessante é que não há hierarquia estável entre as três: não é a razão

que comanda os sentimentos e controla os impulsos. Podemos ter uma

permuta de hierarquias e talvez nossa agressividade utilize nossas

capacidades racionais para atingir seus fins. Há uma extraordinária

instabilidade, uma hierarquia permutativa entre as três instâncias, mas o

notável é que o ―Eu‖ ora é ocupado pelo doutor Jekyll, ora por Mister

Hyde. Nos casos de duplicação de personalidade, temos duas pessoas

inteiramente diferentes, que têm escritas diferentes, caracteres diferentes,

às vezes até doenças diferentes, e a pessoa que domina é a que diz ―Eu‖,

isto é, a que ocupa o lugar do sujeito. E digo mais: o que chamamos de

nossas mudanças de humor são modificações de personalidade. Não

apenas desempenhamos papéis diferentes, mas também somos tomados

por personalidades diferentes durante todo o percurso de nossa vida. Cada

um de nós é uma sociedade de várias personalidades. Mas há este ―Eu‖

subjetivo, esta espécie de ponto fixo, que é ocupado ora por uma, ora por

outra.

Quando se observa a concepção clássica do ―eu‖ [moi] (ego)

segundo Freud, esse ―eu‖ nasceu da dialética entre o ―isso‖ instintivo, que

vem das entranhas biológicas, e o ―superego‖, que, para Freud, é a

autoridade paterna, mas que pode transformar-se em um ―superego‖ mais

amplo, o da pátria, da sociedade. Esse ―eu‖ está em incessante

124

dialética com o ―isso‖ e o ―superego‖. Aí também há um problema de

ocupação. Quando somos possuídos pelo ―superego‖, continuamos a dizer

―Eu‖, da mesma maneira que dizemos ―Eu‖ quando perseguimos fins

meramente egoístas. Vocês dizem ―Eu‖ quando estão mergulhados nas

mais austeras operações intelectuais e dizem igualmente ―Eu‖ quando se

entregam às mais desbragadas brincadeiras eróticas.

O ―Eu‖, enquanto ―Eu‖, emerge tardiamente na experiência da

humanidade. Como sabem, as crianças falam primeiro na terceira pessoa.

Podemos dar um valor, pelo menos simbólico, ao que Lacan chamara de o

―estádio do espelho‖, momento muito importante para a constituição da

identidade do sujeito: ele objetiva um ―eu‖ [moi] que não é outro senão o

―Eu‖ que olha, e, nesse estádio, opera-se a ligação entre a imagem

objetiva e o ser subjetivo. Em meu livro O homem e a morte, insisti na

forte presença do ―duplo‖ na humanidade arcaica: o duplo, espectro

objetivo e imaterial de seu próprio ser, acompanha-o incessantemente e é

reconhecido na sombra, no reflexo. É o duplo que perambula nos sonhos

enquanto o corpo fica imóvel. Esse duplo é, pois, uma experiência da vida

quotidiana antes de ser o ghost (fantasma), que vai se libertar com a

morte, enquanto o corpo vai se decompor. O duplo é um modo

cristalizado da experiência do ―Eu sou eu‖, em que o ―eu‖ assume, a

princípio, justamente a forma desse gêmeo real, mas imaterial. Esse duplo

vai interiorizar-se; nas sociedades históricas, dará nascimento à alma,

sendo a alma, aliás, muito freqüentemente relacionada ao sopro, como

entre os gregos e os hebreus. A ―alma‖, o ―espírito‖ são maneiras de

nomear, de representar a interioridade subjetiva em termos que designam

uma realidade objetiva específica. Podemos dizer de qualquer um: ―Ele

não tem alma‖, e compreende-se o que isso quer dizer. Portanto, temos

diferentes modos de nomear essa realidade subjetiva, que, para nós, não

está estritamente limitada ao ―Eu‖ e ao ―eu‖, mas, justamente nesta

dialética entre o ―Eu‖ e o ―eu‖, assume a forma de alma e de espírito, e

ressurge com o que chamamos de a ―consciência‖.

E é aí que a definição de sujeito, que lhes proponho, é inteira-

125

mente diversa da que define o sujeito pela consciência. A consciência, em

minha concepção, é a emergência última da qualidade do sujeito. É uma

emergência reflexiva, que permite o retorno da mente a si mesma, em

circuito. A consciência é a qualidade humana última e, sem dúvida, a

mais preciosa, pois o que é último é, ao mesmo tempo, o que há de

melhor e de mais frágil. E, de fato, a consciência é extremamente frágil e,

em sua fragilidade, pode enganar-se muitas vezes.

Claro, a afetividade para nós está estreitamente ligada à

subjetividade. A afetividade se desenvolve nos mamíferos dos quais

herdamos a extrema instabilidade: os macacos, por exemplo, têm

temperamentos muito violentos, passam da cólera à mansidão etc. Somos

herdeiros da afetividade dos mamíferos e a desenvolvemos. A afetividade,

portanto, está humanamente ligada à idéia de sujeito, mas esta não é a

qualidade originária. Contudo, acredita-se – na falta de uma teoria bio-

lógica do sujeito – que a subjetividade seja um componente afetivo que

deva ser abolido para se chegar a um conhecimento correto. Mas a

subjetividade humana não é redutível à afetividade que ela comporta,

tanto quanto não é redutível à consciência.

Agora, é preciso examinar o elo entre a idéia de sujeito e a idéia de

liberdade. A liberdade supõe, ao mesmo tempo, a capacidade cerebral ou

intelectual de conceber e fazer escolhas, e a possibilidade de operar essas

escolhas dentro do meio exterior. Sem dúvida há casos em que se pode

perder toda a liberdade exterior, estar numa prisão, mas conservar a

liberdade intelectual.

O sujeito pode, eventualmente, dispor de liberdade e exercer

liberdades. Mas existe toda uma parte do sujeito que não é apenas

dependente, mas submissa. E, de resto, não sabemos realmente quando

somos livres.

Então, há um primeiro princípio de incerteza, que seria o seguinte:

eu falo, mas, quando falo, quem fala? Sou ―Eu‖ só quem fala? Será que,

por intermédio do meu ―eu‖, é um ―nós‖ que fala (a coletividade calorosa,

o grupo, a pátria, o partido a que pertenço)?

126

Será um ―pronome indefinido‖ que fala (a coletividade fria, a organização

social, a organização cultural que dita meu pensamento, sem que eu saiba,

por meio de seus paradigmas, seus princípios de controle do discurso que

aceito inconscientemente)? Ou é um ―isso‖, uma máquina anônima

infrapessoal, que fala e me dá a ilusão de que fala de mim mesmo? Nunca

se sabe até que ponto ―Eu‖ falo, até que ponto ―Eu‖ faço um discurso

pessoal e autônomo, ou até que ponto, sob a aparência que acredito ser

pessoal e autônoma, não faço mais que repetir idéias impressas em mim.

Contrariamente aos dois dogmas em oposição – para um, o sujeito é

nada; para o outro, o sujeito é tudo –, o sujeito oscila entre o tudo e o

nada. Eu sou tudo para mim, não serei nada no Universo. O princípio do

egocentrismo é o princípio pelo qual eu sou tudo; mas já que todo o meu

mundo se desintegrará com a minha morte, justamente por essa

mortalidade, eu sou nada. O ―Eu‖ é um privilégio inaudito e, ao mesmo

tempo, a coisa mais banal, porquanto todo mundo pode dizer ―Eu‖. Da

mesma forma, o sujeito oscila entre o egoísmo e o altruísmo. No egoísmo,

eu sou tudo, e os outros são nada; mas, no altruísmo, eu me dou, me

devoto, sou inteiramente secundário para aqueles aos quais me dou. O

indivíduo sujeito recusa a morte que o devora; e, no entanto, é capaz de

oferecer sua vida por suas idéias, pela pátria ou pela humanidade. Aí está

a complexidade própria da noção de sujeito.

Uma grande parte, a parte mais importante, a mais rica, a mais

ardorosa da vida social, vem das relações intersubjetivas. Cabe até dizer

que o caráter intersubjetivo das interações no meio da sociedade, o qual

tece a própria vida dessa sociedade, é fundamental. Para conhecer o que é

humano, individual, interindividual e social, é preciso unir explicação e

compreensão. O próprio sociólogo não é uma mente apenas objetiva; ele

faz parte do tecido intersubjetivo. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer

que, potencialmente, todo sujeito é não apenas ator, mas autor, capaz de

cognição/escolha/deci-

127

são. A sociedade não está entregue somente, sequer principalmente, a

determinismos materiais; ela é um mecanismo de confronto/cooperação

entre indivíduos sujeitos, entre os ―nós‖ e os ―Eu‖.

Para concluir, o sujeito não é uma essência, não é uma substância,

mas não é uma ilusão. Acredito que o reconhecimento do sujeito exige

uma reorganização conceptual que rompa com o princípio determinista

clássico, tal como ainda é utilizado nas ciências humanas, notadamente,

sociológicas. No quadro de uma psicologia behaviorista, é impossível,

claro, conceber um sujeito. Portanto, precisa-se de uma reconstrução,

precisa-se das noções de autonomia/dependência; da noção de

individualidade, da noção de autoprodução, da concepção de um elo

recorrente, onde estejam, ao mesmo tempo, o produto e o produtor. É

preciso também associar noções antagônicas, como o princípio de

inclusão e exclusão. É preciso conceber o sujeito como aquele que dá

unidade e invariância a uma pluralidade de personagens, de caracteres, de

potencialidades. Isso, porque, se estamos sob a dominação do paradigma

cognitivo, que prevalece no mundo científico, o sujeito é invisível, e sua

existência é negada. No mundo filosófico, ao contrário, o sujeito torna-se

transcendental, escapa à experiência, vem do puro intelecto e não pode ser

concebido em suas dependências, em suas fraquezas, em suas incertezas.

Em ambos os casos, suas ambivalências, suas contradições não podem ser

pensadas nem sua centralidade e sua insuficiência, seu sentido e sua

insignificância, seu caráter de tudo e nada a um só tempo. Precisamos,

portanto, de uma concepção complexa do sujeito.

128

FIM DO LIVRO