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A Cabeça do Cachorro - Alexandra Horowitz

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Há 14 mil anos, antes de se tornarem nossos melhores amigos, os cãesconquistaram um espaço ao lado dos humanos, ajudando-os em umavariedadede tarefas, desde farejar presaspara a caça até proteger seuslares. Extremamente leais e companheiros, os cães possuem incrívelfacilidade para compreender nossos comandos e uma prontidão naturalparaobedecê-los.

Sem dúvida alguma, eles são os animais que melhor nos entendem...mas o que nós sabemos sobre os cães? O que pensa omelhor amigo dohomem?

A psicóloga e especialista em comportamento animal AlexandraHorowitz reúne sua paixão pelo universo canino com as mais recentesdescobertas cientí icas para explicar como os cachorros percebem omundoaoseuredor,comointeragemunscomosoutros,equalanaturezadorelacionamentodelescomoshumanos.

Nodecorrerdo texto, a autoradesmisti ica algumasdas crençasmaisarraigadasemrelaçãoaosinstintoscaninoserevelaaverdadeportrásdocomportamentodeles.Porexemplo,muitosdonosacreditamqueseuscãespercebemaíndoledaspessoas,rosnandoparaaquelasquesãosuspeitas,mas, segundoaautora,o comportamentodocãoé in luenciadopornossoestado de espírito. Ou seja, quando encontramos alguém com quem nãosimpatizamos, o cachorro simplesmente reconhece e re lete essesentimento. Outro mito muito comum é a "cara de culpado", que oscachorros supostamente fazem ao serem pegos em plena travessura. Aocontrário do que se acredita, esse comportamento não signi ica que oanimal tem consciência de ter feito algo errado.Na verdade, a expressãodeculpanãopassadeumareaçãonaturaldocãoaopercebera irritaçãonodono.

Divertido e esclarecedor, A cabeça do cachorro lança um novo olharsobre o mundo dos cães: desta vez, levando em conta o ponto de vistadeles.

AlexandraHorowitz,Ph.D.éprofessoradepsicologianoBarnardCollege,ColumbiaUniversity.Elaédoutoraemciência cognitivapelaUniversityofCalifornia, emSanDiego, e estudoua cogniçãodehumanos, rinocerontes,

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primatase cachorros.ElaeomaridovivememNovaYorkcomFinnegan,umcachorromestiçodepersonalidadeforte.

Paraoscães

AgradecimentosAosseguintescães:

TodosqueconheceramPumpernickelnãosesurpreenderãocomofatodequeosmaioresagradecimentossãoparaela,pornosescolhernoabrigoepormeproporcionaroprazerincríveldeconhecê-la.Agradeciaelatantasvezes desde então, com o queijo substituindo as palavras que não pudeencontrar.ObrigadaaFinnegan,porserseuprópriocãoeporserumcãotão completamente cão. Cada dia ica melhor quando ele vem correndodesesperadamenteparamim.Agradeçoaos cãesdeoutrora: aAster,queaguentouumaporçãodebesteiras infantisemeensinoucomosermenosegoísta; a Chester, que conseguia sorrir e rosnar ao mesmo tempo; aBecketteHeidi,queaomorrerdestacaramoqueéprecioso;eaBarnaby,queemsuafelinidadeenfatizouoqueéumcão.

Àsseguintespessoas:

Dizemqueédi ícilescrever.Seassimfor,estenãoéumlivro,pois foiumprazerescrevê-lo, comoéumprazerobservareestar comcãesepensarpensamentosdecãesotempointeiro.Tiveaindamaisprazerporentregaro livro a pessoas na Scribner, com quem pude contar para transformarmeu amontoado de capítulos em um livro de verdade. Sou grata a Colin

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Alémdocão,umlivroéomelhoramigodohomem.

Dentrodocão,aescuridãonãopermitealeitura.

—AtribuídoaGrouchoMarx

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PrefácioPrimeiro,vocêvêacabeça.Porcimadotopodomorro,apareceumfocinho,babando.Aindanãoépossívelvernadaligadoaele.Ummembrosurgee,emumasucessãolenta,éseguidopelosegundo,terceiroequartomembros,quesuportamseisquilosentreeles.Owol hound,noventacentímetrosdealturaatéoombroeummetroemeiodecaboarabo,espiaachihuahuadepelolongo,metadedaalturamédiadeumcão,ocultapelagramaentreospésdadona.Achihuahuapesatrêsquilos,ecada um deles treme. Com um salto lânguido e as orelhas esticadas para o alto, o wol hound seposicionadiantedela.Achihuahuaolharecatadamenteparalonge;owolfhoundsedobraparaficarnamesmaalturadela emorde a lateral de seu corpo.A chihuahuaolhade volta para o cão, quelevanta o traseiro no ar, rabo hirto, preparando-se para o ataque. Em vez de fugir desse perigoaparente,achihuahua imitaaposedowol hound,emordeacaradele,abraçandoaquele focinhocomaspatasminúsculas.Elescomeçamabrincar.

Durante cinco minutos, esses cães rolam, se agarram com força, semordeme se atiramum sobre o outro.Owol hound se deita de lado e acachorrinharespondecomataquesàcara,àbarrigaeàspatasdele.Umapancada forte do cão faz a chihuahua recuar rapidamente e se esquivar,intimidada,tentando icarforadeseualcance.Elelate,pulae icaempédenovo com um estrondo. Como resposta, a chihuahua corre até umadaquelaspataseamorde, com força.Elesestãoemummeio-abraço—owol houndcomabocaao redordo corpoda chihuahuaque,por suavez,chutaacaradele—quandoodonodáumpuxãonacoleiradowol hound,levantando-oeafastando-o.Achihuahuaserecompõe,olhaparaeles, lateumavezeandadevagaratésuadona.

Esses cachorros são tão incomparáveis quepoderiam ser de espéciesdiferentes. A facilidade com que brincam um com o outro sempre meintrigou.Ocãodecaçamordeu,abocanhoueavançousobreachihuahua;noentanto,acadelinhanãorespondeucommedo,masnamesmamoeda.Oque explica a capacidade deles para brincarem juntos? Por que o cão decaçanãovêachihuahuacomoumapresa?Porqueachihuahuanãovêowol houndcomoumpredador?Arespostanadatemavercomilusõesdegrandezacaninaporpartedachihuahuaoufaltadeimpulsopredadorporpartedowol hound.Tampoucosetratadeuminstintoinatoparaassumirocomando.

Háduasformasdeaprendercomoabrincadeirafunciona—eoqueoscães brincalhões pensam, percebem e dizem: nascer cachorro ou passarmuitotempoobservandocuidadosamenteessesanimais.Aprimeiraopçãonão estava disponível paramim. Venha comigo enquanto descrevo o queaprendiobservando.

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Souumaamantedoscães.

Minhacasasempreteveum.Minhaa inidadecomelescomeçoucomocachorro de minha família, Aster: olhos azuis, rabo cortado e o hábitonoturno de vagar pela vizinhança, o que frequentemente me deixavaacordada até tarde, de pijama e preocupada, esperando por seu retorno.Pormuitotempo,viviolutopelamortedeHeidi,umaspringerspanielquecorreu excitada — minha imaginação infantil se lembra da línguapenduradaparaforadabocaedaslongasorelhasesticadasparatráspelovigor feliz de sua corrida — para debaixo dos pneus de um carro naestrada próxima à nossa casa. Já na Universidade, observava comadmiraçãoeafeiçãoBeckett,umavira-lataadotada, comsanguedechow-chow,enquantoelaestoicamentemeobservavasairdecasa.

E agora, aos meus pés, está a forma quente, enrolada e ofegante dePumpernickel— Pump —, uma vira-lata que viveu comigo por todos osseus16anoseaolongodetodaaminhavidaadulta.Comeceicadaumdemeus dias em cinco estados, cinco anos de pós-graduação e quatroempregoscomabatidadeseurabonochão,saudando-meaoouvirmeusprimeirosmovimentos pelamanhã. Como qualquer um que se consideraumcinófiloconcordará,nãoconsigoimaginarminhavidasemessacadela.

Souumaamantedecachorros,amooscães.Tambémsoucientista.

Estudo o comportamento animal. Do ponto de vista pro issional, tomocuidadoparanãoantropomor izarosanimais,atribuindo-lhessentimentos,pensamentosedesejosqueusamosparanosdescrever.Aoaprendercomoestudar o comportamento dos animais, aprendi e usei o código doscientistas para descrever ações: ser objetivo; não explicar umcomportamento apelando para um processo mental quando a explicaçãopor meio de processos mais simples é su iciente; ter em mente que umfenômeno que não pode ser observado em público nem pode ser

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con irmado não faz parte da ciência. Hoje, como professora decomportamento animal, cognição comparativa e psicologia, dou aulasusandolivrosdidáticosbrilhantesquelidamcomfatosquanti icáveis.Elesdescrevem tudo — de explicações hormonais e genéticas até respostascondicionadas, padrões ixos de ação e ótimas taxas de forrageio —, nomesmotomobjetivoedesapaixonado.

Mas...

A maioria das perguntas que meus alunos fazem não é respondidanesses textos. Nas conferências em que apresento minhas pesquisas,outros acadêmicos invariavelmente direcionam as conversas pós-palestraparasuasexperiênciascomseusanimaisdeestimação.Eaindapermaneçocomasmesmasperguntasquesempreme izsobremeucachorro—semnenhuma profusão de respostas. A ciência, conforme praticada edemonstrada nos livros didáticos, raramente aborda nossas experiênciasdeconvíviocomnossosanimaisbuscandoentendersuasmentes.

Nos primeiros anos de minha pós-graduação, quando comecei aestudar a ciência da mente, com um interesse especial na mente deanimais não humanos, nunca me ocorreu estudar os cachorros. Elespareciam tão familiares, tão bem compreendidos. Não há nada a seraprendido sobre eles, meus colegas a irmavam: os cães são simples,criaturas felizesqueprecisamosadestrar,alimentareamar,e issoé tudocom relação a eles. Os cães não oferecem dados para estudo. Essa era acrença básica dos cientistas. Meu orientador de tese estudou,respeitavelmente,babuínos:osprimatassãoosanimaismaisbem-vistosnocampo da cognição animal. A pressuposição é que o lugarmais provávelpara se encontrar habilidades e cognição semelhantes às nossas é entrenossos irmãos primatas. Esse era, e permanece sendo, o ponto de vistapredominantedoscientistascomportamentais.Piorainda,osdonosdecãespareciamjátercobertooterritóriodateorizaçãosobreasmentescaninas,esuasteoriasforamgeradasapartirdeanedotaseantropomor ismosmalaplicados.Apróprianoçãodamentedeumcãoestavacorrompida.

Mas...

Durante os anos de pós-graduação na Califórnia, passeimuitas horasde lazer nas praias e nos parques de lá com Pumpernickel. Na época,

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estava estudando para ser etóloga, uma cientista do comportamentoanimal. Participei de dois grupos de pesquisa observando criaturasextremamente sociais: os rinocerontes brancos do Parque de AnimaisSelvagens em Escondido e os bonobos (chimpanzés pigmeus), nessemesmo parque e no zoológico de San Diego. Aprendi a ciência daobservação, coleta de dados e análise estatística criteriosas. Ao longo dotempo,essaformadeolharcomeçouapermearaquelashorasdelazer.Derepente,oscães,emsuastransições luentesentreoprópriomundosociale o das pessoas, se tornaram inteiramente estranhos: parei de encarar ocomportamentodelescomosimplesebemcompreendido.

OndeoutroraeuacharagraçadeumabrincadeiraentrePumpernickele umbull terrier local, enxergava agora umadança complexa, que exigiacooperação mútua, comunicações quase instantâneas e avaliação dascapacidades edosdesejosumdooutro.Amenorviradade cabeçaoudapontadofocinhopareciaintencionalesigni icativa.Euviacãescujosdonosnãoentendiamumúnicoatodeles;viacães inteligentesdemaisparaseuscompanheiros de brincadeiras; via pessoas interpretando erroneamenteas solicitações caninas comoconfusãoeoprazer comoagressão.Passei alevar uma ilmadora comigo e a gravar nossos passeios no parque. Emcasa, assistia a ilmes de cães brincando com cães, de pessoas jogandobolas e frisbees para seus cães. Filmes de perseguições, lutas, carinhos,corridaselatidos.Comumanovasensibilidadeparaapossívelriquezadasinterações sociais emummundo inteiramentenão linguístico, todasessasatividades outrora corriqueiras agora me pareciam uma fonteinaproveitadade informações.Quandocomeceiaassistiràsgravaçõesemcâmera extremamente lenta, enxerguei comportamentos que nunca viraem anos de convívio com esses animais. Examinados detalhadamente, ossaltos de pura brincadeira entre dois cães se tornavam uma sérieestonteante de comportamentos sincrônicos, trocas ativas de papéis,variaçõesdedemonstraçõescomunicativas,adaptaçãoflexívelàatençãodooutroemovimentosrápidosentreatividadeslúdicasmuitodiversas.

O que eu via eram instantâneos fotográ icos das mentes dos cães,visíveisnasformasemquesecomunicavamunscomosoutrosetentavamse comunicar com as pessoas próximas — e, também, na forma comointerpretavamasaçõesdeoutroscãesedeoutraspessoas.

Nunca mais encarei Pumpernickel — ou qualquer outro cão — da

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mesma forma. No entanto, longe de estragar o prazer de desfrutar asdelíciasdainteraçãocomela,osóculosdaciênciameproporcionaramumamaneira original e rica de olhar o que ela fazia: uma forma nova deentenderavidacomoumcão.

Desdeaquelasprimeirashorasdeobservação,estudoasbrincadeirasdos cães comseus iguais e comaspessoas.Na época, inconscientemente,eu estava envolvida com a profunda mudança que se processava naatitude da ciência em relação aos estudos sobre cães. A transformaçãoaindanãoestácompleta,masocenáriojáébastantediferentedaquelequese via há vinte anos. Se antes havia um número desprezível de estudossobre a cognição e o comportamento caninos, agora há conferências,grupos de estudos etológicos e experimentais nos Estados Unidos e emoutros países, todos dedicados à pesquisa canina, que tem se espalhadopelaspublicaçõescientí icas.Oscientistasquefazemessetrabalhoviramoqueeuvi:ocãoéumaportadeentradaperfeitaparaoestudodosanimaisnão humanos. Eles convivem com os seres humanos há milhares, talvezcentenasdemilharesdeanos.Pormeiodaseleçãoartificialprovocadapeladomesticação, eles se desenvolveram para ser sensíveis a exatamenteaqueleselementosquesãopartesigni icativadenossacognição, incluindo—importante—acapacidadedeprestaratençãonosoutros.

Neste livro, apresento a ciência canina a você. Uma quantidadeimpressionantedeinformaçõessobreabiologia—habilidadessensoriaisecomportamento—,apsicologiaeacogniçãocaninasreunidaporcientistasquetrabalhamemlaboratórioenocampo,estudandocãestrabalhadoresecães companheiros. A partir desses resultados acumulados por centenasdeprogramasdepesquisa,conseguimosiniciaracriaçãodeumretratodocão a partir do interior dele— da sua capacidade olfativa e auditiva, damaneira como seus olhos nos veem e do cérebro que está por trás dissotudo. Os trabalhos aqui revisados sobre a cognição dos cães incluem osmeus, mas vão muito além, resumindo todos os resultados de pesquisasrecentes. Em alguns tópicos sobre os quais ainda não temos informaçõescon iáveis, incorporo estudos sobre outros animais que também podemnosajudaraentenderavidadeumcachorro.(Paraaquelescujodesejodeler os artigos de pesquisa originais foi aqui despertado, referênciascompletasaparecemnofinaldolivro.)

Não fazemos nenhum desserviço aos cães ao nos afastarmos das

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coleiras e abordá-los de um ponto de vista cientí ico. Suas capacidades epontosdevistamerecematençãoespecial.Eoresultadoéimpressionante:longe de nos distanciar, a ciência nos aproxima,maravilhando-nos com averdadeiranaturezadesseanimal.Usadodeformarigorosa,mascriativa,oprocesso e os resultados cientí icos podem lançar uma nova luz sobre asdiscussões que as pessoas têm diariamente a respeito do que seus cãespercebem, entendem ou acreditam. Com base em minha experiência,aprendendo a olhar sistemática e cienti icamente o comportamento daminhacadela,passeiaavaliá-laeentendê-lamelhor,eadesfrutardeummelhorrelacionamentocomela.

Entrei dentro de um cão e vislumbrei seu ponto de vista. Você podefazeromesmo.Setemumcãonasalaagora,amaneiracomovocêvêessemonteenormeepeludode"caninidade"estáprestesamudar.

UMANOTAINTRODUTÓRIASOBREOCÃO,OADESTRAMENTOEOSDONOS

Chamandoumcãode"ocão"

Édanaturezadoestudocientí icodosanimaisnãohumanosquealgumascriaturas especiais, examinadas, observadas, treinadas ou dissecadas emprofundidade, representemsuasespéciespor inteiro.Noentanto,nocasodos humanos, nunca deixamos o comportamento de um indivíduorepresentarodetodos.SealguémnãoconsegueresolverocubodeRubikem uma hora, não extrapolamos, a irmando que todos os humanos nãoserãocapazesderesolvê-lotambém(amenosqueaqueleindivíduotenhamatado todos os outros humanos). Nesse caso, nosso sentimento deindividualidade é mais forte do que nosso sentido de biologiacompartilhada. Quando se trata de descrever nossas potenciaiscapacidades ísicasecognitivas,emprimeirolugarsomosindivíduose,emsegundo,membrosdaraçahumana.

Em contrapartida, no caso dos animais, essa ordem é invertida. Aciência considera os animais como representantes de sua espécie emprimeiro lugar e, em segundo, como indivíduos. Nos zoológicos, estamosacostumados a ver um único animal ou um casal deles comorepresentantesdesuasespécies.ParaosadministradoresdoZoo,elessão

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mesmo "embaixadores" involuntários. Nossa visão da uniformidade dosmembrosdeumaespécieébemexempli icadaquandocomparamossuasinteligências. Para testar a hipótese — há muito popular — de que otamanho do cérebro é um indicador da inteligência, as dimensões docérebro de chimpanzés, macacos e ratos foram comparadas às doshumanos. Certamente, o dos chimpanzés é menor do que o nosso, o domacacoémenordoqueodoschimpanzés,odoratoéummeronódulodotamanho do cerebelo do cérebro dos primatas. Toda essa história ébastanteconhecida.Oqueémaissurpreendenteéqueoscérebrosusadospara ins de comparação foram os de apenas dois ou três chimpanzés emacacos. Esses poucos elementos su icientemente azarados paraperderem suas cabeças em bene ício da ciência foram considerados,daquelemomentoemdiante, representantesperfeitosdosmacacosedoschimpanzés. Porém, não tínhamos ideia se eles eram macacos comcérebros especialmente grandes ou chimpanzés com cérebrosanormalmentepequenos.*

Damesma forma, se um único animal ou pequeno grupo de animaisfracassaemumexperimentopsicológico,asespéciestornam-semaculadaspor esse fracasso. Embora agrupar animais de acordo coma semelhançabiológica seja um atalho evidentemente útil, o resultado é estranho:tendemos a falar das espécies como se todos os seus membros fossemidênticos. Nunca cometemos esse erro com os humanos. Se fosse dada aum cão a possibilidade de escolher entre uma pilha de vinte biscoitos euma de dez e ele escolhesse a segunda opção, a conclusão maisfrequentementeutilizariaoartigode inido:"ocão"nãoconseguedistinguirentreapilhamaioreamenor—enão"umcão"nãoconseguedistinguir.

Portanto, quando digo o cão, eu me re iro implicitamente aos cãesestudados até o momento. Os resultados de inúmeras experiências bemconduzidas podem, por im, permitir que possamos generalizarrazoavelmente a respeito de todos os cães — ponto inal. Contudo, atéentão, as variações individuais serão grandes: seu cachorro pode ser umfarejadorextraordinário,podenuncaolharparavocênosolhos,podeamara cama dele e odiar ser tocado. Nem todo comportamento deve serinterpretado como conclusivo, tomado como algo intrínseco ou fantástico;àsvezes,elessimplesmentesão,damesmaformaquenóssomos.Portanto,oqueofereçoaquiéacapacidadeconhecida docão;osresultadosobtidosporvocêpoderãoserdiferentes.

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* Claro, os pesquisadores logo descobriram cérebrosmaiores do que os nossos: o dos gol inhos émaior, assim como sãoosdas criaturas isicamentemaiores, tais comoasbaleias e os elefantes.Omito do "cérebro grande" há muito foi derrubado. Aqueles que ainda estão interessados emassociar esses órgãos à inteligência agora procuram por outras medidas mais so isticadas: aquantidadedesulcoscerebrais;oquocienteencefálico—umaproporçãoqueincluitantoocérebroquanto o tamanho do corpo em seu cálculo; a quantidade de neocórtex; ou o número bruto deneurôniosedesinapsesentreneurônios.

Adestramentodecães

Este não é um livro sobre adestramento. No entanto, seu conteúdo podetorná-lo capaz de adestrar seu cão,mesmo que não tenha essa intenção.Isso nos ajudará a nos igualar aos cães que, sem possuírem um livrodidático sobre as pessoas, já aprenderam a nos treinar sem quepercebêssemos.

Aliteraturasobreadestramento,cogniçãoecomportamentonãopossuimuitos elementos em comum. Os adestradores caninos usam algunsprincípios básicos de psicologia e etologia— por vezes atingindo ótimosresultados, outras vezes obtendo resultados desastrosos. A maioria dastécnicas segue o princípio da aprendizagem associativa. As associaçõesentreeventossãofacilmenteaprendidasportodososanimais,inclusiveoshumanos. A aprendizagem associativa é o que está por trás dosparadigmasdecondicionamento"operante",queforneceumarecompensa(umbiscoitinho,atenção,umbrinquedo,umafago)semprequeocorreumcomportamentodesejado(ocãosentar).Pormeiodeaplicaçõesrepetidas,pode-semoldar um comportamento novo e desejado em um cachorro—sejadeitar,rolarou,paraosmaisambiciosos,andarcalmamentedejet-skipuxadoporumalancha.

Porém,comfrequência,osprincípiosdoadestramentocon litamcomoestudo cientí ico dos cães. Por exemplo, muitos adestradores usam aanalogiado"cãocomolobodomesticado"paradescrevercomodeveríamosver e tratar os cães. Uma analogia é apenas tão boa quanto sua fonte.Nesse caso, como veremos, os cientistas conhecem muito pouco sobre ocomportamento natural do lobo — e, muitas vezes, o que sabemos

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contradizasabedoriaconvencionalquefundamentaessasanalogias.

Além disso, os métodos de adestramento não foram cienti icamentetestados, apesar das a irmações contrárias de alguns treinadores. Isto é,nenhum programa dessa natureza foi avaliado pela comparação dodesempenhodeumgrupoexperimentaladestradoeumgrupodecontrolecuja vida, apesar de idêntica, não se submeteu a um programa deadestramento. As pessoas que procuram adestradores costumamcompartilhar duas características pouco comuns: seus cães são menos"obedientes"doqueamédiaeosdonosestãomaismotivadosamudá-losdoqueamédia.Levandoemconsideraçãoessacombinaçãodecondiçõeseuns poucos meses, é muito provável que o cão apresente umcomportamentodiferenteapósoadestramento.

As técnicasbem-sucedidas empolgam,masnãoprovamqueométodode treinamento foi responsável pelo sucesso. Embora possaindicar a boaqualidade do programa, o sucesso também pode ter sido provocado poruma feliz coincidência. Pode também ter ocorrido em função de teremdado mais atenção ao animal durante o treino. Ou porque o cachorroamadureceu ao longo do programa. Ou até mesmo porque um cãoameaçador semudou da vizinhança. Em outras palavras, o sucesso podeserresultadodedezenasdeoutrasmudançasocorridasaomesmotempona vida do cão. Não podemos distinguir essas possibilidades sem testescientíficosrigorosos.

Mais importante: o adestramento é, em geral, talhado para o humano—mudarocãoparaqueeleseencaixenaconcepçãododono,edoqueelequer que o cão faça. Esse objetivo é muito diferente do nosso: observarpara veroqueo cão realmente faz, o que elequerde você e comoele oentende.

Ocãoeseudono

Está cada vezmais namoda chamarde guardião ou companheirode umanimal de estimação, em vez de dono. Escritores inteligentes referem-seaos "humanos"dos cães, invertendoaposse.Neste livro, chamode donosas famílias dos cães simplesmente porque esse termo descreve orelacionamento legal que temos com eles. Estranhamente, os cães ainda

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sãoconsideradosumapropriedade(eumapropriedadedevalorcomercialreduzido,alémdovalorcomoreprodutor—liçãoqueesperoquenenhumleitorpreciseaprender).Celebrareiodiaemqueos cãesnão sejammaisnossaspropriedades.Até lá,usareiapalavra donode formaapolítica,porconveniênciaesemqualqueroutramotivação.Essamesmarazãotambémme orienta a usar o pronome pessoal: amenos que esteja falando sobreuma cadela, em geral chamarei o cão de "ele", já que esse é o termo"neutro"queusamosparaosgêneros.

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Umweltdaperspectivadofocinhodeumcachorro

Esta manhã, fui acordada por Pump. Ela veio para minha cama e me cheirou enfaticamente, amilímetrosdedistância,seusbigodesroçandomeuslábios,paraverseeuestavaacordada,vivaouseeraeumesma.Elapontuaodespertarcomumespirroexclamatóriobemnomeurosto.Abroosolhos,eelamefita,sorrindo,ofegandoumasaudação.

Olheparaumcão.Vá,olhe.Podeseressequeestádeitadopertodevocêagora, enrolado sobre as patas dobradas em uma caminha canina, ouesparramado de lado no chão de azulejos, patas emmovimentos rápidoscorrendo por um gramado de sonho. Dê uma boa olhada — e agoraesqueçatudooquesabesobreesseouqualqueroutrocão.

Eis uma exortação reconhecidamente ridícula: realmente não esperoque você possa esquecer com facilidade o nome, a comida predileta ou oper il singular de seu cão — muito menos tudo sobre ele. Penso nesseexercíciocomoquempedeaumrecém-iniciadoemmeditaçãoparaentrarem satori, o estado mais elevado de iluminação espiritual, na primeiratentativa: tenha isso como objetivo e veja até onde consegue chegar. Aciência,procurandoaobjetividade,exigequenostornemosconscientesdepreconceitos e perspectivas pessoais prévios. O que encontraremos,observando os cães através das lentes cientí icas, é que muito do quepensamos saber sobre eles está inteiramente ultrapassado; outrasconcepções, que parecem obviamente verdadeiras, ao serem examinadasde perto sãomais duvidosas do que pensamos. Ao olharmos nossos cãesde outra perspectiva— a do cão— podemos enxergar elementos novosque não aparecem naturalmente para aqueles de nós munidos comcérebroshumanos.Assim,amelhorformadecomeçaraentenderoscãeséesqueceroqueacreditamossabersobreeles.

Aprimeira coisaaesquecer sãoosantropomor ismos.Vemosos cães,falamos com eles e imaginamos o seu comportamento a partir de umaperspectiva preconceituosa, impondo nossos pensamentos e emoções aessas criaturas peludas. Claro, diremos, os cães amam e desejam; lógicoque eles sonham e pensam; eles também nos conhecem e entendem;sentem-se entediados; icam enciumados e deprimidos. Haveria uma

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interpretaçãomais natural para um cão que nos ita tristemente quandosaímosdecasadoqueacharqueeleestádeprimidoporqueodonoestádesaída?

A resposta é: interpretá-los com base naquilo que os cães realmentetêma capacidadede sentir, percebere entender.Usamosessaspalavras,esses antropomor ismos, para nos ajudar a compreender ocomportamento canino. É natural que, intrinsecamente, optemos pelasexperiênciashumanas,oquenos levaaentenderasexperiênciasanimaisapenas na medida em que esses comportamentos se assemelham aosnossos. Lembramo-nosdehistóriasque con irmamnossasdescriçõesdosanimais e convenientemente esquecemos as que não o fazem. E nãohesitamos em repetir "fatos" sobremacacos, cães, elefantes, ou qualqueranimal,mesmo sem provas apropriadas. Paramuitos de nós, a interaçãocom bichos que não são de estimação começa e acaba nos zoológicos eprogramasdeTVacabo.Aquantidadedeinformaçõesúteisquepodemosobterdessaescutaveladaélimitada:umencontrotãopassivorevelaaindamenos do que obteríamos ao olharmos pela janela do vizinho quandopassamosporela.*Pelomenos,ovizinhoédanossaespécie.

Os antropomor ismos não são inerentemente odiosos. Eles nascemdetentativas de entender o mundo, não de subvertê-lo. Nossos ancestraishumanos teriam antropomor izado regularmente ao tentar explicar epreverocomportamentodeoutrosanimais,incluindoaquelesquepodiamdesejar comer ou os que podiam querer comê-los. Imagine à noite, naloresta,encararumestranhojaguardeolhosbrilhantes.Nessemomento,re letirsobreoquevocêpensaria"sefosseojaguar"provavelmenteseriaapropriado— e o levaria a se afastar correndo desse gato. Os humanossobreviveram: se não era verdadeira, a atribuição era pelo menossuficientementeverdadeira.

Noentanto,deummodogeralnãoestamosmaisemposiçãodeterqueimaginar os desejos do jaguar a tempo de escapar de suas garras. Pelocontrário; acolhemos animais e lhes pedimos para se tornaremmembrosde nossas famílias. Para tal propósito, os antropomor ismos não nosajudam a incorporá-los aos nossos lares e estabelecer com eles osrelacionamentos mais estáveis e satisfatórios possíveis. Isso não signi icadizer que estamos sempre errados em nossas atribuições: talvez sejaverdade que nosso cão esteja triste, ciumento, curioso, deprimido, ou

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desejeumsanduíchedepastadeamendoimparaoalmoço.Porém,équasecerto que não podemos a irmar, digamos, que se trata de uma depressãobaseadanasprovasquetemosdiantedenós:osolhosenlutados,osuspiroalto. Nossas projeções são frequentemente precárias— ou inteiramentedespropositadas. Podemos achar que um animal está feliz quando vemososcantosdesuabocaviradosparacima;tal"sorriso",noentanto,podeserenganador.Nosgol inhos,osorrisoéumacaracterística isiológica ixa,tãoimutável quanto o rosto atemorizante pintado na cara de um palhaço.Entreoschimpanzés,umrisoéumsinaldemedoousubmissão,oqueestámuito longe de signi icar felicidade. Da mesma forma, um humano podearquear as sobrancelhas por surpresa, mas o macaco capuchinho quearqueia as sobrancelhas não está surpreso. Ele não está revelando nemceticismo nem alarme; ao contrário, está sinalizando para os macacospróximos que suas intenções são amigáveis. Em contrapartida, entre osbabuínos, as sobrancelhas arqueadaspodem serumaameaçadeliberada(lição: cuidado para qual macaco você vai arquear as sobrancelhas). Énossa responsabilidade encontrar uma forma de con irmar ou refutaressasafirmaçõesquefazemossobreosanimais.

Talvez pareça um deslize inofensivo ver olhos tristes em vez dedepressão,masosantropomor ismosfrequentementepassamdebenignosa nocivos. Alguns põem em risco o bem-estar dos animais envolvidos. Sevamosadministrarantidepressivosaumcãocombasenainterpretaçãodeseu olhar, é melhor termos certeza de que nossa interpretação estácorreta. Quando presumimos que sabemos o que é melhor para nossoanimal, inferindo a partir de nós ou de qualquer outra pessoa, podemosinadvertidamente estar agindo de forma contrária aos nossos objetivos.Nosúltimosanos,porexemplo,houveumaverdadeiracomoçãoacercadoaprimoramento do bem-estar dos animais criados para serem abatidos,taiscomodaraosfrangosacessoaoarlivre,ouespaçoparavagaremseuspoleiros. Embora o resultado inal seja omesmopara o frango— ele vaiacabar virando o jantar de alguém—, há um crescente interesse no seubem-estarantesdeseremmortos.

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*Essasituaçãotornou-semaisevidentequandocoletavadadosarespeitodocomportamentodosrinocerontes brancos. No Parque de Vida Selvagem, são os animais que vagam (relativamente)livres,enquantoosvisitantes icamrestritosa trenzinhosquecirculamaoredordegrandesáreascercadas.Euestavaemumtrechoestreitodegramaentreocaminhoeacerca,observandoumdiatípico de socialização daqueles animais. Quando os trenzinhos se aproximavam, os rinocerontesparavamoqueestavamfazendoesejuntavamrapidamenteemumaformaçãode fensiva: traseirosjuntos, as cabeças irradiando comose fossem feixesde raios solares.Embora sejampací icos, elestêmumavisãoprecáriaepodemfacilmenteseassustarquandonãosentemocheirodealguémseaproximando, contandounscomosoutrosparaservirdevigias.Quandoo trenzinhoparou, todosolharamboquiabertososanimaisque,conformeanunciadopeloguia,não"faziamnada".Por im,omotoristacontinuou,eosrinocerontesretomaramseucomportamentonormal.

Mas será que eles querem pastar livremente? A sabedoriaconvencional diz que ninguém, humano ou não, gosta de ser imprensadopor outros. As anedotas parecem con irmar isso: se pudermos escolherentreumtremdemetrôlotadodepassageirosencaloradoseestressadoseum com apenas algumas pessoas em seu interior, escolheremos o últimoimediatamente (salvo, é claro, a possibilidadedeque exista algumaoutrarazão—umapessoa cheirandomalouumdefeitono ar-condicionado—que justi ique essa distribuição favorável). Porém, o comportamentonatural dos frangos pode indicar outra possibilidade: os frangos seaglomeram.Elesnãosaemporaísozinhos.

Os biólogos inventaram uma experiência simples para testar aspreferências desses animais em relação ao lugar quedesejamestar: elesescolheram alguns desses frangos e os distribuíram aleatoriamente emcasas, passando a monitorar tudo o que izeram em seguida. O quedescobriramfoiqueamaioriadosfrangosseaproximoudeoutrosfrangos,sem se afastarem mesmo quando havia espaço disponível. Emborativessem uma outra opção, mais espaço para estender suas asas,escolheramotremdemetrôlotado!

Isso não signi ica que se possa dizer que os frangos gostam de serimprensados uns contra os outros dentro de um poleiro, ou queconsideram sua vida perfeitamente agradável. É desumano encurralá-losde forma que eles não consigam se mexer. Mas signi ica que é possíveldizerquepressuporumasemelhançaentreaspreferênciasdessasaveseas nossas não é amelhor forma de captar o que elas realmente gostam.Nãoécoincidênciaqueessesfrangossejammortosantesdeatingiremseissemanas de vida. Nessa fase os pintos domésticos ainda estão sendochocados pelas mães. Privados da possibilidade de correr para debaixodasasasdamãe,osfrangoscriadosparamorrerseaproximamdeoutrosfrangos.

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PEGUEMINHACAPADECHUVA,PORFAVOR

Será que nossas tendências para a antropomor ização dos cães estão tãoerradas assim? Sem dúvida que sim. Vejamos o exemplo das capas dechuva.Háalgunspressupostosmuitointeressantesnafabricaçãoecompradesses minúsculos e elegantes trajes de quatro pernas para cachorros.Deixemosdeladoaquestãoacercadoscãespreferiremumacapaamarelabrilhanteeresplandecente,quadriculadaoucomumaestampadegatosecachorros(evidentequeelespreferemessa).Seusdonosestãomuitobem-intencionados quando decidem vesti-los assim: talvez tenham percebidoqueseuscães resistema sairdecasanosdiasdechuva.Parece razoávelconcluirapartirdessaobservaçãoqueocãonãogostadechuva.

Elenãogostadechuva.Oque issosigni ica?Signi icaqueele—assimcomomuitosdenós—nãodevegostardesentirachuvaemseucorpo.Masessa é uma a irmação correta? Nesse caso, o próprio cão nos dá muitosindíciosclaros.Ele icaanimadoeabanaoraboquandovocêpegaacapade chuva? Isso parece apoiar a hipótese... Ou, ao contrário, a visão docasacotalvezsigni iqueparaeleumacaminhadamuitoesperada.Elefogeda capa? Coloca o rabo entre as pernas e abaixa a cabeça? Isso mina ahipóteseemquestão,masnãoacontradizimediatamente.Elepareceinfelizquando molhado? Sacode a água com entusiasmo? Nem con irma nemcontraria.Ocãoestásendoumpoucoobscuro

Nesse caso, o comportamento natural dos seus parentes caninosselvagensprova serbastante revelador a respeitodoqueos cãespodempensar sobre as capas de chuva. Tanto os cães quanto os lobos possuemumacapapermanentementecoladaaocorpo.Umasóésu iciente:quandochove, os lobos podem buscar abrigo,mas não se cobrem commateriaisnaturais. Isso não indica a necessidade de protetores de chuva ou uminteresse por eles. Além de ser um casaco, a capa também é algo bemdiferente:umacoberturafechada,emesmoapertada,quecobreascostas,opeitoeàsvezesacabeça.Háocasiõesemqueoslobossãopressionadosnas costas e na cabeça: quando são dominados por outro lobo, ourepreendidos por um lobo parente ou mais velho. Muitas vezes, osdominantes imobilizam os subordinados pelo focinho. Esse procedimentochama-se morder o focinho e talvez explique por que, às vezes, os cãescomfocinheirasparecemestranhamentesubmissos.Ocãoque"encurrala"outro cão é o dominante. O subordinado sente a pressão do animal

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dominante sobre seu corpo. É provável que a capa de chuva reproduzaessesentimento.Portanto,asensaçãoprincipalprovocadapelacapanãoéade se sentir protegidodaumidade; ao contrário, elaproduz a sensaçãodesconfortável de que alguém em uma posição superior a sua está porperto.

A validade dessa interpretação é reforçada pelo comportamento damaioria dos cães quando são envoltos emuma capa de chuva: é possívelque iquem imóveis por se sentirem "dominados". Pode-se observar omesmo comportamento quando um cão, resistindo ao banho, de repentepara de se agitar quando ica totalmentemolhado ou é coberto por umatoalha pesada e molhada. O cão pode até cooperar para sair, mas nãoporque gosta da capa, e sim porque foi subjugado.* Claro que ele vai semolharmenos,massomosnósquegostamosdeplanejarisso,nãoocão.Amelhormaneiradeevitaressetipodeequívocoésubstituirnossoinstintoantropomor izante pela leitura do comportamento. Namaioria dos casos,essa troca é simples: basta perguntar ao cão o que ele quer. Tudo o quevocêprecisaésabercomotraduziressaresposta.

* Isso é semelhante ao que foi descoberto pelos pesquisadores behavioristas que, emmeados doséculo passado, expuseram cães de laboratório a choques elétricos dos quais eles não podiamescapar. Mais tarde, colocados em um recinto onde havia uma rota de escape visível, esses cãesmostraram desamparo aprendido: não tentaram escapar para evitar o choque. Em vez disso,icaram imobilizados, aparentemente resignados a seu destino. Isso porque os pesquisadoreshaviamtreinadooscãesparaseremsubmissoseaceitaremsua faltadecontrolesobreasituação.(Mais tarde, eles os forçarama desaprender a resposta e interromper os choques.) Felizmente, aépocaemquesepraticavaessetipodeexperiênciajápassou.

AVISÃODEMUNDODOCARRAPATO

Eisnossaprimeira ferramentaparaobter essa resposta: imagineopontodevistadocachorro.Oestudocientí icodosanimaisfoimodi icadoporumbiólogo alemão do início do século XX chamado Jakob von Uexküll. Suapropostafoirevolucionária:qualquerumquedesejasseentenderavidadeum animal deveria começar considerando o que ele chamava de seuumwelt (UM-velt): sua subjetividade ou "automundo". Umwelt captura oque a vida signi ica para o animal. Considere, por exemplo, o modestocarrapato de cervo. Aqueles de vocês que passaram um bom tempoacariciandohesitantementeocorpodeumcãoembuscadeumaintrigantecabeça de al inete que revela um carrapato inchadode sangue podem játer pensado sobre ele. Você provavelmente considera o carrapato umapeste,ponto inal.Quasenemsequerumanimal.VonUexküll,porsuavez,

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ponderousobrequalseriaopontodevistadocarrapato.

Um pouco de biologia: carrapatos são parasitas. Membros da famíliadosaracnídeos—umaclassequeincluiaranhas—,elestêmquatroparesdepatas,corposimplesemandíbulaspoderosas.Milharesdegeraçõesdeevolução simpli icaram suas vidas aomáximo: nascimento, acasalamento,alimentaçãoemorte.Nascidossempataseórgãossexuais,essesmembroslogocrescem,entãoelesacasalameascendemparaumaposiçãosuperior— digamos, uma lâmina de grama. É aqui que sua história icainteressante. De todas as visões, sons e odores do mundo, o carrapatoadultoesperaapenasporum.Elenãoolhaaoredor:carrapatossãocegos.Nenhum som os perturba: sons são irrelevantes para seus objetivos. Eleesperaapenaspelaaproximaçãodeumúnicoodor:umligeiroperfumedeácidobutanoico,um líquidogordurosoexpelidopelascriaturasdesanguequente(àsvezes,sentimosesseodornosuor).Talvezelepreciseesperarum dia, um mês, ou uma dezena de anos. Mas assim que sente o odorpreferido, ele o escolhe e cai do lugar em que estava. Em seguida, umacapacidade sensorial secundária é acionada. A pele do carrapato éfotossensívelepodedetectarcalor.Entãoelesedirigeparaocalor.Setiversorte,oodorcalorosodesuorvemdeumanimal,eocarrapatoseagarraneleefazsuarefeiçãofeitadesangue.Apóssealimentarumavez,elecai,põeovosemorre.

Oobjetivodessaexplicaçãoémostrarqueoautomundodocarrapatoédiferente do nosso de formas inimagináveis: o que ele sente ou deseja;seusobjetivos.Paraocarrapato,acomplexidadedaspessoaséreduzidaadois únicos estímulos: odor e calor— e ele está muito atento a eles. Sequisermosentenderavidadequalqueranimal,precisamossaberoqueéimportante para ele. A primeira forma de descobrir isso é tentardeterminar o que o animal consegue perceber: o que pode ver, ouvir,cheirar ou, de outra forma, sentir. Apenas os objetos que são percebidospodemtersigni icadoparaoanimal;osoutrosnãosãosequernotados—outodosparecemiguais.Oventoquepassapelagrama?Irrelevanteparaocarrapato.Ossonsdeumafestadeaniversárioinfantil?Nãoaparecememseu radar. As deliciosasmigalhas de bolo no chão?O carrapato não dá amínima.

A segunda forma de descobrir o que é importante para o animal ésaber como ele age no mundo. O carrapato acasala, espera, cai e se

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alimenta. Logo, os objetos do universo, para ele, são divididos em:carrapatosenãocarrapatos;assuper íciesondesepodeounãocair;eassubstânciasdasquaiselepodeounãoquerersealimentar.

Assim, esses dois componentes — percepção e ação — de inem ecircunscrevem, em grande parte, o mundo de cada ser vivo. Todos osanimaistêmseuspróprios umwelten —asprópriasrealidadessubjetivas,que Von Uexkiill descrevia como "bolhas de sabão" —, que estão parasempre presos no interior dessas bolhas. Nós humanos também vivemospresos em nossas próprias bolhas de sabão. Em cada um de nossosautomundos,porexemplo, estamosmuitoatentosao lugaremqueoutraspessoas estão e o que fazem e dizem. (Por outro lado, imagine aindiferençadocarrapatoanossosmonólogosmais tocantes.)Enxergamosno espectro visual da luz, ouvimos barulhos audíveis e cheiramos odoresfortescolocadosàfrentedenossosnarizes.Alémdisso,cadaindivíduocriaseuumwelt pessoal, cheio de objetos com signi icados especiais para ele.Você pode comprovar isso ao ser levado para passear em uma cidadedesconhecidaporumnativo.Eleodirigiráao longodeumcaminhoóbvioparaele,mas invisívelparavocê.Porém,amboscompartilhamasmesmascoisas: provavelmente, nenhum dos dois vai parar e ouvir o gritoultrassônicodeummorcegopróximo;ousentirocheirodoqueohomemque passa por perto comeu no jantar de ontem à noite (a menos que arefeição tivessemuito alho).Nós, os carrapatos e todososoutros animaisnos encaixamos em nosso meio ambiente: somos bombardeados porestímulos,masapenasumnúmeromuitoreduzidoésignificativoparanós.

O mesmo objeto, portanto, será visto (ou melhor, sentido — algunsanimaisnãoenxergambemounãoenxergamnada)poranimaisdiferentesdeformadistinta.Umarosaéumarosa.Ounãoé?Paraumhumano,umarosa é um tipo especí ico de lor, umpresente ofertado a amantes e algobelo. Para um besouro, uma rosa talvez seja um território inteiro, comlugaresparaseesconder(naparteinferiordeumafolha,invisívelparaospredadores aéreos), caçar (no topo da lor, onde crescem as formigasjovens)epôrovos(najunçãodafolhacomotalo).Paraoelefante,trata-sedeumespinhoquaseimperceptívelembaixodasuapata.

Eparao cão,oqueéumarosa?Comoveremos, issovaidependerdaconstrução do cão, tanto corporal quanto cerebral. Na verdade, para umcachorroumarosanãoéalgobelonemummundoemsimesmo.Umarosa

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é indistinguívelemmeioaomaterialvegetalquearodeia—amenosquetenha sido urinada por outro cão, esmagada por outro animal oumanipuladapelodonodele. Sóentãoelaadquireum interesseplenoe setornabemmaissigni icativaparaocãodoqueamaisformosarosaéparanós.

VESTINDONOSSOSCHAPÉUSUMWELT

Distinguir os elementos importantes no mundo de um animal — seuumwelt — signi ica, de certa forma, tornar-se um especialista naqueledeterminado animal, seja uma pulga, um cão ou um ser humano. E essaseránossaferramentapararesolveratensãoentreoquepensamossabersobre cães e o que eles realmente fazem. No entanto, sem osantropomor ismos,parecequenossovocabuláriousadoparadescreverasexperiênciasvividasporelesémuitopobre.

Oentendimentodaperspectivadeumcão—pormeiodacompreensãode suas capacidades, experiência e comunicação — fornece essevocabulário. Porém, não podemos traduzi-lo simplesmente incorporandonosso próprio umwelt. A maioria de nós não possui um olfato excelente;para nos tornarmos farejadores, precisamos fazer mais do que apenasre letir sobre isso. Esse tipo de exercício introspectivo funciona apenasquandoassociadoaumentendimentosobreoquãoprofundaéadiferençaentreonossoumwelteodooutroanimal.

Podemos vislumbrá-lo ao "encenarmos" o umwelt de outro animal,tentando incorporá-lo — consciente das restrições que nosso sistemasensorial impõe à nossa capacidade de fazê-lo de forma genuína.Experimentarduranteumatardearealidadedeumcãoésurpreendente.Cheirar (mesmo com nossos narigões pouco potentes) atenta eprofundamentecadaobjetocomoqualcruzamosaolongodeumdialançaumanovaluzsobreascoisasmaisfamiliares.Enquantovocêlêestetexto,tenteprestaratençãoaos sonsda salaemqueseencontraagora, comosquais jáseacostumoue,emgeral, ignora.Derepenteouçoumventiladoratrásdemim,oalarmedamarchaàrédeumcaminhão,oburburinhodeumamultidãodevozesentrandonoprédioláembaixo;alguémajustandoocorpo em uma cadeira de madeira, meu coração batendo, eu engolindo,uma página sendo virada. Seminha audição fossemais acurada, poderiaternotadoo raspardeumacanetanopapeldooutro ladodasala;o som

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de uma planta se esticando para crescer; os gritos ultrassônicos dapopulação de insetos sempre embaixo de nossos pés. Será que essesruídossedestacamnouniversosensorialdeoutrosanimais?

OSIGNIFICADODASCOISAS

Paraoutroanimal, atémesmoosobjetosdeumasalanão são,dealgumaforma, os mesmos objetos. Ao olhar em volta, o cão não pensa que estárodeadoporcoisashumanas;eleenxerga coisas caninas.Oquepensamosser a função de um objeto, ou as associações que ele traz, pode ou nãocombinarcoma ideiaqueocãotemsobreasuafunçãoousigni icado.Osobjetos são de inidos pela forma como agimos sobre eles: o que VonUexküllchamadeseusaspectos funcionais—comoseousodeumobjetofosse acionado quando o vemos. Um cão pode ser indiferente a cadeiras,mas se treinadoparapular em cimadeuma, aprendeque a cadeira temumaspectosentar, épossívelsentarnela.Maistarde,umcãopodedecidirpor si mesmo que outros objetos possuem um aspecto sentar: um sofá,uma pilha de travesseiros, o colo de alguém que esteja no chão. Mas osdemaisobjetosqueidenti icamoscomamesmafunçãodeumacadeiranãosãovistosdessaformapeloscães:bancos,mesas,braçosdesofás.Bancosemesaspertencemaoutracategoriadeobjetos:obstáculos,talvez,queestãonocaminhoemdireçãoaoaspectocomerdacozinha.

Aqui, começamos a ver como as visões de mundo do cão e as dohumano se sobrepõem e como elas diferem.Muitos objetos possuem umaspecto comer para o cão — provavelmente, bem mais do queconsideramos como tal.As fezesnão constamemnosso cardápio; os cãesdiscordam.Elespodemtercategoriasquenósabsolutamentenãotemos—aspectorolar,digamos:coisassobreasquaissepoderolaralegremente.Amenos que estejamos particularmente felizes ou sejamos muito jovens,nossa lista de itens comaspecto rolar é quasenula. Emuitos dos objetoscomuns que possuem signi icados especí icos para nós — garfos, facas,martelos, percevejos, ventiladores, relógios e assim por diante — têmpoucoounenhumvalorparaeles.Paraumcão,ummartelonãoexiste.Umcachorronãoagecomummarteloousobreele, logoessa ferramentanãotem qualquer signi icado para o cão. Isso até que esteja relacionada aalgum outro objeto signi icativo: está nas mãos de uma pessoa amada;cheiraaurinadocãofo inhodovizinho;seucabodemadeirasólidopodesermastigadocomosefosseumgraveto.

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Um confronto deumwelten ocorre quando um cão encontra umhumano,eoresultadodesseencontroéapropensãoanãoentenderoqueoanimalestá fazendo.Ohumanonãovêomundoapartirdaperspectivado cão: da forma comoele o vê. Por exemplo, é comumosdonosde cãesinsistirem enfaticamente que o cão nunca deve deitar na cama. Paraaumentar o grau de seriedade desse comando, o dono pode compraraquiloqueumfabricantedetravesseirosdecidiuchamarde"camacanina"ecolocá-lanochão.Ocãoficarámotivadoasedeitarnessacamaespecial,acama não proibida. Em geral, ele o fará, de forma relutante. E, assim,podemosnossentirsatisfeitos:outrainteraçãocão-humanobem-sucedida!

Mas é issomesmo?Muitas vezes, ao voltar para casa, encontrei umapilhamornaeamarrotadade lençóisemminhacama,ondeocãoderaboabanando queme cumprimentou na porta, ou algum intruso dorminhocoinvisível, se deitara recentemente. Não temos nenhum problema ementenderosigni icadodascamasparaoshumanos:osnomesdosobjetostornamasituaçãoclara.Acamagrandeéparaaspessoas;acamacaninaépara os cães. As camas humanas representam relaxamento; podem sermuito carase cobertas com lençóis especialmenteescolhidoseenfeitadascom travesseiros macios; a cama canina é um lugar no qual nuncapensaríamos em sentar, é (relativamente) barata e é mais provável quesejaadornadaporbrinquedosmastigáveisdoqueportravesseiros.Eparao cão? Inicialmente, não existemuita diferença entre as camas—exceto,talvez, pelo fato de que a nossa é in initamente mais desejável. Elascheiramanós,enquantoadelescheiraaomaterialqueofabricantetinhaem estoque (ou, pior, a lascas de cedro— um perfume esmagador paraum cão, mas agradável para nós). Além disso, nossas camas são ondeestamos:énelaquepassamosnossotempodelazer, talvezestejamcheiasdemigalhasdepãoeroupas.Oqueoscãespreferem?Indubitavelmente,anossacama.Ocãonãoconhecetodasascaracterísticasqueatornaramumobjeto tão deslumbrante para nós. Ele pode, na verdade, vir a aprenderqueháalgodiferentesobreacama—porserrepetidamenterepreendidoquando deita nela. Ainda assim, o que o cão percebe é menos "camahumana"versus"camacanina",emais"objetoqueprovocagritariaquandose está deitado nele" versus "objeto que não provoca gritaria quando seestádeitadonele".

Noumwelt dos cachorros, as camas não possuem aspectos funcionaisespeciais. Os cães dormem e descansam onde podem, não em objetos

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designados pelas pessoas para tais inalidades. Pode haver um aspectofuncional para os lugares de dormir: os cães preferem aqueles que lhespermitamesticar-secompletamente,ondeatemperaturaéagradável,ondeoutrosmembrosde seu grupoouda família estejamporperto e onde sesintamseguros.Qualquersuper ícieplananacasasatisfazessascondições.Faça uma delas se encaixar nesses critérios e seu cão provavelmente aacharátãodesejávelquantoasuagrandeeconfortávelcama.

PERGUNTANDOAOSCÃES

Para sustentar nossas a irmações sobre a experiência ou amente de umcão, aprenderemoscomoperguntara ele seestamos certos.Lógicoqueoproblema em perguntar a um cão se ele está feliz ou deprimido não é ofatodeaquestãonãofazersentido.Équenãoentendemosmuitobemsuaresposta. A linguagem falada nos tornou excessivamente preguiçosos.Posso imaginar as razões por trás do comportamento recalcitrante edistantedeumaamigadurante semanas, formandodescriçõescomplexasepsicologicamente elaboradas apartirdo sentidodas açõesdela sobreoque ela pensa que eu quis dizer em algum momento di ícil. Mas minhamelhor estratégia é, de longe, simplesmenteperguntar a ela. Elamedirá.Oscães,poroutrolado,nuncarespondemdamaneiraqueesperamos:comsentençasbempontuadas e ênfases emnegrito.No entanto, se olharmos,elesobviamenteterãorespondido.

Por exemplo, um cão que olha para você e suspira ao vê-la sepreparandoparairtrabalharestádeprimido?Oscãesque icamtrancadosem casa o dia inteiro são pessimistas? Sentem-se entediados? Ou estãoapenas expirando preguiçosamente e se preparando para tirar umasoneca?

Examinar o comportamento para aprendermos sobre a atividademental de um animal é precisamente a ideia que motiva algumasexperiências recentes inteligentementeelaboradas.Ospesquisadoresnãousaram cães, mas aquele surrado sujeito de pesquisa: o rato delaboratório. O comportamento desses roedores em gaiolas pode ser omaiorcontribuinteparaocorpusdoconhecimentopsicológico.Namaioriadoscasos,opróprioratonãoé interessante:apesquisanemésobreeles.Surpreendentemente, é sobre os humanos. A ideia é a de que os ratosaprendem e lembram por usarem alguns dos mesmos mecanismos

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utilizados pelos humanos, só que os ratos sãomais fáceis demanter emcaixinhasedeserexpostosaestímulosrestritosnaesperançadeseobteruma resposta. E os milhões de respostas dadas por milhões de ratos delaboratório, Rattus norvegicus, aumentaram imensamente nossoentendimentosobreapsicologiahumana.

Porém, os próprios ratos são intrinsecamente interessantes também.Àsvezes,aspessoasquetrabalhamcomelesnoslaboratóriosdescrevema"depressão" ou a natureza exuberante desses animais. Alguns ratosparecempreguiçosos,algunssãoalegres;outrospessimistas;outros,ainda,otimistas. Os pesquisadores escolhem duas dessas características —pessimismo e otimismo — e lhes atribuem de inições operacionais emtermos de comportamento que nos permite determinar se é possívelveri icar diferenças reais entre ratos. Em vez de simplesmente tirarmosconclusão a partir do modo como os humanos parecem quando estãopessimistas, podemos perguntar como é possível um rato pessimista serdistinguidodeumotimistacombaseemseucomportamento.

Assim,ocomportamentodosratosfoiexaminadonãocomoumespelhodo nosso, mas como um indicador de algo sobre... os ratos: suaspreferências e emoções. Esses sujeitos foram colocados em ambientesextremamente restritos: alguns eram "imprevisíveis", onde oscompanheiros de gaiola, o acolchoamento e o cronograma de luz eescuridãosempremudavam;outroseramambientesestáveiseprevisíveis.O projeto experimental tirou vantagem do fato de que, largados em suasgaiolasecompoucoparafazer,osratosrapidamenteaprendemaassociarnovos eventos à ocorrência simultânea de um fenômeno. Nesse caso, umsom especí ico era tocado em alto-falantes dentro das gaiolas — umestímulo para pressionar uma alavanca que acionava a chegada de umaporção de comida. Quando um som diferente era tocado e os ratospressionavam a alavanca, ouviam um som desagradável e não recebiamnenhumalimento.Deformaprevisível,essesanimais—taiscomoosratosde laboratório antes deles — rapidamente aprendiam a associação.Corriam em disparada para a alavanca que liberava comida apenasquando acionado o som favorável, como crianças correndo atrás de umacarrocinha de sorvete. Todos os ratos aprenderam isso com facilidade.Entretanto,foiquandoouviamumnovosom,ameiocaminhoentreosdoissons aprendidos, que os pesquisadores descobriram a importância doambiente dos ratos. Os que foram colocados em ambientes previsíveis

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interpretaram o novo som como comida; os agrupados em ambientesinstáveisnão.

Essesratosapreenderamotimismooupessimismosobreomundo.Vê-los emambientesprevisíveispulando comvivacidadediantedequalquernovo som signi ica ver o otimismo em ação. Pequenas mudanças noambiente foram su icientes para estimular uma grande mudança deperspectiva.Asintuiçõesdosquetrabalhamcomosratosdelaboratórioarespeitodohumordessesanimaispodemserprecisas.

Podemos submeter nossas intuições sobre os cães aomesmo tipo deanálise. Para cada antropomor ismo que usamos para descrevê-los,podemosfazerduasperguntas:1)Existealgumcomportamentonaturaldoqualessaaçãosejaumaevolução?2)Aqueessaa irmaçãoantropomór icacorresponderiaseadesconstruíssemos?

BEIJOSCANINOS

DarlambidaséamaneiradePumpfazercontato,demecumprimentar.Quandochegoemcasa,elamesaúdacomlambidasnorostoenquantomeabaixoparaacariciá-la;eladálambidasdeacordarnaminhamãoenquantocochilonacadeira; lambetodoosuordeminhaspernasquandovoltodeumacorrida;sentadaaomeulado,imobilizaminhamãocomapatadianteiraeaviraparalamberapelequenteemaciadapalma.Adorosuaslambidas.

Comfrequência,ouçodonosdecãescon irmaremoamordeseusanimaisporelescombasenosbeijosquerecebemquandochegamcmcasa.Esses"beijos"sãolambidas:lambidasmolhadasnorosto;lambidasconcentradaseexaustivasnamão;polimento solenedeummembrodo corpoporumalíngua.ConfessoquetratoaslambidasdePumpcomoumsinaldeafeição."Afeição"e"amor"nãosãoapenasconstructosrecentesdeumasociedadeque trata os bichos de estimação como pessoas pequenas, a seremcalçadas com sapatos quando o tempo está ruim, fantasiadas para oHalloweenemimadasemspas.Antesdeexistiressaespéciedetratamentode beleza para cães, Charles Darwin (que acredito piamente nuncafantasiou seu cãozinho de bruxa ou duende) escreveu sobre os beijos-lambidasdeseuscães.Eletinhacertezadeseussigni icados:oscãestêm,ele escreveu, uma "forma impressionante demostrarem seu afeto, que élamber a mão ou o rosto dos donos". Darwin estava certo? Os beijosparecemcarinhososparamim,massãogestosdecarinhoparaocão?

Primeiro, as más notícias: os pesquisadores de caninos selvagens —

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lobos,coiotes,raposaseoutros—relatamqueos ilhoteslambemorostoeo focinhodasmãesquando elas voltampara a caverna apósuma caçadacomointuitodefazê-lasregurgitar.Lamberaoredordabocapareceserapista que estimula a mãe a vomitar os pedaços de carne parcialmentedigeridos. Pump deve icar muito decepcionada, pois nunca regurgiteicarnedecoelhosemidigeridaparaela.

Além domais, nossas bocas sãomuito saborosas para os cães. Assimcomo os lobos e os humanos, eles possuem receptores de gosto parasalgado,doce,amargo,azedoeatémesmoumami, ogostode terra,algaecogumelo embebidos no tempero glutamato monossódico. Sua percepçãode doçura é processada de forma ligeiramente diferente da nossa, namedidaemqueosalgadoaumentaaexperiênciadossaboresadocicados.Os receptores de doçura são particularmente abundantes nos cães,embora alguns adoçantes — sacarose e frutose — ativem mais osreceptoresdoqueoutros,talcomoaglucose.Essacondiçãopodeajudarnaadaptação de um onívoro como o cão, para quem vale a pena distinguirentre plantas e frutas maduras e não maduras. Curiosamente, até o salpuronãoacionaoschamadosreceptoresdesalnalínguaenocéudabocados cachorrosdamesma forma comoo faz comos humanos. (Há algumacontrovérsia quanto ao fato de os cães terem quaisquer receptoresespecí icos para o salgado.) Mas não precisei pensar muito sobre seucomportamento para perceber que as lambidas de Pump em meu rostomuitas vezes coincidiam com o fato de eu ter ingerido uma fartaquantidadedecomida.

Agora, as boas notícias: como resultado desse uso funcional daslambidasnaboca—"beijos"paramimeparavocê—,talcomportamentose tornouumcumprimentoritualizado.Emoutraspalavras,elenãoserveapenasparapedircomida;tambéméusadoparadizeralô.Oscãeseloboslambemofocinhosimplesmentepararecepcionaroutrocãonavoltaparacasa e assim obter um relatório olfativo de onde esteve ou o que fez. Asmães não apenas limpam os ilhotes lambendo-os, elas frequentementelhes dão umas lambidas rápidas até mesmo após uma breve separação.Umcãomaisjovemoutímidopodelamberofocinhoeaoredordofocinhode um cão maior e mais ameaçador para apaziguá-lo. Os cãesfamiliarizados um com o outro podem trocar lambidas quando seencontram nas pontas de suas respectivas coleiras nomeio da rua. Essecomportamento pode servir para con irmar, através do cheiro, se aquele

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cão correndo na direção dele émesmo quem ele pensa que é. Visto queessas "lambidas de boas-vindas" são muitas vezes acompanhadas porabanosderabos,bocasalegrementeabertaseexcitaçãogeneralizada,nãoé um exagero dizer que as lambidas são uma forma de expressarfelicidadeporseuretorno.

CINÓLOGO

AindafaloquePumpparece"consciente",ouestá contenteoubrincalhona.São palavras que signi icam algo para mim. No entanto, não tenhonenhumailusãodequeelasmapeiamaexperiênciadela.Aindaadorosuaslambidas,mastambémadorosaberoqueelassigni icamparaPumpalémdoqueapenassignificamparamim.

Aoimaginaroumweltdoscães,somoscapazesdedesconstruiroutrosantropomor ismos—aculpadenossocãoporroerumsapato;avingançadeum ilhotein ligidaemnossaecharpeHermès—ereconstruí-loscomoentendimento do cão em mente. Tentar entender a perspectiva de umcachorro é como ser um antropólogo em uma terra estrangeira —inteiramentehabitadaporcães.Umatraduçãoperfeitadecadamovimentoderaboelatidopodenosiludir,masumsimplesexameatentorevelaráumvolumesurpreendentedeinformações.Logo,vamosexaminarcomatençãooquefazemosnativos.

Nos capítulos seguintes, consideraremos as várias dimensões quecontribuem para o umwelt de um cão. A primeira dimensão é histórica:comooscãesvieramdos lobosecomoelessãoounãosãoparecidoscomeles.Asescolhasquefazemoscombasenasraçaslevamaalgunsprojetosintencionais e a algumas consequências acidentais. A dimensão seguintevem da anatomia: a capacidade sensorial do cão. Precisamos entender oqueocãocheira,vêeouve... e seháoutrosmeiospelosquaiselesenteomundo.Devemosimaginaropontodevistaapartirdesetentacentímetrosacimado chãoepor trásdo focinho.Finalmente, o corpodo cão,quenoslevaaocérebrodele.Examinaremosassuascapacidadescognitivaseesseconhecimento pode nos ajudar a entender seu comportamento. Essasdimensõessecombinampara fornecerasrespostasàsperguntassobreoque o cão pensa, percebe e entende. Por im, elas servirão comofundamentos cientí icos para um salto imaginativo bem-informado paradentro do cão: metade do caminho andado para nos tornarmos cães

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honorários.

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PertencendoacasaElaestáesperandonasoleiradaportadacozinha,quaseembaixodospés.Dealgumaforma,Pumpsabeprecisamenteonde ica"foradacozinha".Aqui,elaseesparrama,equandotragocomidaparaamesa,elaentrapararesgatarosrestoscaídosnochão.Damesa,elaconsegueobterumpoucodetudo—eaceitaráatéaofertamais improvável, aindaque sóparamastigá-laumpoucoantesdedepositá-lasemcerimônianochão.Elanãogostadepassas.Nemdetomates.Elatoleraráumauva,seconseguirdividi-laemmetadessuculentascomosdenteslaterais—edepois,deliberadamente,comosecontrolandoumobjetograndeeduro,amastigará.Elaquertodasaspontasdascenouras.Pega ostalosdebrócoliseaspargose os segura delicadamente, olhando por um momento paramim,comoseconjecturandosealgomaisestáacaminhoantesdeinstalar-senotapeteparacomê-los.

Oslivrossobreadestramentoinsistememdizerque"umcãoéumanimal".Issoéverdade,masnãoétodaaverdade.Ocãoéumanimal domesticado,umapalavraqueseoriginouapartirdaraizquesigni ica"pertencendoàcasa".Oscãessãoanimaisquepertencemàscasas.Adomesticaçãoéumavariação do processo de evolução— no qual o selecionador não apenaspossui forças naturais, mas humanas também — e seu objetivo inal étrazeroscãesparadentrodesuascasas.

Paraentenderoqueéumcão,precisamosentenderdeondeelevem.Comoparteda famíliaCanidae— cujosmembros são chamados canídeos—, o cão doméstico é um parente distante dos coiotes e chacais, dingos,raposas e cães selvagens.* Entretanto, ele vem de uma única e antigalinhagem de Canidae, animais que mais provavelmente lembram o lobocinza contemporâneo. No entanto, quando vi Pumpernickel cuspir umapassa delicadamente, não me lembrei das imagens chocantes de lobosderrubandoumalceeodestroçandoemWyoming.**Avisãodeumanimalquepacientementeesperanaportadacozinhae,emseguida,examinacomatenção uma cenoura, parece, a grosso modo, irreconciliável com umanimal cuja lealdade é, em primeiro lugar, para consigo mesmo, e cujasafiliaçõessãorepletasdetensãoemantidaspelaforça.

Osapreciadoresdecenourassurgemdosmatadoresdealcespormeioda segunda fonte: nós. Enquanto a natureza "seleciona" cega eimpiedosamenteos traçosque levamàsobrevivênciadeseusportadores,os humanos ancestrais também selecionaram traços — característicasísicasecomportamentos—queresultaramnãoapenasnasobrevivência,mas na onipresença do cão moderno— Canis familiaris — entre nós. A

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aparência,o comportamento, aspreferênciasdoanimal, seu interesseemnós e em nossa atenção são, em grande medida, resultado dadomesticação.Ocãoatualéumacriaturabemprojetada.Noentanto,muitodesseprojetofoirealizadoaosabordoacaso.

*Ashienasnãoconstamnessalista.Dotamanhoeformatodeumcão,comorelhaseretascomoasdeumpastoralemãoetendênciaauivarevocalizarcomomuitoscanídeosgárrulos,ashienassão,de alguma forma, como cães, mas não são de fato canídeos. Elas são parentes carnívoros maispróximosdafuinhaedosgatosdoquedoscachorros.

** Suspeita-se que as passas sejam tóxicas para alguns cães, mesmo em quantidades pequenas(emboraomecanismodetoxicidadesejadesconhecido)—oquemelevaaperguntarsePumperainstintivamenteavessaapassas.

COMOFAZERUMCÃO:INSTRUÇÕESPASSOAPASSO

Então você quer fazer um cão? São necessários apenas alguns poucosingredientes.Vocêprecisaráde lobos,humanos,umpoucode interaçãoetolerânciamutua.Misturebemeaguarde,ah,algunsmilharesdeanos.

Ou, se você for o geneticista russo Dmitry Belyaev, simplesmenteencontre um grupo de raposas cativas e comece a criá-las seletivamente.Em 1959, Belyaev iniciou um projeto que fortaleceu nossos melhorespalpites acerca do que acreditamos terem sido os passos iniciais dadomesticação. Em vez de observar os cães e inferir em retrospectiva, eleexaminououtraespéciecanídeasocialeapropagou.AraposaprateadadaSibéria era um pequeno animal selvagem que se tornou popular nocomérciodepelesemmeadosdoséculoXX.Criadasemgaiolasporcausadecasacosdepelesdeprimeiraclasse,especialmentelongosemacios,elasnãoforamdomesticadas,masmantidasemcativeiro.Comumareceitabemreduzida, Belyaev não as transformou em "cães", mas em algosurpreendentementepróximoaeles.

EmboraVulpesvulpes,araposaprateada,sejaumparentedistantedoslobos e dos cães, ela nunca foi domesticada. Apesar de sua relaçãoevolucionária,nenhumcanídeofoicompletamentedomesticadoanãoserocão: a domesticação não acontece espontaneamente. O que Belyaevmostrou foi que ela pode ocorrer rapidamente. Começando com 130raposas, ele selecionou e criou as que eram mais "mansas", como asdescreveu,masasqueele realmenteescolheu foramasmenosmedrosasou agressivas com as pessoas. Para minimizar o risco de agressão, osanimais foram enjaulados. Belyaev se aproximava de cada jaula e

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convidavaaraposaacomeremsuamão.

Algumas o morderam, outras se esconderam. Algumas pegaram acomida,relutantemente.Outraspegaramacomidae tambémsedeixaramtocar e acariciar sem fugir ou resmungar. Outras ainda não apenasaceitaram a comida como até abanavamo rabo e choramingavampara opesquisador, convidando à interação ao invés de desencorajá-la. EssaseramasraposasqueBelyaevselecionou.Poralgumavariaçãonormalemseucódigogenético,essesanimaiseramnaturalmentemaiscalmosquandoicavam perto de pessoas, mostrando-se até mesmo interessados nelas.Nenhuma dessas raposas foi treinada; todas tiveram amesma exposiçãomínima aos tratadores, responsáveis pela alimentação e pela limpeza doacolchoamcntodajauladurantesuascurtasvidas.

Essas raposas "mansas" foramestimuladas a acasalar, e seus ilhotes,testadosdamesmaforma.Osmaismansosforamacasaladosaoatingirema idade apropriada; e seus ilhotes e os ilhotes deles passaram pelomesmoprocesso. Belyaev trabalhou atémorrer, e o programa continuou.Quarenta anosdepois,maisdametadedapopulaçãode raposas formavauma classe que os pesquisadores chamavam de "elite domesticada": nãoapenasaceitavamocontatocomaspessoas,comoeramatraídasporelas,"ganindopara ganhar atenção, cheirando e lambendo" tal como fazemoscães.Belyaevcriaraumaraposadomesticada.

Mais tarde, o mapeamento do genoma revelou que agora existemquarenta genes diferindo as raposas mansas de Belyaev da raposaprateada selvagem. Inacreditavelmente, ao selecionar um determinadotraçocomportamental,ogenomadoanimalfoialteradoemmeioséculo.E,com essamudança genética, vieram diversasmudanças ísicas familiaressurpreendentes: algumas das raposas da última geração têm pelosmulticoloridos, malhados, reconhecíveis nos cães vira-latas de todos oslugares.Elastêmorelhasmoleserabosqueenrolamporcimadodorso.Acabeça é maior e o focinhomais curto. Por incrível que pareça, elas sãoengraçadinhas.

Todas essas características ísicas vieram de carona, visto que umcomportamento especí ico foi escolhido. O comportamento não afeta ocorpo; ambos são resultados comuns de um gene ou conjunto de genes.Mas embora os comportamentos individuais não sejam ditados pelos

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genes, podemmais ou menos ocorrer por causa deles. Se a constituiçãogenética da pessoa gera níveis muito elevados do hormônio do estresse,por exemplo, isso não signi ica que ela icará estressada o tempo inteiro.Mas pode signi icar que em determinados contextos, em que uma outrapessoa tinha uma reação melhor, ela terá um patamar mais baixo derespostaclássicaaoestresse—aceleraçãodosbatimentoscardíacosedarespiração,aumentodatranspiraçãoeassimpordiante.Digamosqueesseindivíduodepatamarmaisbaixogritacomseucãoporeleseembaralharemsuaspernasnoparque.Seusgritoscomopobre ilhotecertamentenãosão geneticamentedeterminados—os genesnada sabem sobreparquescaninos, ou mesmo sobre ilhotes —, mas sua neuroquímica, criada porseus genes, facilitou a ocorrência desse comportamento quando umadeterminadasituaçãoseapresentou.

Isso também ocorre com raposas parecidas com cachorros.Considerando-se o que os genes fazem*, até mesmo uma pequenamudança em um deles — ativado ligeiramente mais tarde, digamos —poderia mudar a probabilidade tanto de determinados comportamentosquanto de formas especí icas de aparência ísica. As raposas de Belyaevmostram que um pequeno número de diferenças simples nodesenvolvimento é capaz de ter um efeito abrangente: suas raposas, porexemplo, abrem os olhos mais cedo e exibem as primeiras respostas aomedomaistarde,oqueastornamaisparecidascomoscãesdoquecomasraposasselvagens.Issolhesabreumajanelamaioremaisprecoceparaacriaçãodeumvínculocomapessoaquetomacontadelas—talcomoumpesquisadorhumanonaSibéria.Elasbrincamumascomasoutrasmesmoquandoatingemaidadeadulta,oquetalvezpermitaumasocializaçãomaisduradouraecomplexa.Valeobservarqueasraposasdesviaramdosloboshá uns dez ou 12 milhões de anos; no entanto, após quarenta anos deseleção,elasparecemdomesticadas.Omesmotalvezpudesseocorrercomoutroscarnívorosseos colocássemossobnossasasasedentrodenossascasas.Asmudançasgenéticasoslevariamasetornaremparecidoscomoscães.

*Oque(alguns)genes fazeméregulara formaçãodasproteínasqueatribuempapéisàscélulas.Quando,ondeeemqueambienteumacélulasedesenvolve—tudoissocontribuiparaoresultadoinal. Logo, o caminho que vai de um gene até o aparecimento de um traço ísico ou de umcomportamento é mais complexo do que se poderia inicialmente pensar, podendo havermodificaçõesaolongodoprocesso.

COMOOSLOBOSSETORNARAMCÃES

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Embora não pensemos muito sobre isso, a história dos cachorros, bemantes de você ter o seu, émais relevante para o que eles são do que osdetalhesdesuaascendência.Essahistóriacomeçacomoslobos.

Oslobossãocãessemacessórios.Noentanto,overnizdadomesticaçãoos torna criaturas muito diferentes.* Enquanto um cão de estimaçãoperdido não consegue sobreviver nem mesmo alguns dias sozinho, aanatomia, o instinto e a sociabilidade do lobo se combinam para torná-lomuito adaptável. Esses canídeos podem ser encontrados em diversosambientes: nos desertos, lorestas e no gelo. Amaioria vive em alcateias,com um casal reprodutor e de quatro a quarenta lobos mais jovens, emgeral descendentes. A alcateia age cooperativamente, compartilhandotarefas. Os mais velhos podem ajudar a criar os ilhotes, e o grupo todotrabalha em conjunto na caça às presas de grande porte. Eles sãomuitoterritoriais e passam bastante tempo demarcando e defendendo seusterritórios.

* Há debates acerca de os cães serem considerados uma espécie à parte dos lobos ou umasubespécie deles. Discute-se inclusive a utilidade ou a validade nos dias atuais do esquema declassi icação original de Lineu, que demarca espécies como uma unidade fundamental válida. Amaioria dos pesquisadores concorda que atualmente é melhor descrever lobos e cães comoespécies distintas. Embora esses animais possam acasalar uns com os outros, seus hábitos deacasalamento,aecologiasocialeosambientesemquevivemsãomuitoditerentes.

Dezenas de milhares de anos atrás, os seres humanos começaram aaparecer nesses territórios. Tendo abandonado suas formashabilis eerectus, o homo sapiens se tornava menos nômade e começava a criarassentamentos.Mesmo antes do início da agricultura, já havia interaçõesentrehumanoselobos.Contudo,aformacomoocorriamessasinteraçõeséuma fonte de especulação. Uma das hipóteses diz que as comunidadesrelativamente ixas dos humanos produziam grande quantidade dedejetos, incluindo restos de comida. Os lobos, que não apenas catamcomidacomoacaçam,teriamrapidamentedescobertoessafonte.Osmaisousados podem ter superado omedo desses novos animais— humanosnus— e começado a se banquetear nas pilhas de sobras. Dessa forma,umaseleçãonaturalacidental—delobosmenostemerososaocontatocomhumanos—teriasidoiniciada.

Aolongodotempo,oshumanospassaramatoleraroslobos,talvezatécriando alguns ilhotes como bichos de estimação ou, em tempos de

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escassez,comocomida.Geraçãoapósgeração,oslobosmaiscalmosforammaisbem-sucedidosporvivernas imediaçõesdasociedadehumana.Maistarde, as pessoas começariam a criar aqueles animais de que maisgostavamintencionalmente.Essefoioprimeiropassoparaadomesticação,a rede inição de animais para o nosso prazer. Em geral, esse processoocorreucomtodasasespécies,apartirdeumaassociaçãogradualcomoshumanos,pormeiodaqualasgeraçõesseguintessetornarammaisemaisdomadas e, inalmente, distintas em comportamento e corpo de seusancestraisselvagens.Adomesticaçãoé,portanto,precedidaporumtipodeseleção inadvertida de animais que estão próximos, são úteis ouagradáveis,oquelhespermitevivernosarredoresdasociedadehumana.O passo seguinte no processo envolvemais intenção. Os animais que sãomenos úteis ou agradáveis são abandonados, eliminados ou afastados denós. Dessa forma, selecionamos aqueles que se submetem com maisfacilidade a serem criados por nós. Finalmente, e mais familiarmente, adomesticaçãoenvolvecriaranimaisparaobtercaracterísticasespecíficas.

Asprovasarqueológicasdatamoprimeiro lobo-cãodomesticadoentre10 e 14mil anos atrás. Restos de cães foramdescobertos emmontes delixo (sugerindo seu uso como comida ou propriedade) e em locais desepultura, seus esqueletos enroscados ao lado de esqueletos humanos. Amaioriadospesquisadoresacreditaqueos cães começarama seassociarconoscoaindamaiscedo,talvezmuitasdezenasdemilharesdeanosatrás.Existem indícios genéticos — na forma de amostras de DNAmitocondrial*—deumadivisão sutil tãodistantequantohá145mil anosentre os lobos puros e os que iriam se tornar cães. Poderíamos chamarestes últimos de lobos protodomesticados, visto que eles própriosmudaram o comportamento de maneira que, mais tarde, encorajariam ointeresse (ou a mera tolerância) dos humanos por eles. Quando oshumanosapareceram,elespoderiamjáestarprontosparaadomesticação.Os lobos acolhidos foram provavelmente menos caçadores do quecatadores de lixo, menos dominantes e menores do que os lobos alfa, emais mansos. Resumindo, menos lobos. Assim, bem cedo nodesenvolvimento das civilizações antigas, milhares de anos antes dadomesticação de qualquer outro bicho, os humanos levaram esse animalparadentrodosmurosdesuasprimeirasvilas.

*ODNAmitocondrialsãocadeiasdeDNAdentrodamitocôndriaprodutoradeenergiadascélulas,mas foradonúcleodelas.Elassãoherdadasdamãepelaprolesemqualqueralteração.OmtDNAde indivíduos foi usado para rastrear a ancestralidade humana e para estimar as relações

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evolucionáriasentreespéciesanimais.

Esses cães vanguardistas não seriam confundidos com membros deuma das centenas de raças de cachorros atualmente reconhecidas. Apequena estatura dos dachshunds e o focinho achatado dos pugs sãoresultados da criação seletiva feita pelos humanos bem mais tarde. Amaioriadas raçasde cachorrosque conhecemoshoje só foi desenvolvidanos últimos séculos. Entretanto, esses primeiros cães teriam herdadotraços sociais e a curiosidade de seus ancestrais lobos, aplicando-os nacooperação e no apaziguamentodos humanos, bem como entre eles. Taisanimais perderam algumas de suas tendências para o comportamentocoletivo: os catadores de lixo não precisam da inclinação para caçar emconjunto.Nemérelevantequalquerhierarquiaquandovocêpodeviverecomer sozinho. Eles eram sociáveis, mas não no contexto de umahierarquiasocial.

A mudança de lobo para cão foi impressionante em termos develocidade. Os humanos demoraram aproximadamente dois milhões deanosparaevoluíremde HomohabilisparaHomosapiens,masolobosaltoupara a condição de cachorro em bem menos tempo. A domesticaçãoespelhaoqueanaturezafazaolongodecentenasdegeraçõespormeiodaseleção natural: um tipo de seleção arti icial que acelera o relógio. Oscachorrosforamosprimeirosanimaisdomesticadose,emalgunsaspectos,os mais surpreendentes. A maior parte dos animais domesticados não épredadora.Umpredadorpareceserumaescolhaimprovávelparaselevarpara casa: não apenas seriadi ícil encontrarprovisõesparaumcomedorde carne; estaríamos nos arriscando a ser a carne escolhida. E, emboraisso possa fazê-los (e os fez) bons companheiros de caça, seu papelprincipal nos últimos cem anos tem sido ser um amigo e con identeimparcial,nãoumtrabalhador.

Noentanto,oslobospossuemcaracterísticasqueostornamexcelentescandidatos à seleção arti icial. O processo favorece um animal social quetenha um comportamento lexível e seja capaz de adaptá-lo a ambientesdiferentes.Oslobosnascememumaalcateia,massópermanecemnelaatéque estejam um pouco mais velhos: então partem e encontram umparceiro para acasalar, criar uma nova alcateia, ou se juntam a uma jáexistente. Esse tipo de lexibilidade para mudar o status e os papéis

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funcionabemparalidarcomanovaunidadesocialqueincluioshumanos.Dentrodeumaalcateia,oupassandodeumaparaoutra,oslobosprecisamestar atentos ao comportamentode seus companheiros—assimcomooscães precisam estar atentos às pessoas que tomam conta deles, sendosensíveis ao seu comportamento. Como aqueles primeiros cães-lobos queencontraram os primeiros colonos humanos não teriam sidomuito úteis,devemtersidovalorizadosporoutrarazão—digamos,pelacompanhia.Aabertura desses canídeos lhes permitiu ajustar-se a uma nova alcateia:aquelaqueincluísseanimaisdeumaespécieinteiramentediferente.

DESLOBADOS

E então algumancestral parecido tanto comos lobos quanto comos cãestomou a iniciativa e passou a vagar entre os humanos ociosos, sendoadotadomais tarde e, em seguida, moldado por eles e não apenas peloscaprichos da natureza. Esse fato torna os lobos atuais uma espécieinteressante para ins de comparação com os cães: provavelmente elescompartilham muitos traços. O lobo atual não é ancestral do cachorro,embora lobos e cachorros compartilhem um ancestral comum. É bemprovável que o lobo moderno seja bastante diferente até de seusancestrais.Quantoàsdiferençasentrecãese lobos,épossívelqueelassedevamaoqueprovavelmente fezalgunsprotocães seremacolhidos, alémdecriados,peloshumanos.

Ehámuitasdiferenças.Algumasdizemrespeitoaodesenvolvimento:osolhosdoscães,porexemplo,demoramduasoumais semanasparaabrir,enquanto os ilhotes de lobo abrem os olhos com dez dias de vida. Essapequenadiferençapode terumefeitocascata.Emgeral,oscãessãomaislentosnodesenvolvimento ísicoecomportamental.Osgrandesmarcosdodesenvolvimento — andar, carregar objetos na boca, envolver-se pelaprimeira vez embrincadeirasdemorder—emgeral surgemmais tardepara os cães do que para os lobos.* Isso vira uma grande diferença; ouseja,ointervalodetempoparaasocializaçãoédiferenteparacãeselobos.Os primeiros têm mais tempo livre para aprender sobre os outros e seacostumaremaobjetosemseuambiente.Seoscãesforemexpostosanãocães—humanos,macacos,coelhosougatos—jánosprimeirosmesesdodesenvolvimento formam uma ligação, preferindo essas espécies emdetrimento de outras e frequentemente superando qualquer impulsopredatório ou temeroso que possamos esperar que sintam. Esse período

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sensíveloucríticodaaprendizagemsocialéotempoduranteoqualoscãesaprenderão quem é um cão, um aliado ou um estranho. Eles são maissuscetíveisaaprenderquemsãoseuscompanheiros,comosecomportarequais são as associações entre eventos. Os lobos possuem um intervalotemporalmenorparadeterminarqueméfamiliarequeméinimigo.

* Há também uma grande diferença entre as raças. Os poodles, por exemplo, não mostramcomportamentos de evitação e só começam a brincar-brigar semanas após os huskies, quandosemanasrepresentamumagrandeparceladotempodevidadeum ilhote.Naverdade,emcertosaspectos, os huskies se desenvolvemmais rapidamente do que os lobos. Ninguém estudou comoessefatoafetaseuentendimentocomoshumanos.

Há diferenças na organização social: os cães não formam gruposverdadeiros; ao contrário, eles catam comida ou caçam pequenas presassozinhos ou em paralelo.* Embora não cacem cooperativamente, sãocooperativos: os cães perdigueiros e os de assistência, por exemplo,aprendemaagiremsincroniacomseusdonos.Para oscães,asocializaçãoentreoshumanosénatural;aocontráriodoslobos,queaprendemaevitaros humanos por sua própria natureza. O cachorro é ummembro de umgruposocialhumano;seuambientenaturaléentrepessoaseoutroscães.Elesmostramoqueéchamadonascriançasde"ligação":preferênciapelaprimeira pessoa que toma conta deles. Eles sentem angústia quandoseparadosdessapessoaecelebramdeformaespecialseuretorno.Emboraos lobos cumprimentem outros membros da alcateia ao se encontraremapós uma separação, eles não parecem mostrar ligação com igurasespecí icas. Para um animal que transita entre humanos, tais ligaçõesfazem sentido; para um animal que vive em um grupo, isso é menosrelevante.

* Visto que o processo de domesticação provavelmente começou com os primeiros catadores decomida canídeos que viviam ao redor de grupos de humanos — comendo as sobras de nossasmesas—,éumaposturaparticularmente tolaalimentaroscãesapenascomcarnecruacombasenateoriadeque,nofundo,elessãolobos.(Oscãessãoonívorosquehámilênioscomemoquenóscomemos.Commuitopoucasexceções,oqueébomparaomeupratoébomparaatigeladocão.

Do ponto de vista ísico, os cães e os lobos diferem. Embora ambossejam quadrúpedes onívoros, a gama de tamanhos e tipos ísicos doscachorros é extraordinária. Nenhum outro canídeo, ou animal de outraespécie, mostra amesma diversidade de tipos ísicos: do papillon de um

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quilo e meio ao newfoundland de noventa quilos; de cães magros comfocinhos compridos e rabos magros a cães gorduchos com focinhosencurtados e tocos de rabo. Membros, orelhas, olhos, focinho, rabo,pelagem, ancas e barriga são dimensões que permitem recon igurar oscãessemque issoos impeçadecontinuaremasercães.Ostamanhosdoslobos, em contrapartida, são, como a maioria dos animais selvagens,bastante uniformes em umdeterminado ambiente.Mas atémesmo o cão"médio"— algo que lembra um vira-lata prototípico— é distinguível deum lobo.Apeledo cão émais grossadoque ados lobos; embora ambospossuam omesmo número e tipo de dentes, os do cão sãomenores. E acabeçadocãoémenordoqueadolobo:aproximadamentevinteporcentomenor.Emoutraspalavras,entreumcãoeumlobocomomesmotamanhodecorpo,ocãopossuiumcrâniomuitomenor—e,portanto,umcérebromenor.

Esseúltimo fato continuou a ser difundido, talvez em funçãodo apeloprogressivo da a irmação (hoje refutada) de que o tamanho do cérebrodetermina a inteligência. Embora errônea, a transição gradativa de falarsobreo tamanhodocérebroparareferir-seà sua qualidade venceu todasasprovas em contrário. Estudos comparativos com lobos e cães ligados atarefas de resolução de problemas inicialmente pareceram con irmar ainferioridade cognitiva dos cães. Lobos criados em cativeiro queconseguiramaprenderuma tarefa testada—puxar trêsdeumasériedecordas em uma ordem especí ica — saíram-se muito melhor do que oscães testados. No início, os lobos aprenderammais rapidamente a puxarqualquer corda e depois prosseguiram, sendo mais bem-sucedidos naaprendizagem da ordem em que as cordas deveriam ser puxadas. (Elestambém destroçaram mais cordas com os dentes, embora ospesquisadoresnão tenhamsepronunciadoacercadesse fato indicar algosobre sua cognição.) Os lobos também são ótimos em escapar de gaiolasfechadas;os cães,não.Amaiorpartedospesquisadoresconcordaqueoslobos prestam mais atenção do que os cães a objetos ísicos e osmanipulamcommaiscompetência.

A partir de resultados como esses, surge a noção de que existe umadiferença cognitiva entre lobos e cães: em geral, os lobos resolvemproblemas com astúcia, enquanto os cães são bobos. Na vida real, asteorias históricas oscilaram entre a irmar que os cães são maisinteligentes, ou que os lobos são os mais espertos. Em grande parte, a

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ciênciadependedaculturanaqualelaépraticadaesuasteoriasre letemas ideias então dominantes sobre a mente animal. Os dados acumuladossobreocomportamentodecãese lobos,noentanto, levamaumaposiçãomais diversi icada. Os lobos parecem ser melhores na resolução dedeterminados tipos de quebra-cabeças ísicos. Alguns desses dons sãoexplicáveisaoobservarmosseucomportamentonatural.Porqueos lobosaprenderam rapidamente a tarefa de puxar cordas? Bem, em seuambiente natural eles agarram e puxam objetos (tais como presas).Algumasdiferençaspodemestarligadasàsdemandasmaisrestritasfeitasaos cães pela vida. Tendo sido enlaçados pelomundo dos humanos, elesnão precisammais de algumas habilidades que seriam necessárias parasobreviveremsozinhos.Comoveremos,ashabilidades ísicasausentesnoscães são compensadas por suas habilidades no relacionamento com aspessoas.

EENTÃONOSSOSOLHOSSEENCONTRARAM...

Há uma última e aparentemente pequena diferença entre as duasespécies. Essa pequena variação comportamental tem consequênciasextraordinárias.Éaseguinte:oscãesolhamnosnossosolhos.

Oscãesfazemcontatovisualeolhamparanósparaobterinformações— a localização da comida, nossas emoções, o que está acontecendo. Oslobosevitamessecontato.Emambasasespécies,ocontatovisualpodeseruma ameaça: encarar signi ica declarar autoridade. Exatamente comoocorre entre os humanos. Em uma de minhas aulas de psicologia nauniversidade, peço aos alunos que façam uma experiência de camposimples: fazer e manter contato visual com todas as pessoas com quemencontram no campus. Tanto eles quanto os receptores do olhar secomportamde formaextraordinariamente consistente: todos icam loucospara desviar o olhar. É estressante para os alunos. De repente inúmerosdeles a irmam ser tímidos: relatam que seus batimentos cardíacosaceleramecomeçamasuarsimplesmenteaosustentaroolhardealguémpor alguns segundos. Eles tramam histórias elaboradas na hora paraexplicar por que desviaram o olhar, ou omantiveram pormeio segundoadicional. Grande parte do tempo, os olhares recebidos desviam o olhardaqueles que encaram. Em uma experiência semelhante, eles izeramoutrotipodeteste,veri icandoatendênciadenossaespécieparaseguiroolhardeoutrosatéopontofocal.Umalunoseaproximadequalquerobjeto

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publicamente visível e compartilhado — um edi ício, uma árvore, umamarca na calçada— e olha ixamente para um determinado ponto. Seucompanheiro, outro aluno, se aproxima e clandestinamente registra asreaçõesdos transeuntes. Senão forumahorademuitomovimentoenãoestiverchovendo,pelomenosalgumaspessoasparamparaseguiroolhare itar curiosamente aquele ponto tão fascinante na calçada: certamente,devehaveralgo.

Seessecomportamentonãosurpreende,éporqueeleémuitohumano:nós vemos. Os cães também veem. Embora tenham herdado algumaaversão a itar longamente outros olhos, os cães parecem estarpredispostos a examinar nossos rostos para obterem informações, seassegurarem de algo, se orientarem. Esse comportamento não é apenasprazeroso para nós— existe certa satisfação em itar profundamente osolhos de um cachorro que nos encara —, mas perfeito para os cães serelacionarembemcomhumanos.Comoveremosmaisadiante,eletambémserve como um fundamento para as capacidades de cognição social doanimal.Nãoapenasevitamosocontatovisualcomestranhos;con iamosnocontato visual de pessoas íntimas. Há informação em um olhar furtivo;olhar nos olhos de outra pessoa é profundo. O contato visual entre aspessoaséessencialparaacomunicaçãonormal.

Portanto,acapacidadedocãoparaencontrareolhardentrodenossosolhos pode ter sido um dos primeiros passos para sua domesticação:escolhemosaquelesqueolhamparanós.Nãoéestranhoque izemoscomoscães?Começamosaprojetá-los.

CÃESCOMESTILO

Aplaca em sua gaiola dizia: "Mistura de labrador". Todo cão naquele abrigo era umamistura delabrador. Mas Pump certamente nasceu de um spaniel: o pelo preto e sedoso caía de seu corpodelgado;asorelhasaveludadasemolduravamorosto.Dormindo,elaeraumfilhotedeursoperfeito.Rapidamente, os pelos do rabo cresceram mais e icaram leves como plumas: então, ela é umagoldenretriever.Aí,oscaracóismaciosdabarriga icarammaisdensos,asbochechasseencheramumpouco:Ok, ela é um cãod'água. Àmedida que icavamais velha, a barriga crescia até atingirumaformasólidaeemformatodebarril—a inal,elaéumlabrador;orabovirouumabandeiraqueprecisava ser aparada—umamistura de labrador comgolden retriever; ela conseguia icarquieta emummomento e agitada no seguinte— uma poodle. Ela é encaracolada e tem barrigaarredondada:claramenteoprodutodeumsheepdogqueseen iounasmoitascomumacarneirabonita.Elatemestilopróprio.

Oscãesoriginaiserammestiços,nosentidodequenãoeramoriundosde

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umalinhagemcontrolada.Porém,muitosdenossoscães,vira-latasounão,são fruto de centenas de anos de uma criação rigidamente controlada. Oresultado desse processo de seleção é o surgimento do que são quasesubespécies, variando em termos de formato, tamanho, tempo de vida,temperamento*ehabilidades.Osociávelnorwichterrier,comvinteecincocentímetrosdealturaecincoquilos,pesatantoquantoacabeçadocalmo,doceeenormenewfoundland.Peçaaalgunscãesparabuscarumabolaevocê receberá um olhar intrigado;mas não é preciso pedir duas vezes aumbordercollie.

As diferenças familiares entre as raçasmodernas nem sempre são oresultadodeseleção intencional.Algunscomportamentosecaracterísticasísicas são selecionados— pegar uma presa, o porte reduzido, um rabobem enrolado — enquanto outros simplesmente lá estão. A realidadebiológicadacriaçãoéqueosgenesprópriosparatraçosecomportamentossurgem em grupos. Acasale algumas gerações de cães com orelhasparticularmentelongasevocêpodedescobrirquetodoselescompartilhamoutras características: um pescoço forte, olhar cabisbaixo, mandíbulaslargas. Os cães de percurso, criados para galoparem rapidamente oudurantemuitotempo,têmpernaslongas—otamanhodaspernasdeleséigual(casodohusky)ousupera(casodogalgo)aprofundidadedospeitos.Em contrapartida, os cães que rastejam pelo chão (como dachshund)acabaramcompernasmuitomaiscurtasdoqueaprofundidadedopeito.Da mesma forma, selecionar um comportamento especí icoinadvertidamente implica selecionar comportamentos relacionados. Criecães muito sensíveis a movimentos — que provavelmente têm umaabundância de fotorreceptores do tipo vara em suas retinas — e vocêpoderá também obter um cão cuja sensibilidade aguda a movimentos oleva a ter um temperamento nervoso. A aparência também podemudar:eles podem ter olhos grandes e globulares para enxergar no escuro. Àsvezes, o que se tornou desejável em uma raça é um traço que apareceupelaprimeiravezinadvertidamente.

* Temperamento é usado aqui no sentido aproximado de personalidade, sem o colorido doantropomor ismo. É perfeitamente aceitável falar sobre a personalidade de um cão se com issoqueremosdizer"opadrãousualdecomportamentoeosseustraçosindividuais".Comportamentoetraçosnãosãoexclusivosdoshumanos.Algunspesquisadoresusamapalavratemperamentoparasereferiràscaracterísticas,conformeelasaparecemnosanimaisjovens—atendênciagenéticadocachorro—,enquantoreservamotermopersonalidadeparasereferiratraçosecomportamentosadultos, ou seja, o resultado desse temperamento especí ico combinado com o que quer quetenhamenfrentadoemseuambiente.

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Existem indícios da existência de raças distintas que remontam hácinco mil anos. Em desenhos do Egito antigo, pelo menos dois tipos decachorros aparecem: os cães parecidos com os mastins, com cabeça ecorpograndes, eosmagros comrabosenrolados. *Osmastins podem tersidocãesdeguarda;osaelgadosparecemtersidocompanheirosdecaça.Eassimcomeçouacriaçãodecãespara insespecí icos—econtinuoudessejeito pormuito tempo.No século XVI, houve acréscimode outros cães decaça, perdigueiros, terriers e de pastoreio. No século XIX, os clubes e ascompetições brotaram, e a nomeação e o monitoramento das raçasexplodiram.

*Nãoháindícios,noentanto,dequequalquerraçaexistenteatualmentepossaserdependentedasraças originais. Cães Faraó e Ibizano são citados como raças mais "velhas", e essas de iniçõesparecem se apoiar na sua semelhança ísica com os cães das pinturas egípcias. No entanto, seusgenomasrevelamqueelessurgirammuitomaisrecentemente.

Éprovávelqueamaioriadasváriasraçasmodernastenhasurgidocomessa proliferação da criação nos últimos quatrocentos anos. O AmericanKennelClub listahojequase cento e cinquenta variedades, agrupadasdeacordo com a função cinotécnica* da raça. Os companheiros de caça sãodistribuídos em categorias como "esportivos", "cães de caça","trabalhadores" e "terrier"; além disso, há as raças trabalhadoras,"pastores e boiadeiros", as simplesmente "não esportivas" e as, um tantoautoexplicativas, "toys".Mesmo entre os cães criados para acompanhar acaçada,há subdivisões:pelopróprio tipodeassistênciaque fornecem(oscãesde aponte apontama presa; os retrievers a resgatam; os afegães asfazemcorreratécansar);pelapresaespecí icaqueperseguem(osterrierscaçam ratos e os harriers caçam lebres); e pelo ambiente preferido (osbeaglescaçamnaterra;osspanielssabemnadar).Nomundointeiro,aindaexistem centenas de raças adicionais, que variam não apenas de acordocomouso,mas isicamente:otamanhoeoformatodocorpoedacabeça,otipoderabo,depeloecor.Procureumaraçapuradecachorroevocêvaisedepararcomumalistadeespeci icaçõesparecidascomasdeumcarro,detalhandooseufuturo ilhotedesdeasorelhasatéotemperamento.Querumcãocommandíbulas largas,pernascompridasepelocurto?Pensenodinamarquês. Prefere um com focinho curto, pele enrugada e raboenrolado?Aquiestáumlindopugparavocê.Escolherentreraçasécomoescolher entre pacotes de opções antropomor izadas. Você não apenasescolhe um cão, você escolhe um que é tipicamente "digno, nobre, altivo,com um olhar corajoso, tranquilo e esnobe" (shar-pei); "alegre e afetivo"

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(cockerspanielinglês);"reservadoeseletivocomestranhos"(chow-chow);com uma "personalidade brincalhona" (setter irlandês); cheio de si(pequinês); com "ímpeto insensato e afobado" (terrier irlandês);"equilibrado" (bouvier des landres); ou, aindamais surpreendente, "umcãobemcanino"(briard).

*Namaiorparte,aocupaçãocitadaéteóricaporqueumaminoriadoscãescriadosparatrabalharrealmente executa o trabalho que sua raça designa (predominantemente caçam ou cuidam deanimais que pastam). As raças remanescentes são companheiros que sentam em nossos colos ousão adestrados, aparados e secados com secador para serem exibidos nos shows como "cãesestilosos"—esquisito,vistoquecomerasmigalhasdenossosanduícheapósumbanhocaprichadoébastantediferentederesgataravesabatidasdeumpântano.

Talvez os ciné ilos se surpreendam ao ouvir que o agrupamento deraças com base na semelhança genética não resulta nos mesmosagrupamentos estabelecidospeloAmericanKennel Club.Os caim terriersestão mais próximos dos cães de caça; os pastores e os mastinscompartilhammuitosgenomas.Ogenomatambémcon litacommuitasdaspressuposições sobre as semelhanças entre cães e lobos: os huskies derabos de foice e pelo comprido estãomais próximos dos lobos do que oesquivo pastor alemão de corpo longo. Os basenjis, que não têmpraticamente qualquer semelhança comos lobos, estão aindamais perto.

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Essa é, portanto, outra indicação de que, durante a maior parte de suadomesticação, a aparência do cão foi um efeito colateral acidental de suacriação.

Asraçascaninassãopopulaçõesgenéticasrelativamentefechadas,istoé, cada grupo de gene da raça não aceita novos genomas vindos de fora.Parasermembrodeumaraça,umcãoprecisaterpaisquetambémsejammembrosdessaraça.Logo,quaisquermudanças ísicasnosdescendentespodemadvirsomentedemutaçõesgenéticasaleatórias,nãodamisturadegrupos de genes diferentes que, comumente, ocorre quando os animais(incluindo os humanos) cruzam. Entretanto, as mutações, variações emesclas são, em geral, boas para a população e ajudam a evitar doençashereditárias; essa é a razão pela qual os cães de raça pura, emboradescendentes do que é considerada uma "boa linhagem" — aancestralidadepode ser rastreadaatravésda linhagemde criação—sãomaissuscetíveisaosdefeitosfísicosdoqueosderaçamista.

Umavantagemdosgruposdegenesfechadoséofatodeogenomadeuma raça poder ser mapeado — o que, na verdade, aconteceurecentemente: o genoma do boxer foi o primeiro, com cerca de 20 milgenes. Como resultado, os cientistas começam a descobrir onde, nogenoma, icamasvariaçõesgenéticasqueresultamemdesordensetraçoscaracterísticos, tais como a narcolepsia, a suscetibilidade à inconsciênciarepentinaencontradaemalgumasraças(sobretudoosdobermans).

Outra vantagem de selecionar um exemplar de um grupo de genesfechadosde uma raça examinadapor pesquisadores é que sentimos queestamosescolhendoumanimal relativamenteprevisível.Pode-seescolherum cão "amigável" ou um considerado um cão de guarda competente.Porém, não é tão simples assim: comonós, os cães sãomais do que seusgenomas.Nenhumanimalsedesenvolveemumvácuo:osgenesinteragemcomoambienteparaproduziro cachorroqueconhecemos.A formulaçãoexataédi ícildeespeci icar:ogenomamoldaodesenvolvimentoneuraleísico, que, por sua vez, determina parcialmente o que será notado noambiente — e, seja lá o que for, molda ainda mais o desenvolvimentoneural e ísico contínuo. Isso quer dizer que até mesmo com genesherdados,oscãesnãosãocópias iéisdeseuspais.Alémdisso,hátambémuma grande variabilidade natural no genoma. Até mesmo um cachorroclonado, caso você ique tentado a reproduzir seu amado bicho de

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estimação,nãoserá idênticoaooriginal:oqueumcãoexperimentaecomquem se relaciona exercem inumeráveis e não rastreáveis in luênciassobrequemelesetorna.

Assim,emboratenhamostentadoprojetarcães,osquevemoshojesãocriaturas parcialmente resultantes do acaso. De que raça ela é? É apergunta que mais me izeram a respeito de Pump — a mesma quetambém faço a respeito dos cães. Sua ascendência vira-lata encoraja ogrande jogo de adivinhação de sua raça: os palpites resultantes sãosatisfatórios,muitoemboranenhumdelespossajamaisserconfirmado.*

*Ostestesdeanálisegenéticasetornaramdisponíveisdesdeomapeamentodogenoma.mediantepagamentoe combaseemumaamostrade sangueoudeumesfregaçode célulasdo interiordaboca, as empresas teoricamente revelam o código genético do cachorro, em termos das raçasascendentes.Nomomento,aprecisãodessestesteséindeterminada.

AÚNICADIFERENÇAENTREASRAÇAS

Embora exista uma literatura extensa sobre raças caninas, nunca secomparou cienti icamente as diferençasde comportamento entre elas: talcomparaçãoteriaquecontrolaroambientedecadaanimal,dando-lhesosmesmos objetos ísicos, expondo-os aos mesmos cães e humanos — omesmotudo,en im.Édi ícilacreditarnaviabilidadedessacomparaçãoseconsiderarmos as a irmações ousadas feitas sobre cada raça. Isso nãosigni icadizerqueasdiferençassãomínimasouinexistentes.Semdúvida,os cãesde cada raça se comportamde formadiferentequando, digamos,se deparam com coelhos correndo por perto. No entanto, seria um errogarantir que um cão, de raça ou não, agirá inevitavelmente de umadeterminada maneira ao ver aquele coelho. Trata-se do mesmo errocometido quando chamamos algumas raças de "agressivas" e legislamoscontraelas.*

*Oqueseconsideraagressivoégeracionaleculturalmenterelativo.Ospastoresalemãesestavamno topo da lista após a Segunda Guerra Mundial; na década de 1990,os rottweillerse osdobermansforamdesprezados;oAmericanStaffordshireterrier(tambémconhecidocomopitbull)é a atualbête noire. Sua classi icação tem mais a ver com eventos recentes e com a percepçãopúblicadoquecomsuanatureza intrínseca.Pesquisas realizadas recentementedescobriramque,de todas as raças, osdachshundseram os mais agressivos, tanto com os donosquantocomestranhos. Talvez isso não seja devidamente relatado porque umdachshundraivoso pode serrecolhidoeescondidoemumabolsagrande.

Até mesmo sem saber as diferenças especí icas entre as reações do

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labradorretrieveredopastoraustralianoaocoelho,háalgoquepodedarconta da variabilidade de comportamento entre as raças. Elas possuemdiferentespatamaresdeobservaçãoereaçãoaestímulos.Omesmocoelho,por exemplo, causa níveis distintos de excitação em dois cães diferentes;da mesma forma, a mesma quantidade de hormônio que produz essaexcitaçãocausadiferentestiposderesposta,desdelevantaracabeçacominteressemoderadoatéacaçadesenfreada.

Há uma explicação genética para isso. Embora chamemos um cão deretriever ou de pastor, não é o comportamento de resgate trazer a caçaabatida — ou de pastoreio que foi selecionado. Ao contrário, foi aprobabilidade de que o cão respondesse apenas na medida certa adeterminados eventos e cenas. No entanto, não existe um gene quepossamos responsabilizar por isso. Nenhum gene leva diretamente aocomportamento resgate — ou a qualquer comportamento especí ico queseja. Porém, um conjunto de genes pode afetar a probabilidade de umanimalagirdeumadeterminadamaneira.Tambémemnóshumanos,umadiferençagenéticaentreindivíduospodeaparecernaformadetendênciasdiferentes para determinados comportamentos. É possível ser mais oumenossuscetívelaovíciodedrogasestimulantes,baseadoparcialmentenaquantidade de estímulos que um cérebro necessita para produzir umsentimentoprazeroso.Ocomportamentoaditivoé,portanto,passíveldeservinculadoagenesqueprojetamocérebro—masnãoexiteumgeneparao vício. Aqui também o ambiente é claramente importante. Alguns genesregulam as expressões de outros genes, que podem depender decaracterísticasambientais.Sealguémforcriadoemumacaixa,semacessoadrogas,nuncadesenvolveráproblemascomelas,independentementedasuatendênciaaovício.

Damesma forma, uma raça de cachorro pode se distinguir de outraspor sua inclinação para reagir a determinados eventos. Embora todos oscães consigam ver pássaros voando à sua frente, alguns sãoparticularmente sensíveis a pequenosmovimentos rápidos, como algo semexendonasalturas.Seugrauderespostaaessemovimentoémuitomaisbaixodoqueodoscãesquenãosãocriadosparaseremcompanheirosdecaça. Em comparação com os cachorros, nosso grau de resposta é aindamaisalto.Certamentenóshumanosconseguimosverpássarosdecolando;porém,mesmoquandoelesestãobemànossa frente,podemosdeixardepercebê-los. Nos cães de caça, omovimento não é apenas observado, ele

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está diretamente ligado à outra tendência: a de perseguir a caça que semovimenta daquele jeito. E, claro, para que essa tendência leve àperseguição,éprecisoterpássarosoucoisasquesemovamdessamaneiraporperto.

De forma semelhante, um cão pastor que passa a vida reunindorebanhosdeovelhasdevepossuirumdeterminadoconjuntodetendênciasespecí icas: saber observar e acompanhar os indivíduos de um grupo,detectar omovimento errantedeumaovelhaque se afasta epossuir uminstinto para manter o rebanho unido. O resultado inal é um cão depastoreio, mas seu comportamento é construído por tendênciasfragmentadas que os pastoresmanipulam para controlar suas ovelhas. Énecessáriotambémqueessecãosejaexpostoaovelhasmuitocedoemsuavida,ouessastendênciasacabarãosendoaplicadasnãoàsovelhas,mas,deuma forma desorganizada, a crianças, pessoas correndo no parque ouesquilosnojardim.

Umaraçadecachorrotachadade agressivapodeterumnívelbaixodepercepção e reação amovimentos ameaçadores. Se for baixo demais, atémesmo movimentos neutros — aproximar-se do cão — poderão serpercebidoscomoumaameaça.Porém,seocãonãoforencorajadoaseguiressa tendência, é provável que ele nuncamanifeste a agressão pela qualsuaraçaénotoriamenteconhecida.

Conheceraraçadeumcachorronosforneceumachavedeouroparaentendermosalgosobreeleatémesmoantesdeo termosencontrado.Noentanto,éumerroacharqueesseconhecimentoécapazdegarantirqueocão se comportará conforme anunciado — só garante que ele tenhaalgumas tendências. O que você vê em um cão de raça mista é umabrandamentodos traçosmais radicaisdas raças.Os temperamentos sãomaiscomplexos:versõesmédiasdeseusascendentes.Dequalquerforma,nomear uma raça de cachorro é apenas o começo de um entendimentoverdadeiro do umweltdo cão, não um ponto inal: o nome não explica oqueavidadocãosignificaparaocão.

ANIMAISCOMUMASTERISCO

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Estánevando e o sol estánascendo, o que signi ica que temos cercade trêsminutospara eumevestireirmosparaoparquebrincarantesdaneveseratacadaporoutrosfesteiros.Aoarlivre,bemagasalhadas,avançocomdi iculdadeedesajeitadamentepelanevealta,enquantoPumpatravessacomgrandessaltos,deixandopegadasparecidascomasdeumcoelhogigante.Sentoparafazerumanjodeneve,ePumpseatiraaomeulado.Pareceestarfazendoumcão-anjodeneveaoesfregarascostasparaafrenteeparatrásnaneve.Olhoparaelafelizpornossabrincadeiracompartilhada.Então,sintoumcheirohorrívelvindodadireçãodela. ImediatamenteperceboquePumpnãoestáfazendoumcão-anjodeneve;elaestáseesfregandonacarcaçaapodrecidadeumanimalpequeno.

Háumatensãoentreosqueconsideramque,nofundo,oscãessãoanimaisselvagens e aqueles que acham que são criaturas criadas por nós. Oprimeiro grupo tende a se voltar para o comportamento dos lobos paraexplicar o dos cães. Certos adestradores caninos que se tornarampopulares nos últimos tempos são admirados por abraçaremcompletamenteaporçãolobodoscães.Comfrequência,sãoridicularizadospelosegundogrupo,quetrataseuscachorroscomopessoasquadrúpedesque babam. Nenhum dos dois está certo. A resposta encontra-seexatamente nomeio dessas duas abordagens. Os cães são animais, claro,com tendências atávicas, mas parar nesse ponto signi ica ter uma visãotacanha da história natural do cão. Eles foram remodelados. Agora, sãoanimaiscomumasterisco.

A inclinação para ver os cães como animais em vez de criações denossas mentes está essencialmente correta. Para evitarantropomor izações, alguns se voltam para o que pode ser chamado debiologia desidenti icatória: uma biologia isenta de subjetividade ou deconsiderações confusas, tais como consciência, preferências, sentimentosou experiências pessoais. Um cão é um animal, dizem, e os animais sãosistemasbiológicos cujo comportamentoe isiologiapodemser explicadospor uma terminologia mais simples e versátil. Recentemente, vi umamulher saindo de uma petshop com seu terrier calçado com quatrominúsculossapatos:"paranãolevarsujeiradaruaparacasa",explicouela,enquanto o puxava e ele escorregava com as pernas rígidas pela ruaimunda. Essa mulher poderia se bene iciar se re letisse mais sobre anatureza animal de seu cachorro emenos sobre a semelhança dele comum bicho de pelúcia. Na verdade, como veremos, conhecer algumas dascomplexidadesdoscães—aacuidadedofaro,acapacidadevisual,aperdado medo e o simples efeito de um abanar do rabo — ajuda bastante aentendê-los.

Poroutrolado,deváriasmaneiras,chamarumcachorrode apenasumanimal e explicar todos os comportamentos caninos tendo como base o

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comportamento dos lobos é uma atitude parcial e equivocada. A chaveparaumconvíviobem-sucedido comos cães emnossos lares é o própriofatodequeelesnãosãolobos.

Por exemplo, já é hora de reformularmos as falsas noções de quenossos cachorros nos veem como suas "alcateias". A linguagem da"alcateia"—comasreferênciasaocão"alfa",aodomínioeàsubmissão—é uma das metáforas mais difundidas tanto para a família dos humanosquanto para a dos caninos. Ela possui a mesma origem dos cães: estessurgiram de ancestrais do tipo lobo, e os lobos formam alcateias. Logo,a irma-se, os cães formam alcateias. A aparente naturalidade dessatransiçãoé camu ladaporalgunsdosatributosque não transferimos doslobosparaoscães:oslobossãocaçadores,masnãodeixamosnossoscãescaçarparasealimentar. *E,emborapossamosnossentirseguroscomumcãonasoleiradoquartodeumbebê,nuncadeixaríamosumlobosozinhocomnossorecém-nascidoadormecido,quatroquilosdecarnevulnerável.

No entanto, para muitos, a analogia com uma organização domínio-alcateia é extremamente atraente —, sobretudo, quando somos a partedominanteeocãoa submissa.Umavezaplicada,a concepçãopopulardeuma alcateia perpassa todos os tipos de interação com nossos cães:comemosprimeiro,ocãodepois;mandamos,eleobedece;passeamosocão,ele não nos passeia. Na dúvida de como lidar com um animal em nossomeio,anoçãode"alcateia"nosforneceumaestrutura.

*Nãoapenasoscãesnãocostumamcaçarparasealimentar—sejamounãoencorajadosa fazê-lo—,comosuatécnicadecaça,conformejáobservado,é"medíocre".Umlobocaminhacalmoe irmeemdireçãoa suapresa, semquaisquermovimentos frívolos; as caminhadasde caçados cãesnãoadestradossãointermitentes—elesvagamparaafrenteeparatrás,aumentandoediminuindodevelocidade. Pior ainda; eles podem se distrair com sons ou ter uma repentina compulsão paraperseguir uma folha que cai. As trilhas dos lobos revelam suas intenções. Os cães perderam essaintenção;nósnoscolocamosnesselugar.

Infelizmente, essa noção não apenas limita o tipo de entendimento einteração que podemos ter comnossos cães, como também se baseia emuma premissa falsa. Evocada dessa forma a "alcateia" tem poucasemelhançacomumaalcateiadelobosreal.Omodelotradicionalédeumahierarquia linear, com um casal alfa dominante e vários lobos "beta" emesmo "gama" ou "ômega" abaixo dele. Só que os biólogoscontemporâneosespecialistasem lobosconsideramessemodelosimplistademais. Ele foi formado a partir de observações de lobos cativos. Comespaçoerecursoslimitados,dispostosempequenoscercados,oslobossem

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relaçãodeparentesco se auto-organizam, eo resultadoéumahierarquiadepoder.Omesmodeveacontecercomqualquerespéciesocialcon inadaemumespaçopequeno.

Na vida selvagem, as alcateias consistem quase inteiramente deanimais aparentados ou acasalados. Elas são famílias, não grupos decolegas competindo pela liderança. Uma alcateia típica inclui um casalreprodutoreumaoumuitasgeraçõesdedescendentes.Ogrupoorganizaocomportamentosocialedecaça.Apenasumcasalacasala,enquantooutrosmembros adultos ou adolescentes participam da criação dos ilhotes.Indivíduos diferentes caçam e compartilham comida; às vezes, váriosmembroscaçamjuntosumapresadeportemaior,que talvezsejagrandedemaisparaseratacadaisoladamente.Animaissemrelaçãodeparentescoocasionalmente se juntam para formar alcateias com parceiros múltiplosprocriadores,mas issoéumaexceção,provavelmenteumaacomodaçãoapressõesambientais.Algunslobosnuncasejuntamaumaalcateia.

Oúnicocasalprocriador—paisde todosoudamaioriadosmembrosdaalcateia—guiaosrumoseocomportamentodogrupo,maschamá-losde "alfas" implicauma rivalidadepela liderançaquenão émuito correta.Tal como um pai humano, eles não são os dominantes alfa. Da mesmaforma, o status subordinado de um lobo jovem tem mais a ver com suaidade do que com uma hierarquia rigorosamente imposta. Oscomportamentosvistoscomo"dominantes"ou"submissos"nãosãousadosna disputa pelo poder, mas para manter a unidade social. Em vez deconstituirumahierarquiasocial,aclassificaçãoéumamarcaetária,exibidaregularmente nas posturas expressivas dos animais ao cumprimentar einteragir. Ao se aproximar de um lobo mais velho com o rabo baixo,abanando, e o corpo próximo ao chão, o lobo jovem está reconhecendo aprioridadebiológicadomaisvelho.Os ilhotesestãonaturalmenteemumnível subordinado; nas alcateias de famílias mistas, eles podem herdaralgumstatusdeseuspais.Emboraaclassi icaçãopossaserreforçadaporencontrostensos,eàsvezesperigosos,entreosmembrosdeumaalcateia,isso é mais raro do que a agressão a um intruso. Os ilhotes aprendemmelhorsobreseu lugarna interaçãocomoutroscolegas,observando-osenãosecolocandonolugardeles.

A realidade do comportamento em alcateia contrasta dramaticamentecom o comportamento dos cães em outras maneiras. Em geral, os cães

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domésticos não caçam. Amaioria não nasce na unidade familiar na qualviverá; comhumanossendoosmembrospredominantes.As tentativasdeacasalamentodos cãesdeestimaçãonão têm (felizmente) relaçãoalgumacom as fases de acasalamento dos humanos que os adotam —teoricamenteasdocasalalfa.Atémesmooscãesselvagens—aquelesquenuncaviveramemumafamíliahumana—,nãocostumamformaralcateiassociaistradicionais,emborapossamtrilharcaminhosparalelos.

Nós também não somos a alcateia dos cachorros. Nossa vida émuitomaisestáveldoqueadeumaalcateiade lobos:o tamanhoeosmembrosdesses grupos de animais estão sempre em luxo, mudando com asestações, o número de descendentes, com os lobos adultos jovenscrescendoepartindoemseusprimeirosanos,devidoàdisponibilidadedepresas. Em geral, os cães adotados por nós vivem o resto de suas vidasconosco;ninguéméexpulsodecasanaprimaveraousejuntaanósapenaspara a grande caçada de alces no inverno. O que os cães domésticosparecem ter herdado dos lobos é a sociabilidade de uma alcateia: uminteresseemestarpertodeoutros.Defato,oscachorrossãooportunistassociais.Vivemsintonizadosnasaçõesdosoutros,eoshumanosacabamserevelandoexcelentesanimaiscomosquaisvaleapenasesintonizar.

Evocar o modelo ultrapassado e simplista das alcateias encobre asdiferenças reais entre os comportamentos desses dois animais e ignoraalgumas das características mais interessantes do lobo nas alcateias.Faríamos melhor se explicássemos a obediência dos cães, aos nossoscomandos — submetendo-se a nós e deliciando-se conosco — porquesomossua fontedecomidaenãoporquenosconsideramalfas.Claroquepodemos fazer os cães se submeterem por completo, mas isso não ébiologicamente necessário nem particularmente enriquecedor paranenhumadas partes. A analogia com a alcateia não faz outra coisa a nãoser substituir nossos antropomor ismos por um tipo de "bestamor ismo",cuja iloso iamalucaparecepostularalgocomo"oscãesnãosãohumanos,logo devemos vê-los como precisamente não humanos em todos osaspectos".

Nós e nossos cães estamos mais perto de formar uma quadrilhabenignadoqueumaalcateia:umaquadrilhadedois(outrêsouquatrooumais). Somos uma família. Compartilhamos hábitos, preferências, lares;dormimos e acordamos juntos; andamos pelos mesmos caminhos e

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paramos para cumprimentar os mesmos cães. Se somos uma quadrilha,somosumaalegremente concentradaemnósmesmos, que cultua apenassuamanutenção. Nossa quadrilha trabalha compartilhando premissas decomportamento fundamentais. Por exemplo, concordamos com relação àsregrasdentrodenossacasa.Concordocomminhafamíliaque,emhipótesealguma,urinarnotapetedasalaéaceitável.Trata-sedeumacordotácito,felizmente.Umcãoprecisa aprender essapremissaparapoderhabitar acasa; nenhum deles conhece o valor dos tapetes. Na verdade, os tapetesatépodemtransmitirumasensaçãoagradávelàspatasnahoradealiviarabexiga.

Os adestradores que abraçam a metáfora da alcateia extraem oelemento "hierarquia" e ignoram o contexto social do qual ele emerge.Ignoram também que, devido à di iculdade de seguir esses animais deperto,aindatemosmuitoqueaprendersobreocomportamentodos lobosna vida selvagem. Um adestrador lobocêntrico pode chamar os humanosde líderes de alcateia, responsáveis pela disciplina e por forçar asubmissão dos outros. Esses treinadores ensinam punindo. Apósdescobrirem,porexemplo,otapeteinevitavelmenteencharcadocomurina,o cãoserápunido.Apuniçãopode tomara formadeumgrito—deumaatitude— forçar o cão a se agachar, dizer uma palavra dura ou dar umpuxãona coleira. Levar o cão até a cenado crime e encenar a punição écomum—eumatáticamuitoequivocada.

Essa abordagem está longe do que sabemos sobre a realidade dasalcateias e próxima da desgastada icção de um reino animal com oshumanos no topo, exercendo domínio sobre o resto. Os lobos parecemaprender uns com os outros não pela punição de seus pares, masobservando. Os cães também são observadores apurados — de nossasreações.Emvezde serempunidos,elesaprenderãomelhorsevocêdeixarqueelesprópriosdescubramquaiscomportamentossãorecompensadosequaisnãosão.Suarelaçãocomseucachorroéde inidapeloqueacontecenesses momentos indesejados — como quando você volta para casa eencontra uma poça de urina no chão. Punir o cão com técnicas dedominação por esse comportamento impróprio — tendo a ação sidorealizada talvezhorasantes—éuma formade rapidamentebasearessarelação na intimidação. Se seu adestrador punir o cão, o comportamentoproblemáticopodediminuirtemporariamente,masoúnicorelacionamentocriadoseráentreoadestradoreseucão.(Amenosqueoadestradorpasse

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a morar com você, isso não vai durar muito.) O resultado será um cãoultrassensível e possivelmentemedroso,mas não um que entende o quevocê deseja transmitir. Deixe-o usar a capacidade de observação dele. Ocomportamento indesejadonãoatraiatenção,nemcomida:nadadoqueocãodesejadevocê.Obomcomportamentoganhatudo.Issoéessencialnamaneira como uma criança aprende a ser uma pessoa. E é como asquadrilhasdecães-humanosformamumafamília.

OCÃOPOUCOFAMILIAR

Poroutrolado,nãodevemosesquecerdequeapenasdezenasdemilharesde anos de evolução separam os lobos dos cães. Teríamos de voltarmilhões de anos para encontrar o momento em que nos separamos doschimpanzés; particularmente, não examinamos o comportamento dessesprimatasparaaprendermoscomoeducarnossos ilhos.*LobosecãestêmDNA iguais, exceto por um terço de um por cento dele. Ocasionalmente,vemos algo de lobo em nossos cães: um esboço de um rosnado quandovocê se movimenta para arrancar uma bola adorada da boca dele; umalutaferoznaqualooutroanimalparecemaisumapresadoqueumcolegade brincadeira; um vislumbre de selvageria no olhar ao abocanhar umosso.

* É interessante que o número de semelhanças comportamentais entre chimpanzés e humanos(deixandoaculturaeaslínguasdeladoporummomento)aumentacontinuamenteàmedidaqueonúmerodeestudoscientíficossobreessesprimatastambémaumenta.

Ocaráterordenadodamaioriadenossasinteraçõescomcãesesbarravigorosamenteno ladoatávicodeles.Devezemquando,écomosealgumantigo gene renegado assumisse o controle do produto domesticado deseuspares.Umcãomordeodono,mataogatodafamília,atacaumvizinho.Esse lado imprevisível e selvagem precisa ser reconhecido. A espécie foicriada por nós durantemilênios,mas antes disso evoluiu pormilhões deanos semnossa intervenção.Eles erampredadores. Suasmandíbulas sãofortes, seus dentes foram projetados para rasgar carne, Eles são feitospara agir antes de ponderar sobre a ação. Têm uma compulsão paraproteger— eles próprios, suas famílias, seu território—, e nem semprepodemos prever quando estarãomotivados a agir de forma protetora. Eeles não prestam automaticamente atenção às premissas compartilhadaspeloshumanosquevivememumasociedadecivilizada.

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Assim, quando seu cão sair de seu lado e corrermaniacamente parafora da trilha atrás de algo invisível do lado de trás de uma moita, nãoentreempânico.Comopassardotempo,vocêssefamiliarizarãoumcomooutro:ele, comoquevocêesperadele;você, comoqueele faz.É foradatrilha apenas para você; para o cão, é uma continuação natural dacaminhada. Ele aprenderá sobre trilhas com o tempo. Talvez você nuncaenxergueoqueestavaatrásdaquelamoita,masaprenderá,apósdezenasde caminhadas, queexiste algo invisível lá equeo cãovoltaráparavocê.Vivercomumcachorroéumprocessodemoradodefamiliarizaçãomútua.Até mesmo a mordida dele não é uma entidade uniforme. Há mordidasmotivadaspormedo, frustração,doreansiedade.Umamordidaagressivaé diferente de ummastigar exploratório; umamordida de brincadeira édiferentedeumamordidinhacarinhosa.

Apesar da selvageria passageira, os cães nunca voltam a ser lobos.Cãesvadios—aquelesqueviveramcomhumanos,masvagaramouforamabandonados—ecães livres—providoscomcomida,masvivendo longedos humanos— não se tornam mais parecidos com os lobos. Os vadiosparecem viver uma vida familiar do ponto de vista dos habitantes dacidade: paralelamente e em cooperação comoutros,mas frequentementesolitários. Eles não se auto-organizam socialmente em alcateias com umúnicocasalprocriador.Elesnãoconstroemesconderijosparaos ilhotesoulhes fornecemcomida, como fazemos lobos.Oscães livrespodem formaruma ordem social da mesma forma que outros canídeos selvagens, masessa organização se fará mais pela idade do que pelas lutas e con litos.Nenhum caça cooperativamente: eles catam comida ou caçam pequenaspresassozinhos.Adomesticaçãoosmodificou.

Mesmoquandooslobossãosocializados—criadosdesdeonascimentoentrehumanos, enãoentreoutros lobos—,elesnão se transformamemcães.Ficamemumpatamar intermediárioem termosde comportamento.Os lobos socializados estão mais interessados e atentos aos humanos doque os selvagens. Eles entendem os gestos comunicativos dos humanosmelhor do que os lobos selvagens. Entretanto, não são cães em pele delobo.Oscãesquecrescemcomumapessoaquetomacontadelespreferemsua companhia à de outros humanos; os lobos são menos seletivos. Nainterpretação de pistas humanas os cães se saembemmelhor do que osloboscriadosporhumanos.Aoverumlobonacoleira,sentandoedeitandoquando solicitado, pode-se icar convencido de que existem poucas

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diferençasentreolobosocializadoeocão.Observaresselobonapresençadeumcoelhoéverquantadiferençaaindaexisteentreeles:ohumanoéesquecido enquanto o coelho é impiedosamente perseguido. Perto dessemesmo coelho um cão pode esperar pacientemente, itando seu dono àespera da permissão para correr. A companhia do humano se tornou acarnemotivacionaldocão.

MOLDANDOSEUCÃO

Aoescolherumcachorroemumaninhadaouemumabrigobarulhentoecheio de vira-latas que latem e levá-lo para casa, você começa a "moldarumcão"novamente,recapitulandoahistóriadadomesticaçãodaespécie.Acada interação, a cada dia, você de ine — ao mesmo tempocircunscrevendo e expandindo— omundo dele. Nas primeiras semanascomvocê,omundodo ilhoteé,senãointeiramenteuma tabularasa,muitosimilarà "confusãoextremaebarulhenta"experimentadaporumrecém-nascido.Nenhumcãosabe,aoolharpelaprimeiraveznosolhosdealguémque o espreita em seu compartimento, o que essa pessoa espera dele.Muitas dessas expectativas humanas são bastante semelhantes: seramigável, iel, "acariciável"; considerar-me sedutor e adorável, masreconhecer que estouno comando; não urinar dentro de casa; não pularemcimadasvisitas;nãoroermeussapatos;nãoreviraro lixo.Dealgumaforma, essa mensagem não chegou aos cães. Cada um deles precisaaprender esse conjunto de parâmetros para viver com as pessoas. Eleaprende, através de você, o que é importante para você— e o que vocêquer que seja importante para ele. Somos todos domesticados também:inculcadoscomcostumesculturais,comaformadesermoshumanos,comamaneiradenoscomportarmoscomosoutros.Tudoissoéfacilitadopelalinguagem, mas a linguagem falada não é necessária para alcançar essainalidade. Emvez disso, precisamos estar atentos para o que o cachorroestápercebendoetornarnossaspercepçõesclarasparaele.

Plínio, o Velho, o enciclopedista romano do século I, incluiu em suaprodigiosa História Natural uma a irmação con iante sobre o nascimentodos ursos. Os ilhotes, escreveu ele, "são um bloco branco e disforme decarne, pouco maiores do que ratos, sem olhos ou pelos e somente com

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garras expostas. A mãe ursa vagarosamente dá forma a esse blocolambendo-o". O urso nasce, sugeriu ele, sendo apenas pura matériaindiferenciada, e, como uma verdadeira empirista, amãe ursa torna seuilhote um urso ao lambê-lo. Quando trouxe Pump para casa, senti queestava fazendoexatamente isso: lambendo-apara lhedarum formato. (Enão apenas porque havia muitas lambidas entre nós— a inal, era ela aúnica que lambia.) Era nossamaneira de interagir que a fazia ser quemera, que molda os cães com quem a maioria das pessoas quer viver:interessadosemnossas idasevindas,atentosanós,nãodemasiadamenteinvasivos, brincalhões na hora certa. Ela interpretava o mundo ao agirsobre ele, vendo os outros agirem, sendomostrada e atuando comigo nomundo— promovida a ser um bom membro da família. E quanto maistempopassávamosjuntas,maiselasetornavaquemeraemais icávamosentrelaçadas.

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FarejarPrimeira cheiradadodia: Pumpperambulapela sala demanhã enquantoponho sua comida. Elaparecesonolenta,mas ofocinhoestá bem acordado, estendendo-se para todos os lados como seestivesse fazendoexercíciosmatinais.Elao apontapara a comida semcomprometero corpoedáumafungada.Umolharparamim.Outrafungada.Umjulgamentofoifeito.Elaseafascadatigelaeme desculpa, en iando o rosto naminhamão, seus bigodes fazendo cócegas enquanto ofocinhoúmidoexaminaminhapalma.Saímoseseufocinhofazexercícios,quaseprimitivos,inalandofelizoscheirostrazidospelabrisa...

Nóshumanostendemosanãore letirmuitosobreoscheiros.Comparadoscomavastaquantidadede informaçõesvisuaisquecaptamosepelaqualicamos obcecados a todo o momento, cheiros são pequenos sinais emnosso dia sensorial. A sala em que estou agora é uma misturafantasmagóricadecores,super íciesedensidades,pequenosmovimentos,sombras e luzes. Ah, e se eu realmente prestar atenção, consigo sentir ocheirodecafénamesaaolado,etalvezoaromafrescodolivroaberto—massomenteseenfiarofocinhoentreaspáginas.

Nãopassamosotempointeirocheirando;mas,quandopercebemosumcheiro,emgeraléporquesetratadeumaromabomouruim;raramenteéapenasumafontedeinformação.Achamosamaioriadosodoressedutoresourepulsivos;poucospossuemanaturezaneutradaspercepçõesvisuais.Nós os saboreamos ou evitamos. Meumundo atual parece relativamenteinodoro. Porém, ele decididamente não está livre de odores. Nosso débilsentidoolfativotem,semdúvida,limitadonossacuriosidadearespeitodoscheirosdomundo.Umgrupocadavezmaiordecientistastemtrabalhadopara mudar essa situação, e o que eles descobriram sobre os animaisolfativos,cãesincluídos,ésu icienteparanosfazerinvejarascriaturasdefocinho.Assimcomonósvemosomundo,ocachorroofareja.Ouniversodocãoéumestratodeodorescomplexos.Omundodosaromasé,pelomenos,tãoricoquantoomundodavisão.

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FAREJADORES

...Suafungadaescavadora, focinhoen iadonofundodeumpedaçodegrama,vasculhandoochãosempararpara inalar; a fungada investigativa, avaliandoumamão estendida; o farejodo relógiodespertador, su icientemente perto de meu rosto adormecido para me acordar com as cócegasfeitaspelosbigodes;afungadacontemplativa,focinhoapontadoparacimanorastrodeumabrisa.Todasseguidasporummeioespirro—apenasotchim,semoA—comoselimpassesuasnarinasdequalquermoléculainalada...

Os cachorros não agem sobre o mundo manipulando objetos ouexaminando-os, como as pessoas fazem, ou apontando e pedindo paraoutrosagiremsobreoobjeto(comoostímidospodemfazer);emvezdisso,eles se aproximam corajosamente de um objeto novo e desconhecido,esticamseusmagní icos focinhosaté icaremamilímetrosdelee farejam-noprofundamente.Namaioria das raças, o focinhodo cão é tudo,menossutil.Eleseprojetaparaa frentecomoobjetivodeexaminarumapessoanova segundos antes de o próprio cão entrar em cena. E o farejo não éapenasmeroatributodo topodo focinho; éo abre-alasúmido.Oque suaproeminência sugere, e o que toda ciência con irma, é que o cão é umacriaturadofocinho.

A fungadaéo grandeveículopara levarobjetos cheirosos ao cão, é ocaminho pelo qual os odores das substâncias químicas aceleram até ascélulas receptoras que os aguardam ao longo das cavernas do focinhocanino.Fungaréaaçãodeinalaroar,masdeumamaneiramaisativa;emgeral,envolveexplosõesagudasecurtasqueconsisteempuxaroarparadentrodonariz.Todomundofunga—paralimparonariz,sentiroaromado jantar — como parte de uma inalação preparatória. Os humanosinclusive fungam emocionalmente, ou de forma signi icativa, paraexpressardesdém,desprezo,surpresaecomopontuaçãono inaldeumafrase. Na maioria das vezes, tanto quanto sabemos, os animais cheirampara investigar omundo. Os elefantes levantam a tromba no ar em uma"fungada periscópica"; as tartarugas se esticam vagarosamente e abrembastante as narinas, as marmotas fungam enquanto namoram. Etólogos

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queobservamanimaisfrequentementeanotamtodasessasfungadas,poiselaspodemprecederumatentativadeacasalamento,umainteraçãosocial,agressão ou alimentação. Seus registros indicam que um animal está"fungando"quandoaproximaofocinhodochãooudeumobjeto,masnãootoca, ou quando um objeto é levado para perto do focinho,mas não tocanele.Nessescasos,elespresumemqueoanimalestá,naverdade,inalandofortemente, já que podem não conseguir se aproximar o su iciente paraverasnarinas semexerem,ouominúsculo tufãodearquemovimentaaáreanafrentedofocinho.

Poucos examinaram emdetalhes o que exatamente acontece emumafungada. Recentemente, porém, alguns pesquisadores usaram umso isticado método fotográ ico, que mostra o luxo de ar para detectarquando e como os cães estão fungando. Eles descobriram que umafungadanãopodeser ignorada.Naverdade,pode-seargumentarqueelanãoéuma inalaçãosimplesouúnica.A fungadacomeçacomosmúsculosdasnarinasseestendendoparapuxarumacorrentedearparadentro—isso permite que grande quantidade de qualquer odor presente no arentrenonariz.Aomesmotempo,oarque jáestádentrodonarizprecisaser deslocado. Mais uma vez, as narinas tremem ligeiramente paraempurraroaraindamaisparadentrodofocinho,ouparaforaeparatrás,atravésdefendaslaterais,longedofocinhoedocaminho.Dessaforma,osodoresinaladosnãoprecisamlutarcontraoarquejáestánofocinhoparaacessar o revestimento internodeles.Aqui está a razãode esseprocessosertãoespecial:afotogra iatambémrevelaqueoventofracogeradopelaexpiração,aocriarumacorrentedearporcimadele,naverdadeajudaapuxarmaisaromanovoparadentrodasnarinas.

Essa ação émarcadamente diferente da fungada humana, com nossométodo deselegante de "inalar por uma narina e expirar pela outra". Sequisermos realmente cheirar algo, precisamos fungar de formahiperventilada,inalandorepetidamentesemexpirarcomforça.Oscães,deforma natural, criam pequenas correntes de ar nas expirações queapressam a inalação. Assim, para eles, a fungada inclui um componenteexaladoqueajudao fungadoracheirar. Issoévisível:observeapequenabaforadadepoeiraquelevantadochãoquandoumcãoo investigacomofocinho.

Devidoànossatendênciadeconsiderarmuitoscheirosdesagradáveis,

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deveríamos todos celebraro fatodequenosso sistemaolfativo seadaptaao odor do ambiente: ao longo do tempo, se permanecermos em ummesmolugar,aintensidadedecadaaromadiminuiaténãosentirmosmaisnada. O aroma de café fresco demanhã: fantástico...mas desaparece emquestãodeminutos.Oprimeiroodordealgoapodrecendosobavaranda:nauseante...edesapareceemquestãodeminutos.Ométododoscãesevitaque eles se acostumem com a topogra ia olfativa do mundo: eles estãocontinuamenterenovandooaromaemseusfocinhos,comosemudassemoolharembuscadeumpontodevistamelhor.

OFOCINHOFOCINHO

Abro um pouquinho a janela do carro — apenas o su iciente para caber a cabeça de um cão(lembrando-medavezemqueelaseatiroupara forada janelaabertaatrásdaqueleesquiloquepediacaronanabeiradaestrada).Pumpseapoianodescansodebraçoecolocaofocinhoparaforadocarroenquantocorremospelanoite.Elaapertabemosolhos,acara icaachatadapelovento,eelaprojetaofocinhoparadentrodaventania.

Após ter sido aspirado, um cheiro encontra uma saudação receptiva porparte de uma quantidade extravagante de tecidos nasais. A maioria dasraçaspuras,equasetodososvira-latas,possuemfocinhoslongosemcujasnarinas há labirintos de canais cobertos por um tecido de pele especial.Esse revestimento, como o revestimento de nossos narizes, é feito parareceber o ar que carrega "substâncias químicas"—moléculas de váriostamanhos que serão percebidas como aromas. Qualquer objeto queencontramos no mundo está impregnado por um nevoeiro dessasmoléculas—nãoapenasopêssegomaduronobalcão,masossapatosquetiramosaochegaremcasaeamaçanetaqueseguramos.O tecido internodo nariz é inteiramente coberto com sítios de recepçãominúsculos, cadaum com soldados de pelo prontos para ajudar a capturar e prender asmoléculas de determinados formatos. Os narizes humanos possuemaproximadamente seis milhões desses sítios de recepção sensorial; ofocinho do sheepdog, mais de duzentos milhões; o do beagle, mais detrezentos milhões. Os cães possuem mais genes envolvidos nadecodi icação das células olfativas, mais células e mais tiposde célulascapazes de detectar odores. A diferença na experiência de cheirar éexponencial: ao detectar determinadas moléculas naquela maçaneta,combinações de sítios, não os sítios simples, disparam simultaneamentepara enviar informações ao cérebro. Apenas quando o sinal atinge océrebroéqueeleoexperimenta comoaroma: se fôssemosnósa cheirar,diríamosArrá!Quecheiro.

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Muitomaisprovavelmente,não cheiraríamosesseodor.Masobeagle,sim: estima-se que seu sentido olfativo pode ser milhões de vezes maissensível do que o nosso. Perto dele, somos totalmente anósmicos: nãocheiramos nada. Podemos notar que nosso café foi adoçado com umacolherdeaçúcar;umcãoconseguedetectarumacolherdeaçúcardiluídaemummilhãodegalõesdeágua:duaspiscinasolímpicascheias.*

Como é isso? Imagine se cada detalhe de nosso mundo visual fosseassociado a um determinado cheiro. Cada pétala de uma rosa pode serdistinta, tendosidovisitadapor insetosquedeixarammarcasdepólendeloresmuitodistantes.Oqueparanóséumsimplestalo,naverdadedetémum registro de quem o tocou e quando. Uma explosão de substânciasquímicas marca o lugar em que uma folha foi partida. A super ície daspétalas,cheiadeumidadeemcomparaçãocomada folha, tambémdetémumodordiferente.Adobradeumafolhatemumcheiro;assimtambémasgotas de orvalho em um espinho. E o tempo reside nesses detalhes:enquanto conseguimosverumadaspétalas secando e amarelando, o cãoconseguecheiraresseprocessodedecadênciaeenvelhecimento. Imaginecheirar cadamínimo detalhe visual. Isso pode ser a experiência de umarosaparaumcão.

Onarizé tambémarotamaisrápidapelaqualas informaçõespodemchegaraocérebro.Enquantoosdadosvisuaisouauditivospassamporumestágio intermediário a caminho do córtex, o nível mais alto deprocessamento, os receptores no nariz se conectam diretamente com osnervos nos "bulbos" (assim formados) olfativos especializados. Os bulbosolfativos do cérebro canino constituem um oitavo de sua massa:proporcionalmentemaiordoqueo tamanhodenossaunidade central deprocessamento visual, os lóbulos occipitais, em nossos cérebros. Mas osentido do olfato especialmente a iado dos cachorros também pode serresultado de umamaneira adicional de eles perceberem odores: atravésdoórgãovomeronasal.

* ... emteoria: nenhuma piscina foi usada em tal teste. Em vez disso, os pesquisadores usamamostras extremamentepequenasdeummeio inodoronoqual acrescentamuma amostra aindamenordeaçúcar.

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OÓRGÃOVOMERONASAL

Que especi icidade de imagem o nome "vomeronasal" traz! Evocando odesprazer de aspirar uma boa fungada de vômito fresco, o vômer é, naverdade, uma descrição de parte do pequeno osso do nariz onde selocalizam as células sensoriais. No entanto, de alguma forma, o nomeparece se adequar a um animal que, além de notório pela coprofagia(comerfezes),podelamberdochãoaurinadeoutrocão.Nenhumdessesatosprovocavômitonoscães;elessãoapenasformasdeobteraindamaisinformações sobre outros cães ou animais da vizinhança. O órgãovomeronasal, descoberto primeiro nos répteis, é uma cavidade entre onariz e a boca revestida com mais sítios receptores de moléculas. Osrépteis o usam para encontrar seu caminho, sua comida e um parceiropara acasalar O lagarto que estica a língua para tocar um objetodesconhecido não está degustando ou cheirando; está transportandoinformaçõesquímicasparadentrodeseuórgãovomeronasal.

Essas substâncias químicas são os feromônios: substâncias do tipohormônio liberadas por um animal e percebidas por outro da mesmaespécie e que, em geral, provocam uma reação especí ica — tal comopreparar-separafazersexo—oumudamosníveishormonais.Háindíciosdequeoshumanospercebemosferomôniosdeformainconsciente,talvezatémesmoatravésdeumórgãovomeronasalnasal.*

* A psicóloga Marcha McClintock foi a primeira a estudar seriamente a detecção de feromôniospelos humanos. Ela e outros psicólogos realizaram estudos inteligentes e fascinantes sobre comonosso comportamento e nossas taxas hormonais podem ser afetados pelos feromônios ou porhormônios do tipo feromônio. Mas essas conclusões ainda são controversas e estão sujeitas adebate.

Oscãesde initivamentepossuemumórgãovomeronasal:ele icaacimado palato duro da boca, ao longo da base do focinho (septo nasal).Diferentemente de outros animais, os sítios receptores são cobertos porcílios, pelos minúsculos que empurram as moléculas. Os feromônios sãofrequentementetransportadosporum luido:aurina,emparticular,éumgrandeveículo.Atravésdelaumanimalenvia informaçõespersonalizadasamembros do sexo oposto— sobre, digamos, o desejo de acasalar. Paradetectar os feromônios nessa urina, alguns mamíferos tocam o líquido efazem uma careta característica, torturada, enrolando o lábio de forma

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peculiar emuma reaçãodenominada lehmen. A expressão de um animalem lehmenénotoriamente impossíveldeseramada,maséacaradeumanimal que está caçando um amante. A pose lehmen parece empurrar oluidonadireçãodoórgãovomeronasal,ondeeleébombeadoparadentrodotecido,ouabsorvidopormeiodaaçãocapilar.Osrinocerontes,elefantese outros animais com casco fazem lehmen regularmente, assim como osmorcegoseosgatos,quepossuemvariaçõesentresuasdiversasespécies.Oshumanospodemterórgãosvomeronasais,masnãofazemos flehmen.Oscães também não. Mas um cão regularmente observador notará uminteresse frequentemente muito intenso na urina de outros cães — àsvezes um interesse que os atrai bem... para perto... até dentro... espera,nojento! Para de lamber isso! Os cães podem lamber urinadespreocupadamente,sobretudoadeumafêmeanocio.Essatalvezsejaaversãodelesdeflehmen.

Melhoraindadoquefazerflehmenémanteraparteexternadofocinhobem úmida. O órgão vomeronasal é provavelmente a razão pela qual osfocinhos caninos são molhados. A maioria dos animais com órgãovomeronasal também possui focinhos molhados. É di ícil para um odoraerotransportado chegar em estado puro ao órgão vomeronasal, situadoemumrecessoseguroeescuronointeriordacara.Umafungadafortenãoapenas traz moléculas para dentro da cavidade nasal do cão; pequenospedaçosdemoléculastambémgrudamnotecidoexternoúmidodofocinho.Uma vez lá, eles podem se dissolver e ser transportados até o órgãovomeronasal através de dutos interiores. Quando seu cão se roça contravocê, ele está na verdade coletando seu odor com o focinho paramelhorcon irmarquevocêévocê.Dessaforma,oscãesduplicamseusmétodosdecheiraromundo.

OCHEIROFORTEDEUMAPEDRA

Quando Pump capta com o focinho um cheiro bom na grama— quando ela realmente o en iaprofundamente na terra — já sei o que acontecerá em seguida. Ela dará uns saltos, tornará afungar o cheiro de ângulos diferentes, depois dará um leve tapa nele, levantando grama. Maisfungadas profundas, algumas lambidas, amassando o focinho no chão, e depois o clímax— ummergulho profundo no cheiro: primeiro o focinho, abaixando o corpo inteiro atrás dele e seremexendoparaafrenteeparatrás.

O que então esses focinhos permitem que o cão cheire? Corno é que omundoseparecedaperspectivadofocinho?Vamoscomeçarcomoqueé

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fácilparaeles:oqueelescheiramemnóseemoutroscachorros.Depois,podemos estar prontos para desa iá-los a cheirar o tempo, a história deumapedraderioeachegadadeumatempestade.

Omacacofedido

Oshumanosfedem.Osovacohumanoéumadasfontesmaisfortesdeodorproduzido por qualquer animal. Nosso hálito é uma melodia confusa deodores,nossosgenitaischeirammal.Oórgãoquerevestenossocorpo—apele—écobertodeglândulassebáceasesudoríparas,queregularmentesecretam luidos e óleos que contêm nossa marca particular de cheiro.Quandotocamosumobjeto,deixamosumpoucodenósnele;umpedaçodepele morta, com um punhado de bactérias mastigando e excretandoconstantemente.Esseénossocheiro,nossoodorcaracterístico.Seoobjetoé poroso — um chinelo macio, digamos — e passamos muito tempotocando-o — colocando um pé, agarrando-o, carregando-o embaixo dobraço—,elesetornaumaextensãodenósmesmosparaumacriaturacomfocinho. Parameu cachorro,meu chinelo é uma parte demim. Na nossavisão, o chinelo pode não parecer um objetomuito interessante para umcão, mas qualquer um que, ao voltar para casa, tenha encontrado umchinelodestroçado, ou tenha sido seguidopelo cheirodeixadono chinelo,sabequenãoéassim.

Não precisamos nem tocar os objetos para que eles tenham nossocheiro; ao nos movimentarmos, deixamos um rastro de células da pelepara trás.Oar éperfumadocomnosso suor constanteedesumidi icante.Alémdisso, vestimosoodordoque comemoshoje, dequembeijamos,noque nos esfregamos. Qualquer água de colônia simplesmente aumenta acacofonia. Além disso, nossa urina, ao descer dos rins, absorve notasodoríferas de outros órgãos e glândulas: glândulas suprarrenais, tubosrenais e, potencialmente, os órgãos sexuais. Os traços dessa mistura emnossoscorposeemnossasroupasfornecemmaisinformaçõessingulareseespecí icas sobre nós. Assim, os cães acham muito fácil nos distinguirapenaspelocheiro.Oscachorrosadestradosconseguemdistinguirgêmeosidênticos pelos seus cheiros. E nosso aroma permanece o mesmo apóspartirmos, daí os poderes "mágicos" de rastreamento dos cães. Essesfarejadores habilidosos nos enxergam na nuvem de moléculas quedeixamosparatrás.

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Para os cães, somos nosso cheiro. De alguma maneira, oreconhecimento olfativo das pessoas é muito semelhante ao nossoreconhecimento visual delas: há múltiplos componentes da imagemresponsáveispelaformacomoparecemos.Umcortedecabelodiferenteouumrostorecentementeenfeitadocomumpardeóculospode,pelomenostemporariamente, nos confundirnahorade identi icar a pessoaque estádiantedenós.Possoser surpreendidaatémesmopelaaparênciadeumaamiga íntima de um ângulo diferente ou de uma determinada distância.Assim também a imagem olfativa que formamos deve ser diferente emcontextos diferentes. A simples chegada de minha amiga (humana) noparque canino é su iciente paramedeixar sorridente; demora umpoucomaisparaminhacadelanotarseuamigo.Ademais,osodoresestãosujeitosadiminuiresedispersar,ealuznão:ocheirodeumobjetopróximopodenãoatingirvocêseumabrisaconduzi-loemoutradireção:a forçadeumodor diminui com o tempo. Amenos queminha amiga tente se esconderatrásdeumaárvore, édi ícilparaelaocultar sua imagemvisualdemim.Umventonãoaesconderia,maspoderiamomentaneamenteescondê-ladeumcão.

Quando voltamos para casa no inal do dia, os cães em geralcumprimentam nosso coquetel de fedores pronta e amorosamente. Sevoltarmosparacasaapósnosensoparmoscomumperfumepoucofamiliarou vestindo as roupas de outras pessoas, podemos esperar ummomentodeperplexidade—nãoémais"nós"—,masnossaefusãonaturallogonostrairia.Entreanimais,oscãesnãosãoosúnicoscapazesdevercheiros.Ostubarões têm sido vistos em ziguezague pela água seguindo o mesmocaminhousadoporumpeixeferidoanteriormente:atravésnãoapenasdeseusangue,mastambémdeseushormônios,opeixedeixouumpoucodesi mesmo para trás. Mas os cachorros são singulares por seremencorajadoseadestradosausarosodoresparaseguiralguémquejánãoestámaispresentevisualmente.

OcãodeSantoHumbertoéconsideradoumdosmelhoresfarejadores.Ele não apenas possui uma quantidade maior de tecidos nasais—maisfocinho; muitas características de seu corpo parecem conspirar paracapacitá-loacheirarcommaisintensidade.Suasorelhassãoincrivelmentelongas, mas não para possibilitar uma melhor audição, pois icampenduradas bem perto da cabeça. Em vez disso, um ligeiro meneio decabeçapõeessasorelhasemmovimento,levandomaisararomáticoparao

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focinho captar. Seu jorro constante de baba é perfeitamente projetadopara reunir líquidos adicionais e enviá-los para serem examinados peloórgão vomeronasal. Os bassethounds, considerados como originários doscães de Santo Humberto, dão um passo adiante: graças às suas pernascurtíssimas,acabeçatodajáestánoníveldocheiro,ouseja,pertodochão.

Essescãesconseguemcheirarbemdevidoasuapróprianatureza.Pormeio de adestramento— recompensando-os quando prestam atenção adeterminadoscheirose ignoramoutros—elessão facilmentecapazesdeseguirumaromadeixadoporalguémumouváriosdiasantes,podendoatéespeci icarondedois indivíduossesepararam.Nãoénecessáriomuitodenossoodor: algunspesquisadores testaramcãesusandocinco lâminasdevidrobemlimpas,acrescentandoaumadelasumaúnicaimpressãodigital.Alâminafoiguardadaporalgumashorasouatédurantetrêssemanas.Oscachorros,então, tiveramaoportunidadedeexaminartodooconjunto:seadivinhassem corretamente a lâmina humana, eram recompensados comumaguloseima,motivaçãosu icientepara fazê-losse levantare farejaraslâminas de vidro. Um dos cães acertou 94 lâminas em 100 tentativas.Mesmo depois que as lâminas foram colocadas no telhado do prédio porumasemana,sendoexpostasdiretamenteaosol,chuvaeatodasasformasdedetritostrazidospeloventodurantesetedias,aindaassimomesmocãoacertou quase metade das tentativas — resultado bem acima dasexpectativas.

Eles rastreiam não apenas sentindo os odores, mas cada mudançamínimareajustadaneles.Cadaumadenossaspegadasterámaisoumenosamesmaquantidadedenossoodor.Teoricamente,então,seeusaturasseochão commeu cheiro, correndo de forma aleatória para a frente e paratrás, um cão farejador não seria capaz de dizer que caminho tomei,masapenasquede initivamenteestiveali.Noentanto,os cãesadestradosnãopercebemapenasumcheiro.Elespercebemamudançaemumcheiroaolongodotempo.Aconcentraçãodeumodordeixadonochãopor,digamos,umapegada feitapor alguémqueestá correndo,diminui a cada segundoque passa. Em apenas dois segundos, um corredor pode ter deixadoquatro ou cinco pegadas: o su iciente para um rastreador adestradodeterminar a direção que ele seguiu com base nas diferenças do odoremanadopelaprimeiraequintapegadas.Orastroquevocêdeixouaosairdasala temmaischeirodoqueumrastrodeixado logoantesdele;assim,seucaminhoéreconstruído.Ocheiromarcaotempo.

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Convenientemente,emvezdeseacostumarcomosodoresaolongodotempo, como acontece conosco, o órgão vomeronasal e o focinho do cãopodem regularmente trocar de papéis paramanter o cheiro fresco. Essacapacidade é explorada no adestramento dos cães de resgate, queprecisam se orientar pelo odor de uma pessoa desaparecida. Damesmaforma,oscãesqueseguempistaseperseguemosuspeitodeumcrimesãotreinados para seguirem o que é delicadamente chamado de nossa"geraçãodeodorpessoal":nossaproduçãonatural,regulareinteiramenteinvoluntária de ácido butanoico. Isso é fácil para eles que conseguemampliaressacapacidadeparacheiraroutrosácidosgordurosostambém.Amenosquevocêestejausandoummacacãofeitointeiramentedeplásticoàprovadecheiros,umcãoconseguiráencontrá-lo.

Vocêmostroumedo

Atémesmoaquelesdenósquenãoestãofugindodeumacenadecrimeouque não precisam ser resgatados têm uma razão para não subestimar aqualidade da fungada de um cachorro. Os cães não conseguem apenasidenti icar os indivíduos pelo odor; conseguem também identi icarcaracterísticasdeles.Elessabemsevocêfezsexo,fumouumcigarro(sefez

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as duas coisas uma após a outra), se comeu um lanchinho ou acabou decorrerumquilômetro.Tudoissopodeparecerbenigno:exceto,talvez,pelolanchinho,essesfatossobrevocêpodemnãoserdegrandeinteresseparaumcão.Maselestambémpodemfarejarsuasemoções.

Gerações de crianças foram alertadas para "nunca mostrar medo"diante de um cão estranho.* É provável que os cães sintam o cheiro domedo, assim como o da angústia e o da tristeza. Não é preciso evocarcapacidades místicas para dar conta disso: o medo rescende.Ospesquisadores identi icaram inúmeros animais sociais, de abelhas aveados, que conseguem detectar os feromônios emitidos por um animalquandoestáamedrontadoereageembuscadesegurança.Osferomôniossão produzidos involuntária e inconscientemente, e pormeios diferentes:um ferimento na pele pode provocar a sua liberação; existem glândulasespecializadas em liberar substâncias químicas de alarme. Além disso, opróprio sentimento de alarme, de medo, bem como todas as outrasemoções, estão relacionados a mudanças isiológicas, que vão desdealterações nos batimentos cardíacos e no ritmo respiratório até suores emudançasmetabólicasesudoríparas.Asmáquinaspoligrá icasfuncionam(namedida em que funcionam) avaliando asmudanças dessas respostascorporais independentes; pode-se dizer que os focinhos dos animais"funcionam" sendo igualmente sensíveis a elas. Experiências com ratoscon irmam isso: quando um deles recebe um choque em uma gaiola eaprendeatermedodela,osoutrosratossentemomedodoanimalmesmosemtê-lovistoreceberochoque—epassamtambémaevitaragaiola,quenãoédistinguíveldeoutrasqueestejampróximas.

*Essaexpressão—cãoestranho—parececalhadaparainspirarmedo.Seuusotambémébaseadoemumapremissafalsa:adequeoscãesfamiliaressecomportarãodeformaprevisívelecon iável,diferentemence dos que não conhecemos. Como vimos, por mais que queiramos que os cães secomportemdeacordocomnossosdesejos,ofatodeelessimplesmenteseremseusprópriosdonosgarantequenemsempreofarão.

Como é que esse cão estranho e aparentemente ameaçador farejanossa apreensão ou medo ao se aproximar de nós? Espontaneamente,suamos quando estamos estressados, e nosso suor carrega umdeterminado odor com ele: essa é a primeira pista para o cão. Aadrenalina,usadapelocorpoparaprepará-loparaafastar-serapidamentede algo perigoso, é inodora para nós, mas não para um cão farejador

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sensível: ela é outra pista. Até mesmo o simples aumento do luxosanguíneo traz substâncias químicasmais rapidamente para a super íciedo corpo, de onde podem ser difundidas através da pele. Visto queemitimos odores que re letem essas mudanças isiológicas queacompanham omedo, e considerando os indícios crescentes da presençade feromônios em humanos, é provável que, se estivermos nervosos, umcão consiga identi icar isso. E, como veremos mais adiante, os cães sãoexímios intérpretes de nosso comportamento. Às vezes, podemos ver omedo nas expressões faciais de outra pessoa; há informações su icientesem nossa postura e em nosso modo de andar para ajudá-los a nosinterpretar.

Dessa maneira, o criminoso em fuga que está sendo rastreado éduplamente condenado. Os cães podem ser adestrados para farejar nãoapenas o odor especí ico de uma pessoa, mas também um determinadotipo de odor: o cheiro mais recente de uma pessoa na vizinhança (bompara encontrar o esconderijo dela), ou um humano em desesperoemocional— amedrontado (como alguém fugindo da polícia), furioso, atémesmoirritado.

Ocheirodedoença

Se os cães conseguem detectar quantidades mínimas de substânciasquímicasquedeixamospara trás—emmaçanetasoupegadas—podemser capazes de captar substâncias que indiquem doenças? Com sorte,quandovocêtiverumadoençadi ícildeserdiagnosticada,teráummédicoque reconhecerá— como alguns já izeram— que o cheiro peculiar depãorecém-assadosigni icafebretifóide,ouqueoodordealgoestragadoeazedo sendo exalado por seus pulmões é próprio da tuberculose. Deacordo com diversos médicos, foi constatado que existe um cheiroespecí ico para várias infecções, e até mesmo para diabetes, câncer ouesquizofrenia. Esses especialistas não possuem um focinho de cachorro,mas estão mais equipados para identi icar doenças. Entretanto, algumasexperiências de pequena escala indicam que você pode obter umdiagnósticoaindamaisre inadosemarcarumaconsultacomumcãobemadestrado.

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Os pesquisadores começaram a adestrar cães para reconhecer oscheiros das substâncias químicas produzidos por tecidos cancerosos. Otreinamentoé simples:osanimais são recompensadosquandosentamoudeitampertodoscheiros;quandonãoo fazem,nadaderecompensas.Emseguida, os cientistas coletaram os cheiros de pacientes com câncer epacientessemcâncerempequenasamostrasdeurinaoufazendocomquesoprassem em tubos capazes de capturarmoléculas de hálito. Embora onúmerodecãesadestradosfossepequeno,osresultadosforamexcelentes:eles conseguiram detectar quais pacientes tinham câncer. Em um dosestudos, eles erraram apenas 14 em1.272 tentativas. Em outro pequenoestudo realizado com dois cães, ambos identi icaram ummelanoma pelofaro em quase todas as vezes. Pesquisas mais recentes mostram quecachorrosadestradosconseguemidenti icarcânceresdepele,seio,bexigaepulmãocomíndicesmuitoelevadosdeacertos.

Isso quer dizer que seu cão o avisará quando um pequeno tumorestiver sedesenvolvendodentrode você?Provavelmentenão.Oque issoindica é que os cães são capazes de fazê-lo. Você pode ter um cheirodiferenteparaele,masamudançaemseucheiropodesergradual.Tantovocêquantoseucãoprecisariamseradestrados:ocachorroparaprestaratenção ao cheiro, você para prestar atenção aos comportamentos queindicamqueeleencontroualgo.*

*Aspesquisassobreoutrasdoençasestãoprogredindorapidamente.Deformainstigante,oscãesquevivememcasascomepilépticosparecempreverumataquerazoavelmentebem.Doisestudosreportaram que os animais lamberam o rosto ou as mãos da pessoa, choramingaram, icarampróximos,ouassumiramumaposturaprotetora—emumdeles,ocãosentounacriança;emoutro,bloqueouoacessodacriançaàsescadas—antesdosataques.Seissoéverdade,devehaverpistasolfativas,visuaisoudeoutranaturezainvisíveis(paranós)queoscãespercebem.Mas,comoessesdadosderivamde"autorrelatos"—questionáriosdefamíliasenãodadoscoletadosobjetivamente—mais testes se fazemnecessários.Noentanto, épossívelpararparaadmirarapossibilidadedetamanhacapacidade.

Ocheirodeumcão

Considerando que o odor é tão evidente para um cão, ele temmuito usosocial. Enquanto nós humanos inadvertidamente deixamos um rastro deodoresatrásdenós,os cãesnãoapenasestãoatentosaosnossos cheiroscomo também espalham o próprio cheiro com abundância. É como se os

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cachorros,percebendooquantooodordenossoscorposnosrepresentam(até mesmo em nossa ausência), estivessem determinados a usar isso aseu favor. Todos os canídeos — cães selvagens ou domésticos e seusparentes — deixam urina espalhada conspicuamente em todo tipo deobjeto. A marcação com urina — como é chamado esse método decomunicação — transmite uma mensagem, mas trata-se mais de umrecado do que de uma conversação. A mensagem é deixada pela partetraseira de um cão para ser recuperada pela parte dianteira de outro.Tododonodecachorroestá familiarizadocomessamarcação, feita comapernalevantadaemhidrantes,postes,árvores,arbustose,àsvezes,emumcachorro azarado ou na perna de um transeunte. A maioria dos pontosmarcadoséaltaousaliente:maisvisíveisemelhorparaosodoresdaurina(os feromônios e a mistura associada de substâncias químicas) seremcheirado.Asbexigas caninas—bolsasque servemaoúnicopropósitodeser um depósito temporário de urina permitem liberar apenas umapequena quantidade dela por vez, favorecendo a marcação repetida efrequente.

Assim, tendo deixado cheiros em seu rastro, os cães logo aparecempara investigar os cheiros dos outros. Segundo as observações docomportamento de cães farejadores, parece que as substâncias químicasda urina fornecem informações sobre a disposição sexual das fêmeas esobre a con iança social dosmachos.Omito comumdiz que amensagemsigni ica "isto émeu": os cãesurinampara "marcar território". Essa ideiafoiintroduzidaporKonradLorenz,ograndeetólogodoiníciodoséculoXX.Ele formulouumahipóteserazoável:aurinaéabandeiracolonialdocão,plantada onde a posse é reivindicada. Porém, pesquisas realizadas noscinquentaanosseguintesnãocomprovaramqueessehábitoéexclusivooumesmopredominante.

Estudos feitoscomcãescriadossoltosna índia,porexemplo,mostramcomo eles se comportam quando deixados sozinhos. Ambos os sexosmarcam,mas apenas vinte por cento dasmarcações são "territoriais"—acontecemnoslimitesdeumterritório.Amarcaçãomudacomasestaçõeseocorremais frequentementequandoelescortejamoucatamcomidaemdepósitos de lixo. A noção de "território" é também contrariada pelosimples fatodequepoucos cãesurinamnos cantos interioresda casaoudo apartamento em que vivem. Ao contrário, marcar parece deixarinformações sobre quem urinou, com que frequência passou por esse

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ponto na vizinhança, suas vitórias mais recentes e seu interesse emacasalar.Dessaforma,apilhainvisíveldecheirosnohidrantesetornaumquadrodeavisoscomunitário,comanúncioseavisosvelhosedeterioradosaparecendo por baixo de mensagens de atividades ou conquistas maisrecentes.Osquefazemvisitasmaisfrequentesacabam icandonotopodapilha:assim,éreveladaumahierarquianatural.Masasmensagensantigassão lidas e ainda retem informações — e um de seus elementos ésimplesmenteaidade.

Nosanaisdamarcaçãodeurinaanimal,oscãesnãosãoosatoresmaisimpressionantes. Os hipopótamos balançam os rabos enquanto borrifamurinaparamelhorespalhá-la, comoumtipodepulverizador, em todasasdireções. Há rinocerontes que, após espirrarem sua urina poderosa emarbustos, usam o chifre e os cascos para destruí-los, garantindo assim,presume-se,quesuaurinasejaespalhadaparabemlongeeamplamente.Tenhapenadodonodoprimeirocãoadescobrirae iciênciadaurinaçãoestiloventilador.

Outros animais também pressionam seus traseiros no chão paraliberar odores fecais e demais cheiros anais. A fuinha planta umabananeira e se esfrega em um galho alto; alguns cachorros fazem asacrobacias que podem, aparente e deliberadamente aliviando-se empedrasgrandeseemoutras formaçõesrochosas.Emborasejasecundáriaemcomparaçãocomamarcaçãopelaurina,defecartambémpossuiodoresidenti icadores — não no próprio excremento, mas nas substânciasquímicasqueoacompanham.Elesvêmdesacosanaisdotamanhodeumaervilha, situados dentro do ânus, que retêm as secreções de glândulaspróximas: um tipo de secreção extremamente mal cheirosa, com odoresaparentemente individuais de peixe podre em meia suada. Esses sacosanaistambémvazaminvoluntariamentequandoumcãoestácommedoouemestadodealarme.Nãosurpreendequemuitosdeles tenhammedodeir ao consultório: como parte dos exames de rotina, os veterináriosespremem(apertamparaliberarosconteúdos)ossacosanais,quepodemicarcomprimidoseinfeccionados.Emboraencobertoparanóspeloaromafamiliar de sabão desinfetante, esse odor deve cobrir o veterinário, queficaexalandoassimomedoépicodoscães.

Finalmente,seessescartõesdevisitame íticossãoinsu icientes,vamosaoutroarti ícionocadastrodemarcaçõesdoscães:elesarranhamochão

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após defecar ou urinar. Os pesquisadores acreditam que isso acrescentanovos odores à mistura — das glândulas das patas —, mas também épossível que sirva como uma pista visual complementar, atraindo cãesparaafontedoodor.Assimelespodemrealizarumexamemaisdeperto.Emumdiadevento,oscãespodemparecermaisvigorosos,maisdispostosa arranhar o chão; na verdade, eles podemestar orientando outros paraumamensagemque,deoutraforma,serialevadapelovento.

FOLHASEGRAMA

A ciência, por decoro ou desinteresse, ainda não explicou de maneirade initiva as esfregadas enlouquecidas de Pump na grama. O odor podeser de um cão em quem ela esteja interessada, ou de um cão que elareconhece,ouatéseroriundodosrestosdeumanimalmortonosquaiselaseesfreganãotantoparaesconderoprópriocheiro,masporapreciarseuaromasuntuoso.

Respondemossucintamenteecomsabão:dandobanhosfrequentesemnossoscães.Minhavizinhançanãosópossuiumaabundânciadepetshops,comotambémévisitadaporumserviçomóvelemumacaminhonete,quevai até sua casa para pegar, banhar, escovar e, portanto, "descachorrar"seuanimalparavocê.Sousolidáriacomosdonosquetêmumatolerânciamais baixa do que eu a detritos e poeira em suas casas: um cão bemandado e bem cansado é um e iciente espalhador de sujeira. Porém, aobanhá-lostanto,estamosprivandonossoscãesdealgo—issosóparafalarno entusiasmo exagerado de nossa cultura pela limpeza doméstica,inclusive da cama de nossos cães, O que cheira a limpo para nós é umcheiro de limpeza química arti icial, algo claramente não biológico. Afragrância mais suave presente nos produtos de limpeza ainda é uminsulto olfativo para um cão. E, embora possamos preferir um espaçovisualmente limpo, a verdade é que um lugar totalmente livre de cheirosorgânicos seria um ambiente empobrecido para os cachorros. É melhormanterumacamisetabemvelhaporpertoenãoesfregaro chãoporumtempo.Oprópriocãonãotemnenhumimpulsoparaseroquechamamosde limpo. Não surpreende que, após um banho, ele se apresse a seesfregar vigorosamente em um tapete ou na grama. Ao banhá-lo comxampudecocoe lavandanósoprivamos temporariamentedeumaparte

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importantedesuaidentidade.

Damesmaforma,pesquisasrecentesdescobriramque,quandodamosaos cães antibióticos em excesso, seus odores corporais mudam,transformandoprovisoriamenteas informaçõessociaisqueeles,emgeral,emitem. Podemos icar atentos a isso, mesmo usando esses remédiosapropriadamente. Atenção também àqueles engraçados colareselisabetanos,umenormecolaremformatodeconequecostumaserusadoparaevitarqueocãomastigueospontosdeumferimento:eleéútilparaevitaraautomutilação,maspenseemtodososcomportamentosinterativoscomuns que ele impede: desviar o olhar de um cão agressivo; ver aaproximação veloz de alguémpela lateral; esticar e cheirar o traseiro deoutrocão.

Tenha pena do cão urbano, sujeito aos resquícios de um velho terrorde toda a sociedade: odores causam doenças. O planejamento urbanomudou nos séculos XVIII e XIX na direção de uma elaborada"desodorização" das cidades: pavimentando ruas e cimentando oscaminhos para isolar os odores. Em Manhattan, esse planejamentoestimulouinclusiveaimplantaçãodeumsistemaderuasbaseadoemumagrade que, segundo se acreditava, encorajaria os odores a escoarvelozmentedacidadeparaosrios,emvezdese ixaremrefúgiosevielasagradáveis.Esseesquemacertamentereduzopossívelprazerdocãocomos cheiros que emanamdas fendas de cada folha caída e de cada gramapavimentada.

BROLONGAEBRALUFETE

Nocomeço,quandosentávamosaoar livre,aposturaimóveldePumpmeenganava.Umavez,examinando-amaisdeperto,viqueelaestavaimóvel,excetoporumaparte: suasnarinas.Elas reviravam informaçõesemsuascavernas,ruminandosobreavistadiantedeseufocinho.Oqueelavia?Ocãodesconhecidoqueacabavadeviraraesquina?Umchurrasconofundodo vale, com jogadores de voleibol suados circulando ao redor da carnegrelhada?Aaproximaçãodeuma tempestade, comexplosões fulminantesde ar vindas de regiões distantes? Os hormônios, o suor, a carne— atémesmo as correntes de ar causadas pela chegada de uma tempestade,ventos fortes que se movem para cima, deixam rastros de cheirosinvisíveispelocaminho—todosdetectáveisouentendidospelofocinhodo

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cachorro. Seja o que for, ela estava muito longe da criatura ociosa queaparentavaser.

Saber da importância do odor nomundo caninomudouminha formade pensar sobre a maneira alegre com que Pump cumprimentava umvisitante em minha casa, dirigindo-se diretamente para a região genitaldele.Juntamentecomabocaeossovacos,osgenitaissãoexcelentesfontesde informações. Proibir esse cumprimento é equivalente a vendar-se nahoradeabriraportaparaumestranho.Noentanto,minhasvisitaspodemnão ser grandes entusiastas doumwelt canino, por isso aconselho-os aoferecer uma das mãos (sem dúvida alguma cheirosa), ou em vez dissoajoelharedeixá-lacheirarsuacabeçaoutronco.

Éprópriodohumanopunirumcãoporcumprimentarumcãonovonavizinhança cheirando o traseiro dele. Nosso desgosto por esse tipo decumprimentocomoumapráticasocialhumanaéirrelevante.Paraoscães,nenhumproblema,quantomaisperto,melhor.Oscãessecomunicarãounscom os outros se não estiverem interessados em ser tão intimamenteexaminados;ainterferênciapodeagitarumdelesouambos.

Paraentenderoumwelt do cão, devemospensar emobjetos, pessoas,emoções— atémesmonas horas do dia— como possuidores de odoressingulares. O fato de termos tão poucas palavras para designar cheirosrestringenossaimaginaçãoacercadadiversidadeexistentedebrolongasebalufetes. Talvez um cão possa detectar o que umpoeta evoca: "o cheirobrilhante da água/o cheiro corajoso da pedra/o cheiro de orvalho e datrovoada..." (e de initivamente "... Os ossos velhos enterrados embaixo...").Provavelmente, nem todos os cheiros são bons: assim como existe apoluiçãovisual, tambémexisteapoluiçãoolfativa.De initivamente,osqueveemcheiros tem lembrançasemcheiros também:quandopensamosemcães sonhando e devaneando, devemos imaginar imagens oníricasconstituídasdecheiros.

Desde que comecei a apreciar o mundo odorí ico de Pump, passei asaircomelaàsvezessóparasentarefungar.Fazemospasseiosdecheiro,parando,ao longodenossocaminho,emtodomarcopeloqualelamostrainteresse. Ela está olhando; estar ao ar livre é a parte mais cheirosa emaravilhosa de seu dia. Não vou encerrá-la precipitadamente. Até olhopara as fotogra ias dela de forma diferente: onde ela parecia estar

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pensativa, itandoadistância,agorapareceestarcheirandoalgumarnovoeexcitanteoriundodeumafontelongínqua.

Entretanto,omomentomais felizparamimésercumprimentadacomuma fungadaque fazo seu rabobalançar.Acaricio suanucae retribuoafungada.

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MudoPump sentapertode mim e calmamentearqueja,enquanto me olha; ela desejaalgo.Em nossascaminhadas, ela me avisa quando fomos longe demais e está pronta para voltar: salta, gira naspatastraseiras, depois volta exatamente pelo caminho que veio. Abro a água da banheira, sorriopara ela e o rabo abaixa e balança, as orelhas caídas sobre a cabeça. Toda essa conversa e, noentanto,nenhumapalavrafoitrocada.

Há um determinado senso de mordacidade quando descrevemos osanimais como sendo nossos "amigos mudos"; quando mencionamos o"atordoamento vazio" de um cão; quando acenamos com a cabeça dianteda "mudez incomunicável" dele. Essas são formas familiares de falarmossobreessesanimais,quenuncarespondemnamesmamoedaquandonosdirigimosaeles.Emgrandemedida,oencantodoscãesderivadaempatiaque lhes atribuímos quando simplesmente nos contemplam. Entretanto,essascaracterizações,emboraevocativas,meparecemsercompletamenteequivocadas por duas razões. Primeiro, suspeito que não são os animaisquedesejamfalarenãoconseguem;nóséquedesejamosqueeles falem,masnãoconseguimosqueelesofaçam.Segundo,amaioriadosanimais,eos cães em particular, nem são vazios de expressões nem são, a bem daverdade, mudos. Como os lobos, eles se expressam com os olhos, asorelhas, o rabo e a postura. Longe de agradavelmente silenciosos, elesgemem, rosnam,uivam, lamentam,choramingam, latemebocejam.E tudoissologonasprimeirassemanasdevida.

Os cães falam. Eles comunicam; declaram; se expressam. Isso nãosurpreende; o que surpreende é a frequência e a diversidade dasmaneirascomquesecomunicam.Elesfalamunscomosoutros,comvocêecomos barulhos vindosdo outro ladodas portas fechadas ou ocultos emgramaalta.Essasociabilidadenoséfamiliar:terumagrandevariedadedeformasdecomunicaçãoéconsistentecomseressociais,comooshumanos.Tais como as raposas, os canídeos que não vivem em um grupo socialparecem terumagamamuitomais limitadade coisas adizer.Atémesmoostiposdesonsqueasraposasfazemsãoindicativosdesuanaturezamaissolitária:elasemitemsonsqueviajampor longasdistâncias.Asólida faltade mudez dos cães se expressa por meio da articulação de sons altos esussurrados. Vocalizações, cheiros, postura e expressão facial, tudofunciona como formade comunicação comoutros cães e, se soubéssemoscomoouvir,conosco.

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EMVOZALTA

Dois seres humanos passeiam em um parque enquanto conversam. Elestransitam com facilidade entre comentários diversos: o calor do vento, anaturezadoshumanosemposiçõesdepoder, re lexõessobreexpressõesanteriores de adoração mutua, avisos para tomar cuidado com a árvorebem à frente. Eles fazem isso principalmente fazendo pequenas eestranhascontorçõesnoformatodascavidadesbucais,comacolocaçãodalínguaempurrandooaratravésdoaparelhovocaleapertandoouabrindoos lábios. A comunicação deles não é a única presente. Durante umacaminhada, os cães, ao lado deles, podem repreender e cortejar um aooutro, con irmar amizades, declarar domínio, recusar aproximações,reivindicarpossedeumgravetooua irmar idelidadeàspessoas.Oscães,assim como tantos animais não humanos, desenvolveram métodosinumeráveis e não orientados para a linguagem falada para secomunicarem uns com os outros. A facilidade dos humanos para secomunicaréinquestionável.Conversamoscomumalinguagemelaboradaevoltadaparaossímbolos,muitodiferentede tudoqueexisteentreoutrosanimais.Porém,àsvezes,esquecemosqueatémesmoascriaturasquenãousam esse tipo de linguagem podem estar conversando com grandeempolgação.

Os animais têm sistemas inteiros de comportamento que transmiteminformaçõesdeumemissor (falante)aumreceptor (ouvinte).É tudoquebasta para chamar algo de comunicação. Não é preciso que sejaminformações importantes, relevantes ou sequer interessantes, mas, entreosanimais,elasfrequentementesão.Nemsempreacomunicaçãoaconteceao alcance da nossa audição, ou até mesmo de forma vocal: comfrequência, ela é feita através da linguagem corporal — usando osmembros, a cabeça, os olhos, o rabo ou o corpo inteiro—oumesmopormeio de modos surpreendentes, como a mudança de cor, urinação edefecação,ouaumentoediminuiçãodetamanho.

Podemos identi icarumacomunicaçãoobservandose,apósumanimalfazerumbarulhoouexecutarumaação,ooutromudaseucomportamentoemresposta.Informaçõesforamtransmitidas.Oquenãoseremoscapazesdeperceber,vistoquenãoconhecemosalinguagem,digamos,dasaranhasou das preguiças (embora haja pesquisadores atualmente tentandoaprender esses sistemas de comunicação), são aquelas expressões que

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caememouvidosmoucos.Noentanto,osanimaissãotagarelasconstantes.As descobertas da ciência natural nos últimos cem anos mostraram avariedade de formas em que essa tagarelice pode se manifestar. Ospássarosgorjeiam,espiamecantamcanções—talcomofazemasbaleiasjubarte.Osmorcegosemitemsonsemalta frequência;oselefantesrugemem baixa frequência. A dança rebolada de uma abelha rainha informa adireção,aqualidadeeadistânciaaqueestáacomida;obocejodomacacotransmite uma ameaça. O brilho de um vaga-lume indica sua espécie; acoloraçãodosapoDentrobatidaeidentificasuatoxicidade.

O tipo que percebemos primeiro é o que mais combina com nossalinguagem:acomunicaçãoemvozalta.

AORELHACANINA

Relampejalá fora. As orelhas de Pump, triângulosequiláteros aveludadosque dobramperfeitamente junto às laterais da cabeça, se erguem formando um isóscelecomprido. Cabeçalevantada, olhos na janela, ela identi ica o som: uma tempestade, algo ameaçador. Suas orelhasgiram para trás, achatadas junto ao crânio, como se paramantê-lasfechadas com o próprio pesodelas.Arrulhoconsoladoramente e observo suas orelhas para obter alguma resposta. As pontasficammenosrígidas,maseladescontraiapenasligeiramente,mantendo-asapertadasparaafastaroruído.

Por não possiurmos orelhas salientes, podemos invejar as orelhasorgulhosasdoscães.Elasestãodisponíveisemumagamadeslumbrantedevariantes igualmente adoráveis; extremamente longas e lobulares;pequenas, macias e eretas; dobradas elegantemente junto à cara. Asorelhas dos cães podem ser móveis ou rígidas, triangulares ouarredondadas, lexíveisoueretas.Namaioriadoscães,a pinnae—apartevisíveleexternadaorelha—giraparamelhorabrirumcanalapartirdafonte do som até o interior do ouvido. A prática de tosquiar as orelhas,cortandoaspinnaeparatornareretasasorelhas lexíveis,hámuitotempoobrigatóriaemmuitasraças,está icandomenospopular.Astentativasdeplanejar cachorros, por vezes defendidas pelo fato de reduzir infecções,têmconsequênciasdesconhecidassobreasensibilidadeauditiva.

Por seu desenho natural, as orelhas dos cães se desenvolveram paraouvir determinados tipos de sons. Felizmente, esse conjunto de sonsenglobaosquepodemosouvireproduzir:qualquerumdelesatingirá,pelomenos, o tímpano de um cão próximo. Nossa gama auditiva vai de vintehertzavintequilo-hertz:dosommaisgravedomaiscompridocanodeumórgão a um grito impossivelmente agudo.* Passamos a maior parte do

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tempo nos esforçando para entender sons entre cem hertz e um quilo-hertz, como o de qualquer conversa interessante acontecendo nasproximidades.Oscãesouvemamaiorparcedoqueouvimoseaindamais.Eles conseguemdetectar sonsaté45quilo-hertz,muitomaisaltosdoqueascélulascapilaresdenossosouvidos.Daí,opoderdoapitopróprioparacães, um dispositivo aparentemente mágico que não emite nenhum somaudível para nós e que, no entanto, atinge os ouvidos caninos háquarteirõesdedistância.Chamamosessesomde "ultrassônico",vistoqueeleestáalémdenossoalcance,masdentrodaamplitudesônicademuitosanimais emnosso ambiente.Não pense por um instante que, exceto pelosilvo ocasional desse apito, o mundo lhes é silencioso. Até mesmo umcômodonormalpalpitacomfrequênciasaltas,constantementedetectáveispeloscães.Vocêachaqueseuquartoécalmoquandolevantademanhã?Oressonadorde cristal usadonos relógiosdespertadoresdigitais emiteumalarme constante de pulsos de alta frequência percebíveis pelos ouvidoscaninos.Oscãesconseguemouvirotrinarnavegacionaldosratosatrásdasparedeseasvibraçõescorporaisdoscupins.Sabeaquelaluz luorescentecompactaquevocêinstalouparaeconomizarenergia?Vocêpodenãoouvirozumbido,masseucãoprovavelmenteouve.

*Narealidade,poucaspessoasouvemigualmentebemportodoesseespectro.Comaidade,ossonsdefrequênciaalta,acimade11a14quilo-hertz,passamdespercebidospeloouvidohumano.Esseconhecimentogerouo inspirado projeto de um produto tendo oumwelt dos adolescentes emmente. O dispositivo emite um som de 17 quilo-hertz— além dos limites damaioria da audiçãoadulta, ma sdesagradavelmente audível para os jovens. Os donos de lojas o utilizam comorepelentesdeadolescentes,paradesencorajá-losàpassarotempoàtoaemseusestabelecimentos.

Aintensidadedossonsquemaisnosinteressamsãoosusadosnafala.Os cães ouvem todos esses sons e são quase tão bons quanto nós nadetecçãodeumamudançaemsuaintensidade—relevante,digamos,paraentendera irmaçõesqueterminamemintensidadesbaixas,comparadasaperguntasquenalínguainglesaterminamemintensidadealta:"Vocêquerdar uma volta (?)" Com o ponto de interrogação, essa frase torna-seexcitanteparaocãocomexperiênciaemcaminhadascomhumanos.Semoponto de interrogação, tudo soa simplesmente como ruído. Imagine aconfusão gerada pela popularidade crescente do modo de falar, quetermina todas as frases com uma intensidademais alta, como se fossemperguntas.

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Seos cães entendema ênfase e os tons—aprosódia—da fala, issoindicaqueelesentendemalinguagemfalada?Essaéumaquestãonatural,masproblemática.Vistoqueousodalinguagemoraléumadasdiferençasmaisevidentesentreoanimalhumanoe todososoutros, ela foipropostacomo o critério de inteligência de initivo e incomparável. Isso causareações iradas em alguns pesquisadores que se dedicaram a tentardemonstrar as capacidades linguísticas dos animais. Até mesmo aquelesqueconcordamcomofatodequea linguagemfaladaénecessáriaparaainteligência, acrescentaram inúmeras provas às já abundantementeexistentes sobre a capacidade linguística de animais não humanos. Noentanto, todas as partes concordam que não houve uma descoberta deuma linguagem semelhante à humana — um corpus de palavrasin initamente combináveis que frequentemente possuem de iniçõesmúltiplas, com regras para a combinação de palavras em sentenças comsentido—entreosanimais.

Isso não signi ica dizer que os animais não podem entender parte donossousodalinguagem,aindaqueelesprópriosnãoaproduzam.Existem,porexemplo,inúmeroscasosdeanimaisquetiramvantagemdossistemasde comunicação das espécies não aparentadas que estejam nasproximidades.Osmacacospodemusaroalertadospássarosparaalertarsobreumpredadorqueestejaporpertoeassimagiremparaseproteger.Atémesmoumanimalqueenganaoutroanimalpormeiodaimitação—oquealgumascobras,traçasemesmomoscaspodemfazer—está,decertaforma,usandoalinguagemdeoutraespécie.

Aspesquisascomcachorrossugeremqueelesentendema linguagemfalada — até certo ponto. Por um lado, dizer que os cães entendempalavras é inapropriado.Aspalavrasexistememuma línguaque,por suavez, é produto de uma cultura; os cachorros são participantes dessacultura em um nível muito diferente. Sua estrutura para entender aaplicação das palavras é inteiramente distinta. Não há dúvida de que hámaisnaspalavrasemseumundodoquesugeremas tirasdequadrinhosFar Side, de Gary Larson: comer, andar e pegar. Mas ele está certo, namedida em que esses são elementos organizadores de sua interaçãoconosco: circunscrevemos o mundo do cão a um conjunto restrito deatividades. Comparados com os bichos de estimação urbanos, os cãestrabalhadoresparecemmiraculosamenteresponsivosefocados.Masnãoéque eles sejam naturalmente assim; seus donos é que acrescentaram a

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seusvocabuláriostiposdeatividadesaseremfeitas.

Umdosfatoresparaacompreensãodeumapalavraéacapacidadedediscriminá-la. Devido à sua sensibilidade à prosódia da fala, os cães nemsempre são bons nesse quesito. Tente sugerir a seu cão para dar umavolta; namanhã seguinte, pergunte-lhe se ele quermar de umabroca nomesmo tom de voz. Se tudo mais permanecer igual, provavelmente vocêobterá a mesma reação a irmativa. Os sons iniciais de um enunciadoparecemser importantesparaapercepçãodocão;então, trocar letrasoualterar sua sonoridade — sar mesolco?— poderia estimular a confusãomerecidaporessepalavreadosemsentido.Claroqueoshumanostambéminferem o sentido por meio da prosódia. A língua inglesa não atribui àprosódia da fala grande importância sintática, mas ainda assim ela fazpartedaformacomointerpretamos"oqueacaboudeserdito".

Se prestássemosmais atenção aos sons quando falamos com os cães,poderíamos obter respostas melhores. Os sons agudos signi icam algodiferentedos graves; sons crescentes contrastam com sonsdecrescentes.Nãoporacasoarrulhamosparaumacriançaemtonstolosedisparatados(achamadafalademãe)—ecumprimentamosumcãoqueabanaorabocom uma fala de bebê semelhante. As crianças conseguem ouvir outrossons falados, mas se interessammais pela fala damãe. Os cães tambémrespondem com entusiasmo a esse tipo de fala — em parte porquedistinguema falaque lhesédirigidadorestodoblá-blá-blácontínuoqueocorreemvozaltaacimadesuascabeças.Alémdomais, eles respondemcommais facilidadeàs chamadas repetidaseagudasdoqueàquelas comumaintensidademaisbaixa.Queecologiaestáportrásdisso?Ossonsaltossão naturalmente interessantes para os cães: eles podem indicar aexcitaçãodeumalutaouogritodeumapresaferidanasproximidades.Seum cão deixa de responder a seu chamado razoável de que venhaimediatamente, resista ao desejo de usar um tommais grave ou enfático.Ele indica seu estado mental e a punição que pode advir pela falta decooperaçãoprévia.Damesmaforma,émaisfácilfazerumcão sentarapósum comando em um tom mais longo e descendente do que em notasrepetidaseascendentes.Éprovávelqueessetominduzaorelaxamentoouosprepareparaopróximocomandodaquelehumanotagarela.

Háumcão famosocujousodapalavraéexcepcional.Rico,umbordercollier alemão, é capaz de identi icar mais de duzentos brinquedos pelo

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nome.Ao lhe serdadaumaenormepilhade todososbrinquedosebolasque já viu, ele consegue com con iança achar e pegar exatamente aquelesolicitado pelo dono. Bem, sem entrar no mérito de por que um cãoprecisariadeduzentosbrinquedos, essa capacidadeé impressionante.Ascrianças di icilmente conseguem realizar a mesma tarefa (e somente àsvezes ajudam a trazer os objetos de volta). Melhor ainda, Rico conseguerapidamente aprenderumnomepara cadaobjetonovoporumprocessodeeliminação.

Os pesquisadores colocaram um brinquedo novo entre os que ele jáconhecia e lhe pediram para pegá-lo usando uma palavra que ele nuncaouviraantes. Vá pegar osnark,Rico. Compreenderíamos se ele parecesseconfusoevoltassecomseubrinquedofavoritonaboca.Mas,emvezdisso,Ricoescolheobrinquedonovo:comsegurança,nomeando-o.

É claro que Rico não está usando linguagem, na forma como nós oumesmo uma criança pequena o faz. Pode-se discutir sobre o quanto eleentende,ouseestáfazendoalgodiferentedemostrarumapreferênciaporum novo objeto. Por outro lado, Rico demonstra uma capacidade astutapara satisfazer oshumanos emitindovários sons ao identi icar os objetosaos quais aqueles sons se referem. É possível que sua habilidade nãoindiquequetodososcãessejamtãocapazes:Ricopodeserumusuáriodepalavras extraordinariamente dotado * — e, de fato, estáextraordinariamente motivado pelos elogios recebidos ao pegar o objetocerto. Entretanto, mesmo se ele fosse o único cão a fazer isso, esse fatoindicariaqueoequipamentocognitivodocãoésu icientementebomparaentenderalinguagemnocontextocerto.

* Desde a publicação dos sucessos de Rico, em 2004, surgiram relatos de casos de outros cães(tambémbordercollies,emsuamaioria)comvocabuláriosquevãodeoitentaamaisdetrezentaspalavras: todos nomes de brinquedos variados. Você talvez tenha um desses prodigiososvocabularistasemsuacasa.

Não se trata apenas do conteúdo expresso ou do som da fala quetransporta sentido. Ser um usuário competente da linguagem signi icaentenderapragmáticadouso: comoos sentidos, a formaeo contextodoqueédito tambémafetamosentidodoquesediz.PaulGrice,um ilósofodo século XX, icou famoso por descrever várias "máximasconversacionais",implicitamenteconhecidaspornós,queregulamousodalinguagem. A utilização dessas máximas nos marca como falantescooperativos; até mesmo sua violação expressa é frequentemente

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signi icativa. Elas incluem a encantadora máxima da relação (serrelevante),adomodo(serbreveeclaro),adaqualidade(dizeraverdade)edaquantidade(dizerapenasoqueénecessário).

Em um dia bom, os cães respeitam todas as máximas de Grice.Considereocasodeumcachorroqueespiaumhomemsuspeitoandandopela rua. Ele pode latir (relevante: o cara parece suspeito) com estrondo(muito pouco ambíguo), mas apenas enquanto o tipo está por perto (demodoqueolatidodeavisosejaconsideradoverdadeiro)esomentepoucasvezes (relativamente breve). Embora os cães não se quali iquem comousuárioscompetentesdalinguagemfalada,issonãoaconteceporcausadesuaviolaçãodapragmáticada comunicação.Éapenasapequenezde seuvocabulário e o uso restrito de combinações de palavras que osdesqualificam.

Muitosdonoslamentamque,aocontráriodeRico,seuscãesnãosejamouvintes exímios— apesar do amplo espectro de audição que possuem.Parasermosjustos,aaudiçãonãoéoprincipalsentidodoscanídeos.Nossaprópria capacidade de discriminar a origem de um som— de onde elevem—éimprecisa.Oscãesouvemossonsdesvinculadosdesuasorigens.E, assim comonós, precisamprestar atenção a um ruído a imde ouvi-lomelhor.Oprimeirosinaldessaatençãoéainclinaçãofamiliardacabeça—paradirigirasorelhas ligeiramentenadireçãodafontedosom—ounosajustes tipo radardaparte externadoouvido.Emvezde serusadopara"ver" a fonte do som, seu sentido auditivo parece servir a uma funçãosecundária: ajudar os cães a encontrar a direção geral de um som,momento em que eles podem acionar um sentido mais acurado, como oolfatooumesmoavisão,parainvestigarmelhor.

Os próprios cães emitem uma variedade de sons em uma escala degrausdeintensidadequediferemapenasemfunçãodealteraçõessutisnoritmoounafrequência.Elessãobastantebarulhentos.

OOPOSTODEMUDO

Abocavagarosamenteofeganteestáentreaberta;a línguaévioleta,úmidaeperfeita.OofegardePumperaumaconversaemsimesmo—sempresentiqueelaconversavacomigoquandoofegavaparamim.

A cacofonia de um cercado cheio de cães inicialmente soa como umaalgazarra indiferenciada. Sob um exame mais acurado, no entanto, é

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possíveldistinguirganidosdebrados,uivosdelatidoselatidosbrincalhõesde latidos ameaçadores. Os cães fazem sons intencionalmente e semquerer.Osdoistipospodemconterinformações—exigênciamínimaparachamar um distúrbio ruidoso de "comunicação" em vez de simplesmente"barulho". O interessante para os cientistas é determinar o signi icadodessas mensagens. Tendo em vista a e icácia com que os cães utilizamessesruídos,nãohádúvidadequeelespossuemsentidosdiferentes.

As horas incontáveis de vida dedicadas pelos pesquisadores a ouviranimaismugir,arrulhar,estalar,gemer,guincharlevaramàdescobertadealgumascaracterísticasuniversaisdossinaissonoros.Elesexpressamalgosobreomundo—umadescoberta,umperigo—oualgosobreosprópriossinalizadores — sua identidade, status sexual, classi icação, a iliaçãogrupal, medo ou prazer. Eles provocam mudanças: podem diminuir adistância social entre o sinalizador e os outros a seu redor, chamandoalguémparaseaproximar;ouaumentaressadistância,ameaçandoalguémparaqueseafaste.Alémdisso,ossonspodemservirparareunirumgrupo(na defesa contra um predador ou intruso, por exemplo) ou paraesclarecer a a iliação materna ou sexual. No im das contas, todos essesobjetivosfazemsentidodopontodevistaevolucionário:ossonsauxiliamoanimalaassegurarsuasobrevivênciaeadeseusfamiliares.

Então,oqueoscãesestãodizendoecomoestãodizendo?Descobrimososigni icadodoqueelesdizemexaminandoocontextodaemissãodosom.O contexto inclui não apenas os sons do ambiente, mas também ossentidos: uma palavra gritada acaba por signi icar algo diferente de umaentoada com um sussurro sedutor. Um som feito por um cão enquantoabana o rabo de felicidade quer dizer algo diferente do mesmo somemitidoatravésdedentesexpostos.

O sentidodeumsompronunciadopode tambémser identi icadopeloexamedoquefazemaquelesqueoouvem.Emboraasrespostashumanasa um enunciado (digamos Como vai você?) possam variar — de umaapropriada (Bem, obrigada) a uma aparentemente disparatada (Sim, nãotemos bananas)—, não há razão para acreditar que os cães, e todos osanimais não humanos, respondam ingenuamente. Em muitos casos, umsomteráumefeitoprevisívelsobaquelesanossavolta.Penseem Fogo!ouemDinheirodegraça!

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Como sinalizar com sons é simples no caso dos cães. A maioria dosruídos emitidos pelos cachorros é oral: usam a boca ou saem dela. Pelomenos, esses são os sons que conhecemos. Os vocais podem servocalizados — com vibrações na laringe, a passagem de ar usada pararespirar —, ou expiratórios — parte de uma expiração Outros, emborausemaboca,sãointeiramentenãovocais,comoosommecânicoderangeros dentes. Os sons vocais variam entre si ao longo de quatro dimensõesfacilmenteaudíveis.Elesvariamemtermosdefrequência:ochoroéquasesempre agudo, enquanto que o rosnado é grave. Tente guinchar umrosnadoeelesoaráoutracoisa.Elesvariamemtermosdeduração:algunssão pronunciados uma vez, rapidamente, durando menos do que meiosegundo;outros sãoprolongadosou repetidosdiversasvezes.Variamemtermosdeformato:algunssãotonspuros,outrossãofraturados,variáveisou crescentes e decrescentes. Um uivo tem uma pequena variação porlongosperíodos,enquantoqueos latidossãosons ruidososemutáveis.E,inalmente,variamemtermosdevolumeou intensidade.Os lamentosnãosãoexpressosemvozalta,eosuivosnãosãosussurrados.

LAMÚRIAS,ROSNADOS,GUINCHOSERISOS

Elavêqueestouquasepronta.Comacabeçaapoiadanochãoentreaspatas,Pumpmeseguecomosolhosenquantocruzooquartopegandoabolsa,o livroeaschaves.Coçoentreasorelhasdela,consolando-a,evouatéaporta.Ela levantaacabeçaefazumsom:umuivotriste.Ficoparalisada.Olhoparatrás,eelaseaproxima,balançandoorabo.Estábementão:achoqueelavemcomigo.

O som paradigmático dos cães é o latido, mas os latidos não formam atotalidadedosbarulhosqueamaioriadoscachorros faznodiaadia,queincluemsonsaltosebaixos,incidentaiseatémesmouivoserisos.Ossonsdefrequênciaalta—choros,guinchos,lamentos,lamúrias,uivosegemidos—ocorremquandoocãosenteumadorrepentinaouprecisadeatenção.Sãoessesalgunsdosprimeirossonsqueum ilhoteproduzirá,dando-nospistas sobre seu signi icado: eles tendem a atrair a atenção damãe. Umuivopodesairdeum ilhoteque foipisado,ouquesedesgarrou.Surdoecego, émais fácil para amãeencontrar seu ilhodoquevice-versa.Apósserem reunidos, alguns continuam a uivar, diminuindo seu ataque dechoro quando carregados pela mãe. Os uivos são diferentes de gemidos,que nos lobos incitam a mãe a lamber o ilhote, fornecendo o contatonecessário ao desenvolvimento normal. Choros e guinchospodem serignoradospelamãe;portanto,umguinchoespecíficopodeserumchamadomenos signi icativo, um som indiferenciado usado simplesmente para vercomoosoutrosreagem.

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Chorosourosnadosgravestambémsãomuitocomunsentreos ilhotes,enãoparecemserumsinaldedor,massimumtipoderonronarcanino.Existem lamentos choramingadose suspirados—quealguns chamamde"rosnadosdecontentamento"—e todoselesparecemsigni icaramesmacoisa. Os ilhotes grunhem quando estão em contato íntimo com outrosmembrosdaninhada,comamãe,oucomumapessoaconhecidaquecuidadeles. O som pode ser simplesmente o resultado de respiração pesada elenta, indicando que talvez ele não seja produzido intencionalmente: nãoháprovasdequeoscãesemitemgrunhidosdepropósito(nemháprovasde que eles não o fazem; nenhuma das duas a irmações foi provada).Porém,seelesgrunhemounão,oprováveléqueosgrunhidosfuncionemparaa irmarolaçoentreosmembrosdafamília,sejamelesouvidoscomoumavibraçãobaixaousentidanocontatopeleapele.

Orugidodeumrosnadoeorangerdedentes ameaçador,nãoéprecisoque lhedigam, são sons agressivos.Os ilhotesnão tendemaproduzi-los,assim como não costumam iniciar uma agressão. Parte do que os tornaagressivosésuafrequênciabaixa:elessãootipodesomquesairiadeumanimalgrande,emvezdosguinchosagudosdeumbichopequeno.Emumencontroantagônico(quenabiologiaédenominadoagonístico) comoutroanimal,umcãodesejaseparecercomumacriaturamaioremaispoderosa— logo, ele faz um somde cachorro grande.Ao emitir sonsmais agudos,umanimal soa, simplesmente,menor:o ruídoé amigávelouapaziguador.Embora agressivo na intenção, os rosnados ainda são sociais,não apenasenunciadosproduzidosquandoumcãosentemedoouraiva:amaioriadoscachorros não rosna para objetos inanimados *, ou mesmo para objetosanimadosquenãoestejamàsuafrenteouquesedirijamaeles.Tambémsão mais sutis do que pensamos: rosnados distintos, de rugir até quaseurrar,sãousadosemcontextosdiferentes.Orosnadoemumadisputatipocabo de guerra pode soar ameaçador, mas não é nada comparado aorangerdedentesassociadoaumadisputapelapossedeumossoprecioso.Amplie esses rosnados em um alto-falante colocado em frente a um ossodesejado e os cães nos arredores o evitarão — mesmo sem nenhumcachorro à vista. No entanto, se o alto-falante reproduzir gravações derosnadosdebrincadeiraoudecumprimentoaestranhos,oscãespróximosseapropriarãodoossodesprotegido.

* Exceto quando é animado: uma sacola de plástico descartada arrastada pelo vento na calçadapode provocarrosnados,advertência e ataques ocasionais por cães amedrontados. Os cachorrospodemseranimistas,talcomooshumanoscostumamsernainfância;tentandoentenderomundo

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atribuindoumaqualidadefamiliar(devida)aobjetosdesconhecidos.Minhacadela,querosnaparasacolas de plástico, está em boa companhia:Darwinrelatou que seu cão tratava uma sombrinhaoscilante ao sabor do vento como uma coisa viva, latindo para ela e perseguindo-a. JaneGoodallobservouchimpanzésfazendogestosameaçadoresparanuvensdetempestade.Tam bémeu já fuivistaxingandoasnuvensdechuva.

Sons caninos casuais são produzidos tão previsivelmente emdeterminados contextosque se tornarame icientemente comunicativos.Otapa brincalhão, um aterrissar barulhento feito com as duas patasdianteiras ao mesmo tempo, é uma parte inevitável da brincadeira. Eletransmite tanta vivacidade que pode ser usado isoladamente como opedidodeumcãoparabrincarcomvocê.Algunscãesestalejamosdentesde ansiedade, sendo o ranger dos dentes um aviso de que ele estádesconfiado.Umganidoexageradoaoserincomodadooumordidoemumabrincadeira pode até se tornar uma trapaça ritualizada, uma forma deescapardeuma interaçãosocialqueestádeixandoocão inseguro.Osomde fungar criado ao esticar a cabeça verticalmente para cima e cheirar acomidaaoredordabocadeumhumanopodeserevelarnãoapenasumabusca por comida,mas também um pedido. Até o barulho da respiraçãocausadopelofatodeeleestardeitadotãopertoqueoseufocinhochegaapressionar o outro corpo pode indicar um estado de relaxamentoprazeroso.

Se você convive com um cão, está familiarizado com o uivo. De umladrar intermitente a um lamento triste, o uivo dos cães parece ser umcomportamento herdado de seus ancestrais, que viviam em alcateiassociais. Os lobos uivam quando separados do grupo, e também quandosaem juntos para uma caçada ou se reúnem posteriormente. Um uivosolitário é uma comunicação que busca companhia; uivar emgrupopodeser simplesmente um convite à reunião ou uma celebração coletiva. Eletem um componente contagiante, que leva os outros animais próximos auivaremdeimproviso.Nãosabemosoqueelesestãodizendounsparaosoutrosouparaalua.

O somhumanomais social é a risadabarulhenta que se espalhapelasala.Oscãesriem?Bem,apenasquandoalgoérealmentemuitoengraçado.Sim, os cães têm o que se chama de uma risada. Não é igual à risadahumana, o som espontâneo que brota em resposta a algo engraçado,surpreendenteoumesmoameaçador.Elatambémnãoévariávelcomoasgargalhadas,osrisinhoseasrisadasqueproduzimos.Orisodocãoéumaexalação respiratória que soa comouma excitada explosão de resfolegar.

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Podemoschamaraissodeofegarsocial:umarquejoouvidoapenasquandocãesestãobrincandooutentandoatrairalguémparabrincarcomeles.Oscachorros não parecem rir para si mesmos, sentados no canto da sala,recordando como o cãomarrom claro ludibriou seu dono estamanhã noparque.Emvezdisso,elesriemquandointeragem.Sevocêjábrincoucomumdeles,provavelmenteouviu isso.Naverdade,ofegarsocialmenteparaumcãoéumadasformasmaiseficazesdecomeçarumabrincadeira.

Assim como nossas risadas são frequentemente respostasdespreocupadas e automáticas, as risadas dos cães também podem serassim: simplesmente o tipo de somofegante que surge quando você estájogando seu corpo de um lado para outro em uma brincadeira. Emboraissopossaestarforadocontroledocão,oofegarsocialpareceserumsinaldedivertimento.Eleatépodeinduziraoprazer—ou,pelomenos,aliviaroestresse—nosoutros:descobriu-sequetocarumagravaçãocomsonsderisadas caninas em abrigos de animais reduzia os latidos, as caminhadascompulsivas e outros sinais de estresse dos cães hospedados. Se afelicidade deles é igual à dos humanos, eis uma questão ainda a serestudada.

AU-AU

Lembro-medaprimeiravezemquePumplatiuquandotinhatalveztrêsanos.Elaeramuitoquietaatéque,umdia,apóspassaralgumtempocomseuamigopastoralemão,umlatidosurgiu.Pareciamaisumlatidodoqueerarealmenteumlatido,comosefosseumsomcapazdesubstituí-lo,semserum latido de fato: umrurj! bem articulado e acompanhado por um pequeno salto das patasdianteiras e um abanar de rabo ensandecido. Ao longo dos anos, ela foi re inando essademonstraçãoesplêndida,massempremepareceualgonovoqueelaestavaexperimentando.

Élamentávelqueoslatidostendamasereventostãobarulhentos.Olatidoé gritado. Enquanto uma conversação tranquila entre dois passantes noparque pode registrar cerca de sessenta decibéis, os latidos de um cãocomeçamemsetenta, sendoqueuma sériedelespode serpontuada compicos de cento e trinta decibéis. Os aumentos nos decibéis, a unidade demedida da intensidade dos sons, são exponenciais: um aumento de dezdecibéis correspondea cemvezesmaisnaexperiênciada intensidadedeum som. Cento e trinta decibéis é a altura do somde uma trovoada e dadecolagem de um avião. O latido é momentâneo, mas um momento dedesprazerparanossosouvidos.Arazãodisso—deacordocomamaioriadospesquisadores—équeexistemmuitasinformaçõescontidasnaqueleslatidos. Como há uma relativa escassez de latidos entre os lobos, alguns

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teorizam que os cães desenvolveram uma linguagem de latidos maiselaborada precisamente para se comunicar com os humanos. Seconsiderarmos todos os latidos iguais, então é bem provável que elesirritemmaisdoquecomuniquem.

Os pesquisadores podem não chamar os latidos de "irritantes", maseles os chamam de "caóticos" e "barulhentos". "Caótico" é uma boadescrição para a diversidade dos tipos de sons em cada latido;"barulhento" não signi ica apenas desagradavalmante alto, mas tambempossuindo lutuações em sua estrutura. Eles são altos, e latidos diferentespossuemumnúmerovariadodecomponentesharmônicos,dependendodocontextonoqualeleéempregado.

No entanto, entre os sons emitidos pelos cães, os latidos são os quemaisseaproximamda fala.Comoos fonemas,o latidocaninoéproduzidopor vibrações nas pregas vocais e pelo luxo de ar que passa ao longodessas pregas e através da cavidade bucal. Talvez por estarem emfrequênciassobrepostasaossonsdafala—de10hertza2quilo-hertz—,somos tentados a procurarnos latidos sentidosparecidos comosda fala.Costumamosaténomeá-losusandofonemasdenossalinguagem:ocãofaz"au-au", "ruf", "arf", ou (embora nenhum cão que eu conheça diga isso)"bau uau". Os franceses ouvem os cães fazerem "ouah-ouah", os cãesnorueguesesfazemvoff-voff;ositalianos,bau-bau.

No entanto, alguns etólogos acreditam que o latido não é algofundamentalmente comunicativo: ele é "ambíguo" e "sem sentido". Essavisãoéencorajadapeladi iculdadededecifrarqualseriaosigni icadodoslatidos, visto que os cães às vezes latem sem um estímulo óbvio ou umaplateiaaparente,econtinuama latirmuitodepoisdequalquermensagemassociada ter sido transmitida. Pense em um cachorro latindocontinuamente, inúmerasvezesseguidas,nafrentedeoutrocão:seexistealgumsentidonaquelelatido,umaouduasrepetiçõesnãootransmitiriam?

Tudo isso chega ao cerne da questão: determinar a experiênciasubjetiva de um animal ao qual é impossível fazer perguntas. Cadamomento de seu comportamento é escrutinado com o propósito dedeterminar seu sentido. Certamente, poucas ações humanas poderiamsuportar tal escrutínio que resultasse em uma avaliação correta a nossorespeito.Sevocême ilmassepraticando—emcasaenafrentedaminha

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cachorra—umdiscursoqueprecisofazermaistardenaqueledia,poderiaconcluir que (a) acredito que o cão é capaz de entender o que estoudizendo;ou(b)estoufalandocomigomesma.Emambososcasos,o(c)éocorreto: se os barulhos que faço não parecerem ser classicamentecomunicativoséporquenão tenhoumaplateiacapazdemeentender.Damesma forma, exemplos de comunicação de iciente tentada por um cãopodemparecerminaranoçãodequeoscãessãocapazesdesecomunicar.Contudo,amaioriadospesquisadoresacreditaqueos latidostêmsentido,embora esse sentido dependa do contexto e atémesmo do indivíduo. Oslatidos, sobretudoosde alerta, se caracterizam comoumadasdiferençasmais claras entre os cães e as outras espécies canídeas. Os lobos latemparatransmitiralarme,emborararamenteemitindoumsommaisde"uuf"do que algo como os latidos persistentes de um cachorro com os quaisestamos familiarizados. Os cães não apenas latemmais do que os lobos;elesdesenvolveraminúmerasvariaçõessobreomesmotema.

Existem diversos latidos reconhecíveis, usados de maneira previsívelem várias ocasiões distintas. Os cães latem para chamar atenção, paraalertarsobreumperigo,pormedo,paracumprimentar,debrincadeira,oumesmo por solidão, angústia, confusão, agonia ou desconforto. O sentidoestá no contexto, mas não apenas no contexto: os espectrogramas doslatidos caninos mostram que eles são misturas de tons usados emrosnados, lamúrias e uivos.Ao alterar a predominância deum tom sobreoutros,olatidoassumeumcaráterdiferente—umaessênciadiferente.

As primeiras pesquisas sobre as vocalizações caninas concluíramquetodos os latidos de cães se destinam a obter atenção. Na verdade, elesatraem atenção, contanto que alguém esteja su icientemente perto paraouvi-los. Porém, estudos recentes izeram discriminações mais sutis. Damesma forma que todos os latidos acabam sendo uma forma de "obteratenção",tambémsepoderiadizerquefalamosparasermosouvidos:umaverdade, porém incompleta. Por exemplo, quando pesquisadoresanalisaram o espectrograma de milhares de latidos de cães durante umdos três contextos—um estranho tocando a campainha, sendo trancadodo lado de fora ou brincando — descobriram três tipos diferentes delatido.

Oslatidosparaestranhos foramosmaisgraveseosmaiscarrancudos:elessãoquasecuspidos.Menosvariáveisdoqueosoutros tipos, sãobem

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elaborados para enviar uma mensagem a distância, algo necessárioquandoseestásozinhoemumasituaçãoameaçadora.Elestambémpodemser combinados em "superlatidos", concatenações de latidos que juntosduram muito mais do que aqueles emitidos em outros contextos. Oresultado inal é um somque amaioria dos ouvintes humanos consideraagressivo.

Os latidosde isolamento tendema sermaisagudosevariáveis: algunssobem, baixam e depois tornam a subir; alguns sobem e depois baixam.Esses latidos são jogados no ar um por um, às vezes com grandesintervalosentreeles.Segundomuitaspessoas,elessoam"temerosos".

Os latidos de brincadeira também são agudos, mas acontecem maisseguidamente — um após o outro. Em contraste com os latidos deisolamento, são dirigidos a outro: para um cão ou humano que sejaparceiro de brincadeiras. Existem variações individuais consideráveis,claro: nem todo cão late igual. O latido de um cão pequeno dirigido paraestranhospodesaircomoraurau ouraoau,raoau,enquantoodeumcãograndesoaRaumcomrmaiúsculo.

Essasdiferençasfazemsentidodopontodevistaevolucionário:ossonsmais graves são usados em situações ameaçadoras (novamente paraparecermaior);ossonsmaisagudossãosúplicas—dirigidosaamigos,embuscadecompanhia—e,comotais,sãosolicitaçõessubmissas,nãoalertas.Asdiferençasentrelatidosindividuaisindicamqueelespodemserusadosparaa irmaraidentidadedeumcãoourevelarsuaassociaçãoaumgrupo(mesmoseo grupo for eu, amulher na outra ponta da coleira em vez deessescãescomquemestoubrincando).Latirjuntocomoutrospodeserumaforma de coesão social. Como os uivos, latir pode ser contagioso: um cãoladrando pode despertar um coro de cães, todos reunidos em umabarulheiracompartilhada.

CORPOERABO

Quandonosaproximamosdepessoasnarua,Pumpconcentra todososseussentidosnoolhar.Seela as reconhece, sua cabeça se abaixa muito ligeiramente — olhando para cima de maneiraenvergonhada,comoseo izesseporcimadeóculosdeleitura—enquantoelaabanaorabo,baixo.Isso é bem diferente do que acontece quando ela se aproxima de um cão por quem estáapaixonada—todaereta,raboalto, postura impecável, balançandoo raboritmicamente—oudeum cão amigo, que ela aborda de formamais solta edesconjuntada,arriscando até mesmo uma

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abocanhadanadireçãodacaradele,ouumaesfregadasuavedoquadrilaolongodeseucorpo.

Você pode estar sentado agora mesmo, enroscado em uma poltronaconfortável;outalvezestejadepé,emumtremlotado,segurandoumlivrona mão e imprensado contra as costas de outro passageiro. Muitoprovavelmentevocênãodesejasigni icarnadaporestarsentadoouempé,ou mesmo quando caminha ou deita de costas: trata-se apenas de umapostura de conveniência ou conforto. Mas, em outros contextos, nossaprópria postura transmite informações. Um receptor de beisebol seagacha: ele se prepara para apanhar um arremesso. Um pai se curva eabre os braços: ele está convidando o ilho para um abraço. Se estivercorrendo e alguém que você conhece se aproxima, você para ecumprimenta; se está parado e alguém que você conhece se aproxima,você se vira e vai correndo ao encontro dele. Pode haver um sentidosimplesmentenovigorounadescontraçãode seu corpo.Paraumanimalcomrepertóriovocallimitado,aposturaéaindamaisimportante.Epareceque os cães usam posturas especí icas para fazer a irmações igualmenteespecíficas.

Existe uma linguagem corporal composta de fonemas feitos detraseiros, cabeças, orelhas, pernas e rabos. Os cães sabem como traduziressa linguagem intuitivamente; eu a aprendi após observar centenas dehorasdeinteraçãoentrecachorros.Devemosparecerburrosparaoscães,que podem expressar tudo — da jovialidade à agressão e à intençãoamorosa—mudandoaformaeaalturadocorpo.Emcontrapartida,somosseres inibidos com postura ereta, que passamos amaior parte do tempoparadosoucaminhandoparaafrentecompoucosmovimentossupér luos.Ocasionalmente — céus! — viramos a cabeça ou o braço de formaexibicionistaparaolado.

No entanto, por meio de sinais externos, o próprio homem não consegue expressar amor ehumildade tão francamente quanto um cão, quando este, com orelhas caídas, lábios suspensos eraboabanando,encontraoamadodono.—CharlesDarwin

Para os cães, a postura pode anunciar uma intenção agressiva oumodéstia recatada. Simplesmente icarereto,bemalto, coma cabeçae asorelhas levantadas, signi ica anunciar prontidão para interagir e, talvez,para ser aquele que inicia a interação. Até mesmo os pelos entre osombrosounotraseiropodemficareriçados,servindonãoapenascomoumsinal visual de excitação, mas também liberando odor das glândulascutâneas localizadasnabasedospelos.Paraexageraraperformance,um

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cãopodenãosomenteficarempé,masemcimadeoutrocão,comacabeçaouaspatas em suas costas.Trata-sedeumadeclaração, comovocêpodeimaginar, de que ele se sente dominante. A postura corporal oposta —agachado, comacabeçaeasorelhasabaixadaseo raboen iadoentreaspernas — é submissa. Deitar de barriga para cima demonstra umasubmissãoaindamaior.*

*Surpreendentemente,oscãesprestammaisatençãoàposturadoqueaotamanhounsdosoutros:elesnão relacionamaaltura comdomínioou con iançade formaautomática.Comoveremos maistarde,nãoémuitocorretoa irmar,comomuitasvezessedizdeumcãozinhocorajosamenteousado,que ele acha que é grande. Na verdade, ele não pensa assim— ele sabe que é a postura queimporta.

Esse conceito de antítese — de que posturas opostas comunicamemoçõesopostas—descrevegrandepartedoescopoexpressivodoscães.As expressões faciais,mais visíveisnaboca enasorelhas, também levamem conta esse princípio. A boca se movimenta de fechada a aberta erelaxada,atéseabrircomoslábioslevantados,focinhoenrugadoedentesàmostra.O"riso"canino,comamandíbulafechada,ésubmisso;conformeabocaseabre,aexcitaçãoaumenta;e,seosdentesestãoexpostos,oolharse torna agressivo. Fechando um círculo, uma boca bem aberta comgrande parte dos dentes cobertos— um bocejo— não é sinal de tédio,comomuitasvezespresumimosporanalogia;aocontrário,elepodeindicaransiedade,timidezouestresse,eéusadopeloscãesparaseacalmaremouacalmaremoutroscães.Asorelhastambémcostumamfazeressaginástica:elas podem estar eretas, relaxadas e baixas, ou dobradas irmementecontraacabeça.Examinaroutrocãocomoolhar ixopodeserameaçadorouagressivo;emcontrapartida,desviaroolharsigni icasubmissão—umatentativade reprimir a própria ansiedade e a excitaçãodo outro cão. Emoutras palavras, cada caso varia de um extremo a outro, representandodiferenças de intensidade ao longo de um espectro emocional contínuo,quevaidorelaxamentoàexcitaçãopormedooualarme.

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Nenhum desses é um símbolo estático — ou, se é, trata-se de umacondição signi icativa. Manter uma postura ereta e imóvel é uma formatranquila de colocar um ponto de exclamação no corpo. Ela exagera atensão da comunicação. Na maior parte do tempo, as posturas sãoassumidasedesfeitas.O rabo, sobretudo, éummembrodemovimento.Éinacreditável que a ciência ainda não tenha feito uma investigaçãocompletadosentidodecadamovimentodele.

Quando ilhote,orabodelaeraesbelto,uma lechadepelopretomacio.Essenãoacabousendo,deformaalguma,odestinodeseurabo:elesetornouumaincrívelbandeiraexuberante,compelagemabundante que embaraçava e agarrava folhas. Era curvado na ponta por causa de umdesentendimentonainfânciacomaportadeumcarro.Elaobalançavaquandoexcitadaoualegre,curvando-oemformade foicecomapontaapontandoparao traseiro.Quandodeitada,batiacomelenochão,comalegria,semprequeeumeaproximava.Oraboregistravaexaustãoquando icavaretoe caído; seudesinteresseporumcãoabelhudo fazia comqueelaoen iasseentreaspernas.Grandepartedotempo,quandocaminhávamosjuntas,orabo icavasolto,pendurado,alegrementecurvado na ponta, e também alegremente chicoteando de lado a lado. Eu adoravame aproximardeladevagar,comoseacaçasse,estimulandoseuraboaseagitarebalançar.

Uma das di iculdades de decifrar a linguagem dos rabos é a grandevariedade existente. A pelagem exibicionista de um golden retrievercontrasta fortemente como saca-rolhas apertadodopug.Os cães exibemrabos longos e rígidos, curtos e enrolados, pendentes ou perpetuamenteeretos. O rabo do lobo é, de várias maneiras, uma média dos rabos dasdiversas raças: um rabo longo, com uma leve pelagem, que se mantémnatural e ligeiramente abaixado. Os primeiros etólogos que izeram umcômputodasposturasdos rabosdos lobos identi icaram, aomenos, treze

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apresentações diferentes, transmitindo treze mensagens distintas. Deacordo com a tese da antítese, os rabos levantados indicam con iança,autoa irmaçãoouexcitaçãodevidoa interesseouagressividade,enquantoos rabosmantidos para baixo indicam depressão, estresse ou ansiedade.Um rabo ereto também expõe a região anal, permitindo que um cãocorajoso espalhe a sua assinatura odorífera. Em contrapartida, um rabolongo mantido tão baixo a ponto de enrolar entre as pernas, cobrindo otraseiro, é ativamente submisso e temeroso. Quando um cão está apenasem compasso de espera, seu rabo ica relaxado, pendente para baixo,caído, mas não rígido. Um rabo ligeiramente levantado é um sinal deinteressemoderadooudevigilância.

Porém, a questão não se restringe à altura do rabo, uma vez que elenãosemantémemumasóposição,eletambéméabanado.Emmovimentonão pode ser traduzido simplesmente como felicidade. Um rabobalançandoaltoeespichadopodesersinaldeameaça,sobretudoquandoacompanhado por uma postura ereta. Abanar rapidamente um raboabaixado e caído é outro sinal de submissão. Esse é o rabo do cão queacabou de ser surpreendido destruindo seu último pé de sapato. O vigordo abano é, grossomodo, um indicador da intensidade das emoções. Umrabo neutro abanando ligeiramente está interessado, mas hesitante. Umrabosolto,varrendovigorosamente,acompanhaabusca,baseadanofaro,por uma bola perdida na grama alta ou a descoberta de um rastroodorí ico no chão. O abanar feliz e familiar é incrivelmente diferente detodosesses:oraboémantidoacimaoudistantedocorpoevigorosamentedescreve arcos toscos no ar atrás dele. Alegria inconfundível. Até o nãoabanarde raboé signi icativo:os cães tendema icar como raboparadoquando prestam atenção a uma bola em suamão ou enquanto esperamquevocêlhesdigaoquevaiaconteceremseguida.

Ospesquisadores interessadosnoscérebroscaninosdescobriram,poracaso,algosobreorabodocão:eleoabanaassimetricamente.Emmédia,essesmovimentos tendemmais fortementeparaadireitaquandoelesderepenteveemosdonos—oumesmoqualquercoisaqueointeresse:outrapessoa, ou um gato. Quando apresentado a um cão desconhecido, o raboaindaabana—demodomaishesitantedoque feliz—,mastendeparaaesquerda.Vocêpodenãosercapazdeenxergaressessinaisemseucão,amenosqueovejacmumagravaçãoemcâmeralenta(oqueeurecomendoemuito)—ouamenosqueseucãosejaumdaquelesquecostumaabanar

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o rabo menos de um lado para outro do que em círculos, inclinando-ototalmente. Considere-se sortudo por ser cumprimentado com umentusiasmotãoexplícito.

Pump balança o corpo inteiro: começa com a cabeça e desce pelo corpo, tremendo até o rabo. Écomo um sinal de pontuação que ainda espera ser descoberto. Ela o balança para encerrar umepisódio,quandoestáinsegurae,àsvezes,quandoapenascaminhavagarosamente.

O cãousa o corpo expressivamente: comunicação escrita pormeio domovimento.Atémesmoosmomentosentreasinteraçõessãomarcadospormovimentos:por exemplo, quandoumcãobalançao corpo inteiro, apelesecontorcendosobreaossatura,paraindicarqueterminouumaatividadeecomeçououtra.Nemtodoselestêmpelosqueeriçam,raboslongosparabalançarpomposamenteouorelhasquelevantamparamostrar interesse.O komondor, com pelo fabulosamente ondulado, se aproxima de outroscãescomoquedevemospresumirsersuacabeça,masnemosolhosnemasorelhassãovisíveisporbaixodesuaslongasmadeixas.Aocriarcãesderaça comumaaparência especí icaque consideramosagradável, estamoslimitando suas possibilidades de comunicação. Como era de se esperar,mas preferimos não confrontar, um cão de rabo cortado tem, por essarazão,umrepertóriopequenodecoisasadizer.

As pesquisas que examinam a gama e a velocidade de sinais usadospor dez raças isicamente diferentes descobriram exatamente o mesmo.Comparando o comportamento de cães, desde o Cavalier King Charlesspaniel ao buldogue francês e o husky siberiano, foi encontrada umarelação direta entre a aparência da raça e o número de sinais usados.Aquelesanimaisquemaismudaram isicamenteapósseremdomesticadose passaramde lobos a cães—os King Charles, no extremo— enviavammenos sinais. Esses cãespedomórficos ou neotéricos, que retêm na idadeadultamaiscaracterísticasdosmembrosjuvenisdaespéciecanídea,sãoosquemenos se parecem com lobos adultos. Do ponto de vista genético, oshuskies, quepossuemmais característicasde lobo e estãomaispróximosdoCanislupas,fazemossinaismaisparecidoscomosdosseusancestrais.

Considerandoquemuitossinaiscorporaisforneceminformaçõessobreostatus,aforçaouaintençãodealguém,anecessidadedoscãesdeenviaresses sinais é presumivelmente reduzida em um mundo no qual oshumanos cuidam dos cães a vida inteira. Mas os mesmos sinais usadospara convencer um animal dominante de uma intenção benigna podem

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tambémserusadosparacomunicar informaçõesahumanos.Caminhandopelacidade,dobroumaesquinaequasepisoemumacadeladesconhecidapuxando uma coleira longa. Ao me ver, ela se agacha, balança o rabofuriosamenteentreaspernasedálambidasnadireçãodomeurosto.Podetercomeçadocomoumgestodesubmissão,masagoraéadorável.

ACIDENTALEINTENCIONAL

Após ter ido dormir tarde e aguentado o passo lento de meus rituais matutinos, o primeiromovimentodePumpquandosaímosnuncavaria.Eladádoispassosparaforadaportaeseagachasemqualquercerimônia.Agachabastante,completamentecomprometidacomapose,sócomorabo— curvado para cima e fora do caminho — puxando o corpo para cima. A torrence de urinaliberada (certamentequebrandoo recordedessavez)pareceacompanhadaporumrelaxamentodosmúsculosdacara—eporminhaculpacrescenteportê-lafeitoesperartantotempo.Elaolhaojorro de sua urina àmedida que ele passa a seu lado em busca de rachaduras na calçada pelasquaissedesviaparaescoarsemimpedimentos.

Não importa o quanto é dito pormeio de latidos, rangidos de dentes oubalanços de rabo, a vocalização e a postura não são os únicos meios decomunicação dos cães. Tampouco podem se comparar com aspossibilidadesinformativasdoscheiros.Urinar,comovimosanteriormente,éomeioodorí icodecomunicaçãomaisevidenteparanós.Podeserdi ícilacreditarquealiberaçãodabexigasejaum"atocomunicativo"equivalentea uma conversação educada entre amigos ou ao discurso de um políticodiante de seus eleitores. Em algum nível, é ambos: parte normal dasociabilidadedocãoetambémumaautopromoção lagranteescritaemumhidrante.

Vocêpodesenegaraconsiderarqueamensagemmolhadadeixadanoalto de um humilde hidrante seja o mesmo tipo de comunicação usadapeloshumanos—enãoapenasporqueelaestásaindodostraseirosdelese não de suas bocas. Crucialmente, comunicamos (a maioria das vezes)com intenção: em vez de reclamarmos em voz alta para nossa mãoesquerda,tendemosadirigirnossascomunicaçõesparaoutraspessoas—as que estão próximas o su iciente para nos ouvir, as que não estãodistraídas,asqueconhecemalínguaeconseguementenderoqueestamosdizendo. A intenção diferencia a comunicação destinada a outros doai!automático pronunciado quando se leva um soco na barriga, doenrubescer por causa de um cumprimento, do zumbido constante domosquitooudainformaçãoimpessoaltransmitidapelossinaisdetrânsitoepelasbandeirasameiopau.

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Marcarcomurinaéintencional.Ocontentealíviomatinalaliviaatensãonabexiga,masamaiorpartedotempoumaporçãoéreservadaparausoposterior como marcação. Aparentemente, a urina é a mesma: não háindícios de um canal independente ou de um meio pelo qual o cãomodi icaria o odor que ela exala. Porém, a marcação se distingue dealgumasmaneirasimportantes.Primeiro,namaioriadosmachosadultos,eemalgumasfêmeastransgressorasdogênero,elaécaracterizadaporumlevantamentoacentuadodapata.Hávariaçõesindividuaisecontextuaisnaassim chamada "demonstração da pata levantada", desde uma retraçãomodestadapatatraseiraemdireçãoaocorpoatéo levantamentodapataacimadaalturadapélvis,acimadoângulovertical—certamente,tambémuma demonstração visual para qualquer outro cão na vizinhança. Ambospermitemum luxodirecionaldaurina,dirigidodemodoapousaremumlugar claramente visível. (Pode também haver agachamento e marcação,emboraessesejaumeventomaistranquilo,talvezparaasmensagensquesãomaisbemtransmitidascomsussurrosdoquecomgritos.)

Segundo, a bexiga não é esvaziada durante a marcação; a urina édistribuída aos poucos, permitindo uma maior distribuição do cheiro aolongodopercursodocão.Sevocêdeixouseucachorrodentrodecasaportempo su iciente para que ele corra e agache, essa urgência podesobrepor-seàsuacapacidadedearmazenaralgumaurinaparamarcação

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posterior.Assim,vocêpode testemunhardemonstraçõesde levantamentode pata infrutíferas, tais como acenos secos para arbustos, postes e latasdelixo.

Finalmente, em geral os cães marcam com urina somente apóspassarem algum tempo cheirando a área. Isso é o que eleva a troca deodores acima da noção de Lorenz a respeito do incamento de umabandeiraparaumtipodeconversação.Ospesquisadoresquemantêmumcuidadosoregistrodocomportamentodemarcaçãodeumcãoaolongodotempodescobriramque aquele quemarcou antes dele, a épocado ano equemestánasproximidades, tudoissoafetao lugareomomentoemqueelefarásuamarcação.

Curiosamente, essas mensagens perfumadas não são deixadasindiscriminadamente: nem toda super ície é marcada. Observe um cãofarejarenquantopasseiapelarua:elevaicheirarmaisdoqueurinar.Essecomportamento indica que nem toda mensagem é igual — e que amensagemqueessecãodeixarápodeserdirigidaapenasadeterminadasplateias. A contramarcação — cobrir urina velha com nova — é umcomportamentocomumentreosmachos,quandoaurinaanteriorpertenceamachosmenosdominantes.Amarcaçãodetodosaumentaquandoháumnovocãonaárea.

Senão é territorial, qual é amensagemdamarca?Aprimeirapista équeos ilhotesnãomarcamcomurina:acomunicaçãodeveteravercompreocupaçõesadultas.Porcausadoposicionamentodasglândulasanaisedoscompostosnaurina,sabemosqueelesestão,pelomenos,dizendoalgosobre quem são: seu odor é sua identidade. Essa é uma mensageminteressante,masprovavelmentenãoémuitointencional.Possocomunicaralgo sobre quem sou simplesmente entrando em uma sala e sendo vista,masaprópriapresençadaminhapessoanãoéumacomunicaçãocontínuaeintencionalarespeitodaminhaidentidade(excetoquandoeracriançaemevestiaparaservista).

O que parece intencional nessa comunicação é que os cães não seimportamemdizeralgosenãoháalguémporperto.Oscachorrosquesãomantidospresosem isolamentopassammuitopouco tempomarcando.Osmachos raramente levantam a pata para urinar, e nenhum dos sexos sepreocupa em depositar apenas uma quantidade pequena. Os cães

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mantidos em cercados de tamanhos semelhantes junto com outros cãesmarcamcombemmais frequênciae regularmente, todososdias.Os cãesselvagens indianosmarcamparaplateiasdo sexooposto. Isso faz sentidoseamensagem transmitidaversa sobre sexo:buscando-ooudeclarando-se pronto para ser procurado. Eles fazem mais demonstrações delevantamento de pata (mesmo sem urinar) quando outros cães estãopresentes.Umapatamantidano alto apenas atrairá a atençãode alguémseessealguémestiverláparaprestaratenção.

Da mesma forma, faz sentido se a marca é uma comunicação pelacomunicação: um comentário, uma opinião, uma crença fortementemantida. Não há provas cientí icas de que isso seja verdade, mas éconsistente com a comunicação feita apenas para uma plateia. Ospesquisadores descobriram que os cães criados em isolamento fazemmuitomenos barulhos comunicativos do que aqueles criados com outroscães.Quando inalmentemisturadoscomoutros,noentanto,elescomeçama produzir vocalizações no mesmo nível que os cães socializados. Emoutraspalavras,elesfalamquandoexistealguémaquemdirigirafala.

Assim como marcam com intenção, os cães também interpretamintenções em nossas marcações: em nossos gestos. Como veremos nospróximos capítulos, eles interpretam a linguagem corporal dos humanoscomamesmaatençãodirigidaà leituraunsdosoutros.Damesma formaque um bebê cambaleia em direção a um brinquedo desejado, um cãoconsegueverondeeleestáindoechegaláantes.Umaviradare lexivadecabeça atrai pouca atenção, mas uma virada de cabeça que olha para aporta — existe intenção naquela virada. E os cães sabem disso. Elespercebemqueexisteumadiferençaentreolharparaaportaevirarparaolharorelógionaparede;elesconseguemdistinguiroapontardeumdedonadireçãodacomidaescondidaeoapontarenquantolevantamosobraçoparaveri icarahoranorelógiodepulso.Falamosemvozaltacomnossoscorpos.

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Uma con issão: uma cadela ditou esse capítulo inteiro para mim. Elasentou perto de minha cadeira, cabeça sobre meu pé, e pacientementeesperouenquantoeulutavaparatraduzireescreversuaspalavras.Édelaque surgem os insights registrados neste livro, é dela que brotam ascitações,édelaqueemergemascenas,imagenseumwelt.

Lamentavelmente,nãochegaa tanto.Contudo,bastaapenasconstataronúmero extraordinário de livros aparentemente escritos por cães, paraimaginar que isso é o que todos nós desejamos: a história originadadiretamentedabocadocão—masemnossalínguanativa,éclaro.No imdoséculoXIX,umtipoespecí icodeautobiogra iacomeçouaaparecernaslivrarias:eraa"memória"deseugato,doseuvelhocão,oudoanimalquedesapareceunaquela tempestade invernal.Narrada por animais falantes,essa forma poderia ser considerada a primeira tentativa em prosa deobteropontodevistadocão.Quando leioumadessasnarrativas—ehámuitasparaescolher,entreelasasdeRudyardKiplingeVirgíniaWoolf—,um estranho descontentamento me invade. É um blefe: não existe aperspectiva do cão. Ao contrário: trata-se de um cão com a caixa vocalhumana transplantada para o focinho. Imaginar que os pensamentoscaninos são formas rudimentares do discurso humano presta umdesserviço ao cão. E, apesar da maravilhosa gama e extensão de suacomunicação,éopróprio fatodeelesnãousarema linguagemfaladaqueme faz apreciá-los de formamuito especial. Seu silêncio pode ser um de

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seus traços mais atraentes. Não a mudez: a ausência do burburinholinguístico.Nãoexistemal-estaremummomentodesilênciocompartilhadocomum cão: um olhar que ele dirige para o outro lado da sala; nós doisdeitadossonolentamenteumaoladodooutro.Équandoalinguagemcessaquenosconectamosmaiscompletamente.

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OolhardocãoDemora apenas seis segundos para Pumppassar do sublime ao ridículo. Nos primeiros cinco, elanavega perfeitamente entre os arbustos, moitas e árvores de troncos grossos que emolduram aaberturada lorestaparaocampoaberto,correndoatrásdeumaboladetênisquepassavoando.Abola bate numa árvore e Pump está lá, pronta a quase aspirá-la com a boca. Um cão aparece donada, um raio de pelo branco e latidos. Pump o vê e dispara em retirada, esquivando-se desseladrãodebolasdetênis.Naquelesextosegundo,elapara,subitamentedesnorteada.Elameperdeudevista.Vejo-ameprocurar: corpoereto,cabeçaaltiva.Estouemseucampodevisão, sorrioparaela.Pumpolhaemminhadireção,masnãomevê.Emvezdisso,identi icaohomemgrande,mancoevestido comumcasacopesado,que chegou junto como raiobranco.Elao segue.Preciso correrparapegá-la.Umsegundoatrás,Pumperatodo-poderosa;agoraéumaboba.

Existe uma classi icação intrínseca dos modos pelos quais nós humanossentimos o mundo — e a visão ocupa o primeiríssimo lugar. Os olhosdespertamgrande interessenospsicólogoshumanos;elesmostrammuitomais do que se pode imaginar apenas pela forma ísica. Pormais bonitoque um nariz possa ser, por mais perto que a testa esteja do cérebro,nossos narizes, testas, bochechas ou ouvidos não possuem tantaimportância.

Somosanimaisvisuais.Nãohádesa iantessériosparaosegundolugartambém:aaudiçãofazpartedequasetodasasexperiênciasquetemos.Oolfatoeo tatodisputama terceiraposiçãoeopaladarocupaumdistantequinto lugar.Tambémnãose tratadedizerquecadaumdessessentidosnão seja importante para nós em uma ocasião especí ica. A beleza daapresentação de um, digamos, bolo de casamento com andaresmúltiplosperderia seu encanto se substituíssemos o esperado gosto de absolutadoçura pelo vinagre. Ou se qualquer outro odor, a não ser o de massaassada,emanassedobolo—ouaindaaprimeiramordidanãofossemaciaederretessenaboca,massimcrocanteouviscosa.Noentanto,namaioriadasvezes,primeirodirigimosnossoolharparaumnovocenárioouobjeto.Quando percebemos algo incomum ou inesperado na manga de nossocasaco, nós nos viramos para examiná-lo com os olhos. A visão teria querealmente deixar de nos fornecer qualquer informação antes dedecidirmosaprendersobreessacoisainalando-aoulambendo-a.

A ordem das operações é inversa para os cães. O focinho vence osolhos e a boca vence as orelhas. Devido à acuidade do olfato canino, fazsentido que a visão desempenhe um papel coadjuvante. Quando umcachorroviraa cabeçaemnossadireção,nãoé tantoparanosolhar comos olhos, mas sim para deixar que seu nariz nos olhe. Os olhos

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simplesmente fazempartedoconjunto.Vocêpodeseroalvodeumolharsuplicantedeumcãoqueestádooutroladodasalanesseexatomomento.Masseráqueoscãesconseguemrealmenteveroquefazemos?

Demuitas formas, o sistema visual canino—ummeio subsidiário deolhar o mundo — é muito parecido com o nosso. Seu rebaixamento depostoemrelaçãoaosoutrossentidos,podenarealidade,permitiraoscãesenxergardetalhesquenósnãoconseguimosver.

Caberia até perguntar por que um cão precisa de olhos. Elesconseguem se deslocar e encontrar comida com seus focinhosextraordinários. Qualquer objeto que exija um exame mais detalhado élogo abocanhado. E eles conseguem identi icar uns aos outros porintermédiodoaparelhosensorialespremidoentreabocaeonariz,oórgãovomeronasal. Comodescobrimos, eles têm, pelomenos, dois usos cruciaispara os olhos: complementar os outros sentidos e nos ver. A histórianatural do olho canino, visto sob a perspectiva de seus antepassados, oslobos, explica o contexto no qual sua visão se desenvolveu. É um efeitocolateral positivo e transformador que a visão os tenha tornado bonsobservadoresdossereshumanos.

Umúnico elemento da vida dos lobos ajudamuito a explicar os olhosquedesenvolveram:comer.Amaiorpartedesuacomida foge.Enãoésóisso.Acomidaé frequentementecamu ladaouvivenarelativasegurançade rebanhos. Ela é ativa — e, portanto, encontrável — ao anoitecer, aoamanhecer ou de noite. Logo, os lobos, como todos os predadores,evoluíram em resposta às suas presas. Por mais importante que seja ocheiro,elenãopodeseroúnicoindicadordapresençadelas,umavezqueas correntes de ar transportam odores por caminhos tortuosos antes deatingiremonariz.Osodoressãovoláteis:seocheiropermanecesobreumasuper ície,umnarizsensívelconseguerastreá-lo;masseeleestánovento,é como uma nuvem, que poderia ter vindo demilhares de lugares. Umapresaemmovimentocorremaisrápidoqueseuodor.Asondasdeluz,emcontrapartida, são transmitidas de forma estável ao ar livre. Assim, apóssentirem um cheiro suave, os lobos usam a visão para localizar a presa.Muitasdessaspresassecamu lamparasemisturaremaomeioambiente.No entanto, essa camu lagem é traída pelomovimento. Portanto, os lobosse tornaram peritos em identi icar uma mudança na cena visual queindique que algo está em movimento. Finalmente, as presas são muitas

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vezes ativas ao anoitecer ou ao amanhecer, ummeio termo em relação àluz: mais fácil de esconder, mais di ícil de ver. Em resposta, os lobosdesenvolveram olhos especialmente sensíveis à pouca luz e e icientes napercepçãodemovimentosnessetipodeiluminação.

Osolhosdelasãopoçosprofundosmarronsepretos.Porseremtãoescuros,édi ícilverparaondeestãoolhando,mastornamencantadorqualquervislumbredesuasíris,comoseolhássemosdentrodesuaalma.Oscíliossósetornaramaparentesquando icaramgrisalhos.Assobrancelhastambémsãoessencialmenteinvisíveis,masoefeitodeseusmovimentos—comoquandocolocaacabeçanochão para me seguir andando pela sala — é visível. Ao dormir, durante os sonhos, os olhosvasculhamomundosobsuaspálpebras.Mesmofechadas,aspálpebrasrevelamumpoucoderosaespiando, como se ela estivesse semantendo preparada para abrir os olhos imediatamente casoalgoimportanteaconteçaporali.

À primeira vista, esses olhos de rastreamento de presa são muitoparecidos com os nossos: esferas viscosas instaladas em buracos. Nossosolhossãoaproximadamentedomesmotamanhodosolhosdocão.Apesarde a cabeça deles variar tão signi icativamente em tamanho (quatrocabeçasdechihuahuacabemnabocadeumwol hound—nãoquealguémváconferiressedado),asdimensõesdosolhosvariammuitopoucoentreas raças. Os cachorros de porte menor, como os ilhotes e as crianças,possuemolhosgrandesemcomparaçãocomotamanhodesuascabeças.

Porém,pequenasdiferençasentreosolhosdehumanoseosdoscãestornam-se imediatamenteaparentes.Primeiro,osnossosestão localizadosbem nomeio do rosto. Olhamos para a frente, e as imagens da periferiadesaparecem gradualmente na escuridão dos arredores das nossasorelhas. Embora existam variações, a maioria dos olhos caninos estásituadamaispara a lateralde suas cabeças, damesma formaqueosdosoutros quadrúpedes, o que permite uma visão panorâmica do ambiente:250a270graus,emcontrastecomos180grausdoshumanos.

Se examinarmos com mais atenção, descobriremos outra diferençaimportante. A anatomia super icial de nossos olhos é reveladora: elamostra para onde olhamos, como nos sentimos, nosso nível de atenção.Embora os olhos caninos e humanos sejam semelhantes em tamanho,nossaspupilas—ocentronegrodoolhoquedeixaaluzentrar—variamconsideravelmente quando estamos em uma sala escura, excitados,amedrontados (expandindo em até nove milímetros de largura), na luz

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brilhante do sol, ou extremamente descontraídos (contraindo para ummilímetro). As pupilas caninas, em contrapartida, são relativamente ixas,medindoaproximadamentedetrêsaquatromilímetros,qualquerquesejaaluzouoníveldeexcitaçãodocão.Nossasíris,osmúsculosquecontrolamotamanhodapupila,tendemasercoloridasparacontrastarcomapupila,azul,marromouverde.Nãoéo casodamaioriadoscães, cujosolhossãocom frequência tãomonocromaticamenteescurosquenos lembram lagosprofundos, depósitos de todas as formas de pureza ou desolação quepodemos atribuir a eles. E a íris humana ica no meio da esclera — obranco — do olho, enquanto muitos (mas nem todos) os cães possuemmuitopouca esclera.O efeito anatômico geral é que sempre conseguimosver para onde outra pessoa está olhando: a pupila e a íris apontam ocaminho, e aquantidadede esclera reveladao enfatiza. Semumaescleraproeminente ou uma pupila distinta, os olhos de um cão não indicam adireçãodesuaatençãotalcomofazemosnossos.

Mais perto, começamos a ver diferenças signi icativas entre espécies.Oscãesconseguemcaptarmaisluzdoquenós.Quandoaluzentranoolhodocão,elapassapelamassagelatinosaquedetémascélulasnervosasnaretina(voltaremosaessaquestãomaistarde),depoisatravessaaretinanadireção de um triângulo de tecido, que a re lete de volta. Esse tapetumlucidum, "tapete de luz" em latim, é responsável por todas as fotogra iasque temosdenosso cão comuma luz brilhante no lugar onde seus olhosdeveriamestar.Aluzqueentranoolhodocãobatenaretina,pelomenosduas vezes, resultando não em uma duplicação da imagem,mas em umaduplicaçãodaluzquetornavisíveisasimagens.Tudoissofazpartedeumsistemaquepermite aos cães ter umamelhor visãonoturna e sobpoucaluminosidade. Nós conseguimos identi icar claramente um fósforo sendoacesoadistânciaemumnoiteescura; jáocãoconseguedetectarachamaefêmera de uma vela acesa. Os lobos árticos passam metade do anovivendo em total escuridão; se aparecer uma chama no horizonte, elespossuemolhoscapazesdelocalizá-la.

OSOLHOSDOAPANHADORDEBOLAS

Édentrodoolho—naquelaretinaquerecebealuzduasvezes—que,uma um, os hábitos característicos dos cachorros podem ser ligados à suaanatomia. A retina, uma folha de células no fundo do globo ocular,transformaaenergiada luzemsinaiselétricosemitidosparaocérebro,o

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que nos leva a sentir que vimos algo. Muito do que vemos tem sentidoapenas para nossos cérebros, claro— a retina apenas registra a luz—,massemela,aretina,experimentaríamosapenasaescuridão.Atémesmomudanças muito sutis na con iguração da retina podem mudar a visãoradicalmente.

Há duas mudanças pequenas na retina canina: a distribuição dascélulas fotorreceptoras e a velocidade com que elas operam. A primeirapropiciaacapacidadedoscãesdeperseguirumapresa,pegarumaboladetênis em movimento, a sua indiferença à maioria das cores e aincapacidadede veremalgobemà frentede seus focinhos.Aúltima levaao desinteresse deles por novelas que são forçados a assistir quando osdonos deixam a televisão propositalmente ligada ao sair de casa.Examinaremosessasquestõesemseguida.

Pegaabola!

Algumasdascoisasmaisimportantesparaoshumanosveremsãotodososoutroshumanossituadosaumapequenadistânciadeseusrostos.Nossosolhosolhamparaafrente,enossasretinaspossuemfóveas:áreascentraiscomumaabundânciadescomunaldefotorreceptores.Tertantascélulasnocentrodaretinafazcomquesejamosmuitobonsemenxergarobjetosbemà nossa frente em grandes detalhes, foco e cores fortes. Perfeito paraidenti icar a massa colorida e disforme vindo em sua direção como onamoradoouuminimigomortal.

Somente os primatas possuem fóveas. Em contrapartida, os cãespossuemoqueédenominadoareacentralis:umaregiãocentralamplacommenos receptores do que a fóvea, mas com mais receptores do que aspartesperiféricasdoolho.Oqueestádiretamentenafrentedacaradocãoévisívelparaele,masdopontodevistado focoaquilonão ica tãonítidoquantooseriaparanós.Ocristalino,queajustasuacurvaturademodoafocaraluzqueentranaretina,nãoseajustaàsfontesdeluzpróximas.Narealidade,oscãespodemnãoenxergarobjetospequenosqueestejamlogodiante de seus focinhos (entre vinte e cinco a quarenta centímetros),porque possuemmenos células retinais dedicadas ao recebimento de luzdaquelapartedomundovisual.Vocênãoprecisamais icarintrigadocoma incapacidadedeseucãoparaencontrarumbrinquedoemqueeleestá

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quasepisando:elenão temavisãoparapercebê-lo,anãoserquedêumpassoatrás.

As raças de cachorro diferem tanto com relação às suas retinas queeles veem o mundo de forma diferente. A area centralis é maispronunciada nas raças de focinho curto. Os pugs, por exemplo, possuemareascentralis fortes—quasecomoumafóvea.Porém,nãopossuemuma"faixa visual", o que os cães com focinhos longos (e os lobos) têm. Nosafegãeseretrievers,porexemplo,a areacentralisémenospronunciada,eos fotorreceptores da retina são mais densos ao longo de uma faixahorizontal que atravessa o meio do olho. Quanto mais curto o focinho,menosfaixavisual;quantomaislongo,maisfaixavisual.Oscãescomfaixasvisuais têmuma visão panorâmicamaior e de qualidademais alta, assimcomo uma visão periféricamais ampla que a dos humanos. Os cães comarea centralis pronunciada focam melhor o que está na frente de suascaras.

De uma forma pequena, porém signi icativa, essa diferença explicaalgumastendênciascomportamentaisdasraças.Ospugsnãosão,emgeral,conhecidoscomo"cãesdebola",masoslabradoresdefocinhoscompridossão.Nãoporcausadeseusfocinhoscompridos.Alémdacapacidadedelesparausarbemmilhõesdecélulasolfativas,oslabradoressãovisualmenteequipados para notar, digamos, umabola de tênis passandona altura dohorizonte, sem precisar mudar o olhar. Para um cão com focinho curto(assimcomoparatodososhumanoscomqualquertamanhodenariz),umabolaatiradaparao ladosimplesmentedesaparecenaperiferiasenão forseguidacomacabeça.Emcontraste,ospugsprovavelmentesãomelhoresemfocarobjetospróximos—digamos,ascarasdosdonosemcujoscoloseles sentam. Alguns pesquisadores especulam que essa visãorelativamenterestritaostornammaisatentosanossasexpressõeseosfazparecerseremmaissociáveis.

Pegaabolaverde!

Os cães não são daltônicos, ao contrário do que muitos acreditam. Noentanto, as cores desempenhamumpapelmenos importante do que têmparanós,earazãodissosãoasretinas.Oshumanospossuemtrêstiposdecones,osfotorreceptoresresponsáveispornossapercepçãodedetalhese

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de cores: cada um é disparado por comprimentos de ondas vermelhas,azuis ou verdes.Os cãespossuemapenasdois: umé sensível ao azul e ooutroaoamareloesverdeado.Eelespossuemmenosdestesdoisdoqueoshumanos. Então, experimentam uma cor com muito mais intensidadequandoelaestánoespectrodoazulouverde.Ah,entãoumapiscinabemlimpadeveparecerreluzenteparaumcão.

Como resultado dessa diferença nas células dos cones, qualquer luzque nos pareça amarela, vermelha ou laranja simplesmente não pareceigualparaumcão.Consequentemente,elesnãoestãonemaíquando lhespedimos para trazer grapefruits do mercado e icamos irritados quandotrazem tangerinas. Mesmo assim, objetos laranjas, vermelhos e amarelosainda podem parecer diferentes para eles: as cores possuemluminosidades diferentes. O vermelho pode ser visto como um verde; oamarelo, como uma cor mais forte. Se parecem capazes de discernir overmelho do amarelo, é porque estão observando uma diferença naquantidadedeluzqueessascoresrefletemnadireçãodeles.

Para imaginarcomo tudo issoocorre, considereahoradodiaemquenossosistemadecoressedecompõe:aopôrdosol,logoantesdoanoitecer.Se você estiver ao ar livre— em um parque, no pátio, ou em qualquerlugar em contato com natureza —, dê uma olhada ao redor. É possívelobservar a aquarela natural exuberante de tons de verde acima de vocêsutilmenteassumindoumatonalidademaismodesta.Vocêaindaconsegueenxergarochão,masosdetalhes—aslâminasdegrama,ascamadasdaspétalas— icamreduzidos.Aprofundidadedocampovisual icadealgumamaneiraencurtada.Tenhotendênciaatropeçarmaisdoqueonormalempedrascinzasprotuberantesquesemisturamcomaterra.Arazãoparaaperdadas informaçõesvisuaisé anatômica.Os cones, agrupadospróximoaocentroda retina,nãosãosensíveisà luzbaixa, logonãodisparamcomtantafrequênciaaopôrdosolouànoite.Comoresultado,nossoscérebroscaptam sinais demenos células que detectam cores. E omundo próximoica um pouco mais nivelado: ainda podemos ver que há cor e aindapodemosdetectarclaroseescuros,masariquezadascoresgradualmentedesaparece; as cores são granulosas, menos detalhadas. É possível quetambémsejaassimparaoscães,mesmonomeiododia.

Comonãodistinguemumagrandevariedadedecoresdistintas,oscãesraramente mostram preferências por elas. Uma guia vermelha e uma

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coleira azul não afetam seu cão de forma alguma. Porém, uma corprofundamentesaturadapodeatrairmaisatençãodeumcão,assimcomoum objeto colocado contra um fundo de cores contrastantes. Pode sersigni icativo que seu cão ataque e estoure todos os balões azuis ouvermelhosabandonadosaofinaldeumafestadeaniversário:elessãomaisvisíveisemummardecorespastéis.

Pegaabolaverdebalançando...natelevisão!

Os cães compensamsua faltade cones comumabateriadebastonetes, ooutro tipo de fotorreceptor na retina. Os bastonetes disparam mais emsituaçõesdeluzbaixaequandohámudançasnadensidadedaluz,quesãovistascomomovimentos.Nosolhoshumanos,osbastonetesseagrupamnaperiferia, nos ajudando a observar algo se movimentando no canto denossavisão,ouquandoosconesdiminuemseusdisparosaopôrdosolouà noite. A densidade dos bastonetes nos olhos dos cães varia, mas elespossuematé trêsvezesmaisbastonetesdoquenós.Vocêpode fazercomque aquelabolaque seu cãonão está vendobemna frentedele apareçamagicamente dando-lhe um pequeno empurrão. A acuidade com relaçãoaosobjetospróximosmelhoramuitoquandoelesestãoquicando.

Todas essas diferenças no comportamento, na percepção e naexperiência do cão resultam de algumas pequenas mudanças nadistribuição das células no fundo do globo ocular canino. E há outrapequena alteração que resulta em uma grande diferença —potencialmentemaisimportantedoqueumamudançanaáreafocalounacapacidade de ver cores. Nos olhos de todos osmamíferos, bastonetes econes transformam ondas luminosas em atividade elétrica por meio deumamudançanapigmentaçãodascélulas.Amudançalevatempo—muitopoucotempo.Porém,nesseintervalo,umacélulaqueprocessaluzoriundadomundonãopode recebermais luzparaprocessar.O ritmonoqual ascélulas realizam essa atividade leva ao que é chamado de frequênciacrítica de fusão, o número de instantâneos fotográ icos domundo que osolhosconseguemcaptaremcadasegundo.

Na maioria das vezes, experimentamos o mundo se relevandosuavemente, não como uma série de sessenta imagens estáticas a cadasegundo—queéanossafrequênciacríticadefusão.Dadaarapidezcom

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queoseventosque importamparanósacontecem,emgeral esse ritmoésu icientementerápido.Umaportaquefechapodeseragarradaantesquebata;umapertodemãopodeserretribuídoantesdeserretiradoemsinalde contrariedade. Para criar um simulacro de realidade, os ilmes —conhecidos na língua inglesa comomovingpictures, literalmente "imagensem movimento" — devem exceder nossa frequência crítica de fusãoapenasligeiramente.Sóassimnãoperceberemosqueelessãoapenasumasérie de imagens estáticas projetadas em sequência. Entretanto,perceberemosseumrolode ilmeantigo(pré-digital)diminuidevelocidadenoprojetor.Emboraas imagens,emgeral,estejamsendomostradasmaisrápidodoqueconseguimosprocessá-las,quandooritmodiminui,vemosofilmehesitar,comintervalosescurosentreosquadros.

Eisporqueas luzes luorescentes são tãoperturbadoras: elasoperammuito próximas da frequência crítica de fusão humana. Os dispositivoselétricos usados para regular a corrente da luz funcionam exatamente asessentaciclosporsegundo,oqueaquelesdenóscomfrequênciascríticasde fusão ligeiramentemais rápidasconseguemvercomoumacentelha (eouvir como um zumbido). Todas as luzes domésticas tremeluzemluorescentemente para as moscas, que possuem olhos extremamentediferentesdosnossos.

Oscãestambémpossuemumafrequênciacríticadefusãomaisaltadoque os humanos; setenta ou mesmo oitenta ciclos por segundo. Essacondição fornece uma pista da razão pela qual eles não aderiram a umhábito característico dos humanos: nosso fascínio constante pela tela datelevisão. Como nos ilmes, a imagem de sua televisão (não digital) é, naverdade,umasequênciadeimagensestáticasenviadasrápidoosu icienteparaenganarnossosolhosdemodoquevejamum luxocontínuo.Porém,não é su icientemente rápido para a visão canina. Eles veem os quadrosindividuais e tambémo espaço escuro entre eles como se através de umestroboscópio. Essa situação — aliada à falta de odores emanando datelevisão—talvezexpliqueporqueamaioriadoscachorrosnãopodeserplantada em frente a uma televisão para distraí-lo. Nada daquilo parecereal.*

*A conversão para a televisão inteiramente digital eliminará o problema da frequência crítica defusão,tornandooprogramamaisviável(masnãomaisinteressantedopontodevistaolfativo)paraoscães—que,semdúvida,sãoambivalentesaesserespeito.

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Pode-se dizer que os cães veem o mundo mais rapidamente do quenós, mas o que eles realmente fazem é ver apenas um poucomais domundo a cada segundo. Ficamos maravilhados com a habilidadeaparentemente mágica dos cães de pegar um frisbee em voo, ou deseguiremumabolaqueestáquicandorapidamente.Oprocedimentoparapegar o frisbee, conforme documentado em análises de trajetória egravaçãodevídeos,combinaperfeitamentecomaestratégianavegacionalnaturalmente usada pelos jogadores de beisebol para se alinhar com atrajetória de uma bola que vem em sua direção. Com exceção de algunsjogadoresfenomenais,oscãesrealmenteconseguemveranovalocalizaçãodofrisbee,oudabola,umafraçãodesegundoantesquenós.Nossosolhosestão piscando internamente naquelesmilissegundos que um frisbee emvoosemoveemseurumonadireçãodenossascabeças.

Os neurocientistas identi icaram uma enfermidade cerebral incomumemalgunshumanosdenominada "akinetopsia".Osakinetópsicospossuemuma espécie de cegueira para movimentos: eles têm di iculdades emintegrar uma sequência de imagens em uma percepção normal domovimento. Uma pessoa com akinetopsia pode começar a encher umaxícara de chá e depois não registrar uma mudança até muitas imagensmais tarde, quando então a xícara já estará transbordando. Da mesmaformaqueaspessoassemdanoscerebraisestãoparaosakinetópsicos,oscães estão para nós: eles veem as frestas entre nossos momentos.Devemos sempre parecer um pouco lentos. Nossas respostas para omundosãouminfinitésimodesegundomaislentasdoqueasdoscães.

UMWELTVISUAL

Com a idade, de repente Pump começou a relutar em entrar no elevador; talvez não enxergassebemnaescuridãoapósvoltardarua.Euamotivava,oupulavaparadentroprimeiro,oujogavaalgolevemente colorido no chão do elevador para atraí-la. Então, inalmente, todas as vezes ela seanimavaepulavaparadentro,comosecruzandoumgrandeabismo,meninacorajosa.

Então, os cães conseguem enxergar uma parte daquilo que nósenxergamos, mas não conseguem ver da forma como vemos. A própriaconstrução de sua capacidade visual explica uma ampla gama decomportamentoscaninos.Primeiro,comumcampovisualamplo,elesveembemoqueestáaoseuredor,masmenosbemoqueestálogodiantedeles.Asprópriaspatasprovavelmentenãoestãoemumfocoideal.Queprodígio

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então usarem tão pouco as patas, comparados à nossa con iança nasextremidadesdenossosmembrosdianteirosparapodermosmanipularomundo. Uma pequena mudança na visão leva a alcançar, agarrar emanipularmenos.

Da mesma forma, os cães conseguem focar nossos rostos, mas nãodetectamos olhos tão bem. Isso signi ica que eles enxergammelhor umaexpressãofacialcompletadoqueumolharsigni icativoequeelesseguirãoumpontoouumgironoolharmelhordoqueumaolhadasub-reptíciadocanto do olho. A visão deles complementa seus outros sentidos. Emborapossam localizar um som no espaço sem grande exatidão, sua audição ésu icientementeboaparaqueviremosolhosnadireçãocorretademodoapermitirumabuscavisualmaisacurada...edepoisexaminarmaisdepertocomofocinho.

Porexemplo,oscãesnosreconhecempelocheiro,mastambéméclaroque eles nos olham. O que estão vendo? Se nosso cheiro não estádisponível—vocêestáa favordoventoouensopadadeperfume—,elessó podem usar pistas visuais. Eles hesitarão se ouvirem sua voz oschamando,masnãoéseurostonapessoaqueseaproxima,ousuaformacaracterísticadeandar,ou suaboca semexendoao chamaronomedele.Pesquisas recentes con irmaram tudo isso ao examinar o comportamentodoscãesquandoouvemavozdodonoouadeumestranho,acompanhadaporumaimagem(emummonitorgrande)dorostododonooudorostodoestranho. Os cães olharam mais tempo para os rostos incongruentes: orosto do dono, quando acompanhado pela voz do estranho, e o rosto doestranho, quando acompanhadopela voz do dono. Se fosse apenas o fatodequeo cãopreferisseo rostododono, eles teriamsempreolhadoparaaquele rostopormais tempo.Emvezdisso, elesolhavampormais tempoquandohaviaalgosurpreendente:umacombinaçãoincompatível.

Oselementos ísicosdavisãode inemecircunscrevemasexperiênciascaninas. Há um elemento a mais nessa experiência: o papel da visão nahierarquiadossentidos.Paracriaturasvisuais,comonós,existeumprazerpeculiar quando primeiro encontramos algo através de um de nossossentidos não visuais. Chegar à porta demeu apartamento e cheirar algomaravilhoso—abriraportaeouvirossonsdefrituranaspanelas,otinirdos talheres; ser intimada a provar uma garfada do conteúdo da panelacom os olhos fechados— torna uma experiência familiar uma novidade.

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Apareçoapenasparaconferiracenacomosolhos:meunamoradoàminhafrentepreparandoojantarefazendoumabagunça.

Chegar a algo através dos sentidos secundários é primeirodesconcertante, depois introduzum sentimentodenovidade ao cotidiano.Como os cães possuem sua própria hierarquia de sentidos, imagino queelestambémpossamsentiromistériodechegaraalgoporoutromeioquenão o do focinho. Essa situação pode explicar a di iculdade deles ementender alguns de nossos primeiros pedidos (Sai do sofá!— disse paraminhacadelinhanova, enquantoelameolhavade formapenetrante), eoorgulhoqueparecemteraoaprenderumdetalhedonossomundovisual.

Embora nossos mundos visuais se sobreponham, os cães atribuemsentidos diferentes aos objetos vistos. Um cão-guia precisa aprender oumwelt do humano: os objetos que são importantes para um cego, nãoaqueles do interesse dos cachorros. Tente fazer seu cão reconhecer aexistência do meio- io. O que signi ica um meio- io para um cão? Compersistência, os cães conseguem aprender, mas a maioria delessimplesmente não o vê como sendo um meio- io: não se trata de serinvisível, mas de não haver qualquer signi icado importante no meio- iopara eles. A super ície embaixo de suas patas pode ser áspera oumacia,escorregadiaoupedregosa,podetercheirodecãesoudehomens;masadistinção entre calçada e rua é uma distinção humana. Um meio- io éapenas uma variação pequena da altura da massa endurecida quecobrimosdesujeiraequeapenas temsentidoparaosquesepreocupamcom conceitos tais como ruas, pedestres e trânsito. O cão-guia precisaaprender a importância do meio- io para seu companheiro. Ele precisaaprender o signi icado de um carro veloz, uma caixa de correio, outrapessoaseaproximando,umamaçaneta.Eeleaprenderá:elepodecomeçara associar o meio- io com o listrado distintivo de uma passagem depedestres, com as galerias pluviais fedorentas que correm ao longo dele,ou com a mudança de claridade do concreto para o asfalto. Os cães sãomuito melhores em aprender o que importa para nós em nosso mundovisual do que nós para entendermos o que importa para eles. Ainda nãoconsigo entenderpor quePump icava excitada comamera visãodeumcão tipo husky que aparecia na esquina. No entanto, após uma década,comecei a perceber que ela icava, sim, excitada. Por outro lado, ela foimaisrápidaemreconheceraimportânciaqueeuatribuíaacertosobjetos—adistinção entre o sofá gasto eminhapoltrona favorita com relação à

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sua chance de sentar nela; o ato de pegar os chinelos, que me faz rir,versuspegarostênisdecorrida,cujaentregaprovocaaminhacensura.

Há uma última faceta inesperada da experiência visual do cão: elesenxergam detalhes que nós não vemos. O fato de a capacidade visualcaninaser relativamente fracaacabasendoumavantagemparaeles.Pornãotentaremcaptaromundointeiroapenascomosolhos,elesconseguemenxergar detalhes que nós não percebemos. Os humanos sãoobservadores gestálticos: todas as vezes que entramos em uma sala,captamos tudo em pinceladas grandes: se algo estámais oumenos ondeesperávamos que estivesse... sim... paramos de olhar. Não examinamos acena procurando mudanças pequenas, ou até mesmo radicais; podemosdeixardeverumburacoescancaradonaparede.Nãoacreditanisso?Emtodos os momentos de nossas vidas, não percebemos um espaço embranco:aqueleemnossocampovisualcausadopelaprópriaconstruçãodenossos olhos. O nervo ótico, a rota neural que transmite informações dascélulas da retina para as do cérebro, transpassa a retina no caminho devoltaparao cérebro.Assim, semantivermosnossosolhosparados, existeumapartedocampovisualànossafrentequenãoécapturadapelaretina,poislánãoháretinaparacapturá-la.Éopontocego.

Nuncanotamosessa lacunaescancaradaànossa frenteporquenossaimaginação preenche esse ponto com o que esperamos que esteja lá.Nossos olhos se movimentam para um lado e para outro de formainconsciente e constante — movimentos denominadossaccades — paracompletaracenavisual.Nuncasentimospontoquefalta.Damesmaforma,

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também temos um ponto cego para aquilo que é ligeiramente diferente,porémsu icientementeparecidocomoqueesperamosver.Comocriaturasvisualmente bem adaptadas, nossos cérebros estão equipados paraencontrarsentidonas informaçõesvisuaisenviadas,apesardas lacunasedasinformaçõesincompletas.

Talvez estejamos bem adaptados demais. Os animais conseguem verboa parte do que deixamos de ver. A famosa cientista autista TempleGrandindemonstrou essa realidade comas vacas.Muitas vezes, as vacasguiadas ao longo de rampas ziguezagueantes em direção ao abatedouroempacam,começamadarcoiceseserecusama iradiante.Namedidadenosso conhecimento, elas não compreendem o que acontecerá noabatedouro. Em contrapartida, há pequenos detalhes visuais que assurpreendem ou ameaçam. O re lexo da luz em uma poça; uma capa dechuva amarela isolada; uma sombra repentina; uma bandeira ondulantena brisa: detalhes aparentemente insigni icantes. Certamente, somoscapazes de enxergar esses elementos visuais, mas não os percebemoscomoasvacas.

Nessesaspectososcãesestãomaispróximosdasvacasdoquedenós.Oshumanosrapidamenterotulamecategorizamascenas.Andandoparaotrabalhoao longodeuma ruadeManhattan, o trabalhador típico se isolatotalmentedomundoaseuredor.Elenãovêmendigosnemcelebridades;não se assusta com ambulâncias ou passeatas; simplesmente sai docaminhodeumamultidãoreunidaolhandoboquiabertapara...bem,sejaláparaoqueolhamasmultidõesboquiabertas:raramenteparoparaver.Namaioria dasmanhãs, a rota é reduzida a seusmarcos; nadamais precisaserpercebido.Háumaboarazãoparaacreditarquenãosejaessaaformacomo pensam os cães. A caminhada no parque se torna familiar com otempo,maselesnãoparamdeolhar.Elesficammuitomaisimpressionadospelo que realmente veem— os detalhes imediatos— do que o que elesesperamver.

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Tendoemmenteamaneiradoscãesenxergarem,comoseráqueelesaplicamsuacapacidadevisual?Deformainteligente:elesnosolham.Umavez que um cão tenha aberto os olhos e nos visto, algo extraordinárioacontece. Ele passa a nos observar. Os cães nos veem,mas as diferençasemsuavisãotambémparecemlhespermitirenxergaralgosobrenósquenemmesmonósenxergamos.Empoucotempo,temosaimpressãodequeelesconseguemverointeriordenossasmentes.

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VistoporumcãoFicoassustadaeumpoucoconfusaaotirarosolhosdemeutrabalhoeverPumpme itando,seusolhos ixos emmim. Um cão que olha você nos olhos exerce uma in luência poderosa. Estou noradardela:parecequeelanãoestáapenasmeolhando,masolhandoparadentrodemim.

Olheumcãonosolhosevocêsentiráclaramentequeele tambémolhadevolta.Oscãesretribuemnossoolhar.Seuolharémaisdoqueapenasolharpara nós; eles nos olham da mesma forma como nós os olhamos. Aimportânciadoolhardo cão,quandoele édirigidoanossos rostos, équeesse olhar denota uma postura mental. Ele envolve atenção. Um olharsigni ica prestar atenção a você e, possivelmente, prestar atenção ao queestáchamandoasuaatenção.

Emseunívelmaisbásico,aatençãoéumprocessodedarprioridadeadeterminados aspectos entre todos os estímulos que bombardeiam umindivíduo em um dado momento. A atenção visual começa com olhar, aatenção auditiva com ouvir, ambas as ações são possíveis para todos osanimaiscomolhoseouvidos.Entretanto,simplesmentepossuiroaparelhosensorialnãoésu icienteparafazeraquiloque,emgeral,queremosdizercom prestar atenção : considerar aquilo para o qual nos voltamos paraolharououvir.

Quando usada pelos psicólogos, a atenção é tratada não apenas comogirar a cabeçanadireçãodeumestímulo,mas comoalgo alémdisso:umestado mental que indica interesse, intenção. Ao prestarmos atenção aogirodecabeçadealguém,podemosestardemonstrandoumentendimentodo estado psicológico de outras pessoas — uma capacidadeespeci icamentehumana.Prestamosatençãoàquiloqueatraiaatençãodeoutrosporqueissoajudaapreveroqueooutrofaráemseguida,oqueelepode ver e o que talvez saiba. Um dos problemas demuitos autistas é aincapacidade, ou a falta de inclinação, para olhar nos olhos de outrapessoa. Como consequência, eles não são instintivamente capazes deentender quando outra pessoa está prestando atenção — ou comomanipularaatençãodosoutros.

A simples capacidade para focar em certas coisas, enquanto ignoraoutras,écrucialparaqualqueranimal:osobjetosquevemos,cheiramosououvimos podem sermais oumenos relevantes para nossa sobrevivência.

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Preste atenção àqueles mais importantes, ignore o resto da paisagemvisual ou a confusão de sons. Mesmo que a sobrevivência não seja maisuma preocupação premente, os humanos estão constantemente tentandodirigir, desviar ou atrair a atenção. Algum mecanismo de atenção énecessário para realizarmos nossas tarefas cotidianas: ouvir alguémfalandoconosco,planejaro caminhoatéo trabalho, atémesmo lembraroquesepensavahaviaumminuto.

Oscães,animaissociaiscomonós,equetambémestãomaisoumenoslivres das pressões da sobrevivência, certamente possuem algunsmecanismosinteressantescomosquaisobservamomundo.Emfunçãodesuas capacidades sensoriais diferentes, no entanto, eles são capazes deprestar atenção a coisas que nunca percebemos, tais como asmudançasemnossoodoraolongododia.Damesmaforma,focamoscuidadosamenteemcoisasqueoscãesnemsequerpercebem,taiscomodiferençassutisnousodalinguagem.

Entretanto, o que distingue os cães dos outrosmamíferos, atémesmode outros mamíferos domésticos, é a forma com que sua atenção seassemelhaànossa.Comonós,elesprestamatençãoaoshumanos: ànossalocalização, aos movimentos sutis, aos humores, e, mais avidamente, aosnossosrostos.Umamaneirapopulardeverosanimaiséacharque,seelesnosolham,nosolhampormedooufome,monitorando-noscomopossíveispredadores ou presas. Não é verdade; o cão olha de uma forma muitoespecíficaparaoshumanos.

O grau de tal especi icidade é objeto de uma louca arrancada naspesquisas contemporâneas sobre as capacidades cognitivas do cão. Taispesquisas usam como referências os marcos no desenvolvimento dascrianças,oqueébemdocumentadoecujoresultadoéóbvio:aochegaràidadeadulta,todosnósentendemosoquesigni icaprestaratenção.Oqueaspesquisassobrecãesrevelaméqueelespossuemalgumasdasmesmashabilidadesquenós.

OSOLHOSDEUMACRIANÇA

Para cães e humanos, tudo começa com algumas tendênciascomportamentais inatas. Prestar atenção e entender não são atividadesautomáticas,mas se desenvolvem naturalmente a partir desses instintos.

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As crianças, como amaioria dos animais, possuemum re lexo orientadorbásico:movimentam-se,damelhormaneiraounamedidamáximapossível,nadireçãodeumafontedecalor,comidaousegurança.Osrecém-nascidosviramorostoparaocaloreparasugar:ore lexodebusca.Nessaidade,ascrianças não conseguem fazer muito mais. Os patinhos mais precocesperseguem incansavelmente qualquer adulto que veem.* Tanto nospatinhos quanto nas criancinhas, esse re lexo se baseia em uma dasprimeiras capacidades perceptuais: conseguir, pelo menos, perceber apresençade outros. É uma capacidadeque, já emnossosprimeiros anos,nosajudaaaprendersobreoimportantefatoqueéaatençãodosoutros.

* O etólogo Konrad Lorenz demonstrou, de forma espetacular,essa tendência da jovem aveaquática na década de1930,a oposicionar-secomo a primeiracriaturaadulta vista por umpunhado de gansinhos cinzentos. Eles o seguiram prontamente, e Lorenz acabou por criar aninhadacomosefossemseusfilhos.

Paraoshumanos,aolongodainfância,háumasequênciaprevisíveldodesenvolvimento de determinados comportamentos associados a esseentendimento crescente das outras pessoas. Trata-se de aprender aprestar atenção a determinadas coisas — humanos — no mundo ecomeçar a entender que os outros também prestam atenção. E essaposturacomeçaassimqueabremosolhos.Osrecém-nascidossãocapazesdeenxergar,emboranãomuitobem.Elessãoincrivelmentemíopes:rostosobservadores e balbuciantes colocados a centímetros do seu podem sernítidos,mas o nível de nitidez domundo acaba por aí. Umdos primeirosobjetosqueas criançasobservaméqualquer rostonasproximidades.Naverdade,nossoscérebrospossuemneurôniosespecializadosquedisparamquando vemos um rosto. As crianças conseguem perceber e preferemolhar para um rosto ou algo parecido com ele— atémesmo três pontosformando um V— em vez de outras cenas visuais. Desde cedo na vida,elas itampormais tempo* aquilo que lhes interessa, estando o rosto damãeentreosprimeiros itensde interesse.Empouco tempo,elas tambémaprendemadistinguirumrostoqueolhaemsuadireçãodaquelequeolhaem outra direção. Essa é uma habilidade simples, mas nada trivial: emmeioa todaacacofoniavisualdomundo,ascriançasprecisamcomeçaranotaraexistênciadeobjetos,quealgunsdelesestãovivos,quealgunsdosobjetos vivos sãomais interessantes queoutros e que algunsdos objetosvivosinteressantesprestamatençãoaelasquandoasolham.

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*Ospsicólogosqueestudamodesenvolvimentobaseiam-senofatodeque,emboraascriançasnãoconsigamrelataroquepensam,sempreolhampormaistempo,nadireçãodaquiloqueasinteressa.Usandoessacaracterísticadocomportamentoinfantil,osespecialistascoletamdadossobreoqueascriançasconseguemver,distinguireentender,bemcomosobresuaspreferências.

Após tudo isso ter sido estabelecido e já com sua acuidade visualaprimorada, as crianças focam nos detalhes daquele rosto. Elas adorambrincar de esconde-esconde: uma brincadeira simples que envolve aimportância dos olhos. Como os psicólogos demonstraram ao mostrar alíngua e fazer caretas para crianças, as muito jovens conseguem imitarexpressõessimples.Claro,essasexpressõesnãopossuemosigni icadoqueterãomaistarde(devemospresumirqueascriançasnãoestãorealmentemostrandoalínguadeformairreverenteparaospsicólogos,emboratalvezdesejássemos que esse fosse o caso). Simplesmente, as crianças estãoaprendendo a usar osmúsculos faciais. Aos trêsmeses, elas aprendemecomeçamareagiraosoutros fazendocaretasesorrindosocialmente.Elasmovimentamacabeçaparaolharoutrosrostospróximos.Aosnovemeses,seguem o olhar de outra pessoa e veem onde ele para. Elas podem usaresseolharparaencontraralgumobjetoquepediramouquefoiescondidodelas.Comotempo,elasexpandemalinhadevisãoaodesignarumpontocom o dedo, pulso ou braço, para pedir um objeto; e, em seu primeiroaniversário,paramostraroucompartilhar.

Esses comportamentos re letem o entendimento crescente da criançaemrelaçãoaofatodequeasoutraspessoasprestamatenção,aqualpodeserdirigidaaobjetosdeinteresse:umamamadeira,umbrinquedoouelesmesmos.Entre12e18meses,elascomeçamaseenvolveremdisputasdeatençãoconjunta comoutras crianças: olhar nos olhos, depois olhar paraoutro objeto e, em seguida, voltar ao contato visual. Tudo issomarca umprogresso: para atingir uma "conjunção" completa, a criança precisa, emalgum nível, entender que não apenas elas duas olham junto, mas estãoprestando atenção juntas. Elas entendem que existe alguma conexãoinvisível,porémreal,entreasoutraspessoaseosobjetosqueestãoemseucampo visual. Ao fazerem isso, a confusão pode se instaurar. As criançaspodem começar a manipular a atenção de outros simplesmente olhandoparaalgum lugar.Elas seguemadireçãodoolhardosadultos, apontamecomeçam a observar se eles estão olhando para elas enquanto fazematividades que desejem compartilhar (ou esconder). Elas lançarão um

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olharesperançosoparaosadultosantesdeapontaremparasimesmosouse mostrarem. Elas trabalham com a inco para receber atenção olhandoparaeles.Epodemcomeçarsaindodeumasalaemmomentosimportantesou escondendo objetos da visão de um adulto. (Esse comportamento osdeixabempreparadosparasetornaremadolescentesdifíceis.)

Tornamo-nos caracteristicamente humanos através dessas mesmasfases do desenvolvimento. Em poucos anos, uma criança passa do olhardespropositado, através de olhos virgens, para o olhar signi icativo,olhandoparaosoutros, seguindooolhardeoutros.Alegres,elasmantêmcontatovisual.Empoucotempo,usamoolharparaobterinformações,paramanipularoolhardeoutros—pormeiodadistração,evitandooolharouapontando— e para obter atenção. Em algum momento, elas percebemqueexisteumamenteportrásdesseolhar.

AATENÇÃODOSANIMAIS

Elaseaproxima,ficaaumpalmodemimecomeçaaofegar,olhosabertosesempiscar,paraindicarqueprecisadealgo.

Passo a passo, os pesquisadores cognitivos têmmapeado essas fases dodesenvolvimento com um novo sujeito: os animais não humanos. Em quemedida a trajetória da criança é acompanhada pelos animais? Apósabriremosolhos,elesolhamcomintenção?Percebemosolhosdosoutros?Entendemaimportânciadaatenção?

Essaéumafacetadoestudodacogniçãoanimalqueinvestigaoqueumsujeito animal entende sobre os "estados mentais" de outros. A maioriadesses experimentos é do tipo que os humanos dominam bem: testes decognição ísica e social. Animais cativos—de caracóis a pombos, cães desavana, chimpanzés — foram colocados em labirintos; apresentados atarefas de contagem, categorização e nomeação; solicitados a discriminar,aprendere lembrarsériesdenúmerose imagens.Tarefassãoprojetadaspara veri icar se eles reconhecem, imitam ou enganam outros— ou atémesmosereconhecemasimesmos.E,emalgunstestes,aquestãoéaindamais caracteristicamente humana: o tipo de pensamento social presentequando os animais interagem— commembros de sua própria espécie ecomosdeoutrasespécies.Quandoumchimpanzéenjauladoolhaparaum

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tratador, ele está pensando algo sobre esse acompanhante? Ele sepergunta como convencê-lo a abrir o portão (ele se pergunta qualquercoisa que seja?) ou está simplesmente esperando para ver o que esseobjeto colorido e animado próximo a ele faz que pode ser relevante ouinteressante? Um gato considera um rato como sendo um agente, umanimal com vida, ou vê o rato como uma refeiçãomóvel que precisa serdetidaedestroçada?

Como já mencionamos, a experiência subjetiva dos animais énotoriamente di ícil de investigar cienti icamente. Como nenhum animalpodesersolicitadoarelatarsuasexperiênciasoralmenteouporescrito*,ocomportamento deve ser nosso guia. Claro que ele também tem suasde iciências, visto que não podemos a irmar que quaisquercomportamentos semelhantes de dois indivíduos indicam estadospsicológicos semelhantes. Por exemplo, sorrio quando estou feliz... maspossotambémsorrirdepreocupação,incertezaousurpresa.Vocêsorridevolta para mim: também pode ser de felicidade — ou por irônicaindiferença.Paranãofalardaquaseimpossibilidadededeterminarsesua"felicidade"éigualàminha.

*Bem,namaiorpartedasvezesKanzi,obonobo,eAlex,opapagaioafricanocinzento,estãoentreaquelesqueforamperguntadoseresponderam:Alexfoicapazdecriarepronunciarsentençasdetrêspalavrasnovasecoerentesbaseadasemumvocabulárioconstruídoaoouviràsescondidasospesquisadores; Kanzi possui um vocabulário de centenas de palavras de lexigramas ( igurassimbólicas) que ele consegue apontar para se comunicar. E uma única cadela, So ia, foi treinadapara usar um teclado simples de oito teclas relacionadas a eventos aprendidos, como dar umpasseio,entraremumacestaeobtercomidaouumbrinquedo.Elaaprendeuapressionarateclaapropriadaparafazerumpedido.Comoumaformadecomunicação,essecomportamentoestámaispróximo de pedir pelo jantar ao trazer o prato vazio até o dono do que dominar o uso de umalínguaplenamente.Enunciadosmaisabstratosnãoforamrelatados(nemforamprojetadostecladosabstratos).

Assim,mesmosem terumaveri icação constantedosestadosmentaisdosoutros,ocomportamentoéumguiabomosu icienteparanospermitirprever o comportamento futurodo animal a pontode interagir pací ica eprodutivamente com ele. Dessa maneira, estudamos o que os animaisfazem — sobretudo o que eles fazem que seja semelhante ao que oshumanosfazem.Umavezqueusareseguiraatençãoétãoimportantenainteração social humana, os pesquisadores da cognição animal buscamcomportamentoscapazesdeindicarseumanimalusaaatenção.

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Em anos recentes, os cãesmarcharam corajosamente para dentro delaboratórios experimentais, instalações ao ar livre controladas, e para asplanilhasdedadosquebuscamreunir informaçõessobresuacapacidadede usar a atenção. Os animais são colocados em ambientesmantidos sobcontrole,emgeralcomumoumaispesquisadorespresentes,eumobjetodesejável oculto: um brinquedo ou uma guloseima. Ao variar as pistasutilizadas para informar aos cães sobre a localização do petisco, osestudiosos procuram determinar quais delas são signi icativas para osanimais.

Aquestãoésimplesmentedeterminaratéquefasedodesenvolvimentodaatenção infantil os cães conseguemchegar.A atenção começa comumolhar,eolharexigecapacidadevisual.Jáestabelecemosoqueoscachorrosconseguemenxergar;sabemosoqueelesveem.Elesentendemaatenção?

Oolharmútuo

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Um olhar é mais do que parece: quando olhamos para alguém é quasecomoseagíssemossobreessapessoa.Conformemeusalunosdescobriramem suas experiências de campo, o contato visual chega muito perto dasensação de um contato tátil real. Existem regras tácitas e, no entanto,amplamentecompartilhadasquegovernamocontatovisualcomosoutros—a violaçãodessas regraspode ser consideradaumatode agressãooudeintimidade.Podemosencararumindivíduocomdesdémnumatentativade subjugá-lo; ou, ao contrário, manter um olhar longo e irme paramostraruminteressemaiscobiçoso.

Com pequenas variações, essa situação poderia descrever com amesma facilidade a forma com que os animais não humanos usam ocontato visual. Entre os macacos, o contato visual é impregnado deimportância: ele pode ser usado comoumaação agressiva e será evitadopor um membro submisso de um grupo. Encarar um animal dominantesigni ica convidar-se a ser atacado. Os chimpanzés não somente evitamolhar, eles evitam ser olhados. Os subordinados andam com desânimo,olhando para baixo, para o chão, ou para os próprios pés; apenasfurtivamenteelesolhamaoredor.Tambémnos lobos,umolhar ixopodeser considerado uma ameaça. Logo, o elemento "agressivo" do contatovisual é igual ao dos humanos. A variação é a seguinte: todos os animaisnãohumanos comuma capacidade visual signi icativa irão dirigir o olharparaalgointeressante,mas,seoobjetoquedespertouseuinteresseéummembrodesuaprópriaespécie,apressãosocialdoolharemgeraldesviaoolhardeinteresse.

Assim, seria de se esperar que os cães agissem um tantodiferentemente de nós em relação ao olhar mútuo. Uma vez que elesevoluíramdeumaespécieemqueumolharsigni ica,namaioriadasvezes,uma ameaça, talvez seja melhor considerar o fato de eles evitarem ocontatovisualmenoscomoumafaltadecapacidadedoqueoresultadodesua história evolucionária. Mas... espere um momento! Os cães nosencaram.Elesolhamunsparaosoutrosbemdefrente:noníveldosolhos.Amaioriadosdonosrelataqueseuscãesosolhamdiretamentenosolhos.*

* É possível defender o argumento de que esse comportamento foi reforçado por causa do valorqueoolhartemparaasobrevivênciahumana.Assimcomoacontececomascriançasbemjovens,orosto de um adulto contem muita informação, inclusive dados importantes sobre a origem dapróximarefeição.Umetólogodo iníciodo séculoXX,NikoTinbergen,descobriuqueos ilhotesdegaivota são fortemente atraídos para os bicos com manchas vermelhas das gaivotas adultas (etambémparaqualquergravetocommanchasvermelhasqueumetólogotinhacolocadolá).

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Portanto, algo mudou nos cães. A ameaça de agressão evita o olharmútuo entre lobos, chimpanzés e macacos; já em relação aos cães, ainformaçãoqueelespodemobteraonosolharnosolhos fazvalerapenaenfrentarqualquermedoatávicoresidualdequeumolharpossaprovocarumataque.Ofatodeoshumanosresponderembemaoolharprofundodeumcãoéumacircunstância feliz—e,porcausadisso,nossovínculocomeleséreforçado.

Paradizeraverdade,podesermenos"contatovisual"doque"contatofacial".** Em função da anatomia super icial do olho canino— a falta dedistinção entre a íris e a parte branca do olho— a direção especí ica doolharmuitasvezessópodesercon irmadadeumadistânciamaispróximado que as câmeras de vídeo dos cientistas conseguem se posicionar.Gerações de criadores caninos deram preferência ao traço de olhosescuros em suas crias. Os cães com íris de cor clara são muitas vezesconsideradosaparentementeinstáveisoudissimulados—oqueé irônico,visto que podemos ver com clareza quando eles evitam o contato visual.Porém, apesar de eliminarmos as íris claras através do cruzamento, nãoconseguimoseliminaradissimulação,apenasnossaconsciênciado fatodeque os cães mudam o olhar. Os olhos em movimento rápido se tornammenos evidentes. Dormimos melhor à noite tendo um cão de feiçõestranquilas ao pé da cama do que um de olhos nervosos e agitados. Paratodosospropósitos,noentanto,podemosdizerqueumcãoeumhumano"seolhammutuamente"quandoficamcaraacara.

**Oscãesmostramumatendênciaadicional—queaspessoastambémpossuem—quandoolhamparaosrostos:elesolhamprimeiroparaoladoesquerdo(ouseja,paraoladodireitodorosto).Atémesmoascriançasmostramesse"olharenviezado",olhandoprimeiroepormaistempoparaoladodireito de um rosto examinado. Ao observar mais atentamente os cães, os pesquisadoresdescobriram que eles compartilham esse olhar— quando olham para rostos humanos. Quandoolham para outros cães, eles nãomostram esse tipo de olhar. A razão disso continua sendo umaquestãonãorespondida:talvezexpressemosemoçõesdeformadiferenteemcadametadedorosto;etalvezoscãesexpressememoçõesdeumaformamaissimétrica(orelhastortasàparte).Oscãesaprenderamaolharoshumanosdamesmaformacomooshumanosolhamseussemelhantes.

Aatraçãoelementardoolharaindaafetao comportamentodocão.Sevocêencaraseuanimalsempiscar,elepodeolharemoutradireção.Aoserabordado por um cachorro que parece agressivo ou interessado demais,um cão podedesviar parte dessa excitação olhandopara o lado. Castigarou acusar seu cachorro e ao mesmo tempo encará-lo pode tambémprovocar um recatado desvio do olhar. Considerando o olhar evasivo

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facilmentereconhecíveldohomemculpadoconfrontadocomseuacusador,nãosurpreendequeoshumanosatribuamomesmosentimentoaocão.Arecusa a sustentar nosso olhar contribui para uma aparência de culpa,sobretudoquandojáestamoscertosdequealgofoifeitoparainspirá-la.Seelessentemculpaouatavismo,issonãoéóbvio.

Porém, o fato de os cães estaremdispostos a nos olhar nos olhos nospermite tratá-los um pouco mais como humanos. Aplicamos a eles asregras implícitas que acompanham as conversas humanas. É comum verum dono interromper a repreensão a um "cão travesso" para virar acabeçadelenadireçãodeseurosto.Queremosqueoscãesolhemparanósquandofalamoscomeles—assimcomoacontecenaconversaçãohumana,naqualosouvintesolhamparaorostodofalantemaisdoqueoinverso.(Éinteressante não olharmos um para o outro sem parar quandoconversamos; causaria desconforto se alguém o izesse.) Hámais contatovisual direto entre humanos que falam íntima ou honestamente, etendemos a estender essa dinâmica conversacional a nossos cães.Chamamos seus nomes antes de falar com eles, tratando-os comointerlocutoresvoluntários,emborataciturnos.

Acompanhandooolhar

Não acontece de repente,mas pouco tempo após levar o cão ou o ilhoteparacasapelaprimeiravez,vocêvainotaralgo:nadanacasaéseguro.Oscães treinam os humanos a repentinamente se tornarem organizados:guardarsapatosemeiasquaseimediatamenteapósseremretirados;levarolixoparaforaantesqueacumule;nãodeixarnadanochãoquepossaseencaixar na boca de um ilhote excitado e irrefreável cujos dentes estãodespontando.Éprovávelqueocorraumapaztemporária.A inal,vocêpodeescondercoisasatrásdeportas fechadas,emarmários trancadosesobreprateleirasaltas.Oscãesolham,desnorteados,nadireçãodaáreaemqueo (sapato, pacote de comida, chapéu) sumiu misteriosamente. Mas logovocê perceberá que o cão aprendeu algo novo: vocêé a fonte dasmudançasmisteriosas—evocêtemumatendênciaasedelatar.

Como?Vocêolha.Quandopegamosumameiaea colocamosemoutrolugar,nãoestamos ligadosaelaapenaspelamão;aaçãoéacompanhadade um olhar. Olhamos na direção que vamos seguir. Mais tarde, quando

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discutimosoroubofeitomaiscedopelocão,podemostornaraolharparaoabrigo seguro.De novo, nosso olhar revela a localização dameia; o olharpor si mesmo constitui informação. Já fomos apresentados a essacapacidadedeusaradireçãodoolhardeoutrapessoa,oassimchamadoacompanhamentodoolhar,queascriançasaprendemantesdecompletaroprimeiroanodevida.Oscãesfazemissomaiscedoainda.

Umolharquepretende compartilhar informaçõesé simplesmenteumponto marcado sem as mãos. Acompanhar um ponto é uma capacidadeligeiramente mais simples. Claro que os cães veem uma porção deapontamentosegestosaoobservarosmembroshumanosdesuasfamílias.Essapodeserafontequealimentasuacapacidadedeacompanharoolharoupodesimplesmenteser responsávelpor trazerà tonaumacapacidadeinata de extrair todas as informações possíveis de nosso comportamento.Os pesquisadores testam os limites da capacidade dos cães, natural ouaprendida, em várias experiências, colocando-os emum contexto emquepodem extrair informações do gesto que uma pessoa faz quando aponta.Porexemplo,umaguloseimaouqualqueroutracomidadesejadapodeserescondidasobumdedoisbaldescolocadosdecabeçaparabaixoenquantoo sujeito-cão não está na sala. Após as pistas odoríferas terem sidomascaradas, o cachorro precisa escolher um dos dois. Se escolhercorretamente, ele é recompensado com comida; caso contrário, não. Umapessoa que sabe qual balde deve ser escolhido ica em pé nasproximidades. Os chimpanzés receberam variações dessa tarefa emambientes de pesquisa em cativeiro. Surpreendentemente, emborapareçamsercapazesdeseguirumapontamento,elesnemsempresesaembemacompanhandoapenasoolhar.

Os cães se saem admiravelmente bem. Eles conseguem acompanharalguém que aponta, apontamentos feitos ao lado e por trás do corpo doapontador, e se saem ainda melhor se o apontamento incluir um dedodirecionado ao balde com comida.* Eles não aprenderam apenas sobre aimportânciadeumbraçoestendido.Apontarcomocotovelo,o joelhoeaspernas também serve como informação. Se lhes for dado atémesmo umapontamentomomentâneo—umvislumbredeumapontamento—,aindaassima informaçãoécaptada.Elesconseguemseguirumapistaapontadapelaimagemdosdonosemtamanhorealprojetadaemvídeo.Emboranãotenhambraços para apontar, eles superamos chimpanzés que izeramomesmo teste. Melhor ainda, os cães conseguem extrair informações

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simplesmenteusandoadireçãodacabeçadapessoa—seuolhar—comofonte.Vocêpodeatéesconderaquelameiadeumchimpanzé,masumcãoaencontrará.

* Vale frisarque essa capacidade é con irmada pelo fato de o cão acompanhar uma das mãosapontadaparaumdedoisbaldescomcomidaataxas"significantementeacimadoacaso".Issoquerdizer que eles não escolhem aleatoriamente o primeiro balde. Ao contrário, escolhem o baldeapontadoentresetentaaoitentaecincoporcentodasvezes.Oqueébom,emboraaindaavaliemerroneamente de quinze a trinta por cento das vezes! As crianças de três anos acertam o baldetodasasvezes. Issonos sugerequeo sucessodos cãesprovavelmente resultadeumprocessodeentendimentodiferentedonosso.

O uso da atenção pelos cães ica ainda mais interessante em casosmenosóbvios.Não apenasquandoapontamos e eles olham,mas tambémquandodecidemnosinformarqueprecisamsairparapassear,ouqueremque uma bola seja lançada para eles pegarem. Ou quando precisam noscontar uma novidade muito importante a respeito do lugar onde umacomidagostosacaiue icouforadoalcancedelesenquantoestávamosforada sala. Brincar com humanos é um contexto rico para o possívelsurgimento de algumas dessas habilidades; paradigmas experimentaistambém manipulam as informações possíveis de serem extraídas daatenção de outras pessoas. Todos os sinais indicamque os cães parecementendercomoatrairatenção,comofazerpedidosusandoaatençãoequetipo de desatenção lhes permite escapar impunes quando se comportammal.

Atraindoatenção

A primeira dessas capacidades, quando observada nas crianças, é

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chamada de "atração de atenção". Informalmente, você pode conhecê-lacomo qualquer coisa que seu cão faz para interferir no que você estátentandofazernomomento.Maisformalmente,essessãocomportamentoscapazesdemudarofocodaatençãodealguémaoentrarnocampovisualdessa pessoa, provocar barulhos discerníveis ou fazer contato. Pularsubitamenteemcimadevocêéumaconduta familiardoscachorrosparaatrair atenção, embora não seja tão apreciada. Latir é outra. No entanto,seusmeiosdeatrairatençãonãoestãorestritosaocotidiano.Meiosmenosreconhecidos incluem cutucar, arranhar ou simplesmente seplantar bemnafrentedealguém:quechameide nasuacaraemmeusdadossobreasbrincadeirascaninas.Oscães-guiausam"lambidassonoras"—mastigadasaudíveis — para despertar a atenção do de iciente visual quandonecessário. Por vezes, a excitação da brincadeira os leva a inventartécnicas novas também. Minhas sessões favoritas para observá-los sãoaquelas em que um cão bem-disposto, porém frustrado, imita ocomportamento do objeto de seu interesse de brincadeira nãocorrespondido: aproximar-se e beber da tigela da qual o outro cão estábebendo — e usando isso como um meio para lamber o rosto dele; ouagarrarumgravetoencontradoporoutrocãoquenãodesejadividi-locomninguém.

Emgeral,oscãesusamregularmenteformasdeatrairnossaatençãoesão frequentemente recompensados com ela. No entanto, a menos quedemonstremalgumasutilezanaaplicaçãodessescomportamentos,usá-losnão comprova uma compreensão plena de nossa atenção. Pode ser queelesestejamsimplesmenteutilizandotodasas ferramentassuadisposiçãopara resolver o problema de atrair nosso olhar. Uma criança grita, vocêcorre para perto dela: uma forma de atrair atenção acaba de surgir. Asobservaçõesdasbrincadeirasdecãescomhumanosdemonstramoquantogrosseiroousutiléousodessescomportamentos.Existemcãesquelatirãocontinuamente para uma bola de tênis resgatada enquanto os donossocializamcomosmembrosdesuaprópriaespécie.Emboralatirsejaumaboa forma de atrair atenção, não estará sendo bem aplicada se continuamesmoapósnãoteratingidoseuobjetivo.Poroutrolado,tambémexistemindícios de maneiras muito sutis de atrair atenção visual em resposta àatençãodivididadeseusdonos.Aomudarapostura—seestavasentadoica empé, se estava empé se aproxima—, os cães conseguemde novoenvolver os donos pelo menos o bastante para que joguem a bola ouvoltemàbrincadeira.

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Exemplos da lexibilidade dos esforços caninos para atrair a atençãosão vistos com uma frequência muito grande. Se seu cão não conseguefazer com que abandone o romance que está lendo e levante da cadeirasimplesmente se aproximando de você, ele pode desaparecer e voltarcarregandoum sapatoououtro itemproibido. Provavelmente, issoo farácastigá-locomdelicadezaevoltarparaseu livro.Eleentãoentenderáquetáticasmaisdrásticassãonecessárias.Apróximapodeserumchoramingoou um latido experimental; uma intervenção tátil — um empurrão levecom o focinhomolhado, uma fuçada ou um salto; ou atémesmo desabarruidosamente no chão a seus pés dando um suspiro. Eles estão tentandoatrairsuaatençãoe,nessecaso,domelhorjeitopossível.

Mostrandooquedesejam

Até agora, os cães acompanharam o desenvolvimento infantil: olhando,acompanhando um apontamento e usando formas de atrair atenção.Masserá que eles também apontam, domelhor jeito possível, utilizando seuscorpos?Elesapontamcomacabeçaparamostraralgoavocê?

Uma vez mais, pesquisadores estabeleceram uma situaçãopressupondoqueeleacionariaessaconduta,setalcapacidadeexistisse.Acenaéatarefadeseguiroolhar,agorainvertida.Aqui,emvezdeseremosingênuos, os cães são bem informados, porém impotentes: sozinhos,assistem a um pesquisador esconder uma guloseima deploravelmentelonge de seu alcance. Em seguida, seus donos entram na sala e ospesquisadores apontam suas câmeras para os cães: eles veem os donoscomoferramentascapazesdeajudá-los?Casopositivo,elescomunicamaosdonosolugardaguloseima?

Nesses casos, parece que os únicos animais obtusos na sala são oshumanos, que podem não enxergar no comportamento do cão umatentativa de lhes mostrar algo. Esse comportamento consiste em umavariedade de formas de atrair atenção (tais como latir), seguidas,crucialmente, por olhares insistentes que vão do dono ao local onde aguloseimaseencontra.Emoutraspalavras,apontarcomoolhar:mostrar.

Esse comportamento é diariamente visível em ambientes nãoexperimentais. Os cães que adoram pegar bolas costumam devolve-las

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babadasnafrente—diantedorosto—doatiradordabola,nãopelassuascostas.E,seabolaéerroneamentelargadadoladoqueodonoresponde,ocãopossuiumarsenaldeformasdedespertaraatençãodele,seguidoporalterações de olhar incessantes — olhar para o rosto do humano quesegura a bola e rapidamente voltar a olhar para a bola. O cão inquieto efaminto por atenção nunca ica satisfeito em deixar cair as meiasencontradasatrásdevocê; elas sãodeixadasdentrode seu campovisual—oulargadasbememcimadeseucolo.

Manipulandoaatenção

Finalmente, os cães usam a atenção dos outros como uma fonte deinformação, tanto para obter algo que desejam, como, maisextraordinariamente, para saber quando podem fazer algo e escaparimpunes.

As pesquisas con irmaram esse comportamento ao investigar se oscães fazem escolhas inteligentes quando lhes é oferecida a chance deescolher a pessoa a quem solicitar comida. Se todas elas fossem fontesboaseequivalentesdecomida, seriadeesperarqueos cãesabordassemtodasaspessoascomamesmaexpressãoimplorante—meiosúplica,meioexpectativa. Existem cães que se comportam assim, claro,* e existem osque guardam suas súplicas para os açougueiros, ou para os donos queenchemosbolsos compedacinhosde carnede ígado.Mas amaioriadoscãesfazumadistinçãoqueéimportanteparanósquandodesejamosalgo:distinguem colaboradores possíveis e impossíveis. Fazemos pedidosapropriados de acordo com o conhecimento e a capacidade de nossaplateia.Vocênãopede aopadeiropara explicar a teoriadas cordas, nemsolicitaaumfísicoumpãodeformadesetegrãosfatiado.

* Cães que frequentemente acabam sendo chamados decães de gente devido ao seu interesseentusiasmadopelosdonos,enãoporoutroscachorros.

Nos ambientes experimentais que examinam os mesmos quatroelementos — cão, pesquisador, comida e conhecimento —, os cachorros

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parecemdistinguirentreoshumanosquepodemlhesserúteiseaquelesqueprovavelmentenãopodem.Quandoumapessoacomumsanduícheévendada, ou está olhando em outra direção, os cães inibem o máximopossível a compulsão de se aproximar do sanduíche. Em vez disso, sehouverumapessoasemvendaporperto,elesdirigirãosuassúplicasaela.Que essa seja uma lição: implorar por comida durante as refeições podeser motivado pelo contato visual com o cão— mesmo que seja por umtempo su iciente para dizer a ele não adianta pedir! Alternativamente,encarregue uma pessoa para ser receptiva aos pedidos do cão, e toda aatençãodelefluiráparaela.(Ascriançassãoexcelentesnessafunção.)

Os cães também abordam pessoas vendadas com cautela — como éapropriadoemumasituaçãoemquesedesconhecequeseéo sujeitodeuma experiência. Esses experimentos que usam personagens nãoreceptivoseestranhamentevestidossãotípicosdostestespsicológicos.Emalgum nível, eles são úteis para evitar a possibilidade de o sujeito terexperimentado o ambiente que está prestes a encontrar. Em outraspalavras, os testes procuram descobrir o que os cães entendemintuitivamentesobreosestadosdeconhecimentodoshumanos,nãooqueelespodemteraprendidosobreoquefazerquandosedeparamcomumapessoavendada.Mesmoassim,ocãoéconfrontadocomoquedevemseralgumashorasbastantebizarras.

Variações dessas experiências foram realizadas primeiramente comchimpanzés. Naquele contexto, o estado de atenção do humano foiconsiderado como indicativo de algo que ele conhece. Alguém que vêcomidasendoescondidaemumacestaéum"conhecedor";alguémqueficaparado na mesma sala, mas tem um balde sobre a cabeça, não é. Oschimpanzéspediramajudaàpessoaconhecedoraouaquelequeadivinhaalocalizaçãodacomida(adivinhandocorretamenteporacasoedevezemquando)? Ao longo do tempo, os chimpanzés aprendem a pedir aoinformanteconhecedor,masapenasquandooadivinhadortenhasaídodasalaou icadodecostasenquantoobaldeéenchido.Quandooadivinhadorsimplesmente temo olhar bloqueado— comumbalde, saco de papel ouvenda—oschimpanzéspedemaeledamesmaforma.

Os cães passaram por experiências com humanos estranhos vestindobaldes,vendadosouqueseguravamlivrosnafrentedosolhos,oquelhesbloqueava a visão. Eles superam os chimpanzés: escolhem pedir aos que

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podem ver — aqueles cujos olhos não estão bloqueados. É exatamenteassim que agimos: preferimos falar, lisonjear, convidar ou aliciar os quetêm os olhos visíveis. Os olhos signi icam atenção, que signi icaconhecimento.

Melhor, os cães usam esse conhecimento com insmanipuladores. Ospesquisadores descobriram que os cachorros não apenas entendem queestamos atentos,mas são sensíveis ao quepodem fazer impunemente deacordo com os diferentes níveis de atenção dos donos. Em uma dasexperiências,apóssereminstruídosase deitar(eobedientementefazê-lo),os cães foram observados em três testes. Na primeira condição, o donolevanta e olha para seu animal. O resultado? O cão permanece deitado:perfeitamenteobediente.Nasegunda,odonosesentaepassaaassistiràtelevisão: nesse caso o cão faz uma pausa, mas logo desobedece e selevanta.E,naterceiracondição,odononãoapenasignoraocão,massaidasala,deixando-osozinhocomocomandoaindaecoandoemseusouvidos.

Aparentemente,oeconãoduramuito,poisnessestestesoscãesforammais rápidos e mais propensos a desobedecer ao comando tão bemobedecidoquandoodonoestavaporperto.Osurpreendentenãoéqueoscães tenham desobedecido quando o dono saiu. Ao contrário, o quesurpreende é que os cães façam o que as crianças de dois anos, oschimpanzés, os macacos e nenhum outro animal parecem fazer:simplesmenteperceber o grau exatode atençãode alguéme variar seuscomportamentos de acordo com ele. Metodicamente, os cães usaram onível de atenção de seus donos para saber em que circunstâncias elespoderiam infringir as regras — da mesma forma que usaram asinformações de outros cães para atrair a atenção deles emmomentos debrincadeira.

No entanto, a leitura da atenção feita pelo cão é extremamentecontextual. Quando amesma experiência foi realizada usando comida—aquelegrandemotivadorparaobteromelhordesempenhopossível—,olimite da desobediência diminuiu: os cachorros desobedeceram maisrapidamente e em níveis mais baixos de distração do dono. Quando aatençãododonoeramaisdi ícildeseravaliada—quandoele falavacomalguém ou estava calmamente sentado com os olhos fechados — ocomportamentocaninovariou.Algunssentarampacientemente,masforamicandocadavezmaisimpacientesesepreparandopara icarempéassim

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que o dono deixava a sala. Outros cães levavam ainda mais tempo paradesobedecer quando os donos deixavam a sala do que quandopermaneciamnela,masfazendooutrascoisas.Essafaltadelógicapodeserexplicadapelograudedesenvolvimento,quevariadecãoparacão.Algunsdonos estabelecem uma rotina com uma sequência de comandos: Senta!Fica! (pausalongaetorturante),Ok!.Nesseprocesso,pode-se terpassadoum tempo muito longo antes de a autorização para pegar a comida serdada. Os cães aguentam esse nosso jogo comum autocontrole admirável.Porém,seodonocomeçaaconversarcomalguémnasala—ocupadoemobteraatençãodeoutrem—,céusojogoacaba.

Caso você pense que pode usar essa sabedoria para fazer seu cãoobedecerenquantoestánotrabalhosimplesmente ingindoestaremcasacomele—usandoalto-falantesouvídeos—,umadasexperiênciasmostraresultados muito decepcionantes. Quando uma imagem de vídeo emtamanho real (e bem visível) do dono foi mostrada para cães, eles adesobedeceram em níveis compatíveis com sua permanência em casasozinhos, sem supervisão. Embora pudessem usar as dicas apontadaspelos donos nos vídeos para ajudá-los a encontrar comida, não deram amenorbolaparamuitosdeseuscomandosverbais.Oscãessãoobedientes,porém mais seletivamente obedientes quando o dono é reduzido a umaimagemdevídeo.Vocênãopodeesperardiminuirolamentosolitáriodelesimplesmente dizendo-lhe para icar perto da secretária eletrônica, maspodedizer-lheondeencontraraquelaguloseimaquevocêdeixouparaele.

Na sua próxima visita ao zoológico, dê uma olhada nas jaulas demacacos. Talvez haja macacos capuchinhos, animais de rabo alto que semovem muito rápido, saltam com facilidade e gritam agudamente. Oumacacos colobus, comedores de folhas, que semovem lentamente e cujopelo preto e branco frequentemente esconde um pequeno colobusagarradonele.Observeosmacacos-da-nevemachosenquantoperseguemas fêmeasde rabovermelho.Hámuitoa ser reconhecidoaquiemnossosdistantesprimosevolucionários.Vemosseusinteresses,medosedesejos.Ea maioria perceberá e reagirá a você — mais provavelmente sedistanciando ou virando a cabeça para evitar seu olhar. O que ésurpreendente équeos cães,muitomenoshumanosdoqueosprimatas,sãomuitomelhoresemperceberoqueestáportrásdonossoolhar,comousá-loparaobterinformaçõesouparatirarvantagem.Oscãesconseguemnosver,oquenãoacontececomnossosprimosprimatas.

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AntropólogoscaninosEusoueuporquemeucãozinhomeconhece.

—GertrudeStein

O olhar do cão é um exame, uma consideração: um olhar para outracriatura viva. Ele nos vê, o que pode indicar que ele pensa em nós— egostamos de ser considerados. Naturalmente, naquele momento em quetrocamos olhares, nós nos perguntamos: será que ele está pensando emnósdaformacomopensamosnele?Oqueelesabesobrenós?

Nossoscãesnosconhecem—provavelmentemuitomelhordoquenósos conhecemos. Eles são voyeurs exímios e curiosos: introduzidos naprivacidade de nossos lares, serenamente espionam todos os nossosmovimentos.Elessabemsobrenossasidasevindas.Acabamporconhecernossos hábitos: quanto tempo passamos no banheiro, quantas horaspassamos assistindo à televisão. Sabem com quem dormimos; o quecomemos; comquemdormimosdemais; o que comemosdemais. Elesnosobservamcomonenhumoutro animal. Compartilhamosnossas casas cominúmeros bichos e insetos: nenhum deles se importa conosco. Abrimos aporta e vemos pombos, esquilos e variados insetos voadores; elesraramentenospercebem.Oscães,aocontrário,nosobservamládooutrolado da sala, da janela e com o canto, dos olhos. A observação deles épossibilitadaporumacapacidadesutil,porémpoderosa,quecomeçacomavisãosimples.Avisãoéusadaparaprestaratençãovisual,queporsuavezé usada para ver em que prestamos atenção. De algumas formas, essecomportamento é semelhante ao nosso, mas de outras, ele supera acapacidadehumana.

Oscegoseossurdosàsvezesmantémcãesparaveremououviremomundo para eles. Para alguns de icientes, um cão pode possibilitar omovimento através de um mundo pelo qual não conseguem circularsozinhos. Assim como os cães podem agir como olhos, ouvidos e pés dosde icientes ísicos, eles também podem agir como leitores docomportamento humano para alguns autistas. As pessoas com qualquertipodedesordemautística estãoUnidaspela incapacidade compartilhadade entender as expressões, emoções e perspectivas alheias. Como

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descreve o neurologista Oliver Sacks, os cães podem parecer leitores dementeshumanasparaapessoaautistaqueosmantém.Emboraumautistanão consiga interpretar a sobrancelha franzida como a demonstração depreocupaçãodeumapessoaouentenderotomelevadodavozdelacomosinaldemedoouangústia,ocãoésensívelaossentimentosdela.

Oscãessãoantropólogosentrenós,Sãoestudiososdocomportamento,Eles nos observam do jeito que a ciência da antropologia ensina seuspraticantes a olhar os humanos. Na idade adulta, andamos entre outroshumanos, na maior parte do tempo, sem os examinarmos de perto,socialmente treinados para sermos reservados. Até mesmo em relaçãoàqueles que conhecemos bem, podemos parar de prestar atenção apequenasmudançasemsuasexpressões,seushumores,suaspercepções.O psicólogo suíço Jean Piaget a irmou que, na infância, somos pequenoscientistas, formando teorias sobre o mundo e as testando por meio deações. Se for assim, somos cientistas que aperfeiçoam suas habilidadesapenas para as desprezarmos mais tarde. Amadurecemos ao aprendercomo as pessoas se comportam,mas posteriormente prestamos cada vezmenos atenção ao comportamento delas. Deixamos de lado o hábito deolhar.Umacriançacuriosa itacom fascinaçãoumestranhomancandonarua; ela aprenderá que isso não é educado. Uma criança pode icarextasiada com as folhas na calçada dispersas pelo vento; na vida adulta,farávistagrossaparaomesmoacontecimento.A criança se inquieta comnossochoro,monitoranossossorrisos;elaolhaparaondeolhamos,Comopassardotempo,aindasomoscapazesdefazertudoisso,masperdemosohábito.

Oscãesnãoparamdeolhar—paraodeficientefísicoandando,paraasfolhas que caemdas árvores, para nossos rostos. O cão urbano pode serprivado de imagens naturais,mas é confrontado por uma abundância deimagensbizarras:obêbadocambaleandoemmeioàmultidão,opregadorgritando na calçada, os mancos e os mendigos. Todos atraem longosolharesdoscãesquepassamporeles.Oqueostornabonsantropólogoséofatodeelesestaremantenadoscomoshumanos:elespercebemoque étípicoeoqueédiferente.E,igualmenteimportante,elesnãoseacostumamconosco,comonósofazemos—nemcrescemparasetornaremcomonós.

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ADESCONSTRUÇÃODOSPODERESPSÍQUICOSDOSCÃES

Essacapacidadedeseligaremnóséencantadora.Oscãessãocapazesdenos antecipar — e, parece, saber algo essencial sobre nós e os outros.Trata-sedeclarividência?Deumsextosentido?

Lembro a história de um cavalo. Na virada do século XX, as ações docavalo Hans— cuja alcunha irônica, "Hans Esperto", veio a representartanto o que ele não conseguia fazer quanto um alerta contra a excessivaatribuiçãode habilidades a animais— contribuíramparamoldar o rumodaspesquisassobreacogniçãoanimalpeloscemanosseguintes.

Segundo seu proprietário, Hans sabia contar. Apresentado a umproblema aritmético em um quadro negro, Hans mostrava o resultadoraspando os cascos na terra. Embora tivesse sido motivado e reforçado,pormeiodecondicionamentodireto,abatercomocasco,essanãoeraumaresposta maquinal a perguntas pré-determinadas: ele era excelente emfazer somas e em resolver novos problemas, até mesmo quando aquelequeoquestionavanãoeraseuadestrador.

Tal era a maneira de pensar naquela época que essa capacidadecognitiva presumidamente latente descoberta nos cavalos criou um

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pequeno furor. Os adestradores de animais, assim como os acadêmicos,icaram intrigados com a forma comoHans fazia aquilo. Parecia que nãohaviaoutraexplicaçãoanãoserqueelerealmenteeracapazdepraticaraaritmética.

Finalmente, o truque—um truque não intencional, desconhecido atépelo dono — foi descoberto pelo psicólogo Oskar Pfungst. Quandoimpediram que o próprio inquiridor soubesse a resposta do problema, amatemática de Hans tornava-se totalmente equivocada. Hans não faziacontas e não tinha poderes psíquicos; ele simplesmente lia ocomportamento do perguntador. Inconscientemente, este sugeria arespostapormeiodepequenosmovimentoscorporais: inclinando-separaa frente ou afastando-se do cavalo quando ele batia a resposta correta;descontraindo os ombros e os músculos do rosto; inclinando-se muitosutilmenteparaafrenteatéarespostaserobtida.

OHans Esperto foi e continua sendo uma advertência ao costume deatribuir aos animais capacidades que podem ser explicadas pormecanismos mais simples. Contudo, pensar sobre o uso da atenção pelocãome faz lembrar o domdeHans. Embora ele não fosse tão inteligentequanto foi divulgado, sabia muito bem ler os sinais inadvertidamentetransmitidospelaspessoasqueoquestionavam.Diantedeumaplateiacomcentenasdepessoas,apenasHansobservavaocorpodeseuadestradorsecurvarparaafrente,ficarmaistensoemaisrelaxado,fazendo-osuporquedeveria parar de raspar o casco no chão. Ele prestava atenção àquelaspistas que continham informações: uma atenção muito maior do que osespectadoreshumanostraziamparaoevento.

A sensibilidade extraordinária de Hans pode ter se originado,paradoxalmente, em outras de iciências. Visto que presumivelmente elenãotinhaqualquernoçãodenúmerosoudearitmética,nãosedistraíacomaqueles estímulos. Em contrapartida, nossa atenção aos detalhesaparentemente salientes nos levaria a ignorar a única indicação clara daresposta.

Um pesquisador da área de psicologia que conheci, e que fazexperiências com pombos, demonstrou esse fenômeno quando ensinavauma turma de universitários. Ele mostrou aos estudantes uma série deimagens de grá icos com barras azuis de vários comprimentos sobre um

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fundo branco. As imagens se encaixavam em duas categorias, dizia ele:aquelasquepossuíamumacaracterística"x"nãoespeci icadaeasquenãopossuíamesse traço.Eledestacouquais imagenscontinhamelementosdacategoriax.Emseguida,solicitouaosestudantesqueusassemasamostrasdeimagensparadescobrirquecondiçõescaracterizavamx.

Após alguns minutos de tentativas frustrantes e infrutíferas, elerevelouquepombostreinadosconseguiam,semqualquererro,apontarseum novo grá ico satisfazia ou não esse critério ilusório. Os alunos seremexeram constrangidos nas cadeiras. Mesmo assim, ninguém souberesponder. Finalmente, o professor deu a resposta: as imagenspredominantemente azuis pertenciam à categoria x; as que eram maisbrancas,não.

Osalunos icaramindignados:elestinhamsidosuperadosporpombos.Ao aplicar esse teste em minhas aulas de psicologia, descobri que osestudantes também reclamam da tarefa. Embora nenhum aluno jamaistenhasurgidocomasoluçãocerta, todossequeixammais tardedequearesposta é injusta. Eles procuravam relações mais complexas entre asbarras— consistentes comos tipos de relações entre características queos grá icos de barra em geral representam. Mas não existe nenhumadessas relações; x é simplesmente "mais azul". Apenas os pombos,felizmente ignorantes do que representam os grá icos de barra,enxergaramnelessuascoreseperceberamascategoriasverdadeiras.

O que os cães fazem é uma versão do que fazemHans e os pombos.Existem inúmeros relatos anedóticos desse tipo de fenômeno. Umadestrador de cães de resgate coloca as mãos nos quadrisexasperadamente quando o cão toma o caminho errado. Outro esfrega oqueixo nervosamente. Nos dois casos, os cães aprenderam a usar essessinaiscomoinformaçõesdequeestavamnapistaerrada.(Osadestradoresprecisaramser adestradosparanãodemonstrar tantaspistas.)Enquantoprocuramosporexplicaçõesmaiscomplexasparaumdeterminadoevento,ouparaocomportamentodosoutros,corremosoriscodedesprezarpistasque os cães naturalmente veem. Trata-se menos de percepçãoextrassensorial do que de uma soma bem elaborada de seus sentidoscomuns. Os cães usam suas habilidades sensoriais em combinação com aatenção que prestam em nós. Sem seu interesse em nossa atenção, elesnão perceberiam as diferenças sutis em nosso jeito de caminhar, nossas

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posturascorporaisenossosníveisdeestressecomo itens importantesdeinformação.Tudo isso lhespermitepreveroque faremoserevelaroquesomos.

ELESNOSLEEM

Os cães nos observam, pensam em nós, nos conhecem. Quer dizer entãoque eles possuem algum conhecimento especial a nosso respeito,resultante da atenção focada em nós e na nossa atenção? A resposta épositiva.

Deumamaneiranãoverbal,elessabemquemsomos,oquefazemosealgumas coisas sobre nós que desconhecemos. Somos reconhecíveis peloolhar e mais ainda por nossos cheiros. Acima de tudo, a maneira comoagimos de ine quem somos. Parte demeu reconhecimento de Pump nãoderivaapenasdacaradela;éoandar,ocaminharligeiramentedesajeitadoealegre comasorelhasbaixasbalançandoao ritmodospassos.Tambémpara os cães, a identidade de uma pessoa não provém apenas de seucheiro e aparência; é a maneira como ela se movimenta. Somosreconhecíveispornossocomportamento.

Atémesmonossocomportamentomaiscomum—oestilocaracterísticode andar pela sala — está repleto de informações possíveis de seremextraídaspelocão.Todososdonosdecachorrosobservamasensibilidadecrescentedeseus ilhotesaosrituaisqueprecedemaquiloqueemmuitascasasondevivempessoasecãeséchamadodeP-A-S-S-E-A-R.*Claroqueoscãeslogoaprendemareconheceroatodecalçarsapatos.Daíacabamosesperando que, ao pegar a coleira ou o casaco, estejamos dando pistas aeles.Umhorárioregularparaacaminhadaexplicasuapresciência;masesetudoquevocêfezparaqueeleentendesseoquevocêfariaemseguidafoiapenastirarosolhosdeseutrabalhooulevantardapoltrona?

*Lógicoque soletrar a palavra em vez de dizê-la por inteiro é, em geral, inútil. Os cães tambémconseguem aprender a conexão entre a cadência de uma palavra soletrada e um passeiosubsequente,mesmoseoúltimonãoocorrerimediatamenteapósoprimeiro.Poroutrolado,usadaem um contextoimprovável— digamos, comvocêimersonabanheira—apalavrasoletradanãodespertatantointeresse.Nãoémuitoprovávelqueumapessoanuaetodaensaboadaselevanteevápassearcomele.

Se o izer repentinamente, ou se você cruzar a sala com um andar

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decidido, um cão atento terá todas as informações de que precisa.Observador habitual de seu comportamento, ele enxerga suas intençõesmesmoquandovocêpensaquenãoestá revelandonada.Comovimos, oscãessãomaissensíveisaoolhare,portanto,àsmudançasemnossoolhar.A diferença entre uma cabeça erguida ou abaixada, voltada para longedeleouemsuadireção,éenormeparaumanimalespecialmentesensívelao contato visual. Até mesmo os menores movimentos das mãos ou osajustesdocorpoatraemaatenção.Passetrêshorasolhandoparaateladeum computador, mãos grudadas no teclado, depois olhe para cima ealongueosbraçosporcimadacabeça—éumametamorfose!Amudançade direção de sua atenção é clara— e um cão otimista pode facilmenteinterpretá-la como o prelúdio de um passeio. Um observador humanocompetente também perceberia esses sinais, mas raramente permitimosqueoutraspessoasnos supervisionem tãodepertoemnossasatividadesdiárias.(Nemconsideramosissoalgointeressante.)

Sua facilidade em antecipar nossas ações é emparte anatômica e emparte psicológica. A anatomia deles — todos aqueles bastonetesfotorreceptores — lhes confere uma vantagem de milissegundos napercepçãodemovimentos.Elesreagemantesquevejamosqueexistealgoao qual reagir. A parte psicológica mais importante é a capacidade deantecipar — prever o futuro a partir do passado — e de associar. Afamiliaridadecomseusmovimentostípicosénecessáriaparaantecipar-sea você: umnovo ilhote podenão se enganar quando ingimos jogar umaboladetênis,mascomotempoissopodeviraacontecer.Mesmosemessafamiliaridade, os cães conseguem fazer associações entre eventos: achegadadamãedodonoeacolocaçãodecomidanatigela;umamudançanofocodesuaatençãoeapromessadeumpasseio.

Os cães captam o rema de nossos hábitos cotidianos e, portanto, sãoespecialmente sensíveis às variações desses padrões. Costumamospercorreromesmotrajetoquandonosdirigimosanossoscarros,aonossotrabalho,aometrô;issotambémacontecequandolevamosnossocãoparapassear.Ao longodo tempo, eles próprios aprendema rota e conseguemanteciparquevamosviraràesquerda,pertodacercaviva,eàdireita,naesquina do hidrante. Se introduzimos um desvio novo no caminho paracasa, mesmo que seja desnecessário — dando uma volta a mais noquarteirão—, os cães se ajustam a essa nova rota apenas depois de umpequenonúmerodesaídas.Entãoelesatécomeçamaseencaminharpara

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odesvioantesqueodonofaçaqualquermovimentonaqueladireção.Essaconduta os transforma em companheiros bons e cooperativos decaminhada—melhor do que muitos humanos com quem já perambuleipela cidade e com os quais esbarro constantemente quando os conduzoporumarotapreferida.

Ocomplementodessaproeza—ahabilidadedeseantecipar—ésuasupostacapacidadedeleituradecaráter.Muitaspessoasdeixamseuscãesescolherem os potenciais parceiros românticos. Outras a irmam que elespossuem uma boa percepção para julgar caráter, sendo capazes deidenti icarumapessoademáfé,umtiporuim,noprimeiroencontro.Elespodem parecer reconhecer alguém que não é digno de con iança.* Ofundamento dessa aptidão talvez seja sua atenção minuciosa ao nossoolhar. Se você se sente hesitante a respeito da aproximação de umestranho, isso transparece, por mais que você não queira. Os cães são,comovimos, sensíveis àsmudanças olfativas que surgem como estresse;tambémpodemnotarmúsculostensosemudançasaudíveisderespiraçãorápida ou arfante. (Essas mudanças isiológicas estão entre aquelasmedidas pelos detectores de mentiras: é possível imaginar que um cãotreinado possa substituir tanto a máquina quanto o técnico.) Mas elesdeixarão sua capacidade visual suplantar esse trunfo ao avaliar umapessoa estranha ou tentar resolver um problema. Todos nós exigimoscomportamentos característicos quando estamos raivosos, nervosos ouexcitados. As pessoas "pouco con iáveis" muitas vezes lançam olharesfurtivos enquanto conversam. Os cães percebem esses olhares. Umestranhoagressivopodefazercontatovisualarrogante,movimentar-sedeforma pouco natural em termos de lentidão ou velocidade, ou mudarestranhamente de direção antes de iniciar a agressão de fato. Os cãespercebem o comportamento; eles reagem visceralmente ao encontro deolhares.

* Embora os cães possam de fato perceber diferenças sutis no comportamento das pessoas,suspeita-sequequalquerumqueseutilizedeumcãodessamaneirapossasersuscetívelaoqueospsicólogos denominam "viés de con irmação": perceber apenas aquela parte da resposta quecon irma suas próprias teorias. Aquele homem lhe parece um tanto suspeito? Sim, veja como seucão rosnou para ele uma vez: con irmado. Os cães se tornam ampli icadores de nossas crenças;podemosatribuir-lhesnossospensamentos.

Certo imdeano,quandoviajamosparaonorte rumoaum lugarondeo invernoeraagressivoeverdadeiramente frio, fomos atingidos por uma grande nevasca. Pegamos nossos trenós,encontramosummorroenormeecomeçamosadescercaprichosamenteladeiraabaixo.Derepente,Pumpse entusiasmae ferozmentenosperseguemorro abaixo,mordendo, agarrandoe rosnandonasnossascaras.Quandomeurostocobertodenevefoiatacado,nãoconseguidetê-laporquenão

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conseguia parar de rir. Ela estava brincando, mas era uma brincadeira que nunca vira antes:tingida de agressão verdadeira. Quando consegui levantar e remover a cobertura de neve queacumuleinadescida,elaseacalmouimediatamente.

Essa clarividência demonstra que os cães não podem ser enganados?Não. Eles são observadores astutos, mas não leem mentes, nem estãoimunes a serem ludibriados. Para Pump, eu estava transformada quandomontei no trenó: na horizontal, coberta de neve, e, mais importante, memovimentando de forma inteiramente diferente. De repente, eu era umapresa, me movendo sem solavancos e em alta velocidade, não umacompanheiraeretaquecaminhadevagar.

Minhacadelapode terum interesseespecial emcondutoresde trenó,mas seu comportamento é semelhante aos padrões de perseguição demuitosoutroscães.Oscachorroscostumamperseguirbicicletas, skatistas,patinadores,carrosoucorredores.Arespostagenéricaparaessapergunta—porqueelescostumamsecomportarassim?—estánoinstintoqueelespossuem para perseguir presas. Essa resposta não está inteiramenteequivocada, mas é bastante incompleta. Não se trata dos cães pensaremqueessesobjetosoupessoassão"presas"emsimesmos.Seusmovimentosrevelam outra dimensão sua: Você está rolando! Rapidamente! Esse é umatributoquealteravocêaosolhosdocão,quereagemdemaneiraespecialadeterminadostiposdemovimento.Montareandaremumabicicletanãoo torna uma presa — conforme indicado pelo fato de que seu cão ocumprimenta,enãoomorde,aodesmontar.Essasensibilidaderesponsivaprovavelmente evoluiu de uma tática de apreensão de presas, mas éaplicada de diversas maneiras. Ela confere à experiência canina umaforma adicional de interpretar os objetos e animais no ambiente. Essaformatemavercomaqualidadedeseusmovimentos.

Existemcomponentescomunsentreumpasseiodetrenó,umavoltadebicicletaouumacorrida:apessoasemovedeumadeterminadaforma—constante e rapidamente. Os caminhantes se movem, mas nãorapidamente: eles não são perseguidos. Pump não me reconheceu aodeslizar de trenó porque, em geral, ao contrário do que eu gostaria, nãosou particularmente suave nem rápida emmeus movimentos. Existe umexcessodeimpulsosverticaisemmeuandar:vouparaafrenteeparatrás;gesticulobastante—todafrívolaaoavançar.

Para que um cão pare de perseguir uma bicicleta com aquele brilho

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predatórionoolhar,bastasimplesmenteinterromperailusão:parandodepedalar. O impulso de perseguição acionado pelas células visuais quedetectamomovimentodiminuirá.(Entretanto,oshormôniosenvolvidosnaexcitaçãodelatireperseguirumobjetoquesemovesuaveerapidamentepodemaindafluiratravésdeseusistemadurantealgunsminutos.)

Aciênciacon irmouaimportânciadocomportamentonaconstruçãodaidentidade.Comonossas identidades—quemsomos—sãode inidasemparte por nossas ações, podemos examinar como nossas ações afetam oreconhecimento do indivíduo que somos. Em uma experiência, os cãesdemonstraram que não têm qualquer di iculdade em distinguir osestranhos amigáveis dos hostis, os que demonstram identidadesdiferentes. Para comprovar isso, os pesquisadores dividiram osparticipantes em dois grupos e pediram aosmembros de cada um delesparasecomportaremdeumamaneirapré-determinada.Ocomportamentoamigável incluíaandaraumavelocidadenormal, falarcomocãocomvozanimada e acariciá-lo carinhosamente. O comportamento hostil secaracterizava por ações que poderiam ser interpretadas comoameaçadoras:umaabordageminstávelehesitantecombinadacomogestodeencararocãosemfalarcomele.

O principal resultado desse estudo não é de forma algumasurpreendente:oscãesseaproximaramdaspessoasamigáveiseevitaramashostis.Porém,háumtesouroocultoaqui.Aquestãomais importanteé:como os cães reagiam quando uma pessoa anteriormente amigável derepente agia ameaçadoramente?De várias formas: para alguns, a pessoaagoraeraumtipototalmentediferentehostil,deidentidadealterada.Paraoutros, o reconhecimento olfativo do estranho que havia sido amigávelsobrepujouonovocomportamentohostil.

Noinício,essaspessoaseramestranhosparaoscães,masaolongodasvárias sessões eles se familiarizaram com elas, que se tornaram "menosestranhas".Aidentidadedelasfoide inidaempartepelocheiroeempartepelocomportamento.

TUDOSOBREVOCÊ

A combinação da atenção que nosso cão nos dedica com sua proezasensorialéexplosiva.Vimosqueelepercebeoestadodenossasaúde,pura

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verdade, até mesmo nossa relação com outros humanos. Neste precisomomento ele sabe coisas sobre nós que possivelmente não conseguimosarticular.

Os resultados de um estudo indicam que os cães captam os nossosníveis hormonais na interação com eles. Observando donos e cães ematividades que exigiam agilidade, os pesquisadores descobriram umacorrelaçãoentredoishormônios:osníveisde testosteronamasculinaeosde cortisol canino. O cortisol é o hormônio do estresse — útil paramobilizar sua resposta, digamos, de fuga frente a um leão voraz—,mastambém é produzido em condições que são mais psicológicas do quemortalmente urgentes. Os aumentos no nível da testosterona estãovinculadosamuitoselementosvigorososdocomportamento,comoimpulsosexual,agressãoedemonstraçõesdedomínio.Quantomaisaltososníveishormonaisdoshomensantesdacompetiçãodeagilidade,maioroaumentodoníveldeestressenoscães(quandoaequipeperdia).Nessesentido,oscãesdealgumaformasabiamqueonívelhormonaldeseusdonosestavaelevado—pela observação do comportamento, através do cheiro ou porambos, "captando"assimaemoção.Emoutroestudo,osníveisde cortisolcanino revelaram que os cães eram ainda mais sensíveis ao estilo debrincardoscompanheiroshumanos.Aquelesquebrincavamcompessoasqueusavam comandos durante a brincadeira—mandandoo cão sentar,deitar, ou escutar — acabavam tendo níveis de cortisol pós-brincadeiramais altos; os que brincavam com pessoas que agiammais livremente ecom entusiasmo tinham um nível de cortisol pós-brincadeira menor. Oscães conhecem nossas intenções e são afetados por elas, até quandobrincam.

Nossoapegoaumcãoé,emgrandeparte,motivadopelosentimentodequesomosreconhecidosedequenossoscomportamentossãoprevisíveisparaeles.Sevocêjáexperimentouoprimeirosorrisodeumacriançaaoseaproximar dela, conhece a emoção de ser reconhecido. Os cães sãoantropólogosporqueestudameaprendemsobrenós.Elesobservamumaparte signi icativa de nossas interações uns com os outros — nossaatenção, nosso foco, nosso olhar; o resultado dessas observações não é aleituradenossasmentes,masacapacidadedenosreconhecerepreveroque faremos.Essasituaçãotransformaumacriançaemumserhumanoetornaoscãesseresligeiramentehumanostambém.

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MentenobreEstáamanhecendoetentosairsorrateiramentedoquartosemacordarPump.Nãoconsigoverseusolhos,tãoescurosquesãocamuflados:pelapelagempreta.Acabeçarepousatranquilamenteentreaspatas. Jánaporta, pensoque consegui—napontadospés e coma respiração suspensaparaevitar o radar dela.Mas, então, vejo aprotuberânciade suaspálpebraselevadasrastreandomeucaminho.Elaestádeolhoemmim.

O cão, como já vimos, é um exímio observador, um usuário hábil daatenção. Existe uma mente pensante, conspiradora, re lexiva, por trásdaqueleolhar?Odesenvolvimentodoolhar infantil humanoemumolharatentomarcao lorescimentodamentehumanamadura.Oqueoolhardocãonos revela sobre amente canina?Elespensamemoutros cães, nelesmesmos, em você? E, a pergunta que não quer calar, mas ainda semrespostasobreasmentesdoscães:elessãointeligentes?

AINTELIGÊNCIACANINA

Os donos de cachorros, domesmo jeito que os pais de primeira viagem,parecem ter sempre um punhado de histórias prontas para descrever onívelde inteligênciade seus cães.A irma-seque sabemquandoosdonosvão sair e quando retornarão; que sabem comonos enganar e como nosseduzir. Os noticiários estão cheios das últimas descobertas sobre ainteligência canina: sua capacidade para usar palavras, contar ou ligarparaumtelefonedeemergência.

Para veri icar essa impressão baseada em histórias isoladas, algumaspessoas desenvolveram os chamados testes de inteligência para cães.Estamos todos familiarizados com esses testes para humanos: criaçõesusandopapel e caneta que exigemque você solucioneproblemasdo tipo"teste de avaliação de conhecimentos" de escolha de palavras,relacionamentos espaciais e raciocínio. Há perguntas que testam amemória, o vocabulário, as habilidades matemáticas em declínio e acapacidadedediscernirpadrões edeprestar atenção adetalhes.Mesmopondo de lado a legitimidade da avaliação da inteligência, o projeto nãoserveautomaticamenteparatestarcães.Portanto,mudanças foramfeitas.Em vez de testes de vocabulário avançado, testes simples dereconhecimentodecomandos.Emvezderepetirumalistadedígitoslidosem voz alta, um cão pode ser solicitado a lembrar-se do esconderijo deuma guloseima. A propensão para aprender a fazer algo novo pode

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substituir a capacidade de calcular somas complexas. Certas perguntasimitamvagamenteparadigmaspsicológicosexperimentais:apermanênciadosobjetos(seumaxícaraécolocadasobreumaguloseima,elaaindaestálá?), aprendizagem (o seu cão percebe de fato a façanha tola que vocêdesejaqueelefaça?)eresoluçãodeproblemas(comoeleconseguepegaracomidaquevocêtrouxe?).

Estudos formais desses tipos de capacidades em grupos de cães —quase todos de cognição sobre objetos ísicos e sobre o ambiente —produzemo que a princípio parecem ser resultados previsíveis. Ao levaros cães a um campo cheio de guloseimas e cronometrar a velocidadenecessária para encontrá-las, os pesquisadores con irmaram que elesusam pontos de referência para se orientar e encontrar atalhos. Essecomportamento é consistente com o que seus ancestrais lobosprovavelmente izerampara encontrar comida e se orientar.Os cães são,certamente, muito bons em todas as tarefas que envolvem encontrarcomida.Se lhesderemduaspilhasdecomidaparaescolher,elesnão têmdi iculdade em escolher a maior, sobretudo se a diferença entre elas égrande.Cubraumpoucode comida comumaxícara, eos cãesvãodiretopara ela, batendo na xícara e revelando a guloseima. Os cães testados jáaprenderam até a usar uma ferramenta simples— puxar uma corda—parapegarumbiscoitoquedeoutraformaestariaforadealcance.

Mas os cães não passam em todos os testes. Eles normalmentecometem muitos erros quando apresentados a pilhas com três e quatrobiscoitos, ou comcinco e sete: eles escolhemasquantidadesmenores tãofrequentementequantoasmaiores.Edesenvolvempreferênciasporpilhasà esquerda ou à direita, o que os leva a cometer erros mais grosseirosainda. Da mesma forma, a capacidade de encontrar comida escondidapioraàmedidaqueoesconderijo icamaiscomplicado.Eàmedidaqueostestes se tornam mais di íceis, o uso de ferramentas também começa aparecermenosimpressionante.Quandoháduascordas,esomenteamaisdistante tem um biscoito atraente amarrado nela, os cães dirigem-se àcordamaispróxima—aquenão temnadaamarradonela.Elesparecemnão perceber que a corda é uma ferramenta: ummeio para um im. Defato,elespodemterobtidosucessonocasooriginalsimplesmenteporqueatacaramoproblemacomapataoucomabocaatéqueacidentalmenteoresolveram.

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Oproprietáriodeumcãoquecompilarasnotasdeseuanimalnessestestes de inteligência pode descobrir que ele tem uma pontuação maispróxima de Bobo porém feliz do que Primeiro da turma em obediência. Éissomesmo,então?Elenãoéinteligente,afinal?

Um olhar mais inquisitivo para os testes de inteligência e para asexperiências psicológicas revelam uma falha: eles têm uma trapaçainvoluntária contra os cães. A falha está nométodo experimental, não nocão experimentado. Tem a ver com a presença em si de pessoas — ospesquisadores ou seus donos. Vamos olhar mais atentamente para umatípicaarmadilhaexperimental.Poderiacomeçardaseguinteforma:umcãoestá sentado e atento, contido por uma coleira. Um pesquisador chegadiante dele e lhe mostra um belo brinquedo novo. Esse cão adorabrinquedosnovos.*Obrinquedoeumbaldesãoclaramentemostradosaocão;obrinquedoécolocadodentrodobaldee,emseguida,opesquisadordesaparece com a preciosidade atrás de duas telas. Ele retorna com obalde — vazio. Isso não é um trote cruel, mas um teste padrão dedeslocamento invisível:um objeto é deslocado — transferido para outrolocal — invisívelmente , fora do alcance da visão. Esse teste tem sidorealizadoregularmentecomcriançaspequenasdesdequePiageropropôscomorepresentantedeumdossaltosconceituaisqueascriançasfazemnocaminho para se tornarem adolescentes incorrigíveis e, posteriormente,adultos capazes de terem seus próprios ilhos. Neste caso, osentendimentosconceituaistêmavercomaexistênciacontínuadosobjetosquando estão fora do alcance da visão — denominadapermanência doobjeto — e com alguma noção da trajetória e da existência continuadadesse objeto no mundo. Se alguém desaparece por trás de uma porta,entendemos que ele continua existindo, ainda que não o possamos ver, eque podemos encontrá-lo se olharmos atrás daquela porta. As criançasdominam a permanência do objeto antes do primeiro ano de vida e odeslocamento invisível antes do segundo. Desde que Piaget estabeleceuessa compreensão representacional comouma etapa no desenvolvimentocognitivoinfantil,essesetornouumtestepadrãoaplicadoaoutrosanimaispara veri icar como eles se comparam às crianças. Hamsters, gol inhos,gatos,chimpanzés(quesemprepassam)egalinhasforamtodostestados.Ecães.

* Os cães têm preferência por objetos novos — a neo ilia. Um estudo descobriu que quandosolicitado a retirar umbrinquedoqualquer de uma pilha de brinquedos novos e familiares, elesespontaneamente escolhem os novos em três quartos das vezes. Essa inclinação para o novo

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poderia explicar porque, ao se encontrarem em umparque,dois cães que estejam carregandogravetosmuitasvezeslarguemoqueorgulhosamentecarregavamatéentãoparatentararrebataroorgulhodocãoqueseaproxima.

O desempenho dos cães varia. Ah, claro, se o teste é realizadosimplesmente conformedescrito acima, elesnão têmproblemaalgumemprocurar o brinquedo atrás da tela. Parece que eles passaram no teste.Mas,complicandoumpoucoocenário—levandoorecipienteparatrásdeduastelasdiferentes,retirandorapidamenteobrinquedoapósaprimeirarela e mostrando a eles que você assim o fez antes de ir para trás dasegunda tela —, os cães fracassam: eles correm para a segunda telaprimeiro, onde o brinquedo evidentemente não está. Outras variações doteste também izeram os cães repentinamente parecerem menosinteligentes em suas buscas. Poderíamos concluir que aqui também elesparecem estar longe da genialidade. Uma vez fora do alcance da visão, obrinquedopoderapidamentesairdamente.

Mas o simples fato de que os cães às vezes são bem-sucedidos tornasuspeitaessaconclusão.Emvezdisso,ocomportamentodelesapontaparaduas explicações. Primeiro, é provável que os cães se lembrem dobrinquedo, mas não teçam considerações detalhadas sobre qual seria ocaminho pelo qual desapareceu. Embora alguns cachorros iquemindiscutivelmentemotivadosarastrearumbrinquedo,elespensamsobreosobjetosemseuambientedeumaformamuitodiferentedoshumanos.Éimportante, observar que lobos e cães agem de forma limitada com osobjetos: alguns servem para comer e outros para brincar. Nenhuma dasinterações exige re lexão complexa sobre o objeto. Os cães percebemquando um objeto anteriormente apreciado está ausente, mas nãoprecisamcogitar sobrepossíveishipóteses a respeitodoqueaconteceuaele. Ao contrário, eles simplesmente começam a procurá-lo ou esperamqueeleapareça.

A segunda explicação é mais abrangente. Parece que a própriahabilidade para a cognição social, que é seu ponto forte para ser umcompanheirodoshumanos,contribuiparaofracassodoscãesnessaeemoutras tarefas de cognição ísica. Mostre a seu cão uma bolinha; emseguida,oculte-aaocolocá-lasobumadeduasxícarasemborcadas.Diantedas xícaras, e supondoquenao consiga resolver a tarefapelo cheiro, umcão olhará por baixo de ambas aleatoriamente: uma abordagem razoávelquandoelenãotemnadamaisemquesebasear.Levanteumpoucouma

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xícara de modo a permitir um vislumbre da bola, e você não sesurpreenderá com o fato de que, quando a busca é permitida, o cão nãoterá di iculdades em olhar embaixo daquela xícara. Mas ao permitir umvislumbre embaixo da xícara que não contém nada, os pesquisadoresdescobriram que os cães repentinamente perdem a lógica. Eles buscamprimeirodebaixodaxícaravazia.

Esses animais foram logrados pela própria capacidade. Ao seremconfrontadoscomumproblemadequalquertipo,oscãesinteligentementeolhamparanós.Nossasatividadessãofontesdeinformações.Elesacabamacreditando que nossas ações são relevantes— muitas vezes levando aalguma recompensa interessante ou até mesmo a obtenção de comida.Portanto, se um experimentador se esconde atrás de uma segunda tela,comoacontecenas tarefasdedeslocamento invisívelmaiscomplexas,ora,pode ser que haja algo interessante por trás daquela tela. Se ele levantaumaxícaravazia,essaxícarasetornamaisinteressantesimplesmenteporcausadaatençãoqueopesquisadordirigiuaela.

Seaspistas sociais sãodiminuídasnos testes,os cãesapresentamumdesempenhomuitomelhor. Quando os pesquisadores seguram ambas asxícarasemostramavazia,oscãesrecuperamalógica.Elesveemavaziae,por dedução, procuramembaixo da outra, que contém a bola.Damesmaforma, os cães que não são cão bem socializados— tais como os cães dejardimmantidosaoarlivrenamaiorpartedotempo—tambémenfrentamlogo o problema, enquanto aqueles que vivem dentro de casa maisfrequentementeimploramajudaemsilêncioaosseusdonos.

Serevisitarmosalgunsdostestesdesoluçãodeproblemasnosquaisoslobossesaírammuitomelhorqueoscães,veri icaremosque,nessescasos,odesempenhofracodoscãespodetambémserexplicadopelapropensãoa olhar para os humanos. Testados em suas capacidades de, digamos,conseguir pegar um pouco de comida em um recipiente bem fechado, osloboscontinuamtentandovezesseguidas,eseotestenãotiverelementosarbitrários, com o passar do tempo eles são bem-sucedidos pormeio detentativa e erro. Os cães, em contrapartida, tendem a tentar abrir orecipiente somente até parecer que ele não pode ser Facilmente aberto.Então, eles olham para qualquer pessoa no ambiente e começam aapresentarumasériedecomportamentosparasolicitareatrairaatençãoatéqueapessoacedaeosajudeaabriracaixa.

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De acordo com os testes de inteligência padrão, os cães fracassaramdiante do exame. Acredito, em contrapartida, que eles tenham sidomagni icamentebem-sucedidos.Elesutilizaramuma ferramenta inusitadana tarefa. Nós. Os cães aprenderam isso e nos veem como excelentesferramentasdeusogeral:úteispara insdeproteção,aquisiçãodecomida,companheirismo. Resolvemos os enigmas de portas fechadas e tigelas deágua vazias. Na psicologia popular dos cães, nós humanos somossu icientemente brilhantes para conseguir retirar coleirasirremediavelmente enroladas em árvores; fazer aparecer uma in inidadede dádivas de comida e objetos mastigáveis. Somos muito espertos aosolhosdoscães!No imdascontas,dirigir-seanósconstituiumaestratégiainteligente.Comisso,aquestãorelativaàscapacidadescognitivasdoscãesse transforma: eles são excelentes no uso dos humanos para resolverproblemas, mas não tão bons na solução de problemas quando nãoestamosporperto.

APRENDENDOCOMOSOUTROS

Ontem,porcortesiadasportasautomáticasdeumalojaparaanimais,Pumpaprendeuquequandovocêandanadireçãodeparedes,elasseabremedeixamvocêpassar.Hoje,eladesaprendeutudo,emumaexibiçãoespetacularmencecomovente.

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Uma vez que um problema seja solucionado— uma guloseima oculta édescoberta;umaportainesperadamentefechadaéaberta—,comousemaajudadeumapessoa,ocãosetornarapidamentecapacitadoparaaplicaraquelesmesmosmeios para solucioná-lo repetidamente. Ele identi icou oque estava acontecendo, criou uma resposta e percebeu a conexão entreaqueleproblemaeaquelasolução.Trata-sedotriunfodelee,àsvezes,denosso infortúnio. Ummomento de sucesso ao saltar para cima da pia dacozinha para chegar à origem daquele aroma prazeroso de queijo seráseguidopormuitossaltosempias.Sevocêdáaumcãosentadoumbiscoitopara que ele se sente educadamente, espere ser inundada por essecomportamento. Com isso em mente, é fácil compreender o conselho deque,noadestramentodeumcão,elesódeveserrecompensadoporaquiloquesedesejaqueelerepitacontinuamente.

Taléaperíciadocãonaquiloqueos círculospsicológicosdenominamaprendizado.Nãohádúvidasdequeoscãessãocapazesdeaprender.Fazparte do funcionamento natural de qualquer sistema nervoso ajustar asações, nodecorrerdo tempo, em resposta à experiência, como tambémofazem todos os animais que possuem um sistema nervoso. O termo"aprendizagem"incluidetudo,desdeaaprendizagemassociativausadanoadestramento animal à memorização de ummonólogo shakespeariano e,finalmente,àcompreensãodamecânicaquântica.

A capacidade natural dos cães de dominar novos procedimentos econceitosaparentementecessaantesdeeleentenderoqueéumquark.Oque eles aprendem não é acadêmico nem instrutivo. Além disso, amaiorparte do que pedimos que os cães aprendam só pode ser descrita comorepletadecaprichosearbitrariedade.Certamentequalqueranimalrecém-domesticadoaprenderácomocolocarabocanacomida.Masnormalmenteo que desejamos que os cães aprendam — a obedecer — tem poucaconexão com a comida. Pedimos aos cães paramudar a postura (sentar,saltar, levantar, deitar, rolar), agir de uma forma muito especí ica comrelação a um objeto (pegar meus sapatos, descer da cama), começar ouinterromper uma ação em andamento (espera; não; continua), mudar ohumor(calma;pega!),virememnossadireçãoousedistanciarem(vai;sai;ica).Tudo issopodenão sermecânicaquântica,maséquase tãobizarroquantoessaciênciaparaosdistantescaçadoresdealces.Nadanavidadeumanimal selvagemopreparaparaser solicitadoamantero traseironochãoe icar imóvelatéser liberadoporseu Ok!animado.Énotávelpor si

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sóqueoscãesconsigamaprenderessascoisasaparentementearbitrárias.

FILHOTESVEEM,FILHOTESFAZEM

Certamanhã, ao acordar de bruços, coloquei os braços sobre a cabeça, alonguei as pernas até aponta dos dedos eme apoiei nos cotovelos. Aomeu lado, Pump despertou, acompanhando cadamovimento:esticouaspatasdianteirasealongou-asbemparaa frente;emseguida,endireitouaspatas traseiras também, esticando-se para a frente verticalmente. Agora, nos cumprimentamostodasasmanhãscomalongamentosmatutinosparalelos.Apenasumadenósabanaorabo.

Até mesmo mais interessante do que aprender comandos seria acapacidade de aprender simplesmente observando os outros— cães ouatépessoas. Sabemosque os cachorros conseguemaprender comnossasinstruções, mas será que conseguem aprender com nossos exemplos?Pode ser que seja conveniente a umanimal social comoo cão olhar paraoutros em busca de informações sobre como lidarmelhor com omundo.Emmuitoscasos,noentanto,a respostaparaessaperguntaéclaramentenão. Os cães têm inúmeras oportunidades de nos ver comendoeducadamenteàmesa,masnuncapegamgarfoefacaespontaneamenteese juntam a nós. Ouvir-nos falando não é su iciente para fazê-los falar. Oúnicointeressequeelestêmnasroupaspareceserodemastigá-las,nãoode vesti-las. Amplamente expostos às nossas atividades, os cães parecemnãosabercomonosimitar.

Tudoissonãoconstituiumade iciência,emborapossadistingui-losdosmembros de nossa espécie, imitadores exímios que somos. Quandocrianças ena idade adulta, observamos atentamenteuns aos outrosparasaberoquevestir,oquefazer,comoagir,ecomoreagir.Nossaculturasebaseianaperspicácia:observarmososoutrosagindoparaaprendermosacomonoscomportar.Precisoverapenasumavezcomovocêfazparaabriruma lata com um abridor para que eu também consiga fazê-lo(esperamos!). O que está em jogo é mais importante do que poderiaparecer a princípio, pois o sucesso na imitação, além de dar a você osconteúdos da lata aberta, é uma indicação de uma capacidade cognitivacomplexa. A verdadeira imitação exige que você não apenas possa ver oqueaoutrapessoaestáfazendo,nãosimplesmenteselimiteavercomoosmeioslevamaumfim,mastambémquereproduzaasaçõesdosoutros.

Nesse caso, os cães não são imitadores legítimos, pois mesmo apóstestemunharcentenasdedemonstraçõescomoabridorde latas,nenhumdeles demonstrou interesse em abri-las: o tom funcional desse objeto é

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obscuro para eles. Porém— você poderá se queixar— essa não é umacomparação justa: os cães simplesmente não possuem polegares, nem adestrezaqueelesfornecem,necessáriosparalidarcomabridoresdelatasou talheres. Da mesma forma, eles não têm uma laringe para falar nemprecisamderoupas.Esuaqueixaseriajusta:aquestãoérealmentesaberseos cãespodemserensinados,pelademonstração, a fazeralgonovo—nãoseelessãomini-humanos.

Observeoscãesinteragiremdurantedezminutoseveráoquepareceserumaimitação:umdelesexibeumgravetoimenso;oOutroencontraseugraveto e o exibe também. Se um cão encontrar um lugar para cavar,outros logo se juntarão a ele no buraco cada vezmaior. A descoberta deumcãodequeelesabenadar levaoutrocãoaseautobatizar,derepentese descobrindo nadando também. Ao observar os outros, os cãesaprendem os prazeres especiais das poças de lama e de abrir caminhopelo mato. Pump não emitia nenhum som até que um de seuscompanheiros começou a latir para os esquilos. Subitamente, Pumptambémpassoualatirparaosesquilos.

A questão, então, é se esses são casos de imitação verdadeira ou dealgo diference. O que poderia ser algo diferente é obscuramentedenominado aumento de estímulo. Um pequeno incidente envolvendopássaros e leite entregue a domicílio na Grã-Bretanha em meados doséculoXXilustramelhoressefenômeno.Naquelaépoca,entregaroleitenaportadecasaeralugar-comumnaquelepaís,masapasteurizaçãonãoera.Portanto, o amanhecer era marcado por garrafas de leite de tampametálica deixadas sem qualquer supervisão nas portas das casas, com ocremenotopodagarrafa.GrandepartedapopulaçãodepássarosdaGrãBretanha acordava cedo, junto com os entregadores, uma vez que oamanhecer é um momento propício para cantar. Um desses pássaros, opequenochapimazul, fezumadescoberta: a tampametálicadasgarrafasafundavafacilmentecombicadas,revelandoumadeliciosabebidacremosaque se encontrava imediatamenteabaixodela, Surgiramalgumasqueixassobre garrafas de leite dani icadas; em pouco tempo, esse númeroaumentou; logo, uma quantidade imensa de reclamações veio à tona,Centenas de pássaros haviam aprendido o golpe da garrafa de leite.Atormentados como leite agoradesnatado, os britânicos nãodemorarammuito para encontrar os culpados. Para nós, a questão não é quem,mascomo:comoessadescobertaseespalhouentreoschapinsazuis?Devidoà

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rapidez com que isso aconteceu, parecia provável que alguns pássaros,depois de observar outros pegando o creme, passaram a imitá-los.Espertospassarinhosgorduchos.

Ao fornecer a umapopulação cativa de chapins norte-americanos umconjuntodeelementossemelhantes,umgrupodepesquisadoresobservouo fenômeno ocorrer novamente, passo a passo. Esse estudo sugere umaexplicação mais provável do que a imitação. Em vez de observar eassimilar cuidadosamente todos os movimentos do primeiro pássarofurtador de creme, os outros pássaros simplesmente o viram no topo dagarrafa. Issopode tê-losatraídoemdireçãoaelas.Umavezpousadosemseu topo, e graçasaumcomportamentonatural—bicar—,descobriramsozinhos a possibilidade de furar a tampa metálica. Em outras palavras,eles foram atraídos a um estímulo — a garrafa — pela presença doprimeiropássaro.Talpresençaaumentouaprobabilidadedeelestambémsetornaremladrõesdecreme,masnãodemonstravacomofazê-lo.

Tudo issopodeparecerumadiscussãodeminúcias,masaquiháumadiferença importanteemação.Nocasodoaumentodeestímulo,vejovocêagirdeumaformapoucoclaranaportae,logoemseguida,elaseabre.Seme dirigir até a porta e chutá-la, golpeá-la,marretá-la, é possível que eutambémaabra.Nocasode imitação,observoexatamenteoquevocêestáfazendoesimplesmentereproduzoaquelasações—oatodepegaregiraramaçanetadaporta;aaplicaçãodepressãoapósogiro,eassimpordiante—quelevamaoresultadodesejado.Possofazê-loporqueconsigoimaginarque o que você está fazendo de alguma forma se relaciona com seuobjetivo, com seu desiderato: sair da sala pela porta. O chapim azul, poroutro lado, não precisou icar pensando sobre o que as tampas dasgarrafasdeleitedesejavam—eprovavelmentenãopensou.

MAISHUMANOSDOQUEOSPÁSSAROS

Os pesquisadores quiseram testar se os cães carregadores de gravetosagiam mais como um chapim azul ou mais como um ser humano. Oprimeiroexperimento foiprojetadoparadeterminar seos cães imitariamoshumanosemumasituaçãonaqualaspessoasagiamparaobteralgumobjetodesejado.Emúltimainstância,osestudiososinvestigavamseoscãesconseguiam entender que as ações de uma pessoa funcionam como umademonstração que pode ser seguida se o cão estiver de alguma forma

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inseguroarespeitodecomoconquistarsozinhoaqueleobjetodesejado.

Elesmontaramumexperimentosimplesnoqualumbrinquedoouumpoucodecomidaeracolocadona JunçãodeumacercaemFormadeV.Ocão icavasentadodoladodeForadapontadoV,etinhadetentarpegaracomida.Elenãopodiaatravessaracercadiretamenteoupassarporcimadela,masambasasrotasemtorno—tantodosegmentoesquerdoquantodosegmentodireito—eramigualmentelongas,portanto,igualmenteboas.Quando não lhes era fornecida nenhuma demonstração de como dar avoltanacerca,oscãesfizeramescolhasaleatórias,nãodandopreferênciaaqualquerdosladose,por im,conseguiamchegaraointeriordoV.Porém,quandolheseraoferecidaaoportunidadedeobservarumapessoadandoavoltapelo ladoesquerdo da cerca na direção da recompensa—alguémquefalavaativamentecomelesduranteotrajeto—oscãesobservadoresmudavamocomportamentoimediatamente;elestambémescolhiamoladoesquerdo.

Parece que esses cães estavam praticando a imitação, E o que elesaprenderam pela imitação permaneceu: quando mais tarde um atalhoatravessando a cerca foi introduzido, eles mantiveram a rota aprendidapela observação, ignorando o atalho. Várias outras experiências Foramrealizadasa imdeesclareceroqueexatamenteoscãesFaziam.Elesnãoestavamsimplesmente seguindoo cheiro:marcaruma trilhaodoríferaaolongodosegmentoesquerdodacercanão induziaoscãesasegui-la.* Emvez disso, seu comportamento tinha algo a ver com a compreensão dasaçõesdosoutros.Simplesmenteobservaralguémdaravoltaemtornodacerca silenciosamente não era su iciente para fazer os cães seguirem otrajeto da pessoa: ela precisava chamar o cão pelo nome, atrair suaatenção, gritar. Observar outro cão que fora adestrado para resgatar arecompensa pelo caminho do lado esquerdo também fazia os cãesobservadoresirempelaesquerda.

*Aambivalênciadoscãescomrelaçãoàtrilha,odoríferapode,aprincípio,parecersurpreendente,levando-se em conta todos os nossos comentários sobre suas habilidades olfativas. Porém,simplesmentesercapazderastrearumatrilhanãosigni icaqueeleusemessacapacidadeotempointeiro.Muitasvezes,oscãesprecisamseradestradosparaficarematentosadeterminadoscheiros.

Esse resultado mostrou que os cães são capazes de interpretar ocomportamento de outros como uma demonstração da maneira dealcançar um objetivo. Porém, sabemos pela experiência com nossos cãesquenemtodososcomportamentosrelevantesquemanifestamossãovistos

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como uma "demonstração". Pump pode me observar dando voltas emtorno de cadeiras, livros e pilhas de roupas espalhadas no caminho emdireção à cozinha, mas ela passará diretamente por cima de tudo parapegar a rotamais rápida.Outros testes são necessários para demonstrarse os cães estão realmente se colocando em nosso lugar e não apenaspropensosaseguiraquelehumano,aondequerqueelevá.

Doisexperimentostestaramjustamenteessacompreensãoimitativa,Oprimeiroinvestigouoqueexatamenteoscãesveemnocomportamentodosoutros: os meios ou o im. Um bom imitador veria ambos, mas tambémcalculariaseomeioespecíficonãoseriaaformamaisexpedientedeatingiro im. Desde cedo, as crianças conseguem fazer exatamente isso. Elasimitarão religiosamente — às vezes até era demasia * —, mas tambémpodem mostrar astúcia. Por exemplo, em um clássico experimento, apósobservarumadultoacenderuma luzde forma inusitada—comacabeça— as crianças testadas conseguiram imitar essa nova ação quandosolicitadasafazê-lo.Mas,seoadultoestivessesegurandoalgonasmãos,oqueo tornava incapazdeusá-laspara ligara luz,elasnãoreproduziamamesma ação espontaneamente: usavam as mãos de forma bastanteracional. Seo adultonãoestivesse segurandonadanasmãos, as criançasicavammais propensas a ligar a luz com a cabeça também— inferindo,talvez,aexistênciadeboasrazões,alémdasmãosocupadas,pararealizaressa novamanobra. É como se elas tivessem percebido que as ações doadulto poderiam ser imitadas, reproduzindo-as seletivamente somente namedidaemquepareciasernecessáriofazê-lo.

*Meu exemplo favorito domodelo de imitação exagerada das crianças vem de um experimentoqueopsicólogoAndrewWhiteneseuscolegasrealizaramusandoumacaixalacradacomumdoceapetitosoem seu interior. Eles estavam curiosos para saber se as crianças de três a cinco anosimitariamosmeiosespecí icosqueospesquisadoresdemonstraramparaabriracaixa(envolvendoa remoção de hastes inseridas em aberturas cilíndricas). As crianças observaram, icaramfascinadas e, em seguida, receberam a caixa novamente trancada. Whiten descobriu que quasetodasascriançasosimitaram—easmaisjovensexageradamente—,torcendoahastenãoduasoutrês vezes, mas até centenas de vezes antes de retirá-la. O que elas não compreenderam foiexatamentequalpartedosmeios(torcer)eranecessáriaparachegaraofim(pegarodoce).

Na variação canina desse paradigma, com um bastão de madeirasubstituindo a luz, um cão "demonstrador" foi ensinado a pressionar obastão com a pata para liberar uma guloseima de um dispositivodistribuidoracionadoporumamola.Ospesquisadoresentão izeramocãodemonstradordesempenharsuahabilidaderecém-adquiridanafrentede

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outroscãesqueforamforçadosaobservar.Emumteste,odemonstradorpressionavaobastão enquanto seguravaumabolanaboca; no outro, elenão pegava a bola. Finalmente, foi permitido aos cães observadoresacessarodispositivo.

Vale frisar que os cachorros não são naturalmente atraídos pordispositivosmecânicos,sobretudooscombastõesdemadeira.Epressionarnão é a primeira forma de abordagem da maior parte dos cães aoenfrentaremumproblema: eles podemusar as patas comdestreza,mas,em geral, experimentam o mundo com a boca primeiro e com as patasdepois. Embora possam ser adestrados para empurrar ou pressionar, aprimeira abordagem dos cães em relação a um objeto, conformemencionado, não é a de compreensão intuitiva. Eles irão empurrá-lo;abocanhá-lo;golpeá-lo,Sepuderem,elesopressionarão,cavarãoepularãoem cima dele. Mas decerto não irão avaliar a cena por um determinadotempo e, em seguida, com calma, pressionar o bastão. Dessa forma, aprimeira abordagem dos cães observadores seria especialmenteinteressante:ademonstraçãomudariaocomportamentodeles?

Esses cães testados comportaram-se exatamente como as criançashumanas com os interruptores de luz: o grupo que viu a demonstraçãosem a bola fez uma imitação iel, pressionando o bastão para liberar aguloseima.Ogrupoqueviuodemonstradoragirenquantoseguravaabolanabocatambémaprendeucomopegaraguloseima,masusouaboca(semabola)emvezdaspatas.

O fato de os cães terem reproduzido amesma ação é incrível.Não setrata de simplesmímica, copiar por copiar. Tampouco se trata apenas deumaatraçãopelafontedeatividade.Parecemaisocomportamentodeumanimalqueestácontemplandooqueoutroanimalestáfazendo:qualésuaintenção e como — ou quanto — reproduzir aquele comportamentosozinho,seeletemamesmaintenção,

Seessesexperimentossãorepresentativosdodesempenhodetodososcães,poderíamosdizerqueoscãessão,pelomenos,capazesdeaprenderpelaobservaçãodosoutrosemdeterminadoscontextossociais—quandoacomidaestáemjogo,porexemplo.Umexperimento inalsugerealgoatémaisimpressionante:oscãespodem,defato,sercapazesdecompreendero conceito de imitação. O único animal testado — um cão-guia treinado

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para trabalhar com cegos — já havia aprendido por condicionamentooperante a fazer uma série de ações pouco óbvias quando solicitado:deitar-se; girar em círculos; colocar uma garrafa emuma caixa.O que ospesquisadores desejavam saber era se ele faria essas ações não apenasemrespostaaumcomando,masapósveralguémpraticaraação.Defato,o cão habilmente aprendera a girarem círculos não após o comando Gireem círculos, mas simplesmente após ver um humano praticar a ação,seguidapelasolicitaçãodeimitaçãoFaça!.Elesentãopassaramaexaminaro que o cão faria ao ver um humano praticar uma ação nova ecompletamentebizarra,talcomosaircorrendoparaempurrarumbalanço;atirar uma garrafa; ou repentinamente andar em torno de alguém eretornaraseupontodepartida.

Foi o que ele fez. Era como se aquele cachorro tivesse aprendido oconceito imitar e, conhecendo tal noção, conseguisse aplicá-la mais oumenosemqualquersituação.Paraisso,eleprecisavafazeranalogiasentreo próprio corpo e o de um humano: quando uma pessoa jogava umagarrafacomamão,ocãousavaaboca;eleusouofocinhoparaempurrarobalanço. Esta não é a palavra inal sobre imitação (simplesmente peça aseu cão para copiar seu gesto de empurrar um balanço e verá como osresultados nem sempre são generalizáveis), mas essas capacidadescaninas são sugestivas de algo além da mímica descerebrada. Os cãespodem conseguir imitar em função da mesma capacidade — quasecompulsão — que os possibilita a olhar para nós e a usar-nos paraaprender a agir. É o que vejo nos alongamentos matutinos de Pump aomeulado.

ATEORIADAMENTE

AbroaportafurtivamenteePumpestálá,amenosdecinquentacentímetrosdedistância,andandoem direção ao tapete com algo na boca. Ela para repentinamente e olha paramim por cima dosombros,asorelhasabaixadaseosolhosabertos.Nabocaestáumaformacurvanãoidenti icável.Àmedida que me aproximo vagarosamente, ela abana o rabo bem baixo, abaixa a cabeça e, nomomentoemqueabreabocaparaabocanharmelhor seuachado, euovejo:oqueijodeixadodoladodeforadageladeiraparaatingiratemperaturaambiente.O brie.Aenormerodela inteiradequeijobrie.Elaodevoraemduasmordidas,elásefoielegargantaabaixo.

Pense no cão lagrado roubando comida damesa.., ou olhando para vocêbemnosolhos,pedindoparasair,seralimentado,acarinhado.QuandovejoPump, a boca cheia, de brie olhando para mim, sei que ela fará algummovimento;quandoelamevêolhandoemsuadireção, seráqueela sabeque tentarei frustrá-la? Minha forte impressão é a de que ela sabe: no

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momento em que abro a porta e ela olha paramim, tanto ela quanto eusabemosoqueaoutrafará.

Os estudos da cognição animal chegam ao auge quando abordamexatamenteessetipodecena:suscitaraquestãosobreapossibilidadedeumanimalconceberosoutroscomocriaturas independentescommentesprópriaseseparadas.Essacapacidadeparece,maisdoquequalqueroutrahabilidade,hábitooucomportamento,capturaroquesigni icaserhumano:pensamos no que os outros estão pensando. A isso denominamos umateoriadamente.

Ainda que você jamais tenha ouvido falar sobre a teoria damente, éprovável,mesmoassim,queapossuaemumnívelextraordinanarianenteavançado.Elapossibilitaquevocêpercebaqueosoutrostêmperspectivasdiferentes da sua e, portanto, têm as próprias crenças; conhecimentosdiferentes; uma compreensão distinta do mundo. Sem isso, ocomportamento dos outros, até mesmo os atos mais simples, seriaabsolutamente misterioso, derivando de motivações desconhecidas elevando a consequências imprevisíveis. Ajuda muito ter uma teoria damentequandotentamosadivinharoquefaráumhomemqueseaproxima,boquiaberto, com os braços bem levantados e as mãos acenandofreneticamente. Denominamos a isso uma teoria porque as mentes nãopodem ser observadas diretamente. Por isso inferimos como funciona amentequeinduziuatalaçãooucomentárioapartirdeaçõesoudizeres.

Certamente não nascemos pensando sobre a mente dos outros. Ébastante provável que não tenhamos nascido pensando em quase nada,até mesmo em nossa própria mente. Porém, toda criança normaldesenvolve uma teoria da mente com o tempo, e parece que ela édesenvolvida através dos próprios processos abordados até o momento:prestando atenção nos outros e, em seguida, observando em que elesprestamatenção.Ascriançasautistasmuitasvezesnãodesenvolvemumaou quaisquer dessas habilidades precursoras: elas podem não fazercontato visual, apontar ou se envolver na atenção conjunta — e muitasnemparecemterumateoriadamente.Paraamaiorpartedaspessoas,háapenasumgrandepassoteóricoentreterconsciênciadafunçãodoolharedaatençãoeperceberqueláexisteumamente.

O suprassumo dos experimentos sobre a teoria da mente é

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denominadootestedacrençafalsa.Nesseprojeto,éapresentadoaosujeitotestado, normalmente uma criança, um minidrama encenado porfantoches. Um deles coloca uma bola de gude em um cesto à sua frente,plenamentevisívelparaosujeitoeparaumsegundofantoche.Emseguida,oprimeirofantochedeixaoambiente. Imediatamente,osegundofantochemaliciosamente retira a bola de gude e a coloca em seu cesto. Quando oprimeiro fantoche retorna, o sujeito é interrogado: onde o primeirofantochedeveprocurarpelaboladegude?

Aos quatro anos, as crianças respondem corretamente, percebendoque elas e o fantoche sabem coisas diferentes. Antes dessa idade, noentanto, surpreendente e invariavelmente as crianças erram. Elas dizemque o fantoche procurará pela bola de gude onde ela realmente seencontra—nosegundocesto—mostrandoqueelasnãoestãopensandonoqueoprimeirofantocherealmentesabe.

Projetarumatarefaverbaldefalsacrençaparaanimais,dosquaisnãosepode esperar que comuniquem suas respostas (nemque se envolvamemumdramarepresentadopor fantochesque trocamumaboladegudede lugar), é quase impossível. Portanto, foram desenvolvidos testes nãoverbais.Muitossebaseiamemrelatosesporádicossobrecomportamentosanimais de prestar atenção observados em ambientes selvagens:estratégias de decepção ou competição inteligente. Os chimpanzés são ossujeitos mais comuns, pois, como são parentes próximos dos humanos,espera-se que suas capacidades cognitivas sejam mais semelhantes àsnossas.

Embora os resultados com chimpanzés tenham sido ambíguos,conferindo credibilidade à noção de que somente os humanos têm umateoria da mente plenamente desenvolvida, um elemento discordante foiintroduzido nos trabalhos experimentais. Esse elemento discordante é ocão, cuja atenção para a atenção e a aparente capacidade de lermentesparecem, de acordo com alguns relatos, exatamente iguais ao quechamaríamosdeagircomumateoriadamente.Parapassardateorizaçãoabstrata — sobre a compreensão da mente pelo cão — a uma posiçãocientí ica com embasamento sólido, os pesquisadores começaram a fazeroscãesrealizaremosmesmostestesusadoscomoschimpanzés.

ATEORIADAMENTECANINA

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Eisoqueumcão,quenãosuspeitavaqueparticipavadeumexperimento,encontrou certo dia esperando por ele em casa. Em vez da fartadisponibilidade de suas bolas de tênis favoritas, e com as quais estavaacostumado — todas as bolas na casa haviam sido reunidas —, umaquantidade de pessoas muito maior do que a normal estava em pé,olhando-o ixamente. Tudo bem até então: Philip, o cão em questão, umpastorbelgadetrêsanos,nãoentrouemparafuso.Porém,podeter icadointrigado quando as bolas forammostradas a ele, uma a uma, sendo emseguida colocadas e trancadas emuma de três caixas. Isso era novidade.Fosseumjogoouumaameaça,oque icouclaroeraqueasbolasestavamsendometodicamente colocadas em um lugar diferente do lugar favoritodele:bemnaboca.

Quando liberadopelodono,Philipnaturalmenteseencaminhoudiretopara a caixa onde vira uma bola sendo escondida e cheirou a caixa. Issoacabou sendo a atitude correta, pois estimulou os humanos a bradaremalegremente, abrirema caixa e entregarema ele abola. Contudo,mesmodepoisdeabocanharabola,ocãodescobriuqueaspessoasemtornodelecontinuavam a tirá-la e a guardá-la em uma ou outra caixa — logo, elecontinuou a brincar. Em seguida, eles começaram a trancar as caixas e acolocar as chaves em outro lugar, demodo que tudo levasse aindamaistempo após ele selecionar a caixa certa: alguém precisava encontrar achave, levá-la até a caixa e abri-la. O capricho inal envolvia uma pessoaque fechavaacaixa,escondiaachaveedepoissaíadasala.Outrapessoaentrava— certamente uma pessoa que, como todas as outras por perto,seriacapazdeusaressascoisas-chaveparaabriressascoisas-fechadura.

Esse era o momento que os pesquisadores esperavam: eles queriamsaberseocãoviaapessoanovacomodesinformadasobrealocalizaçãodachave.Nessecaso,então,nãosóPhilipteriaqueindicarqualcaixacontinhaa bola adorada, mas também precisaria ajudar a pessoa a encontrar achavequepermitiriaacessaraquelabola,

Em tentativas repetidas, foi mais ou menos o que o cão fez: semprepaciente,Philipolhavaparaondeachaveforaescondidaousedirigiaparalá.Observequeelenãoaabocanhavaeabriaacaixa:oqueseriaumfeitoe tanto, mas até mesmo o admirador de cães mais apaixonado admitiriaque isso di icilmente aconteceria. Em vez disso, Philip usava os olhos e abocaparasecomunicar.

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OcomportamentodePhilippoderiaserinterpretadodetrêsmaneiras:funcional,intencional,conservador.Nainterpretaçãofuncional,oolhar ixodocãoserviacomoinformaçãoparaapessoa,tenhaeletidoessaintençãoou não. Na intencional, o cão de fato tinha a intenção de fazê-lo; olhavaporque sabia que a pessoa desconhecia a localização da chave. Nainterpretaçãoconservadora,oanimalolhavapensativamente,umavezquealguémestiverarecentementeondeachaveseencontrava.

Osdados fornecema interpretação.Elesmostramquea interpretaçãofuncionaléde initivamenteverdadeira:oolhar ixorealmenteserviacomoinformaçãoparaapessoapróxima.Noentanto,ainterpretaçãointencionaltambém é legítima: o cão olhava para a localização da chave com maisfrequência quando apessoana sala junto comeles desconhecia onde elaestava — era como se ele quisesse informá-la com seu olhar ixo. Estaúltima interpretação contradiz a interpretação conservadora. Philippareciaestarpensandonasmentesloucasdospesquisadores.

Esseéapenasumcão—talvezumespecialmenteperspicaz.Lembra-se do experimento da súplica realizado com chimpanzés e cachorros? Aocontráriodoschimpanzés,todososcãestestadosimediatamenteseguiramoconselhodoconhecedor(daspessoassemosolhosvendadosoucomumbaldenacabeça)sobrequalcaixacontinhaacomida.Parabénsparaessescães que, dessa forma, sempre encontraram a comida dentro da caixa.Esse resultado parece bom para a teoria da mente canina: eles agiramcomosetivessempensadonosestadosdeconhecimentodosestranhosqueapontarampara a caixa diante deles. Porém, após esse aparente sucessocognitivo, algo bizarro aconteceu. Quando o mesmo teste foi repetidodiversas vezes, os cãesmudaram de estratégia. Começaram a escolher oadivinhadortantasvezesquantooconhecedor.Issosigni icaqueeleseramvisionários e depois icaram burros? Embora os cães façam quasequalquer coisa por comida, tal explicação não faz sentido. Talvez elaindiquequeaprimeirarodadafoiumgolpedesorte.

A melhor interpretação é que o desempenho dos cães nessa tarefacomprovaumpontometodológico. Podehaver outras pistas usadaspeloscãesparatomarsuasdecisões;pistasquesão,paraeles,tãofortesquantoa presença ou a ausência do adivinhador é para nós. Considere, porexemplo, que, do ponto de vista do cachorro, todos os humanos são, emgeral, extremamente instruídos sobre as fontes de comida. Estamos

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sempreemtornodela:cheiramosacomida,abrimosefechamosumacaixafriarepletadecomidaodiainteiro,eàsvezesatétemoscomidacaindodenossos bolsos. Essa é uma característica nossa tão bem conhecida quepode ser di ícil derrubá-la com base em umas poucas tentativas duranteuma tarde. Essa hipótese é apoiada pelo fato de que os cães realmenteusaramas pessoas para tomar suasdecisões: elesnunca escolheramumaterceira caixa—a que não foi escolhida nempelo adivinhador nempeloconhecedor.

Contudo,qualquerquesejanossainterpretaçãodosresultados,oscãesnão estão se esforçandomuito para nos provar que possuemuma teoriadamente.Éclaroqueumadasdi iculdadesdeelaborarexperimentoscomqualquer animal é que, à medida que ica mais complicado testar umahabilidademuitoespecí ica,oprocedimentocorreoriscodesetornarumacena extraordinariamente estranha para o animal. Seria possível sugerirque a demonstração de uma grande confusão por parte dos sujeitostestadosnãoconstituiumabsurdo.Frequentemente,elessãocolocadosemsituações bizarras, que são, na realidade, intencionalmente diferentes detudo que já viram.As pessoas aparecem combaldes na cabeça, os testessão intermináveis, tudo é anormal. Mesmo assim, os cães às vezesconseguemdesempenharbemasatividadesquelhessãoimpostas.

Noentanto,ocomportamentonaturaldeles—emumambientenatural— constitui uma indicação melhor. O que os cães fazem — sem aspeculiaridades de caixas trancadas contendo comida e de humanos nãocooperativos — para estimular uma re lexão mais profunda? Ocomportamentomaisrepresentativovaiapareceraolidaremnaturalmentecomoutroscãesoucomhumanos.Seéútilsocialmenteparaumcãolevarem conta o que outros cães estão pensando, a capacidade para fazê-lopodeterevoluído—eaindapodeservisívelnasinteraçõessociais.Foiporessa razão que passei um ano observando cães brincarem: em salas deestareconsultóriosveterinários,emcorredoreseaoar livre,empraiaseparques.

FAZENDOOJOGODAMENTE

Pumpaparecenoscantosdetodososvídeos:emumdeles,elasaltaagilmenteparaevitaracolisãocomumcãoqueseaproximamuitorápido—emseguida,persegue-oenquantoelecorreparaforado enquadramento do vídeo. Em outro, ela está deitada ao lado de outro cão, ingindomordidascom a boca aberta. Emum terceiro, ela tenta e não consegue se juntar a dois cães que brincam;quandoelesfogem,elaficaabanandoorabosozinhaemfrenteàcâmera.

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Preciso me corrigir: tive a grande sorte de poder passar um anoobservando cães brincarem, O que é chamado, de forma apropriada, deuma brincadeira de briga entre dois cães competentes e atléticos é umaginástica maravilhosa de se ver. Os animais brincalhões parecem secumprimentar de forma breve antes de repentinamente se atracarem,dentes àmostra, tombando juntos emumaqueda livreperigosa, pulandoem cima e por cimaumdooutro, corpos curvados e enroscados.Quandosubitamente param, por causa de um ruído próximo, podem ser vistoscomo exemplos de tranquilidade. Basta apenas uma olhada ou uma pataerguida no ar para que se envolvam novamente na confusãocompartilhada.

Brincar pode parecer exatamente aquilo que os cães fazem, mas abrincadeira tem uma de inição cientí ica muito especí ica. A brincadeiraanimal— a ciência a irma— é uma atividade voluntária que incorporacomportamentos exagerados e repetidos, longos ou curtos na duração,variados em termos do esforço envolvido e combinados de formas poucotípicas.Elausapadrõesdeaçãoquepossuempapéis identi icáveisemaisfuncionais emoutros contextos.Nãode inimos abrincadeiradessa formaapenas para retirar prazer dela; nós a de inimos para reconhecê-la comcon iança. A brincadeira também tem todos os atributos de uma boainteraçãosocial:coordenação,alternânciae,casonecessário,autolimitação—brincarnoníveldoparceiro.Cadaparticipantelevaemconsideraçãoascapacidadeseocomportamentodooutro.

A funçãodabrincadeiraanimaléumpoucoenigmática.Amaioriadoscomportamentosdosbichosédescritaemtermosdecomoelesfuncionamparamelhoraracapacidadedesobrevivênciado indivíduooudaespécie.A pesquisa sobre a função da brincadeira é paradoxal, uma vez que elaparece um comportamento que claramente não tem função: quando elatermina,nenhumacomidafoiganha,nenhumterritóriodominado,nenhumparceirosexualconquistado.Emvezdisso,doiscãesdesmoronamnochãode forma ofegante, línguas penduradas, um diante do outro. Então seriapossívelsugerirqueafunçãoé sedivertir,mas issonãoévistocomoumafunçãoverdadeira,umavezqueosriscossãodemasiadamentegrandes.Abrincadeira exige muita energia, pode causar ferimentos, e, na selva,aumenta o perigo de predação animal. A luta de brincadeira pode setornarverdadeira,causandonãoapenasferimentos,masconvulsãosocial.Seus riscos tornam aindamais convincente o argumento a favor de uma

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funçãorealeocultadabrincadeira:deveserterrivelmenteútilbrincar, jáqueessecomportamentosobreviveuaoprocessoevolutivo.Épossívelquesirva como treinamento: um contexto no qual as habilidades ísicas esociais podem ser aperfeiçoadas. Estranhamente, no entanto, os estudosdemonstraramqueabrincadeiranãoéessencialparaapro iciênciaadultano que diz respeito às habilidades praticadas É possível que sirva comotreinamento para eventos inesperados. Realmente, parece que abrincadeira frívola e imprevisível é deliberadamente procurada. Noshumanos, ela faz parte do desenvolvimento normal— do ponto de vistasocial, ísico e cognitivo. Nos cães, pode ser o resultado de ter energia etempode sobra— e de ter donos que usufruamumprazer indireto dasacrobaciasdeseuscães.

Abrincadeiraentreoscãeséparticularmenteinteressanteporqueelesbrincammaisdoqueosoutroscanídeos,inclusiveoslobos.Ebrincamatéaidadeadulta,queéraroparaamaioriadosanimaisquebrincam,inclusiveos humanos. Embora ritualizemos a brincadeira nos esportes coletivos eem maratonas solitárias de videogames, como adultos sóbrios é rarodarmos trancos, carrinhos e tapinhas em nossos amigos, ou fazermoscaretas um para o outro. O cão idoso da vizinhança, que manca e semovimentadevagar, parecedescon iadodiantedo entusiasmodos jovensilhotesque seaproximamdele,masmesmoassimeledevezemquandodátapasebrincademorderaspatasdoscãesmaisjovens.

Em meus estudos sobre a brincadeira canina, acompanhei cães comuma câmera de vídeo e controlei minhas risadas de prazer pela alegriadelesporumtemposu icientepararegistrarsessõescujaduraçãovariavade alguns segundos a muitos minutos. Após algumas horas, a diversãoparava, os cães eram espremidos em carros e eu voltava para casare letindo sobre o dia. Sentava em frente ao computador e examinava osvídeosemumavelocidadeextremamentelenta.Lentaosu icienteparavercadaquadro—trintadosquaisperfazemumsegundo—individualmente.Só nessa velocidade é que pude realmente enxergar o que tinhaacontecidodiante demeus olhos.O que eu via não era uma repetição dacena por mim presenciada no parque. Nessa velocidade, pude ver osacenos mútuos que precediam a caça. Vi as sacudidelas de cabeça e assalvasde latidos, tão rápidasquenãoeramreconhecíveis em tempo real.Pudecontarquantasmordidaseramnecessárias,duranteocursodedoissegundos,antesqueocãomordidorespondesse,Conteiquantossegundos

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sepassavamantesqueumalutainterrompidareiniciasse.

E,maisimportante,procureiverquaisoscomportamentosqueoscãesapresentam, e quando. Observar a brincadeira desconstruída nessesmicrossegundos possibilitou-me compilar um catálogo extenso doscomportamentos de cada cão: uma transcrição da brincadeira. Observeitambém a postura deles, sua proximidade um do outro e a direção paraondeolhavamacadamomento.Emseguida,desconstruídadessaforma,abrincadeira podia ser reconstruída para ver que comportamentoscombinavamcomqueposturas.

Acima de tudo, meu interesse centrava-se em dois tipos decomportamento: os sinais de brincadeira e as formas de atrair atenção.Estas, como vimos, são óbvias: servem para atrair atenção.Especi icamente,sãoatosquealteramaexperiênciasensorialdeoutroser— alguém cuja atenção você está ansioso para atrair. Pode ser umainterrupçãodo campovisual, comoquandoPumprepentinamenteen iaacabeça entre mim e o livro que seguro, Pode ser a perturbação doambienteauditivo:abuzinadeumcarrotemessafunção,eos latidosdoscãestambém.Seessesmétodosnãofuncionam,aatençãopodeserobtidapormeio da interação ísica: umadasmãosno ombro; umapata no colo;ou, entre os cães, um empurrão com o quadril ou uma leve mordida notraseiro.Nitidamente,muitodoque fazemos servedealguma formaparaatrair a atenção, mas nem todos os comportamentos são igualmentee icientesparatal im.Chamarpelonomeemvozaltapodeserumaformadechamaraatenção,masnãoseestivermosemumestádiodefutebolnosminutos inais do jogo. Nesse caso, um método mais extremo serianecessário.Damesmaforma,aatençãodoscãespodesermaisoumenosfácil de conseguir. Entre eles, o que eu chamo bem na sua cara — seapresentarnafrenteemuitopróximodofocinhodooutro—ée icazparachamar a atenção, mas não se o cão estiver participando de umabrincadeira envolvente com outra pessoa. Nesse caso, meios maispoderosossãonecessários—comoaquelescãesquecirculamemvoltadedois companheiros que brincam, latindo continuamente por minutos,(Melhor talvez interpor-se em meio aos latidos com algumas mordidasleves no traseiro deles, se estivermos extremamente ávidos parainterromperojogo.)

Ossinaisdebrincadeira,osoutroscomportamentos, sãopedidospara

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brincar ou avisos de interesse em brincar; eles poderiam ser traduzidoscomoalgosimilaraVamosbrincarouQuerobrincarouatémesmoPronto?Pois estou prestes a brincar com você. As palavras especí icas não são tãoimportantes quanto seu efeito funcional: os sinais são previsivelmenteusados para começar e continuar a brincar com os outros. Eles são umademanda social, não apenas uma delicadeza social. Em geral, os cãesbrincamjuntosdeformaviolentaeaumavelocidaderápida.Vistoqueelescom frequência agem de maneiras que poderiam facilmente ser malinterpretadas—morderumaooutronofocinho;montaremcimadooutropor trásoupela frente; fazerooutrocão tropeçar—,o caráter lúdicodesuasaçõesprecisa icarevidente.*Sevocênãosinalizarantesdemorder,empurrarou se colocarpor cimado companheiro,nãoestábrincandodeverdade,estáagredindo.Umataquenoqualapenasumparticipantepensaquesetratadebrincadeiradeixadeserdivertido.Todososdonosdecãesqueospasseiamjuntocornoutrossabemoqueacontecenessecaso:umalutadebrincadeiraviraumaluta.Semosinaldebrincadeira,umamordidaéumamordida,dignaderancorouretribuição.Comosinal,umamordidaéapenaspartedojogo.

* Considerando-se a importância das garantias visuais normais de que o jogo ainda é um jogo,talveznãosurpreendaqueumabrincadeirade lutaemtriosejamuitomais raradoqueumaemdupla.Tal comonaconversação,algoéperdido—umsinalde jogoaqui,um alertaali—quandotodos estão conversando ao mesmo tempo. Em geral, somente os cães que se conhecembemconseguembrincaremtrios.

Quase toda luta de brincadeira começa comumdesses sinais. Omaiscaracterísticoéareverênciadebrincadeira,noqualocorpodocãosecurvadiante de um parceiro desejado. Um cachorro curvado sobre as pernasdianteiras,bocaabertaedescontraída,comotraseiroelevadoeoraboaltoe abanando, está fazendo de tudo para incitar alguém a brincar. Mesmosemrabo,vocêpode imitaressapose:espereumarespostaàaltura,umamordidadelicadaeamiga,oupelomenosumsegundoolhar.Doiscãesquesão companheiros de brincadeira costumeiros podem usar uma formasucinta de reverência: a familiaridade permite abreviar a formalidade,exatamente comoacontece entre humanos conhecidos. Se Como vai você?viraTudobem?,areverênciadebrincadeirapodeserencurtadadeformaasetornaroanteriormentemencionadotapinhadebrincadeira—aspatasdianteiras golpeando o chão no início da reverência; a exibição de bocaaberta — boca aberta, mas sem mostrar os dentes; ou a reverência dacabeça—umasacudidadacabeçacomabocaaberta.Atémesmoarfaremsequênciarápidapodeserumconviteparabrincar.

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Éaformacomooscãesusamjuntosessescomportamentos—sinaisdebrincadeiraedeatrairaatenção—quepoderiarevelarourefutarofatode que eles têm uma teoria damente. Damesma forma que a tarefa dacrença falsamostra que algumas crianças pensam sobre o que as outraspessoas sabem, enquanto algumas não pensam, o uso da atenção nacomunicação é signi icativo. A pergunta de pesquisa que procureiinvestigar emmeus dados sobre cães brincalhões foi a seguinte: eles secomunicam,usandosinaisdebrincadeira,de formaintencional—atentosàatençãodesuaplateia?Elesusaramformasdeatrairaatençãoquandonão conseguiram atrair a atenção de seu parceiro de brincadeira?Exatamentecomoeramusadosessesempurrões, latidosereverênciasdebrincadeira?

É di ícil fazer um relato bom do que aconteceu em uma brincadeiraquevocêacaboudeassistirEupoderia facilmentecriarumahistóriabem

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simplista sobre dois cães procagonistas: Bailey eDarcycorriam ao redorum do outro...Darcyperseguia Bailey e latia... Ambos morderam o focinhoumdooutro... em seguida, se separaram. Só que essa história despreza osdetalhes, tais comoa frequência comqueDarcy eBailey deixaramque ooutro levasse vantagem, jogando-se intencionalmente no chão de costaspara seremmordidos, ou usandomenos força do que poderiam em umamordida. Também não deixaria claro se houve um revezamento emmorderesermordido,perseguireserperseguido.E,mais importante,seeles haviam sinalizado um para o outro em ummomento em que o sinalpodia ser visto e respondido com uma brincadeira ou desengajamentorápido.Paraisso,éprecisoolharparaosinstantesentreossegundos.

Oquedescobri foi incrível.Esses cãesenviavamsinaisdebrincadeiraapenas em momentos muito especí icos. No início, sinalizavam de formaprevisível, e sempre para um cão que estava olhando em sua direção, Aatenção podia ser perdida uma dezena de vezes em uma sessão debrincadeira típica. Um cachorro pode se distrair com um odor delicioso,comum terceiro cão que se aproximados dois que brincam, como donoqueseafasta.Oqueseconsegueobservaréapenasumapausaseguidadorecomeçodabrincadeira.Naverdade,nessescasos,umasequênciarápidade passos precisa acontecer, Para que a brincadeira não sejapermanentemente interrompida, o cão interessado deve atrair a atençãodeseuparceironovamentee,emseguida,convidá-loparabrincardenovo.Os cães que observei tambémemitiram sinais de brincadeira quando elahavia sido interrompida e eles desejavam recomeçá-la, quaseexclusivamente dirigidos aos cães capazes de ver o sinal. Em outraspalavras, eles se comunicavam intencionalmente com uma plateia queconseguiavê-los.

Melhorainda,emmuitoscasos,oregistrodadireçãoparaondeoscãesolhavam mostrava que um deles, que havia parado de brincar, estavadistraído—olhandoemoutradireção,brincando comoutrapessoa.Umaopçãopara seuparceiro anterior seria fazer a reverência de brincadeirarepetidamente, esperando atrair alguém para brincar. No entanto, muitomais e iciente seria fazer exatamente o que eles faziam: usar uma formade atrair atenção antes de fazer a reverência. Importante: a forma deatrair atenção que eles usavam combinava com o nível de desatenção deseus companheiros mosrrando que eles compreendiam algo sobre"atenção". Mesmo no meio da brincadeira, eles recorriam a formas mais

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brandas de atrair atenção — um bem na cara ou um recuo exagerado ;pular para trás enquanto olha para o outro Cão— quando a atenção docompanheiro estava apenas ligeiramente desviada. Se um companheirodesejado estivesse em pé olhando para ele, um desses recursos poderia,de fato, ser su iciente para despertá-lo— tal como um aceno de oi? nafrentedeumamigoqueestá sonhandoacordado.Porém,quandoooutrocãoseencontravamuitodistraído,olhandoparaoutrolado,ouatémesmobrincandocomoutrocão,elesbuscavamobteratençãodeumaformamaisdireta—mordidas, empurrões e latidos. Nesses casos, aquele oi? amenonão servia. Em vez de usar ummétodo de força bruta, tentando atrair aatenção por qualquer meio necessário, o cão escolhia formas que eramapenas su icientes, mas não excessivas, para conquistar a atençãodesejada. Esse era um comportamento verdadeiramente atencioso dapartedosbrincalhões.

Somente após essas formas de atrair atenção funcionarem é que oscães sinalizavam o interesse na brincadeira. Em outras palavras, eles seutilizavamdeumasequênciadeOperações:primeiro,atrairaatenção;emseguida,enviarumconviteparaparticipardabrincadeiradebriga.

Isso é exatamente o que fazem os bons teóricos da mente; re letemsobreoestadodeatençãodaplateiaesófalamcomosquepodemouviroucompreendê-los.Ocomportamentocaninoparecetentadoramentepróximoademonstraruma teoriadamente.Mashá razõespara se acreditarquesuas capacidades sejam diferentes das nossas. Em primeiro lugar, emambososexperimentoseemmeuestudosobrebrincadeiras,nemtodososcãesagiramigualmentedeformaatenciosa.Algunssãopoucocortesesemsuaabordagem.Latem,nãoconseguemresposta—eentãolatemelatemelatem e latem. Outros buscam obter atenção quando ela já foi atraída ouemitem sinais de brincadeira quando a brincadeira já foi sinalizada. Asestatísticas mostram que a maioria dos cães age atenciosamente, masexistem muitas exceções. Não conseguimos determinar ainda se odesempenhodessesúltimosé abaixodamédiaou se é indicativodeumacompreensãoincompletadaespécie.

Podeserumpoucodeambos.Emvezdecontemplaramenteportrásdo cão, é possível que a maioria dos cães simplesmente interaja. Acapacidade de usar formas de captar a atenção e sinais de brincadeirasugere que eles podem ter uma teoria damente rudimentar:sabem que

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existe algum elemento mediador entre outros cães e suas ações. Umateoria damente rudimentar é como possuir um traquejo social aceitável.Pensarapartirdasperspectivasdosoutrosoajudaabrincarmelhorcomeles.E,pormaissimplesquepossaser,épossívelqueessahabilidadefaçaparte de um incipiente sistema de justiça entre cães. A habilidade deobservar apartirdeoutrasperspectivas fundamentanossa concordânciacomumcódigodecondutaentrehumanosqueémutuamentebené ico.Aoobservar as brincadeiras, notei que os cães que violavam as regrasimplícitas de atrair atenção e sinalizar a brincadeira — por exemplo,simplesmente intrometendo-senasbrincadeirasdosoutrossemseguirosprocedimentosapropriadosdeformaatenciosa—eramdesprezadoscomocompanheirosdediversão.*

*Outraindicaçãodapercepçãodejustiçaporpartedoscãesprovémdeumnovoexperimentoquedemonstraqueaquelesqueveemoutrocãoserrecompensadoporterrealizadoalgumato—darapataquandosolicitado—,masquenãosãorecompensadospelomesmoato,acabamrecusando-sea dar apata.(No entanto, nenhum cão recompensado icou comovidocom a clara injustiça dasituaçãoapontodecompartilhararecompensaganhacomoparceirodesafortunado...)

Isso signi ica que seu cão está consciente do que você está pensandoneste momento ou mesmo interessado nisso? Não. Isso signi ica que elepodeperceberqueseucomportamentore leteoqueestáemsuamente?Sim. Usada para se comunicar conosco, essa é uma grande parte daaparentehumanidadedoscães.Àsvezes,elaéatémesmousadadeformadesprezível,lembrandomuitoocomportamentodoshumanos.

OQUEACONTECECOMOSCHIHUAHUAS

Agora podemos revisitar owol hound e a chihuahua que conhecemos noinício deste livro. Seu encontro na encosta do morro não é menosinteressanteagora,masde fato sintetizaperfeitamentea lexibilidadee avariedade dos comportamentos da espécie. A explicação para taisbrincadeirascomeçanahistóriadeseusancestraissociais,oslobos.Elasetornaaparentenashorasdesocializaçãoentrehumanosecães;nosanosdedomesticação;nosdiálogosdosdiscursosecomportamentosentrenós.Éexplicávelnomundosensorialdocão:ainformaçãoqueeleobtémdeseufocinho, oque seusolhosveem.Estápresentena capacidadedos cãesdere letir sobre simesmos;pode serexplicadoemseuuniversodiferentee

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paralelo.

E está presente nos sinais especí icos usados uns com os outros. Aabordagem de traseiro levantado do wol hound: a reverência debrincadeira, um convite a um jogo — deixando bem claro sua intençãoardente de brincar com o pequeno cão, e não comê-lo. Em troca, achihuahua o cumprimenta, aceitando o convite. Na língua dos cães, é osu iciente para que um veja o outro como um igual na brincadeira. Ostamanhosmuitodiferentesnãosãoirrelevantes,eeisporqueowol houndse agacha: ele se coloca em desvantagem. Ao se colocar na altura dapequenacadela—vendoapartirdopontodevistadela—eexpondo-seaseusataques,elenivelaocampodebrincadeira.

Elesaguentamocontatocorpoacorpo.Ocontatodiretoconstituiumadistânciasocialrazoávelparaoscães.Elesmordemcomimpunidade:cadamordidaéretribuídacomoutraouexplicadacomumsinaldebrincadeira— e cadamordida é controlada. Quando o hound bate na cadelinha comforçaexagerada,empurrando-aparatrás,elapode,porummomento,servistacomoumapequenapresaemfuga,Masadiferençaentrecãeselobosé que os primeiros conseguem suprimir seus instintos predatórios. Ohound,aocontrário,retiraapancadafortecomumtapinhadebrincadeiradedesculpas,umaversãomaisbrandadareverência.Funciona:elacorrediretoparaconfrontá-lo.

Finalmente, quando o hound é freado e afastado pelo dono, achihuahua lança um latido para seu companheiro de brincadeira queparte.Setivéssemoscontinuadoaobservá-los,tivesseeledadomeia-volta,poderíamos tê-la visto abrir a boca ou dar um saltinho — lançandochamadosnaesperançadecontinuarabrincadeiracomoamigogigante.

NÃOHUMANO

Oestudodascapacidadescognitivasdoscãesemergiudeumcontextodapsicologiacomparativa—contexto,que,porde inição,buscacompararascapacidadesanimaiscomashumanas.Oexercício,muitasvezes,acabaseperdendo em minúcias: eles se comunicam, mas não com todos oselementosda linguagemhumana;elesaprendem, imitameenganam,masnão da forma como fazemos. Quanto mais aprendemos sobre as

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habilidades animais,mais temosde enveredar porminúcias paramanteruma linhadivisóriaentreoshumanoseosbichos.Todavia,é interessanteobservarqueparecemosseraúnicaespéciequededica tempoaoestudodc outras espécies — ou, pelo menos, a única que lê ou escreve livrossobreelas.Nãopegamalparaoscãesnãofazê-lo.

O mais revelador é como os cães desempenham tarefas que avaliamhabilidades sociais que pensávamos serem dominadas apenas peloshumanos.Osresultados,casosirvamparamostraroquantooscãessãoounão parecidos conosco, têm relevância para nosso relacionamento comeles. Quando consideramos o que pedimos a eles e o que deveríamosesperardeles, compreendersuasdiferençascomrelaçãoanóssó iránosajudar.Osesforçosdaciênciaparaencontrardistinções ilustram,maisdoquequalqueroutracoisa,aúnicadistinçãoverdadeira;nossoimpulsoparaa irmar nossa superioridade, tecer comparações e julgar diferenças. Oscães,mentesnobres,nãosãoassim.Aindabem.

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DentrodeumcãoApersonalidadedelaéinconfundíveleonipresente:narelutânciaemescalarosdegrausíngremesparasairdoparque—depoisavançandoàminhafrenteforteeaudaciosa;nosgrandessurtosdecorreria e farejo na juventude; em seu deleite quando retorno de uma longa viagem, mas semexageros; no jeito de veri icar minha presença durante nossos passeios, mas sempre mantendoalguma distância. Para um cão queé real e totalmente dependente de mim, ela é incrivelmenteindependente:suapersonalidadeéforjadanãoapenasnainteraçãocomigo,masnosmomentosemque perambula ao ar livre sem mim, explorando sozinha os espaços. Ela tem um ritmo de vidapróprio.

Apesar da abundância de informações cientí icas a respeito do cão —sobre como eles veem, cheiram, ouvem, olham, aprendem— há lugaresparaosquaisaciêncianãoviaja.Causa-meperplexidadequealgumasdasperguntas que mais frequentemente têm sido feitas a mim sobre cães,além das que eu mesma tenho sobre meu próprio cachorro, não sejamabordadas pelas pesquisas. Nas questões de personalidade, experiênciapessoal,emoçõesenasqueenvolvamoconteúdodeseuspensamentos—simplesmente sobre o que eles pensam — a ciência se cala. Todavia, oacúmulodedadossobreoscãesforneceumaboabaseapartirdaqualsepodeextrapolarebuscarasrespostas.

Asperguntassão,emgeral,dedois. tipos:Oqueo cão sabe? ecomo éserumcão?.Portanto,primeiroperguntaremosoqueoscãessabemsobreos assuntos de interesse humano. Depois, poderemos imaginar asexperiências — os umwelten — das criaturas que possuem esseconhecimento.

I—OQUEUMCÃOSABE

A irmaçõessobreoqueessesanimaissabemsãofeitasconstantemente.Écuriosoqueelastendamaagrupar-seemtornodoacadêmicoedoridículo.As primeiras incitam os pesquisadores a perguntar se um cão sabe, porexemplo,comofazersomas.Emumexperimento,oscãesolharampormaistempo— revelando surpresa— quando havia mais ou menos biscoitos,exibidos por trás de uma tela, do que os que haviam visto seremescondidos lá — indicando que eles tinham prestado atenção naquantidade escondidaepercebidoquandohaviaumadiscrepância.Bingo:cãescontadores.

Os outros tipos de a irmação sãomais abrangentes; os cachorros são

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éticos, racionais,meta ísicos.Admito terpensadoseriamente—emaisdeumavez—queminhacadelapareceagirdeformairônica(sejadeformaintencional ou não).* Um ilósofo antigo sustentava que os cãescompreendiam silogismos disjuntivos. Como comprovação, apresentou oexemplo por ele observado de que ao acompanharemum animal até umcaminhoquesedividiaemtrês,oscãesforamcapazes,mesmosemusarofaro, dededuzirque, seumanimalnão foi peloprimeiroou segundodostrêscaminhos,eleteriaidopeloterceiro.**

* Como no dia em que ela passou 15minutos cavando um buraco para esconder um valorizadopedaçodecourocrumastigado,Sóque,aocavar,elaacaboucriandoalgomaisparecidocomumapilha. Resultado: o couro cru não foi, de fato, escondido, mas orgulhosa e visivelmente exibido(provavelmenteemfunçãodeuminstintodeocultaçãoimperfeitamentedesenvolvido.).Damesmamaneira,épossível icarimaginandoseelaentendecomoironia(oucomomágica)omeushowdeabriramãodiantedelaparamostrarqueaguloseimaqueeutinhaantesnãoestámaislá.

** Essa poderia ser outra forma de explicar a capacidade de Rico de escolher, em uma pilha debrinquedos,aquelecomonomedesconhecido:eleselecionavaobrinquedoquenãoreconhecia.

Começar com um interesse pela matemática ou pela meta ísica eescorregar para habilidades mais simples não nos leva muito longe nacompreensãodos cães,Mas comece coma abordagemdeles de cheirar omundo; sua atenção impressionante para os humanos; e o conhecimentodos diversosmeios pelos quais eles apreendem omundo— e é possívelquesejamoscapazesdedescobriroqueelessabem.Emparticular, talvezpossamos responder se eles experimentam a vida como nós; se pensamsobre o mundo como nós. Cuidamos de nosso próprio trajetoautobiográ ico pela vida, tratando dos assuntos cotidianos, tramandorevoluçõesfuturas,temendoamorteetentandofazerobem.Oqueoscãessabem a respeito do tempo, delesmesmos, do que é certo e errado, dasemergências, das emoções e da morte? Ao de inir e desconstruir essasnoções—tornando-ascienti icamenteexamináveis—podemoscomeçarachegaraumaresposta.

Diasdecão(sobreotempo)Entroemcasa,Pumpmefazumasaudaçãoabreviada,executaumapiruetainsólitae, emseguida,saiemdisparada.Duranteodia,elalocalizoutodososbiscoitosquedeixeiparaelaespalhadospelacasa e esperou até agora para consumi-los; devora aquele que balançava na beira da cadeira,aqueleemcimadamaçanetadaporta,atémesmoaqueleescondidoemcimadeumapilhadelivros—queeladelicadamentepegaelevaembora.

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Osanimaisexistemno tempo,usamo tempo;masseráqueelessentemotempo? Certamente. Em algum nível, não existe diferença entre aexistência no tempo e a experiência do tempo: o tempo precisa serpercebido para ser usado. Suspeito que o que muitas pessoas queremdizer ao perguntar se os animais sentemo tempo é: eles têmosmesmossentimentos sobre o tempo que nós? Um cão pode sentir a passagem deumdia?E,mais importante, eles icamenfadadosodia inteiroquandoosdeixamosemcasasozinhos?

Os cães têm muita experiência do dia, mesmo que não tenham apalavra dia para descrevê-lo. Somos a primeira fonte do cão deconhecimento dos dias: organizamos o dia dele junto com o nosso,fornecendo marcos e cercando-o com rituais. Por exemplo, fornecemosinúmeraspistassobreohoráriodasrefeições.Dirigimo-nosàcozinhaouàdespensa.Arefeiçãodeletambémpodeocorreraomesmotempoemqueanossa; então começamosadescarregaro refrigerador, espalhando cheirodecomidaefazendoumaalgazarracompanelasepratos.Sedermosumaolhada para o cão e nos dirigirmos a ele de forma amorosa, qualquerambiguidaderemanescenteéeliminada.Eoscãessãocriaturasdehábitopor sua própria natureza, sensíveis às atividades que se repetem. Elesformam preferências — lugares para comer, dormir e urinar comsegurança—eobservamasnossaspreferências.

Mas,alémdetodasessaspistasvisíveiseolfativas,ocãonaturalmentesabequeestánahoradojantar?Conheçodonosdecachorrosqueinsistemque é possível acertar seus relógios por seus animais. Quando o cão sedirige à porta, é precisamente a hora de sair; quando ele se dirige àcozinha, tenha certeza, é hora de comer. Imagine retirar todas as pistasqueo cão temsobre ahoradodia: todosos seusmovimentos, quaisquersonsambientais,atéa luzeaescuridão,Aindaassimocãosabequandoéhoradecomer.

Aprimeiraexplicaçãoéadequeoscãesusamumrelógiodeverdade— ainda que interno. Fica no chamado marcapasso de seu cérebro, queregula as atividades de outras células corporais ao longo do dia. Háalgumas décadas, os neurocientistas sabem que os ritmos circadianos, osciclos de sono e vigilância que experimentamos todos os dias, sãocontrolados por uma parte do cérebro localizada no hipotálamodenominada núcleo supraquiasmático (SCN, na sigla em inglês). Não são

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apenas os humanos que possuem um SCN: os ratos, pombos e cãestambém—todososanimais,inclusiveosinsetos,quepossuemumsistemanervoso complexo. Esses e outros neurônios do hipotálamo trabalhamjuntos para coordenar diariamente a vigília, a fome e o sono.* Privadototalmentedos ciclosde luz e de escuridão, ainda assimpassaríamosporciclos circadianos; semo sol,demorariapoucomaisde24horasparaumdiabiológicosercompletado.

* Com o avanço da idade, os cães dormemmais, mas entrammenos no sono paradoxal — commovimento rápido dosolhos(REM,na sigla em inglês)—doquena juventude.Os cientistas temteorias, mas nenhuma explicação de initiva para os cães sonharem — e eles sonham de modovívido, caso a agitação dos olhos, as unhas curvadas, o rabo abanando e ouivardurante o sonosejam uma indicação. Como nos humanos, uma teoria considera os sonhos como o resultadoacidental do sonoparadoxal, o que em si é um tempode restauração corporal. Poroutrolado, ossonhos podem funcionar como um tempo para treinar, na segurança da própria imaginação,interaçõessociaisefaçanhasfísicasfuturas,ouexaminarinteraçõesefaçanhaspassadas.

Esta manhã, eu a ouvi latindo durante o sono— o latido abafado e ofegantedo sonho. Sim, elasonhade fato.Adoro seus latidosde sonho, falsamente severos,muitas vezes acompanhadospelacontraçãodaspatasoupelatorçãodoslábiosemumrosnadoquerevelaosdentes.Seeuobservarportemposuficiente,vereiosolhosdançando,oapertarperiódicodesuasmandíbulas,ouvirei seuschoramingos diminutos. Osmelhores sonhos inspiram a abanação de rabo— imensos golpes dealegriaqueacordamamimeaela.

Nóshumanosvivemosodiadeacordocomnossas ideias sobreoquetípica ou idealmente acontecerá ao longo dele — refeições, trabalho,brincadeiras,conversas,sexo,percursodeidaevoltaaotrabalho,sonecas—etambémdeacordocomociclodenossosritmoscircadianos.Contudo,emfunçãodenossaatençãoaosprimeiroselementos,àsvezesquasenãoobservamosquenossoscorposseguiamumatrajetóriaregularaolongododia.Essasonolêncianomeiodatarde,adificuldadeemlevantaràscincodamanhã — ambas são devido às nossas atividades con litarem com osritmos circadianos. Retire algumas dessas expectativas humanas e terá aexperiência do cão: os sentimentos corporais da passagem do dia. Narealidade, sem as expectativas sociais para distraí-los, eles podem icarmaissintonizadoscomosritmosdocorpo,dizendo-lhesquandolevantarequandocomer.Segundoseumarcapasso,elessãomaisativosjustoquandoaescuridãocedelugaràauroraereduzemsensivelmentesuasatividadesàtarde,mostrandoumaexplosãodeenergiaaoanoitecer.Semmuitomaispara fazer — nenhuma papelada para revirar, nenhuma reunião paraparticipar —, os cães cochilam ao longo de todo aquele período desonolênciavespertina.

Mesmo sem horários de refeições regulares, o corpo passa por ciclos

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relacionados à alimentação. Logo antes da hora de comer, os animaistendem a ser mais ativos — correndo para todos os lados, lambendo,salivando—esperandopelacomida.Essapercepçãodahoradecomersemanifesta quando um cão nos persegue incessantemente com a bocaofeganteeosolhossuplicantes.Finalmente,descobrimosqueestánahoradealimentá-lo.

Portanto, é possível de fato acertar o relógio pelo estômagodo cão. E,atémais impressionante, os cãesmantêmumrelógio, operadoporoutrosmecanismosaindanãoplenamente compreendidos, queparecem ler o ardodia.Nosso ambiente local—o ar na sala emquenos encontramos—indica(setivermoso indicadorcorreto)ondeestamosnodia.Embora,emgeral,nãopossamossenti-lo,esseéexatamenteotipodealteraçãoqueumcãoconsegueobservar.Seestivermoscuidadosamenteatentos,poderemosobservarasgrandesmudançasdodia:oesfriamentonomomentodopôrdosolouatémesmoahora, registradapelaquantidadede luzquepassapela janela. Só que as mudanças que acontecem durante o dia sãoin initamente mais sutis. Usando aparelhos sensíveis, os pesquisadoresconseguiram detectar suaves correntes de ar que se formam ao términodosdiasdeverão:araquecidoquesobepelasparedesedeslizaao longodo tetono interiorda casa, derramando-seno centroda sala e caindo aolongo das paredes externas. Não se trata de uma brisa, nem mesmo deuma baforada ou elevação do ar que seja perceptível. No entanto, amáquinasensívelqueéocãoevidentementedetectaesse luxodearlentoe inevitável, talvez com a ajuda de seus bigodes, bem posicionados pararegistraradireçãodequalquercheironoar.Sabemosqueelesconseguemdetectá-lo porque também podem ser enganados: levado para uma salaaquecida,umcãotreinadoparaseguirumrastrodecheiropodeprocurarprimeiro junto às janelas — quando o rastro está, na verdade, maispróximodocentrodasala.

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Ela é paciente. Como espera por mim. Esperaenquantoentro na quitanda local, olhandomelancolicamentee, em seguida, se acalmando. Espera em casa pelo meu retorno, aquecendo acama, a cadeira, o local próximo à porta. Espera que eu termine o que estou fazendo antes desairmosparapassear;queeuterminedefalarcomalguémdurantenossopasseio;queeupercebaquando está com fome. Ela esperou que eu inalmente percebesse onde ela gostava de seracariciada.Esperouqueeu,finalmente,começasseadescobri-la.Obrigadaporteresperado,fofinha.

Acapacidadedoscãesparadetectarumaduraçãodetempoespecí icaainda não foi testada, mas a das abelhas grandes foi. Em um estudo, asabelhasforamtreinadasparaesperarduranteumintervalodetempo ixoantesdeen iarofocinhoemumminúsculoburacoembuscadeumpoucode açúcar. Seja qual for o intervalo, elas aprenderam a se conter porexatamenteessetempo...enadamais.Quandoseéumaabelhaesperandopor água açucarada,metade de umminuto émuito tempo para esperar.Porém, elas bateram pacientemente as muitas patas e conseguiramesperar. Outros animais sujeitos de muitos experimentos — ratos epombos—fazemomesmo:calculamotempo.

É provável que seu cachorro saiba exatamente a duração de um dia.Porém,seesseforocaso,ocorre-nosumpensamentohorrível:oscãesnãoicariamterrivelmenteentediadosporpermanecersozinhosemcasaodiainteiro? Como podemos determinar se um cão está entediado? Em setratando de outros conceitos cuja aplicabilidade aos cães gostaríamos deconhecer, primeiro precisamos compreender o que é o tédio. Qualquercriança lhe dirá quando está entediada,mas os cães não— pelomenos,

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nãoverbalmente.

Érarootédioserdiscutidonaliteraturacientí icanãohumana,porqueé uma das classes de palavras cuja aplicação a animais é consideradaduvidosa."Ohomeméoúnicoanimalquepodeficarentediado",declarouopsicólogosocialErichFromm.Oscãesnãomerecemtamanhasorte.Otédiohumano raramente ica sujeito à análise cientí ica, talvez porquesimplesmentepareçaumapartedaexperiênciadevida,nãoumapatologiaa ser analisada. A própria familiaridade com ele nos dá uma forma dede ini-lo: nós o vivenciamos como um aborrecimento profundo, uma totalfaltadeinteresse.Eoreconhecemosnosoutros:naenergiaesmorecida,noaumento de movimentos repetitivos, no declínio de todas as outrasatividadesenaatençãorapidamentedecrescente.

Com essa de inição, o subjetivo se torna objetivamente identi icável,tanto nos cães quanto nos humanos, A energia esmorecida e a atividadereduzida são simples de reconhecer: menos movimento e mais tempodeitado e sentado. A atenção pode logo se transformar em períodos desono. Os movimentos repetitivos incluem comportamentos estereotípicos(despropositada e interminavelmente repetidos) ou autodirecionados.Giramosospolegaresquandoestamosentediados;contamosospassos.Osanimaismantidosemjaulasáridasemumzoológicomuitasvezesmarchamfreneticamente para cima e para baixo — e, apesar de não terempolegares, têm comportamentos equivalentes; lamber oumastigar a peleouopeloconstanteeobsessivamente,arrancarasprópriaspenas,coçarasorelhasouorosto,balançarparaafrenteeparatrás.

Então, seu cão está entediado? Se você volta para casa e encontrameias e sapatos ou roupas íntimas aparentemente inquietas, quemigrarammagicamenteparaumlugarumpoucodistantedeondevocêasdeixou, ou lembretes rasgados, do tamanho de uma mordida, que vocêjogou no lixo ontem — a resposta é tanto Sim,seu cão está entediado,quantoNão,pelomenosnãoduranteaquelahoramaníacademastigação.Imagine uma criança reclamandoNão tenho nada para fazer, este éexatamente o caso da maioria dos cães que icam sozinhos em casa.Deixadosemcasasemnenhumaocupação,elesencontrarãoalgocomquese ocupar. Paramanter a sanidademental de seu cão e a integridadedesuasmeiasasoluçãoémuitosimples:dê-lhesalgoparafazer.

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Mesmoquevocêvolteeencontreacasaumpoucodesarrumada,umacavidadequentenaalmofadaproibidadosofá,oquetambéméprováveléqueeleaindaestávivoe,emgeral,comumaaparênciaboa.Conseguimosdeixá-los sozinhos e entediá-los porque eles, em geral, se adaptam àssituações sem muita reclamação. Na verdade, os cães se consolam comhábitos,comocorrênciasprevisíveis—exatamentecomonós.Seassimfor,entãootédiodelespodeserabrandadopelaresignaçãoaofamiliar.Eelespodem até saber de quanto tempo precisam, em geral, para icaraguardandoporvocêemanimaçãosuspensa.Essaéumadasrazõespelaqual seu cão pode estar esperando agitadamente junto à porta mesmoquando você tenta entrar silenciosamente em casa ao inal de umdia detrabalho. Essa é a razão por que deixomais guloseimas escondidas peloapartamento quando sei que icarei muito tempo fora. Digo a Pump quevouestarforaequeestoudeixandoalgoparaocuparseutempo.

Oíntimodocão(sobreelesmesmos)

O melhor recurso cientí ico proposto para averiguar se os cães pensamsobre eles mesmos— se têm consciência de si mesmos— é simples: oespelho.Umdia,oprimatologistaGordonGallupolhouparasuaimagemnoespelho enquanto se barbeava e se perguntou se os chimpanzés queestudava também ponderavam sobre suas imagens nos espelhos.Certamente usar um espelho para se autoexaminar— alisando a camisasobreabarriga,passandoamãodelevenoscabelosrebeldes,testandoumsorrisorecatado—éumamostradaconsciênciadenósmesmos,Antesdeicarmos conscientes, quando criancinhas, não usamos os espelhos damesmaformaqueosadultos.Poucotempoantesdeascriançaspassaremnostestesdeteoriadamente,elascomeçamaconsiderarsuasimagensnoespelho.

Gallupimediatamentecolocouumespelhodetamanhonaturaldoladodeforadajauladoschimpanzéseobservouoqueelesfariam.Nocomeço,todosagiamdamesmaforma:seapavoravametentavamatacaroespelho.

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De repente, parecia, havia outro chimpanzébempertode sua jaula; essasituação precisava ser confrontada imediatamente, Apesar do resultadosemdúvidaconfuso—a imagemespelhadaparecia retaliar,apenasparaemseguidaasituaçãoseresolversemgrandesproblemas—,osprimeirosdias foram cheios de demonstrações sociais dirigidas a esse chimpanzénovo e deslumbrante. Após alguns dias, no entanto, os animais pareciamchegar a uma conclusão. Gallup observou-os enquanto se aproximavamdos espelhos e começavamausá-los para examinar os próprios corpos erostos; limpando os dentes, fazendo bolhas e caretas para a imagem noespelho. Eles estavam especialmente interessados nas partes do corponormalmenteinacessíveisaoolhar:aboca,otraseiro,ointeriordanarina.Para se certi icarem de que estavam pensando sobre as imagens doespelho como eles mesmos, Gallup inventou o teste da "marca":discretamente aplicou uma pequena quantidade de tinta vermelha nacabeçadoschimpanzés.Osprimeirossujeitosprecisaramseranestesiadospara receberem a aplicação da marca; mais tarde, os pesquisadoresa ixaram a marca enquanto realizavam a limpeza cotidiana ou seencarregavamdos cuidadosmédicos dos animais. Quando os chimpanzésmarcados se postaram novamente em frente ao espelho, eles viam umchimpanzé marcado de vermelho e roçavam o local na própria cabeça,abaixando asmãos para examinar a tinta com a boca, Eles passaram noteste.

Há um grande debate sobre a possibilidade de esse comportamentoindicar que os chimpanzés pensam sobre simesmos, se têmum conceitode eu, se são capazes de se reconhecer, se são autoconscientes ounenhumadasrespostasanteriores *—sobretudotendoemvistaquetudoisso con litaria comnossas ideias sobre os animais caso, de repente, lhesconcedêssemos autoconsciência. Mas os testes do espelho continuaramjunto aos debates e até a presente data os gol inhos (ao moverem oscorpos para explorar a marca) e pelo menos um elefante (usando atromba) passaram no teste; já os macacos não. E os cães? Não existeregistro de terem passado nesse teste. Eles nunca se examinam noespelho.Aocontrário,elessecomportammaiscomoosmacacos:àsvezes,olhamsua imagemnoespelhocomose fosseoutroanimal,outrasvezesaobservamsemmaioresreações.Emalgunscasos,oscãesusamosespelhospara obter informações sobre o mundo: ver você se aproximarsorrateiramente atrás deles, por exemplo. Porém, não parecem ver afigurarefletidacomoumaimagemdelesmesmos.

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*Quandoosanimaispassamnoteste,oscéticosdestacamafalácialógicadaconclusão;ofatodeoshumanosautoconscientesusaremumespelhoparaseexaminarnão implicaqueusarumespelhorequerautoconsciência.Quandoosanimaissãoreprovadosno teste,odebate tomaoutradireção:nãohánenhumaboarazãoevolutivapelaqualosanimaisdeveriamexaminaralgonãoirritantenasprópriascabeças,mesmoreconhecendoasimesmos.Emambososcasos,essetestecontinuaaseromelhor teste de autoconsciência desenvolvido até hoje, além de usar apenas um equipamentosimples.

Háalgumasexplicaçõesparaesse tipodecomportamentocanino.Elespodem de fato não ter qualquer percepção de si mesmos — portanto,nenhuma percepção de quem pode ser aquele cão vistoso no espelho.Porém,comoindicaodebate,essetestenãoéuniversalmenteaceitocomoconclusivo de autoconsciência; logo, nenhum deles pode ser consideradoapto a determinar de initivamente a falta de autoconsciência. Outraexplicação possível para o comportamento dos cães é que a ausência deoutras pistas — sobretudo as olfativas — que venham da imagem doespelholevaoscãesaperderemointeresseeminvestigá-la.Umfantásticoespelhoodoríferoqueespalhasseoodordo cão enquanto a imagemdeleestivessere letidaseriaobjetomelhorparaesseteste.Umaoutraquestãoenvolve o fato do teste se basear em um tipo especí ico de curiosidadesobre simesmo; aqueleque levaoshumanos a examinaremoquehádenovo em seu corpo. Os cães podem estar menos interessados no que évisualmente novo do que naquilo que é palpavelmente novo: elesobservamsensações estranhas e as investigamcomabocaquemordiscaou a pata que arranha.Um cãonão tem curiosidade em saber por que aponta de seu rabo preto é branca, ou qual a cor de sua coleira nova. Amarcaprecisaservisível,enotá-laprecisavalerapena.

Todavia, existem outros comportamentos caninos sugestivos de seuautoconhecimento. Na maioria das ações, os cães avaliam corretamentesuascapacidades.Eles se surpreendemaopulardentrodaáguaatrásdepatos e descobrirem que são nadadores naturais. Eles nos surpreendemaosaltarporcimadeumacerca—oquerealmentepodemsercapazesdefazer. Poroutro lado, é comumouvirmosqueos cães não sabem um fatomuito básico sobre eles mesmos: seu tamanho. Cães pequenosempertigam-se para cães enormes: os donos declaram que eles "achamque são grandes". Alguns donos de cachorros grandes, que toleram queelessentememseuscolos,tambémafirmamqueseuscães"achamquesãopequenos". Em ambos os casos, os comportamentos associados conferemmaiorcredibilidadeànoçãodequeeles defatosabemotamanhoquetêm:o cão menor compensa seu pequeno porte proclamando suas outras

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qualidades em uma voz incomumente alta; o cão grande criado no colomantém esse contato íntimo apenas enquanto este é tolerado; logo eleencontra,emoutro lugar,umaalmofadaapropriadaaoseu tamanhoparasentar-se.

Tanto cães pequenos quanto grandes tacitamente reconhecem apercepção do próprio tamanho. Pode parecer improvável que issosigni ique que eles ponderam sobre as categorias grande e pequeno.Porém,observecomoelesagemcomrelaçãoaosobjetosnomundo.Algunscães tentarãoerguerumaárvorederrubada,masamaioriadoscãesquetem o costume de carregar gravetos escolhe aqueles que possuem umtamanhosimilaremtodasasoportunidades,comosemedisseoquepodeserapanhadoecarregadocomaboca.Daliemdiante,todososgravetosnocaminho de um cão curioso são rapidamente avaliados; grande demais?grossodemais?finodemais?

Outros indícios sugestivos de que os cães conhecem seu tamanhosurgem em suas brincadeiras de luta. Umdos traçosmais característicosdas brincadeiras caninas é que todo cão socializado consegue, em geral,brincarcomquasequalqueroutrocãosocializado,oque incluiopug,queatacaoscalcanharesdomastim,apesardebaternaalturadosjoelhosdele.Como vimos, os cães grandes sabem como moderar a força de suasbrincadeiras comcompanheirosmenores—emuitasvezeso fazem.Elesevitamdarmordidasmaisfortes,pulamcommenosintensidade,esbarramem seus companheiros frágeis com mais gentileza. Podem se expor aoataque por vontade própria. Alguns cãesmaiores regularmente se jogamno chão, revelando a barriga para que os pequenos companheiros osmaltratem por um tempo— o que chamo de autonocaute. Os cães maisvelhos e experientes ajustam seus estilos de brincar quando estão comfilhotes,queaindanãoconhecemasregrasdojogo.

Abrincadeiraentrecãesdeestaturasdiferentesmuitasvezesnãoduramuito,mas é geralmenteodono, nãoo cão, que intervémparapará-la.Amaioria dos cães socializados é consideravelmentemelhor do quenós naleitura das intenções e capacidades uns dos outros. Eles resolvem amaioria dos mal-entendidos antes mesmo dos donos perceberem o queestáacontecendo.Nãoéotamanhoouaraçaqueimporta;éaformacomoelesfalamunscomosoutros.

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Os cães trabalhadores fornecem outra indicação acerca do que essesanimais sabem sobre si mesmos. Os cães pastores, criados desde asprimeiras semanas de vida com carneiros, não desenvolvemcomportamentos de carneiro. Eles não berram, gritam ou ruminam; nãodãocabeçadasagressivas,nemseamamentamdeovelhas,comofazemoscarneiros, A convivência leva os cães a interagir socialmente com asovelhas — usando comportamentos sociais característicos dos cães.Aquelesqueestudamospastoresobservam,porexemplo,queelesrosnamparacarneiros.Orosnadoéumacomunicaçãocanina:ocãoestátratandoocarneiromais como um cão do que como uma possível refeição. A únicafalhadessescãeségeneralizardemais:nãoapenaseles,dealgumaforma,têmcertezadaprópriaidentidade—elespensamquetodososoutrossãocães também. É possível considerar essa fraqueza como sendo bemhumana: eles falam com os carneiros como se fossem cães, exatamentecomonósfalamoscomoscãescomoseelesfossemhumanos.

Entreatacar,recuperargravetosecuidardeovelhas,seráqueoscãessentam e pensam: Caramba, sou um belo cão de porte médio, não sou?Certamentenão: talre lexãocontínuasobretamanho,statusouaparênciaé característica dos seres humanos. Porém, os cães realmente agem comconhecimento deles mesmos nos contextos onde tal conhecimento é útil.Eles respeitam(namaiorpartedo tempo)os limitesde suas capacidadesísicas e olharão suplicantes para você quando lhe pedirem para pularumacercamuitoalta.Umcãosaltarádiscretamenteemtornodomontedeexcrementoencontradonochão: ele reconheceo cheiro comosendo dele.Seocãoponderasobresimesmo,pode-setambémimaginarseelepensasobreelemesmonopassado—ouno futuro: seeleestá silenciosamenteescrevendoumaautobiografianacabeça.

Osanoscaninos*(sobrepassadoefuturo)Aodobrarmosaesquina,Pumppara.Elasemovecomosetivessecheiradoalgoameiopassoatrás.Reduzoavelocidadeparasatisfazê-la,elasevoltaedobraaesquina.Faltamainda12quarteirões,umpequenoparque,umbebedouroeumacurvaàdireitaatéchegarmoslá,maselaconheceessecaminho.Elajávinhameolhandoháalgunsquarteirõese,comaquelacurva inal,estácon irmado.Estamosindoaoveterinário.

*Nãoseiseaorigemdomitodosanoscaninos—quea irmaqueoscãesvivemoequivalenteaseteanos para cada um dos nossos — alguma vez foi encontrada. Imagino que seja uma deduçãoinversaapartirdaduraçãoesperadaparaumhomem(setenta e tantos anos) comparada com aduração esperada da vida canina (dez a quinze anos). A analogia é mais conveniente do queverdadeira.Nãoháessaequivalêncianavidareal,excetoqueambosnascemosemorremos.Oscães

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se desenvolvem muito rapidamente, andando e comendo por conta própria nos primeiros doismeses;ascriançasadquiremtalcapacidadecommaisdeumano.Emumano,quasetodososcãesjá são atores, sociais exímios, capazes de circular com facilidade pelo mundo dos cães e doshumanos.A criançanormal chega lá aosquatroou cincoanos.Apartir daí, o desenvolvimentodocãodesaceleraaomesmotempoemqueodesenvolvimentohumanodispara.Se izermosquestãodeestenderacomparação,épossíveldefenderatesedeumaescalamóvel:emtornodedezparaumnosprimeirosdoisanos;emseguida,diminuindoparamaisoumenosdoisparaumnosúltimosanos.Porém,osrealmenteempenhadosemfazertalcomparaçãodeveriam,aocalcularessesanos,levar em consideração intervalos de períodos críticos; o desempenho em testes cognitivos; adiminuiçãodascapacidadessensoriaiscomaidadeeaexpectativadevidadediferentesraças.

Ospsicólogosrelatamqueaspessoascomamemóriamaisextraordinária— capazes de recitar perfeitamente uma série de centenas de númerosaleatórioslidosparaelasdeumasóvez,assimcomodeidenti icartodososmomentos em que o leitor piscou, engoliu ou coçou a cabeça — são, àsvezes, as mais torturadas por suas lembranças, O complemento de umamemória tão perfeita pode ser a estranha incapacidade de esquecerqualquer coisa. Todos os eventos, todos os detalhes, são empilhados nosmontesdelixoquesãoassuasmemórias.

A imagemdo lixo transbordante, a agregação do dia que já passou, ébastante apropriada quando consideramos a memória de um cão. Sim,porque, se existe algo na mente do cão, é aquela maravilhosa pilhaperfumada que preservamos de modo implicante em nossa cozinha,inacessívelaelecomoumaformaespecialdetortura.Nessapilhaestãoosrestosdetantosjantares,oqueijofétidodescobertonofundodageladeira,roupasquefedemtantohátantotempoquenãopodemmaisservestidas.Tudovaiparalá,masnadaestáorganizado.

A memória do cão é assim? Em algum nível é possível que seja. Háindícios claros de que os cães têm memória. Seu cão claramente oreconhecequandovocêchegaemcasa.Tododonosabequeseucachorronão esquecerá onde aquele brinquedo preferido foi deixado, ou a quehoras o jantar deve ser servido. Ele é capaz de inventar um atalho acaminho do parque; lembrar os bons postes para urinar e os lugarestranquilos para defecar; identi icar os cães amigos e inimigos com umolhareumafungada.

No entanto, a razão porque ainda fazermos a pergunta "Os cães têmmemória?"éadequeanossamemóriaémaisdoqueamanutençãodeumregistro dos itens valiosos, dos rostos familiares e dos lugares em queestivemos. Existe uma veia pessoal que percorre nossa memória: aexperiência sentida do passado, colorida com a antecipação do futuro.

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Portanto, a pergunta é se o cão tem uma experiência subjetiva dasprópriasmemórias damesma formaque temos— se ele pensa sobre osacontecimentosdesuavidare lexivamente,como seus acontecimentosemsuavida.

Embora sejam em geral céticos e reservados em seuspronunciamentos,oscientistasmuitasvezesagemimplicitamente,comoseoscãestivessemmemóriaexatamenteigualànossa.Hámuitooscachorrostêm sidousados comomodelos para o estudodo cérebrohumano.O quesabemossobreadiminuiçãodememóriacoma idadeseoriginadetestesrealizados com beagles. Os cães têm uma memória "funcional" de curtaduração que — se presume — funciona exatamente da forma comoensinamoslivrosdidáticosdepsicologiareferindo-seaofuncionamentodamemória humana.O que equivale a dizer que, emqualquer determinadomomento, estamosmaispropensosa lembrarapenasdaquiloparaoqualdirecionamos um "holofote" de atenção. Nem tudo que acontece serálembrado. Somente aquiloque repetimos e ensaiamospara lembrarmaistardeseráarmazenadocomomemóriaduradoura.E,semuitacoisaestiveracontecendoaomesmotempo,comcertezalembraremossomentedeumaparte — os primeiros e os últimos acontecimentos são mais bemguardados.Amemóriadocãofuncionadamesmaforma.

Há uma limitação para essa semelhança. A linguagem faladamarca adiferença.Umarazãopelaqual, comoadultos,não temosmuitas—talveznenhuma — lembranças verdadeiras da vida antes de nosso terceiroaniversárioresidenofatodeque,naquelaépoca,aindanãodominávamosa linguagem falada e não éramos capazes de construir, pensar earmazenar nossas experiências. É possível que, embora tenhamosmemórias ísicas e pessoais de eventos, pessoas e até de pensamentos ehumores, aquilo que queremos dizer por "memórias" seja algo facilitadosomentepeloadventodacompetêncialinguística.Seesseforocaso,entãooscães,talcomoascrianças,nãotêmessetipodememória.

Entretanto,oscãescertamenteselembramdeumaquantidadegrandedeexperiências: seusdonos, suacasa,o lugarporondepasseiam.Elesserecordam de inúmeros outros cães; conhecem a chuva e a neve após asexperimentaremapenasumavez;sabemondeencontrarumbomaromaeum bom graveto. Sabem quando não podemos ver o que estão fazendo;lembram-sedoquenos fez icar zangadosdaúltimavezquemastigaram

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algo; sabem quando podem subir na cama e quando estão proibidos defazê-lo. Eles só sabem disso porque aprenderam — e o aprendizado éapenasamemóriadeassociaçõesoudeeventosaolongodotempo.

De volta, então, à questão da memória autobiográ ica. De muitasformas, os cães agem como se pensassem sobre suas memórias como ahistóriapessoaldesuavida.Àsvezes,agemcomoseestivessempensandosobreopróprio fururo.Anãoserqueestivessedoenteoudormindo,nãohaviaquasenadaquepudesse impedirPumpde comerosbiscoitosparacachorros—e,apesardisso,elafrequentementeseprivavadelesquandosozinha em casa, optando por aguardar meu retorno. Mesmo quandoacompanhados, os cães regularmente escondem ossos e ocultam outrasguloseimaspreferidas;umbrinquedopodeserabandonadocomaparentedespreocupação para somente ser procurado na semana seguinte. Suasaçõespodemmuitasvezesestarvinculadasaeventosdoprópriopassado.Eles evitam terrenos que machucaram suas patas; cães que foramrepentinamente agressivos; pessoas que agiram de maneira instável oucruel. E revelam familiaridade com criaturas e objetos que encontramrepetidas vezes. Alémdo rápido reconhecimento dos novos donos, comopassar do tempo os ilhotes acabam por reconhecer os visitantes dosdonos.Elesbrincammelhor,esemamenorcerimônia,comoscãesquejá

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conhecem há bastante tempo— como se tivessem sido cunhados juntos.Essescompanheirosdelongadatanãoprecisamusarsinaisdebrincadeiraelaborados: eles usam sinais telegrá icos próprios, abreviados emmerosinstantes,antesdeseenvolveremcompletamenteumcomooutro.*

* Isso é semelhante ao que foi denominadoritualizaçãoontogenética: a coformaçãopor indivíduosdeumcomportamentoadquiridoao longodotempo—apontodeatémesmoapartemais inicialdo comportamento estar impregnada de signi icado para eles. Nos humanos, a elevação de umasobrancelha de um amigo para outro pode substituir um comentário falado; entre os cães, comovimos,olevantardecabeçarápidopodesubstituirtodaumareverênciadebrincadeira.

É bastante desanimador descobrir que nosso conhecimento sobre apercepção autobiográ ica do cão não avançou além da a irmação deSnoopyhámeioséculo:"Ontem,eueraumcão.Hoje,souumcão.Amanhã,provavelmente,aindasereiumcão."Nenhumestudoexperimentalavaliouespeci icamente as re lexões do cachorro a respeito de seu passado oufuturo.Porém,algunsestudosrealizadoscomoutrosanimaisexaminaramparte do que poderia ser considerada a consciência autobiográ ica. Porexemplo, uma teste com a Aphelacomacalifornica, uma ave quenaturalmente guarda comidapara consumoposterior,mostrouoquenoshumanospodesechamardeforçadevontade.Seeuestivercomdesejodebiscoitos de chocolate, e alguém me dá um pacote, é extremamenteimprovável que eu os guarde até o dia seguinte. As aves mencionadasforamanteriormenteensinadasque,aoreceberemumacomidapreferida— o equivalente delas aos nossos biscoitos de chocolate —, nãoreceberiam nada para comer na manhã seguinte. Apesar de podermossuporquehaviaum forte interesse emdevorar a comida imediatamente,elasguardaramalgumaporçãoparaconsumirnodiaseguinte.Eeu iqueisemmeusbiscoitos.

Poderíamosperguntarseoscãesagemdamesma forma,Se impedidode comer pela manhã, seu cão começa a armazenar comida na noiteanterior?Se issoocorresse,seriaumacomprovaçãosugestivadequeelessão capazes de planejar o futuro. Como já sabemos — quandoencontramosobjetosnãoidenti icáveisnãocomidosdentrodeembalagensguardadas na geladeira —, nem toda comida armazenada é igualmenteboaapósalgumtempo,Seseucãoenterraumossoouoescondenocantodosofátodososmeses,durantetrêsmeses,seráquevailembrarqualéomais antiga, a mais podre e o mais fresco? Deixando de lado quaisquer

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cheiros poderosos provenientes de seu sofá, isso é pouco provável. Seconsiderarmos o ambiente canino, ica óbvio que eles simplesmente nãoprecisam usar o tempo dessa Forma, uma vez que, ao contrário dos,Aphelocomas,elessãoalimentadosperiodicamente,Alémdisso,aseparaçãoda comidadeacordocomadatadevalidade,ou suaeconomiaparamaistarde— quando estamos com fome nesse momento —, pode ser umatarefadí ícilparaumanimaldescendentedecomedoresoportunistas,queingeremtudoquantopodemquandohácomidadisponível,suportando,emseguida, longos períodos de jejum quando não há essa disponibilidade.Alguns sugerem, de forma plausível, que o comportamento de enterrarossos está ligado a uma compulsão hereditária: guardar comida paratemposdifíceis.*Acomprovaçãodequeumcãoconseguedistinguiroossomais fresco daquele que apodreceu—ou de que guarda uma porção sóparadesfrutá-lamais tarde—sustentariaessahipótese.Émaisprovávelque,namaiorpartedotempo,oscãesnãopensemsobreotempoquandoestãopensandoemcomida.Umossoéumosso—enterradoounaboca.

*Alguns lobos,mesmoquando ilhotes, instintivamenteenterramosfocinhosna terra; largamumosso; cavam com ofocinhou mpoucomais; e, em seguida, com orgulho, deixam-no obviamentevísíveldentrode um buraco malfeito. Quando adultos, eles so isticam o comportamento erecuperam a comida guardada —emboranão existam dados que comprovem que essarecuperaçãosejaafetadapelotempoemqueoossoficouenterrado.

Por outro lado, a falta de indícios sobre a relação temporal dos cãescomosossosnãosigni icaqueelesnãodiferenciemopassadodopresenteedofuturo.Aoencontrarumcachorroquetenhaumavez—masapenasuma vez — sido agressivo, o outro cão primeiro será cauteloso e, aospoucos, como tempo,maiscorajoso.Eoscãescertamentepreveemoqueestá no futuro próximo: com uma expectativa crescente no início de umpasseio que conduz à loja de comida canina; ou na ansiedade durante opasseiodecarroqueindicaumavisitaaoveterinário.

Algunspensadorestratamoscãescomoseelesnãotivessempassado;seres invejavelmente não históricos e felizes porque não possuemmemória.Porém,estáclaroqueelessãofelizesapesardeteremmemória.Não sabemos ainda se existeum "EU"por trásdos olhos caninos—umapercepção de eu, de ser um cão. Talvez falte apenas um narradorcontinuamentepresenteparaqueaautobiogra iasejaescrita.Nessecaso,elesaestãoescrevendonestemomentodiantedevocê.

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Bomcachorro(sobreocertoeoerrado)QuandoPumperamaisnova,ocorriaumacenacomumemnossacasa:euviravaascostasparaelaouentravaemoutroaposento.Algunsmicrossegundosmais tarde,Pumpernickelen iava ofocinhona lata de lixo da cozinha, procurando por sobras gostosas. Se eu retornasse e a lagrasse nesselugar vulnerável, ela imediatamente retirava ofocinhoda lata, as orelhas e o rabo abaixavam, eentão,excitadíssima,elaabanavaorabo,retirando-sefurtivamente.Forapega.

Quando os pesquisadores perguntaram a alguns donos de cães o que oscachorros sabiam ou entendiam sobre nosso mundo, a resposta maisfrequente foi que os cães sabiam quando haviam feito algo errado; quetinham conhecimento de um tipo de categoria que englobava coisas quenão devem nunca, jamais serem feitas. Atualmente, essa categoria incluiaçõescomovasculharolixo,destruirsapatosearrebatarcomidafrescadapiadacozinha.Nanossaépocaesclarecida,ocastigoé—espera-se—nãomuitosevero:umapalavradura,umolhardecensuraeumabatidadepé.Nem sempre foi assim: na Idade Média, e antes dela, os cães e outrosanimais eram brutalmente punidos quando erravam. A punição ia da“mutilaçãoprogressiva”deorelhas,patasemesmodorabodeacordocomo número de pessoas que o cão haviamordido, até a pena demorte porhomicídio após julgamento e condenação legal.* Mais cedo, em Roma, acruci icaçãoritualdeumcãoemtodososaniversáriosdanoiteemqueosgauleses atacaram a capital e um cão não avisou sobre a aproximaçãodeles.

*Apolíticamedievalpareceridículapelofatodepresumirqueoscãesmerecemconsideração legal.Podeparecerigualmenteridículoquenossapolíticamodernapresumaqueoscãesnãoamereçam:aindamatamososcachorrosqueferemmortalmenteumhumano.Sóqueagorachamamososcãesde "perigosos" e não consideramos necessáriolevá-losa julgamento (embora seus donos possamserjulgados).

O olhar culpado de um cachorro responsável por ofensasmenores ébem conhecido por qualquer um que tenha surpreendido um cão naposição de Pump — com o focinho en iado na lata de lixo —, ou tê-lodescoberto com pedaços de enchimento na boca e cercado por tufosdaquiloqueatérecentementehaviasidoointeriordeumsofá.Asorelhasdobradas para trás e pressionadas para baixo contra a cabeça, o raboabanando depressa e en iado entre as patas e a tentativa sorrateira dedeixar a sala— tudo isso dá a impressão de que o cão percebe que foiflagradocomofocinhonabotija.

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Aperguntaempíricaquesurgenãoéseesseolharculpadoocorredeformaprevisívelem tais situações:eleocorre.Aocontrário;aquestãoéoqueaconteceexatamentenessas situaçõesque inspiramoolhar.Podedefatoseraculpa—oupodeseralgodiferente:aexcitaçãodefarejarolixo;umareaçãoportersidodescoberto;ouaexpectativapelosbradosaltosdedesagradoqueodonocostumadarquandoencontraolixoforadalata.

Os cães sabem distinguir o certo do errado? Sabem que essa açãoespecífica é clara e irritantemente errada? Alguns anos atrás, umdoberman encarregado de vigiar uma coleção cara de ursos de pelúcia(incluindoourso favoritodeElvisPresley) foidescobertopelamanhãemmeio à devastação de centenas de ursinhos aleijados, surrados edecapitados. Seu olhar, capturado nas fotos dos jornais, não era o de umcãoquepensavaterfeitoalgoerrado.

Seriaumcontrassensoseomecanismoexistentepor trásdaculpaoudo olhar desa iante fosse igual ao nosso. A inal, certo e errado sãoconceitos que nós humanos adotamos em virtude de sermos criados emuma cultura que assim os de iniu. Com exceção das crianças e dospsicóticos, todas as pessoas acabam distinguindo o certo do errado.Crescemosemummundodeobrigaçõeseproibições,aprendendoalgumasregras de conduta de forma explícita e outras por meio de um tipo deosmoseempírica.

Porém,penseemcomosabemosqueoutrapessoasabeoqueécertoeerradoquandonãonospodemdizê-lo.Umbebêdedoisanosseaproximade umamesa, tenta pegar um vaso caro e o derruba, despedaçando-o. Acriançasabequeéerradoquebrarobjetosquepertencemaoutrapessoa?Essapodeserumaocasiãonaqual,devidoàprovávelreaçãoexplosivadequalqueradultonavizinhança,elacomeçaaaprender.Noentanto,aosdoisanos, ela ainda não compreende o conceito: ela não destruiu o vaso depropósito. Ao contrário, ela é uma criança de dois anos normal que estádesajeitadamente tentando controlar os movimentos de seu corpo.Deduzimossuasintençõesaoobservaroqueelafezantesedepoisdovasotercaído.Elasedirigiudiretamenteaovasoefezalgoparaderrubá-lo?Ouelaestendeuamãoparapegarovasoefoidescoordenadaaofazê-lo?Apósovasotercaído,elarevelou-sesurpresa?Ouolhou,bem,comsatisfação?

Basicamente, o mesmo método pode ser aplicado a cães ao lhes

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permitir quebrar vasos caros e, em seguida, observar como reagem.Elaborei um experimento para determinar se aqueles olhares culpadosoriginavam-se de um sentimento de culpa ou de algo diferente. Emborameu método seja experimental, o ambiente foi cotidiano para melhorcaptarocomportamentonaturaldosanimais:no"ambienteselvagem"dasprópriascasas.Paraquali icar-seaparticipardapesquisa,oscãestinhamde ter sido expostos a uma repreensão do dono: por exemplo, o donoapontavaparaumobjetoaserevitadoeafirmavaemvozaltaNão!.*Assim,eledeveriasaberquenãoeraparamexernele.

*Ocomandovariadedonoparadono—desdeumNão!aorecentementepopularLargaisso!Cadaum é fundamentalmente uma negação: um loreio gramaticalríspido que pode ser aplicado aomesmotempoaqualquercomportamentoparatorná-loproibido.

Emvezdevasoscaros,usoguloseimasmuitodesejáveis—umpedaçode biscoito ou de queijo — que não podem ser "quebradas", mas sãoexpressamente proibidas. Considerando que o que estava sendo testadoeraseumcãosabiaquefazeralgoproibidopelodonoeraerrado,projeteiesse experimento para proporcionar uma oportunidade de realizarexatamentetalcomportamento.Nessecaso,odonoésolicitadoachamaraatençãodo cãopara a guloseimae, em seguida, dizer-lhe claramentequenão deve comê-la. A guloseima é colocada em um local sedutoramenteacessível.Emseguida,odonodeixaasala.

Permanecem na sala o cão, a guloseima e uma câmera de vídeoobservando tudo silenciosamente. Eis a oportunidade para o cão secomportar de forma errada. O que ele faz é apenas o começo dos dadosparanossoexperimento.Namaioriadoscasos,presumimosque,selhefordada a oportunidade, o primeiromovimento do cão é pegar a guloseima.Esperamos até que ele o faça. Em seguida, o dono volta. Eis os dadosfundamentais:comoocãosecomporta?

Todo experimento psicológico e biológico é projetado para controlaruma oumais variáveis, deixando o restante do ambiente inalterado. Umavariávelpodeserqualquercoisa:aingestãodeumremédio,aexposiçãoaumsom,aapresentaçãodeumconjuntodepalavras.Aideiaésimples:seessa variável for importante, o comportamento do sujeito testado seráalteradoquandoexpostoaela.Emmeuexperimento,háduasvariáveis:se

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ocãovaicomeraguloseima(naqualosdonosestãomais interessados)eseodonosabequeocãocomeuaguloseima(naqualimaginoqueoscãesestejam mais interessados). Ao longo de um número reduzido detentativas, alterno essas variáveis. Primeiro a oportunidade de comer aguloseima é alterada: seja removendo a guloseima após o dono partir,dando-a ao cão ou deixando que o animal considere a situação (e talvezposteriormente desobedeça à ordem do dono). O que dizemos ao donosobreo comportamentodo cão tambémvaria: emumaexperiência, o cãocomeaguloseimaeodonoéinformadoquandoretornaàsala;emoutra,ocão discretamente recebe a guloseima do operador de vídeo e o dono éinduzidoapensarqueocãoobedeceuàordemdenãocomer.

Todososanimaissobreviveramaoexperimentoepareciamestarbemalimentados e um pouco confusos. Em muitas das experiências, os cãespodiam servir como modelos do olhar culpado: eles baixam os olhos,dobram as orelhas para trás, abaixam o corpo, e timidamente desviam acabeça. Muitos rabos balançam em ritmo rápido, mas en iados entre aspatas. Alguns erguem a pata em conciliação ou põem a língua para forarápida e nervosamente. Porém, esses comportamentos relacionados àculpa não ocorreram com mais frequência nos testes em que os cãesdesobedeceram.Aocontrário,houvemaisolharesculpadosnos testesemque o dono repreendeu o cão, tenha o animal desobedecido ou não. Serrepreendido,mesmotendoresistidoàguloseimaproibida,geravaumolharmaisculpadoainda.

Tudo isso indica que o cão associou o dono, não o ato, a umarepreensãoiminente.Oqueestáacontecendoaqui?Ocãoestáantecipandoocastigorelacionando-oadeterminadosobjetosouquandovêpistassutisdo dono que indicam que ele pode estar zangado. Como sabemos, oscachorros aprendem rapidamente a perceber associações entre eventos.Seoaparecimentodecomidasesegueàaberturadeumagrandecaixafriana cozinha, então o cão icará atento para a abertura dessa caixa. Essasassociações podem ser forjadas com base tanto em ações realizadas poreles quanto naquelas que eles observam. No fundo, muito do que éaprendidosebaseiaemassociações:choramingaréseguidodeatenção—entãoocãoaprendeachoramingarparaatrairatenção.Arranharalatadelixo faz com que ela emborque e derrame seu conteúdo— então o cãoaprende a arranhar para obter o que está dentro. E fazer determinadostiposdebagunçaé,algumasvezes,seguidobemmaistardepelapresença

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dodono—o queé rapidamente seguido pela ruborização do rosto dele,pelaverbosidadeemvozaltaepelocastigoporpartedesse ruborizadoeruidosodono.Oprincipalaquiéqueosimplesaparecimentododonopertodo que parecem ser marcas de destruição parece ser su iciente paraconvencerocãodequeocastigoéiminente.Achegadadodonoestámuitomais intimamente relacionada ao castigo do que ao esvaziamento da latado lixonoqualo cão seenvolveuháhoras.E, seassim for, amaioriadoscães assumiráumapostura submissa ao ver os donos—o clássico olharculpado.

Nesse caso, a conclusão de que o cão reconhece seu maucomportamento está manifestamente errada. Ele pode não considerar ocomportamento comosendomau.Oolhar culpadoémuito semelhante aoolhar de medo e ao comportamento submisso. Não é novidade, então,encontrar tantos donos frustrados com as tentativas de castigar seu cãopor um comportamento indesejado. O que o cão nitidamente sabe éantecipar o castigo quando o dono aparece com um olhar desgostoso. Oqueocãonãosabeéqueeleéculpado.Eleapenassabequeprecisatemervocê.

A ausência de culpa não signi ica que os cachorros não façam nadaerrado. Eles não apenas fazem inúmeras coisas erradas, segundo ade inição dos humanos, como também parecem, às vezes, fazer questãodisso:umsapato roídoéostentadoem frenteaumdonoocupado;vocêérecepcionado por um cão alegremente exausto de tanto rolar em

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excremento. O cão de guarda dos ursos de pelúcia parecia bastanteorgulhoso quando foi fotografado cercado pelos restos dos ursos debrinquedo. Os cães parecem realmente brincar com nosso conhecimento— ou desconhecimento — sobre algo para atrair atenção (o quegeralmente funciona) e talvez apenas visando brincar com talconhecimento. Issonãoédiferentedeumacriançaquetestaos limitesdesuacompreensãosobreomundo ísico,sentando-senacadeiradebebêejogando um copo no chão... mais uma vez.., e outra vez ainda: ela estávendo o que acontece. Os cães fazem isso com diferentes estados deatenção, conhecimento ou vigilância dos donos. Dessa forma, acabamaprendendomaissobreoquesabemos,epodemusaresseconhecimentoaseu favor. Os cães são especialmente competentes em ocultarcomportamentos, agindo para desviar a atenção de seus verdadeirosmotivos. Com base no que conhecemos sobre a compreensão de suasmentes,elessãobemcapazesde tentarnosenganar.E,devidoao fatodeterem uma compreensão rudimentar, essa capacidade nem sempre émuitoboa,Essegraudecompetênciatambéméinfantil,comoodacriançade dois anos que coloca asmãos nos olhos para "se esconder" dos pais:quase se escondendo, mas não exatamente captando a essência de "seesconder". Os cães mostram tanto insights imaginativos quantoinadequações. Eles não tentam esconder os restos de uma lata de lixoderrubadaouasujeiraadquiridaporrolaremnagrama.Noentanto,elesde fato agem para ocultar as reais intenções. Esticar-se vagarosamentepróximoaumcãoquebrincacomumobjetodesejado—somenteparaseaproximar o su iciente para arrebatá-lo. Ganir de forma ostensiva edramática ao ser mordido em uma brincadeira, revertendo assim umadesvantagem passageira quando o companheiro para, surpreso. Essescomportamentospodemcomeçar fortuitamente, comaçõesacidentaisqueacabam tendo consequências felizes. Uma vez observadas, elas serãoproduzidas repetidamente. Só resta agora a um experimentadorproporcionarumaoportunidadeparaoscãesenganaremintencionalmenteuns aos outros — a menos que sejam tão inteligentes que deixem seusplanostransparecerem.

Aidadedocão(sobreemergênciaseamorte)Comopassardosanos,elausamenososolhos;olhamenosparamim.Comopassardosanos,elaprefere icar parada a andar; deitar a icar empé— e, assim, ela se deita próximo amim, ao arlivre, coma cabeça entre as patas, ofocinhoainda alertaparaos odoresno ar. Comopassardos

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anos,elasetornoumaisteimosa,insistindoemsubirescadassemajuda.

Comopassar dos anos, a diferença entre a disposiçãodiurna— relutante para andar, farejandomuito — e a noturna é ampliada, puxando-me para fora de casa, energicamente, disposta arenunciaraosodoresporumavigorosavoltanoquarteirão.

Com o passar dos anos, recebi um presente: os detalhes da existência de Pump se tornaram atémaisvivos.Comeceiaverageogra iadosodoresqueelaconferenavizinhança.Sintoaduraçãodotempoqueelaesperapormim;ouçoaformacomoelaseexpressaenfaticamentesóde icarempé;vejoseusesforçosparacooperarquandoaapressoparacruzararua.

Todo cão que você nomeie e leve para casa tambémmorrerá. Esse fatoinevitável e terrível é parte de nosso destino ao introduzir os cães emnossa vida. O que é menos certo é se eles possuem alguma noção daprópriamortalidade. Examinei Pump procurando por qualquer sinal queindicasse que ela percebia a idade de seus companheiros de faro nascalçadas; senotavaodesaparecimentodoantigo companheirodeorelhascaídas com olhos turvos do im do quarteirão; se observava o própriomodo de andar vagaroso e di ícil; o pelo cada vez mais grisalho e adisposiçãoletárgica.

É a compreensão da fragilidade de nossa própria existência que nostorna cautelosos em assumir riscos, cuidadosos conosco e com os queamamos.Nossa consciênciadamortepodenão ser aparente em todas asnossasações,mastranspiraemoutras:afastamo-nosdabeiradavaranda,do animal com intenções desconhecidas; atamos o cinto de segurança;olhamosparaambosos ladosantesdeatravessararua;nãoentramosnajaula do tigre; evitamos a terceira porção de sorvete frito; até mesmooptamospornãonadarapóscomer.Seoscãessabemalgosobreamorte,talvezissosemanifestenaformacomoagem.

Preferiria que os cães não soubessem. Por um lado, quando medefrontei com um cão em decadência gradual, queria ser capaz deexplicar-lheasituação—comoseaexplicaçãofosseumconsolo.Poroutrolado,apesardohábitodemuitosdonosdeexplicar todososcomandosoueventosaosseuscães(SemESSA!,ouçoregularmentenoparque, temosdeir para casa para que mamãe possa ir trabalhar. ..), eles não parecemconsoladoscomasexplicações.Umavidasemconhecimentosobreo iméumavidainvejável.

Há algumas indicações de que não deveríamos invejá-los tanto. Umadelasvemdaprópriaaversãoavarandas:namaioriadasvezes,oscãesse

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afastamporre lexodeperigosreais,sejamelesumprecipício,umrioquelui rapidamenteouumanimal comumolharpredatório.Eles agemparaevitaramorte.

Porém, o vagaroso protozoário age da mesma forma, batendorapidamente em retirada, para longe dos predadores e das substânciastóxicas.O comportamentode fuga é instintivo, presente de alguma formaemquasetodososorganismos.Osinstintos,dore lexopatelaraopiscardoolho,nãoexigemqueoanimalentendaoqueestáfazendo.Enãoestamospreparadosparaa irmarqueoprotozoáriotemumaconsciênciadamorte.No entanto, esse re lexo não é trivial: um entendimento mais so isticadopoderiaserconstruídoapartirdele.

Eháduasmaneirasemqueoscãesdiferemdosprotozoários:primeiro,elesnãoapenasevitamserferidos,mastambémagemdeformadiferenteumavezferidos.Estãocientesdeestaremferidos.Feridosoumoribundos,muitasvezesoscãesprocuramcoma incoseafastardafamília,caninaouhumana,parasossegaremetalvezfalecerememalgumlugarseguro.

Segundo,elesprestamatençãoaosperigosaqueosoutrosseexpõem.Voltaemeiaumahistóriadeumcãoheroicosurgederepentenonoticiáriolocal. Uma criança perdida nas montanhas é mantida viva pelo calor docorpo dos cães que permaneceram com ela; um homem que cai em umlago congelado é salvo pelo cão que se aproximou da beira do gelo; umlatido atrai os pais de ummenino antes que ele ponha amão dentro doninhodeumacobravenenosa.Osrelatosdecãesheroicosabundam.Meuamigo e colegaMarc Bekoff, um biólogo que estuda animais há quarentaanos, escreveu sobre um labrador cego chamado Norman que foidespertado com os gritos das crianças de uma família, arrastadas pelacorrentezadeumrioperigoso:"Joeyconseguiraalcançaramargem,masairmã estava com problemas, não fazia progresso, e em grande agonia.NormanpuloudentrodorioenadouemdireçãoaLisa.Quandoaalcançou,elaagarrouorabodele,ejuntosalcançaramumlugarseguro."

O resultado inalde todas as ações caninas é claro: alguémconseguiuescapar da morte. Considerando que os cães precisam dominar ospróprios instintos de autopreservação para preservar outro ser, ainterpretação comum é que eles são agentes intencionalmente heroicos.Uma compreensão das terríveis di iculdades enfrentadas por alguns

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humanospodeseraúnicaexplicação.

Contudo, o problema com essas histórias é que não se tem o relatocompleto do que aconteceu, uma vez que o narrador, com seu umwelt epercepçãoespecí icos,estánecessariamenterestritoaoquevê.Épossívelperguntar, de modo plausível, se a intenção de Norman não era tantosalvarLisa,mas,digamos,seguirasinstruçõesdoirmãodeladenadaremdireção à irmã; ou talvez a própria Lisa tenha conseguido nadar para amargem ao ver seu companheiro iel nas proximidades; ou quem sabe acorrenteza tenha mudado e levado Lisa até a margem. Não há umagravaçãoemvídeoquepossaserrevistaeexaminadaparaquepossamosconsiderar cuidadosamente o que aconteceu ali— ou em quaisquer dosresgatesdescritos.Nemconhecemosocomportamentodelongoprazodoscães. Uma situação é um cão de repente latir para alertar outros de queumacriançaestáemperigo;outraéocãolatirotempointeiro,diaenoite.Uma compreensão das histórias de vida dos cães também é importanteparainterpretarcorretamenteoqueaconteceu.

Finalmente, o que fazer de todos os casos emqueo cão nãosalvou acriança que se afogava ou o alpinista perdido. Asmanchetes dos jornaisnunca vociferam MULHER PERDIDA MORRE APÓS CÃO FRACASSAR EMENCONTRÁ-LAERESGATÁ-LACOMSEGURANÇA!Seoscãesheroicossãoconsiderados representantes da espécie, os não heróis deveriam sereleitos damesma forma. Certamente existemmais atos não heroicos nãorelatadosdoqueatosdeheroísmo.

Tantoofalatóriocéticoquantooheroicopodesersubstituídoporumaexplicação mais fundamentada e moldada por um olhar mais detalhadopara o comportamento canino. A análise dessas histórias revela umelementorecorrente:ocão sedirigiuaodono,ou icoupertodapessoaemagonia.Ocalordocorpodeumcãosalvaumacriançaperdidaqueestavacongelada;umhomememumlagocongeladopodeagarrar-seaocãoqueespera no gelo. Em alguns casos, o cão também criou uma confusão;latindo,correndodeumladoparaoutro,chamandoaatençãoparasi—epara,digamos,acobravenenosa.

Esses elementos — a proximidade do dono e o comportamento deatrairatenção—sãoaestaalturafamiliaresparanóscomocaracterísticascaninas e fazem parte das razões de os cães serem companheiros tão

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magní icos dos humanos. E, nesses casos, eles também foram essenciaisparaasobrevivênciadapessoacujavidaestavaemrisco.Então,essescãessão verdadeiros heróis? São. No entanto, eles sabiam o que estavamfazendo?Nãohánenhumacomprovação.Elesnãosabemqueestãoagindodeformaheroica.Oscãescertamentetêmopotencial,apósadestramento,desetornaremsalva-vidas.Mesmoosnãoadestradospodemajudá-lo,massemsaberexatamenteoquefazer.Emvezdisso,osucessodelesédevidoao que de fato sabem: algo aconteceu com você, e isso faz com que sesintam ansiosos. Se eles expressam essa ansiedade de uma forma queatraia ao local outras pessoas—pessoas que sabemo que signi ica umaemergência—ouquepermitaquevocêconsigasairsozinhodeumburaconogelo,excelente.

Essaconclusãoéapoiadaporumexperimentointeligenterealizadoporpsicólogosinteressadosnademonstraçãodecomportamentosapropriadosem casos de emergência. Nesse teste, os donos conspiraram com ospesquisadorespara simular emergênciasnapresençade seus cães e vercomo eles reagiriam. Em um cenário, os donos foram treinados a ingirteremsofridoumataquecardíacocompleto,comrespiraçãoofegante,mãoapertando o peito um desfalecimento dramático. No segundo cenário, osdonosgritavamapósumaestantedelivros(feitademadeiracompensada)caircomtodaaforçasobreeles,parecendotê-losimobilizadonochão.Emambososcasos,oscãesestavampresentesehaviamsidoapresentadosaum observador que icou por perto — talvez uma boa pessoa para serchamadaemcasodeemergência.

Nessas situações tramadas, os cães atuaramcom interesse edevoção,mas não como se houvesse uma emergência. Frequentemente eles seaproximaram dos donos e, às vezes, passavam a pata ou fuçavam essasaparentes vítimas, agora silenciosas ou insensíveis (no caso do ataquecardíaco) ou gritandopor ajuda (no cenário da estante de livros). Outroscães, no entanto, aproveitaram a oportunidade para circular pelasproximidades, vagando e farejando a grama ou o chão do cômodo. Emapenasalgunscasosocãovocalizou—oquepoderiaservirparaatrairaatenção de alguém— ou se aproximou do observador que poderia sercapazdeajudar.Oúnicocachorroquetocounoobservadorfoiumpoodletoy:pulounocolodoobservadoreseajeitouparatirarumasoneca.

Em outras palavras, nem um único cão fez algo que remotamente

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pudesseajudarseusdonosasairdasituaçãodi ícil.Aconclusãoaquesepodechegaréadequeoscãessimplesmentenãoreconhecemoureagemnaturalmenteaumasituaçãodeemergência—umaquepoderiaresultaremperigooumorte.

Uma conclusão estraga-prazeres? Nem tanto. O fato de os cães nãopossuíremosconceitosde emergênciaemortenãoérazãoparaquesejamdepreciados. Poderíamos igualmente perguntar a um cão se elecompreende bicicletas e ratoeiras e então censurá-lo por responder comumainclinaçãodacabeçaquemostreperplexidade.Umacriançatambéméingênuacomrelaçãoaessesconceitos:éprecisogritarcomelaquandoseaproxima de uma tomada elétrica. Uma criança de dois anos que vissealguém ferido provavelmente faria pouco mais do que chorar. Ela seráensinada a compreender as situações de emergência e, em seguida, oconceito de morte. Assim também alguns cães são adestrados, porexemplo, para alertar seu dono surdo para o som de um dispositivo deemergência, tal com um alarme de incêndio. O ensino das crianças éexplícito e inclui alguns procedimentos— Se ouvir este alarme, chame amamãe;otreinamentodoscãeséinteiramentecompostodeprocedimentosreforçados.

Oqueoscãesparecemsaberéquandoocorreumasituação incomum.Eles sãomestres em identi icar os elementos corriqueiros domundoquecompartilhamos comeles.Muitas vezes agimosde formasprevisíveis: emnossa casa, passamos de um ambiente para o outro, passando grandesintervalosnosofáeemfrenteàgeladeira; falamoscomeles, falamoscomoutraspessoas; comemos, dormimos, desaparecemospor longosperíodosno banheiro — e assim por diante. O ambiente também é bastanteprevisível: não é nemmuito quente nemmuito frio; não há ninguém nacasaalémdaquelaspessoasqueentrarampelaportadafrente;aáguanãoestáencharcandoasaladeestar;nãoháfumaçanocorredor.Éporqueoscães conhecem o mundo normal que podem reconhecer anormalidades,como o comportamento estranho de uma pessoa ferida ou aimpossibilidadedeelesprópriosagiremcomodecostume.

Mais de uma vez, Pumpernickel se envolveu em situaçõesproblemáticas (uma vez, icou presa em uma passarela que acabava emum precipício; outra vez, sua coleira icou presa nas portas do elevadorquandoestecomeçouasemover).Surpreendi-mecomsua tranquilidade,

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sobretudo se comparada com meu nervosismo. Nunca foi ela que selibertou da situação di ícil. Acho que iqueimais preocupada como bem-estardeladoqueela comomeu.Mesmoassim,muitodomeubem-estardependiadela—nãodacapacidadedeladeresolverdilemas,grandesoupequenos,naminhavida,masdesuaincessantealegriaecompanheirismofiel.

II—COMOÉ

Emnossatentativadepenetrarnointeriordeumcão,juntamospequenosfatossobresuashabilidadessensoriaisefazemosmuitasinferênciassobreeles.Umadelasserefereàexperiênciadele:comoérealmente serumcão;comoéaexperiênciadeledomundo.Issopressupõe,élógico,queomundosignifica alguma coisa para ele. Talvez surpreenda que, em círculosfilosóficosecientíficos,essaideiasejacontroversa.

Trinta e cinco anos atrás, o ilósofo Thomas Nagel de lagrou umadiscussãoprolongadanaciênciaenafilosofiasobreaexperiênciasubjetivados animais ao perguntar "Como é ser ummorcego?". Ele escolheu paraseu experimento um animal cuja forma de ver quase inimaginável haviaapenas recentemente sido descoberta: a ecolocalização, o processo deemitirgritosdealtafrequênciae,emseguida,escutarosomqueérefletidodevolta.Otempoquedemoraparaosomvoltar,ecomoelemuda,forneceaomorcegoummapadeondeestãotodososobjetosnoambienteemqueele se encontra. Para se ter uma ideia grosseira de como seria aexperiênciadomorcego,imaginedeitar-senoescuroemseuquartoànoitee icar imaginando se alguém está em pé na porta. Certamente, vocêpoderia resolver a questão acendendo a luz. Ou, como o morcego, vocêpoderia atirar uma bola de tênis na direção da porta e ver se (a) a bolavoltaparavocêouvoaparaforadoquarto,e(b)seumgemidoéouvidonomomentoaproximadoemqueabolachegaàsoleiradaporta.Sevocê formuito bom, poderia usar também (c) a distância percorrida pela bola,quandoretornasse,paradeterminarseapessoaémuitogorda(nessecasoabolaperderiaamaiorpartedesuavelocidadenabarrigadele)outemoabdômen tipo tanquinho (oquerebateriaabolacom força).Osmorcegosusam(a)e(c)e,emvezdebolasdetênis,sons.Eelesofazemconstanteerapidamente,tãorapidamentequantoabrimosnossosolhosepercebemosacenaànossafrente.

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Comoseriadeseesperar,issodeixouNagelperplexo.Eleachavaqueavisãodomorcegoe,portanto,avidadomorcegoeramtãoestranhasetãoimponderáveis, que seria impossível saber como é ser um morcego. Elesupunhaqueomorcegoexperimentavaomundo,masacreditavaqueessaexperiênciaerafundamentalmentesubjetiva:sejaláoque"era",eradessaformaapenasparaaquelemorcego.

Oproblemacomsuaconclusão temaver como salto imaginativoquefazemos todososdias.Nagel tratavaumadesigualdade intrespécies comoalgo totalmente diferente de uma desigualdade intraespécies.Noentanto,não temosproblemaalgumem falara respeitode "comoé" seroutro serhumano. Não conheço as peculiaridades da experiência de outra pessoa,mas sei o su iciente sobre o sentimento do que é ser um ser humano eposso fazer uma analogia da minha experiência com a de outra pessoa.Posso imaginar como é o mundo para ela ao generalizar com base emminhapercepção e transplantá-la colocando essa outra pessoano centro.Quantomais informações eu tiver sobre aquela pessoa— seu ísico, suahistória de vida, seu comportamento — melhor será minha analogiainferida.

Podemos proceder da mesma forma com os cães. Quanto maisinformaçõestivermos,melhorseráoresultadodaanalogia.Atéesteponto,temosinformações ísicas(sobreseusistemanervosoesistemasensorial),conhecimento histórico (herança evolutiva; caminho evolucionário donascimento à fase adulta) e um corpus crescente de trabalho sobre seucomportamento. Em resumo, temos um esboço do umwelt do cão. Oconjunto de fatos cientí icos que reunimos permite-nos dar um saltoimaginativo bem informado para o interior de um cão— para entendercomoéserumcão;comoéomundodopontodevistadele.

Jávimosqueé fedorentoebempovoadoporpessoas.Pensandobem,podemosacrescentar: estápróximodo chão; é lambível. CabenabocaounãoEstápresente.Érepletodedetalhes,passageiroerápido.Estáescritoemtodaacara.Éprovavelmentemuitodiferentedenossaexperiência.

Estápróximodochão...

Uma das características mais notáveis do cachorro é uma das mais

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notavelmente desprezadas quando contemplamos sua visão domundo: aaltura.Sevocêpensaquenãohámuitadiferençaentreomundodaalturade um humano eretomédio e o da altura de um cão ereto médio— detrintaasessentacentímetros—vocêestáenganado.Mesmocolocandodeladoporummomentoasdiferençasnossonsenosodorestãopróximoaochão,terumaalturadiferentetemconsequênciasprofundas.

Poucos cães têm a altura dos humanos. Eles chegam à altura dosjoelhoshumanos.Pode-seatédizerqueelesestão,muitasvezes,debaixodenossos pés.Somos extremamente tacanhos em nossas tentativas deimaginaratéofatomaissimplesdeelesteremmenosdametadedenossaaltura. Temos consciência de que os cães não estão à nossa altura emtermosdeintelecto,noentanto,estabelecemosinteraçõesdetalformaqueadiferençadealturaéumproblemaconstante.Colocamosobjetos"foradoalcance" dos cães, o que acaba nos deixando frustrados com suastentativas de pegá-los. Mesmo sabendo que eles gostam de noscumprimentarnoníveldosolhos,normalmentenãonosabaixamos.Ou,aonos abaixarmos o su iciente para permitir que eles alcancemnosso rostocom um salto, podemos icar irritados quando pulam em nós. Saltaré aconsequênciadiretadodesejodechegaraalgoquerequerum saltoparaseralcançado.

Su icientemente repreendidos por terem saltado, os cães descobrem,parasuafelicidade,queexistemmuitascoisasinteressantessobospés.Há,porexemplo,muitospés.Pés fedorentos:opééumaboa fontedenossosodores inconfundíveis. Costumamos suar nos pés quando somos exigidosmentalmente: estamos estressados ou muito concentrados. Pésdesajeitados: quando sentados, os balançamos, mas não com habilidade.Elesagemcomounidadessingulares,comosdedosexistindoapenascomolugaresentreosquaisodoresadicionaispodemserdescobertosporumalínguaperambulante.

Se o pé tem um aroma tão interessante, então a forma com que otratamos deve ser muito frustrante: malditos sapatos. Enclausuramosnossos odores. Por outro lado, os sapatos sem pés dentro cheiramexatamente como a pessoa que os usava, e eles têm a característicaadicional interessantedecarregarnassolastudoemquepisamosforadecasa. Asmeias são portadoras igualmente boas de nossos odores, daí osgrandes furos que regularmente aparecemnaquelas que foram largadas

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ao lado da cama. Sob escrutínio, cada furo foi adoravelmente feito pelosincísivosdeumcãoqueasegurounaboca.

Alémdos pés, na altura do cão, omundo está cheio de saias longas epernas de calças que dançam a cada passo de seus usuários. Osmovimentos circulares apertados que os ios de tecido de uma perna decalçaapresentamparaoolhodocãodevemsertentadores.Provocandoasensibilidadeaomovimentoeabocainvestigativa,nãoédeseadmirarqueelaspossamseralvodemordidinhas.

Omundomaispertodochãoéummundomaisaromático,umavezqueé lá que os cheiros pairam e se intensi icam, enquanto se distribuem edispersam no ar. O som também viaja de forma diferente pelo chão; porisso,ospássaroscantamnaalturadasárvores,enquantooshabitantesdochão tendem a usar o solo para se comunicarem mecanicamente. Avibração de um ventilador pode perturbar um cão que esteja nasproximidades;damesmaforma,ossonsaltossãore letidoscommaisforçadochãoparaosouvidosdeumcãoemrepouso.

Aartista JanaSterbaktentoucaptarumavisãoapartirdoolhodocãoao prender uma câmera de vídeo à cintura de Stanley, sua terrier JackRussell, e registrar suas perambulações ao longo de um rio congelado epela cidade de Veneza. O resultado é um tumulto de visões maníacas econfusas,omundoinclinadoeaimagememconstantemovimento.Atrintaecincocentímetrosacimadochão,omundovisualdeStanleyéumre lexodeseumundoolfativo:eleperseguecomocorpoeavisãotudoaquiloqueatraiseuinteresseolfativo.

Mas,aoa ixarcâmerasemanimais,estamosemgrandeparteobtendouma ideiadesuavisão domundo,nãode seu umwelt.Comamaioria dosanimaisselvagens,senãotodoseles,somenteaoassumirtalpontodevistaéquepodemosobterqualquer informaçãosobreseumundo,odiadeles;não podemos acompanhar um pinguim mergulhando com uma câmeraamarrada em suas costas; só uma câmera discreta poderia captar aconstrução de um túnel embaixo da terra por uma toupeira. ObservarStanleyapartirdopontodevistadesuascostasésurpreendente.Existeatentação,noentanto,deacharquecompletamosoexercícioimaginativoaocaptarmosasimagensdodiadele.Issofoiapenasocomeço.

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...élambível...Ela estádeitadano chão, a cabeça entre as patas, e percebe algopotencialmente interessante oucomestível a uma pequena distância. Estende a cabeça para alcançá-lo, ofocinho— que lindofocinhosaudável e úmido — quase, mas ainda não dentro da partícula. Posso ver suas narinasfuncionando para identi icá-la. Ela emite um bufo molhado e usa a boca para auxiliar nainvestigação:inclinandoacabeçamuitolevementeparaquealínguaalcanceochão.Elaotestacomlambidas rápidas; em seguida, se endireita e assume uma postura mais séria a partir da quallambe,lambe,lambeochão—golpeslongoscomalínguainteira.

É possível lamber quase tudo, Uma mancha no chão; uma mancha naprópriamancha;amãodeumapessoa;o joelhodeumapessoa;osdedosdos pés de uma pessoa; o rosto, as orelhas e os olhos de uma pessoa; otronco de uma árvore; uma estante de livros; o assento do carro; oslençóis;ochão;asparedes;tudo.Osobjetosnãoidenti icáveisnochãosãoespecialmente atraentes para serem lambidos. Isso é revelador, poislamber — trazer moléculas para dentro de si em vez de assumir umapostura de distanciamento seguro delas — é um gesto extremamenteíntimo, Não que os cães desejem ser íntimos. Contudo, estar tãodiretamente em contato com omundo, intencionalmente ou não, signi icade inir-seemrelaçãoaopróprioambientedeumaformadiferentedaquefazemoshomens:descobrirmenosbarreirasentreasuper íciedapeleoudopeloeaquiloqueestáaoredor.Nãoédeestranharqueumcãoen ieacabeçatodadentrodeumapoçade lamaoudeitedecostaseseesfreguecomentusiasmonosolofedorento.

A percepção canina de espaço pessoal re lete essa intimidade com oambiente. Todos os animais têm uma percepção de distância socialconfortável—cuja invasãoéumfatordeperturbaçãoeaampliaçãoumaameaça que eles tentam conter. Enquanto os americanos evitam quepessoasestranhasseaproximemdelesaumadistânciamenordoque45centímetros,oespaçopessoaldoscãesamericanosédeaproximadamentezero a três centímetros. Uma cena que demonstra o contraste de nossossentimentosemrelaçãoaoespaçopessoalrepete-senascalçadasdasruasde todo o país neste exato momento: o espetáculo de dois humanosseparadosaaproximadamenteummetroemeiodedistância,esforçando-se para puxar as coleiras de seus cães de modo a evitar que eles setoquem, enquanto os animais se esforçam para fazer o contrário: setocarem. Deixem que eles se toquem! Os cachorros cumprimentam osestranhos entrando no espaço um do outro, não icando fora dele. Deixeque eles entrem na pele um do outro, deem fungadas profundas e se

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abocanhem em saudação. A distância segura de um aperto demãos nãobastaparaeles.

Da mesma forma que temos um limite tolerável para a proximidadedosoutros, tambémtemosum limiteparaadistânciaquepreferimos:umtipodeespaçosocial.Sesentarmosamaisdeummetroemeiodedistânciaum do outro, a conversa torna-se desconfortável. Se andarmos em ladosopostosdarua,nãosentimosqueestamosandandojuntos.Oespaçosocialdos cães é mais elástico. Alguns deles andam felizes em paralelo, mas aumadistânciagrandedodono,oqueéestressanteparaohumano;outrosgostamdetrotar juntoaoscalcanharesdosdonos.Essamesmapercepçãose aplica à forma comoeles se acomodamquandoestãodescansandoemcasa.Oscãestemaprópriaversãodedesfrutaroprazerdeumlivroquecabeemumacaixadeformajusta,masnãomuitaapertada.Pumpgostavade sentar-se de forma que o corpo dela icasse cercado pelo abraço deumapequenacadeiraestofada.Elapreenchiaoespaçocriadoporminhaspernasdobradasquandosedeitavaaomeu ladonacama.Outroscãesseposicionam com todo o dorso encostado contra um corpo adormecido. Oprazer gerado é su iciente para que eu convide um cão para dormircomigonacama.

Cabenabocaounão...

Dentre os inúmeros objetos que vemos em torno de nós, apenas unspoucos se destacam para o cão. A mobília, os livros, os enfeites e asmiscelâneasemsuacasasãoreduzidosaumesquemaclassi icatóriomaissimples, O cão de ine o mundo pelas formas como age sobre ele, Nesseesquema,osobjetossãoagrupadosdeacordocomamaneiracomquesãomanipulados(mastigados,comidos,movimentados,usadoscomoassentoeroladosporcima).Umabola,umacaneta,umursodepelúciaeumsapatosão equivalentes: todos podem ser colocados na boca. Da mesma forma,algunsoutros—escovas,toalhas,outroscães—agemsobreeles.

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Aspossibilidades—ousocaracterístico,otomfuncional—quevemosnos objetos são suplantadas pelas possibilidades dos cães. Ele se sentemenosameaçadoporumaarmadoqueinteressadoemverseelacabenaboca.Asériedegestosquefazemosnadireçãodocãoéreduzidaaosquesão aterrorizantes, divertidos, instrutivos — e aqueles sem qualquersentido.Paraumcão,umhomem levantandoamãopara chamarum táxisigni icaomesmoqueumhomemcumprimentandooudizendoadeuscomamão.Oscômodosdacasa têmumavidaparalelanomundocanino, comáreasqueacumulamcheirosemsilêncio(detritosinvisíveisnoscantosdasparedes e no chão), áreas férteis das quais emanam objetos e odores(armários, janelas) e áreas de sentar nas quais você ou seu perfumepessoalpodeserencontrado.Aoarlivre,elesnãopercebemmuitobemasconstruções: grandes demais; não é possível agir sobre elas; poucosigni icativas.Porém,ocantodoedi ício,assimcomoospostesehidrantes,exibemumaidentidadenovaacadaencontro,comnotíciasdeoutroscãesqueporlápassaram.

Para os humanos, a forma ou o aspecto de um item é, em geral, suacaracterísticamaissaliente;éelaquenoslevaareconhecê-lo.Oscães,emcontrapartida,sãogeralmenteambivalentescomrelaçãoàforma,digamos,dos biscoitos caninos (somos nós que pensamos que eles deveriam ter oformato de um osso). Já o movimento, tão prontamente detectado pelasretinas dos cães, é uma parte intrínseca da identidade dos objetos. Umesquilo correndo e um esquilo ocioso podem muito bem representaranimais diferentes; uma criança patinando e outra que segura os patinssão crianças diferentes. Os objetos que semovem sãomais interessantesdoqueos imóveis—comoseriadeseesperarnocasodeumanimalquefoi projetado para seguir presas móveis. (Os cães caçarão esquilos e

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pássarosimóveis,lógico,umavezquetenhamaprendidoquemuitasvezeselessetransformamespontaneamenteemesquilosquecorremepássarosem voo.) Passando velozmente de patins, uma criança vira um objetointeressante, que merece ser alvo de latidos; cessados a patinação e omovimento,ocãoseacalma.

Tendo em vista que eles de inem os objetos de acordo com omovimento,oaromaeapossibilidadedeseremcolocadosnaboca,ositensmais óbvios— sua própriamão— talvez não sejam óbvios para seu cão.Uma mão acariciando a cabeça do cão é sentida de forma diferentedaquela que a pressiona continuamente. Da mesma forma, um olhar desoslaio, atémesmomuitos deles, é diferente do ato de encarar.Umúnicoestímulo — uma mão, um olho — pode vir a ser duas coisas distintasquando experimentadas em velocidades ou intensidades diferentes. Atémesmo para os humanos, uma série de imagens imóveis mostradasrapidamente torna-se uma imagem contínua, como se mudasse deidentidade. Para o caracol comum, descon iado do mundo, é arriscadopassarporcimadeumbastãoquebatedevagar;mas,seobastãoestiveroscilandoquatrovezesporsegundo,ocaracolseaproximarádele.Algunscãesaguentamumacarícianacabeça,masnãoumadasmãos repousadanela;paraoutros,oinversoéverdadeiro.*

*Paraocavalo,oalíviodepressãosobreocorpoésu icientementeagradávelparaquepossaserusadocomoumreforçoduranteotreinamento.Épossívelqueaconteçaomesmocomoscãesqueseassustamcomasensaçãodeumamãopressionandofirmementesuacabeça.

Todas essas formas de de inir o mundo podem ser vistas quandoobservamosum cachorro interagindo comomundo. Cães extasiados comum ponto vazio na calçada; aqueles cujas orelhas se empertigam por"nada";osparalisadosporumainvisibilidadenosarbustos—vocêosestáobservandosentirseuuniversosensorialparalelo.Comaidade,ele"verá"mais objetos familiares para nós; perceberá quepodem ser colocados naboca, lambidos, esfregados e rolados por cima. Eles também acabamcompreendendo que objetos que parecem diferentes — o homem nadelicatesseneohomemdadelicatessennarua—sãoiguais.Porém,sejaláo que acreditamos ver, seja lá o que pensamos que acabou de acontecerem um momento, é muito provável que os cães vejam e pensem algodiferente.

...érepletodedetalhes...

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Parte do desenvolvimento humano normal é o re inamento dasensibilidade sensorial: especi icamente, aprender a perceber menos doque somos capazes. O mundo está inundado de detalhes de cor, forma,espaço, som, textura, odores, mas não conseguiremos funcionar sepercebermos todos eles ao mesmo tempo. Portanto, nossos sistemassensoriais, preocupados com nossa sobrevivência, se organizam paraaumentar a atenção naquilo que é essencial para nossa existência. Osdetalhes remanescentes são considerados ninharias, atenuados ouinteiramentedesprezadospornós.

Contudo,omundoaindacontémaquelesdetalhes.Ocãosenteomundoem uma granulosidade diferente. A capacidade sensorial dele ésu icientemente distinta para permitir que preste atenção às partes domundovisualqueatenuamos;aoselementosdeumodorquenãopodemosdetectar;aossonsquerejeitamoscomoirrelevantes.Elenemvênemouvetudo,mas aquilo que ele observa inclui o que nós não observamos. Commenoscapacidadedeverumaamplagamadecores,porexemplo,oscãestêm uma sensibilidade muito maior para os contrastes de claridade.Podemos observar isso na relutância deles para entrar em uma poça deágua re lexiva e no medo de entrar em um ambiente escuro. * Asensibilidade canina aosmovimentos os alerta para o balãomurcho quelutua suavemente pela calçada. Sem linguagem falada, eles estão maissintonizadoscomaprosódiadasnossassentenças,comatensãodenossavoz, com a exuberância de um ponto de exclamação e a veemência dasletrasmaiúsculas.Eles icamalertaparacontrastesrepentinosnafala:umgrito,umaúnicapalavra,atéumsilêncioprolongado.

*ComoobservouTempleGrandin,omesmoacontececomasvacaseosporcos,oquefezcomqueáindústria de carnes alterasse os caminhos utilizadospelosanimais rumo aoabatedouro.Para aindústria,essetrabalhoéútilparapromovercarnemenosestressadaportanto,maissaborosa.Paraosanimais,elessãopresumivelmentepoupadosdealgumaansiedadeadicionalenquantoviajam—espera-sequesemconsciênciadisso—paraamorte.

Comoemnossocaso,osistemasensorialdoscãesestásintonizadocomasnovidades.Nossaatençãoconcentra-seemumnovoodor,umnovosom;os cães, que cheirameouvemumuniversomais amplode coisas, podemparecerestarconstantementeemposiçãodesentido.Osolhosbemabertosde um cão trotando pela rua são os mesmos de alguém sendobombardeado por novidades. E, diferente damaioria de nós, eles não sehabituamimediatamenteaossonsdaculturahumana.Porisso,umacidadepode ser uma explosão de pequenos detalhes com um grande impacto

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sobre a mente do cão: uma cacofonia do cotidiano que aprendemos aignorar.Conhecemososomdabatidadeumaportadecarro,masamenosqueestejamatentosaessebarulho,oshabitantesdacidadetendemanemouvir a sinfonia de portas batendo nas ruas. Para um cão, todavia, essepodeserumsomnovocadavezqueeleocorre—eumsomque,àsvezes,o que é ainda mais interessante, é seguido pelo aparecimento de umapessoa.

Elesprestamatençãoaosperíodosminúsculosde tempoentrenossaspiscadelas, ao complemento do que vemos. Nem sempre são coisasinvisíveis, mas simplesmente aquelas que preferiríamos que eles nãoprestassem atenção, como nossas virilhas, o brinquedo de borrachapredileto que en iamos no bolso, ou o aleijado desamparado na rua.Também podemos ver essas coisas, mas desviamos o olhar. Os hábitoshumanos que ignoramos — tamborilair dedos, estalar tornozelos, tossireducadamente, mudar de posição — os cães percebem. Chegar para afrentenacadeirapodesigni icarquevocêvailevantar!Coçar-se,balançara cabeça: tudoque émundano é elétrico—um sinal desconhecido e umligeiro cheirodexampu.Essesgestosnão fazempartedomundoculturalcaninodamesma formaque fazemparanós.Osdetalhes se tornammaissignificativosquandonãosãoengolfadospelocotidiano.

A mesma atenção que os cães nos dedicam pode levá-los a seacostumaremcomessessonsaolongodotempoeaabsorveremaculturahumana. Observe um cão de livraria, que passa as horas de seu diacercado de pessoas: ele se habitua à passagem de gente estranha pertodele, à proximidade delas ao folhearem as páginas de um livro; a sercoçado na cabeça a odores passageiros e passos constantes. Estale aarticulação dos dedos dezenas de vezes por dia e um cão próximoaprenderáaignoraressehábito.Emcontrapartida,umcãodesacostumadocom os hábitos humanos icaria alarmado a cada estalo. A coisa maisexcitante e amedrontadora que poderia acontecer para um cão que icaacorrentado para vigiar uma residência é que ela de fato precise de suavigilância.Oscãesdeguardapodemverapassagemdeumdesconhecido,sentirumnovoodornoarououvirumnovosomapenasocasionalmente,emenosaindaumestaladorextremodearticulaçõesdededos.

Podemos começar a compensar as desvantagens humanas nacompreensão do umwelt sensorial do cão tentando dar um susto em

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nossos sistemas sensoriais. Por exemplo, para se livrar de nosso hábitopernicioso de ver tudo mais ou menos nas mesmas cores todos os dias,exponha-seaumambienteiluminadoporapenasumacor—digamos,umespectro reduzido de amarelo. Sob tal luz as cores dos objetos icamdesbotadas:asmãosperdemavitalidadetrazidapelosangue;vestidoscor-de-rosatornam-sebrancofosco;abarbaporfazersobressaicomopimentaem uma tigela de leite. O familiar se torna estrangeiro. A não ser pelobrilhoamareloquevemdecima,essaexperiênciaseaproximabastantedoqueseriaapercepçãodascorespelocão.

...estápresente...

Ironicamente,aatençãoadetalhespodeimpossibilitarumacapacidadedegeneralizar a partir deles. Ao farejar as árvores, o cão não enxerga aloresta.Aespeci icidadedo lugaredosobjetoséútilquandovocêdesejaacalmar seu cão durante uma viagem de carro: levar o travesseiropreferido dele para ajudá-lo a se acalmar, por exemplo. Colocado emumnovo contexto, uma pessoa ou um objeto temido pode, às vezes, setransformaremalgonãoassustador.

Essa mesma especi icidade pode indicar que os cães não pensamabstratamente sobre aquilo que não está diretamente sua frente. OinfluentefilósofoanalíticoLudwigWittgensteinsugereque,emboraumcãopossaacreditarquevocêestejadooutro ladodaporta,nãosepodedizersensatamentequeelefazre lexõessobreisso:acreditarquevocêestaráládaqui a dois dias. Bem, vamos espreitar aquele cão. Ele se movimentoulentamenteemziguezaguepelacasadesdequevocêsaiu.Examinoutodasassuper ícies interessantesdasalaqueaindanão foramroídas.Visitouapoltrona—sobreaqual,umavez,hámuitotempo,comidafoiabandonada— e o sofá, onde comida foi entornada na noite passada. Cochilou seisvezes; fez três visitas à tigela de água; levantou a cabeça duas vezes porcausa de latidos distantes. Agora, ele ouve você se aproximandolentamentedaporta,rapidamentecon irmacomofocinhoqueévocê,eselembra de que, cada vez que ele ouve sua voz e sente seu cheiro, vocêaparecevisualmentedepois.

Em resumo, ele acredita que você está lá. Não faz sentido sugerir ocontrário.AdúvidadeWittgensteinnãoserefereàpossibilidadedoscães

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terem crenças. Eles têm preferências, fazem julgamentos, distinções,tomam decisões, privam-se: eles pensam. A dúvida de Wittgenstein é seseucãoantecipasuachegadaantesdevocêchegar:seelepensasobreela.É duvidoso que os cães tenham crenças sobre eventos que não estãoacontecendonoexatomomento.

Viversemoabstratoéserconsumidopeloaquieagora:encararcadaacontecimentoeobjetocomosefosseúnico.Ébasicamenteoquesigni icaviveromomento—viveravidalivredere lexões.Seéassim,entãopode-se dizer que os cães não são re lexivos. Embora experimentemomundo,tambémnãoconsideramasprópriasexperiências.Enquantopensam,nãoestãoconsultandoosprópriospensamentos:pensandosobrepensar.

Oscãesacabamporaprenderacadênciadeumdia.Porém,anaturezadeummomento—aexperiênciadosmomentos—édiferentequandooolfatoéosentidoprincipal.Oquepareceummomentoparanóspodeseruma série de momentos para um animal com um mundo sensorialdiference. Até mesmo nossos "momentos" são mais breves do quesegundos; eles têmaduraçãodeum instanteque talvez sejado tamanhodamenorunidadedetempoperceptívelpornós.Algunssugeremqueessetempoémensurável:éumdécimooitavodeumsegundo,oprazoemqueum estímulo visual precisa ser apresentado a nós para que oreconheçamos conscientemente. Dessa forma, raramente notamos umpiscardeolhos,quetemaduraçãodeumdécimodeumsegundo.Segundoessa lógica, devido à frequência crítica de fusão mais alta, um momentovisual é mais breve e mais rápido para os cães. No tempo deles, cadamomento dura menos, ou, em outras palavras, o momento seguinteacontece mais cedo. Para os cães, o “agora” acontece antes que nóssejamoscapazesdeperceber.

...épassageiroerápido...

Para os cães, a perspectiva, a escala e a distância encontram-se, de certamaneira,noolfato;masoolfatoépassageiro:eleexisteemumaescaladetempodiferente.Os cheiros não chegam comamesma regularidade (sobcondições normais) com que a luz chega aos nossos olhos. Isso signi ica

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que em sua visão-cheiro, eles veem tudo a uma velocidade diferente danossa.

O cheiro indica a hora. O passado é representado por cheiros queenfraqueceram, deterioraram, ou foram cobertos. Os odores são menosfortes com o passar do tempo, portanto força indica novidade; fraqueza,idade.Ofuturoéfarejadonabrisaquetrazardolugarparaoqualvocêsedirige. Em contrapartida, as criaturas visuais parecem olharprincipalmente no presente. A janela olfativa dos cães é maior do que anossa:o"presente"incluinãoapenasacenaqueacontecenestemomento,mas tambémumespaçode tempo curto do que acabade acontecer e doque irá acontecer. O presente tem em si uma sombra do passado e umtoquedofuturo.

Dessa forma, o olfato também é um manipulador do tempo, pois otempo muda quando representado por uma sucessão de odores. Oscheirostêmumavidaútil:elessemovemeexpiram.Paraumcão,omundoestá em luxo: ele ondula e tremula diante do focinho dele. E ele precisacontinuara farejar — como se tivéssemos que repetidamente olhar eacompanhar o mundo para que uma imagem constante permaneça emnossa retinaeemnossamente—paraqueomundoseja continuamenteaparente para ele. Isso explica muitos comportamentos familiares. Paracomeçar, o farejar constante de seu cachorro * e talvez, também, suaatenção aparentemente dividida, que corre de fungada para fungada: osobjetossócontinuamaexistirnamedidaemqueumodoréexaladoeeleoinala. Embora possamos estar em um lugar e ter um ponto de vista domundo,oscãesprecisamsemexermuitomaisparaabsorver tudo.Nãoéde se espantar que eles pareçam distraídos: seu presente está emconstantemovimento.

*Puxaracoleiradeumcãoquandoeleestáfungandoardentementeécomoserarrancadodeumacenaquandoacabamosdeavistá-la.

Assim, o odor dos objetos contém os dados de minutos e horaspassados.Àmedidaquepercebemashoraseosdias,oscãesconseguemperceber as estações pelo cheiro. Ocasionalmente, reparamos amudançadasestaçõespelocheirode loresbrotando,defolhascaídas,doarprestesaexplodiremchuva.Namaioriadasvezes,noentanto,sentimosouvemos

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as estações: sentimos o sol bem-vindo em nossa pálida pele invernal;olhamos pela janela um dia límpido de primavera e nunca dizemos: Quelindo cheiro novo! Os focinhos dos cães desempenham o papel de nossavisão e de nossa pele. O ar primaveril traz, em cada fungada, odoresbastantediversosdoarinvernal:emsuaumidadeoucalor;naquantidadedemorteemprocessodeapodrecimentooudevidaem lorescência;noarqueviajanabrisaouemanadaterra.

Aocircularpelomundodotempohumanocomsuajaneladopresenteexpandida, os cães funcionam um pouco a nossa frente; sãoexcepcionalmente sensíveis, um pouco mais rápidos. Isso explica ahabilidade para pegar bolas jogadas no ar e também algunscomportamentos, quando parecem estar fora de sincronia conosco, e porissonãoconseguimoslevá-losafazeroquedesejamos.Quandooscãesnão"obedecem", ou têm di iculdades de aprender algo que desejamos queaprendam,comfrequênciasomosnósquenão osestamoslendobem:nãopercebemos quando o comportamento começou.* Eles estão disparandorumoaofuturo,umpassoanossafrente.

*Oadestramentocom"clicker"buscalidarcomessadissonânciadenossosdiferentes "momentos"edenossadiferentepercepçãodoqueocãoestá"fazendo"atodoinstante.Os adestradoresusamumpequenodispositivoque lhespermite fazerumclique!distintoeagudoquandoocão temumcomportamentodesejadoepodeesperarumarecompensaiminente.Ocliqueajudaadestacarummomentohumanoparaocão,deixadoporcontaprópria,eledividesuavidadeformadiferente.

...estánacara...Ela sorri. Essa é uma das caras ofegantes que ela faz. Nem toda cara ofegante é um sorriso,mastodosorrisoéumacaraofegante.Uma levedobrado lábio—seriaumarugana facehumana—enfatizamais o sorriso. Os olhos podem estar ocupados (concentrados em algo) oumeio abertos(satisfeitos).Ecíliosesobrancelhaslevantamexpressivamente.

Oscãessão ingênuos.Oscorposdelesnãoenganam,mesmoqueàsvezeselesnosenganemouiludam.Aocontrário,ocorpodocãopareceprojetardiretamenteseuestadointerior.Aalegriaquandovocêretornaparacasa,

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ou quando se aproxima dele, é traduzida diretamente pelo rabo. Apreocupação dele é demonstrada pelo levantar de uma sobrancelha. Osorriso de Pump não é um arreganhar de dentes genuíno, mas aquelaretraçãodelábioprofundaquedáumrelancedosdentes éusadadeumaformaritualizada,partedeumacomunicaçãoconosco.

Vocêpodeaprendermuito sobreumcachorroobservandooportedesua cabeça.Ohumor, o interesse e a atenção estão registrados em letrasmaiúsculas na altura da cabeça, na posição das orelhas e no brilho dosolhos. Pense em um deles saltando diante de outros cães, rabo e cabeçalevantados, com um brinquedo estimado ou roubado: considerando aforma usual dos cães de se comportar perto de outros, este é um gestoclaro e intencional — de algo semelhante ao orgulho. Os lobos jovenstambém podem desaforadamente ostentar comida na frente de outrosanimais mais velhos. Sendo o primeiro elemento de interação com omundo,a cabeçaestágeralmenteapontadanadireçãoemqueo cãoestáindo. Se ele vira a cabeça para o lado, é apenasmomentâneo—para secerti icar de que há algo naquela direção que vale perseguir. É diferentede nós, que podemos virar a cabeça em contemplação, para fazer umaposeouparaimpressionar.Ocãoérevigorantementelivredepretensão.

Oqueacabeçanãodizsobreaintençãodocão,oraborevela.Acabeçae o rabo são espelhos, apresentando a mesma informação por meiosparalelos, a antítese clássica. Porém, eles também podem ser totalmenteantagônicos, com sensibilidades diferentes em cada ponta. Um cachorroqueserecusaaserfarejadonacarapodenãoterqualquerproblemaemserexaminadono traseiroouvice-versa.Ouoraboouacabeçacontamoqueacontecepordentro.

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Seriamais surpreendente se eu tivesse absoluta cerreza de "como é"estar dentro de um cão do que se não a tivesse. Discutir essa questão écomeçarumexercíciodeempatia,imaginaçãobeminformadaequeadvémde uma perspectiva mais do que da descoberta de uma explicaçãoconclusiva. Nagel sugeriu que nenhuma explicação objetiva pode jamaisserfeitaarespeitodasexperiênciasdeoutrasespécies.Aprivacidadedospensamentos dos cães permanece intacta. Porém, é importante tentarImaginarcomoelesveemomundo—substituirosantropomor ismospeloumwelt .E, se olharmos com bastante cuidado e imaginarmos comsu icientedestreza,quemsabenossoscãessesurpreendamcomoquantoconseguimosacertar?

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Vocêmeconquistounoprimeiroinstante

Entro pela porta e acordo Pump com minha chegada. Primeiro, eu a ouço: o balançar do rabobatendonaporta;asunhasarranhandoochãoaoselevantar,pesadamente;otinirdasplaquetasd acoleir aquando se balança e sacode o corpo inteiro até o rabo. Então, eu a vejo: as orelhasdobradas para trás, os olhos brandos; ela sorri sem sorrir. Vem trotando até mim, a cabeçalevementeabaixada, asorelhas levantadaseo rabobalançando.Quandochegoperto, eladáumafungadaparacumprimentar;douumafungadadevolta.Ofocinhoúmidomalme toca,osbigodesvarremmeurosto.Chegueiemcasa.

Eisumapossívelrazãopelaqualoscãesnãoforamobjetodeinvestigaçõescientí icas sérias até recentemente: você não faz as perguntas quando jásabe as respostas visceralmente. Meus dois ou três reencontros diárioscom Pumperniekel são tão satisfatórios quanto naturais. Nada poderiaparecer mais natural do que essas interações simples: elas sãomaravilhosas, mas não é um milagre que imediatamente demanda umexame cientí icominucioso e imediato. Poderia igualmente concentrar-mena natureza de meu cotovelo direito: ele é simplesmente uma parte demim, o tempo inteiro, mas não me aprofundo sobre sua localização útil,precisamente entre a parte de cima do braço e o antebraço, ou icorefletindosobrecomoelepoderiasernofuturo.

Bem, eu deveria reconsiderar meu cotovelo. Pois a natureza daquiloqueemdeterminadoscírculoséchamado"laçohumano-cão"éexcepcional.Não é simplesmente qualquer animal esperandominha chegada, e não ésimplesmente qualquer cão. É um tipo de animalmuito especí ico— umanimaldoméstico—eumtipodecãoespecí ico—aquelecomquemcrieiuma relação simbiótica. Nossas interações formam uma dança da qualsomentenóssabemosospassosespecí icos.Doisfatores—domesticaçãoedesenvolvimento—tornarampossívelessadança.Adomesticaçãoforneceabase:osrituaisnóscriamosjuntos.Estamosligadosantesmesmodenosdarmosconta;olaçoaconteceantesdehaverreflexãoouanálise.

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O laço humano com os cães é animal por essência: a vida animal foibem-sucedida por causa da associação por im, da união de animaisindividuais com outros animais. Originalmente, a ligação dos animais unsaos outros pode ter durado apenas um instante de satisfação sexual.Porém, o encontro das anatomias em algum ponto tomou outros rumos:relacionamentosdelongoprazocentradosnacriaçãodejovens;gruposdeindivíduos relacionadosvivendo juntos;uniãodeanimaisdomesmosexo,quenão se acasalam,para insdeproteçãoou companhia, ou ambos; atémesmo alianças entre vizinhos cooperativos. A clássica "ligação do par" éuma descrição da associação formada entre dois animais acasalados.Animais unidos podem ser reconhecidos até mesmo por um observadoringênuo:amaioriadasligaçõesdeparesandamjuntas.Elesseimportamecuidam um do outro e se cumprimentam animadamente ao sereencontrarem.

Esse tipo de comportamento pode parecer previsível. A inal, nóshumanos passamos grande parte do tempo tentando formar ligações depares, mantendo ou discutindo nossas ligações atuais, ou tentando noslivrar daquelas pouco recomendáveis que se tornaram insatisfatórias.Porém,dopontodevistadaevolução,aligaçãocomoutrosépoucoóbvia.Oobjetivodenossos genes é reproduzir: umobjetivonaturalmente egoísta,como observam os sociobiólogos. Por que se importar com os outros? Arazãopelaqualumgeneegoístaseincomodariaemdarouvidosesaudarocumprimento de outras formas de genes revela-se também egoísta: areproduçãosexualaumentaachancedemutaçõesproveitosas.É também

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conveniente para o gene egoísta assegurar que o cônjuge sexual sejasaudávelosuficienteparaparirecriarnovosgenesjovens.

Soa absurdo? Foi descoberto ummecanismobiológico que con irma aligação do par. Dois hormônios, oxitocina e vasopressina (conhecidos porseus papéis na reprodução e na regulação do líquido corporal,respectivamente), são liberados durante as interações com parceiros.Esses hormônios causam mudanças no nível neuronal, nas áreas docérebro envolvidas com liberação de prazer e recompensa. A mudançaneural resulta em uma mudança comportamental; estimulando aassociação com o parceiro, porque é simplesmente prazeroso. Nospequenos arganazes-da-pradaria (um animal parecido com um rato),estudados por pesquisadores, a vasopressina parece funcionar nossistemasdedopamina,oqueresultanoarganazmachosermuitoatenciosocom sua companheira. Como consequência, os arganazes-da-pradaria sãomonógamos,formandolaçosduradouros,emqueambosseenvolvemcomacriaçãodosfilhotes.

Porém, essas ligações do par são intraespécie; entre membros damesmaespécie.Oqueinicioualigaçãoentreespécies,queagoraresultanonosso viver e dormir com cães e até em vesti-los com casacos? KonradLorenzfoioprimeiroadescobri-lo.Eledeuumadescriçãodoquechamousimplesmentede"olaço"nadécadade1960—bemantesdaépocaatualda ciência neural e antes dos seminários sobre relacionamentos entrehumanosebichosdeestimação.Nalinguagemcientí ica,elede iniuo laçocomo revelado nos "padrões de comportamento de uma ligaçãosentimentalmutuaeobjetivamentedemonstrável".Emoutraspalavras,elerede iniu o laço entre animais não em termos de seus objetivos — taiscomooacasalamento—masdeseusprocessos—taiscomocoabitaçãoecumprimentos. O objetivo poderia ser o acasalamento, mas tambémpoderiaserasobrevivência,otrabalho,aempatiaouoprazer.

Essenovofocoabreportasparaaconsideraçãodemuitosoutrostiposde pares que não se baseiam no acasalamento como forma de ligaçãoverdadeira—entremembrosdamesmaespécie ou entreduas espécies.Entre os cachorros, os cães trabalhadores são um caso clássico. Porexemplo, o laço criado entre cães pastores no início de suas vidas e ofuturo sujeito de seu trabalho: o carneiro. Na realidade, para serempastorese icazes,oscãespastoresprecisamseligaraoscarneiroslogonos

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primeiros meses. Eles vivem entre os carneiros, comem quando oscarneiroscomemedormemondeorebanhodorme.Océrebrodelesentraem processo de rápido desenvolvimento desde uma idade tenra; se elesnão são apresentados ao rebanho naquelemomento, eles não se tornambonspastores.Todosos lobose cães, trabalhadoresounão, têmperíodosdedesenvolvimentosocial importantes,No iníciodavidados ilhotes,elesmostram uma preferência por quem cuida deles, procurando erespondendo a essapessoade formadiferentedoque fazem comoutraspessoas, com um cumprimento especial.* Para os animais jovens, essecomportamentoéadaptativo.

* Isso pode pareceru mbom momento para um cão jovem encontrar seu novo dono. Hásurpreendentemente poucos trabalhos cientí icos bons sobre o momento dessa introdução. Commuitomaisfrequência,as forçasdeterminantesnaadoçãodecãesporhumanossão in luenciadasportudomenospelamelhor idadeparaum ilhoteencontraressapessoa.Muitosestados têm leisque proíbem a venda de ilhotes com menos de oito semanas de vida para evitar a venda deanimais isicamente imaturos. Os criadores só visam seus interesses ao venderem seus produtos.Contudo,oreconhecimentosocialexigeexperiência.Oscãescomduassemanasaquatromesestêmuma disposição especial para aprender com os outros (de quaisquer espécies). Nenhum cãodeveria ser separado de sua mãe antes de serdesmamado(o que pode demorar de seis a dezsemanas), mas os cãesdeveriam icar expostosaoshumanos assim como aos companheiros deninhada.

Todavia,háaindaumadistânciagrandeentreumaligaçãoforjadacombase em uma vantagem no desenvolvimento e uma ligação baseada nocompanheirismo. Considerando que os humanos não acasalam com cãesnemnecessitamdeles para sobreviver, por que deveriam construir laçoscomeles?

LAÇOSPOSSÍVEIS

O sentimento de sensibilidade mútua — aquela sensibilidade que ocorre a cada vez que nosaproximamosumadaoutraounosolhamos—nosmudou,produziuumadeterminadaresposta.Eusorriaaovê-laolharparamimoucaminharemminhadireção;orabobatia,eeuconseguiaverospequenosmovimentosmusculares,dasorelhasedosolhosqueindicavamatençãoeprazer.

Não precisamos andar nem nascer em bandos. Tampouco, como vimosanteriormente,somosumaalcateianatural.Oqueentãoexplicanossolaçocom os cães? Eles têm uma série de características que os tornam bonscandidatos a serem escolhidos por nós para formar laços. Os cães sãodiurnos,estãoprontosparaseremacordadosquandopodemospasseá-losedormirquandonãopodemos.Nãoédeestranharqueoporco-da-terraeo texugo, animais noturnos, raramente sejam escolhidos como bichos de

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estimação.Os cães têmumportebom, comvariações su icientes entre asraçasparasatisfazerdiferentesespeci icações;pequenososu icienteparaseremcarregados; grandeso su icientepara serem levados a sério comoindivíduos.Ocorpoé familiar, compartesqueseequiparamàsnossas—olhos, barriga, pernas— e uma correlação fácil com a maioria daquelasquenãoseequiparam—aspatasdianteirascomnossosbraços;abocaoufocinho com nossas mãos.* (O rabo é uma disparidade, mas tem seusprópriosatrativos.)Elessemovemmaisoumenosdaformacomofazemos(embora com mais velocidade): avançam melhor do que recuam; seucaminhar é descontraído e sua corrida elegante. São bons de lidar;podemos deixá-los sozinhos por longos períodos de tempo; suaalimentação não é complicada; são receptivos ao adestramento, Tentamnosleresãolegíveis(emboramuitasvezeserremosaleitura).Sãoalegrese con iáveis. E sua expectativa de vida é compatível com a nossa: elesestarão presentes durante um longo tempo em nossas vidas,possivelmente da infância à idade adulta jovem. Um rato de estimaçãopode viver um ano — muito breve; um papagaio, sessenta — tempodemais;oscãesatingemummeiotermo.

* Em geral, icamos fascinados com as criaturas que se parecem conosco em pelo menos algunsatributos.Deveserdestacadoquenemtodososanimaissãoobjetosdenossoentusiasmo,acolhidosou antropomor izados: os macacos e os cães, sim, regularmente, mas as enguias e arraias muitoraramente. "Essa craca simplesmenteadoragrudaremmimenomeubarco" éuma frase jamaispronunciada. A diferença entre o macaco e a craca em parte se deve à evolução, em parte àfamiliaridade.Ummacaco jovem que pega a mão da mãe facilmentefaz lembrar a mesma cenacomovente entre mães e crianças humanas. Em contrapartida, por mais que uma enguia jovempossaansiarporcontatoaodeslizaremdireçãoàmãe, sua faltademembroséumobstáculoquenosimpededechamaressacenade"comovente"—talvezatémesmointencional.

Finalmente, eles são extremamente mimosos. E, por extremamente,querodizer irresistíveis: fazpartedenossaconstituiçãoarrulharmoscomternura quando estamos na presença de ilhotes; derretermo-nos dianteda visão de um cão de cabeça grande emembros pequenos; adorarmosum focinho amassado e um rabo peludo. Foi sugerido que os humanosestão adaptados para serem atraídos por criaturas com característicasexageradas— os principais exemplos são as crianças. Elas chegam comversões comicamente distorcidas dos membros adultos: cabeça enorme;membros gorduchos encurtados; dedos das mãos e dos pés pequeninos.Presume-se que nosso desenvolvimento nos tenha levado ao interesseinstintivoporcriançaseaumimpulsoparaajudá-las:semaassistênciade

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um humanomais velho, nenhuma criança sobreviveria sozinha. Elas sãoseresindefesosadoráveis.Damesmaforma,aquelesanimaisnãohumanoscom características infantilizadas podem despertar nossa atenção ecuidados porque apresentam características dos jovens humanos. Poracaso, os cães se encaixam nesse per il. Seu encanto é metade pelagem,metade neotenia, que possuem em grande quantidade: cabeçaexcessivamente grande para o corpo; orelhas totalmente fora deproporção em relação ao tamanho da cabeça; olhos grandes e redondos;focinhosmenoresoumaioresdoqueumnariznormal,nuncadotamanhodeumnariznormal.

Todas essas características são importantes para provocar nossaatração pelos cães, mas elas não explicam completamente por queformamoslaçoscomeles.Essaligaçãoéformadaaolongodotempo—nãoapenas por olhares, mas pela forma como interagimos um com o outro.Grossomodo,aexplicaçãopodesimplesmenteserporque—comodizumdospersonagensdeWoodyAllen—precisamosdeovos,Eledescrevesuaspróprias tentativas desvairadas de formar laços com uma piada sobre oirmão, um tipo tão desligadoque acredita ser uma galinha. É claro que afamília poderia fazer com que ele fosse tratado para curar esse delírio,porémele estámuito feliz comas recompensas ricas emproteínade suadoença mental. Em outras palavras, a resposta é uma não resposta:simplesmente faz parte de nossa natureza formar laços.*Os cães, que sedesenvolveramentrenós,sãoparecidos.

*EdwardO.Wilson,onaturalistaesociobiólogoqueestudoupopulaçõesde formigasemumniveldedetalhessurpreendente,sugeriuquepossuímosumatendênciainata,típicadenossaespécie,denos a iliar com outros animais: o que foi chamado de "hipótese da bio ilia". A ideiaé atraente etambémmuitocontroversa.Éparticularmentedi ícilre inarumahipótesedessetipo.Dequalquerforma,considero-aumavariaçãodoaforismodeWoodyAllenditoporumcientista.

Em um nível mais cientí ico, é possível responder de duas formas àpergunta sobre como esse laço veio a fazer parte da natureza de cães ehumanos: com explicações que na etologia são chamadas de "imediata" e"elementar". Uma explicação elementar é a evolutiva: para começar, porqueumcomportamentopara formar laços comoutros sedesenvolveu?Amelhorrespostaaquiéquetantonósquantooscães(eosascendentesdoscães) somos animais sociais, e somos sociais porque isso acaba trazendovantagens.Porexemplo,umateoriapopulara irmaqueasociabilidadedenossosantepassadospermitiuadivisãodepapéisqueoscapacitouacaçarcom mais e iciência. Dessa forma, o sucesso de nossos ancestrais nas

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caçadas tornou possível a sobrevivência e o êxito deles, enquanto queaqueles pobres neandertais que agiam isoladamente não tiveram omesmo resultado. Também em relação aos lobos, permanecer em grupossociais familiares facilita a caçada cooperativa de grandes presas, aconveniência de um parceiro para acasalar e a assistência na criação defilhotes.

Poderíamos ser sociais com qualquer outro animal social, mas nãoformamos laços com fuinhas, formigas ou castores. Para explicar nossaescolhaespecí icapelocão,precisamosolharumpoucomaisadiante.Umaexplicação imediata é a local: que efeito imediato o comportamento temque o reforça ou que recompensa aquele que assim se comporta. Comrelaçãoaoanimal,oreforçopodeserarefeiçãoapósacaçaouacopulaçãoapósumaperseguiçãoárduaeenergética.

É nesse ponto que os cães se diferenciam dos outros animais sociais.Existem três meios comportamentais essenciais pelos quais mantemoslaços com cães e nos sentimos recompensados por eles. O primeiro é ocontato: o toque de um animal vaimuito além de ummero estímulo dosnervosdapele.Osegundoéoritualdecumprimento:acelebraçãoquandoencontramos um ao outro serve como identi icação e reconhecimento. Oterceiroéomomento:oritmodenossasinteraçõesumcomooutroépartedo que possibilita que elas sejam bem-sucedidas ou fracassem. Juntos,essesmeiossecombinamparanosligardemaneirairrevogável.

TOCANDOANIMAIS

Nenhum de nós está bem confortável, mas nenhum de nós se mexe, Ele está no meu colo,esparramadoporcimademinhaspernasaspatas jáumpouco longasependuradaspelo ladodacadeira. Repousou o queixo sobre meu braço direito, bem na dobra de meu cotovelo, a cabeçainclinadaparacimademodoamantercontatocomigo.Paraconseguirdigitar,precisoesforçar-meparapuxarmeubraçoque icoupresoparacimadamesa,nadireçãodoteclado,tendoapenasosdedos livres para semexerem e o corpo inclinado de forma precária. Nós nos agarramos um aooutroparamanteraquele iotênuedecontatoquedizquenossosdestinosseentrelaçarão—oujáestãoentrelaçados.

Demos a eleonome deFinnegan.Nós o encontramos em um abrigo local, dentro de uma gaiolaentredezenasdegaiolas,no interiordeumasalaentreumadezenadesalas, todascheiasdecãesquepoderíamos também ter levadopara casa. Lembro-medomomento emque soube que seriaFinnegan. Ele se inclinou. Do lado de fora de sua gaiola, em cima damesa onde é permitido aoshumanos carregados de germes interagir com cães doentes, ele abanou o rabo, as orelhas

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balançaram ao redor da caraminúscula, tossiu longas explosões de tosse e se inclinou parameupeito,naalturadamesa,acaraenfiadanaminhaaxila.Aí,bem,estavadecidido.

Muitas vezes é o contato que nos atrai para os animais. Nossa sensaçãotátil émecânica,matéria sobrematéria: diferentemente de nossas outrascapacidades sensoriais e talvez mais subjetivamente determinada.Estimularumaterminaçãonervosa livredapelepoderiaser,dependendodo contexto e da força do estímulo — uma cócega, um carinho —,insuportável, doloroso ou imperceptível. Se estivermos distraídos, o quepoderia ser uma queimadura dolorosa vira uma irritação banal, Umcarinho pode ser sentido como uma apalpação, se vier de uma mãoindesejada.

Emnossocontextoatual,todavia,"toque"ou"contato"ésimplesmenteaeliminação de uma distância que separa corpos. Os zoológicos onde épermitidotocarosanimais(pettingzoos)surgiramparasatisfazeroanseiodeenvolveraqueleanimaldooutroladodacercanãosomenteolhando-o,mastocando-o.Melhoraindaseeletocardevoltasuasmãoscom,digamos,umalínguaquenteoucomosdentesdesgastados,arrancandoacomidadesuasmãos estendidas.As crianças e até os adultosque se aproximamdemimnaruaquandopasseiocomminhacadelanãodesejamolharparaela,observá-laabanarorabo,meditarsobreela—não,elasqueremacariciara cadela: tocá-la. Na realidade, após um carinho rápido, a maioria daspessoasparecesatisfeitacomessainteração.Atémesmoumbrevetoqueésuficienteparareforçarosentimentodequeumaconexãofoifeita.

Devezemquando,acordamoscomosdedosdopédescobertos,penduradosparaforadabeiradacama,sendolambidos.

Cãesehumanoscompartilhamessedesejoinatoporcontato.Ocontatoentremãee ilhoénatural:emrazãodanecessidadedecomer,acriançaéatraídaparaoseiomaterno.Daíemdiante, icarnosbraçosdamãepodesernaturalmentereconfortante.Umacriançaquenãotemumapessoaquecuide dela, homem ou mulher, se desenvolverá anormalmente, de umaforma que seria desumano testar experimentalmente. Desumano ou não,na década de 1950 um psicólogo chamado Harry Harlow realizou umasérie de experiências, hoje notórias, projetadas para testar a importânciadocontatomaterno.Eleseparoumacacosrhesusdesuasmãeseoscriouemisolamento.Emseusrecintosfechados,algunspuderamescolherentreduas"mães"substitutas:umabonecadotamanhodeummacaco,feitacomuma armação de arame coberta de pano, engordada com enchimento e

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aquecida com uma lâmpada; ou um macaco de arame nu com umamamadeira cheia de leite. A primeira descoberta de Harlow foi que osmacacos ilhotespassavamquaseo tempo inteiroaconchegadosàmãedepano, correndo periodicamente até a mãe de arame para se alimentar.Quando expostos a objetos amedrontadores (dispositivos robóticosdemoníacosquefaziambarulho,colocadosporHarlowemsuas jaulas),osmacacos sedirigiampara amãedepano. Eles icavamdesesperadosporcontato com um corpo quente — precisamente aquele corpo quente doqualhaviamsidoafastados.*

* Nos estudos com ilhotes de cães, os pesquisadores descobriram que aqueles que estavamangustiados com a separação de suasmães e de seus companheiros deninhadachoramingavammenosquandorecebiamumatoalhaouumbrinquedomacio(umcarneiroazulempalhado).Seháalgum conhecimento a serextraídodesse caso, é odequeumobjeto familiarmaciopode serumfatordeconsolo(daí,nascrianças,opoderdosursosdepelúcia).Narealidade,taisobjetospodemreduzirodesconfortoquealgunscãesmanifestamaoseremdeixadosemcasasozinhos.

A longo prazo o trabalho de Harlow descobriu que esses macacosisoladossedesenvolviamdeformarelativamentenormaldopontodevistaísico, mas de forma anômala socialmente. Eles não interagiam bem comoutrosdesuaespécie:apavorados,aconchegavam-seemumcantoquandooutromacacojovemeraintroduzidonajaula.Ainteraçãosocialeocontatopessoal são mais do que desejáveis: são necessários para odesenvolvimento normal. Meses mais tarde, Harlow tentou reabilitaraqueles macacos cujo isolamento no início da vida tanto deformou. Eledescobriuqueomelhorremédioeraocontatoregularcommacacosjovensnormais— a quem chamou de "macacos de terapia"— para brincarem.Issoconseguiutransformaralgunsdosanimaisisoladosemagentessociaismaisnormais.

Observe uma criança, com visão e atémobilidade limitadas, tentandoaconchegar-se a sua mãe, a cabeça procurando fazer contato, e veráexatamentecomosãoos ilhotesrecém-nascidos.Cegosesurdosaonascer,elestrazemconsigoo instintodeaconchegarem-seaos irmãoseàmãeouaté mesmo a qualquer objeto sólido próximo. O etólogo Michael Foxdescreve a cabeça de um ilhote como uma "sonda sensorial tátil etérmica", movimentando-se em um semicírculo até tocar algo. Tem inícioentão uma vida de comportamento social que abrange o contato e éreforçadoporele.Estima-sequeoslobosfaçammovimentosparatocarem

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uns aos outros pelo menos seis vezes por hora. Eles lambem o pelo, asgenitálias,abocaeasferidasumdooutro.Focinhostocamfocinhos,corpoou rabo; eles esfregam os focinhos ou o pelo. Eles são orientados para otoqueatéematividadesagonísticas,asquais,aocontráriodemuitasoutrasespécies, geralmente envolvem contato: empurrar, abocanhar paraimobilizar,morderocorpoouaperna,pegaroutrofocinhooucabeçacomaboca.

Direcionadoanós, o instinto juvenil do cão se tornaum impulsoparaenterraracabeçasobnossocorpoadormecidooudescansaracabeçaemnós; para nos empurrar ou esbarrar em nós quando estamos andando;para gentilmente mordiscar ou lamber-nos até secar. Não parece seracidental que os cães que estão brincando a todo vapor regularmenteesbarrem em qualquer dono observador nas proximidades, usando-oscomopara-choquesvivosparade inirseuespaçodebrincadeiras.Porsuavez,os cães sedispõema ser tocadospornós.Esseéumgrandepontoaseufavor.Nósosconsideramostocáveis:peludosemacios.Elesestãologoabaixodenossosdedospendentes,efrequentementeusamossuaneoteniacomresultadosextremamentemimosos.Oqueocãoexperimentacomessetoque, todavia, não é provavelmente aquilo que pensamos. Uma criançapode coçar a barriga de um cão vigorosamente; esticamos o braço paraacariciar a cabeça de um cachorro — sem saber se ele deseja servigorosamentecoçadoouacariciadonacabeça.Naprática,seuumwelt tátiléquasecertamentediferentedonosso.

Primeiro, a sensação não é uniforme por todo o corpo. Nossasensibilidadetátilédiferenteempontosdiferentesdenossapele.Podemosdetectardoisdedosaumcentímetroumdooutroemnossanuca,mas,seosdedosdescerempelascostas,sentimosqueelesestãotocandoomesmoponto. A sensação do toque nos animais é provavelmente ainda maisdiferente: o que pensamos ser um carinho gentil pode quase não serdetectávelouatéserdoloroso.

Segundo,omapasomático—corporal—docãonãoé igualaonosso:aspartesmaissensíveisousigni icativasdocorposãodiferentesnoscães.Comoobservado emmuitas das ações de contato agonísticomencionadasanteriormente,seguraracabeçaouofocinho—aprimeirapartedocorpoqueumapessoaingênuatendeapegaraoacariciarbichosdeestimação—podeserconsideradoagressivo,Ésemelhanteaoqueumamãe fariacom

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um ilhote indisciplinado, ou ao que um lobo dominantemais velho fariacomummembrodesuaalcateia.Eissoincluiosbigodes(vibrissae),que,talcomo todos os cabelos, têm receptores sensíveis à pressão nas suasextremidades. Os receptores bigodudos são especialmente importantespara detectar movimentos em torno da cara ou correntes de ar nasproximidades. Sevocêestiverpertodeumcãoo su icienteparaver seusbigodes, poderá observá-los eriçarem-se quando ele icar agressivo (édesaconselhável icar muito perto nesse caso). Puxar o rabo é umaprovocação,masemgeralcomintençãodebrincadeira,enãodeagressão—amenosquevocênãoo largue.Tocarobaixo-ventrepodeestimularocão a se sentir sexualmente ativo, visto que lamber a genitáliafrequentemente precede uma tentativa de acasalamento.Um cão rolandosobre o dorso está fazendo muito mais do que simplesmente expor suabarriga esta é amesma postura que os cães usam para permitir que asmães limpem sua genitália. O coçador de barrigas vigoroso pode acabarrecebendoumjatodeurina.

Finalmente,damesmaformacomotemosáreasaltamentesensíveis—aponta da língua, nossos dedos—o cão também tem.Há característicasque se aplicam a toda uma espécie — nenhuma pessoa gosta que lhetoquem os olhos— e a indivíduos—posso sentir cócegas na planta dospés,enquantovocêéimuneaelas.Éfácilfazerumexametátilemapearocorpo de seu cão. Não só os lugares preferidos e proibidos ao toque sãodiferentes,masaprópria formade contatoé crucial.Nomundo canino, otoquerepetidoédiferentedapressãoconstante.Vistoqueotoqueéusadoparacomunicarumamensagem,manteramãonomesmo lugardocorpodeumcão transmite essamesmamensagemcomgrande intensidade.Aomesmo tempo, alguns cães preferem o contato de corpo inteiro,especialmentecães jovens,e sobretudoquandoelessãoos iniciadoresdocontato. Os cães frequentemente encontram lugares para deitar quemaximizem a proximidade com outro corpo. Essa pode ser uma posturasegura para os cães, sobretudo para os ilhotes, quando estãocompletamente dependentes dos cuidados de outros. Sentir uma pressãoleveaolongodetodoocorpoprovocaumagrandesensaçãodebem-estar.

Édi ícil imaginar conhecerum cão enão tocá-lo—ou ser tocadoporele.Sercutucadopelofocinhodeumcãoéumprazerúnico.

ÀPRIMEIRAVISTA

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LogodepoisdeconhecerPumpernickel,arrumeiumempregodetempointegraleelaarrumouumcaso clássico de angústia de separação. Demanhã, enquantome preparava para sair após nossopasseio, ela começava a choramingar, me acompanhava de cômodo a cômodo até, inalmente,vomitar.Consultei treinadoresquemederamdiretrizesbemrazoáveispara reduziroestressedaseparação. Segui todososprocedimentos sensatos conhecidos, ePump logo retornouaumestadomentale ísicosaudável.Porém,houveumasugestãoquenãosegui.Nãoritualizesuapartidaeseuposterior retorno, eles avisaram: não celebre o reencontro. Eu me recusei a obedecer. Seucumprimento fungadocomo focinhoenossabrincadeirade rolarno chãoemumacomemoraçãoefusivapelofatodeestarmosjuntaserambonsdemaisparaseremabandonados

Lorenz chamou o cumprimento entre animais, após uma separação, deuma "cerimônia de apaziguamento redirecionada". Aquela excitaçãonervosa que se sente repentinamente ao ver alguém em sua toca outerritório poderia ter dois resultados diferentes: um ataque ao possívelestranhoouumredirecionamentodaexcitaçãoemformadecumprimento.Sua ideia era que havia muito pouca diferença entre o ataque e ocumprimento,alémdealgumasalteraçõesouadiçõessutis.Entreospatossilvestres do hemisfério norte, uma das aves que ele estudou emprofundidade, dois indivíduos que se encontram se envolvem em umrítmico "cerimonial de movimentos de ida e vinda" que pode se tornaragressivo,anãoserqueopatomacho,omarreco,levanteacabeçaeavire.Isso dá ensejo a uma cerimônia mútua de ingir alisar as penas um dooutro,eocumprimentosecompleta:outrabrigainibida.

Os cumprimentos entre os humanos são similarmente ritualizados.Olhamosumnosolhosdooutro;acenamoscomasmãosumparaooutro;abraçamo-nos ou nos beijamos uma, duas ou três vezes, dependendo daculturadopaísnativodecadaum.Tudoissopodeseroredirecionamentodeumsentimentodeincertezaaoveralguém.Alémdisso,podemossorrirou dar risadas. Nada é mais tranquilizador da boa intenção de outrapessoa do que a risada, a irmou Lorenz. Na maioria das vezes, essaexplosãode ruídos é certamente uma expressãode alegria,mas tambémpode ser uma erupção típica de alarme reformulada como prazer ousurpresa (em certa medida parecida com o contexto de brincadeirasbrutasemquearisadadocãoaparece).

Ao manifestar a excitação em um cumprimento de uma formalorenziana,épossívelacrescentaroutroscomponentesaele.Osloboseoscães o fazem. Seus cumprimentos e os de todos os canídeos sociais sãosemelhantes.Navidaselvagem,quandoospaisretornamàtoca,os ilhotesse aglomeram em torno deles, arremessando-se freneticamente emdireçãoàssuasbocasnaesperançadefazê-losregurgitaremumpoucoda

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presa que consumiram. Eles lambem os lábios, o focinho e a boca deles,assumemumaposturasubmissaeabanamorabofuriosamente.

Como vimos, aquilo que muitos donos alegremente descrevem como"beijos" são lambidas no rosto, a tentativa do cão de estimulá-lo aregurgitar. O cão nunca icará infeliz se seus beijos o estimularem avomitar seu almoço. Esse cumprimento não é completo sem umaabordagem agitada, assim como um contato constante e energético.Orelhas que foram empinadas para ouvir sua chegada são dobradas e acabeça se abaixa levemente emumgesto submisso.O cão puxa os lábiosparatráseabaixaoscílios—noshumanos,essessãosinaisdeumsorrisogenuíno. Ele abana o rabo loucamente ou bate com a ponta do rabo nochão em um ritmo frenético. Ambos os tipos de abano contêm toda aenergia agitada que o cão reprime para icar próximo a você. Ele podechoramingarouuivardeprazer.Os lobosadultosuivamdiariamente:nasalcateias, um coral deuivospode ajudar a coordenar os deslocamentos efortalecerasligações.Damesmaforma,sevocêsaudarocãocomgritosecumprimentos vocais, seu cão pode ganir para você. Em todos osmovimentos,elemostraqueoreconhece.

Se o cumprimento e o contato fossem tudo, poderíamos esperarmúltiplasocorrênciasdemacacos ligadosa lobosedecoelhosconvivendocom cães selvagens. Todos exigem contato na infância. Até mesmo asformigas cumprimentam os que retornam ao formigueiro. Suponho que,questões predatórias à parte (bastante à parte), o potencial exista. Umgorila chamado Koko, ensinado a usar a linguagem de sinais para secomunicar, e criado em um lar humano, tinha seu próprio gato deestimação. Não precisamos mais agir instintivamente da forma comopoucos animais agem. Porém, há outro aspecto que torna a ligaçãohumano-cãoúnica:omomento.Funcionamosbemquandoestamosjuntos.

ADANÇA

Nospasseioslongos,Pump icapertodemim,masnãomuito.Quandoachamo,elavemcorrendoatodo vapor e para pouco antes de se aproximar demais. Ela gosta de icar umpasso à frente.Noentanto,quandoandamos juntasporumcaminhoestreitoeelaestánaminha frente,ela dá umaconferida—olhapara trásperiodicamenteparaverondeestou.Ela sóprecisavirar a cabeçaumpoucoparamever,levantando-adesuaposiçãonormalinclinadaparabaixo,inspecionandoochão.Se,emalgummomento, icoparatrás,elaseviratotalmente,orelhasempéeatenta:esperandopormim. Ah, eu adoro chegar a esse momento em que ela me aguarda! Pode ser que eu corra umpouco aome aproximar dela, e esse é o sinal para ela fazer um cumprimento ou para se virar eretomarseutrote,conduzindo-nosemnossopasseio.

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Nessesegundodia,elecomeçouavircomosomdoestalardededos:aprendeurapidamente.Bastaestalarmosodedoparafazercomqueelecorradeumladoparaoutroentrenósdois.

Oscães,emboranãocacemcooperativamente,sãocooperativos.Observeodes iledeconjuntospessoa-cãounidosporcoleirasemumaruadacidade.Apesar de pequenos desvios, eles dançam em sincronia magistral,caminhando juntos.Os cães trabalhadores são treinadospara teremumasensibilidadeaguçadaparaadançaOscegoseseuscães-guiaserevezamparainiciarmovimentos,complementandoumaooutro.

O fato de que os cães vivem na mesma velocidade que nós propiciaessasincronia.Umratocaseiro, cujocoraçãobatequatrocentasvezesporminuto emdescanso, está constantemente apressado; um carrapatopodeesperar ummês, um ano, ou 18 anos em animação suspensa até aqueleodordeácidobutanoicoaparecer;oscãesfuncionammuitomaisnonossoritmo. Embora vivamospormais tempo, a vidadeles estende-seporumageração, E eles agem em um ritmo su icientemente próximo do nosso—embora ligeiramente mais rápido — para permitir-nos discernir seusmovimentos, imaginar suas intenções. Eles agem em resposta às nossasações,comdisposição.Elesdançamconosco.

No inícioo ilhoterejeitaacoleira,puxa-ácomforça,ousimplesmentedeixa de entender que está preso por ela — e, portanto, a você —enquantotentaarrastá-lonadireçãodaquelejornalinteressantíssimoquevoapelacalçada.Emmuitopoucotempo,elesaprendemaserparceirosdecaminhadaaltamentecooperativos,andandoaproximadamentenamesmavelocidade e frequentemente acertando o passo com os donos. Elescombinam com os donos, quase nos imitando. Por sua vez, imitamosinconscientemente nossos imitadores. Na etologia, isso é chamado"comportamento alelomimético" e faz parte do desenvolvimento e damanutençãodosbonsrelacionamentossociaisentreanimais.Maisdoqueisso, no entanto, o ilhote aprende a sequência de comportamentos quevocêrepete—queconstituiumpasseio—eosantecipa.Empoucotempo,ele conhecea sériedeetapaspercorridasantesdocomeçodopasseio—asesquinasquevocêviranocaminhoemdireçãoaoparque,olugarondeacoleiraéretiradaouabolaé jogada.Eleantecipaopontoderetornodopasseiolongo,opontoderetornodopasseiocurtoesabecomoesquivar-sedoúltimo.Algunscãesparecematésabercomexatidãoosparâmetrosdadistância entre a coleira e nossas mãos, deslocando-se freneticamentedentro dessa área — agarrando um graveto ou farejando um cão que

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passa—semquebraroritmodacaminhada.

Assimque retiramos a coleira, a dança continua.Minha concepçãodeum passeio perfeito, ocasionalmente realizado, é o de minha cadela semcoleira,correndonãoameu lado,masemgrandescírculosaomeuredor,com uma progressão média mais ou menos igual por quilômetros. Emcondiçõesideais,encontramosumadezenadeoutroscães.Nãoexistenadamais terapêuticodoqueobservardois cachorros emumabrincadeiradelutaenergéticaeexuberante:oprazerquesentimoscomesses jogosqueexigemtrocasdepapéisemaltavelocidadeaumentamuito.Asregrasdasbrincadeiras—sinalização,agirnomomentocerto—sãosemelhantesàsnossasregrasdeconversação.Eisarazãodepodermosentrarnodiálogodabrincadeiracomnossoscães.

Eucomeço.Primeiro,meaproximodevagardo lugaremqueelaestádeitadaecolocominhamãoemsuapata.Elaaretira—ecolocaapataemminhamão.Tornoacolocarminhamãosobreapatadelae,maisrapidamenteagora,elame imita.Trocamostapinhas comoessesaténãopodermais.Rio, quebrando o encanto, eelase estica sobre as patas em minha direção, boca aberta quasesorridente, para lambermeu rosto. Há uma intimidade especial quando ela coloca apata— seupeso,aasperezadasalmofadas,asensaçãodecadaunha—emminhamão.Namaioriadasvezes,éosimplesfatodeusaressemembroparasecomunicarcomigo—apatanãoévistacomoumamãoindependencedobraço,atéqueelaatratacomotal,semelhanteaomeu.

Os elementos que tornam a brincadeira prazerosa são di íceis deidenti icar, exatamente como uma piada excelente sempre parece maisengraçada do que sua desconstrução. Tente fazer um robô brincar comvocê: ele sempre parece carecer de uma determinada... jocosidade. Háalguns anos, a Sony desenvolveu um bicho de estimação mecânico, o"Aibo",projetadoparaseparecercomumcão—comquatropatas,rabo,aformacaracterísticadacabeçaetc.—eparaagirdecertaformademodosemelhanteaumcão—abanaro rabo, latire realizar rotinassimplesdeadestramento canino. O que o Aibo não faz é brincar como um cão, e osprojetistas queriam que ele fosse mais divertidamente interativo com aspessoas.Comesseobjetivo,estudeicãesehumanosbrincandojuntos:lutalivre,caça,jogarepegarbolas,gravetosecordas.Observei,graveiedepoistranscrevi todososcomportamentosdecadaumdosparticipantes.Então,procurei os elementos consistentes nos episódios bem-sucedidos dessabrincadeirainterespécies.

O que esperava encontrar eram rotinas e jogos claros que poderiamsermodeladosemumbrinquedo"canino"comooAibo.Oquedescobrifoimais simples e mais poderoso. Em cada episódio, as ações dos

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participantesdependiam signi icativamente das — baseado nas erelacionado às— ações do outro. Isso dava um ritmo à brincadeira. Talcontingência é facilmente vista nas interações sociais humanas maisincipientes. Aos dois meses, as crianças coordenam movimentos simplescom as mães, tais como espelhar expressões faciais. Na brincadeira, asrespostas coordenadas com as ações— tais como uma bola deixando amão do jogador — aconteciam em apenas cinco quadros da gravação(aproximadamente um sexto de segundo). Respostas espelhadas —investir após ser alvo de uma investida, por exemplo — são comunsdurante as brincadeiras. O momento é crucial: os cães respondem aosnossos movimentos no mesmo intervalo de tempo que outro humanolevariapararesponder.

Uma simples brincadeira de jogar uma bola para o cão pegar, porexemplo,éumadançadechamadaeresposta.Nósaapreciamosporcausadadisposição reativado cãonossas ações.Osgatos, ao contrário,não sãocompanheirosdessetipodediversão:elesdefatopodemtrazerumobjetoatévocê,masnotempodeles.Oscãesparticipamemumtipodecomunhãocom seus donos, ambos em volta da bola, cada um respondendo em umritmo conversacional: em segundos, não horas. Os cães agem comohumanosmuitocooperativos.Outrabrincadeiraconsistesimplesmenteemrealizarumaatividadeemparalelo: correr juntos,Nasbrincadeirasentrecães,oparalelismoécomum.Doiscãespodemimitarobocejoumdooutrorepetidamente.Muitasvezes,umcãoobservae,emseguida,acompanhaapreocupaçãodooutro:cavarumburaco;mastigarumgraveto;exibirumabola. Assim como os lobos caçam juntos colaborativamente, essacapacidadede agir comoutros, acompanhando seu comportamento, podevir de seus ancestrais. Quando nosso tapa de brincadeira é imitado pelocão,nósnossentimosrepentinamenteemcomunicaçãocomoutraespécie.

Experimentamos a sensibilidade do cão como indicativa de umacompreensãomútua:estamosnessacaminhada juntos;estamosbrincandojuntos.Ospesquisadoresqueanalisaramospadrões temporaisdenossasinteraçõescomoscãesdescobriramqueelessãosemelhantesaospadrõestemporais dos lertes entre estranhos de sexo oposto e daqueles usadospelos jogadores de futebol que se movem pelo campo em uma jogadaensaiada. Há sequências ocultas de comportamentos paralelos que serepetemnainteração:ocãoolhaparaorostododonoantesdepegarumgraveto;umapessoa aponta eumcachorro segueadireçãoda indicação.

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Assequênciassãorepetidas,eelassãoprevisíveis,portanto,comopassardo tempo começamos a ter a sensação de que existe um pactocompartilhado de interação entre nós. Nenhuma das sequências é em sicomplicada, mas nenhuma é casual, e juntas elas têm um resultadocumulativo.

Caminhe pela Quinta Avenida no centro de Manhattan por volta dahoradoalmoçoemumdiadesemanaevocêviveráafrustraçãoeoprazerde ser um membro da espécie humana. As calçadas icam cheias depessoas, apinhadas de turistas vagando e observando com admiração; osfuncionáriosdosescritóriosapressadosparaalmoçaroumatandootempoantes de retornarem ao trabalho; os vendedores de rua correndo dosagentes de iscalização. É uma visão assustadora, à qual você pode nãoquerersejuntar.Namaioriadosdias,noentanto,vocêpodeadotaropassoque quiser e transitar em meio à multidão com a mesma facilidade.Especula-sequeaspessoasandandoemmassanãocolidemporquesomosinstantâneaefacilmenteprevisíveis.Énecessárioapenasumolharrápidopara calcular quando a pessoa que se aproxima o alcançará.Inconscientemente, você sedesvia sutilmentepara adireitapara evitá-la;ela faz o mesmo em relação a você. É parecido com (mas não tãocompletamente bem-sucedido quanto) o comportamento do cardume depeixes que bruscamente, como se todos tivessem apenas uma mente,viram as costas e passam a nadar na direção de onde vieram. Somossociais,eosanimaissociaiscoordenamsuasações .Oqueoscães fazeméromper a linha divisória entre as espécies e coordenar conosco. Pegue acoleira de qualquer cachorro na sua vizinhança e imediatamente vocêsestarãoandandojuntos,comovelhosamigos.

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O signi icado desses três elementos é corroborado pelos tipos desentimentosgeradosquandoelesdesaparecem:traiçãodepequenaescala,quebramomentâneadaligação.Háumsentimentodedesconexãoquandonosaproximamosparacumprimentarumcãoeeleviraacabeça,evitandoocontato.Afrustraçãoéimediataquandoumcãoparadecooperaredeixadealternarospapéisemumabrincadeira:recusando-seatrazeraboladevolta, não vendo o arremesso ou deixando de perseguir o objetoarremessado.Háumsentimentodetraiçãoquandoacomunicaçãosimplesde Vem! não é seguida por um cão vindo. E seria de partir o coraçãoaproximar-sedeseucãoeverquesuapresençanãoestimulouorabodelea abanar, as orelhas a se achataremou a barriga a virar para cimaparasercoçada.Oscãesquepercebemoscomoteimososoudesobedientessãoaqueles que desconsideram esses elementos. Porém, tais elementos sãonaturaisparaambos,elesenós;émaisprovávelqueumcãodesobedientesimplesmente não perceba quais regras ele está sendo solicitado aobedecer.

OEFEITODALIGAÇÃO

Nossa ligaçãocomoscãesé fortalecidapelocontato,pelasincroniaepelamarcação dos encontros com uma cerimônia de cumprimento. Assim,

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também somos fortalecidos pela ligação, O simples ato de acariciar umcachorropode reduzir a hiperatividadedo sistemanervoso simpático emminutos: um coração disparado; a pressão arterial alta; transpiraçãoexcessiva. Os níveis de endor inas (os hormônios que nos fazem sentirbem),oxitocinaeprolactina(oshormôniosenvolvidosnasligaçõessociais)elevam-sequandoestamoscomcães.Osníveisdecortisol(ohormôniodoestresse)baixam.Existemboasrazõesparaseacreditarqueaconvivênciacom um cachorro proporciona um apoio social que reduz o risco dediversasdoenças—cardiovascular,diabetes,pneumonia—emelhoraosíndices de recuperação delas. Em muitos casos, o cão recebe quase omesmobene ício.Acompanhiahumanapodebaixaroníveldecortisoldoanimal; as carícias podem acalmar os batimentos cardíacos. Para ambos,esseéum tipodeplacebo,oquenãosigni icaquenãoseja real,mas simque uma mudança é estimulada em nós sem um agente de mudançaconhecido.Ligar-seaumcãopodeteromesmoefeitodousoalongoprazode remédios receitados por médicos ou da terapia comportamentalcognitiva. É lógico que isso pode também não dar certo: a angústia deseparação é a consequência do sentimento do cachorro que se sente tãoligadoapontodenãoconseguirsedesligarporummomento.

Quaissãoosoutrosresultadosda ligação?Vimosoquantoelessabemsobre nós—nossos cheiros, nossa saúde, nossas emoções—, e isso nãoapenas por causa de sua perspicácia sensorial, mas também devido àsimples familiaridade conosco. Eles acabam por conhecer comonormalmenteagimos, cheiramoseparecemosnodiaadiae,por isso, sãocapazes de notar, muitas vezes de formas que nós não conseguimos,quandoháqualquermudança.Oefeitodaligaçãofuncionaporqueoscãesagem,namelhordashipóteses,comointerlocutoressociaisextremamentecompetentes. Eles são receptivos e, principalmente, prestam atenção emnós.

E essa conexão conosco é profunda. Uma experiência simples queconsistedehumanosbocejantesecãesindicaquenossoeloéinstintivo—no nível de um re lexo, Eles captam nossos bocejos. Exatamente comoacontece com os humanos, cães testados começaram a bocejardescontroladamente poucos minutos depois de virem alguém bocejando.Os chimpanzés são a única outra espécie que conhecemos para quembocejar é contagioso. Passe poucosminutos bocejando diante de seu cão(tentando não olhá-lo ixamente nem sorrir ou ceder a suas reclamações

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inevitáveis) e você poderá testemunhar essa conexão arraigada entrehumanosecães.

Bocejos caninos à parte, existe um limite para a ciência aqui. Muitointencionalmente, a ciência não está preocupada com a característica demaiorimportânciaparaosdonosdecães:osentimentoderelacionamentoentre uma pessoa e um cachorro. Esse sentimento é composto dea irmações e gestos, atividades coordenadas, silêncios compartilhados navidacotidiana.Dealgumaformaelepodeserdesconstruídocomafacademanteiga sem io da ciência, mas não pode ser reproduzido em umambienteexperimental:éarrogantementenãoexperimental.Muitasvezes,ospesquisadoresusamoque chamamosdeumprocedimento duplo-cegopara assegurar a validade dos dados. O sujeito sempre desconhece oobjetivodaexperiência,masemumsistemaduplo-cegooexperimentadortambém desconhece os dados do sujeito — se ele pertence ao grupoexperimental ou ao grupo de controle— que ele está analisando. Dessaforma,evita-seinadvertidamenteverocomportamentodosujeitocomoseajustandoumpoucomaisfirmementeàshipótesestestadas.

Em contrapartida, as interações humanos-cães felizmente são deanálise dupla-visão. Temos a sensação de saber exatamente o que o cãoestá fazendo; o cão talvez também tenha. O que acreditamos ver não é aessênciadaboaciência,masaessênciadeumainteraçãorecompensadora.

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A ligação nos transforma. Mais importante, em um instante, elapraticamente nos torna alguém capaz de se comunicar intimamente comanimais—comesseanimal,essecão.Umcomponenteimportantedenossaligaçãocomoscãeséoprazerquesentimosemsermos vistosporeles.Oscachorros têm impressões de nós; eles nos veem em seus olhos, noscheiram. Sabem sobre nós e estão ligados a nós comovente eindelevelmente.O ilósofo JacquesDerrida teceuconsideraçõesa respeitode seu gato vê-lo nu; ele icou assustado e constrangido. Para Derrida, oque assustava era que o animal re letia sua imagem para ele. QuandoDerridaviaseugato,oqueviaeraogatovendo-oemsuanudez.

Eleestavacertoemenvolvernossaautoestimaemnossaestimapelosbichos de estimação. (Que eu saiba, no entanto, Derrida nunca teve umcachorro; seu desconforto poderia ter sido muito maior diante do olharaltivodocão.)Élógicoquenósnosdivertimoscomosanimaispeloquesão.Noentanto,partedoquepercebemosquandoolhamosparaumcãoé:eleestá olhando para nós. Esse também é um componente de nossa ligação.Ainda imaginominha cadela, Pumpernickel, olhando para mim, vendo-senosmeusolhos.Eeuolhoparaelaemevejonosolhosdela.

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AimportânciadasmanhãsPump mudou meu umwelt . Andando pelo mundo com ela, observando suas reações, comecei aimaginarsuaexperiência.Meuprazeremumcaminhoestreitoecheiodecurvasemuma lorestasombreada, ladeado por grama e arbustos baixos, deriva, em parte, de ver como Pump gostavadele: o frescor da sombra, claro, mas também o caminho, ao longo do qual ela podia correrlivremente,parandoapenasparaexcitar-secomosodores.

Agora, quando vejo os quarteirões da cidade, com seus edi ícios e calçadas, penso em suaspossibilidades de farejo investigativo: uma calçada ao longo de um muro comprido, sem cercas,árvoresouvariações,éumquarteirãopeloqualeununcaescolheriaandar,Minhaescolhadeondesentar noparque—emquebanco oupedra— se baseia no lugar emqueum cão aomeu ladoteriaomelhorpanoramaolfativo.Pumpadoravagrandesgramadosabertos—parasedeitar, rolarrepetidas vezes, cheirar sem parar — e grama alta ou mato — para galopar majestosamenteatravés dele. Eu acabei adorando grandes gramados abertos, grama alta e mato, antecipando oprazer que ela sentiria, (O interesse em rolar em meio a cheiros invisíveis permanece de di ícilcompreensão...)

Cheiromaisomundo.Adorosemaraoarlivreemumdiadevento.

Meudiaévoltadoparaasmanhãs.Aimportânciadasmanhãssempreteveavercomofatodeque,seeuacordassesu icientementecedo,poderíamosfazerumalongacaminhadajuntas,semcoleira,emumparqueoupraiarelativamentevazios.Aindanãoconsigodormiratétarde.

Ficoumpouquinhomaisreconfortadaaoperceberoquantoelaestáentranhadaemmim,mesmoapós um ano desde o dia emque ela estava ameu lado, pronta para se submeter a cócegas noscaracóisdensossobseuqueixoenquantoorepousavanochãopelaúltimavez.

Sentada comumcachorrono colo, considerandooque sabemos sobre ascapacidades, experiências e percepções deles, sinto que estou a meiocaminho de me tornar um cão. Ainda mais que, agora mesmo, estoucobertaporpelosdeum.

Mesmo sem estarmos envoltos em pelos, conhecer a ciência caninaaumenta nosso entendimento e apreciação do comportamento desseanimal: como ele deriva do canídeo ancestral; da domesticação; de suaacuidade sensorial; e de sua sensibilidade em relação a nós. Comalgumasorte,esseconhecimentopenetraráemvocêsevocêsverãoocachorrodoponto de vista dele. Ao longo do percurso, aqui estão algumas ideias deformas — impregnadas de umwelt— de se relacionar com seu cão,interpretarseucomportamentoeconsiderá-loemsuavida.

FAÇAUMA“CAMINHADAOLFATIVA”

Amaioriadenósconcordariaquepasseamoscomoscãesporcausadeles.EraporcausadePumpqueeuacordavabemcedotodasasmanhãs,para

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darumacaminhadasemcoleiranoparque;porcausadelaeuvoltavaparacasadurante o dia paradarmosumavolta noquarteirão; por causadelaeume calçava antes de ir para a cama e seguia para umpasseio emumestadoquasezumbi.Ospasseioscomcãessãomuitasvezesrealizadossemconsideração pelo bem-estar deles, mas estranhamente desempenhamumade iniçãomuitohumanadeumacaminhada.Queremosnãodemorar,manterumpassorápido,iraoscorreiosevoltarlogo.Aspessoasarrastamseuscãesjuntoaelas,puxandoascoleirasparaafastarfocinhosdecheirosedecãesatraentes,paracontinuaracaminhadasemparar.

Ocãonãosepreocupaemnãodemorar.Pensenopasseiodesejadoporele. Pumpe eu tínhamosumavariedadeboa.Havia caminhadasolfativas,em que não fazíamos progresso algum, mas ela inalava moléculaspúrpuras, enormes e hipnotizantes. Havia caminhadas escolhidas porPump, nas quais eu a deixava escolher que caminho seguir em cadacruzamento.Haviacaminhadastortuosas,emqueeumerestringiaemvezderestringi-la,enquantoelapuxavaacoleiradadireitaparaaesquerdaede novo para a direita. Quando Pump era jovem, ela concordavatacitamenteemcorrercomigoquandoeuconcordavaempausardevezemquandoparadarvoltasemtornodelaenquantoelagiravaaoredordeumcão interessante. Quando icou mais velha, havia até caminhadas nãoandantes, nas quais ela deitava e icava imóvel até estar pronta paraprosseguir.

ADESTRAMENTOPENSADO

Ensineoquevocêquera seucãodeuma formaqueelepossaentender:sejaclaro(sobreoquevocêdesejaqueelefaça),consistente(noquepedee como pede) e faça com que ele saiba quando acerta (recompense-oimediatamenteecomfrequência).Umbomadestramentoéoresultadodoentendimentodamentedocão—oqueelepercebeeoqueomotiva.

Eviteosequívocoscomunsàquelesquepossuemumaideiaclássicadoque um cão deve fazer: sentar, icar parado, obedecer. Seu cachorro nãonasceu sabendo o que signi ica vem aqui. Você precisa ensiná-loexplicitamente,passoapasso,erecompensá-loquandoelerealmentevem.Os cães são capazes de notar as pistas mínimas produzidas por você—pistasquepodemser asmesmasquandovocêdizvem e quando diz sai!:umtomdevoz,umaposturacorporal.Vocêprecisafazercomqueopedido

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sejaespecíficoenítido.

O treinamento pode demorar bastante; seja paciente. Quando atémesmo um cão "treinado" não atende a um chamado, muitas vezes aspessoasoprocurameopunem—esquecendoque, dopontodevistadocachorro, a punição está ligada a sua chegada, não à desobediênciaanterior dele. Essa é uma maneira rápida e e iciente de ele aprender anuncavirquandoforchamado.

Quando vem aqui foi aprendido, pode-se a irmar com justiça que nãoexiste muito mais em termos de comandos que um cão comum precisesaber. Ensine mais, se você e ele gostarem disso. O que um cão maisprecisa aprender é a importância que você tem— e isso é algo que elenasceu com a capacidade de perceber. Um cão que não consegue "dar apatinha"quandosolicitadoéapenasumpoucomaiscão.Deixeclaroquaiscomportamentos você não gosta e seja consistente em não reforçá-los.Poucosapreciamumcãoqueseatiraemcimadaspessoasquandoelasseaproximam, mas comece com a premissa de que somos nós que nosmantemos (e a nossos rostos) insuportavelmente afastados e podemoschegaraumentendimentomútuo.

DEIXEQUESEUCÃOSEJACÃO

Deixé-orolar naquelacoisaqualquerdevezemquando.Tolerequeelesemeta em poças de lama de vez em quando. Ande com ele sem coleiraquandopuder,Quandonãopuder,nãoapuxecomforça,nunca.Aprendaadistinguir uma mordidela de uma mordida, Deixe os cães que seaproximamcheiraremostraseirosunsdosoutros.

CONSIDEREAFONTE

Porque ele faz isso?Quase todososdiasme fazemessapergunta.Muitasvezes,minha resposta sópode serquenem todosos comportamentosdeumcãopossuemumaexplicação.Àsvezes,quandoumcãoderepenteseestatela no chão e olha para você, ele está apenas deitando e olhando —nadamais.Nemtodocomportamentosigni icaalgo.Aquelesquesigni icamalgo devem ser explicados levando-se em consideração a história naturaldocão—comoumanimal,comoumcanídeoecomomembrodeumaraçaespecífica.

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Araçaimporta:umcãoque itaumapresainvisíveloulentamentecaçaoutros cães pode estar apresentando um comportamento "visual" muitobom para um pastor. Assim também acontece com aquele que ica a litoquando uma pessoa deixa a sala ou que belisca os calcanhares dequalquer um que passe pelo corredor. Ficar parado em resposta a ummovimento nós arbustos diminui o ritmo de sua caminhada, mas é umcomportamentomuito bom para os cães de aponte. Um cão de raça semtarefaspode icar agitado,nervoso,perturbado:disperso,não claramentemotivado para fazer qualquer atividade. Dê-lhe alguma. Essa é a grandeciênciaportrásde"jogarumabola":umretriever icafelizsódefazerissovez após vez. Ele está exercendo sua capacidade. Por outro lado, se seucachorropossuium focinhopequenoe temproblemasderespiração,nãopresumaqueelepodecorrercomvocê.Essemesmocão,comvisãocentralepróxima,podenãogostardo jogode pegar, enquanto um retriever comuma tendência para visão ampla pode gostar apenas disso. Dê a seu cãoum contexto para desenvolver suas predisposições inatas — e deixe-oregalar-seumpoucoolhandoparaosarbustosdevezemquando.

Aanimalidade importa: adapte-seàs capacidadesde seu cachorroemvezdesimplesmenteesperarqueeleseadapteàssuasestranhasnoçõesde como um cão deveria ser. Queremos que nossos cães andem junto denossoscalcanhares— já vi pessoas icarem furiosas quando seus animaisnãofazemisso—,maselespodemsermaisoumenospropensosaandarperto e no ritmo de seus companheiros sociais. Os retrievers fazem isso,mas as raças esportivas podem não fazê-lo (ambos icarão de olho emvocê). Além disso, amaioria dos cães prefere um lado a outro; portanto,quandoos colocamos ànossa esquerda, como toda aulade adestramentonosensina,podemosestarprejudicandoalgunscãesmaisdoqueoutros(ecausandoumafrustraçãoinevitávelseoscheirosbonsestiveremtodosdolado direito do caminho). Seria uma pena punir um animal semnecessidadesimplesmenteporquedesconhecemossuanatureza.Nemtodocãoprecisaandarjuntoanossoscalcanharesdamesmaforma:oessencialésimplesmenteestarseguroesercontrolável.

A"caninidade"importa.Seucachorroéumacriaturasocial:nãoodeixesozinhoamaiorpartedesuavida.

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DÊ-LHEALGOPARAFAZER

Umadasmelhoresmaneiras de descobrir os interesses e as capacidadesde seu cão é simplesmente apresentar-lhe uma porção de objetos queprovoquemumapossívelinteração.Balançarum iopelochãonafrentedofocinho dele; esconder uma guloseima em uma caixa de sapatos; ouinvestir em um daqueles brinquedos criativos disponíveis no mercado.Uma série de objetos para enterrar, en iar o focinho, mastigar, sacudir,agitar, perseguir ou observar vão atrair seu cão — e evitarão que eleencontreseusprópriosobjetosmastigáveiseenterráveisentresuascoisas.Osadestramentosdeagilidadeaoarlivre,oualgumcaminhodeobstáculospropositalmentecriado,sãoumaformabemde inidadeenvolvereatrairointeresse de muitos cães enérgicos, porém determinados. No entanto, ointeresse pode ser despertado simplesmente por um caminho cheio decurvasecheiros,oupartesinexploradasdeumcampo.

Os cães tantogostamdo familiarquantodonovo.A felicidadevemdanovidade—novosbrinquedos,novasguloseimas—emumlugarseguroebemconhecido.Issotudopodetambémserumacuraparaotédio:onovodemandaatençãoeaçãoimediata.Escondercomidaaserprocuradaéumexemplo: eles precisam semovimentar para explorar o espaço, usando ofocinho,aspataseabocaaomesmotempo.Paravercomoonovo ébom,bastaobservaraexuberânciadeumcãoadestradoemprovasdeagilidadefazendoumpercursonovo.

BRINQUECOMELE

Na juventude, mas até mesmo ao longo de toda a vida, os cães estãoconstantemente aprendendo sobre o mundo, como uma criança emdesenvolvimento. Os jogos que as crianças acham divertidos eimpressionantestambémfuncionamcomoscães.Brincadeiradeesconder,desaparecer numa esquina ou sob um cobertor, em vez de por trás dasmãos, são especialmente divertidas quando o cachorro está aprendendosobre o deslocamento invisível— ou seja, os objetos continuam a existirmesmoquandonãoseconseguemaisvê-los.Oscãespercebemassociaçõescom astúcia, e você pode brincar com isso: toque a campainha antes dojantar — Ivan Pavlov descobriu isso — e os cães antecipam a hora do

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jantar. Você pode associar campainhas — ou buzinas, apitos, gaitas-de-boca,músicagospel,quasequalquercoisa—nãoapenasàcomida,masàchegadade alguémouàhoradobanho.Construauma cadeia associativa—e trate as ações de seu cão comopartes adicionais dessa cadeia. Façabrincadeiras de imitação, espelhando o que seu cão faz: pular na cama,uivar,acariciaroar.Observe-ashabilidadesatuaisdeseucachorroetenteampliar suas capacidades. Se ele parece saber andar ou pegar bolas,comece a usar palavras que façam distinções mais sutis: caminhada decheiroebolaazul;caminhadadecheiroaoanoitecer ebolaazulqueapita.E,emqualquer idade,brinquecomele comoumcão faria.Escolhaumsinaldebrincar—bata comasmãosnochão, imiteofegarpertoda caradele,Corraolhandoparaele—ebrinque.Façacomasmãosoqueelefazcomaboca e agarre a cabeça, pernas, rabo e barriga dele. Dê-lhe um bombrinquedo para segurar ou se prepare para receber umas mordidelas.Fiquedeolhoparaverseseurabocomeçaabalançar.

OLHENOVAMENTE

Muitoprazerpodeserobtidonaobservaçãodascaracterísticasinvisíveisevisíveisdeseucão:tudoaquiloqueemgeral ignoramosquandoéexibidobemanossa frente,Agorasabemosoquantoelespodemestaratentosàspessoaseanossaatenção:observeosváriosmétodoscriativosqueeleusapara tentar atrair sua atenção. Ele late ou urra? Fita vocêmelancolicamente?Suspiraalto?Marchaparafrenteeparatrásentrevocêe a porta? Coloca a cabeça em seu colo? Descubra as características quevocê gosta e responda a elas, deixando as outras desapareceremnaturalmente.

Observecomoseucãousaosolhos:ofurordofocinho;comoasorelhasdobrampara trás, seendireitamesedirecionamparaum latidodistante.Observe todos os sons que ele faz e todos os que ele nota. Atémesmo aforma como ele se movimenta — uma ação tão familiar que o tornareconhecível a distancia se transforma sob um exame detalhado: queformade andar ele usa?Um cachorro de tamanhomédio pode caminharcom um andar clássico, a pata traseira de um lado do corpo lentamenteperseguindoadianteiranochão,aspatasdiagonaissemovendoquaseemsincronia. Apressando-se um pouco, ele trota , as patas diagonais agoraandando uma após a outra, ocasionalmente com apenas uma das quatropatasapoiadanochão.Entreotroteeocaminharestáoandardoscãesde

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pernas curtas: típico do buldogue, com a parte dianteira do troncoavantajada e larga, o traseiro rolando enquanto anda. Os cães de pernascompridassãomelhoresnogalope, a formade correrdos galgos, naqualas patas traseiras precedem as dianteiras no chão, o corpo alternandoentre icaresticadoecomprimidocomoumamolaemplenoar.Nogalope,aquelequintodedorudimentarencontradonomeiodapernadianteiradamaioriadoscães—odewclaw—éusadoparaestabilizarealavancar;noinaldeumgalopeé comumencontrar acúmulosde lama sobo dewclaw,que costuma ser limpo. Os cães de tamanho pequeno dão um meio salto,trazendoasduaspatastraseirasparaafrenteaomesmotempo,massemsincronia comasdianteiras.Outros cães marcham, as patas esquerdas semovendopara a frente e baixando imediatamente, seguidas rapidamentepelas direitas. Surpreenda-se ao tentar acompanhar a complexidade domododeandardeseucão.

ESPIONE-O

Para entender como é o dia de seu cão em casa sozinho, não deixe deilmá-lo.UmdosprazeresmaioresquetivecomPumpernickelfoivê-laagirnaminhaausência.Apesardehorasde ilmagem,raramentedirigiminhacâmerapara ela. Foi apenas quando ela nãome esperava—quandoumamigosaíracomelaeeuchegueisemaviso—queaviemaçãosemmim.

Foi espetacular de se ver. Você pode recriar esse tipo de espetáculopreparando uma ilmagem de sua casa antes de sair para passar o diafora. Recomendo essa "espionagem" não porque ela sempre proporcioneespetáculos—nãoéocaso—,masporqueelalhepermitirávercomoéavidadeseucãosemvocêporperto.Vocêentenderámaiscompletamentecomoéodiadeleaovermaistardeumrecortedodia,minutoaminuto.

OqueviemminhaespionagemfoiaindependênciadePump,livrenãoapenasdanecessidadedemeobedecer,masdotipodeescrutínioaoqualsubmetia todos os seus comportamentos. Ela existia tranquilamente semmim,duranteashorasqueeuvagueavapelalivraria,nasminhascorridasextralongas ou quando saía para jantar em algum lugar e depois seguiapara uns drinques em outro local. Tudo isso ao mesmo tempo metranquilizava e me deixava totalmente morti icada. Fico feliz por elaconseguir administrar o dia na própria companhia; no entanto, às vezes,ficoimpressionadaporterconseguidodeixá-laemcasasozinha.

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Muitoscãessimplesmente icamsósodiainteirocompoucoparafazer;espera-se que eles aguardem nosso retorno e depois ajam exatamentecomo queremos que façam. Então icamos surpresos e horrorizadosquandofazemalgoemnossaausência!Jáéquasepartedesuaconstituiçãoque eles tenham que aguentar esse tratamento (e, pior ainda,interpretaçõeserrôneasenegligência).Podemos,econseguimos,fazerissosem consequências adversas. Contudo, os cães são indivíduos. É por essarazão que eles exigem— e merecem—mais atenção a seus umwelten,suasexperiências,seuspontosdevista.

NÃOLHEDÊBANHOTODOSOSDIAS

Deixe-os cheirar como cães por tanto tempo quanto for tolerável. Algunsdeles desenvolverão feridas dolorosas na pele por causa de banhosregulares.Enenhumcãoquercheiraralimpo.

LEIAASINTENÇÕESDOCÃO

Como jogadores de pôquer novatos, os cães revelam o que poderia sechamar de "intenções" — suas "cartas" — em cada movimento, se vocêsimplesmente olhar. As con igurações do corpo, cara, cabeça e rabo sãotodassigni icativas.Ehámaissentidoneledoqueorabobalançandoouoslatidos:cãesconseguemdizermaisdeumacoisaacadamomento.Umcãolatindocujorabovarreocéunãoestá"prontoparaatacar",massimmaiscurioso, alerta, incerto — e interessado. Um rabo baixo vigorosamenteabanando abranda a agressividade de um cão familiar que resmungaenquantovigiaumabola.

Dadaaimportânciadocontatovisualparatodososcanídeos,eousodoolharpeloscães,épossívelobterumaporçãodeinformaçõesarespeitodeum cão desconhecido pormeio de seus olhos. O contato visual constantepode ser ameaçador: não se aproxime de um cachorro encarando-o semparar—issopodeserpercebidocomoumatentativadedominá-lo.Seeleo está encarando,desvie seuolhar, virando-se ligeiramente, quebrandoocontatovisual.Eles fazemomesmoquandoestão tensos:voltamacabeçaparaolado,oudistraem-secomumbocejoouuminteresserepentinoporum cheiro no chão. Se você acha que é alvo de um olhar ameaçador,con irmeissoolhandoparaoscomportamentosqueoacompanham:peloseriçados, orelhas eretas, rabo hirto, corpo paralisado. Umolhar comuma

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língualambendorapidamenteoarsignificamaisadoraçãodoqueameaça.

UMTOQUEAMIGO

Embora quase todos pareçam acariciáveis, nem todo cão gosta de seracariciado. Prestar atenção nisso não é um sinal apenas de polidez, àsvezesé imperativo: umcãomedrosooudoentepode responder ao toquecomagressão.Existemgrandesdiferençasindividuaisnasensibilidadedoscães ao toque, e sua receptividade, em um dado momento, pode seralterada pelo estado de saúde, humor e experiências anteriores. Paramuitos cães, o toque certo dado por um humano é uma experiência queacalma e aproxima; uma mão irme é relaxante; uma irme demais éprovavelmente opressiva. Eles (e você)podem ser isicamente acalmadospor carinhos contínuos e irmes da cabeça ao traseiro, ou por umamassagemmuscular profunda benfeita. Observe as reações de seu cão eencontreaszonasdetoquepreferidasdele.Edeixe-ococá-lo.

PEGUEUMVIRA-LATA

Sevocêaindanãotemumcachorro,oupretendepegaroutro,tenhoaraçaideal para você: o cão sem raça, o vira-lata. Omito de que um animal deabrigo, sobretudoumde raçamista,não será tãobome con iávelquantoumderaçapuranãoestáapenasequivocado;étotalmenteretrógrado:oscães de raçamista sãomais saudáveis,menos ansiosos e vivemmais. Aoadquirir um cão de raça, você não está simplesmente comprando umobjeto ixo, prontopara agirdedeterminadasmaneiras—não importaoqueocriadorlhediga.Talvezvocêleveparacasaumcãocomuma ixaçãoexagerada, criado para uma tarefa que provavelmente nunca executaráenquanto viver com você (e mesmo assim ainda será maravilhosamentecanino). Os vira-latas, por outro lado, com suas características de raçadiluídas,acabamadquirindomuitascapacidadeslatentesemenosmanias.

ANTROPOMORFIZETENDOOUMWELTEMMENTE

Emnossospasseios,Pumpnunca icavasatisfeitaem icarapenasdeumladodocaminho;iadeumladoparaoutro,volúvelmente.Segurando-apelacoleira,precisavaconstantementereajustarminhamão. Às vezes, quando insistia que ela icasse de um mesmo lado, Pump suspirava para mimenquantoambasolhávamospesarosamenteparaosbonspontosnãocheiradosdooutrolado.

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Mesmoempregandoumaabordagemcientí icadocão,nossurpreendemosusando palavras antropomór icas. Nossos cães — meu cão — fazemamigos, sentem-se culpados, divertem-se, têm ciúmes; entendem o quequeremosdizer,pensam,sabemmais; icamtristes,alegreseapavorados;querem,amam,esperam.

Essamaneiradefalaré fácil,eàsvezesútil,mastambémfazpartedeum fenômeno maior e mais excepcional. Quando reformulamos cadamomento da vida de um cachorro em termos humanos, começamos aperder completamente o contato com o animal que existe neles. Já não éraro que um cão seja banhado, vestido com roupas e festejado em seuaniversário. Tudo isso pode parecer benigno, mas também faz parte deuma "desanimalização" dos cães que é, até certo ponto, extrema.Raramente estamos presentes em seus nascimentos, e muitas pessoasescolherão não estar presente quando seus cães morrerem. Na maioriadasvezes,eliminamososexo:castramososcãesedesencorajamosamaismodesta estocada lasciva de seus quadris. Eles são alimentados comcomidaesterilizada,emtigelas;sãogeralmenterestritosàdistânciadeumacoleira de nossos calcanhares. Nas cidades, o excremento é recolhido ejogado no lixo. (Felizmente, ainda não os ensinamos a usar o banheiro...embora saibamos o quanto conveniente seria.) Os tipos de raça sãodescritos como produtos, com características especí icas. É como seestivéssemostentandonoslivrardaparteanimaldocão.

Se adotarmos a redução do fator animal a zero, teremos surpresasdesagradáveis. Nem sempre os cães se comportam exatamente comopensamosquedeveriamsecomportar.Elepodesentar,deitarerolare,emseguida, reverter magni icamente: de repente, agacha e urina dentro decasa, morde sua mão, cheira sua região genital, pula em cima de umestranho,comealgoemboladonagrama,nãoatendeaseuchamado,atacaviolentamenteumcãozinho.Dessaforma,nossasfrustraçõesemrelaçãoaelesmuitasvezessurgemdenossaextremaantropomor ização,quenegatodaaanimalidadedoscães.Umanimalcomplexonãopodeserexplicadodeformasimples.

Acondutaalternativanãoselimitaatrataranimaiscomoprecisamentenãohumanos.Agorapossuímosasferramentasparaavaliarmoscommaiorprecisão o comportamento deles: tendo em mente seu umwelt e suascapacidadesperceptuaisecognitivas.Tampoucoprecisamosassumiruma

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posição desapaixonada. Os cientistas antropomor izam... em casa. Dãonomes a seus bichos de estimação e veem amor no olhar de baixo paracimadeumcãocomnome.Naspesquisas,osnomessãoproibidos:emborapossamajudaraidenti icarosanimais,elesnãosãobenignos.Nomearumanimal selvagem"afetaopensamentodealguémsobreelepara sempre",observou um destacado biólogo de campo. Existem preconceitosobservacionais óbvios que são introduzidos assim que o sujeito de suasobservaçõesénomeado. JaneGoodall famosamenteviolouessamáxima,e"BarbaCinzenta" se tornou célebrenomundo inteiro.Contudo,paramim"Barba Cinzenta" lembra um homem idoso e sábio: consequentemente, épossívelqueeupercebaocomportamentodelecomosendomaisindicativode sabedoria do que de insensatez. Para distinguir animais, os etólogosusammarcas identi icatórias— faixas na perna, etiquetas oumarcaçõescom tinta no pelo ou nas penas — ou procuram pela identidade noscomportamentos habituais, na organização social ou nas característicasfísicasnaturais.*

*Emcertoscasos,nemessesmétodossãobenignos: icoufamosoocasodosdiamantesmandarim,avesqueforamcapturadaseparaefeitosdeidenti icação,receberam umafaixainofensivanapataenquanto os pesquisadores observavam suastáticasde acasalamento. Pasmem! A únicacaracterística encontrada que predizia o sucessomasculino no acasalamento foi a cor usada nasfaixas. A fême ado diamante mandarim aparentemente adora uma faixa vermelha na pata docompanheiro(osmachospreferemasfêmeascomfaixaspretas).

Nomearumcãoécomeçaratorná-loúnico—e,portanto,umacriaturaantropomor izável. Mas é assim que devemos proceder. Dar um nome aum cão é demonstrar interesse no entendimento da natureza dele; nãonomeá-loparece sero augedodesinteresse.Os cachorros chamados Cãome deixam triste: eles já estão de inidos como não sendo uma parteintegranteda vidadosdonos.O Cãonão temnomepróprio; ele é apenasuma subespécie taxonômica. Nunca será tratado como um indivíduo.Quando nomeamos um cão iniciamos a personalidade na qual ele sedesenvolverá.Aoexperimentardiferentesnomesparanossocão,soltandopalavras em sua direção — "Bela!","Fofinha!", "Pituca!" — para ver sealgum deles estimularia algum tipo de reação, senti que buscava pelo"nomedela":onomeque jáeradela.Com isso,ovínculoentrehumanoeanimal—moldadonoentendimento,nãonaprojeção—podiacomeçaraseformar.

Váolharseucão.Cheguepertodele! Imagineseu umwelt—edeixe-omudaroseu.

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Posfácio:Euemeucão

Àsvezes,encontroumprofundoreconhecimentonasfotogra iasdela;aquelasnasquaisseusolhossãoindistinguíveisemmeioàescuridãodeseupelo.Esse reconhecimentorepresentaparamimaformanaqualsemprehouvealgomisteriososobreaexistênciadelaparamim:comoeraserPump.Ela nunca revelou esse mistério. Mantinha sua privacidade reservada para si mesma. Sinto-meprivilegiadaportersidoautorizadaaentrarnaquelemundoparticular.

Pumpernickelentrouabanandooraboemminhavidaemagostode1990.Passamosquasetodososdias juntas,atéodiaemqueeladeuseuúltimosuspiro, emnovembrode2006.Aindapasso todososdiasdeminhavidacomela.

Pump foi uma completa surpresa, Não esperava ser mudadaconstitucionalmenteporumcachorro.Porém,deimediato icouclaroqueadescrição "um cachorro" não capturava a extraordinária abundância desuas facetas, a profundidade de sua experiência e as possibilidades deuma vida inteira conhecendo-a. Em pouco tempo, sentia prazersimplesmente por estar em sua companhia e orgulho de suas ações. Eraespirituosa,paciente,determinadaecharmosa—tudoissoemumgrandebolo de pelos. Era segura em suas opiniões (não suportava cãesnervosinhos)e,noentanto,eraabertaanovasexperiências(comoosgatosque eu ocasionalmente acolhia — apesar do desinteresse mútuo). Eraefusiva;leal;muitodivertida.

Entretanto,Pumpnãofoiumsujeitodeminhaspesquisas(pelomenos,não intencionalmente).Mesmoassim, levava-acomigoquando iaobservarcães. Muitas vezes, ela era minha senha para entrar nos parques e noscírculos caninos; sem um companheiro cachorro, uma pessoa pode sertratada com descon iança pelos animais e também por seus donos.Portanto,elaaparecedepassagememmuitosdemeusvídeosdesessõesdebrincadeiras—dentroeforadeles,jáqueminhacâmeramiravameussujeitos involuntários,nãoPump.Hoje,mearrependodadescuidada faltadeconsideraçãodacâmera.Emboratenhacapturadoasinteraçõessociaisque buscava — e, mais tarde, após muita revisão e análise doscomportamentos, eu tenha sido capaz de descobrir algumas capacidadessurpreendentesnoscães—,perdialgunsmomentoscomminhacadela.

Tododonodecachorroconcordariacomigo,acredito,sobreanaturezaespecial de seu cão. A razão nos diz que todomundo deve estar errado:porde inição,nemtodocãopodeserespecial—senão,oespecialsetorna

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comum.Porém,éarazãoqueestáerrada:oqueéespecialéahistóriadevidaquecadadonodecãoconstróicomseuanimaledescobresobreele.Não estou isenta desse sentimento, até mesmo de um ponto de vistacientí ico. As abordagens da ciência comportamental relativa aos cães,longe de remover essa história, simplesmente constroem em cima doentendimento singular do dono do cão— no conhecimento especial quecadadonopossuisobreele.

QuandoPumpestavapertodofimdesuavida,inegavelmentevelha,elaperdeupeso,o focinho icougrisalho,àsvezesdiminuíaopassoatépararde andar. Vi sua frustração, resignação, os impulsos perseguidos ouabandonados;visuasconsiderações,seucontroleesuatranquilidade.Masquandoolhavapara seu rosto edentrode seusolhos, ela eranovamenteum ilhote. Vi vislumbres daquele cão sem nome — que tãocooperativamentenosdeixoucolocarumacoleiragrandedemaisaoredordeseupescoço—-sairdoabrigoecaminhartrintaquarteirõesatéchegaremcasa.Edesdeentãomilharesdequilômetros.

Após conhecer Pump, e perdê-la, encontrei Finnegan. Já não consigoimaginar não conhecer essa nova personalidade: esse esfregador depernas,esseladrãodebolas,esseaquecedordecolos.EleéincrivelmentediferentedePumpernickel.Noentanto,oqueelameensinoutornoucadamomentocomFinneganinfinitamentemaisrico.

Ela levantou a cabeça e virou-a emminha direção, pulsando ligeiramente com sua respiração. Ofocinho estava escuro e molhado, os olhos tranquilos. Ela começou a lamber, lambidas longas ecompletas nas patas dianteiras, no chão. As plaquetas de identi icação em sua coleira batiam namadeira. As orelhas icavam achatadas, curvando um pouco para cima no inal como uma folhacaída, seca pelo sol. Naqueles dias, os dedos dianteiros estavam um pouco abaulados, as patastransformadasemgarrascomosepreparandoparadarumsalto.Elanãodeuumsalto.Bocejou.Foium longo epreguiçosobocejo vespertino, a língua languidamente examinandoo ar. Ela colocou acabeçaentreaspatas,expirouumtipodehar-ummmpefechouosolhos.

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Sobreaautora

Alexandra Horowitz graduou-se em iloso ia pela Universidade daPensilvânia e obteve o grau de doutora em ciência cognitiva pelaUniversidade da Califórnia em San Diego, estudando a cognição canina.Atualmente,elaéprofessoraassistentedepsicologiaemBarnardCollegeecontinuaapesquisaro comportamentocanino.Alémde seu trabalhocomcães, ela tambémestudaa cogniçãodehumanos, rinocerontesebonobos.Anteriormente,trabalhoucomolexicógrafaparaMerriam-Websterecomoveri icadora de fatos para o TheNewYorker. Ela vive na cidade de NovaYorkcomomarido,Finnegan,umcãodepaisincertosedecarátercerto,ememóriasagradáveisdecãesdopassado.

Notasefontes

Alémdas fontes listadasporcapítulo, façodiversasreferênciasaos livros listadosabaixo.Cadaumdelesfazumaabordagemacadêmica—eacessível—aocomportamento,cogniçãooutreinamentodo cão. Recomendo todos eles para qualquer um que esteja interessado em obtermais detalhessobreaciênciadocão.

Lindsay,S.R.2000.2001,2005.Handbookofapplieddogbehaviorandtraining(3volumes).Ames,Iowa:BlackwellPublishing.

McGreevy,P.eR.A.Boakes,2007.Carrotsandsticks:Principlesofanimaltraining.Cambridge:CambridgeUniversityPress.

Miklósi,Á.2007.Dogbehaviour,evolutíon,andcognition.Oxford.OxfordUniversityPress.

Serpell,J.,ed.1995.Thedomesticdog:Itsevolution,behaviourandinteractionswithpeople.Cambridge:CambridgeUniversityPress.

PRELÚDIO

sobreadeterminaçãodediferençasnoscérebrosdasespécies:

Page 261: A Cabeça do Cachorro - Alexandra Horowitz

Rogers,L.2004-Increasingthebrain'scapacity:Neocortex,newneurons,andhemisphericspecialisation.EmL.JRogers,eG.Kaplan,eds,Comparativevertebratecognition:Areprimatessuperiortonon-primates?(pp.289-324),NovaYork:KluwerAcademic/PlenumPublishers.

UMWELT:DAPERSPECTIVADOFOCINHODEUMCÃO

sobreosorrisodegolfinhos:

Bearzi,M.eC.B.Stanford.2008.Beautifulminds:TheparallellivesofGreatApesanddolphins.Cambridge,MA:HarvardUniversityPress.

sobreosorrisodemedodoschimpanzés:

Chadwick-Jones,J.2000.Developingasocialpsychologyofmonkeysandapes.EastSussex,ReinoUnido:PsychologyPress.

sobreolevantamentodesobrancelhasdosmacacos:

Kyes,R.C.eD.K.Candland.1987.Baboon(Papiohamadryas)visualpreferencesforregionsoftheface.JournalofComparativePsychology,4,345-348.

deWaal,EB.M.,M.Dindo,C.A.FreemaneM.J.Hall.2005.Themonkeyintheminor:Hardlyastranger.ProceedingsoftheNationalAcademyofSciences,102,11140-11147.

sobreaspreferênciasdosfrangos:

Febrer,K.,T.A.Jones,C.A.DonnellyeM.S.Dawkins.2006.Forcedtocrowdorchoosingtocluster?Spatialdistributionindicatessocialattractioninbroilerchickens.AnimalBehaviour,72,1291-1300.

sobremorderfocinhosesubmissãoemlobos:

Fox,M.W.1971.Behaviourofwolves.dogsandrelatedcanids.NovaYork:Harper&Row.

sobreexperiênciasdechoque:

Seligman,M.E.P,S.F.MaiereJ.H.Geer.1965.Alleviationoflearnedhelplessnessinthedog.JournalofAbnormalPsychology,73,256-262.

sobreumwelt,carrapatosetonsfuncionais:

vonUexküll,J.1957/1934.Astrollthroughtheworldsofanimalsandmen.EmC.H.Schiller,ed.Instinctivebehavior:Thedevelopmentofamodernconcept(pp.5-80).NovaYork:InternationalUniversitiesPress.

sobreratospessimistas.

Harding,E.J.,E,S.PauleM.Mendl.2004.CognitivebiasandaffectivestateNature,427.312.

sobrebeijoscaninos:

Pox,1971.

sobreosentidodegostocanino:

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Lindemann,B.1996.Tastereception.PhysiologicalReviews,76,719-766.Serpell,1995.

"formaimpressionantedemostraremseuafeto..."

Darwin,C.1872/1965.Theexpressionoftheemotionsinmanandanimals.Chicago:UniversityofChicagoPress,p.118.

PERTENCENDOACASA

sobreavariedadedecanídeos:

Macdonald,D.W.eC.Sillero-Zubiri.2004.Thebiologyandconservationofwildcanids.Oxford:OxfordUniversityPress.

sobreatoxicidadedaspassas:

McKnight,K.Feb.2005.Toxicologybrief:Grapeandraisintoxicityindogs.VeterinaryTechnician,26,135-136.

aetimologiade"domesticado":

RetireiessacitaçãododicionáriodeSamuelJohnsonde1755:domesticadoedomesticksãoambasparcialmentedefinidascomo"pertencendoàcasa;nãorelacionadoacoisaspúblicas".

sobreexperiênciasdedomesticaçãoderaposas:

Belyaev,D.K.1979.Destabilizingselectionasafactorindomestication.JournalofHeredity,70,301-308.

Trut,L.N.1999.Earlycaniddomestication:Thefarm-foxexperiment.AmericanScientist,87,160-169.

sobreocomportamentoeaanatomiadoslobos:

Mech,D.L.,eL.Boitani.2003.Wolves:Behavior,ecology,andconservation.Chicago:UniversityofChicagoPress.

sobredomesticação:

Hámuitasteoriasatuaissobreadomesticaçãodoscães.AapresentadaaquiécorroboradatantopordescobertasrecentesdemtDNAcomoporummelhorentendimentodagenéticadaseleção.ElaédiscutidaemR.CoppingereL.Coppinger.2001.Dogs:Astartlingnewunderstandingofcanineorigin,behavior,andevolution.NovaYork:Scribner.

Clutton-Brock,J.1999.Anaturalhistoryofdomesticatedmammals,2aed.Cambridge:CambridgeUniversityPress.

sobreadatadaprimeiradomesticação:

Ostrander,E.A.,U.GigereK.Lindblad-Toh,eds.2006.Thedoganditsgenome.ColdSpringHarbor,NY:ColdSpringHarborLaboratoryPress.

Vila,C.,P.Savolainen,J.E.Maldonado,I.R.Amorim,J.E.Rice,R.L.Honeycutt,K.A.Crandall,J.LundebergeR.K.Wayne,1997.Multipleandancientoriginsofthedomesticdog.Science,276,1687-1689.

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sobredesenvolvimento:

MecheBoitani,2003.

Scott,J.P.eJ.L.Fuller.1965.Geneticsandthesocialbehaviourofthedog.Chicago:UniversityofChicagoPress.

sobreadiferençanodesenvolvimentoentreopoodleeohusky:

Feddersen-Petersen,D.,emMiklósi,2007.

sobreatarefadacordadoslobos:

Miklósi,Á.,E.Kubinyi,J.Topál,M.Gácsi,Zs.VirányieV.Csányi.2003.Asimplereasonforabigdifference:Wolvesdonotlookbackathumans,butdogsdo.CurrentBiology,13,763-766.

sobreocontatovisual:

Fox,1971.

Serpell,J.1996.Inthecompanyofanimals:Astudyofhuman-animalrelationships.Cambridge:CambridgeUniversityPress.

sobreraças:

Garber,M.1996.Doglove.NovaYork:Simon&Schuster.Ostranderetal.,2006.

sobreasrelaçõesentreocomprimentodapernaeotamanhodopeito:

Brown,C.M.1986.Doglocomotionandgaitanalysis.WheatRidge,CO:HoflinPublishingLtd.

sobreoIbizaneoFaraó:

Parker,H.G,L.V.Kim,N.B.Sutter,S.Carlson,T.D.Lorentzen,T.B.Malek,G,S.Johnson,H.B.DeFrance,E.A.OstrandereL.Kruglyak.2004.Geneticstructureofthepurebreddomesticdog.Science,304,1160-1164.

sobreasespecificaçõesdasraças:

Crowley,J.eB.Adelman,eds.1998.Thecompletedogbook,19aedição.PublicaçãodoAmericanKennelClub.NovaYork:HowellBookHouse.

sobreogenomacanino:

Kirkness,E.F.etal.2003.Thedoggenome:Surveysequencingandcomparativeanalysis.Science,301,1898-1903.

Lindblad-Toh,K.etal.2005.Genomesequence,comparativeanalysisandhaplo-typestructureofthedomesticdog.Nature,438,803-819.

Ostranderetal.,2006.

Parkeretal.,2004.

Page 264: A Cabeça do Cachorro - Alexandra Horowitz

sobreraçasagressivas:

Duffy,D.L.,Y.HsueJ.A.Serpell.2008.Breeddifferencesincanineaggression.AppliedAnimalBehaviorScience.114,441-460.

sobreocomportamentodocãopastor:

CoppingerandCoppinger,2001.

sobrealcateias:

Mech,L.D.1999.Alphastatus,dominance,anddivisionoflaborinwolfpacks.CanadianJournalofZoology,77,1196-1203

MecheBoitani,2003,especialmenteL.D.MecheL.Boitani."Wolfsocialecology"(pp.1-34)ePackard,J.M.uWolfbehavior:Reproductive,social,andintelligent"(pp.35-65).

sobrerastrosdecãeselobos:

Miller,D.1981.TrackFinder.Rochester,NY:NatureStudyGuildPublishers.

sobrecãesselvagens:

Beck,A.M.2002.Theecologyofstraydogs:Astudyoffree-rangingurbananimals,WestLafayette,IN:NotaBellBooks.

sobrecãeslivresitalianos:

Cafazzo.S,.PValsecchi,C.FantinieE.Natoli.2008.Socialdynamicsofagroupoffree-rangingdomesticdogslivinginasuburbanenvironment.EnsaioapresentadonoForumdeCiênciaCanina-Budapeste,Hungria.

sobreoprojetodesocializaçãodelobos:

Kubinyi,E.,Zs,VirányieÁ.Miklósi.2007.Comparativesocialcognition:Fromwolfanddogtohumans.ComparativeCognition&BehaviorReviews,2,26-46.

"confusãoextremaebarulhenta":

WilliamJamesusouessaspalavrasparadescreverafaltadeorganizaçãodasinformaçõesqueumacriançarecebepelaprimeiravezatravésdossentidosincipienies:James,W.1890.Principlesofpsychology.NovaYork:HenryHolt&Co.,p.488.

"blocobrancoedisformedecarne...":

Plínio,oVelho.Naturalhistory(tr.H.Rackham,1963),Volume3.Cambridge,MA:Harvard.UniversityPress,Livro8(54).

FAREJAR

leiturasinteressantessobreocheiroemgeral:

Drobnick,J.,ed.2006.Thesmellculturereader.NovaYork:Berg.

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Sacks,O.1990."Thedogbeneaththeskin."EmOhomemqueconfundiusuamulhercomumchapéu.SãoPaulo:CiadasLetras(pp.156-160).

sobrefarejar:

Settles,G.S.,D.A.KestereL.J.Dodson-Dreibelbis.2003.Theexternalaerodynamicsofcanineolfaction.EmF.G.Barth,J.A.C.HumphreyeT.W.Secomb,eds.Sensorsandsensinginbiologyandengineering(pp.323-355).NovaYork:SpringerWein.

sobreaanatomiaeasensibilidadedofocinho:

Harrington,F.H.eC.S.Asa.2003.Wolfcommunication.EmD.MecheL.Boitani,eds.Wolves:Behavior,ecologyandconservation(pp.66-103).Chicago:UniversityofChicagoPress.

Lindsay,2000.Serpell,1995.

Wright,R.H.1982.Thesenseofsmell.BocaRalon,FL:CRCPress.

sobreoórgãovomeronasal:

Adams,D.R.eM.D.Wiekamp.1984.Thecaninevomeronasalorgan.JournalofAnatomy,138,771-787.

Sommerville,B.A.eD.M.Broom.1998.Olfactoryawareness.AppliedAnimalBehaviorScience,57,269-286.

Watson.L.2000.Jacobson'sorganandtheremarkablenatureofsmellNovaYork:W.W.Norton&Company.

sobredetecçãodeferonômioshumanos:

Jacob.S.eM.K.McClintock2000.Psychologicalstateandmoodeffectsofsteroidalchemosignalsinwomenandmen.HormonesandBehavior,37,57-78.

McClintock.M.K.1971.Menstrualsynchronyandsuppression.Nature,229,244-245.

Sobrefocinhosúmidos:

Mason,R.T.,M.P.LeMastereD.Muller-Sehwarze.2005.Chemicalsignalsinvertebrates,Volume10,NovaYork:Springer.

sobrenoscheirar:

Lindsay,2000.

sobredistinguirgêmeospelocheiro:

Hepper,P.G.1988.Thediscriminationofhumanodorbythedog.Perception,17,549-554.

sobreoscãesdeSantoHumberto:

Lindsay,2000.

SommervilleeBroom,1998.

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Watson,2000.

sobreusarpegadasparadetectarorastro:

Hepper,PG.eD.L.Wells.2005.Howmanyfootstepsdodogsneedtodeterminethedirectionofanodourtrail?ChemicalSenses,30,291-298.

Syrotuck,W.G.1972.Scentandthescentingdog.Mechanicsburg,PA:BarkleighProductions.

sobreocheirodatuberculose:

Wright,1982.

sobreocheirodadoença:

Drobnick,2006.

Syrotuck,1972.

sobreadetecçãodecâncer:

umalistagemparcialdemuitosestudos:

McCulloch,M.,T.Jezierski,M.Broffman.A.Hubbard,K.TurnereT.Janecki.2006.Diagnosticaccuracyofcaninescentdetectioninearlyandlate-stagelungandbreastcancers.IntegrativeCancerTherapies.5.30-39.

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sobreadetecçãodeataquesepiléticos:

Dalziel,D.J.,B.M.Uthman,S.P.McGorrayeR.L.Reep.2003.Seizure-alertdogs:AreviewandpreliminarystudySeizure,12,115-120.

Doherty,M.J.eA.M.Haltiner.2007.Wagthedog:Skepticismonseizurealertcanines.Neurology,68,309.

Kirton,A.,E.Wirrell.J.ZhangeL.Hamiwka.2004.Seizure-alertingand-responsebehaviorsindogslivingwithepilepticchildren.Neurology.62,2303-2305.

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Lindsay,2005.

Lorenz,K.1954.Manmeetsdog.London;Methuen.

sobreoúnicousodabexiga:

Sapolsky,R.M.2004.Whyzebrasdon'tgetulcers.NovaYork:HenryHolt&Company.

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sobreabolsaanal:

HarringtoneAsa,2003.

Natynezuk,S.,J.W.S.BradshaweD.W.Macdonald.1989.Chemicalconstituentsoftheanalsacsofdomesticdogs.BiochemicalSystematicsandEcology,17,83-87.

sobrebolsasanaiseveterinários:

McGreevy,P.(comunicaçãopessoal).

sobrearranharochãoapósmarcá-lo:

Bekoff,M.1979.Groundscratchingbymaledomesticdogs:Acompositesignal.JournalofMammalogy,60,847-848.

sobreantibióticosecheiro:

AtribuídaaJohnBradshawporCoghlan,A.23desetembrode2006.Animalwelfare:Seethingsfromtheirperspective.NewScientist.com.

sobreagradederuasdeManhattan:

Margolies,E.2006.Vaguenessgridlocked:AmapofthesmellsofNewYork.EmJ.Drobnick,ed.,Thesmellculturereader(pp.107-117).NovaYork:Berg.

sobrebrolongaebralufete:

EssaspalavrasforamcunhadaspeloartistaBillWatterson,responsávelporCalvineHobbes,ecolocadasnabocadeseupersonagemdehistóriaemquadrinhos,otigreHobbes.

"ocheirobrilhantedaágua...":

Chesterton,G.K.2004."Thesongofthequoodle,"emThecollectedworksofG.K.Chesterton.SanFrancisco:IgnatiusPress,p.556.(Nessemesmopoema,elecomentousobrea"fatadenariz"dohomem.)

MUDO

"atordoamentovazio":

Woolf,V.1933.Flush:Abiography.NovaYork:HarcourtBraceJovanovich,p.44.

"mudezincomunicável":

Lamb,C.1915.EssaysofElia.Londres:J.M.Dent&Sons,Ltd.,p.53.

sobreagamadeaudiçãodocão:

HarringtoneAsa.2003.

sobreorepelentedeadolescentes"Mosquito":

Page 268: A Cabeça do Cachorro - Alexandra Horowitz

VitelloP.12dejunhode2006."Aringtonemeanttofallondeafears."TheNewYorkTimes.

sobrerelógiosdespertadores:

Bodanis,D.1986.Thesecrethouse:24hoursinthestrangeandunexpectedworldinwhichwespendournightsanddays.NovaYork:Simon&Schuster.

sobrerosnar:

Faragó,T.,F.Range,Zs.VirányieP.Pongrácz.2008.Theboneismine!Context-specificvocalisationindogs.EnsaioapresentadonoFórumdeCiênciaCanina,Budapeste,Hungria.

sobresonsdecãeselobos:

Fox,1971.

HarringtoneAsa,2003.

sobrerisos:

Simonet,O.,M.MurphyeA.Lance.2001.Laughingdog:Vocalizationsofdomesticdogsduringplayencounters.ConferênciadaAnimalBehaviorSociety,Corvallis,OR.

sobredistinguirsonsagudos:

McConnell,P.B.1990.Acousticstructureandreceiverresponseindomesticdogs,Canisfamiliaris.AnimalBehaviour,39,897-904.

sobreRicoeoutrosvocabularistas:

Kaminski,J.2008.Dogs'understandingofhumanformsofcommunication.EnsaioapresentadonoFórumdeCiênciaCanina,Budapeste,Hungria.

Kaminski,J.,J.Callej.Fischer.2004.Wordlearninginadomesticdog:Evidencefor"fastmapping".Science,304,1682-1683.

sobremáximasconversaconais:

Grice,P.1975.Logicandconversation.EmP.ColeeJ.L.Morgan,eds.,Speechacts(pp.41-58).NovaYork:AcademicPress.

sobreganidos,latidoseooutrasvocalizações:

Bradshaw,J.W.S.eH.M.R.Nott.1995.Socialandcommunicationbehaviourofcompaniondogs.EmJ.Serpell,ed.,Thedomesticdog:Itsevolution,behaviour,andinteractionswithpeople(pp.115-130).Cambridge:CambridgeUniversityPress.

Cohen,J.A.eM.W,Fox.1976.Vocalizationsinwildcanidsandpossibleeffectsofdomestication.BehaviouralProcesses,1,77-92.

HarringtoneAsa,2003.

Tembrock,G.1976.Canidvocalizations.BehaviouralProcesses.1,57-75.

Page 269: A Cabeça do Cachorro - Alexandra Horowitz

sobrecaracterísticasetiposdelatidos:

Molnár,C.,P.Pongrácz.A.Dóka.eÁ.Miklósi.2006.Canhumansdiscriminatebetweendogsonthebaseoftheacousticparametersofbacks?BehaviouralProcesses,73,76-83.

Yin,S.eB.McCowan.2004.Barkingindomesticdogs:Contextspecificityandindividualidentification.AnimalBehaviour,68,343-355.

sobreosdecibéisdosLatidoscaninos:

Moffatetal.2003.Effectivenessandcomparisonofcitronellaandscentlessspraybarkcollarsforthecontrolofbarkinginaveterinaryhospitalsetting,journaloftheAmericanAnimalHospitalAssociation,39,343-348.

"Oprópriohomemnãoconsegueexpressaramorehumildade...":

Darwin.C.1872/1965,p.10.

sobrepeloseriçados:

HarringtoneAsa,2003.

sobreantíteses:

Darwin,1872/1965.

sobrerabos:

BradshaweNott.1995.

HarringtoneAsa,2003.

Schenkel.R.1947.Expressionstudiesofwolves.Behaviour,1,81-129.

sobrepostura:

Fox,1971.

Goodwin.D.,j.W.S.Bradshaw.eS.M.Wickens.1997.Paedomorphosisaffectsagonisticvisualsignalsofdomesticdogs.AnimalBehaviour,53,297-304,

sobrecomunicaçãointencional:

Kaminski,J.2008,

maissobremarcaçãocomurina:

Bekoff,M.1979.Scent-markingbyfreerangingdomesticdogs.Olfactoryandvisualcomponents.BiologyofBehaviour,4,123-139.

BradshaweNott,1995.

Pal,S.K.2003.Urinemarkingbyfree-rangingdogs(Canisfamiliaris)inrelationtosex,season,placeandposture.AppliedAnimalBehaviourScience,80,45-59.

Page 270: A Cabeça do Cachorro - Alexandra Horowitz

OOLHARDOCÃO

sobreacapacidadevisualdoscanídeos:

HarringtoneAsa,2003.

Miklósi,2007.

sobredistribuiçãodefotorreceptoresnaretina:

McGreevy,P.,T.D.Grassia.eA.M.Harmanb.2004.Astrongcorrelationexistsbetweenthedistributionofretinalganglioncellsandnoselengthinthedog.Brain,BehaviorandEvolution,63,13-22.

Neitz,J.,T.GeisteG.H.Jacobs.1989.Colorvisioninthedog.VisualNeuroscience,3,119-25.

sobrelobosárticos:

Packard,j.2008.Manmeetswolf:Ethologicalperspectives.EnsaioapresentadonoFórumdeCiênciaCanina,Budapeste,Hungria.

sobrepegarFrisbees:

Shaffer,D.M.S,M.Kranchunas,M.EddyeM.K.McBeath.2004.HowdogsnavigatetocatchFrisbees.PsychologicalScience,15,437-441.

sobreoreconhecimentodosrostosdosdonospeloscães:

Adachi,I.,H.KuwahataeK.Fujita.2007.Dogsrecalltheirowner'sfaceuponhearingtheowner'svoice.AnimalCognition,10,17-21.

sobrevacasquepercebemdetalhesvisuais:

Grandin,T.eC.Johnson.2006.Animalsintranslation:Usingthemysteriesofautismtodecodeanimalbehavior.Orlando,FL:Harcourt.

VISTOPORUMCÃO

sobreimprintingnoganso:

Lorenz,K.1981.Thefoundationsofethology.NewYork:Springer-Verlag.

sobreacapacidadeeodesenvolvimentovisualdascriançasedosbebês:

Asinformaçõessobreacapacidadevisualdecriançasderivamdeumséculodepesquisas.UmbomresumosobreoassuntoédadoporSmith,P.K.,II.CowieeM.Blades,2003.Understandingchildren'sdevelopment.Malden,MA:Black-wellPublishing.

sobremostraralínguanascrianças:

MeltzoffA.N.eM.K.Moore.1977.Imitationoffacialandmanualgesturesbyhumanneonates.

Page 271: A Cabeça do Cachorro - Alexandra Horowitz

Science,198,75-78.(Osrecém-nascidosnãosomenteesticamalínguaparaforadabocacomumdiaouatémesmoumahoradevida,elestambémcerramoslábioseabrembemabocacomoseestivessemsurpresos.Atémesmoentreelesrepetemessasexpressões—outentam:cerraroslábiosprovavelmentenãoéumacapacidademotoravoluntáriapossívelparaumrecém-nascido.)

sobreKanzi:

Savage-Rumbaugh,S.eR.Lewin.1996.Kanzi:Theapeaithebrinkofthehumanmind.NewYork:JohnWiley&Sons.

sobreAlex:

Pepperberg,I.M.1999.TheAlexstudies:Cognitiveandcommunicativeabilitiesofgreyparrots.Cambridge,MA:HarvardUniversityPress.

sobreoteclado-cão:

Rossi,A.eC.Ades.2008.Adogatthekeyboard:Usingarbitrarysignstocommunicaterequests.AnimalCognition,11,329-338.

sobreevitaroolhar:

BradshawENott,1995.

sobrecãesolhandorostos:

Miklósietal.,2003.

sobrecriadoresquepreferemolhosescuros!

Serpell,1996.

sobrepadrõesdeaçãofixadadasgaivotas:

Tinbergen,N.1953.Theherring-gull'sworld.Londres:Collins.

sobreoolharnaconversahumana:

Argyle,M.eJ.Dean.1965.Evecontact,distanceandaffiliation.Sociometry,28,289-304

Vertegaal,R.,R.Slagter,G.C.VanderVeereA.Nijholt.2001.Eyegazepatternsinconversations:Thereismoretoconversationalagentsthanmeetstheeyes.EmAnaisdaACMCHI2001.ConferenceonHumanFactorsinComputingSystems,Seattle,WA.

sobreseguirumgestodeaponte:

Soproni,K.,Á.Miklósi,J.TopáleV.Csányi.2002.Dogs'responsivenesstohumanpointinggestures.JournalofComparativePsychology,116,27-34.

sobreseguiroolhar:

Agnetta,B.,B.HareeM.Tomasello.2000.Cuestofoodlocationthatdomesticdogs(Canisfamiliaris)ofdifferentagesdoanddonotuse.AnimalCognition,3,107-112.

Page 272: A Cabeça do Cachorro - Alexandra Horowitz

sobreobteratenção

Horowitz,A.2009.Attentiontoattentionindomesticdog(Canisfamiliaris)dyadicplay.AnimalCognition,12,107-118.

sobremastigadassonoras:

Gaunet,F.2008.Howdoguidedogsofblindownersandpetdogsofsightedowners(Canisfamiliaris)asktheirownersforfood?AnimalCognition,11,475-483.

sobremostrar:

Hare,B.,J.CalleM.Tomasello.1998.Communicationoffoodlocationbetweenhumananddog(Canisfamiliaris).EvolutionofCommunication,2,137-159.

Miklósi,Á.,R.Polgardi,J.TopáleV.Csányi.2000.Intentionalbehaviourindog-humancommunication:Anexperimentalanalysisof"showing"behaviourinthedog.AnimalCognition,3,159-166.

sobrejogosdepegar:

Gácsi,M.,Á.Miklósi,O.Varga,J.TopáleV.Csányi.2004.Arereadersofourfacereadersofourminds?Dogs(Canisfamiliaris)showsituation-dependentrecognitionofhuman'sattention.AnimalCognition,7,144-153.

sobremanipulaçãodeatenção:

Call,J.,J.Brauer,J.KaminskieM.Tomasello.2003.Domesticdogs(Canisfamiliaris)aresensitivetotheattentionalstateofhumans.JournalofComparativePsychology,117,257-263.

Schwab,C.eL.Huber.2006.Obeyornotobey?Dogs(Canisfamiliaris)behavedifferentlyinresponsetoattentionalstatesoftheirowners.JournalofComparativePsychology,120,169-175.

sobreexperiênciasdesúplica:

Cooper,J.J.,C.Ashton,S.Bishop,R.West,D.S.MillseR.J.Young.2003.Cleverhounds:Socialcognitioninthedomesticdog(Canisfamiliaris).AppliedAnimalBehaviourScience,81,229-244.

sobreprestaratençãoaumaprojeçãodevídeo:

Pongrácz,P.,Á.Miklósi,A.DokaeV.Csányi.2003.Successfulapplicationofvideoprojectedhumanimagesforsignallingtodogs.Ethology,109,809-821.

sobreporqueoscomandostransmitidosporalto-falantesnãofuncionam:

Virányi,Zs.,J.Topál,M.Gácsi,Á.MiklósieV.Csányi.2004.Dogscanrecognizethebehaviouralcuesoftheattentionalfocusinhumans.BehaviouralProcesses,66,161-172.

ANTROPÓLOGOSCANINOS

"Eusoueu...":

Stein,G.1937.Everybody'sAutobiography.NewYork:RandomHouse,p.64.

Page 273: A Cabeça do Cachorro - Alexandra Horowitz

sobreautistasusandocãespara1eroutraspessoas:

Sacks,O.1995.AnanthropologistonMars.NewYork:Knopf.

sobreHansEsperto:

Sebeok,T.A.eR.Rosenthal.,eds.1981.TheCleverHansphenomenon:Communicationwithhorses,whales,apes,andpeople.NewYork:NewYorkAcademyofSciences.

sobrecãesqueleemosmovimentoscorporaisdostreinadores:

Wright,1982.

sobrecãesquepercebemcomantecedênciaahoradopasseio:

Kubinyi,E.,Á.Miklósi,J,TopáleV.Csányi.2003.Socialmimeticbehaviourandsocialanticipationindogs:Preliminaryresults.AnimalCognition,6,57-63.

sobredistinguirestranhosameaçadoresdosamigáveis:

Vas,J.,J.Topál,M.Gácsi,Á.MiklósieV.Csányi.2005.Afriendoranenemy?Dogs'reactiontoanunfamiliarpersonshowingbehaviouralcuesofthreatandfriendlinessatdifferenttimes.AppliedAnimalBehaviourScience,94,99-115.

MENTENOBRE

sobreneofilia:

Kaulfuss,P.eD.S.Mills.2008.Neophiliaindomesticdogs(Canisfamiliaris)anditsimplicationforstudiesofdogcognition.AnimalCognition,11,553-556.

sobrecogniçãofísica:

Miklósi,2007.

sobrepuxarcordas:

Osthaus,B.,S.E.G.LeaeA.M.Slater.2005.Dogs(Canislupusfamiliaris)failtoshowunderstandingofmeans-endconnectionsinastringpullingtask.AnimalCognition,8,37-47.

sobreousodepistassociais:

Erdohegyi,A.,J.Topál,Zs.VirányieÁ.Miklósi.2007.Dog-logic:Inferentialreasoninginatwo-waychoicetaskanditsrestricteduse.AnimalBehavior,74,725-737.

sobrecãesqueolhamparahumanospararesolvertarefas:

Miklósietal.,2003.

sobretampasdegarrafasdeleiteechapins:

Fisher.J.eR.A.Hinde.1949.Theopeningofmilkbottlesbybirds.BritishBirds,42,347-357.

sobreexperiênciascomchapinsnorte-americanos:

Page 274: A Cabeça do Cachorro - Alexandra Horowitz

Sherry,D.F.eB.G.GalefJr.1990.Sociallearningwithoutimitation:Moreaboutmilkbottleopeningbybirds.AnimalBehaviour,40,987-989.

sobreaprenderodesvio:

Pongrácz,P.,Á.Miklósi,K.Timar-GerigeV.Csányi.2004.Verbalattentiongettingasakeyfactorinsociallearningbetweendog(Canisfamiliaris)andhuman.JournalofComparativePsychology,118,375-383.

sobreimitaçãoinfantil:

Gergely,G.,H.Bekkeringe1.Király.2002.Rationalimitationinpreverbalinfants.Nature,415,755.

Whiten,A..D.M.Custance,J-C.Gomez,P.TeixidoreK.A.Bard.1996.Imitativelearningofartificialfruitprocessinginchildren(Homosapiens)andchimpanzees(Pantroglodytes).JournalofComparativePsychology,110,3-14.

sobreaimitaçãopelocão:

Range,F.,Zs.VirányieL.Huber.2007.Selectiveimitationindomesticdogs.CurrentBiology,17,868-872.

sobreatarefa"façaisso":

Topál,J.,R.W.Byrne,Á.MiklósieV.Csányi.2006.Reproducinghumanactionsandactionsequences:"DoasIDo!"inadog.AnimalCognition,9,355-367.

sobreateoriadamente:

Premack,D.eG.Woodruff.1978.Doesachimpanzeehaveatheoryofmind?BehavioralandBrainSciences,1,515-526.

sobretestedecrençafalsa:

Wimmer,H.eJ.Perner.1983.Beliefsaboutbeliefs;Representationandconstrainingfunctionofwrongbeliefsinyoungchildren'sunderstandingofdeception.Cognition,13,103-128.

sobrePhilip,ocãoquedizondeestãoaschaves:

Topál.J.,A.Erdõhegyi,R.MányikeÁ.Miklósi.2006.Mindreadinginadog:Anadaptationofaprimate"mentalattribution"study.InternationalJournalofPsychologyandPsychologicalTherapy,6,365-379.

sobreafunçãodabrincadeira:

Bekoff.M.eJ.Byers,eds.1998.Animalplay:Evolutionary,comparative.andecologicalperspectives.Cambridge:CambridgeUniversityPress.

Fagen,R.1981.Animalplaybehavior.Oxford:OxfordUniversityPress.

sobreaslutasdebrincadeiranãoajudaremamelhoraracapacidadedelutarnofuturo:

Martin,P.eT.M.Caro.1985.Onthefunctionsofplayanditsroleinbehavioraldevelopment.AdvancesintheStudyofBehavior,15,59-103.

Page 275: A Cabeça do Cachorro - Alexandra Horowitz

sobreousopeloscachorrosdaatenção,dasformasdeatrairatençãoeacomunicaçãonasbrincadeiras:

Horowitz.2009.

sobreossinaisdebrincadeira:

Bekoff,M.1972.Thedevelopmentofsocialinteraction,play,and.metacommunicationinmammals:Anethologieslperspective.QuarterlyReviewofBiology.47,412-434.

Bekoff,M.1995Playsignalsaspunctuation:Thestructureofsocialplayincanids.

Behaviour,132,419-429.Horowitz,2009.

sobreoexperimentocom(in)justiça:

Range,F,LHorn,Zs.VirányieL.Huber.2009.Theabsenceofrewardinducesinequityaversionindogs.ProceedingsoftheNationalAcadernyofSciences,106,

340-345.

DENTRODEUMCÃO

sobrecontar:

West,R.E.eR.J.Young.2002.Dodomesticdogsshowanyevidenceofbeingabletocount?AnimalCognition,5,183-186.

sobresilogismosdisjuntivos:

EsteéofilósofoestoicoChrysipposdeSoloi,deacordocomBringmann,W.eJ.Abresch.1997.CleverHans:Factorfiction?EmW.G.Bringmannetal.,eds.,Apictorialhistoryofpsychology(pp.77-82).Chicago.Quintessence.

umadastentativascientíficasoriginaisparaoperacionalizarosantropomorfismos:

Hebb,D.O.1946.Emotioninmanandanimal:Ananalysisoftheintuitiveprocessofrecognition.PsychologicalReview,53,88-106.

sobreonúcleosupraquiasmático:

Umaboarevisãodealgunstrabalhosrecentes:Herzog,E.D.eL.J.Muglia.2006.Youarewhenyoueat.NatureNeuroscience,9,300-302.

sobremudançasnosonocomaidade:

Takeuchi,T.eE.Harada.2002.Age-relatedchangesinsleep-wakerhythmindogs.BehaviouralBrainResearch,136,193-199.

sobreomovimentodecheirosemumasala:

Bodanis,1986.

Wright,1982.

Page 276: A Cabeça do Cachorro - Alexandra Horowitz

sobreasensaçãodetempodasabelhas:

Boisvert,M.J.eD.F.Sherry,2006.intervaltimingbyaninvertebrate,thebumblebeeBombusimpatiens.CurrentBiology,l6,1636-1640.

"Érarootédioserdiscutidonaliteraturacientíficanãohumana":

MasvejaWemelsfelder,F.2005.AnimalBoredom:Understandingthetediumofconfinedlives.EmF.D.McMillan,ed.,Mentalhealthandwell-beinginanimals(pp.79-91).Ames,Iowa:BlackwellPublishing.

"Ohomeméoúnicoanimalquepodeficarentediado":

Fromm,E.1947.Manforhimselfaninquiryintothepsychologyofethics.NovaYork:Rinehart,p.40.

sobreotestedoespelho:

Gallup,G.G.Jr.1970.Chimpanzees:Self-recognition.Science,167.86-87.

Plotnik,J.M.,F.B.M.deWaal,eD.Reis.2006.Self-recognitioninanAsianelephant.ProceedingsoftheNationalAcademyofScience,103,17053-17057.

Reiss,D.eL.Marino.2001.Mirrorself-recognitioninthebottlenosedolphin:Acaseofcognitiveconvergence.ProceedingsoftheNationalAcademyofScience,98,5937-3942.

sobreoscãespastoressaberemquenãosãoovelhas:

CoppingereCoppinger,2001

CitaçãodoSnoopy:

Gesner,C.1967.You'reagoodman,CharlieBrown.BasedonthecomicstripPeanutsbyCharlesM.Schulz.NovaYork:RandomHouse.

sobreguardarcomidapelosAphelocomecalifornica:

Raby,C.R.,D.M.Alexis,A.DickinsoneN.S.Clayton.2007.Planningtorthefuturebywesternscrub-jays.Nature,445.919-921.

sobreritualizaçãoontogênica:

Tomasello,M.eJ.Call.1997.Primatecognition.NovaYork:OxfordUniversityPress.

sobreapuniçãodoscãesnaIdadeMédia:

Evans,E.P.1906/2000.Thecriminalprosecutionandcapitalpunishmentofanimais.Union,NJ:LawbookExchange,Ltd.

sobredonosachandoquecãessabemoqueécertoeoqueéerrado:

Pongrácz,P,Á.MiklósieV.Csányi.2001.Owners'beliefsontheabilityoftheirpetdogstounderstandhumanverbalcommunication:Acaseofsocialunderstanding.Cahiersdepsychologie,20,87-107.

Page 277: A Cabeça do Cachorro - Alexandra Horowitz

sobreocãodeguardaeosursosdepelúcia:

Kennedy,M.3deagostode2006."GuarddogmaulsElvis'steddyinrampage".TheGuardian.

sobreasexperiênciascomculpa:

Horowitz,A.2009.Disambiguatingthe"guiltylook":Salientpromptstoafamiliardogbehaviour.BehaviouralProcesses,81,447-452.

Vollmer,P.J.1977.Domischievousdogsrevealtheir"guilt"?VeterinaryMedicine,SmallAnimalClinician,72,1002-1005.

sobreNorman,olabradorcego:

Goodall,J.eM.Bekoff.2002.Thetentrusts:Whatwemustdotocarefortheanimalswelove.NovaYork:HarperCollins.

sobreexperimentosdeemergência:

Macpherson,K.eW.A.Roberts.2006.Dodogs(Canisfamiliaris)seekhelpinanemergency?JournalofComparativePsychology,120,113-119.

"Comoéserummorcego?":

Nagel,T.1974.Whatisitliketobeabar?PhilosophicalReview,83,435-450.

sobreavisãodemundodeStanley:

Sterbak,J.2003."Fromheretothere".

sobreoespaçopessoal:

ArgyleeDean,1965.

sobreasdiferençasnosestilosdeandarjuntoaocalcanhar:

Packard,2008.

sobreapercepçãodogravetobatendoporpartedocaracol:

vonUexküll.1957/1934.

sobrealiberaçãodapressãocomoreforçoparacavalos:

McGreevyeBoakes,2007.

sobreoprojetodematadouros:

GrandineJohnson,2005.

sobreapercepçãodeobjetossobluzamarela:

Devomeuentendimentosobreoefeitodefaltadesanguenaluzamarelaàexposição"Roomfor

Page 278: A Cabeça do Cachorro - Alexandra Horowitz

onecolour"doartistaplásticoOlafurEliasson,naqualeleiluminaumasalacomlâmpadasqueemitemumagamaextremamenteestreitadoquepareceserluzamarela.

Wittgensteinsobrecães:

Wittgenstein,L.1953.Philosophicalinvestigations.NovaYork:Macmillan.

sobreaduraçãodeummomento:

vonUexküll,1957/1934.

sobreoadestramentocom"clicker":

McGreevyeBoakes,2007.

Miklósi,2007.

VOCÊMECONQUISTOUNOPRIMEIROINSTANTE

sobreavasopressinanoarganaz-da-pradaria:

Alcock.J.2005.Animalbehavior:Anevolutionaryapproach,8aed.Sunderland,MA;SinauerAssociates.

sobreimprintingemcãespastores:

CoppingereCoppinger,2001.

sobrenemtodososanimaisseremigualmenteantropomorfizáveis:

Eddy,T.J.,G.G.Gallupjr.eD.J.Povinelli1993.Attributionofcognitivestatestoanimals:AnthropomorphisminComparativeperspective.JournalofSocialIssues,49,87-101.

sobrenossaatraçãoporcriançaseoutrascriaturascomcaracterísticaneotenizadas:

Gould,S.J.1979.MickeyMousemeeLsKonradLorenz.NaturalHistory,88,30-36.Lorenz,K.1950/1971.GanzheitundTeilindertierischenundmenschlichenGemeinschaft,ReprintedinR.Martin,ed.,Studiesinanimalandhumanbehaviour,vol.2(pp.115-195).Cambridge,MA:HarvardUniversityPress,

"precisamosdeovos":

DitopeloalteregodeWoodyAllen,AlvySinger,emNoivoneurótico,noivanervosa,1977.

sobrebiofilia:

Wilson,E.O.1984.Biophilia.Cambridge,MA:HarvardUniversityPress.

sobretocar:

Lindsay,2000.

Page 279: A Cabeça do Cachorro - Alexandra Horowitz

sobreosestudosdeHarlow:

Harlow.H.F.1958Thenatureoflove.AmericanPsychologist,13,673-685.Harlow.H.F.cS.J.Suomii.1971.Socialrecoverybyisolation-rearedmonkeys.ProceedingsoftheNationalAcademyofSciences,681534-1538.

sobreoaliviodosofrimentodefilhotescombrinquedos:

Elliot,O.eJ.PScotí.196.1.Thedevelopmentofemotionaldistressreactionstoseparationinpuppies.JournalofGeneticPsychology,99.3-22.

Pettijohn,T.F..TW.Worig,PD.Ebertej.P.Scott.1977.Alleviationofseparationdistressin3breedsofyoungdogs.DevelopmentalPsychobiology,10,373-381.

"sondasensorialtátiletérmica":

Fox,M.1971.Socio-infantileandsocio-sexualsignalsincanids;AcomparativeanddevelopmentalStudy.ZeitschriftfuerTierpsychologie,28,185-210.

sobrenossasensibilidadetátil:

AtribuídoaopsicofísieoErnstHeinrichWebervonUexküll(1957/1934).

sobrebigodes.

Lindsay,2000.

cerimôniadeapaziguamentoredirecionada":

Lorenz,K.1966.Onaggression.NewYork;Harcourt,Brace&World,Inc.,,p.170.

sobreoscães-guiaeoscegos:

Naderi.Sz.,Á.Miklósi,A.DókaeV.Csányi.2001.Cooperativeinteractionsbetweenblindpersonsandtheirdog.AppliedAnimalBehaviorSciences,74,59-80.

sobreabrincadeiraentrecãesehumanos:

Horowitz,A.C.cM.Bekoff.2007.Naturalizinganthropomorphism:Behavioralpromptstoourhumanizingofanimals.Anthrozoös,20,23-35.

sobrepadrõesdetempodoflerte:

SukaguchljK.,G.K.JonssoneT.Hasegawa.2005.Initialinterpersonalattractionbetweenmixed-sexdyadandmovementsynchrony.EmL.Anolli,S.DuncanJr.,M.S.MagnussoncG,Riva,eds.,Thehiddenstructureofinteraction:Fromneuronstoculturepatterns(pp.107-120).Amsterdã.IOSPress.

sobreasincroniaentrecãesepessoas:

Kerepesi,A.,G.K.Jonsson,Á.Miklósi,V.CsányieM.S.Magnusson.2005.Detectionoftemporalpatternsindog-humaninteraction.BehaviouralProcesses,70,69-79.

sobreasensibilidadedoscãesparaoCortisoleatestosterona:

Page 280: A Cabeça do Cachorro - Alexandra Horowitz

Jones,A.C.eR,A.Josephs.2006.Interspecieshormonalinteractionsbetweenmanandthedomesticdog(Canisfamiliaris).HormonesandBehavior,50,393-400.

sobreasensibilidadedoscãesparaestilosdebrincadeiras:

Horváth,Zs.,A.DókaeA.Miklósi.2008.Afiliativeanddisciplinarybehaviorofhumanhandlersduringplaywiththeirdogaffectscortisolconcentrationsinoppositedirections.HormonesandBehavior,54,107-114

sobreapressãosanguíneabaixa,outrasmedidasemudançashormonais:

Friedmann,E.L995.Theroleofpetsinenhancinghumanwell-being:Physiologicaleffects.EmI.Robinson,ed..TheWalthambookofhumananimalinteractions:Benefitsandresponsibilitiesofpetownership(pp.35-59).Oxford:Pergamon.

Odendaal,J.S.J.2000.Animalassistedtherapy-magicormedicine?JournalofPsychosomaticResearch,49,275-280.

Wilson,C.C.1991.Thepetasananxiolyticintervention.JournalofNervousandMentalDisease,179,482-489.

sobreoutrososbenefíciosdepossuirumcão:

Serpell,1996.

sobreobocejocontagiante:

joly-Mascheroni,R.M.,A-SenjueA.J.Shepherd.2008.Dogscatchhumanyawns.BiologyLetters,4,446-448.

sobreDerrida,nu,eseugato:

Derrida,J.2002.L'animalquedoncjesuis(àsuivre).Traduzidocomo"TheanimalthatthereforeIam(moretofollow)."CriticalInquiry,28,369-418.

AIMPORTÂNCIADASMANHÃS

sobrepastoreioeo"olho":

CoppingereCoppiriger.2001.

sobrepreferênciasdeladonoscães:

P.McGreevy,comunicaçãopessoal.

sobreadestramento:

VerMcGrcevyeBoakes,2007,paraobteralgumasideias.

sobreapreferênciapelonovo:

KaufusseMills,2008.

sobreosmodosdeandardoscães:

Page 281: A Cabeça do Cachorro - Alexandra Horowitz

Brown,1986.

"afetaopensamentodealguémsobreeleparasempre":

AssimdisseGeorgeSchaller,cujosvárioslivrosestãorepletosdeanimaisnomeados.CitadoemLehner,P.1996.Handbookofethotogicalvalmethods,2aed.Cambridge:CambridgeUniversityPress,p.231.

sobreaspreferênciasdosdiamantesmandarimpelasfaixasnaspernas:

Burley,N.1988.Wildzebrafincheshavebandcolourpreferences.AnimalBehaviour,36,1235—1237.