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DEA LOHER CACHORRO Pequena homenagem a Giacometti Tradução de Edson D’Santana Colaboração de Wolfgang Knapp Revisão e aprovação final de Dea Loher Personagens: VELHA PUTA LADRÃO COXO Obras de Giacometti: MULHER EM PÉ HOMEM QUE ANDA O CACHORRO

Cachorro Dea Loher

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Page 1: Cachorro Dea Loher

DEA LOHER

CACHORROPequena homenagem a Giacometti

Tradução de Edson D’SantanaColaboração de Wolfgang Knapp

Revisão e aprovação final de Dea Loher

Personagens:

VELHA PUTALADRÃO COXO

Obras de Giacometti:

MULHER EM PÉHOMEM QUE ANDA

O CACHORRO

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1.

Rua deserta que se estende ao longo de um muro originalmente branco. Luz intensa. A VELHA PUTA espera. O LADRÃO COXO passa por ela, lentamente, com um andar claudicante. Pára no fim da rua, vira-se, observa. Passa novamente diante dela, farejando o ar por várias vezes. A VELHA PUTA escuta seus passos.

VELHA PUTA escutandoTac, tetoc, tac, tetoc.Interrogando-se, murmura Alberto. Alberto.Escuta. Espera. CantaLe petit homme qui chantai sans cesseLe petit homme qui dansait dans ma têteLe petit homme de la jeunesseA cassé son lacet de soulierEt toutes les baraques de la fêteTout d’un coup se sont écrouléesEt dans le silence de cette fêteDans le desert de cette têteJ’ai entendu ta voix heureuseTa voix déchirée et fragileEnfantine et désoléeVenant de loin et qui m’appelaitEt j’ai mis ma main sur mon coeurOù remuaient ensanglantésLes sept éclats de glace de ton rire étoilé(Yves Montand, Le miroir brisé, nda)

O LADRÃO COXO não reage.

VELHA PUTA forteO senhor não é Alberto.

LADRÃO COXO faz que não com a cabeça.

VELHA PUTA

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O senhor disse não?

LADRÃO COXOSim.

Silêncio.

VELHA PUTATem alguma coisa que não se encaixa hoje. Faz tanto calor, e nem sei porque estou sozinha aqui.Tempo.Seria uma pena que o senhor guardasse desta rua uma recordação em que não teria outra escolha além de mim. Demore um pouquinho, não apresse o fim. Outras belezas, rosas da meia-noite, acabarão por vir. Comparada com elas eu sou apenas uma violeta de asfalto que mal desabrocha. Demore um pouquinho, não apresse o fim... Não precisa ficar frustrado, por favor.

Tempo.

LADRÃO COXONão estou.

Seu sapato esbarra em um caco de telha, ele o apanha, e escreve negligentemente no muro: “VENHA”.

VELHA PUTAPor causa do seu andar, eu quase confundi o senhor com outra pessoa. O absinto faz zumbir meus ouvidos. É como se os sons caíssem no fundo de um poço. Mas agora eu sei que o senhor é um desconhecido. E por ser um desconhecido, eu tenho pena. Talvez não volte nunca, talvez jamais experimente os segredos atraentes deste lugar, nem desembale a mercadoria para melhor se embalar.

Silêncio. O LADRÃO COXO continua a escrever: “A MINHA CASA”.

VELHA PUTAO senhor está desenhando ou escrevendo?

O LADRÃO COXO continua a escrever: “EU QUERO”.

VELHA PUTA

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Não diga que a alegria de me encontrar deixou o senhor sem fala.O LADRÃO COXO continua a escrever: “TE MOLESTAR”.

VELHA PUTATudo bem, talvez eu seja uma velha puta de péssima aparência, mas com certeza não sou tão feia a ponto de deixar o senhor sem fala.

LADRÃOEstou feliz por ter encontrado a senhora.

Tempo. A VELHA PUTA perde a fala.

VELHA PUTATem alguma coisa que não se encaixa hoje. Faz calor, mas há no ar um vento perverso. Em dias normais, a rua Alésia é bastante animada.

Silêncio.

É uma das ruas mais animadas do bairro, verdade. Mas não hoje, não agora.

Silêncio.

Estou enganada? Estamos mesmo na rua Alésia?

LADRÃO COXOCom certeza, madame.

VELHA PUTAÉ capaz que tenha acontecido alguma coisa.

LADRÃO COXOÉ possível.

VELHA PUTAO senhor vê... um sinal em algum lugar, gente correndo na mesma direção, fumaça?

LADRÃO COXONão, madame, eu lhe asseguro, não vejo ninguém. Apenas a senhora e eu, sozinhos, numa silenciosa manhã de primavera. E eu vejo, está ouvindo?, o sol que brilha.

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VELHA PUTA um pouco histéricaO sol brilha?

LADRÃO COXOMas é claro, madame. Tire os óculos. Seus óculos é que escurecem tudo, sei lá.

VELHA PUTAValha-me Deus, o senhor não enxerga a um palmo do seu nariz. Eu sou cega, seu anão manco de sapatos, tac, tetoc. Tenha tato, se é que já ouviu falar disso, tac, tetoc, minhoca frágil, aborto rastejante.

LADRÃO COXOEu quis dizer, escurece tudo para mim. Escurece seus olhos, para mim. Eu bem que gostaria de ver seus olhos brilharem à luz do sol.

VELHA PUTAEstá delirando? Eu não tiro meus óculos nem para dormir... e nem mesmo nas minhas outras atividades. Me diz que horas são.

LADRÃO COXODoze horas.

VELHA PUTAMeio dia...?

LADRÃO COXOMeio dia.

VELHA PUTAAh, meu Deus. Ah, meu Deus. Estamos na rua Alésia. Estou bem no meio da rua Alésia, ao meio dia, no momento mais claro do dia, e todos os homens estão trabalhando há horas, e todas as mulheres estão em casa e olham pela janela, vêem a rua e me vêem, de pé, no meio da rua Alésia, ao meio dia, no momento mais claro do dia. Ah, meu Deus.

O LADRÃO COXO escreve: “A BOLSA”

VELHA PUTASó podia dar nisso. Só podia dar nisso. Tempo. Eu não consigo mais dormir de dia, e de noite eu não consigo nem trabalhar esperando o seu toc, tac, tetoc já faz mais de

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dois meses. Há mais de dois meses espero escutar o ruído dos seus passos na rua, um pé, calmo e seguro de si, o outro, arrastando-se mais atrás com uma sacudidela em meia lua, uma pequena sacudidela de hesitação, tac tetoc. Eu pensei que fosse você. Alberto.

A VELHA PUTA esboça um gesto de ir embora, o LADRÃO COXO se põe em seu caminho.

LADRÃO COXONão vá embora. Considere o fato de ser cega como uma sorte para mim.

VELHA PUTA aliviada Ah, bom. Tempo. Pufh, de qualquer maneira, eu não estou em condições de escolher.

O LADRÃO COXO continua a escrever: “OU A VIDA”.

VELHA PUTASe é que o senhor se importa, eu não posso continuar aqui plantada, se é que o senhor se importa, porque eu não trouxe o capuz que me deixaria invisível. O que é que o senhor está escrevendo, afinal?

LADRÃO COXOO sol está esverdecendo. Vamos beber absinto, até que a noite caia.

VELHA PUTAÉ isso que está escrito?

LADRÃO COXONão, está escrito: “A liberdade ou a morte”.

Saem. Suas sombras são projetadas sobre o muro, se alongam e desaparecem com eles.

2.

Quarto mobiliado com simplicidade (mesa com copos, duas cadeiras, cama, armário, espelho coberto com um lençol), tudo com uma cor de barro cinzento, uma paisagem de pó, em suma. Debaixo da mesa, uma protuberância, um tufo de trapo comprido. No

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quarto há dois visitantes silenciosos, Mulher de Pé e Homem que Anda, apoiados sobre pedestais cúbicos, igualmente cobertos de pó, semelhantes a dois macérrimos pontos de exclamação.

VELHA PUTAPor um tempo, tudo parecia indicar que eu não receberia nenhuma outra visita. Mas com a sua vinda, vem uma espécie de sentimento de saciedade.

LADRÃO COXOA senhora traz aqui todos os seus clientes? Ele apalpa as estátuas com interesse.

VELHA PUTAEu tenho ainda um pequeno castelo à beira do Loire, e um pequeno apartamento em Roma, mas só vou lá nos fins de semana, de avião, e só quando estou apaixonada. Tire a roupa, fique à vontade.

LADRÃO COXOSabe, madame, a senhora não pode ver, mas já faz um tempo que não se faz limpeza aqui.

VELHA PUTAÉ este o charme do lugar, aqui, nada de destruição. Eu fico sentada aqui e aguardo o tempo escorrer pelas paredes.

LADRÃO COXOSe eu me sentar aqui, se me despir, se pisar com meu pé neste ambiente, será inevitável deixar vestígios.

VELHA PUTAAcredita mesmo que o senhor e seus vestígios são mais duradouros que a fome enegrecida do tempo?

O LADRÃO COXO olha em volta, abre o armário.

VELHA PUTAO toalete fica depois da escada. Mas se acha muito longe, se o negócio é muito urgente, tem um penico em cima do armário.

LADRÃO COXO

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É, o negócio é urgente... Estou vendo apenas duas destas... figuras. São ainda mais magriças do que me descreveram.

VELHA PUTAFoi ele quem mandou o senhor aqui? O senhor vem da parte de Monsieur? O senhor veio buscá-las?

LADRÃO COXOVou carregá-las quando for embora.

VELHA PUTAMe dê uma pista, uma pista para que eu saiba com quem estou lidando. Uma pista, para que eu saiba que o senhor é um marchand. Escreve, escreve seu nome na parede, em cima da minha cama, onde qualquer visitante poderá ler, de onde ele será impresso, para sempre, em cada um dos que procurarem o amor na minha cama, onde ninguém poderá fazê-lo desaparecer, até o dia do meu próprio desaparecimento, para que me sobre pelo menos um pequeno vestígio desse Monsieur que deixou aqui suas figuras, como guardiãs da minha cegueira, e que agora quer vê-las carrregadas por um estranho, porque ele mesmo é muito covarde. Escreve, anda, escreve.

Ela apanha uma chave de fenda embaixo da cama e a estende ao LADRÃO COXO. O LADRÃO COXO inspeciona embaixo da cama. Nada além de pó. Ele pega a tesoura. Sobe na cama e começa a gravar na parede: LADRÃO COXO.

LADRÃO COXOAcredita em mim agora?

VELHA PUTAO que está escrito?

LADRÃO COXOEstá escrito: murmura um nome incompreensível... marchand.

VELHA PUTAO que?

LADRÃO COXOInsistente; incompreensível... marchand.

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Tempo.

VELHA PUTAVocê leu isso nos jornais, seu rato fedorento. O marchand incompreensível não viria nunca na casa de uma velha prostituta da rua Alésia como eu. Um dia eu o vi passar junto com Monsieur. Ele usava um lenço de seda, seus sapatos brilhavam por causa do cuspe da governanta dele, o marchand incompreensível é tão distinto, seus sapatos são tão perfumados que até afugentam o cocô dos vira-latas quando ele passa. O marchand incompreensível não sabe o que é cheirar mal, e mesmo Monsieur, quando em companhia do marchand incompreensível, só me saúda às escondidas, pelas costas do marchand, com uma piscadela. Em seguida, eles foram à Coupole e beberam um champanhe qualquer, o que deixou o marchand incompreensível de tão bom humor que ele soltou a grana. Então chega de contar lorotas.

Silêncio.

VELHA PUTAE pare de vadiar com esses sapatos em cima da minha cama, estropiado nojento.

Silêncio.

LADRÃO COXOMonsieur Giacometti morreu, Madame.

Longo silêncio.

VELHA PUTANão me chame de madame, tá ouvindo?, não me chame de madame. Ela tira os óculos. Tem grossos olhos inchados.

LADRÃO COXOA senhora devia pôr um pano úmido. docemente Madame, seus olhos são enormes e inchados, isso deve doer.

VELHA PUTADesta vez, o senhor não está mentindo, é verdade, sinto no som da sua voz.

O LADRÃO COXO tira um lenço (sujo) do bolso, olha em volta disfarçando, pega o penico sobre o armário, molha o lenço no líquido que aí se encontra, e pensa os olhos da VELHA PUTA, com extrema solicitude.

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VELHA PUTAEu não consigo mais dormir de dia, e de noite eu não consigo nem trabalhar esperando o seu toc, tac, tetoc já faz mais de dois meses. Há mais de dois meses espero escutar o ruído dos seus passos na rua, um pé, calmo e seguro de si, o outro, arrastando-se mais atrás com uma sacudidela em meia lua, uma pequena sacudidela de hesitação, tac tetoc. Eu pensei que fosse você. Alberto.

LADRÃO COXONão sou ele. Eu sou...

VELHA PUTAUm ladrão, eu o sinto. Até o seu lenço fede a cigarro, suor mijado e medo.

LADRÃO COXOChega de me humilhar o tempo todo, tenho um pé aleijado, aceito, mas o resto do meu corpo é bem apessoado. Sou muito bem apessoado para tanta humilhação. Meu rosto, principalmente, não suporta ser humilhado, absolutamente.

VELHA PUTAE eu, também tenho um nome, viu?, mas só para meus amigos. Pra você eu me chamo Velha Puta.

Silêncio.

VELHA PUTAVelha puta.

Silêncio. Ela chora.

VELHA PUTAEu fiquei o tempo todo na rua, fiquei à espera todas as noites, como de costume. Por que a rua não me contou nada?

LADRÃO COXOEle não morreu aqui, morreu na Suíça, onde qualquer um pode pagar um caixão. Numa manhã de inverno, o cortejo fúnebre se estendeu de Stampa até Borgonovo, atravessando uma paisagem negra e branca de picos sombrios e neve. As pessoas que acompanhavam o cortejo pareciam uma procissão de saúvas andarilhas reconduzindo

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um companheiro morto para casa. Vertiam tantas lágrimas que a cabeça deles murchava sobre seus corpos que se estiravam no frio. Mais tarde, projetavam silhuetas compridas, minguadas e tristes sobre a cova aberta.

VELHA PUTAPara um ladrão, até que o senhor sabe consolar, quando quer. Tempo. O senhor esteve lá?

LADRÃO COXOEu não. A mulher dele.

VELHA PUTAO seu crédito de consolação se esgotou depressa. Tempo. Foi ela quem mandou o senhor aqui? De onde o senhor soube da minha existência?

LADRÃO COXOTenho amigos na rua Alésia.

VELHA PUTACom certeza eles não lhe pediram para esvaziar meu quarto, essa idéia nasceu na sua cachola suja.

LADRÃO COXONinguém a traiu, mas eu, eu vou enganar a senhora.

VELHA PUTAMeu cu que sim! À merda seu pé aleijado. À merda minha cegueira. À merda a sua gana de roubar. À merda a morte. O senhor ignora, o senhor nem mesmo sabe que até o bom Deus no céu não consegue me enganar, até a morte não pode me tomar nada, e não é por falta de terem tentado, tanto uma como o outro. Tempo. O senhor vê aquela janela ali?, eu sei, ela é cega, embaçada e suja. O vidro está até rachado, tudo bem, mas é a única janela que deixa entrar luz neste aposento. E seja por qual ângulo se analise, ninguém poderá fazer essa janela desaparecer da parede. Tão logo alguém tenha feito essa janela desaparecer da parede, não haverá em seu lugar uma ausência de janela, mas, ao contrário, haverá uma janela ainda maior. E agora, tente me tomar estas figuras, estas figuras que Alberto criou aqui, no meu pó, com seu suor, tente carregá-las com você, com o aleijão dele, os acessos de tosse dele e a fumaça dos cigarros sem filtro dele que impregnam todo este aposento, e você só vai me fazer rir.

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LADRÃO COXOVocê é mesmo uma velha puta estúpida. Na sua cabeça não cresce nada, só erva daninha, e nela tem uma escuridão maior do que numa caverna de morcegos. Qualquer criança pode fazer desaparecer essa janela da parede, basta tampar o buraco, e nesse caso, por onde você vai enfiar sua cabeça para que os morcegos tomem ar?

VELHA PUTAVocê não passa mesmo de um pobre aleijado fedorento e estúpido. Está certo, qualquer criança consegue pôr no lugar da janela alguns tijolos, mas isto não quer dizer que você esconde a janela, seu imbecil, isto apenas quer dizer que você devolve à parede suas pedras. Silêncio. Docemente. Não há destruição, há apenas troca.

O LADRÃO COXO tenta carregar as esculturas. Elas são muito pesadas.

VELHA PUTAOnde você vai?

LADRÃO COXOBem, eu vou começar a troca, é isso. Troco essas duas figuras anoréxicas por qualquer coisa bem fácil...

VELHA PUTABem fácil... o que, minha vida? Tempo. Você queria me matar.

Silêncio.

LADRÃO COXON... não diretamente.

VELHA PUTAEu devia ter desconfiado. Em vez de me deixar levar por sua aparência ensebada.

LADRÃO COXOEu tinha arquitetado um plano, e este plano não previa que você fosse cega, ainda que disposta a tudo. Silêncio. Que é que você quer que eu diga? Uma história que desperte sua piedade? Você vive na rua Alésia há bastante tempo, você é puta há bastante tempo. O que é que eu posso dizer? Eu venho de Marseille. Eu também quero viver.

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VELHA PUTATudo bem. Eu não estou zangada.

LADRÃO COXOVocê não está zangada?

VELHA PUTAVocê é surdo? E o que você quer que eu te diga, hein? Você é um tremendo cretino, amanhã eu vou chamar os tiras; você acha que eu não consigo descrever você porque sou cega, acha que não posso identificar você porque sou cega. Então escute bem, se eu dissesse que você é um cretino, um imbecil, um ladrão dissimulado e que amanhã eu ia chamar os tiras, você voltaria esta noite pra me matar, é por isso que eu prefiro dizer que não estou zangada.

LADRÃO COXOVocê não facilita minha tarefa.

VELHA PUTAJá te disse, não é fácil eliminar uma janela de uma parede.

O LADRÃO COXO tateia um pouco por todo o aposento.

VELHA PUTAO que procura?

LADRÃO COXONada.

VELHA PUTAVocê procura um objeto para acabar comigo. Que tal me estrangular? Pegue os lençóis, ou me sufoque com a almofada. Vai rápido. Com todo esse pó. Tempo. Ou ainda, você pode me matar a pancadas com a Mulher de Pé. Ou com uma faca. Faça de mim a “Mulher da Garganta Cortada”. Isso teria classe, isso faria Alberto rir. É melhor apagar os vestígios de sangue, mas você tem um lenço, não é?

LADRÃO COXO gritaNão zombe de mim. Tempo. Não zombe de mim. Eu não matei ninguém ainda e nem sei como fazem os assassinos, mas eu sou um ladrão e sei como fazem os ladrões. Não faça de conta que não sabe como age um ladrão, eu preciso de um roubo que me

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aposente, é minha vida, então pare de fingir. Tempo. Ele se acalma. Reflete, hesita, apodera-se de repente de uma das figuras com a qual quer sair.

VELHA PUTAPara... Para. Espera. Espera, espera. Tempo. Espera. Eu quero te pedir um favor. Vou te fazer uma proposta. Você vai embora com as esculturas quando quiser, eu não vou fazer nada para impedir, nem agora, nem depois, nunca. Se acha que pode vendê-las, venda-as e vá pra Roma, vá pra onde quiser, pra onde seja bom viver. Mas agora fica mais um pouco, fica e me faz um favor. Eu lhe peço.

O LADRÃO COXO depõe a Mulher de Pé.

VELHA PUTAPor favor, repete pra mim.

LADRÃO COXOO que?

VELHA PUTAA notícia. Tempo. Você sabe.

LADRÃO COXO não está totalmente seguro, tentaO senhor Giacometti morreu.

VELHA PUTANão, de outro jeito. Você disse de outro jeito.

LADRÃO COXOO senhor Giacometti morreu.

VELHA PUTANão, de outro jeito, como se fosse a primeira vez. E você deve acrescentar “Madame”. Tempo.

LADRÃO COXOO senhor Giacometti morreu, madame.

Silêncio.

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PUTA VELHABem que eu gostaria de ser pó.

LADRÃO COXOPaciência.

VELHA PUTA ignora-oPó. Pó. Pó. Tempo. Não me mexeria nunca mais. Ficaria simplesmente sentada aqui. O pó cairia sobre mim, iria se depositar em mim em pequeninos flocos, suaves como a neve do tempo. Silêncio. Até que um dia eu me tornasse parte do pó. Ao LADRÃO COXO. Sente-se. Sente-se perto de mim. Ele o faz. Era freqüente nos sentarmos assim, ficávamos sentados assim a esta mesa, Alberto e eu, totalmente imóveis, e era difícil ficar totalmente imóvel, mas quando a gente conseguia, era... completo... justo... belo.

Silêncio.

VELHA PUTANão gostaria que você se mexesse.

Silêncio.

VELHA PUTANão gostaria que você se mexesse.

LADRÃO COXONão estou me mexendo.

Longo silêncio.

VELHA PUTAEu quero dizer, interiormente também.

Longo silêncio.

VELHA PUTASe parar de me mexer completamente, um dia, cedo ou tarde, eu farei parte desta mesa. E desta cadeira. Nós três seremos inseparáveis. E se parar de se mexer, você também será parte da escultura. A parte inferior do meu corpo pertence à cadeira, a parte superior do meu corpo praticamente já se fundiu à alma da mesa.

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Longo silêncio.

LADRÃO COXOBarro sujo.

VELHA PUTAA camada de pó é nosso verniz comum.

O LADRÃO COXO, para irritar a VELHA PUTA, derruba um copo da mesa. Ele se quebra. Nuvem de poeira.

VELHA PUTA também derruba um copo, canta... et toutes lês baraques de la fêtetout à coup se sont écrouléeset dans le silence de cette fêtedans le désert de cette têtej’ai entendu ta voix heureseta voix déchirée et fragileenfantine et désoléevenant de loin et qui m’appelaitet j’ai mis ma main sur mon coeuroù remuaient ensanglantéesles sept éclats de glace de ton rire étoilé.

LADRÃO COXO derruba outro copo da mesa.Barro sujo.

VELHA PUTAMas o molde nunca é o mesmo. Também ela derruba um copo da mesa. O molde é um mistério. Os cacos são um mistério.

LADRÃO COXO derruba um último copo.O barro voltará ao barro. É assim que eu vejo as coisas.

VELHA PUTA maldosamenteE como vamos beber nossa pinga agora?

Silêncio. O LADRÃO COXO cai em si e começa a recolher os cacos de vidro com o pé e a depositá-los num canto. A VELHA PUTA barra seu caminho.

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VELHA PUTAVocê não entende, eu não quero que, jamais, ninguém tire o menor grão de pó daqui, o menor grão de pó, o menor caco, jamais.

O LADRÃO COXO deixa os cacos de vidro no lugar.

VELHA PUTAParece longe o tempo que estivemos diante do muro. Tempo. Eu estava sozinha, como nunca de noite, e estava calor, como nunca de noite, e quando escutei seus passos, como sempre de noite, e quando você começou a escrever no muro, eu pensei que você desenhava. Esperei que você me desenhasse, a mim, numa noite quente e sob aquela luz pobre que me faz parecer bela, e de manhãzinha, uma tímida claridade tentaria avançar pelo muro, e lá estaria minha imagem, eu, a velha puta, sobre um muro público, visível para toda gente, e embaixo, seu nome, visível para toda gente; mas você não passa de um ladrão, nunca um desenhista, e é uma pena, pois se você fosse ladrão e desenhista, você poderia roubar minha imagem de mim, e isso me agradaria.

LADRÃO COXOEu podia tentar. Eu podia tentar roubar sua imagem de você.

VELHA PUTAIsso me agradaria.

LADRÃO COXONem é preciso que eu seja um desenhista. O roubo também é uma arte. Se eu visse em você alguma coisa que ninguém nunca viu, e se eu carregasse isso comigo, se eu fosse embora e se escrevesse meu nome embaixo, será que isso seria do seu agrado?

VELHA PUTAMe agradaria muito. Silêncio. Quero me olhar no espelho. Tire o pano.

O LADRÃO COXO o faz. A VELHA PUTA se põe diante do espelho, tateia-o e depois tateia o próprio rosto, como se quisesse verificar a concordância.

VELHA PUTAEi, ladrão aleijado. Olhe embaixo do colchão. Você achará uma navalha.

O LADRÃO COXO a encontra.

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VELHA PUTANo armário.

O LADRÃO COXO pega um sabão no armário.

VELHA PUTARaspe a minha cabeça.

O LADRÃO COXO hesita.

VELHA PUTAMas tome cuidado.

O LADRÃO COXO começa.

VELHA PUTAFoi isso que te disseram seus amigos da rua Alésia. Foi isso, não? Com doce ironia. “Bem antes disso, Giacometti me falou dos seus amores com uma velha mendiga, charmosa e esfarrapada, provavelmente suja e em quem se podia ver, quando ela o acariciava, os caroços em relevo no seu crânio quase desguarnecido.” (Jean Genet, L’atelier d’Alberto Giacometti, l’Arbalète, 1958)

A cabeça está raspada. Coberta de quistos. O LADRÃO COXO procura tocá-los delicadamente.

VELHA PUTA baixinho, com doçuraAinda não, senhor Giacometti, ainda não. Primeiro é preciso que o senhor volte para sua casa. Tempo. Sai, sai e, em seguida, volte.

O LADRÃO COXO, em dúvida, guarda cuidadosamente a navalha e demais apetrechos e sai. Um tempo muito longo passa. A VELHA PUTA se maquila. Batem à porta.

VELHA PUTAUm momento, senhor. Ela abre a porta.

LADRÃO COXOBoa noite, madame. Ele tem uma garrafa de vinho e dois copos no bolso do casaco.

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VELHA PUTABoa noite, senhor. O LADRÃO COXO beija-lhe a mão.

LADRÃO COXOVejo que não estamos sós esta noite.

VELHA PUTAPermita que eu lhe apresente: Mulher de Pé e Homem que Anda.

LADRÃO COXOApresente-me de novo. Apresente-me corretamente.

A VELHA PUTA toma as mãos dele; com uma, ela o faz tocar a Mulher de Pé e o Homem que Anda, enquanto faz passear a outra mão sobre ele mesmo e sobre ela.

VELHA PUTAVeja, esta mulher é velha, não é muito grande, tem uma cabeça pequena, pequenos seios de olhos inchados, e sua pele está encrespada por todo o corpo. Veja, este homem, que idade tem, não é muito grande, ele gosta de caminhar com a cabeça descoberta sob a chuva, por isso sua cabeça está tão encolhida, e a perna dele está torcida, ele manca um pouco.

LADRÃO COXOQuebrei a perna num acidente, madame, e ela nunca mais se restabeleceu completamente. Não houve jeito de curá-la como era preciso. Mas e daí, para uma perna? Estou satisfeito que ela seja como é. A imperfeição é minha história, a perfeição já nasce morta. Fique comigo, perna. Eu quero mancar sempre.

Servem-se mutuamente de vinho.

LADRÃO COXOUm dia casarei com você e apresentarei você como Madame Ladrão Coxo.

VELHA PUTAPare de sonhar meus sonhos.

LADRÃO COXOMas é isso que vou fazer. Vão pensar que sou um excêntrico.

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VELHA PUTAVai nada. Mas assim mesmo pensarão que é um excêntrico.

LADRÃO COXOVou fazer uma figura sua e chamar a escultura de “Grande Passo”.

Momento íntimo, muito repentino. Se beijam.

VELHA PUTAPor um tempo, vamos ficar imóveis.

Ficam imóveis.

LADRÃO COXOEu não consigo por muito tempo. Eu, eu amo você demais pra isso.

Tempo.

VELHA PUTAAcariciar.

LADRÃO COXOAcariciar.

E a VELHA PUTA acaricia o LADRÃO COXO, enquanto ele apalpa os caroços em seu crânio, depois, é o LADRÃO COXO quem acaricia a VELHA PUTA.

LADRÃO COXOGostaria que você deixasse crescer o cabelo. Você não deve raspar nenhuma parte do seu corpo. O pó deve encontrar muitas reentrâncias. Eu quero passar minhas mãos nos seus pêlos, enquanto você me faz carícias. Eu vou chamar você de linda velha cadela, e você vai me chamar de pé manco.

VELHA PUTASenhor Ladrão Coxo. Tempo. Senhor Ladrão Coxo, não faz muito tempo eu tinha dezoito anos. E quando eu tinha dezoito anos, às vezes, eu desmaiava. Ninguém sabia porque. Até o dia em que despertei na Santa Casa, numa bela manhã, com uma cicatriz que ia do esterno ao umbigo, costurada com um fio vagabundo, e me despojaram de uma coisa, uma coisa da qual fizeram um embrulho que eu não devia ver. Mas eu a reencontrei, ou melhor, aquela coisa reencontrou o caminho até mim, e depois disso,

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eu a tenho guardado preciosamente ali. Ela indica uma pilha de farrapos sob a mesa. Na barriga da minha mãe eu cresci com um gêmeo, e meu amor por ele era tão grande que, ainda na barriga da minha mãe, eu o abraçava e não queria mais largar dele. Talvez eu estivesse com medo de vir sozinha para este mundo. Meu irmão gêmeo cresceu em meu peito, e aqui ficou, durante dezoito anos, sem que ninguém percebesse. Eles o arrancaram de mim porque ele começou a comprimir meu coração. Mas como posso viver sem ele? Tempo. Tanto faz pra mim para onde você o carregue, você pode vendê-lo em qualquer lugar, derretê-lo, enterrá-lo num buraco. Eles o arrancaram de mim, mas sua marca ficou em mim, e ainda que seus ossos se esfarelem debaixo da terra, não sobra menos dele aqui dentro, porque ele existiu e existirá em mim para sempre.

Beijos e carícias. Os copos cheios de vinho tinto caem da mesa. Os trapos estão cheios de cacos de vidro. Eles adormecem.

3.De manhãzinha. Luz inóspita, que conhecemos de cor. A VELHA PUTA acorda, tateia o leito à procura do LADRÃO COXO. Ela remexe na pilha de trapos sob a mesa e liberta O CACHORRO. Senta-se ao lado dele, fuma.

VELHA PUTAUm dia eu vi você na rua, e você era eu, e eu era você, o cachorro. Eu farejava pelas ruas e calçadas, sem procurar nada, sem pretender encontrar nada, e acredito mesmo que nada encontrei. Mas eu estava feliz. Com o cachorro é assim, e comigo foi assim também, o rabo não sabe se aponta para o norte ou para o sul, a cabeça não sabe se é ela que arrasta o corpo ou se é o corpo que a empurra. Mas todo cachorro sabe sempre aonde ir para encontrar a felicidade. Ela readormece ao lado do Cachorro.

O LADRÃO COXO acorda. Desperta lentamente. Contempla a VELHA PUTA e o Cachorro. Escreve pela última vez na parede as seguintes palavras: “L’AMOUR OU” e continua: “LA MERDE”. Chama o Cachorro e vai embora com ele.

Tradução literal da canção de Yves Montand: O homenzinho cantava sem parar/ o homenzinho dançava em minha cabeça/ o pequeno homem da juventude/ rompeu o cadarço dos sapatos/ e todas as barracas da feira/ desmoronaram de uma vez/ e no silêncio dessa festa/ no deserto dessa cabeça/ ouvi tua voz feliz/ tua voz dilacerada e frágil/ infantil e desolada/ vindo de longe e que me chamava/ e eu pus as mãos sobre meu coração/ onde carregava ensangüentados/ os sete estilhaços de gelo do teu riso estrelado.

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