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Santuza Cambraia Naves A canção brasileira Leituras do Brasil através da música Seleção e organização: Frederico Coelho, Juliana Jabor, Júlio Naves Ribeiro, Paulo Henriques Britto e Tatiana Bacal

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Santuza Cambraia Naves

A canção brasileiraLeituras do Brasil através da música

Seleção e organização: Frederico Coelho, Juliana Jabor, Júlio Naves Ribeiro,Paulo Henriques Britto e Tatiana Bacal

Copyright © 205, Santuza Cambraia Naves

Copyright desta edição © 205: Jorge Zahar Editor Ltda.rua Marquês de S. Vicente 99 ‒ o | 2245-04 Rio de Janeiro, rjtel (2) 2529-4750 | fax (2) [email protected] | www.zahar.com.br

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Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Preparação: Kathia Ferreira | Revisão: Nina Lua, Otávio FernandesIndexação: Gabriella Russano | Capa: celso longo + daniel trench

cip-Brasil. Catalogação na publicaçãoSindicato Nacional dos Editores de Livros, rj

Naves, Santuza CambraiaN243c A canção brasileira: leituras do Brasil através da música/Santuza

Cambraia Naves; organização Frederico Coelho … [et al.]. – .ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 205.

il.

Inclui bibliografia e índiceisbn 978-85-378-429-

. Música popular – Brasil – História e crítica. i. Coelho, Frederico. ii. Título.

cdd: 782.42630985-20525 cdu: 78.067.26(8)

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Apresentação

Este livro acompanha a história da música popular brasi-leira. Os artigos aqui reunidos, tomados em conjunto, apresen-tam uma visão coerente do papel formativo desempenhado pela música – especialmente a canção – na história do país nos últimos cem anos. Foram produzidos ao longo da primeira década deste século XXI, à exceção do texto que fecha este vo-lume, sobre Caetano Veloso. Estão agrupados em duas seções. Na primeira, eles partem da música popular de décadas mais remotas – do samba-canção, passando pela bossa nova, à tro-picália – até chegarem a seus desenvolvimentos mais recentes

– desde a Vanguarda Paulista e o rock dos anos 980 até o rap contemporâneo. Tratam, portanto, de temas amplos, como as relações entre a contracultura e a tropicália. A segunda se-ção é composta por artigos sobre casos particulares de quatro expoentes da nossa música: Villa-Lobos, Tom Jobim, Chico Buarque e Caetano Veloso.

Podemos destacar alguns dos temas e conceitos que ganham relevo na reflexão de Santuza Cambraia Naves (952-202). Um deles é a tensão constante entre duas tendências, representadas pelos escritores Mário de Andrade e Oswald de Andrade, e também pelas noções de “modernismo” e “moderno”. Essa ten-são pode ser observada tanto na música erudita, abordada aqui no capítulo “Villa-Lobos e o projeto cultural de Getúlio Var-

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gas”, quanto na música popular, no embate entre a primazia da construção nacional e a ênfase na experimentação formal.

Os artistas mais estudados pela autora estão associados ao universo da MPB. Porém, no capítulo “‘Eu quero frátria’: a comunidade do rap”, ela volta sua atenção para esse fenômeno atual, que percebe como sintoma de uma nova visão de co-munidade, menos preocupada com a ideia de brasilidade, tão importante para os modernistas e as gerações que se seguiram à deles. Um conceito caro à pesquisadora é o de canção crítica, que se refere à contribuição feita pelos artistas surgidos na bossa nova e na era dos festivais dos anos 960: canção crítica seria a que comenta tanto a realidade brasileira quanto a estru-tura interna da própria canção, letra e melodia se integrando numa unidade indissolúvel. Esse tema é abordado com mais profundidade em “A canção popular entre Mário e Oswald”, mas está presente em outros escritos de Santuza, e é uma de suas principais contribuições teóricas como antropóloga dedi-cada ao estudo da música brasileira.

Os organizadores agradecem a Cristina Zahar, que genero-samente acolheu nosso projeto, apontou caminhos e nos deu sugestões da maior importância.

Frederico CoelhoJuliana Jabor

Júlio Naves RibeiroPaulo Henriques Britto

Tatiana Bacal

Parte I

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2. A canção crítica¹

Questionam-se, hoje em dia, os valores vanguardistas que forneceram durante décadas os critérios da análise cultural e estética, informados pela ideia do novo e da experimenta-ção formal. Ao que parece, o ideal do make it new tornou-se problemático nas condições atuais, em que critérios mais re-lativistas prevalecem quando se trata de pensar a recepção e a fruição estéticas. Silviano Santiago, por exemplo, considera que há uma tendência, na arte brasileira deste final de século, a se pautar por critérios mais culturais e antropológicos do que literários e sociológicos. Assim, diagnostica ele, a reflexão crítica inclinou-se a questionar as separações, promovidas na modernidade, entre o erudito, o popular e o pop. Criou-se um debate amplo e aberto no campo da arte, em que esta já não é vista como uma “manifestação exclusiva das belles lettres, mas como fenômeno multicultural que estava servindo para criar novas e plurais identidades sociais”.²

Quanto a esse ponto, gostaria de esclarecer que a minha intenção não é indicar saídas para a crítica cultural, propondo a substituição de um critério anacrônico por outro presu-mivelmente atual; pelo contrário, optei apenas por levantar uma série de tópicos que correspondem muito mais a dúvi-das do que a certezas. Assim, faço as seguintes perguntas, relacionadas às fronteiras entre a crítica moderna e a pós-

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moderna: que critérios (relativistas) são esses? Em que eles se distinguem dos vanguardistas ou dos modernistas em geral? A questão passa apenas pelo descrédito do novo ou existem outros problemas envolvidos?

Em vez de tentar resolver esses dilemas, prefiro discutir, num primeiro momento, as ambiguidades presentes nessas formas de crítica, o que torna difícil diferenciá-las, principal-mente se nos damos conta de que não é possível recorrer a um tipo de explicação linear, que não considera uma série de sutilezas e acaba reificando as próprias noções de moderno e pós-moderno. Assim, tomarei como exemplo paradigmático das ambiguidades contidas nesses discursos fronteiriços o li-vro Balanço da bossa: antologia crítica da moderna música popular brasileira, organizado por Augusto de Campos em 968, que reúne uma série de artigos seus e de músicos e musicólogos como Júlio Medaglia e Gilberto Mendes. Acredito que essa obra apresenta um aspecto paradoxal, pois ao mesmo tempo em que enuncia palavras de ordem vanguardistas no âmbito da canção popular, postulando o novo e a renovação formal, relativiza as fronteiras entre erudito e popular.

Em Balanço da bossa, pela primeira vez se deu um tratamento equânime às músicas popular e erudita, convencionalmente separadas nas colunas críticas dos jornais pelos antigos critérios de “elevado” e “baixo”. Tais classificações, legadas pela velha tradição clássico-romântica, foram embaralhadas pelos auto-res do livro, e o valor que passou a fundamentar suas críticas pautou-se pelo critério básico da inovação. De acordo com esse critério, as músicas – eruditas ou populares – eram apre-ciadas se resultavam de processo criativo experimental que provocava uma atitude de estranhamento no público, ao invés

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de oferecer o já familiar a uma recepção passiva. Também é importante lembrar que Augusto de Campos assume aí uma postura afirmativa com relação aos meios de comunicação de massa, o que não traz em si nenhuma novidade, já que tal pos-tura é coerente com as propostas da poesia concreta, esboçadas em vários manifestos dos anos 950.

A despeito de valorizarem a cultura de massa, os poetas concretos não fogem à experiência de lidar com um público mais selecionado, mais intelectualizado, pelo fato de adotarem uma proposta estética experimental, de “invenção”. Renato Poggioli, ao analisar as vanguardas, atribui-lhes um procedi-mento desse tipo e chama a atenção para a antinomia que desenvolvem entre a linguagem poética e a linguagem social. Segundo ele, seria próprio da natureza da poética vanguardista certa obscuridade, visando-se com isso à criação de novos sig-nificados dentro da pobreza da linguagem comum.³ Tentando aprofundar um pouco a reflexão sobre os poetas concretos, considero importante observar a tensão que se estabelece entre as concepções vanguardistas inerentes aos projetos da poesia concreta, inteligíveis apenas para os iniciados na linguagem hermética da estética do make it new por eles proclamada, e o vocabulário banal da cultura de massa. Esse tipo de atitude parece paradoxal se considerarmos que se os concretos acei-tam as inovações do domínio da cultura de massa, isso não significa que sejam complacentes com a linguagem mediana. De acordo com os ditames da estética concretista, se a forma capta e responde às novidades introduzidas pela moderna so-ciedade industrial, isso se faz sem que necessariamente se re-produza a linguagem social, porque a poesia concreta postula o exercício da função poética da linguagem. Coerente com

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essa perspectiva, há, segundo os concretos, uma hierarquia que deve ser observada para que se dê a realização poética; desse modo, ainda que o poeta possa recorrer a outras funções da linguagem – como a descritiva (caso da poesia épica clássica) ou a expressiva (poesia lírica romântica) –, não pode deixar que estas sobrepujem a função poética ou configuradora da men- sagem, ou seja, aquela que põe em destaque a própria mate-rialidade do signo.⁴

Em Balanço da bossa, as premissas da poesia concreta são aplicadas à música. Os autores do livro, principalmente Au-gusto de Campos, defendem uma postura internacionalista e moderna na música popular. Ao fazer uma releitura do movi-mento modernista, ele enfatiza a perspectiva antropofágica de Oswald de Andrade. Desse modo, o universalismo que propõe não prescinde, tal como o de Oswald, do elemento nacional, desde que esse elemento seja redefinido e questionado em suas premissas convencionais. Trata-se de ver a saída para a pobreza estética através da combinação – isto é, da relação dialética – entre elementos internos (nacional, feminino, natural) e exter-nos (masculino, domínio da técnica), o que pressupõe a forma devorativa dos nativos de incorporar os ingredientes externos, devolvendo-os transformados à metrópole.⁵

É importante, então, considerar que se Augusto de Cam-pos aceita a cultura de massa, ele se preocupa, por outro lado, com o aspecto de apuro formal das canções da bossa nova e da tropicália. Não se trata de fazer concessões ao grande público, promovendo um nivelamento estético por baixo, mas, pelo contrário, de alargar a percepção desse público através de práticas inusitadas que nele provoquem, continuamente, sensações de estranhamento. No artigo “Informação e redun-

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dância na música popular”, incluído no livro, o autor postula um tipo de estética musical que permita, tanto no campo do popular quanto no do erudito, “alguma ruptura com o código apriorístico do ouvinte”, ou “um alargamento imprevisto do repertório desse código”.⁶ Ele preconiza, para os músicos in-ventivos, uma atitude clássica, no sentido de romper com a rejeição romântica do mundo moderno, em qualquer forma que ela se apresente, e assumir objetivamente as linguagens in-terconectadas da aldeia global de McLuhan. Trata-se, portanto, não só no terreno da música quanto no da estética em geral, de ousar radicalmente, tomando os signos modernizantes como a própria base para a revolução da forma.

Seguindo essa linha de raciocínio, Augusto ressalta a ati-tude inovadora dos criadores da bossa nova, em particular de João Gilberto, ao desenvolverem, tal como postulava Oswald de Andrade, a postura antropofágica de lidar criativamente com o elemento estrangeiro, misturando-o com o nacional. De maneira semelhante, o movimento tropicalista é visto de forma bastante positiva, na medida em que daria continuidade à atitude bossa-novista de cuidar da “linha evolutiva da música popular”. Augusto percebe o elemento crítico presente na can-ção popular, principalmente a partir da bossa nova, embora ele tenha também construído um “paideuma” da canção no Brasil – no sentido de valorizar a canção que foi inovadora em sua própria época –, que incorpora, por exemplo, “Gago apaixonado”, samba de Noel Rosa gravado pela primeira vez em 93. Essa composição de Noel apresenta os componentes isomórficos tão valorizados por Augusto, no sentido de letra e música serem concebidos conjuntamente, resultando num verdadeiro diálogo entre um e outro.

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Entretanto, o que realmente desperta seu interesse, dentro da linha musical bossa-novista, são as canções inaugurais da tendência, como “Desafinado” (958) e “Samba de uma nota só” (959), de Tom Jobim e Newton Mendonça. Nessas com-posições, é introduzido um procedimento ímpar na história da música popular no Brasil, pois letra e música, ao mesmo tempo em que se comentam mutuamente, fazem uma crítica às convenções musicais. Ambas as composições permitem dois tipos de recepção: uma crítica e outra descomprometida com a discussão estética. Um ouvinte atento às inovações introdu-zidas pelo cool jazz pode interpretar as canções como libelos contra a mesmice na tradição musical, como se vê na própria temática de “Desafinado”, em que o sujeito argumenta com o interlocutor que o seu comportamento presumivelmente “an-timusical” é, no fundo, “bossa nova”. Em “Samba de uma nota só”, pode-se perceber o comentário crítico em favor de certo tipo de minimalismo com a referência ao “sambinha feito de uma nota só”. Outro tipo de ouvinte, mais ingênuo, pode me-ramente experimentar a fruição de canções sentimentais, pois tanto em uma quanto na outra o comentário estético mescla-se com o discurso amoroso.

Agora, é importante considerar que esse efeito só é provo-cado pela interação perfeita entre música e letra, o que torna impossível analisar uma canção da bossa nova isolando um componente do outro. Ainda em “Desafinado”, por exemplo, no momento exato em que se pronuncia a sílaba tônica da pa-lavra “desafino” ocorre, no plano da música, uma nota inespe-rada, que representa uma ruptura com os padrões harmônicos da música popular convencional. Com “Samba de uma nota só” se dá o mesmo fenômeno, pois a letra comenta criticamente

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as subidas de tom na escala. Nada mais convergente com o espírito vanguardista de Augusto de Campos que os elementos transgressivos que aparecem nas duas canções.

Os tropicalistas, uma década depois, passam a interessar o poeta paulista pela adoção de procedimentos análogos, recor-rendo também ao comentário crítico e, de maneira inusitada, à metalinguagem. Assim, se a canção bossa-novista realiza a crítica, a canção tropicalista é crítica por excelência, exerci-tando essa tarefa não apenas através da conjunção música e letra, como também recorrendo a arranjos, capas de discos e performances. O elemento crítico da canção da bossa nova atém-se, no geral, às estruturas musicais. Já o tropicalismo se caracteriza como projeto mais amplo, consistindo num debate que ultrapassa as fronteiras do meio artístico e converte-se em movimento cultural. Profundamente afinados com as ideias de Oswald de Andrade, Caetano Veloso e Gilberto Gil assimila-ram as novidades veiculadas pelos movimentos de massa e de juventude, assim como retomaram as pesquisas desenvolvidas no campo da música popular.⁷

“Alegria, alegria”, canção inaugural de Caetano na estética tropicalista, de 967, é bastante representativa desse tipo de estruturação crítica. A melodia, concebida a partir do iê-iê- iê ingênuo e acessível às massas, interage com as referências críticas, contidas na letra, à “visão otimista do futuro” pró-pria da música de protesto.⁸ O sociólogo Gilberto Vasconcellos ressalta o teor revolucionário dessa canção ao promover uma ruptura radical com “os hábitos mentais da intelligentzia de-senvolvimentista”. Segundo ele, os baianos passaram a ope-rar com os temas políticos e sociais de maneira diferente das práticas tradicionais da MPB, que os tratava explicitamente

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no texto, optando, ao contrário, pelo uso da paródia ou da alegoria. Assim, o significado político, na canção tropicalista, nunca aparece “exterior à configuração estética”.⁹ Com relação ao arranjo de “Alegria, alegria”, a introdução da guitarra e do rock vem associada à substituição de uma retórica utópica e comprometida com o nacional-popular por uma estética uni-versalista da agoridade.

Há um consenso, atualmente, de que a tropicália teria sido a última manifestação vanguardista no Brasil, embora se confi-gurasse como um movimento atípico, pois os tropicalistas, pa-radoxalmente, incorporaram a tradição de ruptura instaurada no Brasil com a bossa nova e a poesia concreta e ao mesmo tempo romperam com ela. O abandono do projeto vanguar-dista pelos compositores baianos, principalmente após a sua volta do exílio, em 972, e a sua opção por projetos individuais não significou, no entanto, que tivessem desistido de práticas experimentais. Caetano, Gil e Tom Zé, entre outros, são exem-plos de músicos que têm procurado, ao longo de sua trajetória, lidar com um tipo de linguagem musical que, dentro do espí-rito da canção popular, visa a uma comunicação direta com o público sem deixar de provocar a sensação de estranhamento tão cara aos modernos. Dito de outro modo, buscam realizar a canção crítica.

Lidamos hoje, no terreno da canção popular, com uma plu-ralidade de gêneros jamais vista; ao menos, nunca antes tantos gêneros diferentes foram divulgados pelos meios de comunica-ção de massa. Dentro dessa diversidade, há várias tendências tributárias da tropicália, exercitando, através da canção, a me-talinguagem e o comentário crítico. Outros estilos musicais, ao contrário, retornam à tradição há muito instaurada de se

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referir diretamente à realidade social. E ainda há outros que, de maneira híbrida, remetem tanto ao próprio repertório da canção popular quanto ao mundo atual. O desempenho da crítica, portanto, depende em muito da avaliação histórica de um momento marcado pelo ecletismo musical. Por outro lado, disseminam-se critérios relativistas que questionam o ideal elitista das vanguardas históricas e tentam formular categorias para entender o sucesso popular, o gosto popular. Os discursos sobre o moderno e o pós-moderno, em seus matizes otimistas e pessimistas, adquirem, com isso, bastante relevância para se pensar as possibilidades atuais de atividade crítica.

De certa forma, os postulados modernos da autonomia da obra de arte e da renovação formal se tornaram hegemônicos no Brasil, pelo menos entre as vertentes derivadas da bossa nova. Tais premissas, no entanto, parecem elitistas para aque-les que se propõem a repensar a relação entre arte e vida no momento atual, com a emergência de novas identidades cul-turais. E, de fato, a atividade crítica cada vez mais se preocupa com a questão do pertencimento do autor a uma ou outra comunidade, seja étnica, seja orientada por critérios de opção sexual, seja de gênero, entre outras, em detrimento da avalia-ção da obra de arte pelos critérios modernistas de apuro formal.

Com relação à emergência de valores culturais que prepon-deram sobre os estéticos, gostaria de problematizar alguns pontos. Um deles refere-se ao discurso que postula o ocaso das vanguardas, enfatizando o aspecto positivo da arte atual, cujos criadores se mostram libertos da concepção de progresso e, consequentemente, da obsessão pela novidade estética. O filósofo italiano Gianni Vattimo, ao analisar essa nova reali-dade, afirma que a pós-modernidade pensa de maneira dife-

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rente as relações entre tradição e inovação, sem hierarquizar esses termos, no sentido de desmerecer o primeiro e conferir grande valor ao segundo. Um dos resultados dessa prática é a dissolução de fronteiras entre antinomias típicas da moderni-dade, como presente e passado, esquerda e direita, progresso e reação, vanguarda e kitsch etc.¹⁰ A discussão artística, sem dúvida, se torna mais democrática, liberta das amarras mes-siânicas da “colonização do futuro” tão criticada por Octavio Paz em seus ensaios filosóficos.¹¹ E não há como discordar desse tipo de interpretação. Só não vejo por que pensá-la, pelo menos no âmbito da canção brasileira, como um fenômeno atual, já que algumas manifestações musicais anteriores, entre as quais a tropicália, trouxeram para o cenário artístico uma reinterpretação exuberante do Modernismo, desfazendo suas oposições ortodoxas e assumindo radicalmente o passado e o presente da música popular.

Um segundo problema, bastante relacionado ao primeiro, refere-se ao próprio processo de constituição das identidades étnicas. Se o fortalecimento das características comuns de um grupo étnico ou sexual tem sido uma estratégia política impor-tante para a extensão da cidadania a um contingente maior da sociedade, ele pode engendrar, por outro lado, uma percepção essencialista de mundo. Corre-se, assim, o risco de tomar a es-sência construída pela realidade, reificando-a através de elemen-tos míticos. Uma crítica pouco atenta a esse fenômeno pode simplesmente proceder ao “elogio da diversidade reificada”, que não é sinônimo de produção de diversidades, de acordo com Otávio Velho em seu ensaio “Relativizando o relativismo”.

Um terceiro problema aparece com a canção popular que só segue os ditames do vox populi, vox Dei, levando às últi-

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mas consequências o critério comercial. Nem crítica, nem ideológica, é, como diria Gilberto Gil, feita “para tocar no rádio”. Parafraseando Nietzsche, em sua crítica aos excessos da história antiquária, que valoriza a “poeira da história”,¹² é como se o cancionista, nesses termos, só lidasse com os “ciscos do cotidiano”. Se o Modernismo, de uma certa maneira, fez uso do critério antiquário para lidar com o humilde, ou com o cotidiano do homem comum, ele conciliou essa perspectiva com formas estéticas não convencionais, operando, portanto, com o estranhamento.

A propósito dessas considerações sobre a atitude compla-cente com relação a tudo que é veiculado pela mídia, comento aqui uma reflexão provocativa de Otávio Velho, exposta em seu citado ensaio. Neste, o autor retoma o movimento histó-rico da antropologia e de outras áreas do conhecimento, no sentido de alargar o campo de estudo e de reconhecer a im-portância do “homem comum” e dos temas comuns. Segundo ele, se esse procedimento representou um ganho importante, seus excessos podem ser nocivos, principalmente se o “hu-mano” deslizar para o “demasiadamente humano” e o resgate do cotidiano se transformar no “elogio da banalidade”.¹³ Ele aprofunda essa reflexão referindo-se a usos por vezes anacrô-nicos que se fazem ainda da perspectiva relativista. Acionada como uma estratégia importante, no início do século XX, num mundo impregnado de valores etnocêntricos, tal perspectiva se mostra ineficaz para pensar uma situação oposta, muito vivida hoje em dia, que é a de ausência de valores. Num quadro de escassez de valores, o discurso relativista “estaria batendo num homem de palha”, “na medida em que constitui uma luz forte que obscurece o entorno, compondo o quadro dominante e

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oferecendo-lhe um elogio”. Por outro lado, Otávio Velho ad-verte para os perigos de confundir diversidade com estilos de vida, esses sim, exaltados pela cultura de massa. Incorre-se, dessa forma, na atitude de supervalorizar as pequenas diferen-ças, o que “obscurece as grandes opções culturais, quer pela apropriação e esfriamento dos ‘temas quentes’, ao se focalizá- los por uma ótica, ela sim, homogeneizadora e domesticadora, em que, nominando, explica-se e neutraliza-se o insólito, tor-nando-o assimilável”.¹⁴

A antropologia se constituiu, em sua feição modernista, com um forte componente de crítica cultural, acionando o relativismo contra as perspectivas que apagavam as di-versidades humanas.¹⁵ Atualmente, os tempos são outros e, paradoxalmente, em nome do próprio relativismo, muitos dos cientistas sociais se abstêm de fazer crítica, partindo do pressuposto de que a definição de arte e a sua avaliação, em termos estéticos, deve se restringir aos próprios nativos. Não questiono, evidentemente, essa premissa básica da investiga-ção antropológica, que tem gerado reflexões fecundas sobre arte e sociedade. Howard S. Becker, por exemplo, é um dos autores que muito contribuíram para esse tipo de análise ao deslocar a discussão da obra em si para o caráter coletivo e cooperativo da produção artística.¹⁶ De qualquer modo, é interessante refletir sobre o argumento do antropólogo argentino Néstor García Canclini¹⁷ a respeito do conteúdo homogeneizador da constelação de tarefas analisadas por Be-cker nos “mundos artísticos”. Segundo Canclini, ao se deter na maneira como se constroem os sentidos entre os vários participantes do trabalho artístico, Becker não abre espaço para se pensar nos “criadores excepcionais”.

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A análise da produção de significados no mundo artístico é, sem dúvida, tarefa para o antropólogo. No entanto, quando ele se confina nessa tarefa, corre o risco tanto de dar pouca importância à acuidade estética quanto de manter paralisada a sua reflexão crítica. Dito de outro modo, ao se concentrar nos aspectos coletivos que envolvem o trabalho artístico, o pesquisador pode descuidar da análise da obra em si e incorrer no risco de reduzir o texto a mero sintoma do contexto.

Finalizando, cabe então perguntar se o atual enfoque an-tropológico, que se inclina mais a classificar tendências em termos de pertencimento social, é incompatível com uma ati-tude crítica propriamente dita, que leva em conta critérios de apuro formal para chegar a juízos de valor. Sem pretender ressuscitar o fantasma vanguardista – que, aliás, não esgota o legado modernista –, acredito que, em pleno processo de globalização, quando os repertórios musicais se multiplicam, podemos tomar estrategicamente alguns pressupostos da his-tória crítica, não apenas selecionando de maneira criativa as tradições a serem incorporadas ao trabalho artístico, como também recriando-as, como na canção tropicalista, de maneira carinhosa e – por que não? – crítica.