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A cara do PMDB Quem é, de onde veio e o que quer o chefe do maior partido brasileiro e candidato a vice-presidente de Dilma Rousseff por Consuelo Dieguez O deputado Michel Temer, do PMDB, recebeu, em meados de abril de 1998, um jovem advogado, cuja família conhecia de longa data, para um almoço tête-à-tête na residência oficial da presidência da Câmara dos Deputados. Mal haviam começado a comer quando o rapaz criticou a nomeação do senador Renan Calheiros para o Ministério da Justiça. "Não sei como o presidente Fernando Henrique pôde fazer uma escolha tão desastrosa", disse. Temer olhou com um pouco mais de interesse o interlocutor e, sem alterar a expressão e a voz, respondeu: "O Renan foi escolhido pelo PMDB; portanto, é uma escolha minha." E levantou-se logo em seguida, alegando que precisava dar um telefonema. Não voltou. Um mordomo pediu ao moço que se retirasse, dizendo que Temer estava ocupado e não poderia continuar o almoço. O PMDB é isso: lealdade. Passados sete anos, Renan Calheiros chamou Temer ao seu gabinete. Era uma conversa crucial para o deputado. Ele se lançara candidato à presidência da Câmara pela segunda vez. Precisava do apoio do companheiro de partido, que tinha ascendência sobre um grupo de parlamentares e era respeitado pelo governo petista. O senador garantiu que diria ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva que Temer era a escolha do PMDB. Naquela mesma noite, Temer soube que, na reunião com Lula, ao invés do seu nome, Calheiros defendera o de seu principal oponente: Aldo Rebelo, do Partido Comunista do Brasil. Com o apoio do Planalto, o deputado do pcdob elegeu-se presidente da Câmara. O PMDB é isso: traição. Michel Temer chegou à presidência do partido no início de 2007. Pouco depois, a jornalista Mônica Veloso trombeteou que tivera um affaire e uma filha com Renan. Também revelou que quem pagava a pensão da criança, em dinheiro vivo, em nome do senador, era a empreiteira Mendes Júnior. Parlamentares de vários partidos entraram com um pedido de cassação de Renan, então presidente do Senado. Temer marcou um jantar na casa do senador e, assim que entrou, apertou a mão que o apunhalara e disse: "O PMDB não vai te abandonar." Renan teve que sair da presidência do Senado, mas o partido garantiu os votos que lhe impediram a cassação. O PMDB é isso: reconciliação. Na maior crise do governo Lula, a do mensalão - o esquema de compra de votos de parlamentares em benefício do Planalto, que veio a se tornar público em 2005 - o PMDB negociou o apoio ao presidente e mais que dobrou o seu plantel de ministros, que passaram a ser cinco. Em 2007, numa reunião de cinquenta minutos entre Michel Temer e Lula, o partido passou a integrar oficialmente o governo. Em troca, levou mais dois

A Cara Do PMDB - Consuelo Dieguez (Piaui 45)

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Matéria da Revista Piaui que expõe o perfil político de Michel Temer, Vice-Presidente da República e atualmente o articulador político do Planalto.

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  • A cara do PMDB Quem , de onde veio e o que quer o chefe do maior partido brasileiro e candidato a vice-presidente de Dilma Rousseff

    por Consuelo Dieguez O deputado Michel Temer, do PMDB, recebeu, em meados de abril de 1998, um jovem

    advogado, cuja famlia conhecia de longa data, para um almoo tte--tte na residncia

    oficial da presidncia da Cmara dos Deputados. Mal haviam comeado a comer quando

    o rapaz criticou a nomeao do senador Renan Calheiros para o Ministrio da Justia.

    "No sei como o presidente Fernando Henrique pde fazer uma escolha to desastrosa",

    disse. Temer olhou com um pouco mais de interesse o interlocutor e, sem alterar a

    expresso e a voz, respondeu: "O Renan foi escolhido pelo PMDB; portanto, uma

    escolha minha." E levantou-se logo em seguida, alegando que precisava dar um

    telefonema. No voltou. Um mordomo pediu ao moo que se retirasse, dizendo que

    Temer estava ocupado e no poderia continuar o almoo. O PMDB isso: lealdade.

    Passados sete anos, Renan Calheiros chamou Temer ao seu gabinete. Era uma conversa

    crucial para o deputado. Ele se lanara candidato presidncia da Cmara pela segunda

    vez. Precisava do apoio do companheiro de partido, que tinha ascendncia sobre um

    grupo de parlamentares e era respeitado pelo governo petista. O senador garantiu que

    diria ao presidente Luiz Incio Lula da Silva que Temer era a escolha do PMDB. Naquela

    mesma noite, Temer soube que, na reunio com Lula, ao invs do seu nome, Calheiros

    defendera o de seu principal oponente: Aldo Rebelo, do Partido Comunista do Brasil.

    Com o apoio do Planalto, o deputado do pcdob elegeu-se presidente da Cmara. O PMDB

    isso: traio.

    Michel Temer chegou presidncia do partido no incio de 2007. Pouco depois, a

    jornalista Mnica Veloso trombeteou que tivera um affaire e uma filha com Renan.

    Tambm revelou que quem pagava a penso da criana, em dinheiro vivo, em nome do

    senador, era a empreiteira Mendes Jnior. Parlamentares de vrios partidos entraram

    com um pedido de cassao de Renan, ento presidente do Senado. Temer marcou um

    jantar na casa do senador e, assim que entrou, apertou a mo que o apunhalara e disse:

    "O PMDB no vai te abandonar." Renan teve que sair da presidncia do Senado, mas o

    partido garantiu os votos que lhe impediram a cassao. O PMDB isso: reconciliao.

    Na maior crise do governo Lula, a do mensalo - o esquema de compra de votos de

    parlamentares em benefcio do Planalto, que veio a se tornar pblico em 2005 - o PMDB

    negociou o apoio ao presidente e mais que dobrou o seu plantel de ministros, que

    passaram a ser cinco. Em 2007, numa reunio de cinquenta minutos entre Michel Temer

    e Lula, o partido passou a integrar oficialmente o governo. Em troca, levou mais dois

  • ministrios e dezenas de cargos de direo em empresas estatais. O PMDB isso:

    fisiologismo.

    O PMDB o grande partido brasileiro. Tem a maior bancada da Cmara, com 91

    deputados, e a maior do Senado, com dezoito senadores. Governa nove estados, entre

    eles o Rio de Janeiro, que respondem por quase 30% do Produto Interno Bruto nacional.

    Controla 1 201 municpios, inclusive seis capitais, e tem 3 500 vereadores e 2 milhes de

    filiados. Os seis ministrios hoje sob o seu comando, somados aos cargos em estatais e

    fundos de penso em seu poder, administram cerca de 250 bilhes de reais ao ano.

    Depois de fechar o Congresso, extinguir todos os partidos e cassar centenas de

    parlamentares, em 1966 a ditadura militar enquadrou a poltica institucional em duas

    agremiaes: a Aliana Renovadora Nacional, a Arena, e o Movimento Democrtico

    Brasileiro, o MDB. Como no podiam fazer campanha eleitoral, nem oposio

    parlamentar, ambas serviam de adorno institucional ao regime. Em 1970, a votao nos

    candidatos do MDB foi to pfia que o partido quase no conseguiu ter representao no

    Congresso. Seus integrantes se dividiram em duas correntes internas. A majoritria era

    a dos "moderados": os que apoiavam o regime militar tal como ele era, para evitar que se

    tornasse mais ditatorial. A outra era a dos "autnticos": aqueles que, por meio de um bem

    calibrado palavrrio liberal, se propunham abrandar a ditadura.

    Nas eleies de 1974, na esteira da crise do petrleo e do fim do "milagre econmico", o

    MDB canalizou o descontentamento generalizado. Saiu das urnas com trs quartos das

    vagas do Senado e dobrou a bancada na Cmara. Para dividi-lo, a ditadura permitiu,

    cinco anos depois, a criao de novas organizaes. Mas obrigou que todas tivessem a

    designao "partido" antes do nome. O regime supunha que a corrente moderada criaria

    um novo agrupamento, e os autnticos ficariam com os restos da agremiao extinta.

    Tancredo Neves liderou a criao do Partido Popular. E o deputado Ulysses Guimares

    assenhorou-se do Partido do Movimento Democrtico Brasileiro, o PMDB.

    O arranjo no prosperou porque Tancredo Neves percebeu que o Partido Popular no

    tinha futuro e bandeou-se para o PMDB. Com o apoio de Ulysses e de uma parte do

    regime, Tancredo foi nomeado presidente da Repblica por um colgio eleitoral que,

    apesar de toda a retrica democrtica, era uma instituio ditatorial. Tancredo Neves*

    no tomou posse porque adoeceu na vspera da cerimnia. Operou-se e agonizou por 39

    dias antes de morrer. A Presidncia foi parar nas mos do vice Jos Sarney, que

    sustentara com denodo os militares e deles se beneficiara largamente. Com Sarney no

    Planalto e Ulysses Guimares no Congresso, o PMDB chegou ao poder. Com mo de gato,

    o partido logo mostrou o que viria a se tornar: o ocupante de cargos-chaves no Estado,

    que usaria para se associar a empresrios e alimentar o caixa e a clientela que garantiriam

    a sua reproduo eleitoral.

  • O PMDB no poder foi um desastre total. Em cinco anos de governo, teve doze ministros.

    Dominou o Congresso que se autointitulou Constituinte e redigiu a Carta em vigor.

    Patrocinou pacotes econmicos que provocaram hiperinflao, desemprego em massa e

    o desmonte de servios pblicos j precrios. Com a popularidade no fundo de um

    abismo, Sarney saiu do Planalto sob vaias. Ulysses Guimares, o lder histrico do

    partido, candidatou-se a presidente e obteve um vexatrio stimo lugar, com 4,4% dos

    votos.

    Apenas trs anos depois, no entanto, o partido derrotado nas urnas voltava ao Planalto.

    Dessa vez por meio de Itamar Franco, o senador do partido que fora vice do presidente

    destitudo, Fernando Collor. A partir da, o PMDB comps com todos os governos. Ficou

    com dois ministrios no primeiro mandato do ex-emedebista Fernando Henrique

    Cardoso, e com quatro no segundo. Nas eleies de 2002, repetiu a coreografia da diviso

    interna para melhor manter o mando: a banda do Senado apoiou a candidatura petista;

    a da Cmara, a tucana. S no segundo mandato de Lula o partido aderiu com

    homogeneidade ao governo do PT.

    O PMDB no lana candidato prprio Presidncia desde a derrota de Orestes Qurcia,

    em 1994*. O socilogo Bolvar Lamounier acha que isso aconteceu porque o partido

    "perdeu todos os seus lderes de envergadura como Tancredo, Ulysses e tambm

    Montoro e Mario Covas, que foram para o PSDB" e no conseguiu se renovar na

    passagem de uma gerao para outra. "Sem uma liderana nacional, o partido ficou na

    mo dos feudos regionais e dos clientelistas", disse Lamounier em sua casa, no Alto de

    Pinheiros, em So Paulo. "O PMDB no tem um projeto nacional e no sei se quer ter.

    Sua briga por cargos."

    Um dos melhores postos da Repblica o de vice-Presidente. ele que o PMDB quer

    ocupar a partir do ano que vem. Pela legislao eleitoral, o tempo nos programas de

    campanha na televiso e no rdio dividido segundo o tamanho das bancadas

    partidrias. E, mesmo tendo direito maior fatia da propaganda eleitoral, o PMDB

    decidiu no disputar diretamente o Planalto. Preferiu que o presidente da sigla, Michel

    Temer, fosse o candidato a vice na chapa de Dilma Rousseff.

    Nem Lula nem Dilma queriam Temer. Consideram-no ardiloso e voraz em demasia

    quando reivindica posies para o partido, e uma nulidade em termos eleitorais. Para

    agradar o patronato, Lula convenceu Henrique Meirelles, que filiado ao PMDB, a

    continuar presidente do Banco Central, at que a possibilidade de ser vice se tornasse

    palatvel ao partido. O PMDB no se entusiasmou. O presidente tentou tambm que o

    PMDB lhe oferecesse uma lista de trs nomes, dos quais ele selecionaria um para vice.

    Temer no topou.

  • Na histria republicana, 20% dos vices viraram presidente antes do trmino do mandato

    do titular. Itamar Franco, por exemplo, estava desgarrado do PMDB e no participou do

    governo Collor. Passou a fazer muxoxos quando o Presidente perdeu popularidade, e s

    foi para a oposio quando a destituio de Collor se tornou inevitvel. Do ponto de vista

    de Fernando Henrique Cardoso, no houve vice melhor do que Marco Maciel, do Partido

    da Frente Liberal: ele entrou mudo e saiu calado do cargo.

    Lula conheceu Jos Alencar durante uma visita fbrica do empresrio, a Coteminas.

    Segundo relembrou vrias vezes, encantou-se com ele e logo pensou em faz-lo seu vice.

    A chapa com ele e Alencar, no raciocnio de Lula, simbolizaria perfeio a ideia de

    governo que o petista pretendia: a da conciliao de classes, da aliana entre trabalho e

    capital.

    Jos Alencar estava no Partido Liberal, o pl, uma legenda evanglica de aluguel. Houve

    uma reunio, na casa do deputado Paulo Rocha, do PT, em Braslia, para acertar a aliana

    entre eles. Ela ocorreu no dia 19 de junho de 2002. De um lado, estavam presentes Lula,

    Jos Dirceu e Delbio Soares, o tesoureiro da campanha do PT. De outro, Jos Alencar e

    o deputado Valdemar Costa Neto, chefe do pl. Trs anos depois, quando estourou o

    mensalo, Costa Neto contou que, no encontro, pediu 20 milhes de reais para que o

    partido apoiasse Lula e Alencar fosse o seu vice. Com a bno de Alencar, acabou

    aceitando 10 milhes de reais. Durante a campanha, o candidato a vice ps 2 milhes de

    reais do prprio bolso na mo de Delbio.

    No cargo, Jos Alencar ajudou o governo. As suas crticas s altas taxas de juros, por

    exemplo, foram discutidas previamente com Lula, que o incentivou a faz-las. Assim, o

    presidente pressionava indiretamente o Banco Central a reduzir os juros. Mais

    recentemente, Alencar defendeu que o Brasil tenha armas nucleares. No se tratou de

    uma boutade inconsequente, feita por quem no tem poder de fato, e sim da expresso

    do pensamento de um setor do governo e do PT. Por fim, a divulgao estrepitosa, em

    horrio nobre e na primeira pgina de jornais, do tratamento de sade do vice, e da

    bonomia com que enfrenta o cncer, lhe granjearam a admirao da opinio pblica.

    bem o contrrio do que ocorre com Michel Temer. Ele no tem imagem pblica

    definida. No mximo, reconhecido como um poltico profissional e andino. No interior

    da poltica oficial, porm, considerado a encarnao do pantagrulico aparelho

    peemedebista. O historiador Luiz Felipe de Alencastro chamou a ateno para um

    problema em potencial do consrcio PT-PMDB. "Uma presidencivel desprovida de voo

    prprio na esfera nacional, sem nunca ter tido um voto na vida, estar coligada a um vice

    que maneja todas as alavancas do Congresso e da mquina partidria peemedebista",

  • disse Alencastro. " uma chapa de algum que sabe tudo e tem sob seu comando a maior

    bancada do Congresso, com algum que vai comear a aprender." Acrescente-se que

    Dilma no tem ascendncia sobre o PT. Ela ficou no Partido Democrtico Trabalhista, o

    PDT de Leonel Brizola, at 2001. E nele desenvolvia uma poltica de cunho provinciano-

    familiar: eleger seu marido governador do Rio Grande do Sul.

    Perguntei a Alencastro, que titular da ctedra de histria do Brasil na Universidade

    Sorbonne, se Lula e o PT, por trs de Dilma, no poderiam estabelecer um equilbrio de

    foras. "Ningum sabe onde Lula estar no prximo governo e o PT no tem liderana

    no Parlamento", disse o professor. O nico que poderia assumir a liderana do partido,

    em sua opinio, seria Jos Genono. Mas o deputado se enfraqueceu demais quando um

    assessor de seu irmo foi flagrado com dlares na cueca. "O Genono no tem mais fora

    para virar o jogo," completou.

    Autor de O Trato dos Viventes, Alencastro no acha que Temer possa ser um perigo,

    numa eventual Presidncia de Dilma Rousseff, apenas no caso de ela ter de se afastar do

    cargo. A ambio do PMDB, avaliou Alencastro, poderia levar Temer a lanar mo de

    uma proposta tentada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso: a instaurao

    do regime parlamentarista. "No digo que o Temer v fazer isso, mas, num contexto de

    crise, com o controle que ele tem do Congresso, possvel uma manobra de votao de

    uma emenda constitucional, instaurando o parlamentarismo", comentou. "No final dos

    anos 90, Temer defendeu a tese de que o Congresso tinha poderes para isso." Nesse

    cenrio, o vice poderia vir a ser nomeado primeiro-ministro.

    Michel Temer me recebeu pouco antes do almoo, na residncia oficial da presidncia da

    Cmara. Cumprimentou-me com o sorriso metlico que seu trao de expresso mais

    eloquente. No parecia vontade, suas mos tremiam um pouco. Sentamo-nos na sala,

    cuja enorme porta de vidro se abre para o jardim e a piscina. Temer fala baixo, nunca usa

    gria e se expressa num portugus que parece escrito previamente. Antes de iniciar uma

    frase, costuma acrescentar um "Voc sabe?", e levanta o dedo indicador.

    Perguntei-lhe o que achara do artigo de Luiz Felipe de Alencastro. "Ele faz uma pregao

    de que um risco eu ser vice", disse. "Eu, claro, no vejo dessa maneira. A minha

    presena s far aumentar a interlocuo do governo com o Congresso." Afirmou que

    no ser "um vice que atrapalha". E rechaou a tese de que sua influncia no Congresso

    deixaria Dilma Rousseff vulnervel: "A ex-ministra conhece muito bem o pas e os seus

    problemas por fora dos cargos que ocupou." O PMDB no governo, sustentou, dar maior

    tranquilidade ao Planalto. "Ns garantimos a estabilidade do real e, no governo Lula,

  • apoiamos os programas sociais", completou. "Cito isso para me opor tese dos que dizem

    que o PMDB fisiolgico."

    Temer tem 69 anos, magro e mede 1,70 metro. Ele tem o hbito de engatar a ponta dos

    dedos e puxar as mos como se quisesse separ-las. Sua postura sempre ereta, e parece

    no relaxar nem quando se senta numa poltrona. Quando o entrevistei, vestia terno preto

    e gravata de seda azul. A camisa no tinha uma ruga, apesar de ele ter passado a manh

    em reunies no Congresso. "Voc sabe, sou uma pessoa formal", avisou sem que eu

    perguntasse. "Disseram que eu preciso mudar meu jeito, que sou muito cerimonioso.

    Mas como? Tenho inveja de quem faz blague. Eu no sei fazer isso. Se fizer, vai ser um

    desastre. No sou eu."

    Indaguei se fora educado para se comportar dessa forma. Disse que no. Enganchou as

    mos novamente, puxou-as e arriscou uma explicao: "Voc sabe, eu tinha um irmo

    que era muito formal e elegante no trato com as pessoas. Ele serviu um pouco de modelo.

    As pessoas gostavam dele. Eu acho que no se pode confundir cerimnia com antipatia."

    O deputado o caula de oito irmos. Seus pais, os libaneses March e Miguel Elias

    migraram para o Brasil em 1930. O casal, com trs filhos nascidos no Lbano, foi morar

    numa chcara, em Tiet, no interior de So Paulo, onde beneficiavam arroz e caf. A

    diferena de idade de Temer e os irmos mais velhos era de mais de vinte anos. Quatro

    deles foram estudar em So Paulo, na Faculdade de Direito do Largo So Francisco.

    Sozinho na chcara, que ficava a certa distncia da cidade, ele lia para passar o tempo.

    "Pegava os livros na biblioteca da cidade e lia de tudo, romances e poesias", disse.

    Tambm adorava cinema. Aos 9 anos, viu um filme sobre a vida de Chopin que

    permaneceu para sempre em sua memria: Noite Sonhamos. "Fiquei to

    impressionado quando uma gota de sangue pingou no teclado enquanto Chopin tocava

    uma Polonaise, que pedi para o meu pai me deixar ter aulas de piano." O pai, no entanto,

    o matriculou num curso de datilografia. "Eu dedilhava as teclas da mquina de escrever

    como se fossem de piano", disse, rindo. "Com isso, aprendi a datilografar usando os dez

    dedos."

    Um de seus irmos, Elias, sabendo do interesse do caula pela leitura, costumava lhe

    trazer de So Paulo o jornalzinho do centro acadmico da faculdade. Num dos

    exemplares, vieram publicados dois poemas. Um se chamava "A mulher que eu no

    queria" e o outro "Filosofia de um diretor de circo". Os dois tinham sido escritos por um

    estudante chamado Antnio Malanga. "Gostei tanto daqueles versos que os decorei pelo

    resto da vida." Pedi que ele me recitasse um trecho. Ele comeou:

    Possui os cabelos sedosos

  • Uma boca perfeita, um primor,

    E trazia nos olhos formosos,

    Mil promessas e sonhos de amor.

    E prosseguiu, por outros dez versos. Depois engatou com a segunda poesia, de outros

    catorze versos, que terminava assim:

    Mas por ser to medonha e teimosa

    Numa jaula, fechei-a.

    Nesse dia ficou sendo uma fera famosa

    Ficou sendo a mulher que eu queria.

    Adulto, Michel Temer foi apresentado por acaso ao autor das poesias que sabia de cor.

    "Comecei a declamar os seus poemas, e ele ficou muito espantado", contou o deputado.

    "E me disse que tinham sido as duas nicas coisas que havia escrito na vida."

    Ele tambm estudou direito na Universidade de So Paulo. J no primeiro ano de

    faculdade, em 1959, foi eleito segundo-tesoureiro do centro acadmico. A diretoria foi

    convidada para almoar pelo ento governador paulista, Ademar de Barros, o do lema

    "Rouba, mas faz". O chefe de gabinete do governador o apresentou e informou o cargo

    de Temer. O governador se interessou. "'Segundo-tesoureiro? Ento voc o homem do

    caixinha? Senta aqui ao meu lado.' Eu fiquei vermelho, morto de vergonha", contou o

    deputado.

    O escritrio do advogado Homar Cais fica no 1 andar de um prdio na rua Haddock

    Lobo, nos Jardins. Sua sala decorada com fotos emolduradas dos amigos de faculdade.

    Cais e Temer dividiam o mesmo quarto na repblica em que moraram durante os

    estudos. Uma das diverses era jogar gua da janela em quem passava na rua. "Ser que

    eu posso contar essa histria? Ser que no fica chato?", perguntou-me apreensivo.

    Disse-lhe que no, que todo jovem j tinha feito isso na vida. "Mas e jogar gua na Seleo

    Brasileira?", retrucou Cais. Quando a Seleo desfilou por So Paulo, comemorando a

    vitria na Copa de 1962, um grupo de estudantes, Temer entre eles, fizeram canos com

    jornais, encheram de gua e despejaram nos jogadores.

    No comeo dos anos 60, o movimento estudantil comeou a virar esquerda. Na

    faculdade da Arcadas, porm, o pensamento liberal continuou a imperar. Em 1962,

    Temer lanou-se presidncia do centro acadmico pelo partido Academia

    Independente e perdeu. No ano seguinte, foi indicado candidato presidncia do

    Diretrio Central dos Estudantes da usp. Jos Serra, o presidente da Unio Nacional dos

    Estudantes, integrava a Ao Popular, organizao catlica de esquerda que era contra a

    chapa de Temer. Um militante da ap, o hoje deputado tucano Arnaldo Madeira, foi

  • incumbido de convencer Temer a abrir mo da candidatura, para que os estudantes se

    unissem em torno de um nome. Temer contou que, na sua primeira eleio para a

    presidncia da Cmara, em 1997, Madeira e Serra o procuraram e falaram que votariam

    nele. "Ns vamos te apoiar porque estamos em dbito com voc: te tiramos a presidncia

    do dce," disse-lhe Serra.

    Formado, Temer montou um escritrio de advocacia com Celso Bandeira de Mello,

    Dalmo Dallari e Geraldo Nogueira. No apoiou nem resistiu ao golpe de 1964. Passou a

    dar aulas de direito constitucional na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, a

    puc, em 1968. Lanou um livro de direito constitucional que at hoje um dos mais

    usados em cursos universitrios. E se aproximou de Franco Montoro, um professor da

    puc ligado ao mdb. Quando Montoro foi eleito governador, em 1982, nomeou-o

    procurador-geral do estado. "Eu tinha 41 anos e achava o mximo para a minha carreira

    ter mil procuradores sob o meu comando", disse. "Estava feliz naquela posio."

    Numa manh de 1984, Montoro lhe telefonou e avisou: "Voc vai ser meu secretrio de

    Segurana." Temer gelou: seria o terceiro secretrio de Segurana em apenas um ano de

    governo. Argumentou que no entendia nada de direito penal e sequer sabia onde ficava

    a Secretaria. A resposta de Montoro foi: "Passa l na casa do Jos Carlos Dias [ento

    secretrio da Justia] e acerta tudo com ele." Temer ficou uma semana no cargo, sem

    saber o que fazer.

    "Eu no conhecia nada, no tinha contatos", contou. "O clima estava pesado, com crise

    entre as polcias civil e militar." Pensava em desistir quando, num fim de semana, viu na

    televiso uma entrevista de Gianfrancesco Guarnieri, secretrio municipal de Cultura. O

    ator explicava como se adaptara ao terno e gravata. "Guarnieri falou: 'A vida uma

    representao e voc tem que representar o papel que a vida te entrega'", contou Temer.

    "A eu pensei: a vida me deu o papel de secretrio de Segurana. Se renunciar agora, o

    governo Montoro pode cair e eu me destruo."

    Na segunda-feira seguinte, Temer chamou o delegado-geral da Polcia Civil e o

    comandante da Polcia Militar e comeou a exercer seu papel. "O Montoro me disse que

    no era para eu ser policial, e sim para unir as polcias. A coisa da hierarquia funcionava,

    meu jeito cerimonioso impunha certo respeito. O comandante e o delegado se

    entrosaram, e entrosaram as duas polcias."

    Jos Oswaldo Vieira era o delegado-geral e hoje est aposentado. Perguntei-lhe se Temer

    tinha sido crucial para unir as polcias. Vieira respondeu que, "infelizmente, existe at

    hoje essa dicotomia entre as polcias civil e militar, e isso no razovel, no

    inteligente."

  • Quando Temer era secretrio de Segurana, 400 estudantes da Universidade de So

    Paulo ocuparam o prdio da reitoria, no centro da cidade. Temer conversou com o

    comandante da Polcia Militar, que lhe disse que a nica maneira de invadir o prdio

    seria entrando pelo telhado. Era uma operao arriscada, com consequncias

    imprevisveis. Ele decidiu ir falar com os estudantes. "Bati porta, eles abriram e me

    olharam com espanto", lembrou. Argumentou com eles que a Justia havia expedido

    mandado de reintegrao de posse. Como estavam num estado de direito, eles teriam

    que cumprir a lei. Os estudantes fizeram uma assembleia que durou mais de seis horas.

    Temer ficou esperando. Ao final, concordaram em desocupar o prdio, desde que o

    governador recebesse uma comisso. "Liguei para o Montoro e ele concordou", contou.

    "Samos todos juntos cantando o hino nacional."

    Tempos depois, um grupo de sem-teto invadiu um prdio do estado. Montoro lhe

    telefonou logo cedo. "Temer, vai l nos sem-teto e faz a mesma coisa que fez com os

    estudantes." Temer riu ao lembrar da histria. "Eu falei: 'Governador, uma coisa

    negociar com estudante, outra, com sem-teto. Entrar num prdio ocupado desse jeito

    no brincadeira.'" Montoro insistiu: "Vai l, que no tem perigo, no", contou o

    deputado imitando a voz e o jeito suaves de Montoro. Acabou indo junto com um grupo

    da Secretaria de Promoo Social. Aps horas de conversa, os sem-teto concordaram em

    ir para abrigos.

    Michel Temer gostou da poltica e se candidatou a deputado em 1986, pelo PMDB de

    Franco Montoro. No se elegeu, mas entrou na vaga de suplente e, dois anos depois,

    participou da Constituinte. Ao final do mandato, voltou para a Secretaria de Segurana,

    dessa vez a convite de um quercista, o governador Luiz Antnio Fleury Filho, logo aps

    o massacre no Carandiru, onde 111 presos foram assassinados pela Polcia Militar. No

    final dos anos 80, Jos Serra, Fernando Henrique e Mario Covas romperam com Orestes

    Qurcia e o PMDB, ao qual acusaram de lenincia com a corrupo e o fisiologismo - e

    fundaram o Partido da Social Democracia Brasileira. Temer ficou com os quercistas.

    Concluiu que teria mais chance de se destacar permanecendo onde estava. "O PSDB tinha

    muito cacique", justificou.

    Sua ascenso no PMDB foi rpida. Foi eleito duas vezes lder do partido. Na primeira,

    em 1995, disputou o cargo com o deputado baiano Joo Almeida, hoje no PSDB. "Ns

    comeamos a fazer a campanha do Michel, mas ele estava de frias com a namorada, em

    Trancoso", contou o deputado federal Geddel Vieira Lima. "Eu liguei e ele me disse para

    fazer a campanha porque ele estava namorando." Ou seja, Temer era candidato, mas no

    queria comprar briga com seu oponente. Depois de eleito, disse a Joo Almeida que s

    sara candidato por insistncia da bancada paulista. "O Michel s ousado nas

    conquistas amorosas. Na poltica ele muito ponderado", me disse Vieira Lima.

  • Temer est no seu terceiro casamento. Do primeiro, com Maria Clia, teve trs filhas:

    Maristela, de 40 anos, Luciana, 37, e Clarissa, 35. Casou-se a seguir com Neuza, mas no

    teve filhos. Depois, teve um "relacionamento estvel", como ele diz, mas no chegou a

    casar. Na mesma poca, namorou uma jornalista, em Braslia, com quem teve um filho,

    hoje com 10 anos. D uma penso ao menino, mas o v pouco. Est casado h nove anos

    com Marcela, mais jovem que ele 42 anos, com quem tem um filho de 1 ano. "O

    Michelzinho a minha paixo", admitiu. Conheceu Marcela, uma jovem loura e esguia,

    quando ela estava com 18 anos e, ele, 60. Disse que a viu no restaurante do tio dela,

    durante uma campanha eleitoral, e a achou muito bonita. Recebeu um e-mail dela,

    cumprimentando-o pela vitria. Temer ligou para a moa e a convidou para sair. "Ela foi

    com a me", contou o deputado. Quatro meses depois estavam casados.

    Em maro de 2007, na eleio para a presidncia do PMDB, o governo petista apoiou a

    candidatura de Nelson Jobim, o nome lanado pela bancada do partido no Senado,

    capitaneada por Jos Sarney e Renan Calheiros. Ganhou Michel Temer, da Cmara.

    Numa conversa num caf em Braslia, pedi ao ex-deputado Wellington Moreira Franco,

    peemedebista de longa data e vice-presidente da Caixa Econmica Federal, que

    explicasse a diferena entre o PMDB-Senado e o PMDB-Cmara. Enquanto saboreava

    um sorvete de chocolate, Moreira Franco disse que "o Lula compreendeu, depois da

    tentativa fracassada da eleio do Jobim, que o pessoal do Senado estava vendendo

    terreno na lua. O Sarney no PMDB, nem o Renan", disse. "O Sarney faz um esforo

    grande, mas toda instituio tem sua cultura. Ele foi obrigado a ser PMDB para ser vice

    do Tancredo. Mas a relao forte dele era com a Arena." Inclinou-se sobre a mesa e me

    falou em tom de confidncia: "O Sarney hbil, astuto, mas no conhece as bases do

    partido como ns, da Cmara, conhecemos."

    Eram 13h30 quando Michel Temer me convidou para a mesa de almoo. O cardpio era

    salada, bife com pur, moqueca de peixe e piro. Enquanto se servia, contou como se deu

    a aproximao com Lula. "Logo aps a minha eleio para a presidncia do partido, o

    ministro Tarso Genro me chamou para uma conversa com o presidente." Temer chegou

    ao Palcio do Planalto acompanhado de mais trs integrantes da executiva do partido.

    Na antessala da Presidncia, pediu que o deixassem a ss com Lula por cinco minutos.

    "Assim que entrei, eu falei: 'Presidente, quis entrar antes para furar um tumor. Acho que

    ns vamos acabar fazendo uma grande coalizo, mas no podem ficar mgoas pessoais.

    Sei que dizem que o senhor no vai com a minha cara e sei que lhe dizem que eu tenho

    desapreo pelo senhor.'" A reao do presidente teria sido positiva. "Ele foi gentil e me

    agradeceu por ter esclarecido aquela questo", disse-me.

  • Segundo Temer, ele apresentou a Lula pontos programticos do partido que serviriam

    de base para o acordo com o governo. "Voc sabe, o PMDB tem fama de fisiolgico. No

    me interessava ouvir o presidente dizer que nos queria no governo e que, para isso, faria

    mais tantos ministrios. No estvamos atrs de cargos."

    Os pontos acordados foram bastante vagos: o crescimento do pib a um ritmo anual de

    5%, uma tentativa de reforma tributria e a manuteno dos programas sociais. J a

    discusso de cargos foi bastante concreta. O PMDB ganhou o Ministrio da Integrao

    Nacional, que foi para Geddel Vieira Lima, e o da Agricultura, atribudo a Reinhold

    Stephanes. A vice-presidncia da Caixa ficou com Moreira Franco. A indicao para a

    presidncia de Furnas coube ao deputado Eduardo Cunha, do Rio de Janeiro. Quase uma

    centena de postos em rgos de ministrios, estatais e fundos de penso foram

    devidamente loteados.

    Segundo Temer, desde ento a sua relao com Lula s tem melhorado. "Sinto que ele

    tem grande considerao por mim e eu passei a admir-lo", disse. Perguntei o que o fez

    mudar de opinio. "Ele conseguiu satisfazer o sistema financeiro e, ao mesmo tempo,

    tirou 20 milhes de pessoas da pobreza", respondeu. Temer tambm elogiou a rapidez

    com que o governo reagiu crise financeira mundial: "Lula soube aproveitar a crise e

    levou a classe mdia ao paraso com a desonerao fiscal dos automveis e dos

    eletrodomsticos." Outro feito do governo, na sua avaliao, foi a liquidao da dvida

    com o Fundo Monetrio Internacional, o fmi. "No esqueo a imagem da Ana Maria Jull,

    representante do Fundo, vindo fiscalizar as contas brasileiras nos anos 80. Era uma

    humilhao", comentou.

    Alcancei o deputado Geddel Vieira Lima na entrada do plenrio da Cmara. Estava

    afobado: acabara de voltar de uma reunio no Ministrio da Integrao Nacional, do qual

    abdicara dias antes para concorrer ao governo da Bahia. Geddel baixo, gorducho, tem

    uma cara redonda e sorridente. Vestia um terno verde-claro cintilante. Foi um dos

    primeiros peemedebistas a aderir ao governo. Nas eleies de 2006, fez campanha na

    Bahia para o candidato do PT ao governo, Jaques Wagner. "O ltimo a aderir foi o

    Michel", contou. "Eu fiz a ponte entre ele e o presidente." A aproximao, disse, foi lenta

    porque "o Lula no gostava dele. Achava-o aristocrtico. Dizia que ele olhava os outros

    de cima para baixo. No nada disso. O Michel tmido."

    Uma das resistncias do governo ao nome de Temer a sua forte ligao com o deputado

    Eduardo Cunha, do Rio - conhecido no Congresso por sua voracidade por cargos e pelas

    artimanhas que usa para consegui-los. Evanglico, surgiu na poltica pelas mos de Paulo

    Csar Farias, o tesoureiro de Fernando Collor. Depois, ligou-se ao ex-governador do Rio

  • de Janeiro, Anthony Garotinho. Foi um dos principais artfices para a eleio de Temer

    a presidente da Cmara. "O Eduardo Cunha tem l o jeito dele", disse-me Temer. "Mas

    ele competente, trabalhador, dedicado e tem uma inteligncia privilegiada. S

    recentemente descobri que ele no advogado, e conhece o direito tanto quanto eu. Toda

    medida provisria, todo projeto importante o Eduardo Cunha conhece em detalhes."

    Admitiu que o colega malfalado e relativizou a m fama: "No vou me impressionar

    com as crticas a ele porque teria que me impressionar com as feitas a todos os outros.

    Eu administro os conflitos."

    Eram quase 15 horas, quando, sem que fosse anunciado ou aguardado, Eduardo Cunha

    entrou na residncia do presidente da Cmara com o deputado Henrique Alves. Temer

    ficou um pouco constrangido. Os dois instalaram-se na sala de estar. Pouco depois, um

    assessor o alertou para um compromisso na Cmara. Temer combinou com os deputados

    de encontr-los l. No carro, a caminho do Congresso, ele me perguntou: "O que eu posso

    fazer se o Eduardo Cunha aparece aqui em casa? No deix-lo entrar? Ele se impe."

    Explicou que um dos motivos do sucesso da sua gesto como presidente da Cmara

    deixar a porta aberta para todos os deputados.

    A rea de interesse de Cunha a menina dos olhos da ex-ministra Dilma Rousseff: o setor

    de energia. Com ajuda de Temer, instalou o deputado Bernardo Ariston na presidncia

    da Comisso de Minas e Energia da Cmara. Entre outras atribuies, a Comisso trata

    da regulao da explorao de petrleo e da construo de usinas eltricas. Cunha

    controla um grupo de vinte deputados, a maioria evanglicos, com capacidade de

    infernizar a vida do governo. Para conseguir a nomeao de Luiz Paulo Conde para a

    presidncia de Furnas, por exemplo, ele protelou o que pde a votao da emenda que

    prorrogava a cpmf, da qual era relator.

    Conseguiu colocar Conde em Furnas, mas se envolveu numa briga com os funcionrios

    e aposentados da estatal por causa do fundo de penso, o Real Grandeza, que conta com

    um patrimnio de 6,5 bilhes de reais. O deputado foi acusado de tramar a queda da

    direo do fundo para poder controlar o seu caixa. O temor dos funcionrios era que, sob

    o comando do grupo de Cunha, o Real Grandeza sofresse os mesmos problemas do Prece,

    o fundo da companhia de gua do Rio de Janeiro, tambm sob sua influncia, que teve

    um rombo de 153 milhes de reais em 2006.

    Eduardo Cunha tem uma explicao singela para as crticas. "Em poltica no existe lugar

    vazio", disse. "Esses comentrios so coisa de gente que no trabalha, que tem preguia

    e fica com inveja dos que trabalham." Negou que tivesse qualquer influncia no setor

    eltrico: "A nica nomeao que eu fiz foi a de Conde, h trs anos, e ele nem est mais

    em Furnas." Segundo ele, "nem a Dilma nem o PT tm qualquer resistncia ao meu

    nome. Fao parte da comisso de negociao do PT e do PMDB, onde todas essas

  • questes so discutidas. Existe zero de resistncia ao meu nome. Pergunte ao pessoal do

    PT."

    Perguntei ao deputado Jos Genono o que pensava da aliana do seu partido com o

    PMDB. "O PT aprendeu na porrada que sozinho no ganha eleio e no governa", disse-

    me. "Precisamos de um aliado que tenha fora e que ajude a dar estabilidade para o

    governo." Genono elogiou Michel Temer. "Ele no trator, no passa por cima."

    Na entrada principal do Congresso, Temer foi cercado por jornalistas que queriam saber

    sobre o jantar que ele teria, naquela noite, com Dilma Rousseff. "O jantar vai ser s 9

    horas", informou. "Onde?", quis saber uma reprter. "No sei onde a casa dela. Nunca

    fui l." Temer tem a simpatia de deputados de todos os partidos. "Ele fez com que o

    Congresso voltasse a exercer o seu papel", disse Miro Teixeira, do PDT do Rio. "Temer

    negocia, ele ouve", disse Chico Alencar, do Partido Socialismo e Liberdade. "Quando tem

    demandas de movimentos populares, ele costuma me chamar para ajud-lo." Rodrigo

    Maia, do Democratas, o considera "um craque", porque conseguiu unir o PMDB, "o que

    no acontecia desde a poca do Ulysses".

    Temer deixou o plenrio pouco antes das 21 horas. O jantar fora marcado para que Dilma

    Rousseff o conhecesse melhor, j que nunca haviam conversado a ss por mais de alguns

    minutos. Dilma o recebeu acompanhada de dois assessores que ele no conhecia. Na hora

    do jantar, sentaram sozinhos mesa. Foi servido um caldo, seguido de uma salada, que

    ele recusou, ela no. O prato principal foi um peixe com molho de maracuj. Ele tomou

    gua de coco e, ela, gua. O deputado achou a comida "muito boa, delicada".

    Durante o jantar, Temer disse ex-ministra que seria referendado como candidato a vice

    na conveno do partido, marcada para o dia 12 de junho. Deixou claro que o PMDB

    queria ser protagonista e no apenas coadjuvante do governo. Informou que o partido

    elaborava um programa econmico com ajuda do ex-ministro Mangabeira Unger, do ex-

    deputado Moreira Franco e do deputado Henrique Alves. Dilma, segundo Temer, no se

    ops a ouvir as propostas do PMDB. "Ficou acertado que ns discutiremos tudo na

    campanha", contou-me. "Teremos liberdade para dizer um ao outro o que queremos e o

    que no queremos, do que gostamos e do que no gostamos."

    O jantar, disse ele, foi sobretudo para aparar arestas. "A ministra me garantiu que no

    tem qualquer resistncia ao meu nome", afirmou. Comentou tambm que se

    impressionara com a disposio de Dilma: "Ela estava com uma aparncia muito

    saudvel. Acho que a poltica revigora. Isso acontece comigo." O encontro durou menos

    de duas horas.

  • A relao de Temer com sua companheira de chapa era to remota que, no comeo deste

    ano, o ex-ministro Mrcio Thomaz Bastos, amigo dos dois, iniciou um trabalho de

    aproximao. "Eu conversei com eles e falei para pararem com as formalidades", me

    disse Bastos em seu escritrio, em So Paulo. "Sugeri que, pelo menos, deixassem de lado

    o senhor e senhora." Perguntei a Temer se essa barreira havia cado. Ele disse que ambos

    aceitaram a sugesto, com um adendo: em pblico, ele s a chamaria de ministra.

    Mrcio Thomaz Bastos advogado da empreiteira Camargo Corra, acusada de financiar

    campanhas polticas com dinheiro de caixa dois. O nome de Temer est na lista dos

    beneficiados. Uma operao da Polcia Federal levantou que, entre 1995 e 1998, os

    pagamentos a polticos chegaram a 178 milhes de reais, em valores da poca. Segundo

    o levantamento da PF, Temer recebeu mais de meio milho de reais da construtora. "O

    governo est preocupado que, durante a campanha, surjam mais denncias contra

    Temer, o que poderia prejudicar o desempenho de Dilma", me disse um parlamentar do

    PT.

    No PMDB, no existe constrangimento com a investigao da PF. E menos ainda com o

    pouco entrosamento entre Temer e Dilma. O deputado Moreira Franco ironizou quando

    eu lhe disse que os dois protagonizavam um casamento arranjado. "Se na ndia d certo,

    por que no poderia dar certo entre eles?", perguntou-me. "s vezes, melhor um

    casamento arranjado, quando o casal vai se conhecendo e aprendendo a se gostar, do que

    aquele nascido da paixo que depois acaba."

    No dia subsequente ao jantar com Dilma, Temer recebeu uma delegao chinesa para

    um almoo no restaurante da Cmara. tarde embarcou para So Paulo. O escritrio

    dele na cidade fica num casaro rosado no alto de Pinheiros. No dia seguinte, pela

    primeira vez em uma semana, Temer no usava terno. Estava com cala cinza e camisa

    listrada. Um dos quartos da casa foi transformado em sala de reunio e mobiliado com

    uma grande mesa de madeira e cadeiras de escritrio. Nelas se sentaram o seu assessor

    de imprensa, Mrcio Freitas, e o marqueteiro Gaudncio Torquato. Parecia um pouco

    mais vontade. Reclamou que, naquele dia, os jornais no atriburam a ele a

    responsabilidade pela aprovao do projeto Ficha Limpa. "Acho uma injustia", disse,

    "porque o projeto s foi a votao porque eu o banquei desde o comeo."

    Temer deixou o escritrio para almoar no restaurante Senzala, vizinho ao casaro, onde

    o matre veio cumpriment-lo. "H anos frequento esse lugar, aqui todo mundo vota em

    mim", disse. Enquanto comia, falou da amizade com o ministro do Supremo Tribunal

    Federal, Carlos Ayres Britto. Durante o almoo, o deputado atendeu a um telefonema da

  • mulher. Tapou o bocal e perguntou, abaixando a voz: "O Michelzinho melhorou da

    tosse?"

    De volta ao escritrio, sua filha Clarissa chegou de carro. "Como no nos vemos tanto

    quanto eu gostaria, tenho que aproveitar essas oportunidades", explicou-me ela.

    Enquanto o deputado recebia um grupo de prefeitos, ela disse que sua preocupao com

    o pai aumentou com a possibilidade de ele se tornar vice-Presidente: "Sei que ele se

    preparou a vida toda para isso, mas um cargo em que ele vai ficar muito exposto. Como

    filha, acho pssimo, mas como brasileira acho timo ter uma pessoa como ele no

    governo."

    Clarissa psicloga. Ela disse que, na intimidade, o pai afetuoso e engraado. Quando

    eram crianas, ele costumava contar histrias para as filhas e dizer poesias. "Ele adorava

    recitar 'Navio negreiro', do Castro Alves e 'O operrio em construo', do Vinicius de

    Moraes", contou. Ela elogiou a formalidade do pai: "Um homem pblico tem que passar

    uma imagem de seriedade, de respeito. Um poltico tem que ter um discurso cuidadoso.

    No pode sair falando o que d na cabea. at desrespeitoso."

    Outro na famlia que se preocupa com as atividades polticas de Temer seu nico irmo

    vivo, Adib, de 75 anos. O escritrio de advocacia dele fica num prdio acanhado no centro

    da cidade. Adib costuma passar as tardes ali, embora j esteja praticamente aposentado.

    Tem os cabelos completamente brancos e a pele bronzeada. Como o irmo, mantm a

    postura ereta. O escritrio decorado com muitos bichos de pelcia: cachorros,

    passarinhos, gatos expostos na estante, e vrios porta-retratos de plstico com fotos dos

    irmos, dos pais e da mulher.

    "No conseguimos nos ver muito. No sei por que ele continua nisso", disse Adib. "Eu

    vivo dizendo para ele deixar essa vida. Falo para ele: 'Michel, voc j tem tudo, tem uma

    famlia linda, suas filhas, sua mulher, e agora seu filhinho, para que continuar com essa

    coisa de poltica?' Mas ele no me ouve." Adib acha que o irmo faria muito melhor se

    largasse tudo e fosse aproveitar a vida. "Adoro quando ele me chama para ir casa dele

    aos domingos", continuou. " quando temos tempo para conversar. Mas isto est cada

    vez mais difcil. Quando no d, e a saudade aperta, ligo a tv Cmara e fico vendo ele."

    Temer ainda estava reunido com o grupo de prefeitos quando a filha deixou o escritrio.

    No fim da tarde, voltou sala onde estvamos. Foi at um armrio e me trouxe uma pasta

    com uma centena de guardanapos de companhias areas, anotados a caneta. Contou que,

    nas viagens entre So Paulo e Braslia, aproveita para escrever poesias e aforismos. Faz

    isso h trs anos. Comeou a selecionar os que mais gostava e pretende public-los. Uma

    parte deles foi passada para o computador. Leu o seguinte:

  • Ando procura de mim.

    S encontro outros que, em mim,

    Ocuparam o meu lugar.

    Numa folha havia um poema maior, que ele escrevera para um irmo morto. "Recordo-

    me agora, toda vez que o violino toca...", comeou Temer, mas a voz lhe faltou e os olhos

    se encheram de lgrimas. Passou para outro:

    Eu desencantado

    desfigurado,

    desanimado

    desconstrudo

    derrudo

    destrudo.

    Perguntei-lhe se havia escrito aquilo quando sofrera a derrota para presidncia da

    Cmara. Disse que no lembrava as datas. Quis saber se ainda continuava escrevendo.

    Disse-me que no tinha tido muito tempo ultimamente. Escolhi um dos papis e li em

    voz alta:

    Lamentavelmente,

    Tudo anda bem.

    Por isso, andam mal

    Os meus escritos.

    Perguntei-lhe se era essa a razo de ele ter abandonado a poesia. Ele sorriu, guardou os

    papis e fechou a pasta.

    * Correo em relao edio impressa