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A natureza da cultura e a negação da morte (A CHAVE PARA O ENTENDIMENTO DA CULTURA/RELIGIÃO/HISTÓRIA E DA MORTE) Vimos que a Natureza e todas as pessoas é Atman (Espírito, níveis 7-8); além disso, toda pessoa intui exatamente, embora de forma vaga, essa natureza de Atman. Porém, enquanto ela não conseguir aceitar a morte (Tânatos), não conseguirá encontrar a consciência da unidade literal ou consciência de Atman - pois isso pressupõe a rendição e a "morte" da sensação do eu isolado. E já que ela (ainda) não pode aceitar a morte e, desse modo, descobrir seu Eu verdadeiro ou sua Inteireza suprema, é forçada a criar uma série de substitutos simbólicos para esse Eu (Atman). Carente da realização de seu Eu verdadeiro, que não é nem subjetivo nem objetivo, mas meramente Completo, ela busca a compensação com um eu simbólico, subjetivo e íntimo, e esse eu, então, finge ser cosmocêntrico, independente e imortal. E isso é parte, a parte subjetiva, do Projeto Atman. Até a ressurreição final do Eu verdadeiro em superconsciência, a falsa sensação do eu separado, individual, enfrenta dois importantes impulsos: a perpetuação de sua própria existência (Eros) e a evitação de tudo que ameace sua dissolução (Tânatos). Esse pseudoeu, isolado, íntimo, por um lado defende-se ferozmente da morte, dissolução e transcendência (Tânatos), enquanto, por outro lado, ambiciona e finge ser o centro do cosmos, onipotente e imortal (Eros). Esses, como explicaremos mais detalhadamente, são os lados positivo e negativo do Projeto Atman – Eros e Tânatos , Vida e Morte, Vishnu e Shiva. E a batalha da Vida contra a Morte, de Eros contra Tânatos é a arquibatalha e a ansiedade básica inerente a todos os eus separados – um estado de espírito primordial de medo, eliminado somente pela real transcendência para a Inteireza. Mas isso nos leva ao último aspecto importante do Projeto Atman: o eu separado – embora finja e aspire à imortalidade e ao cosmocentrismo – até certo ponto, falha inevitavelmente em seu propósito. Ele não consegue decifrar completamente a charada de ser estável, permanente, contínuo e imortal. Como colocado por James, o assustador pano de fundo da morte ainda está lá para ser considerado, e a caveira sorrirá maliciosamente no banquete. Até que o eu separa redescubra sua Inteireza última, a atmosfera nebulosa da morte permanece como seu cônjuge constante. Nenhuma quantidade de compensações [ no contexto do livro, algumas delas são os sacrifícios de sangue reais ou simbólicos das religiões, o sacrifícios substitutos que tiveram origem na ideia de que uma morte podia substituir outra, desde o neolítico/fases tifônica e mítica ], defesas ou repressões será suficiente para apagar completa e definitivamente esse pano de fundo. Isso é, nada que o eu interior possa fazer sufocará finalmente essa visão horrenda e, assim, apoios “externos” ou “objetivos” são usados para ajudar a sustentar o Projeto Atman [ substituto do verdadeiro Atman/transcendência do eu], ajudar a aliviar o terror da morte e apresentar o eu como imortal. Um indivíduo criará ou se apegará a um conjunto de anseios, desejos, propriedades, posses e bens materiais externos ou objetivos – ele buscará riqueza, fama, poder e conhecimento, todos impregnados de valor ou desejo “infinitos”. Mas já que é justamente a infinitude que os homens e as mulheres verdadeiramente desejam, todas essas coisas finitas, objetivas e exteriores são, novamente, meras recompensas substitutas. Elas são objetos substitutos, da mesma maneira que o eu separado é um sujeito substituto. Esses, como veremos, são os ramos exterior e interior do Projeto Atman: objetivo e subjetivo, lá fora e aqui dentro. Assim, meu ponto é simplesmente o seguinte: o mundo de recompensas substitutas objetivas não é nada diferente do mundo da cultura. E a cultura – objetos substitutos externos, materiais ou

A CHAVE Para o Entendimento Da Religião, Cultura e Morte

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Trecho do livro "Eden: queda ou ascenção" de Ken Wilberm em que o autor comenta sobre "A natureza da cultura e a negação da morte".

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  • A natureza da cultura e a negao da morte (A CHAVE PARA O ENTENDIMENTO DA CULTURA/RELIGIO/HISTRIA E DA MORTE)

    Vimos que a Natureza e todas as pessoas Atman (Esprito, nveis 7-8); alm disso, toda pessoa intui exatamente, embora de forma vaga, essa natureza de Atman. Porm, enquanto ela no conseguir aceitar a morte (Tnatos), no conseguir encontrar a conscincia da unidade literal ou conscincia de Atman - pois isso pressupe a rendio e a "morte" da sensao do eu isolado. E j que ela (ainda) no pode aceitar a morte e, desse modo, descobrir seu Eu verdadeiro ou sua Inteireza suprema, forada a criar uma srie de substitutos simblicos para esse Eu (Atman). Carente da realizao de seu Eu verdadeiro, que no nem subjetivo nem objetivo, mas meramente Completo, ela busca a compensao com um eu simblico, subjetivo e ntimo, e esse eu, ento, finge ser cosmocntrico, independente e imortal. E isso parte, a parte subjetiva, do Projeto Atman. At a ressurreio final do Eu verdadeiro em superconscincia, a falsa sensao do eu separado, individual, enfrenta dois importantes impulsos: a perpetuao de sua prpria existncia (Eros) e a evitao de tudo que ameace sua dissoluo (Tnatos). Esse pseudoeu, isolado, ntimo, por um lado defende-se ferozmente da morte, dissoluo e transcendncia (Tnatos), enquanto, por outro lado, ambiciona e finge ser o centro do cosmos, onipotente e imortal (Eros). Esses, como explicaremos mais detalhadamente, so os lados positivo e negativo do Projeto Atman Eros e Tnatos , Vida e Morte, Vishnu e Shiva. E a batalha da Vida contra a Morte, de Eros contra Tnatos a arquibatalha e a ansiedade bsica inerente a todos os eus separados um estado de esprito primordial de medo, eliminado somente pela real transcendncia para a Inteireza. Mas isso nos leva ao ltimo aspecto importante do Projeto Atman: o eu separado embora finja e aspire imortalidade e ao cosmocentrismo at certo ponto, falha inevitavelmente em seu propsito. Ele no consegue decifrar completamente a charada de ser estvel, permanente, contnuo e imortal. Como colocado por James, o assustador pano de fundo da morte ainda est l para ser considerado, e a caveira sorrir maliciosamente no banquete. At que o eu separa redescubra sua Inteireza ltima, a atmosfera nebulosa da morte permanece como seu cnjuge constante. Nenhuma quantidade de compensaes [no contexto do livro, algumas delas so os sacrifcios de sangue reais ou simblicos das religies, o sacrifcios substitutos que tiveram origem na ideia de que uma morte podia substituir outra, desde o neoltico/fases tifnica e mtica], defesas ou represses ser suficiente para apagar completa e definitivamente esse pano de fundo. Isso , nada que o eu interior possa fazer sufocar finalmente essa viso horrenda e, assim, apoios externos ou objetivos so usados para ajudar a sustentar o Projeto Atman [substituto do verdadeiro Atman/transcendncia do eu], ajudar a aliviar o terror da morte e apresentar o eu como imortal. Um indivduo criar ou se apegar a um conjunto de anseios, desejos, propriedades, posses e bens materiais externos ou objetivos ele buscar riqueza, fama, poder e conhecimento, todos impregnados de valor ou desejo infinitos. Mas j que justamente a infinitude que os homens e as mulheres verdadeiramente desejam, todas essas coisas finitas, objetivas e exteriores so, novamente, meras recompensas substitutas. Elas so objetos substitutos, da mesma maneira que o eu separado um sujeito substituto. Esses, como veremos, so os ramos exterior e interior do Projeto Atman: objetivo e subjetivo, l fora e aqui dentro. Assim, meu ponto simplesmente o seguinte: o mundo de recompensas substitutas objetivas no nada diferente do mundo da cultura. E a cultura objetos substitutos externos, materiais ou

  • ideais serve s mesmas duas funes intimamente relacionadas com o sujeito substituto interior, isto , prov uma fonte, promessa e fluxo de Eros (vida, poder, estabilidade, prazer, mana), e evita, resiste ou defende-se de Tnatos (morte, diminuio, tabu). Da porque, mesmo em sociedades arcaicas, a antropologia descobriu que as categorias bsicas de [...] pensamento so os conceitos de mana e tabu [...]. Quanto mais mana (Eros) voc liberar, melhor, pois evitar mais tabu (Tnatos); o projeto cultural inteiro tem dois lados: ele aponta em direo a um alm absoluta em uma exploso de afirmao de vida, mas carrega com ele o caroo podre da negao da morte. A negao da morte, o frentico distanciamento de Tnatos, o verdadeiro ponto crucial do lado negativo do Projeto Atman, e seu papel na formao da cultura tem sido absolutamente geral e pandmico. Na verdade, a cultura o que um eu separado faz com a morte o eu que est condenado a morrer, e sabe disso, passa sua vida inteira (consciente ou inconscientemente) tentando neg-la, tanto construindo e manipulando uma vida subjetiva quanto erguendo objetos culturais permanentes e eternos como sinais exteriores e visveis de toda uma sonhada imortalidade. Da porque Rank conseguiu classificar todas as sociedades baseando-se simplesmente em seus smbolos de imortalidade. E Becker ressaltou que as sociedades so sistemas padronizados de negao da morte, pois toda cultura uma mentira a respeito das possibilidades de vitria contra a morte.

    O homem quer o que todos os organismos querem: experincia contnua, autoperpetuao como ser vivo [Eros]. Mas tambm constatamos que o homem tinha conscincia que sua vida chegaria ao fim; assim, ele teve de inventar outra forma para continuar sua autoperpetuao, uma forma de fingir que transcendia o mundo de carne e sangue, que era perecvel. Ele fez isso estabelecendo um mundo no-perecvel, inventando um projeto do invisvel que lhe asseguraria a imortalidade. Esse modo de olhar para os feitos humanos proporciona uma chave direta para abrir a fechadura da histria. Podemos ver que, em qualquer poca, o que as pessoas almejam um modo de transcender seu destino fsico; elas desejam garantir algum tipo de durao indefinida, e a cultura as prov com os necessrios smbolos, crenas ou ideologias de imortalidade; as sociedades podem ser vistas como estruturas de poder e imortalidade.

    Ao desejar nada menos do que a prosperidade eterna, concluiu Becker, o homem, desde o incio, no podia viver com o prospecto da morte. O homem erigiu smbolos culturais que no envelhecem ou se deterioram para aplacar o medo de se derradeiro fim. Em resumo, a cultura o principal antdoto exterior para o terror gerado pela perspectiva da morte; a promessa, o desejo e a fervorosa esperana de que a caveira no sorrir maliciosamente no banquete.

  • TRS PERGUNTAS Assim, observaremos a evoluo de vrias estruturas de conscincia ou modos do eu, a partir da imerso subconsciente que caracterizou o alvorecer da humanidade. Acompanharemos [no decorrer do restante do livro, que segue para alm desse trecho digitado] o surgimento do eu desde sua impregnao primitiva na natureza e no corpo (nveis 1 e 2 do Grande Ninho do Ser), at a era moderna de um ego altamente individualizado e independente, que se diferencia da natureza e do corpo (nvel 4). Alm disso, sugerirei que um dado modo do eu sustenta um tipo ou estilo particular de cultura (que por sua vez, inculca esse modo no eu), j que, no geral, esses dois projetos so correlatos. Modo do eu e estilo de cultura dependem um do outro como os dois principais filamentos do Projeto Atman. Considere alguns dos pontos fundamentais que encontraremos: medida que homens e mulheres emergiram da esfera subconsciente e perderam a proteo da ignorncia, medida que se tornaram mais consciente de sua separao, vulnerabilidade e mortalidade, que defesas tiveram que construir? Quais foram os custos dessas defesas para seus companheiros humanos? Mais importante, em cada estgio de evoluo a partir do subconsciente, homens e mulheres tiveram algum tipo de acesso aos domnios superconscientes [nveis 5 em diante]? Eles conseguiram vislumbrar alguns dos estgios mais elevados de evoluo e libertao espiritual? Esses so alguns dos importantes temas que discutiremos; eles podem ser resumidos em trs perguntas simples. Em cada sociedade considerada e em cada estgio de evoluo: 1. Quais so as principais formas de autntica transcendncia disponveis para homens e mulheres? Isto , existem caminhos genunos disponveis para Atman, para o superconsciente? 2. Se eles falharem, que substitutos para a transcendncia so criados? Isto , quais so as formas do Projeto Atman, tanto subjetivas como o eu quanto objetivas como a cultura? 3. Quais so os custos desses substitutos para os homens e mulheres? Qual o preo do Projeto Atman? Descobriremos que a histria a saga de homens e mulheres aplicando seus Projetos Atman uns aos outros, tanto nos aspectos negativos (Tnatos) quanto positivos (Eros), de um lado criando reis, deuses e heris e, do outro, espalhando despreocupadamente os cadveres de Auschwitz, Gulag e Wounded Knee... E chegaremos concluso de que a histria realmente tem significado, tanto em larga escala o movimento da subconscincia para a superconscincia quanto em escala individual uma alma que, a qualquer momento, se abre para a transcendncia imediata do Todo superconsciente contida em si mesma. Essa , ao mesmo tempo, a morte e a transcendncia do eu separado, e para ela o fim da histria, o fim da tirania exclusiva do tempo [o fim do tempo psicolgico], o fim da iluso de tica da separatividade, a ressurreio do Todo e o retorno Inteireza. Claro, o nmero de indivduos de qualquer poca que despertaram de fato para o Todo sempre foi muito pequeno, e provavelmente passaro milhares de anos antes que a humanidade como um todo evolua para a superconscincia. Portanto, com exceo desses que, individualmente, escolheram o caminho da transcendncia, bem verdade que a histria , e continuar sendo, a crnica de homens e mulheres nascidos prematuros. KEN WILBER, em den: Queda ou Ascenso? Uma viso Transpessoal da Evoluo Humana; pp. 45-49. Verus Editora.

    Digitado por Peter Tshuvh para o grupo de estudos Ken Wilber, Krishnamurti e Epistemologia da Iluminao em https://www.facebook.com/groups/ativismoquantico/