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A Circulação Do Conhecimento

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  • A Circulao

    do Conhecimento:

    Medicina, Redes

    e Imprios

    Cristiana Bastos

    Renilda Barreto (organizadoras)

  • Imprensa de Cincias Sociais

    Instituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa

    Av. Professor Anbal Bettencourt, 9

    1600-189 Lisboa Portugal Telef. 21 780 47 00 Fax 21 794 02 74

    www.imprensa.ics.ul.pt [email protected]

    Instituto de Cincias Sociais Catalogao na Publicao A Circulao do Conhecimento: Medicina, Redes e Imprios / orgs. Cristiana

    Bastos, Renilda Barreto Lisboa: ICS. Imprensa de Cincias Sociais, 2011

    ISBN 978-972-671-288-6 CDU 61

    Capa: Wound man, meados do sculo XV, em Claudius (Pseudo) Galen, Anathomia.

    Generosamente cedido pela Biblioteca Wellcome, Londres.

    Composio, paginao e reviso:

    Isabel Cardana - Servios de Apoio Especializado, Unipessoal, Lda. 1 Edio (on-line): Agosto de 2011

    ndice Introduo ............................................................................................ 11 Cristiana Bastos e Renilda Barreto

    Parte I A escrita e o trnsito do conhecimento mdico Captulo 1

    Corpos, climas, ares e lugares: autores e annimos nas cincias da colonizao ........................................................................................... 25 Cristiana Bastos Captulo 2

    A Cincia do Parto e a atuao de Joaquim da Rocha Mazarm (sculo XIX) ......................................................................................... 59 Renilda Barreto Captulo 3

    O viajante esttico: Jos Francisco Xavier Sigaud e a circulao das ideias higienistas no Brasil oitocentista (1830-1844) .......................... 81 Luiz Otvio Ferreira

    Parte II Substncias de cura: guas e aguardentes Captulo 4

    Os cuidados com a sade dos escravos no Imprio Portugus: a aguardente para fins medicinais ....................................................... 103 Betnia G. Figueiredo e Evandro C. G de Castro Captulo 5

    A gua de Inglaterra em Portugal ................................................. 129 Patrick Figueiredo Captulo 6

    Armando Narciso: um doutrinador da hidrologia mdica e do termalismo portugus (1919-1948) ......................................................151 Maria Manuel Quintela

  • Parte III Redes transnacionais de pesquisa e interveno Captulo 7

    Pesquisas em parasitologia mdica e circulao do conhecimento no contexto da medicina colonial........................................................... 173 Flvio Coelho Edler Captulo 8

    Hideyo Noguchi e a Fundao Rockefeller na campanha internacional contra a febre amarela (1918-1928) .............................. 199 Jaime Benchimol Captulo 9

    A asa protectora de outros: as relaes transcoloniais do Servio de Sade da Diamang ............................................................................. 339 Jorge Varanda

    Parte IV Colonial, rural, total: a experincia da Malria Captulo 10

    Sade pblica, microbiologia e a experincia colonial: o combate malria na frica Ocidental (1850-1915) ............................................ 375 Philip J. Havik Captulo 11

    Mosquitos envenenados: os arrozais e a malria em Portugal........ 417 Mnica Saavedra Captulo 12

    Controlo populacional e erradicao da malria: o caso dos ranchos migratrios .......................................................................................... 435 Vtor Faustino

    ndice de quadros e figuras Captulo 3 Quadro N. 1 Assunto e origem dos trabalhos publicados no SSP e DS .. 89 Quadro N. 2 Epidemias registradas no Brasil entre 1829 e 1842 .............. 96 Captulo 5 Figura N. 1 Retrato de Jacob de Castro Sarmento (s/d) ........................... 130 Figura N. 2 Decreto que concede permisso da venda de gua de Inglaterra a Jos Joaquim de Castro ............................................................... 132 Figura N. 3 Um tratado mdico de Frei Manuel de Azevedo confirma a divulgao para o reino, da parte do Dr. Mendes ........................................ 134 Figura N. 4 O Peru oferece a Quina Cincia (gravura annima, sc. XVII) .................................................................................................................... 138 Figura N. 5 Publicidade de vinho quinado no Brasil (anos 1940) ........... 146 Captulo 6 Figura N 1 Para cada doena tem Portugal a sua cura de guas ........... 159 Captulo 8 Quadro N. 1 Vacina e soro para a frica (1927) ........................................ 301 Captulo 9 Quadro N. 1 Produo em carats .................................................................. 358 Captulo 12 Quadro N. 1 Estimativas para a produo de arroz, 1853-1909 .............. 438 Figura N. 1 Cabanas em guas de Moura, por volta de 1935 .................. 443 Figura N. 2 Abrigos de trabalhadores sazonais, na regio de guas de Moura, cerca de 1935 ........................................................................................ 445 Figura N. 3 Ranchos, compostos maioritariamente por mulheres. ......... 447 Figura N. 4 Migraes sazonais de trabalhadores rurais na dcada de 1950 ............................................................................................................................... 448 Figura N. 5 Projecto de dormitrio protegido com redes. ....................... 451 Figura N.6 Cartazes visando a colocao de redes nas casas, incio dos anos 40 ................................................................................................................. 452 Figura N. 7 Trs dcadas de campanhas anti-malricas: de endemia a doena de importao ....................................................................................... 455

  • Cristiana Bastos e Renilda Barreto. 2011. Introduo.

    A Circulao do Conhecimento: Medicina, Redes e Imprios, org. Cristiana Bastos e Renilda Barreto. Lisboa: Imprensa de Cincias Sociais, 11-22.

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    Introduo Cristiana Bastos Renilda Barreto

    Este volume resulta de uma prolongada interlocuo envolvendo cientistas sociais e historiadores interessados na produo e circulao do conhecimento mdico em contextos luso-brasileiros, entendidos estes de uma forma ampliada e extensvel a espaos africanos e asiticos afectados por polticas coloniais portuguesas. Ao longo de alguns anos, pontuados por encontros formais e informais, fomos promovendo a convergncia dos vrios interesses de pesquisa e das mltiplas perspectivas disciplinares e tericas em que nos filiamos: histria, antropologia, sociologia, cincia poltica, histria da medicina e das cincias da sade.

    Quem se interessa pelo estudo social e histrico da cincia, ou das cincias, ou da medicina em particular, ou ainda da produo e difuso do conhecimento cientfico, j se confrontou com uma lendria tenso entre, por um lado, os caminhos dos estudos sociais da cincia, focados nas condies sociais da sua produo, preocupados com as dinmicas de autoridade e inovao e seu impacto nos contedos cientficos, densos em formulaes tericas e referncias, e ultimamente empenhados nas configuraes de redes e actores sociais, e, por outro lado, a mais convencional histria da cincia, feita de cronologias, sucesses, autores, achados, linearidades, influncias, contextos, sustentando-se em extensos corpos documentais e por vezes dispensando por inteiro a teoria.

    Bem pode essa tenso alimentar longos debates e cavar fossos entre departamentos e associaes cientficas, que ao presente volume no incomoda, nem obriga a fazer escolhas, excluses, ou clarificao de alinhamentos. Em graus diversos, todos somos simultaneamente ntimos do arquivo e da teoria, do emprico e do analtico; todos resolvemos essa tenso convivendo pacificamente

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    com ambos os lados, combinando a pesquisa documental e o trabalho de anlise. O antagonismo parece-nos ultrapassado, remontando ao tempo em que os estudos sociais da cincia se apresentaram em cena como uma alternativa s cronologias de descobertas da histria convencional da medicina, procurando substituir as antigas sequncias de datas e nomes desencarnados pelo estudo social da produo do conhecimento, seus nexos, contextos, contingncias, redes, estruturas, culturas, poderes, tenses, conflitos, e ainda todas as possveis variveis sociais consagradas ou em experimentao classe, gnero, raa, mas tambm lugar, crculos de influncia, actores-rede, circulao.1

    Parece hoje impensvel trabalhar em qualquer dessas vertentes excluindo a outra. Pelo contrrio, podemos e devemos transitar entre ambas, combin-las e conjug-las, j que contextos e redes no anulam inventores e invenes ou, numa linguagem de sntese conceptual, os actores da inovao. Mais ainda, podemos explorar zonas intermdias e intersticiais que no teriam lugar em nenhum desses lados isoladamente. Vai ser sobretudo nessas zonas de interstcio, de explorao de novos campos e formulaes, que se fazem os captulos deste volume.

    Nalguns registos temos pequenas biografias que elucidam as trajectrias singulares de certos actores sociais, autores de conhecimento, criadores e influentes; noutros teremos referncias a foras mais amplas e impessoais, como as dinmicas coloniais, pblicas e privadas, civis e militares, do estado s companhias mineiras, das fundaes de caridade s agncias sanitrias transnacionais, das associaes cientficas aos grupos de interesses.

    Os enredos atravessam vrios lugares, mesmo que a aco parea decorrer apenas num territrio, colnia, hospital, complexo

    1 Sem qualquer ambio de rever o campo nesta pequena nota, remetemos os leitores para algumas obras gerais: alm do muito citado Science in Action de Bruno Latour (1987), temos os Handbook of Science and Technology Studies editados por Sheila Jasanoff et al. (1995) e por Edward Hackett et al. (2008), ou ainda nmeros temticos como o que Warwick Anderson (2002) para a revista Social Studies of Science. Para volumes em portugus, veja-se Nunes e Gonalves (2001) e Nunes e Roque (2008).

    Introduo

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    mineiro, laboratrio local, herdade agrcola; esto neles contidos lugares eventualmente distantes onde se escreve, pensa, produz e publica. Mas ser a relao entre estes lugares presentes e ausentes configurada em modo hierrquico, emanando dos centros metropolitanos os saberes que iluminam os satlites e periferias? Ou, numa outra nuance, estaro articulados como extenses de recolha que alimentam ciclos de acumulao e convergem para os centros de clculo?

    Seria sem dvida atraente unificar os nossos contributos em torno destas questes e propor um modelo descritivo com ambio terica, capaz de confirmar, refutar ou ultrapassar as referncias e citaes da moda nos estudos de cincia. Igualmente tentador tomar a experincia histrica portuguesa e brasileira como um todo que se pode contrapor a outras experincias histricas coloniais com configuraes diferentes e mais frequentemente referidas na literatura internacional.2

    Mas no esse o nosso objectivo principal neste volume. Ficar para o leitor a tarefa de prolongar as propostas que aqui afloramos e alinhar-se, ou no, com as escolhas tericas do momento, e de estabelecer, ou no, uma interpretao geral para a cincia nos

    2 As primeiras obras dedicadas s questes de medicina e imprio (Arnold 1988; Macleod e Lewis 1988; Arnold 1993) usavam em grande medida a experincia imperial britnica como padro de referncia e assim aconteceu com a maioria das obras que se lhe seguiram. Excepo mais notvel o trabalho de Ann Laura Stoler (1995; 2002; 2009) baseado nos arquivos coloniais holandeses para Sumatra e Java. Os estudos de colonialismo comparado tornaram-se entretanto mais frequentes (e.g. Cooper e Stoler 1997; Bastos, Almeida e Feldman-Bianco 2002; Labanyi e Foreman 2005; Roque e Wagner 2011), alguns deles especificamente dedicados a questes mdicas (Bhattacharya e Brimnes 2009; Digby, Ernst e Muhkarji 2010). Saliente-se todo um conjunto de obras que a partir de 2000 discutem a experincia colonial portuguesa numa perspectiva comparada e crtica (Santos 2002; Thomaz 2002; Feldman-Bianco 2001; Bastos, Almeida e Feldman-Bianco 2002; Carvalho e Pina-Cabral 2004; Bastos, Ferreira e Fernandes 2004). Mas os estudos do colonialismo que se recortam em funo dos universos de expanso europeus correm o risco de, como apontava Anderson (1998) a propsito da medicina colonial, ficar presos s particularidades de cada experincia colonial e diminuir a nfase no que h de colonial em todas essas experincias histricas. No caso da experincia luso-brasileira, o problema de essencializar as particularidades agrava-se pela necessidade de dialogar (mesmo quando para refutar) com o iderio lusotropicalista sobre a especificidade (e suposta benignidade) do colonialismo portugus e das culturas de referncia lusfona, comeando pelo Brasil.

  • A Circulao do Conhecimento: Medicina, Redes e Imprios

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    universos lusfonos. O que nos une menos a ambio de uma proposta terica unificada que um modelo de anlise subsumido nas nossas prticas de investigao, e uma necessidade de integrar, nas prticas de arquivo, interpretao e contextualizao que se expandem para espaos mais amplos, fluxos e nexos que de alguma forma se resumem na noo de circulao.3

    E, sem dvida, une-nos tambm a paixo de percorrer o arquivo e deixar-nos levar por ele.4 um arquivo que seguimos para l do texto, para l do formulado, mas no necessariamente na exacta contramo do documento, extraindo dele as vozes que l se no podem encontrar: um arquivo que nos leva para extensas redes que transcendem as referncias nacionais, que nos fazem viajar entre Brasil e Portugal, entre Moambique e a ndia, entre Angola e todos estes, e tambm para o Japo, Frana, Alemanha.

    O arquivo, portanto: todos ns trabalhamos com arquivos, de muitas e variadas modalidades, leques temporais, localizaes, estados de conservao, acessibilidade, de organizao e de caos. So arquivos coloniais, bem preservados ou quase destrudos; esplios pessoais de cientistas; arquivos administrativos e diplomticos; coleces de instituies sanitrias, de universidades, de fundaes privadas; acervos cognitivos mantidos na memria de alguns dos nossos entrevistados; recoleces e observaes colhidas em trabalho de campo.

    Nos arquivos no se escondem simples dados que trazemos a pblico fora do trabalho interpretativo a que lhes chegamos e pelo qual os conhecemos emergindo de, e remetendo para, as discusses, inquietaes e problemas tericos em que estamos envolvidos. A relao de mo dupla: em suma, os princpios gerais e as propostas interpretativas expostas ao longo dos artigos ancoram-se no trabalho de arquivo, nas prticas, narrativas e elucubraes que encontramos nas fontes documentais, nos depoimentos e outros testemunhos a que chegamos na histria oral. Entre ns convergimos nessas prticas, dialogamos nas anlises, 3 Para um uso um pouco diferente mas enriquecedor do entrosamento de circulao, imprio e cincia, veja-se Raj (2007). 4 Exactamente como na proposta de Ann Stoler (2009), along the archival grain...

    Introduo

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    mantemo-las independentes. Convidamos agora os leitores a atravess-las, organizadas que esto em quatro blocos de captulos que articulam, entre si, caminhos multidireccionais do conhecimento, dos seus produtores, teorias e lugares de produo.

    O primeiro bloco de captulos aborda directamente a circulao

    do conhecimento mdico, analisando situaes que ajudam a questionar algumas das mais enraizadas trivialidades sobre a produo e uso da cincia em portugus. Os textos analisam trajectrias profissionais e pessoais de mdicos e cirurgies, bem como a sua articulao em redes mais amplas que tm como base um mundo luso-brasileiro em mudana; so espaos de imprio em reconfigurao, novas naes, novas colnias em frica, domnios de tutela ambgua na sia. Instalada no senso comum est a reduo destes espaos condio de periferias consumidoras de conhecimento, fazendo dos mdicos, farmacuticos e cirurgies locais, falantes de portugus, meros clientes das teorias produzidas nos grandes centros de lngua francesa, alem, inglesa. O que os presentes artigos trazem tona bastante diferente, com autores e actores que criam e pem em circulao interpretaes, formulaes e princpios tericos disponveis para uso geral. Fazem-no em portugus; que canais, redes, interstcios se desenham nesse espao cognitivamente recortado e politicamente flutuante? Cada um dos artigos contribuiu de modo particular para esclarecer esta questo.

    Em Corpos, climas, ares e lugares: autores e annimos nas cincias da colonizao, Cristiana Bastos aproxima-se do universo multiforme dos que, escrevendo em portugus os seus relatrios, notas, ofcios, recomendaes e manuais, so simultaneamente autores e actores annimos das redes de produo, uso, acumulao e circulao do conhecimento mdico colonial. Dos seus postos de sade colonial, escrevem e inscrevem ideias, teorias e prticas relativas aclimatao e maleabilidade dos corpos; promovem conjugadamente polticas sanitrias e polticas de colonizao; descrevem e intervm na materialidade das enfermarias, hospitais, farmcias, vacinas e cordes sanitrios; e nesse lugar crtico, marginal e central, consumidor e produtor, annimo e autor,

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    constituem-se enquanto actores centrais da medicina colonial portuguesa no sculo XIX, parte de redes mais amplas que os alimentam e as quais eles alimentam.

    Renilda Barreto assinala o intercmbio de saberes e prticas na obstetrcia do sculo XIX e mostra como os cirurgies se instalaram no campo predominantemente feminino da Cincia do Parto. O estudo da trajectria profissional do cirurgio Joaquim da Rocha Mazarm que viveu entre Portugal e Brasil no contexto da cincia mdica e do ensino, durante a primeira metade do sculo XIX, posiciona a medicina acadmica portuguesa e brasileira no patamar da Alemanha, da Inglaterra e da Frana, questionando o instalado estigma do atraso luso-brasileiro no campo da cincia dos partos.

    Encerrando a seco com O viajante esttico, Luiz Otvio Ferreira apresenta a contribuio do mdico francs Jos Francisco Xavier Sigaud na circulao das ideias higienistas no Brasil de oitocentos. Integrado no ambiente intelectual e institucional da corte do Rio de Janeiro, Sigaud foi um representante tpico da tradio higienista e da intelectualidade ilustrada, iluminista, do incio do sculo XIX, um viajante cientfico em constante deslocao na ampla rede por onde circulava o conhecimento mdico em escala local e global, fazendo do seu lugar de acolhimento um ponto desse universo de inovao e permanente renovao do saber.

    O segundo bloco de captulos dialoga distncia com o clebre

    conceito de mveis imutveis, optando pela mais modesta designao de substncias de cura e restringindo-se s guas e aguardentes no deixando de fora o vinho e a quina que, combinados, deram a famosa gua de Inglaterra. Mas no se pense que estas so substncias simples, estveis, de propriedades imutveis e segredos que os caminhos da cincia vo cumulativamente desbravando. Pelo contrrio: so tambm o que delas fazem o uso, a circulao, o conhecimento localizado, o comrcio, as transaces.

    Introduo

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    Comecemos pela aguardente enquanto remdio no contexto da plantao escravocrata no Brasil colonial. Com Os cuidados com a sade dos escravos no Imprio Portugus: a aguardente para fins medicinais, Betnia Figueiredo e Evandro Castro trazem-nos muito mais que uma anlise das propriedades e usos da aguardente, e levam-nos a uma das fontes que propaga e divulga esse remdio: o Errio Mineral, um dos primeiros tratados de medicina para o Brasil escrito em lngua portuguesa, de autoria do cirurgio portugus Lus Gomes Ferreira. Autor e fonte circularam pelo imprio colonial portugus no sculo XVIII, recriando os saberes locais, gerando interpretaes, veiculando princpios que ganharam dinmicas prprias.

    Uma outra bebida medicinal, a gua de Inglaterra, analisada por Patrick Figueiredo no captulo seguinte. Trata-se de um remdio de segredo, um vinho de quina amplamente comercializado em Portugal e colnias; nesse medicamento, substncia, mercadoria, item comercial, objecto de desejo, disputa, concorrncia e redeno se concentram muitos dos problemas que nos mobilizam analiticamente a circulao global de novos produtos, como a quina, a manufactura de compostos, a sua comercializao, a apropriao do conhecimento, a discusso dos seus efeitos teraputicos, a interaco entre materialidades, interpretaes e estabilizao dos conhecimentos.

    A encerrar esta seco Maria Manuel Quintela traz-nos s guas termais, tambm elas objecto de dissenso e sujeito de constantes transformaes no que tange definio das suas propriedades, vocao teraputica, modos de uso, regras de acesso e legitimao do seu lugar nas cincias mdicas. Em Armando Narciso: um 'doutrinador' da hidrologia mdica e do termalismo portugus (1919-1948), a autora analisa os escritos deste mdico e convicto hidrologista para discutir, para a primeira metade do sculo XX, a institucionalizao da especialidade de hidrologia mdica e do termalismo como possibilidade teraputica em Portugal, bem como o desenvolvimento de identidades regionais e nacionais em torno das termas durante o Estado Novo de Salazar.

  • A Circulao do Conhecimento: Medicina, Redes e Imprios

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    A terceira srie de artigos desloca o leitor para universos que claramente transcendem a esfera local e desvendam as redes, conexes e canais que sustentam a produo de conhecimento mdico e as polticas de interveno sanitria.

    Com Pesquisas em parasitologia mdica e circulao do conhecimento no contexto da medicina colonial, Flvio Edler centra-se na especializao de helmintologia mdica enquanto caso exemplar onde se adensam e concentram processos de negociao entre distintas comunidades epistmicas, onde factos e observaes no so meros factos nem inocentes observaes. Traando o modo como os mdicos brasileiros da segunda metade do sculo XIX contriburam para a consolidao deste campo, o autor d-nos uma panormica dos mecanismos de controle e validao das inovaes cientficas, da concretizao de controvrsias, e dos modos de circulao do conhecimento mdico.

    Jaime Benchimol leva-nos a um extenso aprofundamento das relaes sia-Amrica com Hideyo Noguchi e a Fundao Rockefeller na campanha internacional contra a febre amarela (1918-1928). A trajectria peculiar do mdico japons Hideyo Noguchi e o seu envolvimento nas campanhas internacionais contra doenas infecciosas, em particular a leptospirose e a febre amarela, ilustra muito mais que um percurso pessoal, mas toda uma teia que envolve os vrios sectores de interveno sanitria governos, instituies transnacionais, fundaes , bem como as articulaes entre prticas, polticas e saberes.

    ainda destacando os aspectos transnacionais da interveno mdica que Jorge Varanda, em A asa protectora de Outros, nos leva a Angola-colnia. Mas no a uma situao colonial genrica: trata-se da Diamang, a Companhia de Diamantes de Angola, um estado dentro do estado, com meios mais eficientes que o governo para exercer a sua misso e gerir a sua fora de trabalho. nessa medida que providencia os seus prprios servios mdicos com o respectivo equipamento, incluindo laboratrios, e mobiliza todo o capital cientfico disponvel para fazer face a uma das endemias que mais afectavam a populao indgena e subsequentemente a qualidade do trabalho e a rentabilidade da produo: a doena do

    Introduo

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    sono, ou tripanosomase. O que primeira vista poderia parecer restrito ao local revela-se amplamente distendido e global.

    A quarta e ltima parte deste livro desenvolve-se em torno de

    uma s patologia, a ubqua malria (ou paludismo), e com ela atravessa vrias experincias de aco profilctica na frica colonial e nos espaos rurais portugueses do sculo XX. Nestes estudos articulam-se cincia, poltica, interveno, mas tambm economia, sociedade, etnografia, experincia vivida de todo o conjunto de condies que incluam a malria, sezes, febres, pauis, arrozais, trabalho assalariado, migraes, mosquitos; humanos e no-humanos entrosam-se em complexos enredos sociais em que o conhecimento sobre a febre, os vectores, a transmisso, o tratamento e a preveno articulam relaes sociais especficas (nas quais se recortam os doentes, os vulnerveis, os mdicos, os tcnicos, os cientistas, os polticos, os filantropos) e em configuraes histricas nicas, como a que redunda no processo de erradicao.

    Em Sade pblica, microbiologia e a experincia colonial Philip Havik traz-nos a um dos lugares proverbialmente temidos pelos europeus pela insalubridade e mortferas febres, a frica ocidental, e traa, de modo comparativo, os processos desenvolvidos pelos diferentes governos europeus britnico, francs e portugus para domesticar esses temores generalizados a partir de um novo paradigma mdico em que possvel deslocar o estigma do territrio para um plano de abordagem aos vectores da infeco. Este artigo proporciona-nos ainda uma olhar sobre o debate coevo nas colnias e a relevncia, para a sua aplicao, da implantao no terreno dos profissionais de sade muitos dos quais no-europeus.

    Com Mosquitos envenenados: os arrozais e a malria em Portugal, Mnica Saavedra analisa as mesmas sequncias de transio de paradigma no entendimento da malria, do miasma aos mosquitos. Mas aqui o centro da aco a ruralidade portuguesa, combinada com laboratrios de pesquisa que em territrio nacional ou internacional definiam o campo da malria; com cientistas,

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