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Jeanne Chaves

A Combinação Zero

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Literatura. Ficção Brasileira.

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Jeanne Chaves

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Capa: Jeanne Chaves

CIP – BRASIL _______________________________________________________

Chaves, Jeanne, 1967 – A combinação zero/ Jeanne Chaves; - Recife, 2011. 48p. 1. Literatura Brasileira 2. Conto 3. Ficção I. Chaves, Jeanne. _______________________________________________________

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A Combinação Zero

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A extinção de todas as éticas construídas para a convivência entre os povos os faz auto-suficientes do seu desaparecimento.

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A água lodosa e pútrida lhe envolvia o corpo. Tudo

aconteceu muito rápido depois da forte turbulência que pôs em

pane os instrumentos de navegação do pequeno avião a jato e ele

começou a cair aos solavancos, quebrando bruscamente a

resistência do ar ao longo de vinte mil pés de altitude, enquanto

uma densa tempestade elétrica iluminava a vasta escuridão que

unia céu e terra transformando tudo em um único imenso vazio.

Quando finalmente colidiram com a superfície, ela já havia

perdido os sentidos.

Arrastando-se para fora daquela água pesada onde nada

poderia adquirir o poder de flutuar, deitou-se de costas para

abrandar a ardência dos ferimentos pelo corpo e esperar o nascer

do dia, sem saber que não o veria surgir por trás daquele caldo

pantanoso e do ar negro, nunca.

Ao longe, à luz dos raios, divisou sombras de elevações

que ora se assemelhavam a cordilheira, ora a uma cidade de

arranha-céus espetando a noite. Não se lembrava de quanto

tempo passou lutando para permanecer à tona, agarrando-se em

objetos irreconhecíveis e viscosos. Diante do terror que a

imobilizava, o mau cheiro do lugar encontrava quase nenhum

impacto, e assim, deixou-se ficar imóvel, respirando apenas

pequenas porções do ar pernicioso, até que desfaleceu no sono.

Abriu os olhos ao sentir no rosto o toque de uma pequena

mão surpreendentemente forte. A mão tentava lhe abrir a boca e

ela pôs-se de pé, empurrando para o mais longe possível aquela

criança, e depois, tentando recuperar a calma, perguntou que

lugar era aquele e onde poderia encontrar ajuda para procurar os

demais passageiros e tripulantes do jato. O garoto, como se

também temesse, e usando de uma agressividade desproposital,

respondeu em um idioma que ela nunca ouvira, mistura de

castelhano, inglês, mandarim, árabe e outras inflexões guturais

que pareciam palavras de um dialeto, fluindo em uma torrente

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incompreensível, contudo, ela entendeu que recebia ordens para

acompanhá-lo.

Durante a caminhada que fazia sempre à frente do

garoto, tropeçava em coisas que não distinguia, era como se o

chão se movesse por sobre uma superfície dura. Os contornos

das elevações que viu antes de adormecer foram ficando mais

definidos na medida em que se aproximavam, eram altos

prédios, dos quais nenhuma luz emanava pelas janelas e cuja

distribuição das estruturas no espaço, daquela distância, não

permitia perceber ruas de acesso, nada as iluminava, nenhum

farol de um carro. Parecia um enorme túmulo dentro de outro

túmulo. A fumaça que envolvia tudo fazia os olhos dela

lacrimejarem. Outro tipo de medo a tomou depois de pensar que

não sobreviveria ao pouso desastroso do avião, o medo por ter

sobrevivido.

Olhou para trás no exato momento em que um relâmpago

despejava sua luz branca sobre o breu e a fumaça, então

percebeu que o garoto que a incitava a andar tinha cerca de um

metro e quarenta de altura, e à exceção dos óculos a protegê-lo

da fumaça, estava nu, exibindo um falo descomunal. Não era

uma criança e também, não era homem.

***

Um gosto horrível espalhava-se pela sua boca, vindo das

profundezas do estômago, o qual, nas três horas entre o encontro

com o seu guia bizarro e aquele chão indeciso, tivera que tentar

esvaziar por diversas vezes.

Tomando-lhe a frente aquela pessoa fez com que parasse,

gesticulando para que ela ficasse ali e começou a se afastar

lentamente, olhando de vez em quando para se certificar que a

ordem fora entendida, depois ela ouviu passos ligeiros de quem

corre a toda velocidade. Deixando-se cair, quase em alívio, pois

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tinha a esperança de que o seu salvador tivesse ido à busca

de ajuda, apalpou o chão onde estava sentada e dele recolheu e

jogou fora novamente uma variedade de lixo, papéis úmidos,

embalagens, componentes que um dia tinham feito parte de uma

máquina inteira, e pensou consigo que se tivesse morrido, seus

méritos como ser humano garantiram-lhe apenas o inferno.

Sabia que estava à beira da histeria e pôs-se a andar

marcando os passos, para cada dez de ida, um pensamento, para

cada dez de volta, outro.

Um, dois, três... Fabrice, que nesta hora...

Tentou ler as horas no pequeno e sofisticado relógio de

pulso sem marcadores fosforescentes. Não viu nada, estaria

preso no trânsito, telefonando para ela e justificando o atraso...

Nove, dez. Um, dois...

- Eu disse bonsais, bonsais! Como diabos você foi entender

bromélias? Leve isto daqui e me traga bonsais, não quero um

jardim semi-árido.

E a reclamação malcriada do paisagista.

- Seu gosto me deixa inseguro, senhora, farei o que pede, mas

que isto fique em segredo de morte e eu não assinarei o

projeto!...

Um, dois, três, quatro...

O resultado dos exames de sua mãe depois de última

sessão de rádio terapia...

Um, dois...

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Concentrou-se no retorno apressado do seu

acompanhante, juntamente com mais três iguais a ele.

Eles a cercaram, o mais alto deles, vestido com uma

túnica de ráfia e mais nada, a empurrou rudemente, eles

precisavam correr.

Correram cerca de vinte minutos no meio do que parecia

uma avenida, pequenos grupos de dez ou quinze pessoas

tentavam impedir a progressão deles e eram repelidos

violentamente com pedaços de pau.

O mais alto deles se antecipou na corrida e virando em

uma esquina parou na frente de um prédio de dois andares,

empurrando estrondosamente a porta dupla de madeira pesada.

Sentindo o oxigênio faltar completamente, na soleira da porta,

sua visão turvou e ela tombou desacordada. Eles a arrastaram

para dentro e trancaram a porta com travessas de ferro. Depois

acertaram entre eles os turnos de vigília. Dali a algumas horas

tudo ficou em silêncio, mas ela não ouviu.

***

Ao ser aberta, a porta do cubículo rangeu nas dobradiças

e uma tênue luz de lanterna a querosene penetrou a escuridão.

Deitada no chão de pedra, em posição fetal, ela viu um

par de botas pretas desgastadas de cano alto, o homem usava

uma capa de couro escuro e uma espécie de máscara para

respirar que deixava oculto o seu rosto, e apenas a fronte alta e

os cabelos louros à mostra.

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Fechando a porta atrás de si, caminhou até ela e a pôs de

pé quase com gentileza. Olhou-a de cima a baixo sem dizer uma

única palavra, nem parecia sentir repugnância por sua aparência

imunda.

Ela ensaiou algumas perguntas, mas ele fez sinal para

que calasse. Caminharam por um corredor úmido e opressivo até

desembocar em uma sala espaçosa, onde uma lareira ardia

alimentada de lixo e fornecia a única luz do ambiente, e onde

doze daquelas criaturas pareciam esperá-los.

Uns estavam completamente nus, outros resguardavam o

recato com trapos, fêmeas, ao que ela pode ver. Umas velhas,

outras apesar de possuírem quase a mesma estatura, eram ainda

muito jovens. Não tinham pelos sobre a pele olivácea e os olhos

eram muito grandes e arredondados, como os de animais

noturnos.

Uma das fêmeas se aproximou bradando aquele idioma

incompreensível e o homem de botas a fez baixar a cabeça. A

fêmea não queria que os olhasse.

O homem deu uma ordem e o grupo que a resgatou na

praia saiu, voltando logo em seguida com várias caixas contendo

alimentos, medicamentos e água. Depois, ele a algemou e

saíram do prédio, então ela compreendeu que havia sido produto

de uma troca.

A carroça que usaram para chegar ao outro lado da ilha

era puxada por quatro daqueles seres. Pelas ruas, eram

observados com curiosidade, mas algo lhe dizia que ninguém

ousaria nada contra a autoridade daquele homem. Quando

chegaram ao prédio que parecia ser um hospital, ele pagou com

antibióticos pelo serviço de transporte, ao que os seres

agradeceram com uma reverência.

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Dentro do prédio havia luz e o ar era refrigerado, com

energia fornecida por enormes geradores instalados no subsolo,

como ela descobriria mais tarde. Um assistente de aspecto

idiotizado veio recebê-los à porta. Logo ela foi encaminhada

para uma espécie de câmara de descontaminação, na qual a água

que saia do chuveiro tinha cheiro de produtos químicos e fez

queimar os ferimentos dos quais agora ela se dava conta. Um

dos pulsos, onde estava o relógio inútil, pois as horas haviam

parado de correr, estava fraturado. Tinha escoriações nos braços

e no rosto, havia lama misturada a sangue coagulado dentro dos

ferimentos, alguns voltaram a sangrar.

Assustou-se ao perceber a volta do assistente para lhe

trazer um pijama e tentou esconder a nudez, mas ele parecia não

fazer caso do seu embaraço, apenas pendurou as peças de roupa

num cabide da parede e saiu.

No consultório, sobre uma mesa de mogno, havia uma

bandeja com comida e água, nos primeiros goles, sentiu a

garganta doer, engasgando até quase sufocar.

O homem das botas, agora sem máscara, recomendou em

inglês, que ela tomasse a água devagar e do mesmo modo,

fizesse com a sopa. Quando ela terminou de comer o que

conseguiu, ele tratou dos ferimentos dela, aplicou-lhe

antibióticos e colheu amostras de sangue.

- Que lugar é esse?

- O término do fim - Ele se limitou a responder.

- Como o termino do fim? Que resposta é essa? Aqui há de ser

algum lugar!

- Era, mas não está mais no mapa.

- Pode me falar alguma coisa coerente, por favor? As pessoas

que viajavam comigo, onde estão?

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- Quantas eram?

- Cinco.

- O Presidente ordenou a formação de um grupo de busca, mas

só trabalharão quando chegar combustível para o barco.

- E quando vai ser isso?

- Garanto-lhe que eu gostaria que fosse o mais breve possível, a

chance de sobrevivência no nosso mar é nenhuma, e se tiver

alguém vivo quanto mais o tempo passa menores as chances

dele e nossas de algum aproveitamento.

- Aproveitamento de quê?

- Das suas vidas.

- Quando eu vou falar com o Presidente?

- Não vai.

- Está bem. Eu quero um telefone, um computador, qualquer

coisa de onde eu possa me comunicar com o meu país.

- Lamento, não há nada disso aqui.

- Como não? Como fazem para falar com o mundo lá fora?

- Não falamos, não existe outro mundo lá fora.

- Você é louco ou quer me enlouquecer... O que são aquelas

criaturas?

- São pessoas.

- Pessoas? Parecem animais!

- Como você, elas são sobreviventes.

- Sobreviventes de quê? Houve um grande cataclismo e eu não

estava na janela para ver?

- Mais ou menos isto. Eles são sobreviventes de si mesmos.

- E você?

- Sou igual a eles e igual a você. Como se chama?

- Laira.

- Me chame de Doc.

- Como soube que eu estava lá naquele lugar horrível?

- Eles vieram me avisar.

- Você me negociou?

- Você não estava sequestrada, apenas não tinha utilidade para

eles.

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- Como você é frio!

- Objetivo! Não existe caridade onde o dinheiro não circula. Eles

não poderiam manter você. Acabaria perecendo nas ruas e

virando combustível de fornos de cremação.

- Não usam dinheiro aqui?

- Não.

- Por que não?

- Não há trabalho, não há produção, o dinheiro é dispensável.

- O que vale aqui?

- Estar vivo.

- E considera isto vida?

- Enquanto houver um único Ser com os sistemas funcionando,

os instintos de sobrevivência atuarão sobre ele.

- Não! Isto não existe! É um pesadelo, já vou acordar!

- Quando fizer isto, não haverá dias, suas janelas se abrirão para

ruas cobertas de lixo e para um céu de fumaça, únicas formas de

proteger a nós e o solo dos raios ultravioleta.

- Nada cresce aqui?

- Só a população e o desespero.

- Você disse que não há trabalho, não há produção... De onde

vem a comida, a água e os remédios?

- Por ora, chega de perguntas!

O arremedo de cortesia com o qual ele a tratara até então

foi interrompido de forma incisiva e cortante, não lhe deixando

alternativa ao não ser acompanhar o assistente débil que veio

buscá-la como atendendo a um chamado inaudível, então ela foi

levada a um quarto sem janelas, cujas portas travavam

eletronicamente.

Chegavam ruídos através das paredes, passos ocasionais

no corredor que tinha portas iguais à sua; ar, como se aspirado e

soprado por uma máquina, e um estalido grave e breve a

intervalos regulares. Estes sons se repetiam como obedecendo a

uma escala musical para os mesmos instrumentos, mas que

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tocavam em tempos diferentes. Havia uma imperceptível

variação de altura entre eles, como se estivessem relativamente

distantes um do outro. Um barulho de fogos de artifício a zunir

no espaço sem, contudo, estourar a espoleta, era constante.

Descargas elétricas a propulsionar um motor que imaginou ser

de um elevador, embora não tivesse visto nenhum da entrada do

edifício até o consultório de Doc. Embutida entre essas

vibrações havia outro som que sua óptica determinou como

sendo... Música!

“Que droga de lugar era aquele? Quem eram aquelas

pessoas? O que havia acontecido com elas? Com aquele lugar?

Estava evidente a preparação do edifício para evitar fugas.

Portas e janelas eram blindadas. Nenhuma placa sinalizadora

nos corredores nem nas portas.”

Apesar da educação do médico, era óbvio que ele não se

sentia na obrigação de fornecer nenhuma explicação mais

contundente e pensou que não era porque ele não quisesse dá-

las, mas talvez, diante das circunstâncias, e se fosse ela uma

prisioneira, as explicações não fossem necessárias.

***

Decorreu muito tempo, não sabia precisar quantas horas,

até que o assistente veio lhe aplicar uma injeção.

- Que dia é hoje? Que horas são?

Ele balançou a cabeça de um lado para o outro, dando a entender

que não compreendia.

- Doc... Preciso falar com Doc!

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Depois de várias tentativas, de todas as palavras que ele

pronunciou, ela entendeu apenas ‘en otra parte’, mas foi preciso

segurar-lhe a mandíbula para forçar um ritmo mais lento na

pronúncia das palavras. A expressão dele estava entre a

demência e a diversão, mas ambas, delineadas por certa

ingenuidade, dessas que se percebe nos filhotes de cães, Como

se lhe faltasse faculdades adultas da espirituosidade e prevenção.

Um, dois, três...

Pense!...

Sete, oito, nove...

Pense!

Tinha de haver um jeito de sair daquele lugar...

Um, dois...

Não há outro mundo lá fora...

Sete, oito, nove...

Não há outro mundo lá fora...

Nove, dez...

As pessoas que estavam no jato...

Um, dois, três...

Desconhecidas...

Seis, sete...

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Tinha que saber o destino delas...

Dez, um, dois...

Deviam ter família...

Sete, oito, nove...

Isto vem primeiro...

Quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez...

Sentou-se na cama e se distraiu a tentar se apoderar da

intimidade de todos aqueles sons de fontes invisíveis. Não sabia,

mas todos os seus sentidos se apuravam para a sobrevivência.

„Música! Ainda tem gente viva aqui.‟

***

Uma enfermeira trocava seus curativos enquanto a porta

aberta do quarto exalava o cheiro forte de anti-sépticos. Ela

realizava as tarefas com uma precisão automática. O rosto

impassível e senil contraiu-se na testa ao verificar a temperatura

de Laira. O filete de mercúrio tinha parado de subir no bulbo, e

marcava trinta e oito graus.

Sem que houvesse percebido, Doc acompanhava os

procedimentos do outro lado do corredor. Ele se aproximou e

tomou o termômetro das mãos da enfermeira passando a lhe dar

ordens, as quais ela saiu para atender.

- Você está com uma infecção.

- Bom dia, Doc!

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- Desculpe-me, bom dia!

- Isto quer dizer que não terei alta.

- Não se apresse, não há para onde ir.

- Eu mereço algumas explicações! Há alguns dias eu estava

viajando para fechar um grande negócio no Oriente Médio e

agora estou aqui, dentro do que parece ser um hospício, cercada

de criaturas dementes e com você me dizendo que não há para

onde ir. Porque faz isso comigo? O que eu lhe fiz? Onde estão

os outros?

- Venha comigo!

Ela o acompanhou, observando mais detalhadamente o

caminho. O prédio era velho, as paredes espessas revestidas de

azulejo branco, a iluminação era deficiente nos dois lados, o

consultório, ficava no corredor oposto ao quarto que ela

ocupava, delimitando-os, havia um portão de grades onde uma

escada que descia se perdia no vão escuro. Ela notou a ausência

dos movimentos normais de um hospital.

O consultório se parecia a uma sala de estar, tinha um

jogo de poltronas de encosto alto à frente da mesa de mogno.

Dois sofás de desenho futurista, um à frente do outro, separados

por um centro que sustentava um vaso de porcelana com flores

artificiais. Atrás da mesa de mogno, quatro prateleiras,

protegidas por vidro, iam do chão ao teto, exibindo instrumentos

rudimentares de medicina. As duas do meio se apoiavam sobre

pequenas rodas e eram unidas às da extremidade por fitas de

dobradiças.

Ele apontou uma das poltronas e acomodou-se ao lado

dela, na outra, e Laira achou se tratar de um artifício para que

ela não o olhasse diretamente.

- O que fazia no lugar de onde veio?

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Ele perguntou com voz suave, como se realmente,

desejasse aquela conversa.

- Trabalho para uma companhia exploradora de petróleo. As

pessoas que viajavam comigo... Onde estão?

- Eram suas amigas?

- Por que está usando o verbo no tempo passado?

- Elas foram resgatadas. Mortas.

- Quando?

- A última, uma mulher, foi resgatada ontem.

- Onde elas estão?

- No necrotério.

- Quanto à sua pergunta, não eram meus amigos. A mulher

representaria um agente financeiro, os outros dois eram os

advogados da fusão que a minha empresa faria com a outra.

A notícia roubou de forma definitiva a possibilidade de

preservação do vínculo que ainda julgava existir entre esse

mundo e a sua vida conhecida e normal.

- Doc, me mande de volta!

- Não há como!

- Não insista nisso! Se nós chegamos até aqui, há um caminho

de volta!

- Entenda, para mim é tão estranho ter você aqui, falando de um

mundo que não existe mais quanto é para você essa existência

num mundo derivado do que havia.

- Há quanto tempo estou aqui?

- Quinze ciclos.

- O que isto quer dizer?

- Quer dizer que a maré subiu duas vezes e desceu duas vezes

em um intervalo de vinte e quatro horas vezes quinze.

- Então por que você não diz quinze dias?

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- Por que não há luminosidade do dia, nem da lua. As rotinas são

desnecessárias, por isso, as horas não têm importância.

Ela começou a chorar baixinho.

- Está me dizendo que estou presa numa morte pior que a morte?

Ele levantou-se, como se apanhado de surpresa por aquela

expressão de emotividade.

- Alguém decidiu lhe dar uma escolha.

Falou de costas para ela.

- Quais escolhas?

- Viver assim, ou morrer completamente.

- Quem me deu?

- Eu.

- As escolhas que me dá são cruéis!

- São as que eu disponho para mim e para você.

- E se eu decidir morrer?

- Pode sair pela porta da frente, ou cometer suicídio.

- Você não me ajudaria nisso, não é?

- Não.

- Se eu decidir viver?

- Viveria aqui, e seguiria regras.

- Leve-me ao necrotério. Quero ver aquelas pessoas!

Ele a conduziu de volta pelo corredor, antes de descerem

a escada que ela viu descendo a escuridão por trás das grades,

lhe entregou uma máscara para respirar.

-A descida é longa, vamos devagar. Tente respirar

compassadamente.

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Na medida em que desciam, o ar ia se tornando mais frio

e pesado, até que eles chegaram a uma cripta iluminada por

lanternas de emergência. O piso, as paredes e o teto eram de

pedra escura. A atmosfera recendia a necrose e formol. Os

corpos estavam dispostos sobre mesas de pedra que formavam

seis fileiras de oito, todas ocupadas. Alguns corpos estavam no

chão, descobertos. Havia muitas crianças entre eles.

Um homem de pele escura de olhar alucinado parou de

manusear um cadáver e veio até eles manifestando surpresa,

como se a presença de estranhos ali fosse algo incomum, no

entanto, parecia à vontade com Doc.

- Ele está dizendo que à exceção da mulher, todos os outros

corpos já foram incinerados. Quer vê-la?

- Sim. - Disse hesitante, lutando para não desmaiar.

A mulher estava em uma maca e como os demais,

despida. Uma parte do seu rosto estava destruída por ferimentos

e queimaduras, o restante do corpo tinha mutilações horríveis.

Laira não conseguiu mais olhar, apenas, pediu entre

soluços, que lhe fosse entregue a aliança de casamento que

brilhava no dedo anular da mão esquerda, parcialmente íntegra.

Percebendo que ela desmaiaria Doc a segurou pelos

ombros e a levou a uma sala contígua ao necrotério, onde eram

feitas as incinerações, de lá, saíram por uma grande porta

escotilha.

Caminhavam em um aclive suave para fora do

prédio. No exterior, o terreno arenoso vinha aos seus pés em

meio à bruma fumarenta. O percurso de volta até a enfermaria

do hospital era mais longo, porém, menos desgastante. Laira

pode ver, encravada em uma colina, uma casa com as luzes

acesas.

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- Você mora ali?

- Não fale, caminhe.

Suas vozes saiam abafadas pelas máscaras e eles não

trocaram mais palavras até ela desabar na cama. Doc saiu e

voltou com a enfermeira. Ela lhe aplicou uma injeção e antes

que terminasse todo o conteúdo da seringa, Laira já estava

sonolenta e confusa.

- Quando você vem? - Perguntou a Doc.

- Amanhã.

***

- Engraçado... Parece que faz mais tempo do que o amanhã

que você disse.

Doc colocou uma bandeja com medicamentos e ataduras

ao lado dela, na cama, sem se importar com aquela saudação,

mas também não disse que ela havia passado três ciclos, sedada.

- Como se sente?

- Com menos dores e menos febril.

- Do que se lembra?

- Do necrotério. Aquilo parece uma fábrica.

- Mas é uma fábrica. Parte da combustão dos corpos abastece de

energia o hospital. Se a vida exige uma proficiência, a morte a

exige também.

- Meu Deus!... Comece!

- O que?

- Conte-me que raio aconteceu aqui!

- Não sei de muitas coisas, sei que elas são assim desde que abri

os olhos para esse mundo. Muitas informações se perderam em

si mesmas e nos arquivos virtualizados. Tudo o que sabemos nos

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é passado de geração a geração. Meu pai me dizia que seu avô

lhe contava que haviam nações distribuídas sobre os continentes

e que cada uma delas tinha seu próprio idioma. Cada uma delas

tinha suas próprias formas de sustentação do povo, mas então, as

adaptações requeridas para que chegasse a esse nível de

progresso negou-lhes o privilégio de progredir mais. A

intelectualidade das civilizações ficou presa a produção e ao

dispêndio. Um ciclo que nunca fechava. A queda foi paulatina e

bárbara. O que temos aqui são os resquícios, pessoas que vivem

para ver a sua própria morte, como os ciclopes dos mitos de uma

extinta civilização.

- Vocês podem ver o dia em que vão morrer?

- Ter certeza, é como ver.

Doc lhe falava ao mesmo tempo em que realizava

exames físicos, a blusa do pijama, levantada nas costas enquanto

a auscultava, revelava uma pele morena com o arcabouço ósseo

saliente sob ela. Os olhos, clareados por uma lanterna, verdes e

viçosos. A boca larga, de lábios finos, escorada por uma arcada

dentária branca e regular, estava ressecada, os cabelos

igualmente, e tão embaraçados que não deixavam ver o seu

tamanho natural, chegavam ao meio das costas.

- Onde você estudou, Doc?

- O tempo todo aqui. Meu pai e minha mãe me ensinaram tudo.

- Onde eles estão agora?

- A expectativa de vida aqui é bem limitada. Ambos mortos.

- Por que você não é igual aos outros? Digo, sua aparência não é

como a deles...

- Bons genes, água e oxigênio limpos, alimentação... São meus

privilégios para estar aqui.

- Você trabalha para poder respirar?

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- Trabalho porque para fazer o que eu faço é necessário que eu

respire. Existem pessoas acima de mim das quais preciso cuidar,

senão, esse equilíbrio se perde.

- Essa é toda a sua relação de trabalho?

- Essas são minhas relações de vida.

Ele terminou o exame e a troca de curativos. As mãos

enlaçadas atrás das costas, parado na soleira da porta, ele ia se

despedir.

- Eu quero ir lá fora

- Se quer encontrar alguma esperança, ela estará subindo por

chaminés.

- Não acredito em você! Não acredito em ninguém que me

algeme e me mantenha presa!

- Peço desculpa pelas algemas, mas eu não tinha como saber se

você pertencia a algum clã rebelde, e quanto ao que você acha

que é uma prisão, asseguro-lhe que está passando por uma

quarentena. Ainda não temos como saber se está infectada por

algum vírus ou bactéria letal produzidos nos inúmeros

laboratórios clandestinos que existem. Os rebeldes já usaram

esta estratégia antes.

- Não é ótima a nossa base de relacionamento? Você não confia

em mim e eu não confio em você!

- Vou aumentar sua cota de água e alimento e ver o que posso

fazer quanto às suas roupas.

- Isto é tudo?

- Eu mereço essa sua impertinência, mas você a merece mais do

que eu. Virei buscá-la amanhã.

Ou ela muito se enganava ou tinha conseguido adentrar

na personalidade glacial daquele homem. Mas ela lhe falara a

verdade em troca daquela rispidez. Não confiava nele e não

sabia de onde vinha a descrença que se materializava, talvez, em

sua própria ânima. Ligada por conexões fora do alcance dos

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cientificismos humanos e ainda muito mais aquém das suas

manifestações de espiritualidade. Não era algo como uma vela a

depender de um sopro para voltar a ser apenas parafina torneada

e pavio de barbante, que depois de apagada pode voltar a se

acender e acender até que a escuridão a consuma por inteiro.

Não. Era como magma incandescente aquecendo as entranhas da

Terra, viajando, se mostrando nos poros da superfície com uma

força vital abissal e inacabável, na qual o movimento que erige e

dissolve as coisas, que desloca os continentes como se brincasse

de montar e desmontar quebra cabeças, massacra a ignorância

das criaturas ocultas de sua própria pequena energia vital a se

tornar outra, e na qual, essas criaturas são insignificantes.

Contudo, o que ela viu no ciclo seguinte baqueou seu

coração com o impacto e o efeito de uma geleira a desabar, e ela

chorou como se todo o mar nunca mais cessasse de lhe escorrer

dos olhos.

***

Doc se mantinha à frente, iluminando a senda que levava

ao alto de um promontório, uma única extensa rocha desnuda

que se projetava para o interior do charco, parando de vez em

quando para que Laira recuperasse o conforto de respirar dentro

da máscara. Sentaram-se recostados à parede de um velho farol,

cuja sinalização perdera a finalidade muito antes que a IV

Ordem se estruturasse, pois quando isto aconteceu já não havia

tráfego naquele mar, nem correntes, nem vida marinha.

- Essa é a nossa costa. Foi aqui que a encontraram.

- Qual mar é esse?

- Chamava-se Mar Mediterrâneo, agora não tem mais

denominação, assim como o oceano que o irrigava. Isto que vê é

a pequena porção restante, tão sólida de detritos que virou uma

ilha negra.

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- O que tem depois dele?

- Uma paisagem igual a esta. Uma terra com outros clãs.

Quando o mundo antigo começou a se desmantelar

estabeleceram-se várias correntes migratórias em busca de terras

altas e seguras. Na primeira fase da falência, o nível dos oceanos

subiu drasticamente, na segunda, houve muitas guerras. Toda a

chuva caída na terra era veneno e levou à destruição de rios e

oceanos já repletos de radiação.

- Foi assim que a os idiomas se perderam?

- Não só isso, muitos morreram. Grandes etnias ficaram

reduzidas a clãs, alguns com o tamanho de uma família, como

aquele que viu. Outros são maiores e funcionam como micro

sociedades que sobrevivem à custa de tecnologias de

combinações de genes pré-escolhidos em laboratórios

clandestinos. São os clãs superiores. Os inferiores se contentam

com antibióticos que atenuem as infecções disseminadas em seu

próprio meio. São capazes de morrer e matar por eles, pois não

tem em quantidade suficiente para todos. Mas para cada clã que

se extingue, pelo menos dez outros surgem. São tão

sexualizados que já nascem com suas estruturas neurais

ajustadas ao estímulo da libido. Perderam os elementos culturais

reguladores do instinto e procriam em terna idade.

- Isto não acontece com os clãs superiores?

- Sim, com alguns, aqueles cujos membros não optam pela

psicocirurgia. A eles é facultado o direito de se submeterem ao

tratamento.

- É uma espécie de regalia? Quem lhes dá esse direito? Quem

são eles?

- Os membros do conselho da Quarta Ordem. Os Sábios do

Espírito. Há muito tempo houve um sufrágio para eleição da

Ordem. São seres perfeitos que se sucedem à frente de todas as

organizações sociais pela perpetuação de suas réplicas.

- Clones?

- Isto mesmo.

- O que acontece aos outros?

Page 25: A Combinação Zero

25

- Eles têm seu protagonismo nesse equilíbrio.

- E a isto chamam de organização social?

- Conhece outra maneira de dizer?

- Não... É um padrão repetido, mas em um nível de decadência

inumano...

Laira disse pensativa, transitando por pontes de cognição

atemorizantes, nas quais seus próprios passos pareciam

machucar-lhe o estômago, produzindo uma dor que ribombava

nas têmporas, como uma substância amorfa que penetrasse o

manto de uma ostra murcha do mar ausente, e só pudesse ficar

estática e velha, dilatando abortos sucessivos da luz de uma

pérola que não vinha.

- Vamos.

Disse Doc, erguendo-se e estendendo a mão à Laira.

- Podemos ir pelo outro lado? Quero ver a cidade.

Doc assentiu em silêncio, por seus olhos azuis, ela viu

passar uma sombra de desalento.

Caminharam sobre esteiras de lixo e lama. Doc

continuava a lhe segurar a mão, tanto para ajudá-la a se

equilibrar quanto para manter as outras pessoas afastadas.

Alguns trocavam provocações e insultos, dispunham-se nas ruas

como uma turba agitada e violenta, exercendo suas maldades

naturais intrínsecas livremente. Outros incitavam a balburdia,

apreciando a barbaridade como se fosse diversão.

Laira viu bandeiras hasteadas em prédios e casas, todas

brancas com letras, às vezes, símbolos, decorando o centro.

- O que significam essas bandeiras, Doc?

Page 26: A Combinação Zero

26

- É uma demarcação, indicam que a residência está ocupada,

prédios têm mais de uma, ou duas bandeiras, pois às vezes

abrigam mais de um clã. Quando o último membro morre,

qualquer outro clã, o que for mais rápido em assumir a casa, se

torna proprietário dela.

- E aquelas chaminés?

Apontava para um grupo de doze chaminés enegrecidas,

visíveis atrás de um conjunto de construções baixas.

- São fornos crematórios que nunca param de arder.

De repente, uma mulher correu em direção a eles, com

um grupo de pessoas a perseguí-la. Segurava algo por baixo das

vestes maltrapilhas, o que a deixava mais lenta do que os seus

perseguidores. Ao passar por eles, empurrou o que trazia para

Laira enquanto Doc tentava afastá-la. A mulher continuou a

corrida, mas ela foi logo alcançada poucos metros à frente.

Muitas pessoas passaram por eles. Trêmula, Laira olhava o rosto

de uma criança recém nascida, alheia ao tumulto, tranquila como

se dormisse.

Doc quis tirar-lhe a criança para devolvê-la a alguém,

mas Laira resistiu instintivamente, fechando com mais força os

braços ao redor dela. Doc argumentava algo, tentando fazê-la

mover-se para longe. Mas ela não ouvia, olhava para onde

estava a mulher, caída, com dezenas de pessoas a disputarem o

saque das suas carnes.

Laira lançou ao chão a máscara antes que o vômito a

sufocasse, e rápido, alguém a apanhou desaparecendo no meio

do bando barulhento. Doc, erguendo-a nos braços a levou dali.

Em uma rua deserta, pois que todos se concentravam na avenida

do incidente, ele deu-lhe a sua.

Page 27: A Combinação Zero

27

Ela não se lembrava de como tinham chegado ao hospital

ou de como Doc a fez entrar na câmara de descontaminação,

agarrada a criança tão ferozmente como se o que lhe quisessem

tirar fosse um membro seu, enquanto o choro copioso soltava

uma dor de quem já o tivesse perdido.

Aos poucos, Doc conseguiu transpor o delírio histérico.

Gentilmente, tomou a criança em um dos braços e com o outro

abraçou Laira pelos ombros, falando-lhe baixinho um tipo

qualquer de acalanto, o qual sequer julgava-se capaz de

pronunciar, habituado que sempre fora a sedar dores com a

eficiência de medicamentos, mas abalado, e disso tinha

consciência, por aquela condição extrema, diante de um amor

tão cabal, que algum prodígio, por conceito eventual, valorasse

nas relações individuais das criaturas, tonava-se

misericordiosamente opaco em suas insuficiências.

Laira recusou o sedativo que o assistente lhe trouxe.

Ficou deitada de costas na cama estreita do quarto asséptico,

olhando além do teto, revirando imagens na memória, planos

que tinha feito e se visto dentro deles, como se já

completamente realizados. O jardim farto de vegetação exótica

que circundaria a casa de dois pavimentos, reformada para

permitir o máximo de aproveitamento da luz do sol. As horas

felizes que desfrutaria com Fabrice, e mais tarde, com suas

carreiras consolidadas, em companhia dos filhos, uma boa

velhice. Um ciclo natural bem mais alargado e promissor nas

suas regulações e obstáculos, nas suas aflições, encantos e

encantamentos indispensáveis à sua longanimidade, e no qual se

sabia, por mais que girasse, o atributo de girar era a própria

valia. O sentido dessa exposição drástica a um universo

inqualificável assumia a forma de escapismo. Ela se perguntava

se afrontar a si desse modo, conhecer o ponto exato do qual

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28

partira, lhe conservaria a lucidez com a qual utilizaria uma das

opções oferecidas por Doc.

Doc foi vê-la depois de examinar a criança. Ela não o viu

chegar, mas também não se mexeu ao ouvir sua voz.

- Aparentemente, a menina está bem.

- Uma menina... Como a chamaremos?

- Não pensei nisto. Aqui, ela é a paciente de número dois.

- Não tem mais ninguém nesse andar?

- Não.

Laira ficou em silêncio e depois, voltou para ele o rosto cansado.

- Hope. Nós a chamaremos assim. E se posso lhe pedir alguma

coisa; não importa a minha decisão sobre as escolhas que me

deu, não permita que ela suba por chaminés...

- Poderá vê-la amanhã.

- Você cumpre promessas?

- Eu sei dar alternativa.

- Então, faça esta escolha.

- Falaremos amanhã.

- Você vai me deixar?

- Precisa descansar.

- Não quero ficar sozinha agora. Meus pensamentos retornam

ecos.

- Venha, vamos ao consultório.

- O que aquela mulher fez para merecer aquele tipo de punição,

Doc?

- Ela roubou comida do clã. E quando alguém foge à regra geral

se arrisca a ter que dispor da própria vida. Sendo ainda saudável,

serviu de alimento, do contrário, ela e a criança iriam para os

fornos, é a pena capital para quem diminui dos seus pares a

espécie legítima de sobrevivência.

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29

- Então, ela deveria esperar e morrer de fome, tendo uma criança

para alimentar? É nojento e irracional!

- Condena-os? As éticas não dispõem de abundância para se

manifestarem. Vivemos a ética do mínimo, primitiva e essencial.

O que quer dizer que há racionalidade, sim, mas sem os

subterfúgios dos limites incalculáveis e prósperos a serem

superados. Todos já o foram. Não lamente como quem os

amasse de um falso amor, isolado, decomposto aos milhões de

pedaços, como a dificultar o trabalho do amor inteiro, por que

foi essa a conveniência de todos para sobreviverem.

- Ocorremos de lapsos, é isto o que está me dizendo. Foi isto o

que quis me mostrar...

- Não, foi isto o que você quis ver. Pode aceitar ou se condenar

por ter visto que o sentido da vida não é uma especificidade

quântica ou teorias distraídas logo abandonadas por outras não

mais benéficas, porém, mais aceitáveis à adaptação da própria

vida.

- Não aceito esse caminho sem volta, e você não deveria falar

como se aceitasse!

- Laira, nós estamos por aqui a tempo bastante para entender que

todo aprendizado traz consigo no mínimo um trauma. Que para

cada noção contraída muitas outras morrem, e que esse embate,

esse contato com a transformação real é imperioso, sem ele não

há aprendizado. Mas a sabedoria não veio a esse mundo

orgânico divinal porque a humanidade o

concebeu sumariamente assim, unicamente orgânico e dócil.

Porque seria preciso o homem admitir que o que não foi

aprendido também ensinou...

- Há quanto tempo... Há quanto tempo você está aqui?

- Desde que a Quarta Ordem se estabeleceu. Eu sou um clone.

- Seus pais não eram?

- Não. Eles sim foram sábios, praticavam a seu favor uma

ciência mais austera, prorrogarem-se na expectativa de vida

eterna seria para eles um engodo, mas já era uma época em que

a ciência tinha assumido a mesma forma das religiões, mentia,

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matava, fraudava, vendia, usava, enfim, tinha os mesmos

significados dos que a fizeram.

- E o que você espera Doc, uma saída milagrosa?

- Se existir alguma, ela não estará em nós, nem em nenhum

deus, messias ou profeta irado e confortável.

- Onde ela estará?

- É essa informação pura que a Quarta Ordem busca, mesmo

sem muito tempo para encontrar, e sem fugir da dinâmica pré-

estabelecida, o último pedaço de silício tem a mesma gravidade

de uma célula viva.

- Então, vocês já têm a resposta.

- Não é surpreendente o tempo que levamos para ter consciência

dela? Desperdiçamos o tempo como mero fetiche da morte, e a

crueldade está em não morrermos todos inteiramente ao mesmo

tempo.

Laira sentiu, ele também padecia, nas entrelinhas do que

dizia pairava certo desprezo pelo que o qualificava para buscar a

saída, e o que se ocultava naquela indiferença estudada também

era o medo.

- Venha, estamos acordados há quase dois ciclos. Precisamos

descansar.

***

A porta de aço do quarto de Laira não ficava mais

travada. À procura da criança deparou, no final do corredor

oposto à saída do prédio, com uma escada de acesso ao andar de

cima e ao subsolo, pela porta entreaberta, como se alguém

tivesse acabado de passar por ela, vinham vozes, três ou quatro

pessoas conversavam, tendo ao fundo os ruídos desconexos de

uma sinfonia de máquinas para respirar que agora ela

reconhecia. O andar era mais iluminado, e por trás do grupo de

assistentes que conversava, através de uma espécie de vitrine

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sobre meia parede, ela contou pelo menos trinta pessoas inertes,

com tubos e agulhas a lhes penetrarem. Seu sexto sentido alertou

para que não prosseguisse, e meio escondida na sombra do vão

da escada, tentou compreender o que era falado, inutilmente. Já

estava a ponto de retornar quando teve a atenção despertada por

um homem, dentre aqueles pacientes, que se parecia com o

piloto árabe daquela viagem fatídica, e arriscando-se a ser

descoberta avançou mais no interior do andar. Ao mesmo tempo

em que confirmava sua suspeita, levou a mão à boca,

imediatamente, para abafar a exclamação de susto.

“Era ele!”

Então, Doc mentira deliberadamente. Mas, por quê?

De volta ao quarto, decidiu esperar por alguém que a

levasse até a criança. Esse alguém foi o próprio Doc.

Hope estava bem acomodada, recebendo a mamadeira de

uma mulher jovem, que Laira não tinha conhecido antes, e como

os outros, de aspecto alheado.

A boca pequena e rosada agarrava o bico da mamadeira

com pressa, as mãos cerradas, como imprescindível à

concentração. Era uma criança bonita, de cabelos castanhos

finos e encaracolados, porém fraca, a pele enrugada sugeria a

aflição da fome.

Antes de sair, a mulher entregou a criança a Laira para

que a segurasse.

- Doc... Você vai ficar com ela?

- Não posso, Laira.

- Então, tudo o que fizemos foi para nada?

- Ela vai ficar aqui o tempo que for preciso, mas como paciente.

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- Você não tem uma esposa, uma família que a receba?

- Não.

- O que mais lhe falta? Piedade... Humanidade?

- Essa criança, aqui, é uma concessão que eu faço à sua piedade

e humanidade. A Ordem não sabe de você ou dela.

- Se é assim, então são concessões que faz a si mesmo. Por quê?

- Não sei, talvez porque tudo em você vive de uma vida

diferente da que eu conheço.

- Você corre algum risco? Pode ser mandado fazer conosco

alguma coisa que não gostaria de fazer, é isso? A essa altura,

algum dos seus assistentes já o terá delatado. Então, faça o que

tem que fazer e acabe logo com isso!

- Não, Laira, não será tão fácil como quer que seja. E quanto aos

assistentes, não há com o que se preocupar, seus cérebros são

programados, não fazem nada que eu não ordene.

- Lobotomia! Você fez isso com eles?

- É necessário. Não temos variedades de medicamentos. Seus

afetos interfeririam no que precisamos fazer aqui.

- Meu Deus! É monstruoso!

- Alivie sua angústia. Eles são voluntários, só depois a Ordem

consente a cirurgia.

- O que mais você vai me deixar saber, Doc? Vai me dizer de

onde vem tudo isso que mantém o hospital funcionando? Vai me

dizer se vai me transformar num desses zumbis ou se me reserva

para outra finalidade?

A criança, que tinha começado a cochilar, embalada no

calor do corpo de Laira, emitiu pequenos grunhidos de

reclamação, e ela se obrigou a abaixar a voz.

- Você pode mudar para cá, se quiser, ficará mais perto da

menina.

- Hope! O nome dela é Hope!

- Mais tarde, vamos a um lugar, então, poderá fazer as perguntas

que quiser.

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Ele saiu sem esperar resposta. A impassibilidade dele

exasperava-a fortemente.

***

O caminho do hospital até a casa térrea, no cerro

circulado em sua meia altura por uma alta muralha de pedras

vulcânicas, guardava uma distância considerável, vencida com o

auxílio de lanternas, em cujos fachos, pequenos insetos

realizavam uma dança hipnótica, resistindo ao maltrato dos

fumos que nunca abandonavam aquela terra de

impossibilidades.

O sal das gotas escorrendo pelos cabelos para dentro dos

olhos de Laira incomodava terrivelmente, mas Doc tinha sido

categórico ao alertá-la para que não removesse a máscara sob

nenhuma condição.

- Doc!

A voz baixa soava como um silvo. Um homem saiu da

escuridão à frente deles, se colocando ao alcance dos círculos de

luz, e mais três homens o acompanharam, eram agora sete

figuras fantasmagóricas paradas na subida do morro. Pensando

se tratar de um ataque, Laira já se preparava para correr quando

Doc a segurou por um dos braços.

- Está tudo bem!

Em não mais de dez frases, trocadas entre Doc e o

homem que não falava pela boca, mas por uma abertura na

garganta, a conversa foi encerrada e os homens se foram.

- Quem são eles?

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- São informantes. Vivem entre os rebeldes.

- Porque vocês precisam de espiões?

Doc continuou a andar, obrigando Laira e o assistente a segui-lo.

- Existe uma corrente religiosa que prega que o que fazemos

aqui é uma aberração. Essas pessoas vivem para tentar e

conseguir destruir a Ordem. Sua moralidade em tudo é

semelhante a nossa, à exceção das religiões, as quais nós

abolimos. São charlatães, mercadores hipócritas, produzem

doenças em laboratórios, ameaçam e usam esses produtos para

conquistarem uma superioridade ideológica na qual eles são os

senhores da morte, e onde não haveria compensação se

falhassem para com as determinações do seu líder espiritual, que

diz receber mensagens telepáticas diretamente do próprio deus,

e acredita que recebe. As pessoas lhes dão tudo o que podem,

inclusive, seus próprios órgãos e caso sejam saudáveis, são

aceitos como sacrifício de lealdade. Essas pessoas recebem o

título de mártires do amor de deus, seus nomes são grafados nos

muros, pelo punho do líder, o que para eles é uma honraria,

nenhum deles consegue se expressar na escrita, falam, mas não

lêem.

- Comparativamente, os métodos de despersonalização da

pessoa, praticados pela sua Ordem tem mais moral, não é?

- A sua crítica é pertinente, mas lembre-se, são duas motivações

distintas, a vida e a morte. De qual delas você desejaria ser

mártir?

- Quando a única alternativa é a morte, ao menos, que haja um

pretexto com mais esperança do que ela.

Doc estacou de repente e a segurou com violência pelos

ombros, quase a sacudindo.

- Não use a palavra pretexto nunca mais comigo! Uma mulher

devorada na rua por tentar salvar a filha não é um pretexto! A

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filha dela não é um pretexto. Um homem com um câncer a

lhe corroer a voz, que se expõe e à sua família, ao risco de uma

morte mais lenta e dolorosa do que a do próprio câncer, por

acreditar na vida real que virá, embora não vá poder usufruí-la,

não é um pretexto!

- Desculpe, Doc...

Foram poucos instantes de zanga, mas neles, Laira viu a

dor gigantesca que era aquele homem magro, de pensamentos

cristalinos e atitudes resolutas. Ele era tão frágil como quem

nunca houvesse se permitido um sonho. Doc a soltou, um tanto

constrangido por ter deixado a cólera apanhá-lo desprevenido,

desculpou-se também, e além da sinceridade com que o fez,

Laira percebeu fadiga.

Com um pouco mais de marcha, chegaram ao portão de

ferro do muro de pedras. No interior do terreno, passaram por

uma dezena de homens armados. O casarão inteiro sustentava-se

sobre colunas que se uniam no topo através de amplos e

delicados arcos mouriscos. Um luxo artístico antigo e decadente

originalmente belo, que tornava impreterivelmente mais

decadente e feia a paisagem urbana ao redor. Doc abriu a porta e

deixou que Laira entrasse primeiro, então ela teve o impacto da

música suave que os acompanhou por todo o caminho, mas

perdida na distração dos seus sentidos, e teve também a

consciência de pelo menos cem pares de olhos postos sobre ela.

Um rapazinho que pelas contas de Laira não deveria ter

mais de dezesseis ou dezessete anos, deslocou-se de um dos

grupos dos vários que conversavam baixinho e se dirigiu até

eles, cumprimentou Doc com uma voz doce, e para Laira, olhou

longamente, depois, pousou as duas mãos de cada lado de sua

cabeça e a abraçou ternamente. O que ele não disse, mostrou

durante aquele abraço, em imagens límpidas, milhões de fótons

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impregnando, nações, mares, montanhas, animais, campos

verdes, florestas, pessoas, conflitos, guerras, vida e morte, como

uma estampa holográfica em fundo escuro. Ele era velho a

tempo demais para ter-se descoberto e apartado dos seus fatos e

suas éticas. Existira e desistira sem procedências. Não no

mesmo nível de uma placidez ofuscada, sem a propriedade de

suas etapas, sem qualquer outra sucessão além da queda

seguinte. Perecera e viera ao mundo para viver, repetidas vezes,

um florescimento ainda mais violento, o que versava em ser dele

e dos outros, a essência mais depurada de suas fugacidades, e

para as quais jamais reivindicou qualquer negação, e em cujos

filtros de conhecimento, restaram matérias primordiais das quais

são feitas todas as vidas.

Laira voltou a si, a mente extenuada, quando Doc

finalmente os apresentou.

- Este é Átis, o Presidente.

Mas, Átis já os deixava, voltando para os convidados,

africanos, oceânicos, europeus, americanos, asiáticos, e outros

que Laira não soube distinguir, de todas as idades, mas nem

todos vivazes e salutares com a intensidade do adolescente.

- Se não tocá-los eles não a tocarão, suas consciências poderiam

matá-la.

- O que são eles? Ídolos esotéricos? Semideuses paranormais?

- São os remanescentes das suas hipóteses.

- O seu presidente é um adolescente... É o seu maior

representante do poder?

- O poder se dispersou nas suas interdependências, não existe se

não houver sobre quem ele possa ser exercido, essa relação

frágil não existe mais. No entanto, restaram os hábitos, eles

incidem sobre os parcos recursos e abrigos disponíveis. Todos

que aqui estão, em seus nichos, são mera representatividade da

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resolução do caos, mas sem ter que lidar com a política, apenas

com a racionalidade, que neles, é equânime. Foi preciso

aprender tudo sem se contrapor ao poder falível da coletividade

obtusa, e quando este finalmente desapareceu, não foi o fim do

mundo, antes, o começo da verdade de agora.

- Essa verdade inclui você me dizer por que o piloto do jato está

lá no hospital?

- Ele é reserva de pele, ossos e órgãos, como os outros que estão

lá.

- Você não se cansa de me horrorizar, não é?

- Ele foi encontrado ainda vivo. Ciclos depois, quando eu lhe

disse que todos estavam mortos, foi verdade. Você teria muito

tempo para se afrontar com a sua própria mortalidade. Agora,

ela lhe parece mais atrativa?

- Não.

- Só você sabe a chave da saída. Sobreviva e nós

sobreviveremos em você.

Dito isto, Doc a levou para sentar a uma das mesas, onde

o jantar, um caldo sem frivolidades ao paladar e objetivo à fome,

estava sendo servido, depois discutiram sobre a informação

passada pelo homem que os abordou no caminho.

Os rebeldes planejavam um ataque biológico à ordem, ele só não

sabia quando o atentado se daria ou qual agente seria usado,

sabia apenas que seria para breve.

***

Os ciclos seguintes foram de intenso trabalho. Entre os

cuidados à Hope e a desocupação do prédio, Laira descobriu o

elevador, por trás da estante do consultório, que levava muitos

metros abaixo do solo, a um ambiente que reproduzia o que

havia na superfície em proporções menores, contíguo ao

necrotério, a um depósito pouco abastecido de insumos e

medicamentos, e em único pavimento, alcançado através de um

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trecho de duto que mal comportava uma pessoa de pé, e se

abria através de uma porta escotilha de aço maciço. O duto se

estendia até a fortaleza que os membros da ordem, dos quais

apenas Átis havia permanecido, utilizavam para as reuniões, e

seguia se bifurcando em uma ramificação de calibre mais

espaçoso.

A estratégia adotada para a batalha que se travaria seria

muito arriscada. Cadáveres, e clones voluntários seriam usados

para dar a impressão de que o hospital mantinha suas atividades,

depois do ataque, eles identificariam o agente e retomariam as

rotinas, dando a entender aos rebeldes que possuíam drogas

capazes de promover uma barreira contra a contaminação.

Contavam que fosse uma operação planejada com a rapidez da

covardia, e os rebeldes não se apercebessem dos exaustores e

filtros de ar desligados. Os reservatórios e linhas de

fornecimento de água receberiam reforço na vigilância, apesar

de os membros da Ordem considerarem mínima a possibilidade

de os rebeldes a quererem contaminar, eles a roubariam.

- Átis, a Ordem poderia atacar primeiro, não poderia?

- Nossa fundamentação é a vida, Laira, e não a morte, nós não

adulteramos nada para a finalidade dela. Você sente medo, eu

também, e afirmo que os rebeldes têm medo de não encontrarem

o céu prometido. Usarmos do mesmo princípio que os move

seria decretar a insolvência de tudo pelo qual resistimos.

- São pesos insuportáveis.

- Os antigos os carregaram mais pesados, pois não os percebiam

se acumulando nos séculos de filosofia e religião apartadas dos

processos vitais da Terra. Em um primeiro momento, poderá

perdoá-los, baseada no que eles percebiam do seu meio próximo

tão pouco exuberante de vida, no qual havia quase nada para o

pensamento cobrir. Em um segundo momento pode condená-los

por cegarem, convenientemente, à percepção acrescida de uma

terra espoliada e com a crosta em alvoroço. E em um terceiro

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momento, este de espera no qual se encontra, pode esquecer o

perdão e a condenação, eles já não têm mais importância.

- Você fala exatamente igual à Doc e eu desejaria compreender e

aceitar tudo isto como vocês.

- Não estranhe se eu lhe disser que tudo está dentro de você,

quanto a Doc, ele também fala como quem a ama. E eu jogaria

fora a hélice do meu DNA se você negasse honestamente

que existe reciprocidade. É acerca do que lhe diz respeito que o

homem encontra os maiores obstáculos para entender os

próprios sinais.

- Nesse mundo não cabe amor, Átis.

- Engana-se, Laira, apenas urge que ele seja grande para além

dos fatores limítrofes dos valores apreendidos e dos hormônios,

como aqueles, estes últimos são portas que abrem outras até a

última se fechar, e para transitar na matéria e na essência com a

pureza de uma fera perseguida, há que se saber qual porta se

fechou, então, ao final, pode-se contemplar o amor intocado.

Será ele toda substância, essência e lucidez.

- Uma fera perseguida não olha para trás. Fale por si, Átis.

Substância e essência são sensoriais, necessitam de

caracterização palpável.

- Então, aproveite para tocá-los sem as vicissitudes dos sentidos

enganados, descobrirá que as consequências não atingirão o que

não foi ainda descoberto, e por isso, o que está oculto, bom ou

mau, só poderá ser modificado quando emergir à luz do

conhecimento, e que o universo tem segredos feitos para

permanecerem assim, segredos resguardados das avarezas e

paixões humanas.

- Até quando esses segredos bastarão tão estáticos e

indulgentes?

- Até quando o homem se aproprie de sua fragilidade e pare de

andar em círculos, matando no caminho o que não

compreende, meramente por não desejar assimilar. O que pode

ser indefinidamente.

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- Mas, era do amor que suspeita existir entre eu e Doc que você

falava...

- O tempo inteiro eu falei tão somente de amor. Tudo o que não

nasce no amor da Terra já cresce escombros.

***

Ao final de vinte e seis ciclos, Laira tenazmente se

habituou ao pequeno reservado que dividia com Hope, dormiam

na mesma cama de campanha, e quando sabia que o leite

racionado não atendia à sua satisfação, oferecia-lhe o seio. No

início ela protestava até a exaustão, ludibriada, e com o tempo,

não mais. Assim, Doc as encontrou ao abrir o cortinado de

plástico que fechava suas intimidades. Laira, o tronco nu,

alimentava Hope.

Ele se aproximou e pousou a mão suave e firmemente no

ventre de Laira, e sobre ela a fronte. Ficou nessa posição,

imóvel, ajoelhado sobre ela, apreciando o vestígio

nervoso aninhado no escuro do útero, como se o visse, e quando

finalmente voltou os olhos azuis ao encontro dos olhos dela

havia toda uma tradução de certeza.

- Tenho até receio de fazer algo que o traga de volta a realidade

e leve embora esse riso.

- Nunca estivemos fora dela.

Entregando a menina a Doc, Laira tratou de se recompor,

de costas para ele.

- Tem algo errado comigo, Doc.

- Não, não tem. Você está grávida.

- Você não costuma fazer piadas... Eu e Fabrice não queríamos

filhos agora, sempre me preveni... Para com isso...

- Quem é Fabrice?

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- O homem com quem eu me casaria. Esqueça! O que está

acontecendo aqui?

- Você foi inseminada, dentro de você há uma seleção de genes

dos membros da Ordem.

Laira o encarou, estupefata, então se lembrou da

sensação de vácuo que teve após a visita ao necrotério.

- Por que, Doc? Por que você me usou desse jeito?

- O nosso tempo se esgotava. Desculpe-me...

- Pede desculpas como quem tivesse tomado algo emprestado

sem pedir e depois devolvesse estragado. Eu não sou um dos

seus assistentes, clones ou cadáveres, Doc!

- Eu jamais deixaria que fosse qualquer dessas coisas. Você não

reparou que ninguém desceu aqui nestes últimos dois ciclos? O

ataque já aconteceu.

- Todos lá em cima estão mortos?

- Eu e Átis estamos nos preparando para fazer as confirmações e

caso não voltemos, pegue aquela roupa, ela é hermética, o capuz

é conectado com um cilindro de oxigênio, e vá por aquele túnel.

Doc indicou um armário sem portas, onde se via apenas

um conjunto do equipamento e o seguimento mais largo do

túnel.

- Quanto à Hope... Olhe...

Doc devolveu a menina para Laira e usando o lençol da

cama, prendeu-a ao corpo dela.

- Depois, vista a roupa. Ela ficará bem enquanto você estiver

também.

- Doc, tem partes de você aqui dentro?

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Laira levou uma mão ao ventre e Doc assentiu. Então ela

o abraçou tendo Hope entre eles, a ressonar confiantemente.

- Quem é Fabrice?

- Agora já não sei mais.

- O reconhecerá quando estiverem face a face novamente.

- Essa positividade me é estranha em você.

- Você gesta três pessoas que poderão mudar os desígnios do

mundo, e deverá ensiná-las o que aprendeu conosco. Assegure-

se de que Fabrice poderá amá-las sem restrições e protegê-las.

- Como você faz comigo?

- Como eu amo você.

Quando Laira estava pronta para verbalizar o mesmo

sentimento, Doc a silenciou encostando os lábios nos dela.

- Eu sei.

Átis vinha entrando com todo o cuidado em se fazer

notar e comunicou-lhes que subiria sozinho, naquele momento,

pois acreditava que seja lá o que fosse que os rebeldes tivessem

feito, a falta de movimento no hospital exporia possíveis

saqueadores que poderiam se transformar em disseminadores de

uma contaminação sem precedentes. Doc deveria ficar e

aguardá-lo, somente ele saberia o que fazer depois.

Já na porta do elevador, Átis deparou com todas as

superfícies do consultório cobertas por um líquido ralo e

gelatinoso que em alguns lugares começava a ressecar

formando cascas. Nas paredes do corredor, apresentava-se

completamente seco, manchando as paredes brancas de

filetes pardacentos. Os quartos e a unidade de terapia intensiva,

onde cadáveres embalsamados faziam às vezes de pacientes, os

móveis e equipamentos, o chão das escadarias, tudo havia sido

aspergido, e os clones tinham sido assassinados.

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Assim, ele só pode supor o que havia se passado. A invasão

foi rápida. Apanhados de surpresa, os voluntários foram

acuados, alguns chegaram a ser caçados, havia corpos nos

quartos, no final do corredor e nas escadas. Todo o prédio estava

em silêncio e o odor da morte impregnava o ar abafado e

pestilento.

Ele dedicou-se a tarefa de remover os corpos para o

necrotério, após o que, já cansado recolheu amostras do líquido

para que Doc analisasse. Só então voltou ao subsolo, tomando o

cuidado de se certificar que realizara todos os procedimentos de

descontaminação.

A identificação do agente consumiu mais tempo do que

Doc havia previsto. Não havia vírus nem bactérias de relevância

que justificassem a ousadia e a carnificina promovida,

entretanto, sabia que os rebeldes não se utilizavam do hábito

de blefar, foi então que com a ajuda do adolescente, quase ao

fim do décimo oitavo ciclo desde o atentado, Doc descobriu a

proteína.

- O que é? - Perguntou Átis.

- Kuru!

- Eles se sofisticaram.

- Sim. Fatal, lenta e dolorosa.

- O que faremos?

- Eles conseguiram inviabilizar o hospital, precisamos queimá-lo

o mais depressa possível. Depois, voltaremos para a fortaleza,

de lá cruzaremos o mar e nos reuniremos aos outros.

- Não confia em que descobriremos a cura?

- Não aqui e nem com a rapidez que necessitamos.

***

Do ponto mais ao oriente da cidade, o hospital se

assemelhava a uma tocha, cujas línguas de fogo trincavam

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o escuro ao redor e o movimento da fumaça se condensava na

ausência de vento, oferecendo um espetáculo funesto para o

povo que não tardou a encher as ruas, e que o preservava no

ideário, sacralizado feito um templo, de onde não viessem

maravilhas personalizadas para atenuar as penúrias que o

assolava, mas no qual, a concretude do propósito redimia as suas

desesperanças.

Muito vagarosamente, ondas de calor começaram a

chegar ao subsolo, enquanto Doc, Laira e Átis se preparavam

para partir, deixando para trás os pacientes comatosos da reserva

estratégica. Nesse ínterim, os rebeldes finalizavam o ardil, um

grupo seguia pelo túnel que ligava o hospital à fortaleza, o

objetivo era encurralar e capturar o maior número possível de

membros da Ordem.

Átis foi o primeiro a perceber que eles não estavam

sozinhos. A única alternativa era retornar para as instalações do

subsolo que já quase se encontrava em ebulição. Assim fizeram

e travaram a porta escotilha.

Doc retirou de entre a pouca bagagem que eles levavam

a roupa que tinha instruído Laira a usar e passou a ajudá-la a se

vestir. Hope estava visivelmente inquieta, e nem quando Átis a

acomodou o mais confortável possível, nas dobras e nós do pano

que a prenderam ao corpo de Laira ela sossegou.

Em frente à boca do túnel maior, Doc recomendou:

- Não importa o que você ouça ou veja, siga à diante. Não deixe

que a peguem.

- Onde ele vai dar?

- Na saída.

- Vocês vêm?

- Sim.

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- É uma promessa?

- É uma possibilidade.

Laira retirou do pescoço uma delicada corrente de prata,

na qual, a aliança resgatada da sua companheira de viagem

servia de pingente e a entregou a Doc, esse gesto o fez sofrer,

pois se tratava de um compromisso tardio e inconcretizável.

Mesmo assim, havia um riso em seus olhos quando ele passou a

corrente pela própria cabeça.

- Agora, vá!

Ela o abraçou uma vez mais e se despediu de Átis.

- Vá!

Laira procurava compassar a caminhada e controlar a

ansiedade cada vez que o facho da lanterna não iluminava a

porta de saída. Ela se mantinha consciente de que dentro da

roupa eram duas pessoas a respirarem do mesmo cilindro, e se

se apavorasse, o oxigênio talvez não fosse suficiente para

quando chegasse ao exterior. Mas então, ouviu passos além dos

seus e começou a correr.

Finalmente, chegou à porta de saída e a mesma estava

trancada. De nada adiantou forçá-la, pois ela não se mexeu um

único milímetro. Ao lado, Laira viu o mesmo mecanismo de

travamento e abertura por código de quatro dígitos das portas do

hospital. Em desespero, introduziu várias combinações que não

funcionaram. Deixou-se cair no chão, agoniada, ouvindo os

passos dos seus perseguidores cada vez mais perto. De repente,

ergueu-se e pôs-se a andar de um lado para o outro.

- Não. Não vai ser desse jeito, não é Hope? Não. Não vai ser...

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Um, dois, três...

Pense!...

Seis, sete, oito.

Pense!

Dez, Um, dois...

"Eles falam, mas não lêem"...

Sete, oito, nove...

Quem colocou ali aquela porta nunca usada antes obedecia a

ordens...

Dois, três, quatro...

"O que não foi aprendido também ensinou"...

Oito, nove, dez...

Com mão trêmula ela introduziu o número zero nas casas

digitais e ouviu estalido das travas se movendo. Quando forçou

mais uma vez a porta, esta se abriu.

***

Tingido em púrpura e cobre do pôr do sol, o mar, soberbo,

exalava uma brisa morna a desfazer os cabelos das quatro

crianças que brincavam e corriam na areia da praia, sob o olhar

cuidadoso de Laira e um céu de nuvens esparsas e finas.

Fim

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Tudo o que não nasce no amor da Terra já cresce escombros.