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AMAZÔNIA > O céu escureceu anunciando chuva na flo- resta e entre todos os 43 integrantes do grupo de pesquisadores pôde-se notar uma sensação coletiva de alívio. Se chovesse mesmo, estaria garantida a água para se beber e até para tomar banho, o que não era possível havia dias. Quando finalmente a água começou a cair, o grupo se entregou efusivamente a um merecido banho de chuva. Essa cena pode parecer estranha, principalmente por ter acontecido no coração do Pará, no meio da maior bacia fluvial do planeta, a Amazônica. Mas até lá falta água. Pelo menos naquela região do Parque Nacional da Serra do Pardo, uma Unidade de Con- servação (UC) incrustada em uma das áreas mais preservadas do Brasil, a chamada Terra do Meio. São 25 milhões de hectares de floresta conservada, uma área equivalente a todo o Estado de São Paulo. Esse foi o destino da terceira Expedição Científica da Terra do Meio. Na Base 1, um dos três acampamentos que serviram de abrigo ao grupo, o igarapé que deveria for- necer água estava seco, fruto do atraso da temporada de chuva na Amazônia. Mas essa é apenas mais uma das dificuldades que os pesquisadores encontram em suas expedições àquelas terras inexploradas do interior da floresta, distantes dos grandes rios. A expedição é parte de um projeto que preten- de conhecer melhor as peculiaridades biológicas da região (veja quadro na página 33) a partir do mapeamento das espécies vegetais e dos animais vertebrados. Realizado em dez dias, o trabalho de campo dos pesquisadores – biólogos e analistas am- bientais do ICMBio e da WWF-Brasil – foi realizado em três bases montadas em pontos estratégicos por causa de suas peculiaridades vegetais e geológicas. A conquista da Terra do Meio EM EXPEDIÇÃO OUSADA, ESPECIALISTAS PESQUISAM A FLORA E A FAUNA DE UMA DAS REGIÕES MAIS DESCONHECIDAS DA AMAZÔNIA TEXTO NATÁLIA MARTINO FOTOS WWF-BRASIL/ADRIANO GAMBARINI A logística para se pesquisar na Terra do Meio é complexa, envolvendo aviões monomotores e helicópteros HORIZONTE GEOGRÁFICO 30 HORIZONTE GEOGRÁFICO 31 AMAZÔNIA >

A conquista da Terra do Meio

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EM EXPEDIÇÃO OUSADA, ESPECIALISTAS PESQUISAM A FLORA E A FAUNA DE UMA DAS REGIÕES MAIS DESCONHECIDAS DA AMAZÔNIA

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O céu escureceu anunciando chuva na flo-resta e entre todos os 43 integrantes do grupo de pesquisadores pôde-se notar uma sensação coletiva de alívio. Se chovesse mesmo, estaria garantida a água para se

beber e até para tomar banho, o que não era possível havia dias. Quando finalmente a água começou a cair, o grupo se entregou efusivamente a um merecido banho de chuva.

Essa cena pode parecer estranha, principalmente por ter acontecido no coração do Pará, no meio da maior bacia fluvial do planeta, a Amazônica. Mas até lá falta água. Pelo menos naquela região do Parque Nacional da Serra do Pardo, uma Unidade de Con-servação (UC) incrustada em uma das áreas mais preservadas do Brasil, a chamada Terra do Meio. São 25 milhões de hectares de floresta conservada, uma área equivalente a todo o Estado de São Paulo. Esse foi o destino da terceira Expedição Científica da Terra do Meio. Na Base 1, um dos três acampamentos que serviram de abrigo ao grupo, o igarapé que deveria for-necer água estava seco, fruto do atraso da temporada de chuva na Amazônia. Mas essa é apenas mais uma das dificuldades que os pesquisadores encontram em suas expedições àquelas terras inexploradas do interior da floresta, distantes dos grandes rios.

A expedição é parte de um projeto que preten-de conhecer melhor as peculiaridades biológicas da região (veja quadro na página 33) a partir do mapeamento das espécies vegetais e dos animais vertebrados. Realizado em dez dias, o trabalho de campo dos pesquisadores – biólogos e analistas am-bientais do ICMBio e da WWF-Brasil – foi realizado em três bases montadas em pontos estratégicos por causa de suas peculiaridades vegetais e geológicas.

A conquista da Terra do MeioEM EXPEDIÇÃO OUSADA, ESPECIALISTAS PESQUISAM A FLORA E A FAUNA DE UMA DAS REGIÕES MAIS DESCONHECIDAS DA AMAZÔNIATEXTO NATÁLIA MARTINO FOTOS WWF-BRASIL/ADRIANO GAMBARINI

A logística para se pesquisar na Terra do Meio é complexa, envolvendo aviões monomotores e helicópteros

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São locais remotos em que o conforto individual resumia-se ao que cada um trazia dentro da mochila – equipamentos essenciais como rede, mosquiteiro, saco de dormir e muito repelente. E se a chuva foi um momento de alívio, também foi de tensão. Afinal, com ela veio também a preocupação com o possível atraso em mais um dia do cronograma da expedição, já que o heli-cóptero que transportaria a equipe para a Base 2 não poderia voar com o tempo ruim.

É necessária uma logística complexa para viabilizar uma expedição científica como essa na remota Terra do Meio. Delimitada pelo rio Xingu, pela BR 163 (rodovia que liga Cuiabá a Santarém) e pela Transamazônica, o acesso ao seu interior envolve aviões monomotores e helicópteros. A comunicação só é possível com aparelhos telefô-nicos com conexão via satélite, disponível apenas para emergências. A cidade mais próxima é São Félix do Xingu, ligada por estradas apenas aos limites do Parque da Serra do Pardo, longe das bases de pesquisa. Assim, às vezes, é necessário muita criatividade para conseguir superar as di-ficuldades e levar a cabo as pesquisas propostas.

Foi o que fez o biólogo Jansen Zuanon. Com ar de Indiana Jones tropical, usando um incon-fundível chapéu para se proteger do sol, Zuanon estava, no primeiro dia de atividade, sem suas redes para coletar peixes, essenciais para a pes-quisa de ictiofauna. Um imprevisto gerado por um defeito do helicóptero, que interrompeu o transporte de parte da equipe e do equipamento. Mas, juntamente com os colegas Janice Cunha e Gustavo Gutembergue, improvisou as redes com uma touca de cozinheiro e um forro de agasalho. Coletaram, nesse dia, 12 espécies de peixes nas pequenas poças d’água ao redor do acampamento, resquícios do igarapé.

Nas trilhas da AmazôniaA coleta de animais é o primeiro passo para

se conhecer as espécies da região e dar embasa-mento para a criação de um plano de manejo. A dificuldade logística para se chegar ali faz com que a expedição seja indispensável para essa tarefa. Os integrantes do grupo, liderados por Roberto Antonelli Filho, coordenador científico do trabalho, foram, provavelmente, os primeiros

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SÃO SEBASTIÃO

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A única maneira de se conhecer uma região intocada da Floresta Amazônica é levando pesquisadores até ela. Trata-se de uma operação cara que envolve deslocamentos a partir de diversos pontos do país e, para que isso seja viabilizado, é preciso contar com parcerias. É o que tem acontecido com as expedições na Terra do Meio: trata-se de uma parceria entre o órgão governamental ICMBio e a ONG WWF-Brasil. A primeira expedição ocorreu em 2007, na porção sul da Floresta Nacional de Altamira. Dois anos depois, em 2009, a segunda expedição levou os pesquisadores para a região norte da mesma Unidade de Conservação. Em 2010, foi a vez do

Parque Nacional da Serra do Pardo. Ainda falta uma expedição para completar o ciclo de estudos.O apoio a esse trabalho é uma das estratégias de conservação do WWF-Brasil para coletar dados sobre a importância ecológica, a biodiversidade e a situação social de áreas prioritárias. Essas informações servem de apoio aos órgãos governamentais responsáveis pela criação e implementação de Unidades de Conservação e desenvolvimento de planos de manejo das áreas. Um esforço sem o qual não seria possível conhecer efetivamente os 25 milhões de hectares da Terra do Meio, uma área equivalente à do Estado de São Paulo localizada entre os rios Xingu e Tapajós.

Pesquisadores na Terra do Meio

PARÁ

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Enquando isso, Frederico Gemésio e Alan Nilo da Costa saem do acampamento entre gargalhadas produzidas por uma amizade que já dura anos, mas logo se calam e se concentram em busca de mamíferos. Manter o silêncio, pisar com cuidado para não fazer barulho excessivo e usar roupas de cores discretas, para não chamar muita atenção na mata, são algumas das recomendações para quem pretende acompanhá-los em um dia de trabalho. Debaixo do sol escaldante que domina o cenário, os jovens pesquisadores andam por horas observando sinais que passariam despercebidos pela maioria das pessoas. São pegadas, buracos, arranhões e fezes que, devidamente analisa-dos – observados, medidos e até cheirados – se transformam em evidências sobre a presença de vários grandes mamíferos – como capivaras, cachorros-do-mato e tatus. Um dos destaques foi o tatu-canastra, espécie rara e pouco conhecida: “Em sete anos participando de expedições, essa é a segunda vez que encontro a espécie”, explica Gemésio. O ponto alto do trabalho dos dois, en-

Os bastidores da expediçãoPara montar a estrutura de madeira que abrigou os pesquisadores foi preciso um intenso esforço de logística, executado em grande parte por ribeirinhos moradores da região. Primeiro, tirar árvores e tocos para abrir uma área para o acampamento e para o pouso do helicóptero. Os troncos derrubados serviam para montar a estrutura que deveria receber a lona sob a qual os expedicionários montariam suas redes. Depois, era necessário abrir trilhas para trabalho dos pesquisadores. Tudo isso demandou 12 dias de trabalho prévio para que tudo ficasse pronto para receber a expedição. Também foi importante o trabalho dos bombeiros

George de Abreu e Francisco Gomes, que garantiam a segurança do grupo, atuando com eficiência quando, por exemplo, o botânico Antônio Sérgio da Silva quebrou o pé em uma das trilhas e precisou ser resgatado do local. Isso sem contar o apoio dos cozinheiros Neide Xavier e Vanilton Magalhães, que preparavam as refeições em um fogão improvisado com pedras, barro e carvão.

homens brancos a pisar naquele santuário natu-ral. Para completar a lacuna de conhecimento, especialistas em ictiofauna (peixes), mastofauna (mamíferos), herpetofauna (répteis e anfíbios), avifauna (pássaros) e botânica percorriam todos os dias as trilhas demarcadas pelos técnicos da logística durante a montagem das bases (veja quadro abaixo).

Dante Buzetti, responsável pela pesquisa de avifauna (pássaros), sai sozinho pelas trilhas para ouvir com clareza o canto dos pássaros. Em mais de 20 anos de carreira, ele gravou mais de 1.300 cantos de aves. Hoje, identifica espécies pelo som que emitem. “O difícil não é conhecer o canto do pássaro e sim seu repertório”, diz o pesquisador, explicando que alguns têm até sete ou oito vocalizações diferentes, cada qual para uma situação, como caça ou reprodução. Nas raras vezes em que tem dúvida, grava o canto para tentar identificá-lo posteriormente. Caso se trate de alguma espécie ainda não descrita, procura capturá-la para futura descrição.

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Jansen Zuanon (acima) e seus colegas Janice Cunha e Gustavo Gutembergue (ao lado) se embrenhavam pelas trilhas em busca de rios maiores para coletar peixes. Andavam rápido, ansiosos para encontrar o habitat dos animais que pesquisam com paixão. A vantagem é que, uma vez lá, era possível aliviar um pouco do calor

Piranha Arraia reticulada

Ictiofauna

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Ouvidos atentos, Dante Buzetti (acima) saía mata adentro escutando os cantos dos pássaros, que, indecifráveis para ouvidos leigos, diziam a ele as espécies que estavam por ali. De volta ao acampamento, trazia consigo algumas espécies que Roberto Antonelli Filho (ao lado), coordenador científico da expedição, preparava para enviar para o acervo do Museu Paraense Emílio Goeldi

Avifauna

Surucuá-de-barriga-vermelha

Talha-marHORIZONTE GEOGRÁFICO36

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tretanto, foi o registro de garras de onça-pintada, capaz de provocar uma mistura de medo e fascínio nos integrantes do grupo. Entre eles, houve quem garantisse ter ouvido onças rondando o acampa-mento à noite.

Grupos de macaco-aranha também encantaram os integrantes da expedição. Nas copas das árvores mais altas, eles observavam a movimentação estra-nha dos pesquisadores e, vez ou outra, jogavam ga-lhos e frutos nos intrusos. Mas, além dos mamíferos e pássaros, que sempre despertam simpatia, a maior floresta tropical do mundo abriga grupos de animais menos populares, porém não menos importantes.

É o caso dos répteis e dos anfíbios. Animais sensíveis, eles costumam servir como indicadores ambientais: a presença de algumas espécies pode significar que o ambiente está em bom estado de conservação. Assim, o mapeamento desse grupo de animais da Terra do Meio é essencial – função que coube à dupla de especialistas Crisalda Lima e Raimundo Silva, ambos apaixonados por bichos que geralmente causam repulsa nas pessoas. “Anfíbios são espetaculares. Além de bonitos, têm

Jorge Gomes Lima (acima) e sua família são os únicos que ainda vivem na comunidade São Sebastião (abaixo), que precisou ser realocada por causa da ação de grileiros

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uma vocalização impressionante, causam paixão na gente”, diz Crisalda.

Movidos por esse sentimento, os dois pes-quisadores se dedicaram em tempo integral aos répteis e anfíbios – pela manhã e também à noite. Explica-se: durante o dia é ocasião para encontrar lagartos, que gostam de sol, e à noite é mais indicado para cobras e sapos. Nessa busca, remexem folhas secas, quebram troncos ocos, movem pedras e debruçam-se sobre filetes d’água. Até os menores sapos costumam dar um grande trabalho para ser capturados – são velozes e hábeis para se esconder em meio a pedras e galhos. A estratégia de captura de lagartos exige, ainda, uma habilidade a mais: boa mira. O método consiste em acertá-los com um elástico para que fiquem tontos e, assim, mais lentos.

Essas mesmas estratégias foram utilizadas por Crisalda nas duas expedições anteriores à Terra do Meio. Segundo ela, no local em que foi realizada a primeira expedição, as espécies encontradas eram todas oportunistas, ou seja, sobrevivem e se proliferam de acordo com as condições que o ambiente oferece. Anfíbios mais sensíveis, aqueles que servem como indicadores ambientais, não foram encontrados naquela oca-sião porque tratava-se de uma área já degradada por madeireiros e garimpos clandestinos. “Nossos parques estão sendo invadidos e nós não estamos nem sabendo”, lamenta-se.

Ainda assim, pode-se dizer que a Terra do Meio sobrevive quase intacta, apesar das pressões crescentes para a sua ocupação econômica – a WWF assegura que 96% da região mantém sua cobertura original. Afinal, os grandes rios não a atravessam, dificultando o acesso a seu interior. Nem mesmo os índios ocuparam a área: apenas a utilizavam como uma reserva de caça, estabe-lecendo-se às suas margens, nas proximidades de rios caudalosos, o que, inclusive, justifica o seu nome. Esse é um dos principais motivos pelos quais a Terra do Meio continua preservada – uma região hoje dividida entre nove Terras Indígenas e dez Unidades de Conservação (veja mapa à página 33). Ao se sobrevoar a região é possível, sim, identificar algumas áreas desflorestadas no imenso tapete em tons de verde que se estende até se perder de vista. Muitas são áreas tão pe-quenas que não podem sequer ser detectadas pelos satélites que fazem o monitoramente da Amazônia. No entanto, é possível observar a ação de grileiros avançando sobre seus limites, abrindo pequenas pistas de pouso e estradas e ameaçando estabelecer uma ocupação clandestina que tem sido, já de longa data, umas das marcas da região (veja quadro na página 41).

Antigos e novos moradoresPróxima dos limites da reserva, a comunidade

de São Sebastião sobrevive como testemunha da grilagem que vigorou durante anos na região. A única família que permanece morando no local é a de Jorge Gomes Lima, que vive do extrativismo e de trabalhos eventuais. Lima conta que a comunidade foi desapropriada por grileiros depois de um “acor-do” suspeito em que ele e seus vizinhos tiveram de se mudar para outra área, dando lugar a uma fazenda. “Antes mesmo de os moradores retirarem seus pertences das casas, a vila foi queimada e um

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A manutenção das Unidades de Conservação (UC)

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Fonte: MMA, 2010

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Silenciosos e atentos, Frederico Gemésio e Alan Nilo da Costa deixavam o acampamento às 6 da manhã e percorriam trilhas durante todo o dia em busca de rastros de mamíferos. Calor, falta de água, alojamento precário, nada disso os pertubava. “A única coisa que me incomoda é que muitas vezes as pesquisas não são levadas a sério”, lamenta-se Gemésio, lembrando-se dos interesses econômicos que acabam se sobrepondo ao resultado das pesquisas

Mastofauna

Ariranha

Macaco-aranha

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Paixão. É isso que move Raimundo Silva e Crisalda Lima em seus trabalhos com anfíbios e répteis. Ele quase não fala, mas expressa a satisfação de estar ali em sorrisos furtivos e olhos brilhantes. Ela, mais comunicativa, tenta explicar a paixão em palavras, mas se embola e repete apenas que são animais lindos e com belas vocalizações. Ambos passam o dia remexendo folhas secas, quebrando troncos ocos e movendo pedras em busca desses animais

Herpetofauna

Cobra-cipó bicuda Jacaré-coroa

Perereca

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A briga eterna pela terraNas últimas décadas, os conflitos ligados ao uso da terra marcaram com violência a história da Amazônia e a Terra do Meio não foi poupada. Os crimes silenciosos que destroem a floresta e as comunidades tradicionais são comuns na região desde a década de 1970, quando o intenso desmatamento levou à drástica redução das reservas de mogno no entorno de São Félix do Xingu. Vizinha da cidade, a floresta quase intocada da Terra do Meio passou a ser o novo alvo dos madeireiros, que abriram estradas e transformaram áreas de florestas em campos abertos – estrutura posteriormente aproveitada para a pecuária. Antes dessas atividades, a Terra do Meio era habitada apenas por índios e por pequenas comunidades dedicadas à extração de látex. Com o declínio da atividade, muitos seringueiros foram embora e os que ficaram adotaram estilos de vida com baixo impacto ambiental, apoiados na agricultura de subsistência e na extração de produtos da floresta, como a castanha. As madeireiras e as grandes fazendas de gado, que começaram a invadir a região, anos mais tarde, voltaram a ameaçar a floresta e a vida dos moradores. Muitos foram testemunhas. “Aqui tinha mais pistoleiro do que policial”, lembra Daniel Costa do Nascimento, que viveu toda a sua vida às margens do rio Xingu. “Eles chegaram, atearam fogo na nossa

casa, comeram nossas galinhas e nos disseram para não voltar”, conta João Inácio Assunção, que desde esse dia, há seis anos, mora em São Félix do Xingu. O território sempre foi do estado, mas como não era dada nenhuma destinação a ele, as terras devolutas acabavam virando alvo fácil de grileiros. Quando o governo iniciou a instalação de Unidades de Conservação (UCs) na região, porém, essa realidade começou a mudar. O investimento para abrir estradas e desmatar grandes áreas para pasto é alto e, em geral, os grileiros não se arriscam a fazer isso em Unidades de Conservação, já que as chances de se conseguir a posse futura do terreno é praticamente nula. “Se aqui não vira reserva, não tinha mais mato não”, profetiza outro ribeirinho, Rubenildo Barros Viana. Com a implantação de uma UC, os grileiros são expulsos das terras sem nenhum tipo de indenização, uma vez que nunca tiveram o direito legítimo sobre a região que exploraram economicamente. Por isso, até hoje, alguns anos depois da criação das UCs no local, é possível encontrar cabeças de gado passeando nas terras que deveriam ser cobertas de floresta. Mas, ao mesmo tempo, pode-se observar as antigas fazendas abandonadas sendo tomadas novamente pela floresta regenerada. Uma esperança para a Terra do Meio.

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trator passou por cima do cemitério. Nem memória a gente tem mais”, diz ele. As instalações dessa fazenda, hoje novamente desapropriadas, desta vez pelo governo, são a sede da administração do Parque da Serra do Pardo.

Como em toda a Amazônia, a questão lati-fundiária é histórica e cada vez mais crítica. As Unidades de Conservação ajudam na organização e preservação das áreas, mas sofrem com a falta de recursos financeiros e humanos – a quantidade de funcionários e de verbas para o sistema de UC é muito pequena (veja gráficos na página 38). De acordo com Marcos Rocha, chefe do Parque Na-cional da Serra do Pardo, são apenas 12 analistas ambientais do ICMBio para cuidar das oito UCs federais da Terra do Meio. E precisam se desdo-brar na gestão e fiscalização dessas áreas. Por isso, tenta-se implantar o chamado “mosaico de con-servação”, uma estrutura de gestão compartilhada entre as várias UCs de uma região, prevista no Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Na prática, significa que recursos humanos e financeiros são divididos de acordo com as ne-cessidades de cada UC. Segundo Marcos Rocha, o mosaico da Terra do Meio já está funcionando, apesar de ainda não existir formalmente. “Essas expedições são um exemplo disso: não estamos re-alizando pesquisas em Unidades de Conservação isoladas e sim em toda a região”, diz.

Conhecendo a Terra do Meio como um todo é possível fazer um planejamento conjunto delas. O analista de conservação da WWF-Brasil Estevão do Prado Braga explica que assim é possível trans-ferir atividades essenciais de uma região para ou-tra. Um exemplo claro: na Serra do Pardo, muitos ribeirinhos coletam castanhas para vender, como é o caso de Lima, da comunidade São Sebastião. O problema é que parques nacionais são unida-des de proteção integral, ou seja, não é permitido o uso direto dos seus recursos. Caça, pesca e coleta são proibidos. Lima não poderá mais vender as castanhas nem pescar sua comida na região em que sempre morou. Essas atividades, entretanto, fazem parte da sua cultura e são es-senciais para sua sobrevivência. Com o manejo integrado das Unidades de Conservação, ele não precisará parar de realizá-las – terá apenas de transferi-las para uma área mais adequada, que pode ser uma UC de uso sustentável, como as reservas extrativistas.

Para resolver questões complexas como essa, é importante o trabalho dos pesquisadores: o conhecimento da fauna e da flora permite a elaboração de um plano de manejo em que se prevê o uso dos recursos naturais da região sem ameaçar a sobrevivência da floresta. É assim que governo poderá retomar o controle dessa importante parte do Brasil.

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Enquanto um mede, o outro anota as medidas e um terceiro marca no GPS a posição da árvore. É assim, em plena sintonia, que trabalham Antônio Sérgio Silva, Dário Amaral e Carlos Rosário (ao lado). João Batista da Silva (abaixo), por sua vez, sai sozinho em busca de orquídeas. Ele é, dentre todos os pesquisadores, o que se sente mais à vontade na mata – não à toa abandonou a gravata dos tempos de advogado para se tornar um dos maiores conhecedores de orquídeas amazônicas do mundo

Botânica

Planta insectífera

Cedro-amarelo

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