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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM ANA LUCIA TUBERO A CONSTRU«O CONJUNTA DE OBJETOS DE DISCURSO A EXPERINCIA DO CENTRO DE CONVIVNCIA DE AF¡SICOS NO PROCESSO DE ELABORA«O DO LIVRO SOBRE AS AFASIAS E OS AF¡SICOS Campinas 2006

A CONSTRU« O CONJUNTA DE OBJETOS DE DISCURSO · as frutas, os bichos quando em estado de palavra. … mineral a linha do horizonte, nossos nomes, essas coisas feitas de palavras

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

ANA LUCIA TUBERO

A CONSTRU«O CONJUNTA DE OBJETOS DE DISCURSO

A EXPERI NCIA DO CENTRO DE CONVIV NCIA DE AF¡SICOS NO PROCESSO DE ELABORA«O DO LIVRO SOBRE AS AFASIAS E OS

AF¡SICOS

Campinas 2006

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ANA LUCIA TUBERO

A CONSTRU«O CONJUNTA DE OBJETOS DE DISCURSO

A EXPERI NCIA DO CENTRO DE CONVIV NCIA DE AF¡SICOS NO PROCESSO DE ELABORA«O DO LIVRO SOBRE AS AFASIAS E OS

AF¡SICOS

Tese apresentada ao

Instituto de Estudos da Linguagem da

Universidade Estadual de Campinas

como requisito parcial para a obtenÁ„o

do grau de Doutor em Ling¸Ìstica

Orientadora: Profa. Dra. Edwiges Maria Morato

Campinas 2006

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Ficha catalogr·fica elaborada pela Biblioteca do IEL - Unicamp

T79c

Tubero, Ana Lucia.

A ConstruÁ„o conjunta de objetos de discurso: a experiÍncia do Centro de ConvivÍncia de Af·sicos no processo de elaboraÁ„o do livro ìSobre as afasias e os af·sicosî / Ana Lucia Tubero. -- Campinas, SP : [s.n.], 2006.

Orientador : Edwiges Maria Morato.

Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto

de Estudos da Linguagem.

1. Afasia. 2. Neuroling¸Ìstica. 3. ReferÍncia (Ling¸Ìstica). 4. Af·sicos - Linguagem. 5. InteraÁ„o. I. Morato, Edwiges Maria. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. TÌtulo.

TÌtulo em inglÍs: The joint building of objets de discours: the experience of an

Aphasic Social Centre in the elaboration of the book ìAbout aphasia and aphasicsî.

Palavras-chaves em inglÍs (Keywords): Aphasia, Neurolinguistics, Reference

(Linguistics), Aphasics ñ Language, Interaction.

¡rea de concentraÁ„o: Neuroling¸Ìstica.

TitulaÁ„o: Doutorado.

Banca examinadora: Prof™ Dr™ Ingedore Gr¸nfeld VillaÁa Koch, Prof™ Dr™ Rosana do

Carmo Novaes-Pinto, Prof. Dr. Benito Pereira Damasceno, Prof™ Dr™ Suzana

Magalh„es Maia, Prof™ Dr™ Adriana Lia Friszman de Laplane.

Data da defesa: 21/02/2006.

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ANA LUCIA TUBERO

A CONSTRU«O CONJUNTA DE OBJETOS DE DISCURSO A ExperiÍncia do Centro de ConvivÍncia de Af·sicos no processo de

elaboraÁ„o do livro Sobre as afasias e os af·sicos

Tese apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas

como requisito parcial para a obtenÁ„o do grau de Doutor em Ling¸Ìstica

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________

Profa. Dra. Edwiges Maria Morato ñ Orientadora ñ Universidade Estadual de Campinas

_______________________________________________________

Profa. Dra. Ingedore Gr¸nfeld VillaÁa Koch ñ Universidade Estadual de Campinas

_______________________________________________________

Profa. Dra. Suzana Magalh„es Maia ñ PontifÌcia Universidade CatÛlica de S„o Paulo

_______________________________________________________

Profa. Dra. Adriana Lia Friszman de Laplane ñ Universidade Estadual de Campinas

_______________________________________________________

Profa. Dra. Rosana do Carmo Novaes-Pinto ñ Universidade Estadual de Campinas

_______________________________________________________

Prof. Dr. Benito Pereira Damasceno ñ Universidade Estadual de Campinas

Aprovada em 21 de fevereiro de 2006.

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Aos meus pais,

Ivany e Sergio.

vai ter uma festa

que eu vou danÁar

atÈ o sapato pedir pra parar.

aÌ eu paro

tiro o sapato

e danÁo o resto da vida.

(R·pido e rasteiro. Chacal)

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Ao George.

eu canto porque o instante existe

e a minha vida est· completa.

(Trecho de Motivo. CecÌlia Meireles)

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A todos do CCA.

A CI, EF e JB (memÛrias vivas).

AgradeÁo.

Um galo sozinho n„o tece uma manh„:

ele precisar· sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito que um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manh„, desde uma teia tÍnue,

se v· tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manh„) que plana livre de armaÁ„o.

A manh„, toldo de um tecido t„o aÈreo

que, tecido, se eleva por si: luz bal„o.

(Tecendo a manh„. Jo„o Cabral de Melo Neto)

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¿s professoras

e amigas

Edwiges

Inge e Rosana.

AgradeÁo.

… mineral o papel

onde escrever

o verso; o verso

que È possÌvel n„o fazer.

S„o minerais

as flores e as plantas,

as frutas, os bichos

quando em estado de palavra.

… mineral

a linha do horizonte,

nossos nomes, essas coisas

feitas de palavras.

… mineral, por fim,

qualquer livro:

que È mineral a palavra

escrita, a fria natureza

da palavra escrita.

(Psicologia da composiÁ„o. Jo„o Cabral de Melo Neto)

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¿s amigas

Ana Maria

Renata

Beatriz

Antonieta

Alexa.

AgradeÁo.

(...)

Eis a voz, eis o deus, eis a fala,

eis que a luz se acendeu na casa

e n„o cabe mais na sala.

(Trecho de Sintonia para pressa e press·gio. Paulo Leminski)

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RESUMO

Esta tese analisa os movimentos interativos e discursivos do ato de referenciaÁ„o na

construÁ„o de objetos de discurso. Tomando como cena enunciativa o espaÁo

discursivo do Centro de ConvivÍncia de Af·sicos (CCA) do Instituto de Estudos da

Linguagem da Unicamp e seus participantes ñ af·sicos e n„o af·sicos ñ engajados no

projeto de elaboraÁ„o conjunta do livro Sobre as afasias e os af·sicos ñ subsÌdios

teÛricos e pr·ticos elaborados pelo Centro de ConvivÍncia de Af·sicos, esta tese

discute o processo por meio do qual esse livro, como construÁ„o discursiva, È capaz

de exibir o espet·culo da diversidade de pontos de vista em torno de conceitos

inicialmente fluidos ñ afasia, cura, prevenÁ„o etc. ñ que v„o sendo negociados e

construÌdos na interaÁ„o pelo compartilhamento de posiÁıes enunciativas e de ajustes

m˙tuos da significaÁ„o. Nesse processo de co-construÁ„o discursiva do livro, os

objetos de discurso n„o s„o concebidos como tendo uma relaÁ„o de especularidade

com os objetos do mundo.

Palavras-chave: Afasia; Neuroling¸Ìstica; ReferÍncia (Ling¸Ìstica);

Af·sicos ñ Linguagem, InteraÁ„o.

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ABSTRACT

This thesis analyses the interactive and discursive movements of the act of referencing

in the building of objets de discours. Taking as the enunciative setting the discourse

space at the ëCentro de ConvivÍncia de Af·sicos (CCA) do Instituto de Estudos da

Linguagem da Unicampí (Aphasic Social Centre of the Language Studies Institute of

Unicamp) and its participants ñ aphasics and non-aphasics ñ engaged in the project of

joint elaboration of the book Sobre as afasias e os af·sicos ñ subsÌdios teÛricos e

pr·ticos elaborados pelo Centro de ConvivÍncia de Af·sicos (About Aphasics and

Aphasia ñ theoretical allowances and practices elaborated by the Aphasic Social

Centre) this thesis discusses the process by which this book, as a discourse builder, is

capable of showing the spectacular diversity of opinions surrounding initially fluid

concepts ñ aphasia, cure, prevention etc. ñ that are being bargained and built in the

interaction that shares enunciative positions and mutual adjustments in meaning. In

this process of discursive building of the book, the objets du discours are not seen as

having a speculative relationship with worldly objects ñ ëobjets du mondeí.

Keywords: Aphasia; Neurolinguistics; Reference (Linguistics);

Aphasics ñ Language, Interaction.

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SUM¡RIO IntroduÁ„o 1 O Centro de ConvivÍncia de Af·sicos 2

Breve histÛrico do CCA 3

O corpus desta Tese 5

A Tese 7

1 O livro do Centro de ConvivÍncia de Af·sicos e seu processo de construÁ„o: linhas gerais e metodologia de trabalho 9

2 A referenciaÁ„o enquanto processo interativo-discursivo na elaboraÁ„o do livro do Centro de ConvivÍncia de Af·sicos 53 O CCA como espaÁo discursivo 54

Os sujeitos autores do livro do CCA 64

O livro do CCA como construÁ„o referencial 76

Processos de referenciaÁ„o: os sujeitos constroem o livro

do CCA 80

Para concluir 106

3 Rede de formulaÁıes, rede de significaÁıes: a construÁ„o referencial de afasia e cura 109 Pr·ticas discursivas 115

Das afasias e dos af·sicos: das pr·ticas ‡ construÁ„o de

objetos de discurso 123 1. Afasia: definiÁ„o e identificaÁ„o de prÈ-construÌdos 124

1.1 Afasia e suas causas 124

1.2 Afasia e graus de severidade 127

1.3 Afasia e preconceito 133

1.3.1 Afasia n„o È doenÁa mental 133

1.3.2 Afasia n„o È deficiÍncia auditiva 135

1.3.3 Afasia e cogniÁ„o 136

1.3.4 Afasia e doenÁa mental 138

1.3.5 Af·sicos e n„o af·sicos: preconceitos na interaÁ„o 143

2. A caracterizaÁ„o das alteraÁıes da linguagem nas afasias 148

2.1 AlteraÁıes da linguagem nas afasias 149

2.2 A din‚mica da linguagem nas afasias 153

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3. O af·sico e o falante n„o af·sico idealizado 157

4. As implicaÁıes sociais da condiÁ„o de af·sico 164

4.1 Desconhecimento sobre afasia 164

4.2 Desconhecimento sobre as formas de interaÁ„o com o

af·sico 167

5. Linguagem, cÈrebro e cogniÁ„o 176

5.1 CÈrebro: um enigma 176

5.2 CÈrebro e linguagem 179

5.3. CÈrebro: les„o e afasia 185

5.4 Plasticidade cerebral e afasia 190

6. Cura 195

6.1 Afasia: os sentidos de cura e melhora 196

6.2 Medicina e reabilitaÁ„o 202

6.3 Em busca da linguagem: a expectativa do af·sico 203 Para concluir 208

4 Pr·ticas de comunidade, pr·ticas discursivas: a elaboraÁ„o do livro do Centro de ConvivÍncia de Af·sicos 213 A din‚mica do trabalho linguageiro dos sujeitos no

processo de construÁ„o do livro do CCA 214

A construÁ„o de uma comunidade discursiva: exemplificaÁ„o 218 1. CCA: sobre aposentadoria e nÌvel socioeconÙmico 218

1.1 Af·sico n„o È problema de aposentadoria 218

1.2 LM e sua aposentadoria por invalidez 221

1.3 A discuss„o sobre a aposentadoria 221

1.4 Af·sico rico... n„o È af·sico 224

2. CCA: sobre a prevenÁ„o da afasia 227

2.1 A prevenÁ„o da afasia 228

2.2 Podemos prevenir a afasia? 230

3. O CCA em cena 236

3.1 CCA: tempo e lugar de convivÍncia 237

3.2 O CCA e o cotidiano 244

3.3 CCA: patrimÙnio e memÛria 246

3.4 CCA: espaÁo fÌsico e espaÁo discursivo 247

3.5 CCA: compartilhamento e identificaÁ„o de

questıes comuns 248

3.6 CCA: direitos e enfrentamentos sociais 250 Para concluir 252

5 Conclus„o 255

ReferÍncias Bibliogr·ficas 265

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ConvenÁ„o da transcriÁ„o de dados adotada nesta tese

[ sobreposiÁ„o de vozes

... pausas inferiores ao segundo

(3í) pausas superiores a trÍs segundos

MAI⁄SCULA Ínfase ou acento forte

:: alongamento de vogal

- - - - silabaÁ„o

? entonaÁ„o ñ subida r·pida

// // coment·rios sobre produÁıes verbais e n„o verbais n„o

transcritas

/ truncamento

//SI// Segmento IninteligÌvel ñ incompreensÌvel por baixo

volume ou sobreposiÁ„o de vozes

( ) descriÁ„o de situaÁıes n„o transcritas

(...) antecede a transcriÁ„o de trechos descontÌnuos

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... RecÈm-chegado e ignorando totalmente as lÌnguas do Levante, Marco Polo sÛ podia

se exprimir extraindo objetos de suas malas: tambores, peixes salgados, colares de dentes de

facoqueros e, indicando-os com gestos, saltos, gritos de maravilha ou de horror, ou imitando o

latido do chacal e o pio do mocho.

Nem sempre as relaÁıes entre os diversos elementos da narrativa resultavam claras

para o imperador; os objetos podiam significar coisas diferentes: uma f·retra cheia de flechas

ora indicava a proximidade de uma guerra, ora uma abund‚ncia de caÁa, ou ent„o a oficina de

um armeiro; uma ampulheta podia significar o tempo que passa ou que passou, ou ent„o a

areia, ou uma oficina em que se fabricavam ampulhetas.

Mas o que Kublai considerava valioso em todos os fatos e notÌcias referidos por seu

inarticulado informante era o espaÁo que restava em torno deles, um vazio n„o preenchido por

palavras. As descriÁıes das cidades visitadas por Marco Polo tinham esse dom: era possÌvel

percorrÍ-las com o pensamento, era possÌvel se perder, parar para tomar ar fresco ou ir embora

rapidamente.

Com o passar do tempo, nas narrativas de Marco, as palavras foram substituindo os

objetos e os gestos: no inÌcio, exclamaÁıes, nomes isolados, verbos secos; depois, torneios de

palavras, discursos ramificados e frondosos, met·foras e imagens. O estrangeiro aprendera a

falar a lÌngua do imperador, ou o imperador a entender a lÌngua do estrangeiro.

Mas dir-se-ia que a comunicaÁ„o entre eles era menos feliz do que no passado: claro

que as palavras serviam melhor do que os objetos e os gestos para apontar as coisas mais

importantes de cada provÌncia ou cidade ñ monumentos, mercados, trajes, fauna e flora ñ;

todavia, quando Polo comeÁava a dizer como devia ser a vida naqueles lugares, dia apÛs dia,

noite apÛs noite, as palavras escasseavam, e pouco a pouco voltava a fazer uso de gestos,

caretas, olhares.

Assim, para cada cidade, ‡s notÌcias fundamentais enunciadas com voc·bulos precisos,

ele acrescentava um coment·rio mudo, levantando a palma, o dorso ou o lado das m„os, em

movimentos retos ou oblÌquos, impetuosos ou lentos. Uma nova forma de di·logo estabeleceu-se

entre eles: as m„os brancas do Grande Khan, repletas de anÈis, respondiam com movimentos

compostos os gestos ·geis e nodosos do mercador. Com o aumento do entendimento entre eles,

as m„os passaram a assumir posiÁıes est·veis, que correspondiam a movimentos do espÌrito em

seu alternar ou repetir. E, enquanto o vocabul·rio das coisas renovava-se com o mostru·rio das

mercadorias, o repertÛrio dos coment·rios mudos tendia a se fechar e se estabelecer. O prazer

de ambos em recorrer a eles tambÈm diminuÌa; em suas conversas, permaneciam a maior parte

do tempo calados e imÛveis.

(Italo Calvino, em As cidades invisÌveis)

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1

IntroduÁ„o

Esta tese percorre a trama discursiva de um livro construÌdo no e pelo

trabalho de pr·ticas e de convivÍncia de sujeitos af·sicos e n„o af·sicos.

Como o fio de Ariadne ñ que conduziu Teseu pelo Labirinto, ao ser

desenrolado ‡ medida que Teseu avanÁava ñ este trabalho procura reconstruir

e refletir sobre o caminho discursivo percorrido e perseguido por esses sujeitos

na elaboraÁ„o de um livro sobre as afasias e os af·sicos.

Esta È uma tese empÌrica, um estudo longitudinal que recobre

acontecimentos de um perÌodo de quase cinco anos ñ de 1998 a 2003 ñ ao

longo dos quais o livro foi elaborado por esses sujeitos autores.1 Este È o fio

condutor por mim perseguido nesta tese: os movimentos interativos e

discursivos do ato de referenciaÁ„o, movimentos esses apreendidos na histÛria

de construÁ„o do livro de divulgaÁ„o das afasias do Centro de ConvivÍncia de

Af·sicos ñ o livro do CCA.

Relembro que, em 1995, publicamos O af·sico ñ convivendo com a

les„o cerebral,2 projeto de v·rios autores que foi o primeiro e, talvez, o ˙nico

livro antes desse, do CCA, a tentar divulgar e discutir as afasias do ponto de

vista do af·sico, embora este sÛ tenha, aÌ, a palavra na forma de depoimentos.

Relembro tambÈm minha conversa com CI ñ um dos af·sicos participantes das

atividades do CCA ñ na qual me referi ao livro O af·sico, prontificando-me a lhe

oferecer um exemplar. CI foi, sem d˙vida, um dos sujeitos mais envolvidos com

o livro do CCA, e acredito que a leitura de O af·sico tenha exercido alguma

influÍncia nisso.3

1 Sujeitos af·sicos e sujeitos n„o af·sicos (pesquisadores) que participaram do projeto do livro do CCA. 2 J. Ponzio, D. Lafond, R. Degiovani, Y. Joanette, A. L. Tubero e C. N. Hori. O af·sico ñ convivendo com a les„o cerebral. Santos & Maltese, 1995. 3 CCA, 31 de marÁo de 1999:

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2

Envolvi-me, pois, com dois livros sobre afasias e af·sicos. Do primeiro,

fui tradutora e co-autora de dois capÌtulos.4 No segundo, entretanto, participei

de todo o processo, envolvida desde o inÌcio como sujeito dessa construÁ„o

conjunta com os af·sicos. Talvez venha daÌ a opÁ„o por desenvolver minha

tese sob a forma da histÛria da construÁ„o referencial do livro sobre as afasias

e os af·sicos por membros do CCA.

O Centro de ConvivÍncia de Af·sicos

O Centro de ConvivÍncia de Af·sicos ñ doravante, CCA ñ È definido

como um espaÁo de interaÁ„o entre pessoas af·sicas e n„o af·sicas. Os

af·sicos s„o aqueles que, em decorrÍncia de uma les„o cerebral adquirida,

perdem a capacidade de usar a linguagem (oral, escrita e gestual) da forma

como faziam anteriormente. Os n„o af·sicos s„o os familiares e amigos desses

af·sicos e os pesquisadores e terapeutas que desenvolvem suas pesquisas e

trabalhos acadÍmicos no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade

Estadual de Campinas.

Os sujeitos que freq¸entam semanalmente o CCA ñ af·sicos e n„o

af·sicos ñ colocam-se e s„o colocados diante de diversas questıes e desafios

que a afasia convoca e determina. A afasia exclui, isola, afasta, constrange,

mas n„o ìimplica necessariamente uma contraÁ„o da vidaî (Morato, 2000).

Um dos objetivos do CCA se traduz na busca de um melhor

entendimento do que seja a afasia e seus efeitos, e na divulgaÁ„o dessa

condiÁ„o para a sociedade. Enfrentar as seq¸elas neurolÛgicas impostas pela

afasia, defender os direitos das pessoas cÈrebro-lesadas, buscar alternativas

terapÍuticas, encorajar aÁıes coletivas para a reinserÁ„o das pessoas

af·sicas, descobrir conjuntamente como superar e enfrentar a afasia e conviver

com ela, s„o alguns dos movimentos observados no CCA.

CI: EU quero falar mais sobre o livro. Imc: Que livro? CI: O livro: ìAf·sicoî. Imc: O livro chama ìO af·sicoî. CI: … um livro que nem todo mundo leu... mas que fala sobre os NOSSOS problemas. Fala

muito sobre nossos problemas. 4 CapÌtulo 13: ìA situaÁ„o do af·sico no Brasilî, e CapÌtulo 14: ìO af·sico e a legislaÁ„o brasileiraî.

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3

Os sujeitos interagem atuando com e sobre a linguagem, no exercÌcio

vivo da linguagem em diversas situaÁıes discursivas, em diferentes rotinas

significativas e configuraÁıes textuais, colocando em relaÁ„o o sistema

ling¸Ìstico ñ a lÌngua ñ com seu exterior discursivo ñ o mundo de referÍncias

culturais no qual somos e estamos inscritos. Na acepÁ„o de Franchi (1977,

p.22), esse trabalho com e sobre a linguagem È o

que d· forma ao conte˙do vari·vel de nossas experiÍncias, trabalho de

construÁ„o, de retificaÁ„o do vivido, que ao mesmo tempo constitui o

sistema simbÛlico mediante o qual se opera sobre a realidade e

constitui a realidade como um sistema de referÍncia em que aquele se

torna significativo.

Na concepÁ„o assumida pelos pesquisadores que participam do CCA, a

linguagem permite construir e transformar as relaÁıes entre os interlocutores,

seus enunciados e seus referentes (Maingueneau, 1997, p.20).

Os sujeitos envolvidos na atividade de elaboraÁ„o do livro do CCA

mobilizam e s„o mobilizados enquanto co-enunciadores no trabalho de

construÁ„o da significaÁ„o, interpretando seus prÛprios dizeres ñ e imaginando

a interpretaÁ„o que o outro faz de seus dizeres ñ e os dizeres alheios,

verificando seu sistema de referÍncias e imaginando o sistema de referÍncias

de seu interlocutor e procedendo a reformulaÁıes e adaptaÁıes sucessivas de

acordo com a rede de referÍncias ñ a intercompreens„o È apenas parcial e,

portanto, exige constantes negociaÁıes. Por isso podemos falar de co-

construÁ„o progressiva da referÍncia durante a interaÁ„o desses sujeitos.

Breve histÛrico do CCA

O Centro de ConvivÍncia de Af·sicos ñ espaÁo de interaÁ„o entre

pessoas af·sicas e n„o af·sicas ñ foi criado em 1989, em uma aÁ„o conjunta

do Departamento de Ling¸Ìstica e do Departamento de Neurologia, ambos da

Universidade Estadual de Campinas, com o intuito de

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4

desmedicalizar o entendimento das afasias, de abrir possibilidades de

estudos neuroling¸Ìsticos num contexto de pr·ticas efetivas com a

linguagem, alÈm de estabelecer um espaÁo de reflex„o entre

pesquisadores e af·sicos e seus familiares em torno dos impactos

psico-sociais da afasia. (Morato, 2005)

O CCA, ligado ao LaboratÛrio de Neuroling¸Ìstica, funciona em sede

prÛpria, no prÈdio que abriga tambÈm o Instituto de Estudos da Linguagem da

Unicamp. Basicamente s„o dois os programas nos quais se inscrevem as

pr·ticas desenvolvidas atualmente no CCA:5 o Programa de Linguagem e o

Programa de Express„o Teatral. No Programa de Linguagem ñ cen·rio desta

tese ñ as atividades desenvolvidas buscam explorar aspectos que constituem o

funcionamento da linguagem em diferentes rotinas significativas e

configuraÁıes ñ di·logos, coment·rios, narrativas, leituras etc. ñ e seus

mecanismos de constituiÁ„o e valor social. Entre essas atividades pode-se

apontar a discuss„o em grupo sobre temas diversos, relativos aos

acontecimentos no Brasil e no mundo, a promoÁ„o comum de palestras (sobre

a crise do trabalho ou os medicamentos genÈricos, por exemplo), a visita a

museus e exposiÁıes, o compartilhamento de eventos pessoais. PassÌveis de

serem descritas em termos ling¸Ìstico-discursivos, essas aÁıes com e sobre a

linguagem podem ser resumidas em trÍs dimensıes (interlocutiva, meta-

enunciativa e discursiva, estudadas em outra oportunidade por Morato, 1999;

2002) que funcionam de maneira integrada e atuam na relaÁ„o do sistema

ling¸Ìstico ñ a lÌngua ñ com o exterior discursivo. Em termos pr·ticos, isso torna

possÌvel um olhar sobre as variadas formas e posiÁıes enunciativas dos

sujeitos, sua capacidade pragm·tica de reconhecer seus interlocutores e suas

propostas discursivas, suas possibilidades de manipular diferentes universos

discursivos.

Alguns dos sujeitos que participam do CCA est„o juntos h· muito tempo,

quase mesmo a partir de sua criaÁ„o em 1989. … o caso dos sujeitos af·sicos

EF, LM e IP, por exemplo, e das pesquisadoras Imc, Iem e Isp. Ainda que

5 Por ocasi„o do desenvolvimento desta tese, o programa de EducaÁ„o FÌsica tambÈm fazia parte das atividades desenvolvidas no CCA: sob a coordenaÁ„o de Fl·via Faissal de Souza, o foco eram as questıes referentes ao corpo e ao movimento discutidas e vivenciadas na interaÁ„o entre os participantes af·sicos.

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5

outros integrantes tenham feito parte da histÛria desse grupo (pessoas que

atualmente o freq¸entam esporadicamente, pessoas que j· faleceram, pessoas

que retomaram suas vidas sem que o grupo continuasse a fazer parte de seu

cotidiano ou parecesse imprescindÌvel, por exemplo), È forte a identidade que

uma velha/nova convivÍncia possibilitou a todos. Com esse grupo, vale notar,

pesquisadores respons·veis pelas atividades ali desenvolvidas (Iem e Imc) ou

pesquisadores que com esse grupo conviveram ñ ou ainda convivem ñ para

elaborar parte ou a integralidade de suas reflexıes sobre as afasias puderam

experimentar ou provocar mudanÁas tanto teÛricas quanto metodolÛgicas de

trabalho.

De posse de um referencial teÛrico de base sÛcio-interacionista ñ que se

caracteriza na Ling¸Ìstica pelas teorias sociais da enunciaÁ„o ñ foi-se

paulatinamente introduzindo no CCA uma reflex„o sobre o prÛprio estatuto do

grupo, seus objetivos e funÁıes: ìO CCA È hoje entendido como uma pr·tica

discursiva6 em dois sentidos: um que o toma como objeto de an·lise e outro

que o toma como cen·rio de qualquer possibilidade de retomada das funÁıes e

pr·ticas com a linguagemî (Morato, 2005). As diferentes situaÁıes discursivas

vivenciadas no trabalho desenvolvido no CCA exploram, ling¸Ìstico-

cognitivamente, distintas pr·ticas realizadas por seus sujeitos ñ entre elas, a

elaboraÁ„o do livro de divulgaÁ„o das afasias.

O corpus desta Tese

Os dados foram coletados de reuniıes/encontros de sujeitos af·sicos e

n„o af·sicos que freq¸entam o CCA semanalmente. Os encontros do CCA

selecionados para compor o corpus foram aqueles em que o livro de

divulgaÁ„o das afasias foi, de alguma forma, tema de discuss„o. Realizou-se

um levantamento dos encontros cuja tem·tica foi o livro, tomando-se por base

6 ìEm termos gerais, s„o pr·ticas discursivas aquelas atividades que prevÍem uma reversibilidade entre o que se produz como texto (linguagem, gesto, pantomima, desenho etc.) e aquilo que diz respeito ‡s referÍncias do mundo social. O que determina essa reversibilidade entre linguagem e sociedade È o conjunto de condiÁıes de sua produÁ„o, isto È, as contingÍncias ou os mecanismos que constituem e mobilizam os discursos, entre os quais o contexto histÛrico-cultural em que as interaÁıes humanas se d„o, as normas sociais que presidem as rotinas significativas, ling¸Ìsticas ou n„o; a imagem que os falantes fazem de si mesmos e entre si ao ocuparem papÈis e posiÁıes na linguagem, no di·logo, no mundo.î

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6

o caderno de anotaÁıes7 das atividades desenvolvidas em cada encontro.

Verificou-se que as discussıes sobre o livro ou sobre questıes

correlatas tiveram inÌcio em 1999. No perÌodo de 31 de marÁo de 1999 a 6 de

marÁo de 2003, o livro foi tema de 27 encontros do CCA, e o de 8 de abril de

1998 tambÈm foi incorporado ao corpus.8 Este È composto, portanto, de

fragmentos de 28 encontros do Centro de ConvivÍncia de Af·sicos, que foram

denominados pela sigla CCA seguida de numeraÁ„o correspondente ‡ sua

cronologia.9

S„o v·rios os encontros e s„o v·rios tambÈm os sujeitos que participam

no projeto e na elaboraÁ„o do livro do CCA: somos dezesseis sujeitos af·sicos

ñ CI, CL, AG, SP, MS, EF, SI, ER, JB, IP, SM, LM, NS, MG, NM e JL ñ e dez

sujeitos n„o af·sicos (pesquisadores docentes e discentes cuja formaÁ„o

compreende o campo da Ling¸Ìstica, da Fonoaudiologia, das Artes CÍnicas e

da EducaÁ„o FÌsica) ñ Iem, Imc, Ijt, Iat, Iff, Ihm, Isp, Iic, Iap e Ild.

Por convenÁ„o, os sujeitos af·sicos s„o identificados por siglas,

geralmente as iniciais de seus nomes, em letra mai˙scula. Os sujeitos n„o

af·sicos, por serem em sua maioria pesquisadores, s„o identificados pela letra

I ñ de investigador ñ em mai˙scula, seguida das iniciais de seus nomes, em

letra min˙scula.10

7 AlÈm de registradas em vÌdeo e ·udio, as atividades desenvolvidas resultaram em um resumo por escrito em um caderno, preparado pelos pesquisadores. 8 Embora neste encontro n„o haja nenhuma referÍncia ao livro do CCA, ele foi incluÌdo no repertÛrio aqui analisado por inaugurar, de alguma forma, as discussıes que, posteriormente, v„o fazer parte de todos os outros encontros do CCA em que o livro foi discutido. 9 CCA01 ñ 8/04/98; CCA02 ñ 31/03/99; CCA03 ñ 12/05/99; CCA04 ñ 2/06/99; CCA05 ñ 16/06/99; CCA06 ñ 8/09/99; CCA07 ñ 22/09/99; CCA08 ñ 29/09/99; CCA09 ñ 6/10/99; CCA10 ñ 13/10/99; CCA11 ñ 27/10/99; CCA12 ñ 25/11/99; CCA13 ñ 10/02/00; CCA14 ñ 4/05/00; CCA15 ñ 11/05/00; CCA16 ñ 1/06/00; CCA17 ñ 8/06/00; CCA18 ñ 15/06/00; CCA19 ñ 29/06/00; CCA20 ñ 13/07/00; CCA21 ñ 10/08/00; CCA22 ñ 26/10/00; CCA23 ñ 16/11/00; CCA24 ñ 23/11/00; CCA25 ñ 30/11/00; CCA26 ñ 29/05/01; CCA27 ñ 5/06/01 e CCA28 ñ 6/03/03. 10 Como norma de transcriÁ„o ling¸Ìstica adotada atualmente no CCA, seus integrantes ñ af·sicos e n„o af·sicos ñ s„o identificados pelas iniciais de seus nomes em letra mai˙scula, estando as iniciais dos af·sicos em negrito e sublinhado (destaque n„o adotado nesta tese).

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7

A Tese

O que apresentaremos a seguir pode ser considerado um caminho

retrospectivo sobre os movimentos interativos e discursivos do ato de

referenciaÁ„o na construÁ„o de um objeto de discurso. O livro do CCA È um

empreendimento conjunto que nos permite refletir sobre as qualidades

interativas entre af·sicos e n„o af·sicos, sobre o trabalho de co-construÁ„o

referencial, sobre uma comunidade de pr·ticas discursivas. O livro È a

explicitaÁ„o e o aprofundamento de um grupo de af·sicos e n„o af·sicos que

chamamos de Centro de ConvivÍncia.

No CapÌtulo 1, apresentaremos o processo de construÁ„o do livro do

CCA cronologicamente, explicitando as linhas gerais e a metodologia de

trabalho empreendida pelo grupo.

No CapÌtulo 2, o CCA ser· apresentado como espaÁo discursivo em cuja

cena enunciativa os sujeitos acionar„o os movimentos interativos e discursivos

do ato de referenciaÁ„o do livro como objeto de discurso em construÁ„o.

No CapÌtulo 3, apresentaremos a rede de formulaÁıes e de significaÁıes

tecida pelos sujeitos nos processos de referenciaÁ„o, focalizando noÁıes como

afasia e cura, tomadas como objetos de discurso tambÈm em construÁ„o.

No CapÌtulo 4, o CCA È apresentado como comunidade discursiva

engendrada pelas pr·ticas de seus sujeitos, que produzem o tecido discursivo,

que fazem circular o discurso, que se re˙nem em seu nome e nele se

reconhecem. O livro do CCA desenha essa reversibilidade entre as duas faces

do discurso ñ a textual e a social ñ e se constitui no patrimÙnio conjuntamente

construÌdo, no elo crucial entre o fazer e o dizer que faz do CCA uma

comunidade discursiva.

Na Conclus„o, procuro salientar os movimentos mais relevantes do

percurso interativo-discursivo das pr·ticas de referenciaÁ„o mobilizadas no

processo de elaboraÁ„o do livro, apontando alguns aspectos destacados no

percurso interacional, dialÛgico e discursivo, descrito e analisado.

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1 O livro do Centro de ConvivÍncia de Af·sicos e seu processo de construÁ„o: linhas gerais e metodologia de trabalho

Para tecer os fios da histÛria da construÁ„o de um livro escrito por v·rias

pessoas ñ af·sicas e n„o af·sicas ñ que participam de um grupo no Centro de

ConvivÍncia de Af·sicos ñ CCA, apresentarei em linhas gerais o percurso

vivido por esse grupo desde os primeiros movimentos ñ as primeiras questıes,

inquietaÁıes, vontades, idÈias ñ atÈ a publicaÁ„o e divulgaÁ„o do livro Sobre

as afasias e os af·sicos ñ subsÌdios teÛricos e pr·ticos elaborados pelo Centro

de ConvivÍncia de Af·sicos. Ao longo dos 28 encontros (CCA01 a CCA28)

realizados entre 8 de abril de 1998 e 6 de marÁo de 2003 o grupo esteve

envolvido em atividades que, de diferentes formas, culminaram na construÁ„o

de um livro que se tornou, ao mesmo tempo, objeto do mundo e objeto de

discurso.

A idÈia de se escrever um livro, um livreto, um manual, um folheto ñ as

v·rias formas pelas quais o livro do CCA vai sendo referido ñ ou outro tipo

qualquer de material que pudesse divulgar a afasia e o af·sico para leigos no

assunto surgiu no CCA por iniciativa dos prÛprios af·sicos.

Um dos movimentos iniciais foi o reconhecimento da inexistÍncia de

livros que fossem acessÌveis aos af·sicos quanto ao entendimento de seu

conte˙do. Essa foi uma das constataÁıes a que chegou CI, que sempre

buscou livros sobre afasia para poder entender melhor seu problema de

linguagem. TambÈm EF sempre trouxe ao CCA livros ou materiais sobre

derrame, acidente vascular cerebral (AVC), hipertens„o e outros temas

relacionados a questıes de sa˙de implicadas na afasia. Esta parece ter sido a

din‚mica ent„o implantada no grupo: a leitura e a discuss„o de material

especÌfico sobre as afasias.

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10

No encontro de 31 de marÁo de 1999,1 por exemplo, CI traz como tema

de sua exposiÁ„o para o grupo ñ conforme haviam combinado anteriormente ñ

um livro que vem lendo, chamado O Af·sico ñ convivendo com a les„o

cerebral, do qual Iat, uma das pesquisadoras do CCA, È co-autora:2

Imc: O CI parece que tem uma tarefa aÌ.

CI: Hoje... eu pensei...que era era importante falar do livro. Eu deixei o livro

em casa. Hoje eu deixei o livro em casa.

Imc: [O que vocÍs acham? //Olhando para os outros do grupo

e em tom de ìbrincadeiraî com CI//.

SP: //Ri//.

JB: //Ri//.

SI: //BalanÁa a cabeÁa//.

CI: Eu trouxe v·rias vezes o livro aqui... v·rias vezes... //Falando para Imc//.

Mas hoje eu deixei em casa.

Imc: Mas o livro tem aÌ (referindo-se ‡ biblioteca do CCA). VocÍ quer falar

alguma coisa?

CI: [Falo

falo. Falo sobre o livro.

Imc: [VocÍs sabem sobre o que ele vai falar? //Olhando para todos

do grupo//.

SI: N„o.

CI: [N„o.

MS: //Acena negativamente a cabeÁa//.

Imc: O senhor sabe... seu SP?

SP: Ts Ts //Negando//.

Imc: O assunto? O tema?

SI: [//Acena afirmativamente com a cabeÁa//.

Imc: VocÍs sabem qual È?

SI: [//Acena negativamente com a cabeÁa//.

1 CCA02, no qual estavam presentes: Iic, SI, CL, Ijt, SP, JB, MS, CI, Imc, EF (sentados em cadeiras formando um semicÌrculo) e Iff, manejando o vÌdeo. 2 Op. cit., p.2.

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JB: Sei.

SI: //Ri//.

Imc: Qual È JB... o tema... do CI?

JB: [//Aponta para a prÛpria cabeÁa//.

CI: N„o. N„o È sobre o cÈrebro.

Imc: Qual È... o assunto... geral... ... ... Vai falar sobre futebol o CI?

JB: [N„o... Derrame.

MS: [N„o.

Imc: Sobre derrame?

CI: A! …...

Imc: … um tÛpico nÈ CI? … um tÛpico.

CI: [… um tÛpico... Um tÛpico. Vou falar mais sobre o livro.

Imc: Que livro?

CI: O livro: ìAf·sicoî.

Imc: O livro chama ìO af·sicoî.

CI: … um livro que nem todo mundo leu mas que fala sobre os NOSSOS

problemas. Fala muito sobre nossos problemas...

Em 12 de maio de 1999,3 o grupo recebe a visita de um professor da

Universidade de Paris XII, na FranÁa, Dominique Maingueneau, e lhe entrega

um exemplar do livro O af·sico. Nesse encontro o grupo È informado de que

EF, durante as terapias individuais com a fonoaudiÛloga Iic, tem desenvolvido a

atividade de leitura de um artigo publicado em uma revista sobre como

enfrentar o derrame cerebral. A idÈia geral È que todos tenham acesso ao

material sobre afasias e que as discussıes sobre o tema ocorram ao longo dos

encontros do CCA.

Mas j· em 2 de junho de 19994 Iem faz uma referÍncia direta ao livro do

CCA, que È apresentado de maneiras diversas: uma idÈia que surgiu aqui de

fazer um livro (Iem), um livro com o tema ìas afasiasî (Imc), uma iniciativa da

gente (Imc), uma iniciativa do grupo de fazer em conjunto um livro (Iem). Fica

3 CCA03, no qual estavam presentes SP, JB, EF, SI, AG, Imc e Iap. 4 CCA04, no qual estavam presentes EF, SP, SI, ER, Iem, Imc, Ijt, Iat e Iff (sentados em torno da mesa).

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claro, desde o inÌcio, que o livro do CCA ser· uma co-construÁ„o desse grupo

que constitui o CCA, formado por af·sicos e n„o af·sicos.

Nesse mesmo encontro alguns temas ñ ìassuntosî ñ comeÁam a ser

sugeridos e mesmo discutidos, com a ades„o dos sujeitos mediante opiniıes,

sugestıes, acordos e mesmo diferenÁas, marcando, desde o inÌcio, a tomada

de m˙ltiplas posiÁıes enunciativas. Explicar o que s„o as afasias, qual È o

impacto da afasia na vida das pessoas, as mudanÁas que a afasia provoca, as

novas condiÁıes que ela impıe, contar a experiÍncia de ser af·sico, as

dificuldades que o af·sico enfrenta, relatar a experiÍncia da afasia pra uma

pessoa que est· interessada no tema ou que est· passando pela dificuldade,

depoimentos, coment·rios, s„o alguns dos temas propostos por Iem e Imc e

que ganham a ades„o de EF e de SP, principalmente. Iem procura resumir o

objetivo do livro: A idÈia È divulgar! … de divulgar o que s„o as afasias,

explicando o que s„o as afasias, qual È o impacto que a afasia tem na vida das

pessoas.

Outros temas s„o tambÈm arrolados, relacionados ao prÛprio grupo e ao

CCA ñ a import‚ncia do grupo, ter uma experiÍncia de grupo como nÛs temos,

o grupo È importante para a pessoa enfrentar a afasia, se recuperar ñ e

relacionados aos preconceitos e prÈ-construÌdos que cercam as afasias ñ as

pessoas imaginarem que porque n„o fala, n„o fala direito n„o pensa direito

(...), cheio de idÈias do que seja a afasia, cheio de idÈias que tambÈm podem

ser idÈias errÙneas (...).

Temas como a mudanÁa de trabalho ou de atividade apÛs a afasia s„o

introduzidos por EF, por exemplo:

Iem: A gente est· elencando o que dizer.

EF: Ma:ssa:gem:

Imc: O senhor quer contar... sobre essa coisa que o senhor comeÁou a fazer

depois... de ser af·sico nÈ?

EF: ‘...Ù...

Como tambÈm no fragmento a seguir:

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Iem: Porque traz mudanÁas... tem que dizer bom...que que mudanÁas

trazem?

EF: A:d:vo:ga:do:...

Imc: Era advogado... È advogado. E passou a fazer outras coisas...

Observamos que neste encontro comeÁa a ser delineado o modus

operandi, a metodologia de trabalho que ser· por vezes adotada ou n„o na

construÁ„o do livro. Isto porque, como veremos no decorrer de outros

encontros, o grupo nem sempre funciona da mesma maneira e nem sempre

desenvolve as atividades de acordo com o planejamento j· feito.

Em relaÁ„o ‡ metodologia, Iem propıe, com base em um material

levado por EF ñ um exemplar de uma revista editada por um grupo religioso

com um artigo sobre derrame cerebral ñ ìComo enfrentar um derrame cerebralî

ñ que o grupo tenha uma espÈcie de material de base para ser compartilhado

por todos. Esse material ser· distribuÌdo para todos do grupo, ser· lido,

comentado, criticado e complementado pelo grupo construindo um patrimÙnio

comum. O grupo aproveita o material de EF, examinando e discutindo um

pouco seu conte˙do e derivando dessa discuss„o outros temas para o livro:

informaÁıes tÈcnicas sobre o funcionamento do cÈrebro, a relaÁ„o com a

famÌlia apÛs a afasia, depoimentos de familiares de af·sicos.

Ainda em relaÁ„o ‡ metodologia, Iat propıe que os depoimentos dos

af·sicos do CCA sejam tambÈm incorporados a esse material de base,

justificando que a singularidade do livro do CCA e seu diferencial em relaÁ„o

aos demais livros sobre afasia estariam, justamente, nos relatos de

experiÍncias de cada um com a afasia.

As propostas de Iem e de Iat parecem ter a ades„o do grupo, e Iem

propıe ainda que seja elaborado um roteiro com itens para orientar a reflex„o e

a composiÁ„o dos depoimentos. PorÈm, Iem mesma questiona a necessidade

ou n„o de um roteiro e a quest„o È discutida no grupo. SP comenta que

provavelmente ter· dificuldades para responder ao roteiro. Imc argumenta que

j· existe material gravado interessante para os depoimentos e sugere que o

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grupo assista ao vÌdeo referente aos depoimentos. Iff adere ‡ sugest„o de Imc

e Iat propıe que o grupo assista ao vÌdeo como forma de confrontar

experiÍncias, motivando e complementando os depoimentos. Iff sugere ainda

que os depoimentos sejam transcritos para facilitar sua compilaÁ„o.

Iem: Minha pergunta pra vocÍs È o seguinte: esta È uma boa idÈia? Ent„o

quer dizer: no livro estaria os depoimentos... cada um contando a prÛpria

histÛria.

EF: [Hum...

Iem: Que que acha disso nÈ? Desde quando ficou af·sico... o que

aconteceu... o que mudou... o que n„o mudou... que... que mudanÁas

que isso acarretou na vida... como È que se adaptou... se teve um outro

trabalho... se n„o... que tal isso? Seria isto o livro... Que que vocÍs

acham?

SP: [Certo.

EF: [Hum... hum.

Iem: Agora a minha pergunta agora pra vocÍs È outra: seria bacana fazer um

roteiro desses depoimentos? Com itens... pra que vocÍs fossem

pensando sobre isso... durante a semana pra gente retomar na semana

que vem? Ou n„o?

EF: Seria //Acenando afirmativamente com a cabeÁa//.

Imc: Seria. Que alguns podem seguir... outros n„o...

Iem: …... N„o se... n„o... esse roteiro n„o È um roteiro difÌcil. Mas s„o

Imc: [Pra pensar... pra

pensar!

Iem: Exato! O que que vocÍs acham disso? Entendeu Iat? …... colocar itens

assim que seriam... que ajudariam pra... como se fosse um roteiro pra

esse depoimento. Ou n„o... faz livremente?

Iem: Porque a gente j· levantou coisas aqui. Olha por exemplo... seria

importante estar nesse depoimento... vocÍs falaram: ìAh... falar do quÍ...

da causa... da afasia que temî nÈ? Ent„o... causa... a quest„o da sa˙de

que tem aÌ... na base disso.

Imc: Das dificuldades iniciais...

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Iem: [VocÍs falaram sobre dificuldades iniciais...

Imc: O que mudou... assim desde o inÌcio. O que mudou... o que foi

mudando.

Iem: [Isto.

Iem: Como È que vocÍs foram se adaptando a essa realidade. AlguÈm disse

que mudou de emprego. Outras pessoas que escreviam com a m„o

direita escrevem com a m„o esquerda.

EF: //Movimenta sua m„o esquerda aberta//.

Iem: Enfim... v·rias coisas nÈ? ... ent„o o trabalho em que est„o

trabalhando... Ou dos preconceitos... alguÈm falou sobre isto. N„o È?

Imc: //Acena afirmativamente com a cabeÁa//.

Iem: ... Esses seriam os elementos que estariam dentro dos depoimentos?

(NinguÈm se manifesta).

Iem: Quer dizer... estes s„o os elementos que iriam construir o depoimento?

Quando vocÍ vai contar sua experiÍncia... vocÍ vai contar tambÈm sobre

todos esses aspectos tambÈm. N„o È isso?

SP: Certo. Certo.

Iem: Acha que vale a pena anotar... levar pra casa pra pensar ou n„o? Na

semana que vem a gente...

SP: [Certo.

SP: L· mas a casa... tudo isso... Pensar //Leva a m„o ‡ cabeÁa// l· l·...

Porque l· l· num (provavelmente referindo-se ‡ dificuldade que teria de

fazer esta tarefa sozinho, em casa).

Imc: Pensar? Preparar um pouco. … isso? Porque a semana passada... seria

bom a gente ver aquela fita porque j· tem v·rios depoimentos assim de

impacto.

Iem: … mesmo?

Imc: … muito interessante.

Iem: A... t·.

Imc: Cada um falou.

Iem: A gente poderia assistir tambÈm esse vÌdeo na semana que vem.

SP: Sim... pode.

Iem: E ir complementando.

SP: Justamente.

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Iem: Que tal isso?

Iff: Eu acho melhor ver o vÌdeo que levar pra casa o roteiro.

Imc: [Eu acho muito legal. A gente vÍ junto... ajuda o outro.

Iat: E eu acho atÈ que pode ter momentos tambÈm... por exemplo num

primeiro momento a pessoa colocar... determinado: ìpuxa... mas pra

mim isso foi assimî. E vocÍ pode... com o depoimento do outro... ir

complementando o seu.

Imc: [Isso... e aÌ cria essa //Gesto entrelaÁando os

dedos das duas m„os//... nÈ?

Iat: Quer dizer... n„o È uma coisa

Imc: [Fechada.

Iem: Vale a pena a gente ver esse vÌdeo na semana que vem e depois ir

ampliando?

Iat: [Fechada (concordando com Imc).

Iat: E atÈ depois apontar coisas. ìE esse aspecto? NinguÈm falou sobre

isso... como È que foi e talî. E aÌ as pessoas

Iff: [Hum hum... Seria fazer um trabalho

em cima de uma transcriÁ„o. Essa sua idÈia È boa em cima de uma

transcriÁ„o.

Iat: Pra aquecer a discuss„o. Acho que È isso que vai marcar a diferenÁa.

Iem: AtÈ porque depois o resto a gente pode fazer nÈ. Que tipo de

informaÁ„o... a coisa do grupo... faz depois.

Duas semanas depois, em 16 de junho de 1999,5 a quest„o do material

de base para as discussıes sobre o livro È retomada. O livro O af·sico ñ

convivendo com a les„o cerebral foi tambÈm indicado (juntamente com a

revista sobre derrame levada por EF) para leitura pelo grupo, com destaque

para o capÌtulo com depoimentos de af·sicos.

Iem retoma tambÈm a decis„o do grupo de que os depoimentos dos

af·sicos do CCA seriam a fonte para o conte˙do do livro: o que È afasia, o que

significa conviver com o af·sico, os preconceitos acerca das afasias,

5 CCA05, no qual estavam presentes CI, EF, SI, JB, Imc, Iff e Iem (sentados em cadeiras formando um semicÌrculo).

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informaÁıes de ordem cientÌfica e terapÍutica sobre a linguagem e as afasias,

sempre na Ûtica da experiÍncia e vivÍncia dos sujeitos af·sicos.

… nesse encontro que CI aponta a inexistÍncia de livros acessÌveis para

leigos, uma das causas da empreitada ‡ qual o grupo se lanÁa, ou seja, a

elaboraÁ„o do livro do CCA.

Nesse encontro, um debate sobre a din‚mica cerebral nas afasias e o

processo de recuperaÁ„o se estabelece envolvendo principalmente Iem, Imc e

CI. Os conceitos de afasia e de les„o cerebral s„o discutidos culminando na

idÈia de plasticidade cerebral contra a idÈia de uma estrutura cerebral rÌgida.

Tal debate se inicia com a proposta de EF de que o livro do CCA traga

informaÁıes sobre o cÈrebro e, portanto, informaÁıes cientÌficas, mas, de

acordo com a ressalva feita por Iem, n„o em uma linguagem tÈcnica, numa

linguagem n„o sÛ cientÌfica.

Ainda nesse encontro, o livro do CCA ser· referido por Iem como nosso

livro, como um livro n„o sÛ de informaÁ„o, como n„o sÛ um livro cientÌfico,

como um livro n„o sÛ de divulgaÁ„o, como um livro das pessoas

compartilhando experiÍncias. E È CI sobretudo quem destaca a singularidade

do livro do CCA com sua fala sobre a ìparticularidadeî das histÛrias de cada

uma das pessoas em relaÁ„o ‡ afasia.

CI: Agora... cada um... cada um... particularmente... tem... È... È... tem uma

experiÍncia prÛpria! //Pegando no braÁo de EF//.

Imc: [Isso. Isso.

EF: …... Ù... Ù!

CI: …... e outra... e pode ler um livro atÈ cheio de experiÍncia...

Iem: Cheio de estÛria... de pessoas nÈ?

CI: [Cheio de estÛria. Parecidas... parecidas. Comigo...

com ele... com ela //Apontando para EF e depois para SI//.

Imc: [Isso!

EF: [//Ri//.

CI: Parecidas... mas È prÛpria... cada um È prÛpria! Por que... essa

particularidade?... Porque as pessoas s„o diferente!

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O grupo assume o compromisso de discutir a afasia n„o apenas como

uma quest„o neurolÛgica, mas como uma quest„o social, uma quest„o de

sa˙de p˙blica, uma quest„o legal e trabalhista, o que certamente vai distinguir

o livro do CCA dos demais livros sobre afasia existentes. Este compromisso vai

mobilizar o grupo no arrolamento e na discuss„o de v·rios temas que ser„o

recorrentes nos encontros que se seguir„o: mais uma vez a causa da afasia, o

impacto da afasia traduzido em isolamento social e familiar, os preconceitos a

respeito do af·sico, as leis que desconhecem os af·sicos, a perda do trabalho

e a aposentadoria por invalidez, as possibilidades de tratamento e de

recuperaÁ„o.

Iem faz um resumo das questıes apontadas ressaltando a

desinformaÁ„o e o preconceito que cercam a afasia como desafios a serem

enfrentados na construÁ„o do livro do CCA. CI adere ao ponto de vista de Iem:

Iem: Olha... ent„o vocÍs j· repararam... que o nosso livro... o nosso livro... ele

vai ser um livro importante... porque È um livro que vai se confrontar

sabe com quÍ? Com desinformaÁ„o... com medo... com preconceito...

com ignor‚ncia... ent„o vejam como È importante o...

CI: [MÈdicos... mÈdicos

Iem: [com mÈdicos que tambÈm

est„o ali!

CI: MÈdico somente que que tratam de afasia! … o o o o mÈdico que n„o

sabe afasia... afasia... n„o n„o interessa saber.

Iem: …... podem inclusive ter um entendimento errÙneo... equivocado nÈ?

Imc: [do que

seja afasia...

Iem: ... do que seja afasia... podem atÈ tratar como se fosse uma outra coisa!

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Quase trÍs meses depois, em 8 de setembro de 1999,6 a vinda ao grupo

de IP, uma senhora af·sica que havia freq¸entado o CCA anteriormente e que

havia muito tempo se afastara, permite que o grupo retome a quest„o do livro.

O fato de sÛ retomarem a discuss„o sobre o livro apÛs esse perÌodo poderia

sugerir pouca ades„o ao projeto, mas veremos que os sujeitos est„o bastante

envolvidos nessa tarefa. … preciso considerar que a atividade do livro era uma

entre as v·rias atividades desenvolvidas pelo grupo no programa de linguagem

do CCA e, alÈm disso, o grupo ainda n„o havia estabelecido um cronograma

de trabalho a ser seguido para nortear as discussıes sobre o livro.

Tanto os sujeitos estavam envolvidos nesse trabalho que, como

resposta ‡ proposta de Iem de relatarem a IP as atividades desenvolvidas pelo

grupo, EF escreve ìlivroî.

Iem: Vamos l·! O que que a gente faz aqui!

EF: ” //Estendendo a folha de papel para Iem//.

Iem: Ah! ìLivroî o senhor escreveu. Livro!

EF: ‘!

IP: Ah!

O grupo todo se mobiliza, ent„o num trabalho de co-construÁ„o conjunta

de referenciaÁ„o para explicitar o livro do CCA, como podemos verificar em

diversos fragmentos: D· mais uma dica seu EF... d· mais uma dica (IP); ”

//Iem fala com EF fazendo gesto com o dedo indicador para cima e traÁando

um cÌrculo//; u u cÈrebro... cÈ... //SP apontando para sua prÛpria cabeÁa//;

sobre o af·sico nÈ... È um livro sobre af·sico (CI); um livro de divulgaÁ„o... das

afasias... esse grupo aqui (Iem); a Iem e a Imc vai escrever o livro e vai... v„o

contar a experiÍncia que... nossa experiÍncia como conviver com o af·sico

(CI).

Esta ˙ltima formulaÁ„o de CI provoca uma discuss„o sobre a quest„o da

autoria do livro do CCA. Para CI, os autores s„o as pesquisadoras Iem e Imc, e

6 CCA06, no qual estavam presentes EF, SP, CI, IP, Imc, Ijt e SM. SM freq¸enta o CCA apenas mensalmente, em funÁ„o de trabalho e estudo.

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os sujeitos af·sicos apenas fonte dos depoimentos e das experiÍncias. Imc

recusa esta posiÁ„o: NÛs vamos escrever juntos... todos. Mas CI mantÈm-se

irredutÌvel: Vamos... mas... nÛs vamos participar... nÛs num vamos escrever.

Iem explica a IP que o grupo est· na fase de coleta do material que ser·

a base para o conte˙do do livro, explicitando tambÈm um pouco da

metodologia que prevÍ o registro em vÌdeo das discussıes sobre o tema, dos

depoimentos e relatos dos af·sicos e a transcriÁ„o de todo este material. Iem

salienta sempre o car·ter de grupo, de coletivo, de comunidade, presente em

todas as etapas desse processo:

Iem: Isso... veja... È filmado tudo nÈ? Tem o trabalho nosso filmado... tambÈm

do final da discuss„o sobre os temas que devem compor o livro...

depoimentos... relatos das pessoas nÈ... deles que ficaram... que se

tornaram af·sicas... Ent„o a idÈia depois È a gente transcrever esse

material e de... e decidir... em conjunto... o que que fica... o que que

n„o... o que È mais importante... o que faltou. A gente t· no momento...

na fase de coleta desse material...

EF: //Pega a caneta e escreve no papel//.

Iem: tentando identificar o que que vai no livro... o que j· temos. J· temos

depoimentos... por exemplo... pelo menos umas cinco sessıes de

depoimentos... a gente tem que reunir... depois ÈÈ:

EF: //D· o papel para Imc//.

Iem: transcrever isso aÌ direitinho nÈ? E depois decidir o que È que vai... o

que que n„o vai. Essa decis„o na verdade È toda em conjunto.

EF: //Procura algo em sua pasta//.

Imc: O que falta... se a gente vai chamar alguÈm para escrever certos

aspectos. Por exemplo... alguÈm j· falou que a gente poderia chamar o

Ibd 7 pr· pr· fazer um... um capÌtulo... uma parte sobre terapias e tal.

Iem: Sobre informaÁıes È:: sobre afasia... informaÁıes sobre o

funcionamento do cÈrebro... o que fica afetado ali... sobre aspectos de

recuperaÁ„o neurolÛgica nÈ? A import‚ncia dus... dos

7 Ibd ñ Dr. Benito Damasceno, mÈdico neurologista do Hospital das ClÌnicas da Unicamp.

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acompanhamentos... enfim... aÌ... Estamos fazendo isso na verdade nÈ?

Quer ver... olha... na semana passada a gente chegou a elencar... fazer

uma lista... lembra seu EF?

Iem propıe que se faÁa um resumo dos objetivos do livro ñ e de suas

funÁıes ñ o qual CI vai denominar de ìestrutura do livroî:

Iem: Bom... ent„o a senhora est· entendendo dona IP... que os objetivos

desse... desse livro s„o v·rios nÈ?

IP: Hum hum.

Iem: Mas... se a gente fosse resumir pra ela... assim... qual È o objetivo

mesmo do livro... se a gente conseguir enxerg·-lo nesse momento... que

È que a gente diria? O maior objetivo desse livro?

CI: O objetivo È nossa experiÍncia...

Iem: [A nossa intenÁ„o... pelo menos...

CI: ...experiÍncia e... comu È u livro pra divulgar pras pessoas... pra saber

que È af·sico. … È È...

Imc: Passar nossa experiÍncia?

CI: … af·sico... aÌ vai ver no livro... a nossa experiÍncia...

Iem: Ent„o s„o v·rias funÁıes que tem o livro nÈ... primeiro instrutiva

CI: [A ˙ltima È

informaÁ„o.

Iem: Ah t·.

CI: InformaÁıes legais e terapÍuticas nÈ? Essas informaÁıes È importante.

E È e e as cinco parte nÈ... pessoal... profissional... outras informaÁıes...

e a a a experiÍncia de conviver com o af·sico È a parte principal.

EF escreve no papel ìinteligÍnciaî, e com isso provoca no grupo uma

nova sÈrie de discussıes acerca do conceito de afasia, das crenÁas e

preconceitos arraigados na sociedade sobre o funcionamento do cÈrebro,

sobre a linguagem, sobre as alteraÁıes de linguagem. Com essa discuss„o o

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grupo decide inserir no livro um capÌtulo sobre o que È afasia, os preconceitos

e mitos que a cercam e as d˙vidas mais comuns sobre o problema. Organizado

como ìd˙vidas e mitos acerca das afasiasî, esse capÌtulo vai nortear as

discussıes e dar· origem ao capÌtulo 2 do livro do CCA ñ InformaÁıes gerais

sobre as afasias.

CI inicia uma discuss„o importante sobre o que ele inicialmente refere

como ìexplicaÁ„o da afasiaî: a quest„o da gravidade ou os graus de

severidade da afasia, discuss„o essa que vai envolver tambÈm alguns

preconceitos acerca de recuperaÁ„o e cura.

Ao final do encontro o grupo, em conjunto e n„o sem confrontar

diferentes posiÁıes, toma algumas decisıes sobre a metodologia de trabalho.

Iem propıe que a cada semana o grupo discuta um determinado tema,

com o registro da discuss„o em vÌdeo e posterior transcriÁ„o. Com esse

material em m„os o grupo complementar· e construir· o texto (ela tambÈm

propıe um dos seguintes temas para discuss„o na semana seguinte: a

quest„o do trabalho ou o que È afasia, mitos e d˙vidas). Imc discorda e propıe

que o grupo trabalhe sobre depoimentos e relatos antigos j· existentes de

alguns af·sicos que est„o sendo transcritos por alunos da graduaÁ„o. IP adere

‡ sugest„o de Iem referindo-se ao livro do CCA como livreto: Devia comeÁar

com o livreto. Imc insiste em sua posiÁ„o e ent„o È CI quem contra-argumenta

com ela. Ao final, a posiÁ„o de Imc ñ trabalhar com a transcriÁ„o dos

depoimentos ñ parece prevalecer com a ades„o de todos:

Imc: N„o... eu acho que talvez se estiver pronto... olhar os depoimentos, pra

n„o ficar dizendo a mesma coisa numa outra vez... pra saber o que tem

gravado... saber o material que j· temos.

CI: Mas... a... a a... È... a gente deve mudar. Falar sobre profissional nÈ...

sobre profissional. AÌ... aÌ... escreve... tal

Iem: [Seria focalizar essa quest„o.

CI: AÌ... ai nÛs vamos gravar... a experiÍncia profissional de cada um.

Iem: [Exato. [T·.

Imc: Eu sei CI... mas j· h·... nos depoimentos que vocÍs j· fizeram...

CI: […... eu sei.

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Imc: que vocÍs n„o sabem nem o que falaram... porque a gente se esquece...

isso j· faz muito tempo! J· tem coisas sobre a vida pessoal... sobre o

tra... a profiss„o... o impacto na profiss„o. V·rias coisas que vocÍs j·

falaram. Pra gente n„o ficar dizendo tudo outra vez nÈ?

CI: […...È.

Iem: T· bom.

IP: //Acena afirmativamente com a cabeÁa//.

EF: Hum... i· //Gesto afirmativo com a cabeÁa//.

Imc propıe que a discuss„o sobre o livro seja quinzenal. Iem pergunta a

opini„o do grupo. N„o sem algumas divergÍncias, com as opiniıes divididas

entre discussıes semanais e quinzenais, o grupo opta pela discuss„o semanal,

dedicando-se uma parte do perÌodo para o livro e outra parte para as demais

atividades do grupo no programa de linguagem. CI propıe que cada um leve

para casa os pontos de discuss„o definidos nessa reuni„o, se possÌvel

escrevendo algumas reflexıes a respeito para serem debatidas no grupo na

semana seguinte. O material j· existente fica ‡ disposiÁ„o de todos no CCA.

Duas semanas depois, em 22 de setembro de 1999,8 È Iem quem

introduz o tÛpico do livro ñ ao qual se refere como nosso livro ñ ressaltando a

decis„o de tomar como fonte os depoimentos.

Iem: A gente decidiu que no nosso livro... vai ter depoimento. Depoimentos...

esses que vocÍs... fazem quando nÛs conversamos nÈ? E que s„o ali

gravados... alguÈm j· est· l·... transcrevendo.

CI cobra ent„o as transcriÁıes dos depoimentos cuja apresentaÁ„o, que

havia sido programada para a semana anterior, ainda n„o acontecera. Iem

explica que o processo de transcriÁ„o È trabalhoso e, portanto, lento, exigindo

mais tempo do que o previsto. Iem retoma, mais uma vez, a metodologia de

8 CCA07, no qual estavam presentes SI, EF, SP, MS, CI, Iff, Iem e Ijt (sentados em torno da mesa).

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trabalho explicitando que tudo È gravado e transcrito, mas que o grupo ir·

selecionar, do material da transcriÁ„o, o conte˙do do livro.

A vinda de MS, que h· quase seis meses n„o freq¸entava o CCA, foi

motivada por Iem, que o convidou para colaborar com sua experiÍncia na

construÁ„o do livro do CCA. Diferentemente do que havia ocorrido com IP duas

semanas antes, com todos mobilizados para inform·-la sobre o livro, neste

encontro apenas Iem explicita o projeto para MS, convocando-o a participar,

com seu depoimento, da elaboraÁ„o do livro.

Iem: A gente est· pensando em elaborar um livro...

MS: Hum...

Iem: Um livro... simples... n„o È... dirigido a... a a assim... a um a um grande

p˙blico... n„o È... que È um livro pra divulgar as afasias... as

conseq¸Íncias... como lidar... como enfrentar... como... como conviver

com as afasias... que s„o esses problemas de linguagem //Apontando a

boca// decorrentes da //Apontando a cabeÁa//... de les„o cerebral nÈ...

de um acidente vascular... de uma batida //Bate a m„o na cabeÁa//... e

assim vai.

Iem: (...) Ent„o... a gente pediu pro senhor vir tambÈm pra contar um pouco

sobre... „... essa experiÍncia que o senhor teve nÈ... de tambÈm ter

ficado... af·sico e como È que foi a sua vida... em torno dessa nova

experiÍncia. Porque no livro... tambÈm alÈm das informaÁıes... a gente

est· pensando tambÈm em colocar depoimentos... da... das pessoas.

MS: …... È bom viu?

MS avalia que suas dificuldades de fala, de memÛria e de escrita o

tornam incapaz de colaborar. … CI quem contra-argumenta a favor da posiÁ„o

de que È justamente a experiÍncia de MS com a afasia que o habilita a

participar e a colaborar no projeto do livro.

O grupo examina, ent„o, o material disponÌvel sobre afasia: cÛpias de

alguns capÌtulos do livro O af·sico ñ convivendo com a les„o cerebral

(especialmente os depoimentos) e um livro em espanhol trazido por EF cujo

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tÌtulo foi assim traduzido por Iem: Como ajudar quem perdeu a capacidade de

falar. Iem comenta a estrutura desse livro, organizado sob a forma de v·rias

perguntas e respostas curtas, comparando-o com o livro que o grupo pretende

escrever, que ser· organizado sob a forma de depoimentos e informaÁ„o sobre

as afasias.

Iem exemplifica lendo algumas perguntas do livro em espanhol que, ‡s

vezes, s„o comentadas pelo grupo: quais s„o as causas da afasia?; Todos os

pacientes com afasia tÍm a mesma dificuldade para se comunicar? ñ N„o nÈ...

mas a comunicaÁ„o È um problema para todos; Como a famÌlia pode ajudar a

pessoa af·sica?; Que benefÌcios existem na reabilitaÁ„o? ñ Fonoaudiologia,

fisioterapia; O af·sico È um doente mental?

Esta ˙ltima quest„o mobiliza os sujeitos, especialmente MS, quanto aos

conceitos de afasia e af·sico:

Iem: O af·sico È um doente mental? //Apontando sua cabeÁa//.

MS: [N„o! NÈ? N„o È demente mental n„o! Viu?

A quest„o seguinte ñ Pode-se prevenir a afasia? ñ tambÈm vai provocar

polÍmica, uma vez que MS e CI tÍm conceitos diversos sobre prevenÁ„o: para

MS, n„o existe prevenÁ„o, ao passo que para CI, a prevenÁ„o È possÌvel.

O grupo retoma mais uma vez o material disponÌvel para discuss„o e

decide mais alguns aspectos sobre a metodologia.

CI comenta com o grupo sobre o livro (uma espÈcie de ìdicion·rioî de

palavras-chave) que um amigo enfermeiro lhe emprestou, voltado para

enfermeiros e dedicado ‡ afasia.9 Ele se compromete a trazer o material. MS

argumenta que n„o consegue ler e Iem sugere que ele faÁa a leitura com

alguÈm de sua famÌlia ou mesmo com o grupo ñ e essa sugest„o È v·lida para

todos com dificuldades de leitura. CI, referindo-se ao livro em espanhol trazido

por EF, argumenta que n„o conhece essa lÌngua, o que tambÈm È um

obst·culo para a maioria dos presentes. Iem se propıe, ent„o, a traduzir as

9 CI j· se referira a esse livro havia trÍs meses, no encontro de 16 de junho de 1999 (CCA05).

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perguntas do espanhol, e È aqui que a idÈia de se construir um roteiro ñ para

nortear n„o apenas os depoimentos, mas as discussıes tem·ticas do livro ñ È

retomada.

Iem: E eu tenho uma sugest„o quanto a isso: este livro... ele È feito... eu n„o

gosto... eu gosto das perguntas... mas eu n„o gosto muito das respostas

que ‡s vezes o livro d·. Sabe o que eu posso fazer? Eu posso traduzir

pro portuguÍs... estas trinta e uma perguntas...

CI: [”timo...

Ûtimo!

EF: [‘... Ù!

Iem: pra gente tentar responder aqui... cada um de vocÍs com a idÈia que

tem! Que tal isso? Pro nosso prÛximo encontro?

CI: [”timo!

MS: [Muito bom!

(...)

Iem: A gente re˙ne esse material e decide o que È bom e o que n„o È bom...

porque nem sempre nesses livros todos tÍm coisas boas. ¿s vezes eles

tÍm a intenÁ„o que È boa... de divulgar... mas divulga... ‡s vezes... com

prÛprio preconceito. Ent„o a gente tem que avaliar o que È bom e o que

n„o È e construir o livro que a gente quer fazer. T· bom?

Na semana seguinte, no dia 29 de setembro de 1999,10 o grupo apenas

retoma o que havia sido decidido no encontro anterior sobre o material

compilado e disponÌvel sobre afasias, cuja leitura vai contribuir nas discussıes,

e a metodologia de trabalho adotada (debate de temas elencados pelo grupo,

registro das reuniıes semanais, transcriÁ„o das reuniıes e dos depoimentos,

decis„o em conjunto sobre o conte˙do do livro). EF, advogado, toma a

iniciativa de estudar no livro O af·sico ñ convivendo com a les„o cerebral a

10 CCA08, do qual participaram EF, SP, IP, SI, Ijt e Iff.

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legislaÁ„o trabalhista para colaborar, com sua experiÍncia, no capÌtulo do livro

do CCA sobre trabalho, perda de emprego e aposentadoria.

Na semana seguinte, em 6 de outubro de 1999,11 o grupo faz um resumo

do que havia sido discutido e decidido atÈ ent„o sobre o livro (esta pr·tica de

se fazer uma recapitulaÁ„o sobre o desenvolvimento do livro torna-se bastante

freq¸ente talvez porque nem todos os participantes do grupo estejam presentes

a todas as reuniıes): Um resumo para ver em que pÈ estamos ñ conforme

enuncia Iem.

O livro comeÁa a ganhar certo contorno, certa configuraÁ„o na decis„o

do grupo de dividi-lo pelo menos em duas partes: uma sobre informaÁıes

gerais relacionadas a afasias ñ causas, reabilitaÁ„o, questıes sociais e

trabalhistas ñ e uma outra parte baseada nos depoimentos.

Iem, respons·vel pela tarefa de traduzir as perguntas do livro espanhol

trazido por EF, informa que ainda n„o concluiu a traduÁ„o e que, apesar de

n„o ter gostado das respostas, considerou a estrutura das perguntas

interessante. Decidem que o grupo ir· selecionar as perguntas relevantes para

o livro e, se necess·rio, criar suas prÛprias perguntas.

O grupo discute a quest„o da desinformaÁ„o tanto sobre linguagem,

quanto sobre afasia. Ijt relata seu desconhecimento sobre afasia no inÌcio de

seu trabalho com o grupo de af·sicos do CCA (Programa de Express„o

Teatral), ressaltando a import‚ncia da informaÁ„o. MS se identifica, relatando

que conhecia o significado da palavra ìloucoî ñ e que sabia n„o estar louco ñ

mas jamais imaginou a condiÁ„o de ser ìaf·sicoî: O cÈrebro tem v·rias

repartiÁıes que È a vida da gente. Eu n„o pensei pra pensar. A vida vai com a

barriga.

Para a semana seguinte o grupo programa, com base no material sobre

afasia disponÌvel para leitura, decidir o conte˙do da primeira parte do livro. E,

em 13 de outubro de 1999,12 quase ao final do encontro, Ijt refere-se ao livro do

CCA indagando SM sobre estar ou n„o informado do projeto (SM havia

participado da reuni„o de 8 de setembro de 1999):

11 CCA09, do qual participaram Iem, Imc, Ijt, EF, SP, SI, JB e MS. 12 CCA10, no qual estavam presentes SP, SM, Ijt e Iff.

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Ijt: VocÍ lembra do que que È o livro? //Dirigindo-se a SM//.

SM: O livro o livro a u pessoalzinho comentar aqui... a Iem... a Imc... mas eu

n„o tenho o livro pa/

Ijt: [N„o... mas nÛs estamos escrevendo ainda... n„o existe o

livro ainda. N„o existe... os li... o livro est· aqui //Apontando para a

cabeÁa// na cabeÁa de vocÍs... da gente... entendeu? NÛs estamos

fazendo depoimentos... a c‚mera est· gravando... existe uma pessoa

que est· transcrevendo //Fazendo gesto de ìescreverî// nÈ... o que nÛs

estamos falando... Depois nÛs vamos compor o livro... a partir dos

depoimentos... certo?

SM: Certo.

Ijt: Que a gente est· dando aqui. O pessoal est· dando depoimentos...

falando da vida... falando das dificuldades nÈ? Da convivÍncia com a

afasia... ent„o È muito importante a gente estar falando como È que È a

nossa... o nosso dia-a-dia... como È que È a nossa relaÁ„o no trabalho...

em casa nÈ... „.. com as pessoas... como È que È a convivÍncia com as

pessoas... se existe discriminaÁ„o... se a gente pode mudar a lei para

ajudar outras pessoas que vim... que ficarem com afasia nÈ. Ent„o È

muito importante a gente falar.

SP comenta que deu ìuma olhadaî no material sobre afasia: embora a

linguagem dos textos n„o seja difÌcil, a letra pequena dificulta a leitura e suas

dificuldades de memÛria afetam a retenÁ„o do que foi lido.

Duas semanas depois, em 27 de outubro de 1999,13 o livro sÛ È

mencionado ao final da reuni„o, com a chegada de CI, que explica ao grupo o

motivo de seu atraso: foi fazer exame de sangue no hospital da Unicamp e

havia uma grande fila. CI vinha apresentando alguns problemas de sa˙de que

limitavam sua freq¸Íncia ao CCA. … importante ressaltar que a presenÁa de CI

È sempre mobilizadora do grupo no tocante ‡s discussıes sobre o livro. Nesse

encontro ele finalmente traz para o grupo o material que havia prometido: um

13 CCA11, no qual estavam presentes SP, EF, SI, JB, Ijt e CI.

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livro de enfermagem que traz um tÛpico sobre afasia. Todos quiseram uma

cÛpia do material trazido por CI.

ApÛs um mÍs, em 25 de novembro de 1999,14 o livro È discutido em

relaÁ„o ‡ metodologia de trabalho que o grupo adotar· e algumas resoluÁıes

s„o tomadas em conjunto.

Iem faz uma retrospectiva relatando a existÍncia de oito reuniıes

registradas em vÌdeo nas quais se tematizou de alguma forma o livro: s„o

depoimentos, discussıes sobre as repercussıes da afasia na vida de cada um,

o conte˙do do livro, sua organizaÁ„o em capÌtulos, os temas a serem

abordados. … um material bastante extenso que requer um tempo tambÈm

extenso para que o trabalho de transcriÁ„o, que È complexo, seja concluÌdo.

O grupo concorda em retomar a discuss„o sobre o livro apenas apÛs a

conclus„o da transcriÁ„o. Do material transcrito, ser„o selecionados os temas

e sintetizados os tÛpicos que dever„o compor o livro, exemplificando-se cada

quest„o com os depoimentos e experiÍncias vividas pelo grupo. Esse material

assim organizado ser· distribuÌdo para todos do grupo, que trabalhar„o em

conjunto no CCA, lendo, fazendo modificaÁıes e definindo o conte˙do do livro.

O grupo assume trabalhar com afinco para concluir esse trabalho atÈ o final do

primeiro semestre de 2000, visando ‡ publicaÁ„o do livro.

O tema sÛ È retomado pelo grupo quase trÍs meses depois, em 10 de

fevereiro de 2000,15 apÛs o recesso de fÈrias e reinÌcio das atividades do CCA.

… reafirmada a decis„o de retomar a discuss„o sobre o livro assim que o

trabalho de transcriÁ„o for concluÌdo. Algumas questıes sobre a metodologia

s„o formuladas por Iem e por Imc em relaÁ„o ‡ transcriÁ„o, ‡ seleÁ„o e ‡

ediÁ„o do material:

Iem: Uma coisa È a gente falar... outra coisa depois È alguÈm transcrever isto

e a gente escolher certas partes para publicar... contidas no livro.

Imc: V„o editar. A gente vai editar... vocÍs v„o fazer essa triagem da fala de

vocÍs... n„o vai sair assim //SI//.

Iem: A histÛria do Centro aqui... eu e a Imc temos j· um texto escrito.

14 CCA12, no qual estavam presentes CI, SI, EF, SP, JB, IP, Iem, Ijt e Imc. 15 CCA13, no qual estavam presentes SI, SP, Iem, Imc e Ijt.

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Imc: Isso... a gente tem.

Iem: [Que a gente vai passar pra vocÍs contando como surgiu... e

tudo mais.

Imc: A parte mais mÈdica... digamos assim... de informaÁıes e tal... isso o Ibd

pode fazer nÈ?

Iem: A realidade da Sa˙de.

Imc: Ent„o... e vocÍs seriam os depoimentos... os relatos... as experiÍncias

de vida que tÍm relaÁ„o tambÈm com a convivÍncia nossa aqui... porque

È uma coisa que a gente partilha h· muito tempo.

Ao discutirem sobre propostas de atividades para o ano 2000, Iem

ressalta a import‚ncia de se dar continuidade ‡s demais atividades do CCA no

Programa de Linguagem ñ n„o sÛ o livro, mas a agenda e o painel de notÌcias,

por exemplo ñ pois s„o todas essas atividades que caracterizam o Centro

como um espaÁo de convivÍncia: esse È o nosso patrimÙnio de... de coisas

comuns. … a nossa memÛria. … ou n„o È? Isso È a convivÍncia.

Passados trÍs meses, o encontro do dia 4 de maio de 200016 marca o

reinÌcio das discussıes sobre o livro do CCA. O grupo recebe LM, que retorna

ao CCA apÛs um perÌodo de afastamento.

Iem faz uma leitura do material compilado para discuss„o, e os

participantes discutem v·rios tÛpicos relacionados ao livro. A quest„o da

aposentadoria, por exemplo, È um tema que suscita uma polÍmica interessante

envolvendo principalmente CI, Iem e LM em posiÁıes favor·veis ou contr·rias

‡ aposentadoria, ou ainda a favor de recolocaÁ„o profissional. CI provoca uma

discuss„o que pıe em pauta a relaÁ„o entre afasia e nÌvel socioeconÙmico, e

assim mobiliza quase todos os presentes: Eu quero dizer... eu quero dizer... eu

quero dizer... È:: af·sico... nÛs estamos tra tratando do nosso meio t·? Porque

af·sico rico... rico... n„o È af·sico. Esse debate vai culminar com a veiculaÁ„o

de uma posiÁ„o exemplar em torno do conceito de afasia: a afasia È uma

quest„o social, inapelavelmente.

16 CCA14, no qual estavam presentes SI, LM, CI, SP, JB, Imc, Iem, Iat e Ijt.

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Finda a discuss„o, o grupo se debruÁa sobre questıes relativas ‡

metodologia de trabalho. Imc sugere que se inclua no livro uma parte sobre

leis. Iem discorre sobre o restante da estrutura do livro, que vai ganhando

contornos cada vez mais nÌtidos. O grupo chama ora de parte trÍs, ora de

capÌtulo trÍs o conte˙do do livro que vai tratar o conceito de afasia do ponto de

vista dos mitos e dos preconceitos que a condicionam, do ponto de vista

ling¸Ìstico ñ considerando as diferenÁas entre os quadros af·sicos quanto ‡

natureza e ‡ gravidade dos problemas de linguagem ñ, do ponto de vista

mÈdico-neurolÛgico ñ discutindo suas causas, incidÍncia e prevenÁ„o (texto

cuja produÁ„o ficou a cargo de Ibd) ñ e do ponto de vista terapÍutico ñ

abordando o tratamento, os profissionais envolvidos, a quest„o da cura e da

alta. O grupo decide que o Centro de ConvivÍncia de Af·sicos, em sua histÛria

e din‚mica de funcionamento, ser· discutido na parte quatro ou capÌtulo quatro.

Iem faz novamente uma retrospectiva do material j· compilado pelo

grupo para servir de base ‡s discussıes: o livro O af·sico ñ convivendo com a

les„o cerebral; o livro Como enfrentar o derrame cerebral;17 um folheto de

divulgaÁ„o trazido por EF ñ Como funciona o cÈrebro; e Como ajudar quem

perdeu a capacidade de falar, livro espanhol em forma de perguntas e

respostas trazido por EF em setembro de 1999 sobre o qual Iem comenta: A

gente folheou esse livro e n„o gostou das respostas, gostou das perguntas. O

livro È criticado por tratar a afasia apenas como uma quest„o de sa˙de (ou de

doenÁa) circunscrita ao cÈrebro lesado.

Iem informa ter terminado a traduÁ„o das perguntas do livro espanhol,

das quais o grupo seleciona catorze questıes que foram distribuÌdas a todos

para servir de base para reflex„o e discuss„o junto a familiares e amigos. Iem

lÍ e comenta brevemente algumas das perguntas. O grupo decide iniciar o

debate pela ent„o chamada parte trÍs do livro do CCA, tomando essa espÈcie

de roteiro com as catorze questıes como desencadeador das discussıes que

nortear„o a construÁ„o do livro do CCA. O roteiro È composto das seguintes

perguntas:

17 Maciel Jr, J. A. (1988). Como enfrentar o derrame cerebral. S„o Paulo: Õcone, Campinas: Ed. Unicamp.

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1. O que È a afasia?

2. O que provoca a afasia?

3. Podemos prevenir a afasia?

4. Todas as pessoas af·sicas tÍm a mesma dificuldade para se comunicar?

5. Deve-se falar com o af·sico sobre suas dificuldades ou sobre seu estado

de sa˙de?

6. Existe algum tratamento farmacolÛgico ou cir˙rgico para melhorar ou curar

a afasia?

7. Qual È o momento mais recomend·vel para dar inÌcio ao acompanhamento

terapÍutico?

8. Onde encontrar tratamento para enfrentar ou superar as afasias?

9. Que benefÌcios em geral a pessoa tem com o tratamento terapÍutico?

10. Em que momento termina a reabilitaÁ„o?

11. Que ajuda profissional deve-se prestar ao af·sico?

12. O af·sico pode ser considerado um deficiente mental?

13. O af·sico consegue recuperar totalmente sua linguagem?

14. O af·sico pode continuar a trabalhar?

Na semana seguinte, em 11 de maio de 2000,18 o tÛpico do livro È

retomado apenas ao final do encontro. … Iem quem introduz o tema, referindo-

se ao roteiro distribuÌdo na semana anterior. CI trouxe o roteiro respondido por

sua esposa, por escrito. Os demais nada trouxeram por escrito e JB nem

mesmo levou o material para casa.

Embora n„o se pautando pelo roteiro, o grupo comenta algumas

questıes relativas ‡ ent„o chamada parte trÍs do livro do CCA ñ ìInformaÁıes

gerais sobre as afasiasî: SI, ao enunciar mÈdico e consulta, mobiliza o grupo e

principalmente CI para uma discuss„o sobre a qualidade do atendimento

mÈdico e o desconhecimento de profissionais da sa˙de acerca das afasias. Iat

fala sobre a import‚ncia do diagnÛstico, e Iem ressalta que conhecer as causas

das afasias pode ajudar na prevenÁ„o.

Iem esclarece que o texto de Ibd para o livro tocar· nas questıes de

causas e prevenÁ„o da afasia.

Ijt, que conduz no CCA as atividades do Programa de Express„o Teatral

(que ocorrem logo apÛs as atividades do Programa de Linguagem), faz uma

18 CCA15, no qual estavam presentes JB, SI, EF, CI, SM, Iem, Imc, Iat e Ijt.

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sugest„o no tocante ‡ metodologia de trabalho do livro, propondo que esse

tema seja abordado n„o ao final dos encontros, como vem ocorrendo, mas logo

no inÌcio (como as discussıes podem tornar-se acaloradas, n„o È raro que se

estendam para alÈm do tempo previsto, avanÁando no hor·rio do Programa de

Express„o Teatral). Todos concordam e decidem que os encontros ser„o

iniciados pela discuss„o sobre o livro do CCA.

O encontro termina com a distribuiÁ„o do material disponÌvel para leitura

incluindo-se, alÈm do roteiro com as catorze perguntas, um artigo19 escrito por

Iem ñ sobre ìpreconceitos ling¸Ìsticos e as afasiasî ñ que ela disponibiliza para

leitura.

TrÍs semanas depois, em 1 de junho de 2000,20 o grupo se ocupa com

as cÛpias de alguns capÌtulos de um livro21 trazido por Iem ñ Como enfrentar o

derrame cerebral ñ que foram selecionados pelo grupo como os mais

relevantes para as discussıes: ìOs mitosî; ìO que È derrame cerebralî; Como

prevenirî; ìPalavras finaisî. Todos, mobilizados por CI, querem tambÈm cÛpias

do capÌtulo intitulado Como conviver. Iem comenta sobre o enfoque dado ‡s

afasias nesse livro.

O grupo discute o tipo de linguagem a ser usado no livro do CCA ñ

tÈcnica, cientÌfica, coloquial ñ e CI faz algumas crÌticas ao texto22 de Iem que

fora distribuÌdo para leitura, ìAs afasias entre o normal e o patolÛgicoî,

apontando que o texto È de difÌcil compreens„o justamente por estar escrito em

uma linguagem tÈcnica. ApÛs coment·rios de CI sobre suas dificuldades de

memÛria e de leitura e escrita, o grupo planeja o tema da prÛxima reuni„o: a

transcriÁ„o dos depoimentos feitos pelos af·sicos ao final de 1999.

Na semana seguinte, no dia 8 de junho de 2000,23 o grupo discute

inicialmente questıes relativas ao conceito de afasia e ‡ cura motivado pela

fala de CI que relata ter assistido na televis„o a um programa sobre

reabilitaÁ„o de pacientes com seq¸elas motoras.

19 Morato, E. M. As afasias entre o normal e o patolÛgico: da quest„o (neuro)ling¸Ìstica ‡ quest„o social. In: Lopes da Silva, F.; Moura, H. (Org.) Direito ‡ fala: a quest„o do preconceito ling¸Ìstico. FlorianÛpolis: Insular, 2000. 20 CCA16, no qual estavam presentes Imc, Iem, Ijt, Iat, Ihm, SI e CI. 21 Op. cit., p.30. 22 Op. cit., p.32. 23 CCA17, no qual estavam presentes JB, SI, LM, CI, Iem, Imc, Iat e Ijt.

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… nesse encontro que o grupo inicia formalmente a discuss„o do roteiro

de catorze questıes, que foi justamente criado com a finalidade de orientar e

de provocar as discussıes sobre o livro das afasias. Iem faz uma leitura em

voz alta do roteiro. Todos os participantes levaram uma cÛpia do roteiro para

casa para que pudessem refletir sobre as questıes. CI trouxe novamente o

roteiro respondido por escrito por sua esposa e relata que, apesar de n„o

concordar com algumas de suas respostas, n„o discutiu o texto com ela,

preferindo debater primeiramente com o grupo.

CI: Eu levei pra casa (as perguntas) e falei pra minha esposa: ìOlha... vocÍ

tem que escreverî.

Iem: [//Cai na gargalhada//.

JB, SI, Iat, LM e Imc: //D„o risada//.

CI: //Ri//. ìVocÍ tem que responder... porqueî...

Iem: [Ficou bem parafuseta da

ribombeta isso aÌ tambÈm...

Iat: VocÍ TEM que responder...

CI: VocÍ responde... pra me conhecer nÈ. AÌ... aÌ...

Iem: Nossa!

CI: ìEu vou levar pra... vou levar pra discutir em classeî //Faz gesto com a

m„o referindo-se ao grupo//. AÌ... eu li as perguntas que ela fez... tudo...

Iem: As respostas nÈ?

CI: AÌ ela falou: ìTudo bem?î Eu falei: ìN„o... tem umas trÍs coisas que eu

discordo com vocÍ... mas vou levarî...

Iat: //D· risada//.

Iem: N„o... n„o discutiu com ela ent„o?

CI: N„o... vou... vou discutir com o grupo... depois eu falo com ela.

Iem: T· certo.

CI: [T·... porque È... È minha opini„o.

Iat: Eu vou querer saber do que que vocÍ discorda.

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De modo geral, as discussıes acerca de cada uma das questıes do

roteiro sempre tiveram inÌcio com a leitura da resposta dada pela esposa de CI,

o que funcionou como uma espÈcie de ìaquecimentoî para o debate. O grupo

n„o decide a priori a metodologia de uso do roteiro: a metodologia inicial ñ

adotada para as duas primeiras perguntas e proposta por Iem ñ parece ter sido

fazer a leitura de todas as respostas do roteiro, e sÛ ent„o abrir para discuss„o.

A partir da terceira pergunta, Iem faz uma consulta ao grupo sobre a

metodologia, reformulando sua posiÁ„o inicial. O grupo delibera que discutir„o

ponto a ponto a partir de ent„o.

As quatro primeiras perguntas foram debatidas nesse encontro ñ O que

È afasia? O que provoca a afasia? Podemos prevenir a afasia? Todas as

pessoas af·sicas tÍm a mesma dificuldade para se comunicar? ñ, provocando

mais ou menos conflito e debate no grupo.

A pergunta sobre as causas da afasia teve, por exemplo, esta resposta

por escrito da esposa de CI: a afasia È provocada por uma les„o cerebral, ou

seja, quando a cÈlula que comanda a fala È afetada. Essa resposta recebeu

ades„o do grupo quanto ao fato de que a afasia decorre de uma les„o cerebral,

mas provocou polÍmica quanto ‡ segunda parte da asserÁ„o: CI argumenta

que a afasia È uma quest„o de substituiÁ„o e troca de neurÙnios (posiÁ„o que

j· sustentava em junho de 1999); Iem contra-argumenta que n„o seria uma

˙nica cÈlula a comandar o cÈrebro, pois a afasia n„o È sÛ uma quest„o de

neurÙnios e cÈrebro e nem a linguagem È uma quest„o sÛ cerebral ñ A

linguagem est· na interaÁ„o com as pessoas.

A pergunta sobre prevenÁ„o da afasia causa polÍmica desde o inÌcio,

com posiÁıes divergentes entre CI e sua esposa. Ela afirma n„o existir

prevenÁ„o, posiÁ„o rejeitada por CI. A discuss„o que se segue no grupo vai

apontar para a existÍncia de duas direÁıes argumentativas diferentes, a

depender do conceito que se tome de ìprevenÁ„o da afasiaî: prevenir a afasia

em si ou prevenir suas causas.

J· a quarta pergunta ñ Todas as pessoas af·sicas tÍm a mesma

dificuldade para se comunicar? ñ, que propıe uma discuss„o sobre as

dificuldades de comunicaÁ„o dos af·sicos, leva CI a retomar seu argumento

exposto em setembro de 1999 (CCA06), de que existem graus de severidade

das afasias e que esses graus s„o determinantes das possibilidades de

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express„o do af·sico. Essa discuss„o culmina em uma proposiÁ„o de Iem de

que a afasia n„o deve ser pensada como uma quest„o circunscrita ao cÈrebro

lesado, mas sim como uma quest„o de linguagem.

Na semana seguinte, em 15 de junho de 2000,24 a discuss„o sobre o

livro do CCA È retomada por Iem, que faz um resumo dirigido especialmente a

EF e a SP, ausentes na semana anterior, informando sobre as discussıes

ocorridas e sobre o andamento das transcriÁıes dos depoimentos dos af·sicos

e de trechos dos encontros do CCA.

O grupo retoma a discuss„o partindo, mais uma vez, das respostas

dadas pela esposa de CI ‡s perguntas do roteiro concebido para nortear as

discussıes.

Iem: A gente est· se servindo das respostas da... da mulher de CI nÈ... da

esposa dele... pra tentar construir um pouco a ... a nossa reflex„o...

juntos sobre... essas perguntas aqui... OK? Vai l· CI!

A quinta pergunta ñ Pode-se falar com o af·sico sobre suas

dificuldades? ñ vai provocar interpretaÁıes diferentes. Ao ser formulada, a

pergunta pretendia refletir sobre o direito ou n„o do af·sico de ser informado

sobre sua condiÁ„o, implicando com isso o lidar com estigmas e preconceitos.

Mas È CI quem instaura a polÍmica a partir de um outro ponto de vista: as

pessoas em geral, e mesmo alguns profissionais da sa˙de, ignoram o af·sico

como interlocutor, excluindo-o da interaÁ„o. Todos participam de alguma forma

do debate, que migra para outras questıes tambÈm polÍmicas, quer

argumentando com o relato de experiÍncias prÛprias, quer corroborando

posiÁıes defendidas por outros.

Duas semanas depois, em 29 de junho de 2000,25 embora sem utilizar o

roteiro para orientar a discuss„o, o grupo debruÁa-se sobre um tema

relacionado ao debate que vem desenvolvendo sobre as afasias e os af·sicos:

a relaÁ„o entre o impacto da afasia e a condiÁ„o socioeconÙmica do af·sico.

24 CCA18, no qual estavam presentes Iem, EF, Ijt, Iat, SM, SP, Imc e CI. 25 CCA19, no qual estavam presentes EF, CI, SP, Iem, Imc e Ijt.

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Duas semanas depois, em 13 de julho de 2000,26 ao final do encontro,

Iem relata ao grupo que editou uma fita com duraÁ„o de quinze minutos com

trechos selecionados por ela de momentos diversos da discuss„o do grupo

sobre o livro do CCA. Ela explica ao grupo: Peguei os momentos quentes da

nossa discuss„o. N„o era assunto de polÌtica... mas era o livro e era a vida do

grupo... portanto nossa... e a vida de vocÍs tambÈm... contando um pouco e tal.

Iem expıe ao grupo seu objetivo ao realizar a ediÁ„o e tambÈm a

transcriÁ„o desses trechos editados: È uma proposta metodolÛgica para a

preparaÁ„o do terceiro capÌtulo do livro do CCA.

Ela tece coment·rios sobre o conte˙do da fita e relembra o encontro de

4 de maio de 2000 (CCA14), no qual se discutiu a quest„o dos direitos das

pessoas af·sicas em torno de uma formulaÁ„o feita por CI: Af·sico rico n„o È

af·sico.

A retomada da formulaÁ„o de CI ñ Af·sico rico n„o È af·sico ñ vai

mobilizar o grupo novamente em torno do debate sobre a relaÁ„o entre afasia e

condiÁ„o socioeconÙmica, produzindo novos argumentos e contra-argumentos

sobre o tema.

Iem faz algumas consideraÁıes a respeito da fita por ela editada,

ressaltando a import‚ncia das discussıes que est„o sendo feitas no CCA e

que est„o ali registradas. Iem relata ainda que ver as imagens e rever as

discussıes trouxe ‡ tona a necessidade de se discutir a metodologia que ser·

adotada na escrita do livro do CCA, ou seja, como transformar as imagens em

texto.

Iem: Ent„o... eu sÛ queria contar isso pra mostrar pra vocÍs quanta coisa a

gente faz de importante quando decide por um conceito ou outro... por

se discutir um aspecto ou outro. Entendeu? Ent„o... quando a gente vÍ a

fita... ali...

Imc: [Vem junto uma sÈrie de

coisas...

26 CCA20, no qual estavam presentes Iem, SM, EF, Iat, SP, Imc, CI e Ijt.

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Iem: …. J· est· ali claro que alguÈm vai ter que elaborar //Fazendo gesto de

escrever// ... escrever aquela discuss„o que est· ali.

Ijt: SÛ um capÌtulo nÈ?

Iem: Isso È o capÌtulo trÍs... em que a gente discutiu... na verdade... cinco...

cinco questıes //Mostra os 5 dedos da m„o espalmada// n„o È?

Imc: [Cinco

temas. Isso!

Iem: E... e...

Imc: [Daquela lista nÈ? (referindo-se ao roteiro).

Iem: Oi? …... È...

Iat: [S„o catorze.

Iem faz remiss„o, ent„o, a um outro trecho editado na fita, referente ao

encontro do dia 8 de junho de 2000 (CCA17), no qual se discutiu a quarta

pergunta do roteiro ñ As pessoas af·sicas tÍm a mesma dificuldade para se

expressar? ñ e comenta que o grupo posicionou-se contra essa asserÁ„o,

assumindo a idÈia de que a dificuldade para se expressar depende n„o sÛ da

les„o cerebral, mas tambÈm da situaÁ„o de interlocuÁ„o.

Iem faz um coment·rio sobre a proximidade da afasia com contextos

normais de fala, o que mobiliza no grupo v·rias pr·ticas: uma nova discuss„o

sobre preconceito e discriminaÁ„o; a retomada da discuss„o anterior sobre a

relaÁ„o entre afasia e condiÁ„o socioeconÙmica ñ com o grupo assumindo o

pressuposto cultural de que a riqueza concede privilÈgios e permite facilidades

no enfrentamento de problemas de qualquer natureza, mas n„o impede que a

pessoa torne-se af·sica ou mesmo vÌtima de preconceitos; e uma discuss„o

sobre a existÍncia ñ ou n„o ñ de uma correlaÁ„o direta entre o sofrimento do

af·sico e a severidade de sua afasia.

Quase um mÍs depois, em 10 de agosto de 2000,27 o grupo retoma a

discuss„o com Iem informando sobre o andamento do projeto do livro do CCA.

Estava previsto para esse encontro o comparecimento de Ild, aluna de

graduaÁ„o respons·vel pela transcriÁ„o dos depoimentos e das discussıes

27 CCA21, no qual estavam presentes SI, EF, Iat, SM, Iem, SP e Isp.

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sobre o livro (Iem lembra ao grupo que Ild j· esteve no CCA mostrando

informalmente o registro escrito de nossas falas. Iat lembra que naquela

ocasi„o sÛ estavam presentes SI e CI). Sua ausÍncia n„o impede que o grupo

retome a discuss„o do livro, acatando a proposta de Iem: Vamos fazer isto um

pouco? Vamos trabalhar nisso um pouco... no livro... vamos?

Todos concordam com aceno de cabeÁa e buscam o material que tÍm

sobre o livro. EF, SI e SM esqueceram o material em casa. Iem faz uma

retrospectiva:

Iem: Bom... È o seguinte... gente... vocÍs estavam vendo aqui... de um lado...

as partes que compıem o nosso livro... lembra disso? NÛs j· fizemos

alguma coisa... algumas pessoas est„o se incumbindo de fazer algumas

outras... como o Ibd fazendo a parte das explicaÁıes //Girando a m„o

em torno da cabeÁa// sobre o funcionamento do cÈrebro //Olha para SP//

SP: [//Acena afirmativamente

com a cabeÁa//.

Iem: as causas... n„o acabou... est· fazendo ainda... est· voltando de fÈrias...

t· certo?

EF: [Claro //Faz gesto de positivo com o polegar erguido para

cima e acena afirmativamente com a cabeÁa//.

Iem: A Ild que est· transcrevendo toda a coisa... t· certo. Quando eu voltar

vou ver se eu faÁo alguma coisa tambÈm com relaÁ„o a alguns outros

pontos... enfim... t·? Agora... de nossa parte... o que nÛs estamos

fazendo no momento? Eu tenho a impress„o que È mais ali o ponto

trÍs... n„o È isso? O ponto trÍs ou a parte trÍs... como queiram... nÈ?

Iat: [//Acena com a cabeÁa//.

Isp: //Mostra para SI no papel a parte trÍs//.

Iem: NÛs estamos tratando de identificar quais s„o as nossas opiniıes e as

opiniıes que a gente julga v·lidas para colocar no livro a respeito de

informaÁıes gerais sobre as afasias //Gesticula bastante com as duas

m„os//. Como fazer isso? AÌ nÛs elaboramos essas catorze perguntas

//Mostra o papel com o roteiro para o grupo// e as explicaÁıes gerais...

as informaÁıes gerais... n„o È... estariam sendo fornecidas atravÈs de

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perguntas e respostas. Lembra que nÛs elaboramos essas daqui? AÌ a

gente estava... ao mesmo tempo... nos servindo um pouco //Pega um

outro papel// das respostas da mulher do CI... //Mostra o papel com as

respostas dela//.

Iat e EF: //Acenam afirmativamente com a cabeÁa//.

SI: Ah!

Iem: ...que respondeu... tentou responder... respondeu e a gente se sente

provocado... tambÈm... pela opini„o dela porque tambÈm È uma pessoa

que passou a conviver... nÈ... com o tema da afasia... com uma pessoa

que È af·sica... mas tambÈm uma pessoa que n„o È um especialista nÈ.

E a gente determinou... estabeleceu que o nosso livro... se È de

divulgaÁ„o... È pra todo mundo... È pra justamente quem n„o conhece a

fundo o tema... È ou n„o È? E fazendo isso... a gente j· discutiu alguns

pontos.

SI: [//BalanÁa a cabeÁa concordando//.

Iem: O primeiro ponto... a gente j· discutiu... o que È afasia. Ou pelo menos

comeÁou a discutir nÈ... eu diria... nÈ! O que provoca afasia //Lendo//.

Podemos prevenir a afasia? Todas as pessoas af·sicas tÍm a mesma

dificuldade para se comunicar? Ponto cinco. A gente pode falar com o

af·sico sobre suas dificuldades ou sobre o estado de sa˙de? E assim

vai... t· bom? Ent„o... tenho a impress„o que paramos aqui nÈ?

Feita essa retrospectiva, Iem convoca SP para ler a sexta pergunta ñ

Existe algum tratamento farmacolÛgico ou cir˙rgico para melhorar a afasia? ñ e

o ajuda na leitura em voz alta.

A pergunta tinha por objetivo discutir a existÍncia ou n„o de tratamento

farmacolÛgico e cir˙rgico para as afasias, o que fica inicialmente explicitado por

Iem ñ comprimidos, c·psulas, medicamento e cirurgia. EF È veemente em sua

negativa: …... N„o... n„o. Afasia... n„o. Mas duas proposiÁıes de Iem ñ Ent„o

afasia n„o tem cura? N„o melhora? ñ v„o dar outra direÁ„o argumentativa ‡

discuss„o e o grupo passa a debater tambÈm os conceitos de cura e de

melhora em afasia.

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Diferentemente da metodologia dos encontros anteriores, nos quais a

discuss„o do roteiro teve inÌcio com a leitura da resposta dada pela esposa de

CI, neste encontro a resposta dela sÛ È colocada ao final, por Iem (talvez por

causa da ausÍncia de CI).

O encontro termina com a determinaÁ„o do grupo de dar seguimento ‡s

discussıes das perguntas do roteiro.

Mas o grupo sÛ iria retomar a discuss„o sobre o livro do CCA passados

quase trÍs meses, em 26 de outubro de 2000.28 Imc n„o estava presente ao

inÌcio da reuni„o, pois fora acompanhar CI ao hospital, a pedido de sua esposa.

(Ao voltar ao CCA, Imc traz notÌcias de CI; ele est· melhor e dever· fazer

alguns exames.)

Nesse encontro, uma nova din‚mica de trabalho com o livro È

inaugurada com a presenÁa de Ild, respons·vel pela transcriÁ„o das

discussıes relativas ao livro do CCA: ela faz a apresentaÁ„o da transcriÁ„o do

encontro de 2 de junho de 1999 (CCA04). PorÈm, esse tipo de din‚mica de

apresentaÁ„o e de leitura em voz alta da transcriÁ„o, para seleÁ„o de material

para o livro, ganha pouca ades„o dos sujeitos af·sicos.

A transcriÁ„o È projetada em uma tela, e os sujeitos SP, JB, SM e EF

sentam-se lado a lado e de frente para a tela. Iat explica em que consiste a

transcriÁ„o ñ passar para o papel tudo aquilo que se discute no CCA ñ e

relaciona o material selecionado para a transcriÁ„o com o projeto do livro.

EF, ao perceber o conte˙do da transcriÁ„o, enuncia ìlivroî e faz um

coment·rio que vai provocar algumas questıes sobre a metodologia da

transcriÁ„o. Outras propostas de metodologia de trabalho s„o apresentadas:

ter o material da transcriÁ„o por escrito para facilitar a seleÁ„o do conte˙do do

livro e fazer a seleÁ„o em conjunto, no grupo.

EF: E te a Û.

Imc: O livro?

EF: Demorou!

Imc: ? Onde o senhor est· lendo?

28 CCA22, no qual estavam presentes SP, JB, LM, SM, EF, Iat, Ild, Ihm e Imc.

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Iat: Demorou? //Ri//.

EF: //Faz gesto de positivo com o polegar erguido em direÁ„o a Iat//.

Ild: [Demorou? //Ri// Demora. Demora.

Imc: [Se o senhor soubesse o que custa fazer uma

transcriÁ„o...

Ild: Mas agora eu tenho bastante. Bastante material... toda semana eu

venho.

Imc: Ent„o... a proposta È... toda semana... talvez a gente faÁa... um

pouquinho de tempo dedique ao livro... nÈ... n„o precisa ser a sess„o

toda... porque È importante vocÍs escolherem do material que j· existe

pronto... aquilo que vai constar do livro... nÈ Iat?

Iat: Hum hum.

Imc: E aÌ j· separa porque a gente tem que separar... se n„o...

Iat: [E o que a gente pode

fazer tambÈm È ter... ter o material por escrito...

Imc: [Isso!

Iat: Porque aÌ fica mais f·cil da gente ler... tambÈm... escolher o que que

vai... nÈ?

Imc: Mas a idÈia tambÈm È que se escolha //Faz gesto indicando o grupo//

em conjunto nÈ?

Iat: [Ah... sim!

Imc: Que... porque a leitura pra eles... sozinhos... È difÌcil.

Iat, Imc e Ild se revezam na explicaÁ„o do significado das marcaÁıes do

texto ñ as siglas identificando cada um dos participantes do CCA, as marcas de

sobreposiÁ„o de vozes, de alongamentos, de segmentos ininteligÌveis etc. ñ

ressaltando que a transcriÁ„o procura mostrar por escrito a forma mais prÛxima

possÌvel da oralidade.

Imc: Ent„o... tem algumas marcas que a gente registra na transcriÁ„o pra

ficar fiel ‡ maneira pela qual a gente diz. (...) … a forma pela qual a gente

fala... mais prÛxima possÌvel... de como a gente fala... n„o È Iat? (...)

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N„o existe aÌ errado e certo. Existe a maneira mais prÛxima da qual a

gente fala.

Iat: Ent„o... a gente vai transcrever do jeito que a gente fala.

A leitura prossegue, mas com pouca ades„o dos af·sicos, com exceÁ„o

de EF que faz v·rias vocalizaÁıes relacionadas ‡ transcriÁ„o de sua fala. Imc

convoca SP para ler suas prÛprias falas transcritas. LM refere n„o estar

entendendo a din‚mica de trabalho e Imc explica novamente o objetivo da

apresentaÁ„o da transcriÁ„o: selecionar, a partir do material transcrito, temas e

tÛpicos para o livro do CCA.

Ocorre certa dispers„o, com os sujeitos conversando entre si. Imc e Iat

propıem que o grupo, a partir da leitura feita, faÁa um resumo elencando

alguns temas importantes para o livro. Apesar da baixa motivaÁ„o, alguns

temas s„o arrolados: autonomia, dependÍncia, depoimentos, causas da afasia,

mudanÁas no trabalho, na famÌlia, junto aos amigos. JB sugere ìempregoî.

Decidem que Ild tentar· selecionar na transcriÁ„o trechos relacionados a esses

temas.

Apesar da pouca ades„o e da dispers„o com essa din‚mica de leitura

da transcriÁ„o, Imc propıe que o grupo dÍ seguimento a esta metodologia de

trabalho, discutindo trechos transcritos a serem selecionados para o livro.

Na tentativa de exemplificar melhor o funcionamento do processo de

transcriÁ„o e mobilizar os sujeitos nesta din‚mica, o grupo assiste ao trecho do

vÌdeo relativo ‡ transcriÁ„o apresentada, encerrando o encontro.

TrÍs semanas depois, em 16 de novembro de 2000,29 a mesma

din‚mica È adotada com a projeÁ„o e leitura de trechos transcritos do encontro

de 16 de junho de 1999 (CCA05).

O debate central desse encontro refere-se ‡ metodologia que dever· ser

utilizada na construÁ„o do livro das afasias do CCA. Imc propıe que sejam

selecionados, a partir da leitura da transcriÁ„o, os trechos que ir„o constar no

livro. Outros aspectos relativos ‡ metodologia s„o tambÈm discutidos, como,

por exemplo, se as falas transcritas dever„o ou n„o ser editadas, se dever·

29 CCA23, no qual estavam presentes SP, SI, Imc, Ijt, Ild e Ihm.

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haver um texto de base ilustrado com os di·logos transcritos, ou se os prÛprios

di·logos compor„o o corpo do livro.

Quanto ‡ ediÁ„o ou n„o das falas, Imc e SP tÍm posiÁ„o contr·ria ‡ de

Ijt. Este propıe que as falas sejam ìtraduzidasî para facilitar a compreens„o do

leitor. Para Imc e SP, as falas dos af·sicos e dos n„o af·sicos devem ser

mantidas em sua Ìntegra, sem ediÁ„o.

Ihm sugere como metodologia que cada um selecione trechos das

transcriÁıes que considere importantes ou relevantes para compor o conte˙do

do livro. Propıe, ainda, que o texto do livro seja montado como um quebra-

cabeÁa a partir desse material selecionado. O encontro termina com a

metodologia assim definida.

Na semana seguinte, em 23 de novembro de 2000,30 Iat e Ild expıem os

temas do livro que j· foram transcritos e discutidos: os depoimentos de cada

um sobre a experiÍncia com a afasia, questıes relativas ‡ afasia (conceito e

causas) e ‡ famÌlia do af·sico, atividades atuais desenvolvidas pelos af·sicos.

O grupo discute quais temas ainda n„o foram contemplados: as implicaÁıes da

afasia no trabalho e na vida profissional, segundo CI, alguns depoimentos,

segundo Ild. Seguindo a metodologia definida no encontro anterior, Iat propıe a

leitura dos depoimentos disponÌveis ñ de EF, CI, JB e SI, tomados em 16 de

junho de1999 (CCA05) ñ com o objetivo de destacar e analisar os temas aÌ

contidos.

Parte de EF a sugest„o para que a transcriÁ„o dos depoimentos seja

projetada; assim, todos poder„o acompanhar a leitura. Iat e Ild fazem a leitura

do depoimento de EF, que vai concordando com a cabeÁa ‡ medida que a

leitura prossegue.

Nos depoimentos de EF, JB, SI e CI v·rios aspectos s„o abordados:

como, quando e em que circunst‚ncias eles se tornaram af·sicos, a causa de

suas afasias, a depress„o. … CI quem faz coment·rios sobre sua depress„o,

mobilizado pelo conte˙do da leitura. O grupo debate, ent„o, a quest„o da

ocorrÍncia ou n„o de depress„o conseq¸ente ‡ afasia, com a participaÁ„o de

todos.

30 CCA24, no qual estavam presentes EF, LM, CI, SP, Ild, Iat e Ihm.

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A leitura da transcriÁ„o do depoimento de JB, em um trecho no qual ele

enuncia ìloucoî, vai provocar no grupo um debate acerca de afasia e loucura,31

expondo mais uma vez um preconceito em relaÁ„o ao af·sico: Porque eles

acham que eu falo assim... n„o bato bem da cabeÁa (LM).

Os sujeitos parecem estar mais engajados na leitura das transcriÁıes

nesse momento (em comparaÁ„o com os dois encontros anteriores), talvez

porque, alÈm de focalizar seus prÛprios depoimentos, a leitura possibilitou

desdobramentos e novas discussıes sobre a afasia, trazendo ‡ discuss„o

pouco da metodologia em si.

Na semana seguinte, em 30 de novembro de 2000,32 Iem, que esteve

ausente nos dois ˙ltimos encontros, pede ao grupo que resuma as discussıes

sobre o livro do CCA. SP comenta sobre a leitura dos depoimentos transcritos

e Imc comenta que faltam ainda alguns temas a serem debatidos. O grupo

decide retomar o roteiro com as catorze perguntas a partir da sÈtima ñ Qual È o

momento mais recomend·vel para dar inÌcio ao acompanhamento terapÍutico

de um af·sico? Ao final do encontro, debatem a oitava pergunta ñ Onde

encontrar tratamento? ñ, iniciando as duas discussıes com as respostas dadas

pela esposa de CI.

O grupo retoma a atividade do livro do CCA apenas em 29 de maio de

2001,33 e esse longo ìrecessoî ocorreu provavelmente por v·rias razıes.

Durante esse perÌodo houve o recesso de fÈrias, mas, alÈm disso, as

transcriÁıes ainda estavam em andamento e delas dependiam o levantamento

e a an·lise do que j· havia sido discutido e do que ainda faltava discutir.

Embora soubÈssemos que o roteiro n„o havia ainda sido discutido

pontualmente na Ìntegra (das catorze, as oito primeiras questıes haviam sido

trabalhadas), pens·vamos que talvez as discussıes referentes ‡s questıes

restantes pudessem j· ter sido contempladas ao longo de todo esse processo

de construÁ„o do livro do CCA. AlÈm disso, o grupo sofreu uma perda

importante ñ o falecimento, em marÁo de 2001, de CI, um dos participantes

mais engajados no projeto do livro do CCA.

31 Uma discuss„o sobre afasia e loucura ocorreu tambÈm em 6 de outubro de 1999 (CCA09). 32 CCA25, no qual estavam presentes EF, SI, Imc, Ijt, SP, Iat, CI e Iem. 33 CCA26, no qual estavam presentes Ijt, Iem, IP, MG, NS, SI, Imc, EF e SP.

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… EF quem reintroduz o tÛpico do livro, ao mostrar a Iem alguns

documentos relativos ao processo que vem movendo contra uma empresa de

cigarros, e ao enunciar ìlivroî.

Iem, em funÁ„o da presenÁa de NS e MG ñ que entraram para o CCA

durante esse perÌodo de ìrecessoî e que, portanto, desconhecem o projeto do

livro ñ propıe que o grupo faÁa um relato sobre o livro do CCA. Mas apenas

Iem fala, expondo algumas questıes na tentativa de explicitar o livro. EF

interage com Iem, concordado ou enfatizando aspectos de sua fala. Iem vai se

referir ao livro do CCA como livreto e, em seguida, como livrinho.

Iem: Um livreto... na verdade nÈ... com informaÁıes sobre... as afasias...

sobre seq¸elas de lesıes neurolÛgicas... como enfrentar isto nÈ? ...

definir o que s„o as afasias... que s„o problemas de linguagem... coisas

que afetam... de alguma maneira... todo o grupo aqui... todos os

participantes nÈ? Os problemas de linguagem decorrente de les„o

cerebral... coisas que... tambÈm... vocÍ... vocÍs passaram nÈ... com

coisas com as quais vocÍs passaram a conviver depois que tiveram...

alguma... algum comprometimento cerebral nÈ... ou por um derrame...

ou por um traumatismo... etcetera nÈ? Ent„o... a gente combinou...

porque a gente reparou que era grande a desinformaÁ„o das pessoas

em geral sobre esse problema... de linguagem...

EF: [A... fezia... fezia.

Iem: E que... e que muitas vezes È acompanhado tambÈm de algum

impedimento fÌsico nÈ? Mas que n„o È um impedimento mental nem

nada nÈ? Ent„o... a nossa idÈia... isso foi durante todo o ano de dois

mil... foi discutir... em conjunto... como È que a gente iria... fazer esse

livrinho... que È distribuÌdo... que

EF: [Ah! //Ergue o polegar para

cima// Ah!

Iem: dever· ser distribuÌdo nas escolas... nos hospitais... de divulgaÁ„o... nÈ...

sobre esses problemas... essas dificuldades enfrentadas por todos que

freq¸entam aqui o Centro de ConvivÍncia. Que s„o... que È um centro

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de convivÍncia de pessoas af·sicas... tÍm dificuldades e graus

variados...

EF: [A ñ f· ñ si

ñ ca!

Iem: por motivos variados... de express„o nÈ... da linguagem e tudo... n„o È?

E esse È um centro de convivÍncia com pessoas que tambÈm n„o s„o

af·sicas... nÈ... ent„o... a atÈ para que... dÈ dessa interaÁ„o possa surgir

muitas idÈias de enfrentamento... de melhora... de evoluÁ„o das

dificuldades que tÍm.

EF: [A //Faz sinal

de positivo com o polegar erguido//.

Iem: Ent„o nÛs ficamos um temp„o... e um temp„o porque somos muitos...

um temp„o porque s„o v·rios os temas que a gente ia abordar nesse

livrinho... n„o È? TambÈm teve uma parte desse... desse livrinho em que

as pessoas falam o seu... os seus depoimentos. Ent„o s„o os relatos de

experiÍncias com as afasias: ìQue que mudou a minha vida depois que

eu fiquei af·sico? Mudei de emprego? …... È... senti certos... certo

preconceito da comunidade... pela maneira como eu falo? Os parentes

deram uma forÁa? Ou n„o deram? As pessoas tÍm informaÁ„o sobre o

que eu tenho? Ou acham que eu tenho uma outra coisa qualquer?

Porque eu n„o falo direito... por exemplo... por exemplo pensam que eu

n„o penso direito?î. NÈ?

Iem, em seguida, relata que o material colhido ao longo das discussıes

e dos debates travados no CCA sobre o livro ainda est· sendo transcrito e

examinado e ser· selecionado e organizado para a composiÁ„o do livro.

Iem lembra que um dos temas entre os v·rios que foram discutidos diz

respeito aos direitos das pessoas af·sicas, principalmente aqueles

relacionados ‡s questıes trabalhistas. Iem relata a NS e MG que alguns dos

integrantes do CCA foram despedidos ou aposentados por invalidez ao

tornarem-se af·sicos e retoma como exemplo a histÛria de LM,34 metal˙rgico

34 Ver em CCA14 (4 de maio de 2000) a histÛria de LM e de sua aposentadoria.

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aposentado por invalidez ao tornar-se af·sico e que, no entanto, poderia ter

sido remanejado para uma outra funÁ„o na mesma empresa. … lembrada a

histÛria de CI,35 que tambÈm foi aposentado por invalidez, e IP relata sua

experiÍncia ao passar por uma perÌcia e ser incentivada pelo especialista a se

aposentar.

Iem aponta que È nesse contexto dos direitos das pessoas af·sicas que

EF traz ao grupo o documento sobre o processo e o pedido de indenizaÁ„o

contra uma empresa fabricante de cigarros.

Durante a leitura comentada do processo trazido por EF, o grupo se

mobiliza na discuss„o dos fatores de risco associados ao AVC e,

conseq¸entemente, na discuss„o das causas das afasias.

O grupo decide que os documentos trazidos por EF sejam incluÌdos de

alguma forma no livro do CCA, divulgando a quest„o dos direitos e da proteÁ„o

‡ sa˙de das pessoas af·sicas.

Na semana seguinte, em 5 de junho de 2001,36 Imc relata ao grupo que,

em uma reuni„o com Iem realizada durante a semana, elas analisaram o

material transcrito atÈ ent„o e observaram que, das catorze perguntas do

roteiro criado para orientar as discussıes sobre o livro, duas ainda n„o haviam

sido abordadas: a dÈcima primeira ñ Que ajuda profissional deve prestar-se ao

af·sico? ñ e a dÈcima quarta ñ O af·sico pode continuar a trabalhar? ñ que s„o

lidas por Imc.

Os enunciados de EF ñ pode ñ e de MG ñ n„o ñ logo apÛs a leitura da

dÈcima quarta pergunta ñ O af·sico pode continuar a trabalhar? ñ v„o mobilizar

o grupo: os sujeitos passam a falar sobre a condiÁ„o anterior ‡ afasia e sobre

as mudanÁas trazidas pela afasia. O argumento de MG de que o af·sico n„o

pode continuar a trabalhar ñ Ah... porque... ninguÈm fala direito! ñ gera

polÍmica e provoca a contra-argumentaÁ„o de EF que, atravÈs de gestos e

conjuntamente com Imc, expıe dois aspectos da quest„o: nem todas as

profissıes exigem a fala para serem exercidas, e n„o È preciso falar direito

para exercer uma profiss„o.

35 Ver em CCA05 (16 de junho de 2000) o depoimento de CI sobre sua aposentadoria. 36 CCA27, no qual estavam presentes CL, MG, NS, Imc, EF e SP.

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J· a quest„o sobre ajuda profissional pouco mobiliza os sujeitos, que sÛ

se manifestam provocados por Imc. NS aponta a import‚ncia do grupo e,

portanto, do CCA para sua reabilitaÁ„o.

O grupo termina a discuss„o com Imc, que relata o falecimento de CI e a

causa de sua morte: n„o o AVC, mas um problema cardiolÛgico, seq¸ela da

doenÁa de Chagas da qual ele era portador.

O grupo considera que as discussıes ocorridas atÈ aquele momento

eram suficientes para compor o conte˙do do livro. Uma equipe de

pesquisadores ñ participantes do projeto ñ passa a organizar essas discussıes

para a escrita do livro. V·rias versıes v„o sendo produzidas ñ sempre com a

anuÍncia de todos os sujeitos af·sicos e n„o af·sicos membros do CCA,

incluindo-se aqueles que n„o participaram do projeto do livro ñ atÈ a vers„o

definitiva, aprovada por todos.

Em 6 de marÁo de 2003,37 o livro do CCA,38 impresso e editado, È

apresentado ao grupo. Cada um dos presentes ganha um exemplar. O grupo

vai explorando o livro: a capa (escolhida por todos entre quatro opÁıes

apresentadas pela editora), o tÌtulo (que criou muita polÍmica atÈ ser definido),

o Sum·rio.39 … importante ressaltar que dois dos presentes ñ NM e JL ñ n„o

chegaram a participar das discussıes sobre o livro, e NS participou de apenas

dois encontros (CCA26 e CCA27), o que justifica que Iem v· apresentando o

livro ao grupo.

Iem: Sobre as afasias e tambÈm sobre os af·sicos.

NM: N„o È uma afasia sÛ.

Iem: …. As afasias. E tambÈm tem embaixo: ìSubsÌdios teÛricos e pr·ticos

elaborados pelo Centro de ConvivÍncia de Af·sicosî //Lendo//. D· uma

37 CCA28, no qual estavam presentes JL, NS, SI, SM, Iem, SP, Ijt, NM e Ihm. 38 Morato, E. M.; Tubero, A. L.; Santana, A. P.; Damasceno, B.; Souza, F. F.; Macedo, H. O.; Camerin, I. P.; Tonezzi, J. A.; Coudry, M. I. H. Sobre as afasias e os af·sicos ñ subsÌdios teÛricos e pr·ticos elaborados pelo Centro de ConvivÍncia de Af·sicos. Campinas: Unicamp, 2003. 39 Sum·rio: 1. IntroduÁ„o. 2. InformaÁıes gerais sobre as afasias. 3. Questıes relativas aos direitos das pessoas af·sicas. 4. OrientaÁıes b·sicas aos familiares e amigos. 5. Breve histÛrico do Centro de ConvivÍncia de Af·sicos. 6. Um pouco sobre a Neuroling¸Ìstica. 7. Bibliografia b·sica recomendada. 8. Alguns sites interessantes.

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olhadinha... gente... no sum·rio. No sum·rio... no Ìndice... enfim. ...

Deixa eu ver //Procurando no livro//. Aqui gente... Û //Mostrando a p·gina

do Ìndice// aqui contÈm os itens... do livro. Lembra que a idÈia do livro

era... escrever algo para divulgar... pra informar... pra combater o

preconceito... Pra ensinar tambÈm... e pra contar uma experiÍncia de

grupo que nÛs temos.

SP: Certo.

Iem: De pessoas que s„o af·sicas... de pessoas que n„o s„o af·sicas. N„o

È?

SP e NM fazem a leitura dos tÌtulos e subtÌtulos dos capÌtulos e Iem

descreve e comenta brevemente seu conte˙do, principalmente o capÌtulo sobre

ìInformaÁıes gerais sobre as afasiasî.40

… no contexto da leitura do livro que NM formula dois enunciados que

expressam sua posiÁ„o de que n„o h· uma situaÁ„o de cura em relaÁ„o ‡

afasia: ñ Mas num... nunca se passa disto nÈ? e ñ Nunca se fica bom na

verdade. Sua fala mobiliza novamente o grupo numa discuss„o acerca da cura

da afasia.

JL produz um enunciado cuja formulaÁ„o talvez traduza a expectativa de

grande parte dos af·sicos: O problema È que todo mundo quer que cure a

afasia.

Os participantes fazem algumas intervenÁıes sobre aspectos diversos

afeitos ‡s afasias, e a discuss„o culmina mais uma vez na constataÁ„o da falta

de informaÁ„o das pessoas em geral e mesmo de profissionais da sa˙de

acerca das afasias. A discuss„o destaca, novamente, a import‚ncia do livro do

CCA que, para Ibd, segundo relato de Iem, ser· n„o sÛ um livro de

40 As catorze perguntas do roteiro tomadas como referÍncia para orientar as discussıes sobre o livro foram organizadas em dez pontos que compıem as InformaÁıes gerais sobre as afasias: 1. O que È afasia? (p.16). 2. O que pode causar afasia? (p.20). 3. Podemos prevenir a afasia? (p.27). 4. Todas as pessoas af·sicas tÍm a mesma dificuldade para se comunicar? (p.28). 5. Podemos falar com o af·sico sobre suas dificuldades ou sobre seu estado de sa˙de? (p.30). 6. H· tratamento para as afasias? (p.31). 7. Que benefÌcios em geral a pessoa af·sica tem com o tratamento terapÍutico? (p.35). 8. Em que momento termina a reabilitaÁ„o do af·sico? (p.36). 9. Quais s„o os impactos mais freq¸entes na atividade ocupacional, na vida familiar e social do af·sico? (p.36). 10. O af·sico pode continuar a trabalhar? (p.38).

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informaÁıes, mas tambÈm de formaÁ„o, abordando v·rios preconceitos que

cercam as afasias.

O grupo tece mais alguns coment·rios sobre os demais capÌtulos, e Iem

lÍ os nomes de todos os autores e colaboradores que participaram de alguma

forma da elaboraÁ„o do livro. Combinam para a semana seguinte planejar a

divulgaÁ„o, a distribuiÁ„o e o lanÁamento.

O livro È lanÁado no dia 16 de abril de 2003, no espaÁo fÌsico do CCA,

com a presenÁa dos que nele trabalharam, de familiares, amigos e colegas.

AlÈm de alguns professores do Departamento de Ling¸Ìstica do Instituto de

Estudos da Linguagem, compareceram tambÈm ao lanÁamento os

representantes dos Ûrg„os da Universidade que patrocinaram o projeto: o

diretor da Editora da Unicamp, o chefe do Departamento de Ling¸Ìstica e o

assessor da PrÛ-Reitoria de Extens„o e Assuntos Comunit·rios da

Universidade Estadual de Campinas.

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2 A referenciaÁ„o enquanto processo interativo-discursivo na elaboraÁ„o do livro do Centro de ConvivÍncia de Af·sicos

Este capÌtulo tem por objetivo discutir os processos de referenciaÁ„o

mobilizados pelo grupo de pessoas af·sicas e n„o af·sicas reunidas no Centro

de ConvivÍncia de Af·sicos (CCA) ao longo do processo de elaboraÁ„o do livro

do CCA.

… no espaÁo do CCA e em sua cena enunciativa que os v·rios sujeitos

autores envolvidos ñ af·sicos e n„o af·sicos ñ se lanÁam ao trabalho de

elaboraÁ„o desse livro sobre as afasias e os af·sicos. E È do processo de

construÁ„o desse livro e das pr·ticas sociais, ling¸Ìsticas e discursivas aÌ

mobilizadas que emerge a perspectiva de an·lise tomada neste capÌtulo: o livro

do CCA È, ao mesmo tempo, tanto um referente ou um objeto do mundo em

construÁ„o, quanto um objeto de discurso em construÁ„o; e, por estar se

constituindo e para se constituir, convoca os sujeitos ‡ tarefa de referenciaÁ„o,

mobilizando elementos prÈ-construÌdos partilhados (ou n„o) na fala de af·sicos

e n„o af·sicos evidenciando o car·ter enunciativo-discursivo da referenciaÁ„o

e pressupondo uma memÛria discursiva partilhada pelos sujeitos na interaÁ„o.

Nessa din‚mica do trabalho ìlinguageiroî (Salazar Orvig, 1999, p.9)

desses sujeitos, o sentido se constrÛi naquilo que os movimentos discursivos,

as afinidades, as recorrÍncias e as rupturas desenham e que n„o podemos

apreender a n„o ser a partir de uma atitude interpretativa. Este ser· nosso fio

condutor: acompanhar o desenrolar do discurso observando as diferentes

formas nas quais o sujeito se posiciona em relaÁ„o ao mundo, aos outros, a ele

mesmo e a seu prÛprio discurso, movimentos esses de mudanÁas de planos,

de variaÁ„o de perspectivas, de ajustamento intersubjetivo.

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O livro ser· aqui analisado n„o como o produto terminado

correspondendo ao objeto do mundo real, mas sim em sua din‚mica, como

testemunha de seus processos de elaboraÁ„o.

Para tanto foram coletados dados de reuniıes semanais do CCA nas

quais o livro foi tema de debate e reflex„o. Reuniram-se fragmentos de 28

desses encontros ocorridos entre marÁo de 1999 ñ com as primeiras remissıes

sobre livros sobre afasia ou a falta deles ñ e marÁo de 2003 ñ com o livro do

CCA j· editado.

O CCA como espaÁo discursivo

No CCA, definido como espaÁo de interaÁ„o entre sujeitos af·sicos e

n„o af·sicos (Cf. Morato et al., 2002), circula um conjunto heterogÍneo de

significaÁıes que s„o o fruto de uma construÁ„o conjunta dos diferentes

sujeitos aÌ envolvidos. A significaÁ„o na interaÁ„o n„o pode ser localizada nem

em cada sujeito tomado individualmente, nem na materialidade pura das

palavras, mas como se constituindo em um espaÁo que n„o È nem homogÍneo

nem est·tico, ao contr·rio, È heterogÍneo, inst·vel e irregular: o espaÁo

discursivo.

Salazar Orvig (1999, p.158) empresta de F. FranÁois a met·fora de que

o espaÁo discursivo seria a rede de significaÁıes que se tece no curso da

interaÁ„o e em relaÁ„o ‡ qual todo enunciado ganha significaÁ„o.

Nossas visıes de mundo s„o irredutivelmente diferentes em funÁ„o de

nossas experiÍncias. Ao mesmo tempo, olhamos a realidade dentro de certa

convergÍncia, ou seja, os h·bitos e as rotinas de certo cotidiano s„o

compartilhados com os membros de nossa comunidade. Os indivÌduos que

participam do livro tentam explicar seu sofrimento e comunic·-lo aos

interlocutores: eles podem por isso mesmo ser vistos como membros de uma

comunidade ñ a hospitalizaÁ„o ou a doenÁa em si constituem fatores de

unificaÁ„o, apontam para movimentos de identificaÁ„o recÌproca: h·

semelhanÁas nas histÛrias individuais porque h· uma mesma nosografia ñ a

les„o cerebral, a afasia ñ que engendra experiÍncias similares. Mas isto n„o

significa que um sentido coletivo se exprime em suas bocas. N„o existe um

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discurso pronto ñ num senso institucional ñ que unifique os diferentes sujeitos e

do qual eles seriam uma espÈcie de porta-voz. Se pudermos falar de um ponto

de vista coletivo, o que È pertinente È a relaÁ„o entre esse ponto de vista

coletivo e o ponto de vista individual, a maneira pela qual o indivÌduo se

inscreve e se desvincula nessa coletividade (Salazar Orvig, 1999, p.28).

Cada sujeito participante desse espaÁo discursivo que È o CCA ser·

tomado n„o apenas como sujeito concreto, nas dimensıes psÌquicas, sociais e

culturais que o caracterizam, mas como sujeito do discurso e, portanto,

heterogÍneo em sua dimens„o enunciativa e nas diferentes formas nas quais

ele se d· a ver na constituiÁ„o mesma do discurso. Cada sujeito, af·sico ou

n„o, ser· o sujeito do di·logo, aquele que se diz ou n„o atravÈs do discurso,

que se desenha na construÁ„o da referÍncia, em sua maneira de encadear sua

palavra ‡ palavra do outro, em sua maneira de inscriÁ„o nesse espaÁo

discursivo comum (Salazar Orvig, 1999, p.26). Cada sujeito se situa entre o

individual, o dialÛgico e o coletivo em toda sua multiplicidade, sua

heterogeneidade, sua espessura.

Os sujeitos participantes do CCA conferem uma dissimetria b·sica a

esse espaÁo discursivo para alÈm de sua heterogeneidade constitutiva

(diferenÁas sÛcio-culturais, diferentes faixas et·rias e pertencimento a

diferentes geraÁıes, diferentes caracterÌsticas af·sicas da linguagem de cada

sujeito): s„o af·sicos e n„o af·sicos, s„o leigos e especialistas em afasia, s„o

sujeitos de pesquisa e pesquisadores; entre os pesquisadores, s„o docentes e

discentes, orientadores de pesquisa e orientandos.

A princÌpio, essa configuraÁ„o heterogÍnea poderia caracterizar o tipo

de interaÁ„o que ocorre no CCA como uma interaÁ„o complementar (Vion,

1992, p.128) na qual um dos sujeitos dispıe de um saber e/ou de um poder

especializado socialmente reconhecido. Aquele que detÈm o conhecimento ñ o

n„o af·sico, o especialista, o professor, o orientador, o pesquisador ñ seria

interpelado pelo outro ñ o leigo, o aluno, o af·sico ñ sobre as possibilidades de

resoluÁ„o de seus problemas, o que no CCA se traduziria por questıes

relativas ‡ linguagem, ‡s afasias e seu impacto na vida cotidiana do af·sico, ‡

cura, ao tratamento etc. Neste caso, o especialista È aquele que ocupa a

posiÁ„o alta na hierarquia de papÈis, enquanto o outro ñ o leigo, o af·sico, o

aluno ñ ocupa a posiÁ„o baixa. No contexto desse tipo de interaÁ„o, o

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especialista detÈm o discurso da autoridade que lhe È conferido pela ciÍncia e

pelo poder: ele n„o administra sozinho a interaÁ„o, mas geralmente È quem a

conduz.

O uso de um roteiro com catorze perguntas abertas que norteou os

debates do grupo ao longo da construÁ„o do livro imprime ao CCA uma outra

configuraÁ„o ñ a interaÁ„o seria ainda complementar ñ na qual se busca reunir

elementos de informaÁ„o e de conhecimento sobre os objetos, no caso os

af·sicos e as afasias. Assim, todos os integrantes do grupo levaram para casa

esse roteiro, e esperava-se que os af·sicos pudessem respondÍ-lo numa

atividade conjunta com os familiares. E È interessante notar que n„o se

esperou o mesmo dos n„o-af·sicos, que n„o responderam ao roteiro e nem

foram instados a fazÍ-lo, talvez porque o implÌcito seria que os especialistas j·

soubessem as respostas.

PoderÌamos nos perguntar se o uso do roteiro implicaria a busca, pelo

especialista, das informaÁıes e dos conhecimentos de que precisa para a

realizaÁ„o de um livro (e, neste caso, o question·rio seria uma espÈcie de

pesquisa), ou uma aÁ„o conjunta na qual se determinaria uma linha-base de

informaÁıes e conhecimentos que pautaria as futuras discussıes sobre o livro.

Em realidade, a idÈia do roteiro surgiu de um material sobre afasia

levado por EF, um dos sujeitos af·sicos que freq¸entam o CCA: um pequeno

manual sobre afasia em espanhol na forma de trinta questıes (ver CCA07 e

CCA14). A idÈia era escrever o livro do CCA tambÈm na forma de perguntas e

respostas. De inÌcio, o material reunido nos question·rios seria um recurso

metodolÛgico para orientar os depoimentos dos af·sicos, mas, no desenrolar

do trabalho, o roteiro ñ mais especificamente, o respondido pela esposa de CI

ñ ganhou outra significaÁ„o, transformando-se, muito alÈm de uma espÈcie de

aquecimento para as discussıes e debates que se seguiram, em um

instrumento narrativo.

Nos encontros realizados no CCA para a elaboraÁ„o do livro ocorrem

tipos de interaÁ„o (na acepÁ„o de Vion) inter-relacionados, como conversaÁ„o

e discuss„o, mais ou menos simÈtricas e, portanto, n„o complementares.

Observe-se que, para Vion, por interaÁıes simÈtricas entende-se n„o a

existÍncia de uma condiÁ„o totalmente igualit·ria entre os sujeitos, mas que os

lugares dos sujeitos n„o s„o predefinidos em termos de status profissional ou

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posiÁ„o institucional. As posiÁıes ocupadas por dois indivÌduos engajados em

uma interaÁ„o n„o complementar n„o s„o, portanto, fixadas de maneira

explÌcita se n„o pela histÛria interativa na qual se inscreve o encontro entre

eles. Essa histÛria È determinante: ela È produto de representaÁıes que os

atores se fazem deles mesmos e de seus parceiros a partir de lugares

ocasionais previamente ocupados. Essa histÛria est· presente mesmo em se

tratando de uma interaÁ„o entre desconhecidos: os lugares que eles tender„o

a ocupar depender„o fortemente dos ìh·bitosî e das caracterÌsticas gerais de

identidade de cada um.

A conversaÁ„o ñ que segundo Marcuschi (1997, p.5) ìexige uma enorme

coordenaÁ„o de aÁıes que exorbitam em muito a simples habilidade ling¸Ìstica

dos falantesî ñ coloca em presenÁa dois ou mais sujeitos sociais j· possuidores

de imagens sociais, cujos posicionamentos n„o ser„o idÍnticos. Mas isso n„o

impede de postular uma espÈcie de igualdade de direitos e deveres. No

universo cultural intersubjetivo que domina essas trocas, o status institucional e

as posiÁıes hier·rquicas se encontram como que ìneutralizadosî. Mas essa

neutralizaÁ„o È parcial: n„o existe uma perfeita simetria na qual os sujeitos

faÁam uma completa abstraÁ„o de suas identidades sociais. Portanto, a

conversaÁ„o ser· tomada como um tipo de interaÁ„o n„o complementar na

qual a simetria remete a uma similitude de papÈis sem implicar uma similitude

e/ou uma identidade social e comportamental.

A conversaÁ„o, para Vion (1992, p.134), caracteriza-se por um forte

domÌnio da cooperaÁ„o em relaÁ„o ‡ competitividade; uma finalidade ìinternaî

centrada no contato e na reafirmaÁ„o de elos sociais (isto implica certa

contenÁ„o dos sujeitos quanto aos conte˙dos ou tÛpicos da conversa);

aparente informalidade de funcionamento ancorada sobre uma relaÁ„o

interpessoal, sobre um car·ter espont‚neo e cotidiano, sobre um car·ter aberto

de contrato de fala (ou seja, daquilo que possa ser o conte˙do da interaÁ„o),

sobre o implÌcito das regras de circulaÁ„o da fala (da palavra), sobre a

ausÍncia de um objetivo explÌcito e de temas impostos (as discussıes sobre o

livro nunca foram previamente agendadas, embora o grupo tenha tomado para

si esse projeto).

A conversaÁ„o pode ser considerada como um pilar da vida social na

medida em que ela se constitui num tipo ìn„o marcadoî que È acionado sem

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que seja necessariamente previsto. Sua funÁ„o de reatualizaÁ„o dos elos

sociais e a cooperaÁ„o que a caracteriza fazem da conversaÁ„o um

instrumento de coes„o e de reafirmaÁ„o do tecido social e das identidades.

A discuss„o, que Vion entende como um tipo de interaÁ„o, pode ser

consensual e fazer aparecer uma dominaÁ„o em favor da cooperaÁ„o, ou ser

conflituosa e atuar fortemente sobre a competitividade. A existÍncia de um

equilÌbrio inst·vel entre a cooperaÁ„o e a competiÁ„o pode mesmo produzir

dois tipos distintos de discuss„o: as discussıes cooperativas orientadas na

busca de um consenso e as discussıes conflituosas orientadas na disputa e na

exacerbaÁ„o das diferenÁas. A discuss„o pode ser relativamente informal ou,

como o debate, exigir uma verbalizaÁ„o dos objetivos e dos temas e uma

organizaÁ„o explÌcita dos turnos de fala. S„o os seguintes os critÈrios

definicionais de discuss„o segundo Bellenger (1984), apresentados por Vion

(1992, p.137):

1. A discuss„o ocorre num contexto complementar (no caso do CCA entre o

especialista e o leigo) e sÛ pode ser concebida se o ponto de vista de cada

um puder ser justificado e se cada um tem expectativas de convencer o outro.

Dito de outra forma, apesar da desigualdade estatut·ria da situaÁ„o, a

discuss„o pode permitir, da mesma forma que na conversaÁ„o, uma espÈcie

de simetria, de neutralizaÁ„o das posiÁıes. Desta forma, qualquer que seja a

relaÁ„o entre os protagonistas, a discuss„o poder· ser comparada ‡s

interaÁıes simÈtricas;

2. A discuss„o procede de uma finalidade especÌfica, quer seja, confrontar

pontos de vista distintos. Ela È a express„o da divergÍncia. Na discuss„o n„o

se trata de buscar o entendimento entre aqueles que discutem, mas sim,

justificar de forma bem fundada uma tese em relaÁ„o ‡ outra.

Assim, conversaÁ„o e discuss„o podem ser consideradas como pilares

da comunicaÁ„o. Quando uma discuss„o surge no prolongamento de uma fase

conversacional, ela tem boas chances de se desenvolver na cooperaÁ„o;

ocorre um deslocamento relativo ‡ finalidade interna, que leva ‡ alteraÁ„o de

equilÌbrio entre cooperaÁ„o e competiÁ„o.

A interaÁ„o que ocorre no CCA durante os encontros nos quais o livro È

discutido se caracteriza, sobretudo, pela heterogeneidade. Assim sendo, a

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interaÁ„o no CCA ñ que n„o È ocasional, mas fortemente institucionalizada ñ

se apresenta como uma seq¸Íncia de tipos: ao inÌcio, geralmente uma

conversaÁ„o, podendo prosseguir como discuss„o, depois como uma consulta,

e novamente como conversaÁ„o, constituindo-se por um encadeamento de

diferentes tipos de interaÁ„o que se sucedem e se repetem, alternando-se

sucessivamente atÈ o seu fechamento. Vion (1992, p.142) fala de coexistÍncia

de tipos e, portanto, de co-articulaÁ„o de tipos de posiÁıes enunciativas dos

sujeitos: um enquadramento simÈtrico pode ser seguido de um complementar

quando, por exemplo, um af·sico (MS) questiona um especialista acerca de

suas dificuldades de leitura e memÛria (ver CCA02) ou sobre os graus de

severidade da afasia (como faz CI no CCA06). As pessoas s„o instadas a

assumir posiÁıes heterogÍneas e ocasionalmente colocadas na posiÁ„o alta,

daquele que detÈm o conhecimento e o poder. … o espaÁo discursivo que

instaura tal hierarquia de posiÁıes enunciativas.

Essa coexistÍncia de tipos pode tambÈm revelar certa ambig¸idade de

forma que ‡s vezes È difÌcil decidir se estamos numa conversaÁ„o ou numa

discuss„o, numa discuss„o mais cooperativa ou mais conflituosa. De toda

maneira, os sujeitos atuam nesta ambig¸idade: discutir ou mesmo disputar

pontos de vista sem querer dar a impress„o de estar discutindo.

O CCA, por ser uma instituiÁ„o ligada ‡ Universidade e, portanto,

relacionada a ensino e pesquisa, desde sua criaÁ„o em 1990 vem

apresentando uma produÁ„o cientÌfica bastante expressiva correspondente a

publicaÁıes de livros, artigos em periÛdicos, projetos de pesquisa, dissertaÁıes

de mestrado e teses de doutorado sobre as afasias. Os professores e

pesquisadores que desenvolvem seus projetos junto ao CCA tomam muitas

vezes as pessoas af·sicas que freq¸entam o CCA como sujeitos de suas

pesquisas. Assim sendo, o livro sobre as afasias e os af·sicos escrito pelos

participantes af·sicos e n„o af·sicos do CCA ñ ou, simplesmente, o ìlivro do

CCAî ñ inaugura um momento significativo na histÛria dessa instituiÁ„o, pois os

af·sicos, antes apenas sujeitos das pesquisas e estudos desenvolvidos no

CCA, tornam-se tambÈm autores e pesquisadores na construÁ„o do livro do

CCA. Isto È possÌvel porque o saber enciclopÈdico de alguÈm que È af·sico

sobrepıe muitas vezes o saber de um mÈdico especializado ou n„o em afasia,

pelo menos quanto ao seu impacto sobre a vida. E esse conhecimento confere

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aos af·sicos uma posiÁ„o menos assimÈtrica na hierarquia de papÈis

enunciativos.

Desta forma, na atividade de construÁ„o do livro, como os sujeitos

af·sicos surgem tambÈm como autores e pesquisadores, a interaÁ„o pode ser

configurada como menos assimÈtrica, ou seja, n„o existe uma posiÁ„o

totalmente igualit·ria entre os sujeitos, mas seus lugares n„o s„o previamente

definidos em termos de status profissional ou posiÁ„o institucional. Nesse

momento da interaÁ„o ñ o da construÁ„o do livro do CCA ñ a simetria

remeteria, portanto, a uma similitude de papÈis sem implicar uma similitude

e/ou uma identidade social e comportamental, como j· apontado aqui.

Contudo, isso nem sempre È reconhecido por todos os interlocutores.

Por exemplo, a an·lise dos seguintes fragmentos de quatro encontros

ocorridos entre junho de 1999 e maio de 2000 revela que a autoria do livro do

CCA È uma quest„o polÍmica que gera instabilidade nos papÈis atribuÌdos aos

sujeitos af·sicos e n„o af·sicos:

Em 2 de junho de 1999 (CCA04) o grupo se mobiliza para contar a Ijt

sobre a idÈia de se escrever um livro:

Iem: Bom... a gente podia contar... contar pro Ijt... essa... viu... Ijt? O grupo

gostaria de contar pra vocÍ... uma idÈia que surgiu aqui... n„o È? De

fazer um livro... n„o È? De fazer um livro... sobre...

Imc: ... qual È o tema? as a: fa:si:as...

SP: Ah bom ...

Iem: N„o È isso? Lembra?

Imc: As a:fa:si:as!

EF: [i:as... a: a: ... //Copiando a articulaÁ„o de Imc//.

Iem: As afasias.

Imc: Uma iniciativa da gente... nÈ?

Iem: Que È uma iniciativa do grupo... de fazer em conjunto um livro... sobre as

afasias nÈ? E o que seria falado nesse livro? O o que seria... o que teria

nesse livro nÈ? O que estaria dentro do livro?

Imc: Os assuntos...

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Parece claro, desde o inÌcio, que o livro do CCA ser· uma construÁ„o

conjunta e, portanto, de co-autoria desse grupo que representa o Centro,

formado por af·sicos e n„o af·sicos. Mas em 8 de setembro de 1999 (CCA06),

com a vinda de IP ao CCA, e com a mobilizaÁ„o do grupo para lhe contar sobre

o livro, a fala de CI ñ a Iem e a Imc vai escrever o livro e vai... v„o contar a

experiÍncia que... nossa experiÍncia como conviver com af·sico ñ faz circular

uma polÍmica sobre a autoria do livro do CCA:

CI: Sobre o af·sico nÈ. … um livro sobre af·sico. Ent„o... nÛs vamos

montando... tamu È... escrevendo... nÛs temos muita experiÍncia mas

n„o passam por ler... por ler... nÈ //Fazendo gesto de escrita com a m„o

esquerda//. Conta a experiÍncia de conviver com af·sico... È È essa

experiÍncia È terrÌvel. Ent„o È essa experiÍncia que nÛs queremos

mostrar

Iem: [Um livro de divulgaÁ„o...

das afasias... esse grupo aqui.

CI: Porque tem //SI por sobreposiÁ„o de vozes// no Brasil... que n„o t·

escrito. ExperiÍncia... ou seja... a Iem e a Imc vai escrever o livro e vai...

v„o contar a experiÍncia que... nossa experiÍncia como conviver com

af·sico.

Imc: NÛs vamos escrever juntos... todos //Fazendo gesto circular com a m„o

indicando todos os participantes em torno da mesa//.

CI: Vamos... mas... nÛs vamos participar... nÛs num vamos escrever.

Imc: [N„o! VocÍ vai escrever!

Ijt: [//Faz ìn„oî com

a cabeÁa// //SI por sobreposiÁ„o de vozes//.

CI: Com a m„o esquerda... aqui com a m„o esquerda //Erguendo a m„o

esquerda no ar//.

IP: Pelas dificuldades... nÈ... nÈ? //Tocando o braÁo de CI//.

Imc: U depoi...Claro... vocÍs v„o escrever.

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Para CI, os autores do livro s„o as pesquisadoras Iem e Imc, e os

sujeitos af·sicos apenas fonte dos depoimentos e das experiÍncias. Imc recusa

essa posiÁ„o: NÛs vamos escrever juntos... todos. CI sustenta, ainda, sua

posiÁ„o, veiculando um prÈ-construÌdo acerca das possibilidades de ser autor:

os af·sicos podem participar, mas n„o escrever o livro. Escrever È para os

pesquisadores, para os intelectuais, para os que n„o tÍm les„o cerebral. Imc

recusa, tambÈm, esse preconceito de CI que se defende tomando o escrever

n„o mais como produÁ„o de texto, como o trabalho de construÁ„o do livro, mas

como uma quest„o motora: os af·sicos n„o podem escrever o livro, n„o porque

sejam incapazes intelectualmente, mas porque existe a hemiplegia que impede

a escrita com a m„o direita ñ Com a m„o esquerda... aqui com a m„o

esquerda. IP parece sustentar a posiÁ„o de CI.

J· em 22 de setembro de 1999 (CCA07), com a vinda de MS ao grupo e

diante de sua posiÁ„o de que as dificuldades com a afasia o impedem de

colaborar no projeto do livro, È CI quem apÛia Iem na contra-argumentaÁ„o de

que MS pode sim participar do livro exatamente por ser af·sico e ter

experiÍncia com a afasia. Nesse momento, a posiÁ„o assumida por CI È a de

que o livro È uma construÁ„o conjunta de af·sicos e de n„o af·sicos:

Iem: Ent„o o senhor acha interessante essa iniciativa?

MS: Acho. Muito. Muito.

Iem: Que que o senhor acha interessante que a gente fale num livro... que vai

pra... muita gente? Que que o senhor... que que o senhor falaria? Que

que o senhor acha importante que a gente fale aqui?

MS: Eu n„o tenho... eu n„o tenho memÛria pra pra... pra falar nÈ? Mas...

mas... t·... È... eu n„o tenho conhecimento da ·rea nÈ?

Iem: T·.

MS: ….

Iem: Mas o senhor tem conhecimento da sua experiÍncia!

MS: …... de experiÍncia eu tenho. Mas... mas... porque num... eu num...

ExperiÍncia que eu tenho È...È...È de de de das minha a fa //Acena ìn„oî

com a cabeÁa//.

CI: [… prÛpria.

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Iem: ….

MS: N„o... È prÛpria mesmo. Mas È... È... prÛpria... mas num... eu num... Eu

n„o tenho essa experiÍncia mesmo... porque a gente num... ¿s vezes...

as pessoas

CI: [De toda

n„o //SI//.

MS: … È. Mas... a a nossa... tem pessoas... sÛ ponho pro... eu falei agora

porque... experiÍncias sÛ que eu tenho de mal.

Iem: De mal?

MS: …. … porque a vida nunca foi... a... a... a... a mim //Aponta para si

prÛprio// È... (6í). A gente... eu vim muito correndo... n„o È? Cheguei... eu

num //Leva a m„o ‡ cabeÁa// num tenho memÛria... memÛria pra... pra

nada... n„o.

Em 11 de maio de 2000 (CCA15), a fala de CI sobre o artigo de autoria

de Iem, que È incorporado pelo grupo ao material sobre afasia, ratifica a

posiÁ„o de que o livro do CCA È um trabalho de co-autoria:

CI: ”timo... Ûtimo... faz parte da nossa pesquisa.

Iem: Do nosso acervo.

CI: Ent„o... viu que gostoso? //Falando para Iem//.

Iem: O quÍ?

CI: Essa matÈria... o nosso livro.

O espaÁo discursivo n„o corresponde a uma soma de estados mentais

dissociados. Ele corresponde a uma realidade do compartilhamento do dizer

que n„o È nem regular, nem homogÍneo, nem simÈtrico. Nele se misturam

pontos de vista e graus de implicaÁ„o diferentes, diferenÁas de perspectivas e

de ajustamentos ‡s perspectivas do outro. No espaÁo discursivo existe co-

orientaÁ„o, mas n„o coincidÍncia de pontos de vista.

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Para apreender a construÁ„o do sentido num espaÁo com caracterÌsticas

de heterogeneidade, irregularidade e assimetria n„o podemos nos limitar ‡

descriÁ„o de momentos congelados para an·lise, mas sim mostrar o

movimento que caracteriza toda interaÁ„o. Para isso È necess·rio introduzir na

an·lise uma dimens„o diacrÙnica, tentando dar conta do vir-a-ser das

significaÁıes introduzidas por uns e outros.

Os sujeitos autores do livro do CCA

O sujeito que participa do CCA, af·sico ou n„o af·sico, ser· tomado

aqui como sujeito que certamente n„o È ˙nico, que se desenha a cada palavra

enunciada e nos encadeamentos produzidos, que veicula as palavras dos

outros, que È sempre membro de uma dada comunidade ñ social, cultural,

ling¸Ìstica, de trabalho, de geraÁ„o ñ e tomado dentro de sua prÛpria histÛria

individual. O sujeito ele mesmo efeito da palavra que ele enuncia e que o

inscreve num espaÁo especÌfico que È o espaÁo discursivo.

E È porque esse sujeito se situa entre o individual e o coletivo que n„o

podemos n„o perceber em cada palavra, em todos os escritos, o efeito dos

condicionamentos e dos constrangimentos ligados a uma Època, a uma

comunidade, sua inscriÁ„o em um ìespÌrito da Èpocaî, a existÍncia de

determinismos que ultrapassam o individual. SÛ podemos, portanto, adotar a

perspectiva de um sujeito plural, fonte de seu discurso e presa das

determinaÁıes que o ultrapassam (Salazar Orvig, 1999, p.33).

Os sujeitos af·sicos envolvidos no projeto do livro do CCA est„o em

cena na articulaÁ„o entre a singularidade e a comunidade. Desta forma n„o

podem ser definidos apenas pela afasia ou pela les„o cerebral, ou mesmo pelo

impacto da afasia em suas vidas. Nem mesmo pela atividade que

desenvolviam antes da afasia ou que desenvolvem atualmente. Os sujeitos n„o

af·sicos, por sua vez, especialmente os pesquisadores, n„o podem ser

definidos por seu grau de conhecimento e experiÍncia com a afasia ñ doutores,

mestres, graduandos ñ ou pela relaÁ„o hier·rquica que se estabelece entre

eles ñ orientadores e orientandos, professores e alunos. O que os define ñ

sujeitos af·sicos e n„o af·sicos ñ È sua participaÁ„o no projeto de construÁ„o

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do livro do CCA, sua ades„o, seu espÌrito aberto para enfrentar questıes

polÍmicas, para expor seus pontos de vista nem sempre coincidentes com a

maioria, sua disponibilidade para compartilhar questıes ‡s vezes dolorosas. O

que identifica esses sujeitos, af·sicos e n„o af·sicos, È sem d˙vida o expor e o

compartilhar pontos de vista sobre a afasia.

A decis„o de se escrever um livro a partir das discussıes que v„o ter

lugar no espaÁo do CCA por si sÛ j· configura um espaÁo de

compartilhamento, de coletivo, de comunidade. Os pontos de vista sobre a

prÛpria afasia, como veremos, podem ser polÍmicos e expressar posiÁıes

antagÙnicas. No entanto, o que se vÍ ao longo do processo de construÁ„o do

livro do CCA s„o movimentos de convergÍncia tanto na decis„o de se escrever

um livro quanto na escolha dos temas para discuss„o.

CI, por exemplo, n„o pode ser definido apenas como o paulista de 45

anos, casado e pai de trÍs filhas, residente em Hortol‚ndia, chag·sico, af·sico

desde fevereiro de 1996 e desde ent„o participante do CCA, com cursos de

AdministraÁ„o de Empresas e Contabilidade e ìespecialista em qualidadeî que

ministrava palestras a funcion·rios de empresas. Ele tampouco pode ser

definido por, ‡ Època do desenvolvimento do projeto do livro, n„o ter uma

ocupaÁ„o especÌfica, cuidar de suas plantas ñ orquÌdeas ñ ou incentivar sua

esposa a freq¸entar uma faculdade enquanto ele cuidava da casa. No contexto

do livro do CCA, CI È um dos sujeitos mais engajados, È aquele que identifica a

falta de livros acessÌveis sobre as afasias, que faz leituras sobre as afasias que

s„o compartilhadas pelo grupo, que expıe pontos de vista conflitantes sobre o

impacto social e profissional da afasia. … o que observamos no fragmento a

seguir, retirado do excerto CCA02:

CI: Mas eu quero falar sobre o livro ìO af·sicoî. Tem v·rias testemunhas...

v·rios testemunhos... È mundial: francÍs... dinamarquÍs... tem v·rios

testemunhos... sobre afasia. Cada um tem ... vocÍ vai se colocar e e È...

porque a gente n„o... tem af·sico que n„o fala... tem escritores af·sicos

que n„o consegue dizer nada, num lÍ nada, n„o escreve nada! SÛ

escrevia antes e e tem v·rios escritores aqui... mas eu quero ler pra

vocÍs um relato... de um avi...aviador! Somente esse relato... t·? (...).

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Esse aviador... ele foi aposentado... ele podia estar aposentado... mas

ele n„o aceitou a aposentadoria. Ele lutou contra isso... ele lutou contra

a hemiplegia nÈ? A a ele teve derrame cerebral... mas ele lutou contra

isso e venceu!

EF tambÈm n„o pode ser definido apenas por ser natural da Bahia, ser

casado e pai de trÍs filhos e ter 68 anos na ocasi„o do projeto do livro.

Tampouco por sua profiss„o anterior ‡ afasia: era advogado e passava por

dificuldades profissionais ‡ Època de seu AVC, em 1988. Participante do CCA

desde 1990, j· foi propriet·rio de uma floricultura em sociedade com sua

esposa e fez um curso de massagista, profiss„o que tentou seguir, mas sem

sucesso. EF se empenha em vencer uma aÁ„o indenizatÛria que move contra

uma empresa fabricante de cigarros. Essa sua causa vai reunir os sujeitos em

torno do debate sobre os direitos das pessoas af·sicas. O fragmento seguinte

(CCA26) exemplifica o movimento de EF em relaÁ„o aos seus direitos:

Iem: (...) O seu EF tem com ele... que o derrame que ele sofreu foi por conta

do tabagismo. Ele fumava... muito.

EF: [//Faz gesto de ìfumar cigarroî//.

EF: Muito //Mostra os cinco dedos da m„o//.

Iem: [Isso associado ‡ press„o alta...

Imc (para EF): [Cinco?! //Mostra os cinco dedos da m„o//.

IP: //Mostra os cinco dedos da m„o//. Cinco maÁos?

Imc: Cinco maÁos.

Iem: Cinco maÁos. Por dia?

EF: //Confirma com a cabeÁa//.

IP: Nossa! //Leva as duas palmas da m„o ‡ face, uma em cada bochecha//.

N„o acredito!

Iem: [Associada ‡ press„o alta... n„o sei o quÍ... ele teve um

derrame. Ent„o... agora. Agora... se baseando na histÛria de outras

pessoas... que j· processaram a Souza Cruz... porque o cigarro vicia!

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Ent„o... a pessoa... n„o È que n„o larga porque n„o quer... È porque n„o

pode. Tem produtos quÌmicos dentro do cigarro...

Imc: [Que viciam.

Iem: Que faz //Aponta a cabeÁa// que tem uma atuaÁ„o... nÈ...

EF: … È È //Aponta a cabeÁa//.

Iem: Inclusive neurolÛgica... que È o vÌcio... que faz com que vocÍ n„o

consiga

Imc: [Parar.

Iem: Parar... de enriquecer //Fazendo gesto de ìdinheiroî// as empresas nÈ?

IP: [Parar.

EF: //Faz gesto de ìdinheiroî// //Ri//.

Iem: Ent„o... o seu EF... com base em histÛrias de outras pessoas... que

acionaram... que processaram... que inde... que pediram indenizaÁ„o pra

Souza Cruz... fez isso. E ele acha que essas coisas deviam estar... de

alguma forma... no no livro... informando... tal.

LM, metal˙rgico aposentado por invalidez em funÁ„o de um AVC em

1986 e em funÁ„o da falta de polÌticas de reintegraÁ„o profissional, tambÈm

n„o ser· aqui definido apenas por sua afasia ou por atualmente se ocupar das

atividades da casa e de suas filhas. LM comeÁou a freq¸entar o CCA em 1993,

e apÛs um perÌodo de afastamento retornou em maio de 2000 a convite de Iem

para participar do projeto do livro do CCA. Sua histÛria profissional e sua

aposentadoria por invalidez v„o mobilizar os sujeitos em torno dos direitos

trabalhistas dos af·sicos. O fragmento retirado do CCA14 ilustra a posiÁ„o

enunciativa de LM:

LM: Ah... bom. Eu... ... ... bom ... È ... sempre ... ... a gente nunca pensava

... que a gente ia ficar assim nÈ? ... ... ... Vontade minha de... de voltar...

//4í// ao serviÁo.

Iem: O que que vocÍ fazia? //Com baixa intensidade de voz//.

LM: //3í//... AÖ trabalhavaÖ

EF: I: i: te:e:u me:c„: nu. Tone:u me ca ni co.

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LM: //Olha para EF//.

Iat: Torneiro mec‚nico?

LM: //3í//... … //2í//... MetalÈve.

Iat: [Metal˙rgico?

LM: [Metal˙rgico... nÈ? Ent„o um mÍs... fiquei... ...

trÍs anos... ... afastado ... ... depois eles esperaram e ... aposentaram.

SP tambÈm n„o È sÛ o senhor de origem italiana que viveu no sul da

FranÁa desde os dois meses de idade e que veio para o Brasil com 20 anos,

onde se casou com uma brasileira. Tampouco o executivo de uma empresa

multinacional que aos 36 anos sofreu um AVC e ficou af·sico. Apesar de suas

dificuldades ling¸Ìsticas serem menores no francÍs ñ sua lÌngua materna e

ìlÌngua do pensamentoî ñ, È o portuguÍs a lÌngua que mais usa para se

comunicar (em famÌlia, no CCA e em outros grupos sociais). SP È aquele que,

freq¸entando o CCA desde 1995, chega sozinho dirigindo um carro adaptado

‡s suas dificuldades motoras, que sempre teve como atividade o cultivo de

uma horta ñ h·bito que mantÈm atÈ hoje ñ e cuja experiÍncia com a afasia vai

provocar debates reiterando no grupo a necessidade primeira de informaÁ„o

acerca das afasias e das possibilidades de recuperaÁ„o e de reinserÁ„o social

do af·sico: o mÈdico que dele tratou por ocasi„o do AVC n„o sÛ n„o o

encaminhou como descartou qualquer possibilidade de recuperaÁ„o. Motivado

pelo debate e pela atestaÁ„o do grupo de que o af·sico muitas vezes n„o È

acompanhado desde o inÌcio porque o mÈdico n„o acredita na reabilitaÁ„o ñ

uma vez que considera o dano cerebral irreversÌvel ñ, SP relata essa sua

experiÍncia no seguinte fragmento (CCA25):

SP: O „... „ a... mulher l·... ele falar a... e... Ele me... ele se... o... e... como

È? Ent„o... ele ele falou... ele... que falou... l·... ele falar... de... deixa ele

//Faz gesto com a m„o de ìcolocar de ladoî// num num forro l· na na È

casa... castelo... l· l·. E esquece... esquece //Faz gesto com os dedos

juntos para cima, indicando ìabsurdoî//.

Iem: Quer dizer... ele n„o acreditou na... sua... reabilitaÁ„o.

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Imc: [RecuperaÁ„o.

SP: VÍ... agora vai l· na //Apontando a boca, a cabeÁa e a boca novamente//

chovei... chorei //Apontando no rosto como se l·grimas escorressem//.

Iat: //Pega no braÁo de SP//.

CI: …. Esquece.

SP: T· vendo? //Fica emocionado//.

Imc: Esquece... È.

SP: T·... t· //Apontando a cabeÁa//...

Imc: [//Pega no braÁo de SP//.

SP: Eu n„o estou //Apontando para fora//

CI: Mas tem muito disso.

SP: Ent„o l· //Apontando para fora// a... no... no... como È? … uma melhor...

mulher... l· l· l· l· ela fala p· p· p·. De... de depois de de tre trÍs

//Mostra trÍs dedos// meses... ele vai ne... ele S„o Paulo l· //Ri//.

Imc: [//Acena com a cabeÁa//.

Iem: //Acena com a cabeÁa//.

SP: T· ent„o... l·... e com ele... ta... t· //Fazendo gestos de ìcumprimentarî,

de ìandarî ñ apontando as duas pernas ñ e de ìsairî//. T· vendo? T·

vendo? //Ri//.

Iem: [Vai melhorar. … isso aÌ.

Iat: [//Pondo a m„o sobre o

ombro de SP//. ParabÈns!

CI: ….

Nem SI, uma senhora nissei, casada e m„e de quatro filhos, com grau

b·sico de escolaridade (quarta sÈrie do primeiro grau) e que trabalhou na roÁa

durante quase toda a vida, ser· definida por seu AVC ocorrido em 1988 ou por

sua afasia. SI, que freq¸enta assiduamente o CCA desde 1990 e que a esse

espaÁo se refere como ìescolaî ou ìclasseî, exerce aqui uma possibilidade de

convivÍncia que talvez n„o encontrasse se n„o tivesse se tornado af·sica. SI

faz uso da agenda onde relata acontecimentos de sua vida familiar. …

cuidadosa com sua aparÍncia, constantemente se apresenta com cortes novos

de cabelo, sempre com alguma novidade. Participa na atividade de elaboraÁ„o

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do livro, reiterando posiÁıes apresentadas por outros, corroborando pontos de

vista e, ‡s vezes, anunciando algum novo enfoque para determinado tema.

Mas È nos intervalos entre as atividades dos programas de Linguagem e de

Express„o Teatral, por exemplo, que SI manifesta toda a sua potencialidade de

participaÁ„o no grupo ñ nesse momento n„o existem regras, n„o existem

temas preestabelecidos para discuss„o: È a hora do ìrecreioî. Um exemplo da

participaÁ„o de SI no grupo foi extraÌdo do seguinte fragmento (CCA05):

Iem: ‘... SI! Quando vocÍ... vocÍ contou que... h· dez anos... vocÍ contou

que vocÍ teve l· o derrame... e ficou com dificuldades pra falar. Est·

todo mundo falando aqui... que quando ficou com dificuldade pra falar...

os amigos... os parentes... ficaram afastados. Aconteceu isso tambÈm

com vocÍ?

SI: Aconteceu!

Iem: O pessoal se afastou de vocÍ?

SI: N„o posso falar... afastou... de de repente.

Iem: E por que ser·?

CI: [Todo mundo!

SI: Ah... n„o sei!

Iem: Por que que vocÍ acha? … importante a gente pensar pra...

SI: [Ah... porque... Num num

num fala! Eu!

CI: [As pessoas... comuns...

Iem: [Se

desinteressam.

CI: As pessoas comuns... o problema... n„o fala.

Iem: [Mas hoje est· assim... hoje em dia? Hoje em dia

vocÍ conversa com as pessoas... elas se aproximam... como È que est·

hoje... hoje em dia? Isso era o comeÁo... e hoje?

SI: … hoje est·... separado! //Ri//.

Imc: Ainda separado?

SI: ”ia! //Acena ìsimî com a cabeÁa//.

Imc: N„o retomou?

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SI: N„o... //Faz ìn„oî com a cabeÁa//.

Iem: N„o... vocÍ falou que quando vocÍ teve derrame... n„o falava direito...

todo mundo... È...

SI: [Afastou!

Iem: Afastou de vocÍ. NÈ?

SI: ….

Iem: Mas hoje em dia? Hoje vocÍ vive com seus filhos... tem o seu marido...

nÈ... que fica um pouco no Jap„o... um pouco aqui. Quer dizer... hoje os

familiares e os amigos tambÈm n„o falam com vocÍ?

SI: Ah... fala!

Iem: Ent„o mudou um pouco?

Imc: [Mudou.

SI: Mudou //Ri//.

IP n„o È apenas a enfermeira que quase se aposentou apÛs seu AVC.

Retornando ao CCA em 8 de setembro de 1999 apÛs uma longa ausÍncia, IP

vem para participar do projeto do livro do CCA. IP È aquela que, apesar de

af·sica, reconquistou ñ n„o sem grandes esforÁos ñ seu direito de exercer sua

profiss„o e de ocupar o mesmo cargo que ocupava antes da afasia. IP È

aquela que vai enfrentar os preconceitos dos colegas de trabalho explicitando

que o af·sico precisa de oportunidades e n„o de piedade. IP È aquela que nos

mostra como n„o ser ìcafÈ com leiteî na vida profissional, como o seguinte

fragmento do CCA26 deixa entrever. IP relata sua experiÍncia quando, j·

af·sica e apÛs uma cirurgia, o mÈdico perito, durante uma avaliaÁ„o,

questionou-a sobre sua necessidade de continuar trabalhando, sugerindo que

se aposentasse. Foi preciso que uma mÈdica do Posto de Sa˙de onde IP

trabalhava escrevesse um relatÛrio atestando a capacidade de IP de exercer

suas funÁıes para que o mÈdico perito n„o a aposentasse:

Iem: Aposentadoria por invalidez! Qual que È o problema? AlÈm de... alÈm de

ter essa... essa... essa repercuss„o... nÈ... talvez dura pra pessoa...

IP: [Trauma.

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Iem: O que acontece tambÈm? Quando vocÍ È aposentado vocÍ tem tambÈm

uma diminuiÁ„o do seu sal·rio!

IP: …... „h„.

Iem: NÈ? Uma coisa era o LM trabalhando na empresa... na funÁ„o que ele

tinha ou qua... qualquer outra funÁ„o... outra coisa È ele aposentado

porque aÌ ele ganha aquele sal·rio mÌnimo... se n„o menos ainda.

Entendeu? Ent„o... no fundo... a quest„o È de direito do trabalhador de

um lado... n„o È... e tambÈm a gente se proteger... È... desses... desses

ataques... nÈ... das empresas... com relaÁ„o a... no fundo... a... ao

dinheiro... nÈ?

IP, Imc e EF: //Concordam com a cabeÁa//.

Iem: Ela n„o quer ter nenhum tipo de prejuÌzo. Ent„o... com receio de que a

pessoa v· produzir menos... ela pega e encosta aquela pessoa //Faz

gesto com as duas m„os de ìafastarî//.

Imc: [Aposenta.

Iem: N„o quer dizer que vai produzir menos!

EF: ….

Imc: Produzir uma outra coisa.

Iem: E outra coisa: as pessoas n„o produzem do mesmo jeito.

IP (para Imc): [Exatamente!

IP: E a gente ‡s vezes atÈ se interessa pra assim... fazer outras coisas que

n„o conseguia... nÈ... como eu... dava aula pra gestantes... pra... pra

idosos... pra climatÈrio... tudo o que tem direito... nÈ.

Iem: Hu hum.

IP: Liderava o Posto... chefiava... na ausÍncia do mÈdico... o que era

apropriado pra fazer o atendimento. AÌ... depois eu... eu sabia que eu

n„o era capaz. DaÌ mesmo assim depois do meu acidente... depois do

meu retorno... teve um caso grave l·... que n„o tinha ninguÈm. AÌ iam

chamar o... como que era... essa reportagem que faz na hora? //Olhando

para Iem//.

Iem: Reportagem?

IP: Isto... n„o È ìIsto …î. Como que... faz na hora?

Iem: Como È que chama aquela reportagem de televis„o... ìAqui e Agoraî!

Imc: Ah!

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EF: //Faz sinal de positivo com o polegar//.

IP: AÌ eu cheguei... n„o tinha mais condiÁ„o de cumprir hor·rio... nÈ? AÌ...

eu cheguei... acho que È dez horas... quase onze horas e eu me lembro

que o paciente tava assim... roxo... assim... um senhor.

Iem: O paciente estava roxo... um senhor?

IP: …... estava prestes a ter derrame. AÌ joguei... assim minha bolsa... nÈ...

tudo //Levanta-se da cadeira// atÈ no ch„o... nÈ //Senta-se novamente//

porque n„o tinha ninguÈm pra atender e o pessoal estava com medo.

AÌ... verifiquei a press„o... vi o pulso... vi coisa... aÌ com mem... mesmo

sem eu consegui muito falar... seu EF... eu encaminhei o paciente... fui

na ambul‚ncia com ele...

Iem: Fez os procedimentos... nÈ?

IP: Tudo! Fez... fui na... na UTI... entrei direto com ele porque tem pa... È...

„... sen„o ele morria... nÈ? Ent„o falei: AÌ... n„o sei quem liberou a

ambul‚ncia... tudo. Falei: ìLibera na hora... urgenteî... e eu

acompanhei... salvamos o paciente. O mÈdico falou: ìNossa... senhora!î.

Ele perguntou quem que eu era... nÈ? AÌ eu falei: ìEu sou do PS do

Pariî...nÈ? SÛ que eu... assim... n„o tinha... n„o falo muito...lembra nÈ?

Iem: Hu hum.

IP: E... ent„o foi assim que eu fui me incentivando... e... e necessidade...

nÈ? Ent„o... eu fazia tudo que... podia assim... que tinha direito.

Imc e EF: //Acenam com a cabeÁa//.

IP: E pra mim foi muito bom.

JB, alÈm de casado, pai de trÍs filhas ñ a caÁula nasceu dois anos

depois de seu AVC, em 1993 ñ e engenheiro civil, ocupou-se temporariamente

da colheita de legumes na ch·cara da famÌlia ao tornar-se af·sico e finalmente

abriu, com sua esposa, uma banca de jornais em Campinas. JB freq¸enta o

CCA desde setembro de 1993 e È um observador crÌtico de sua prÛpria fala ñ e

da fala dos outros ñ temperando com seus coment·rios os debates instaurados

com o livro. Apresentamos a seguir dois fragmentos do CCA05 e um fragmento

do CCA17 com coment·rios de JB:

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CI: Todo mundo sofreu... todo mundo perdeu amigos... parentes. NÈ?

Imc: [Isso... as

perdas... As relaÁıes! NÈ? Essas s„o relaÁıes!

CI: Porque a casa È... vivia cheia de gente. Depois que teve derrame

cerebral: pchiu //Com movimento r·pido da m„o esquerda da direita para

a esquerda// sumiu!

Imc: Quer dizer... tambÈm que È importante... pra estas outras pessoas...

JB: […. T· louco! //Rindo// //Olhando para CI// sumiu mesmo!

CI: N„o È mesmo? //Apontando para JB//. N„o sumiu?

JB: […... sumiu mesmo!

CI: Conhece... conhece... conhece... conhece... Pchiu! //Gesto com a m„o

indicando ìsumirî//.

JB: //Ri//. Vai... t·... l· //Fazendo gesto com a m„o de ìafastarî, ìpÙr de

ladoî//.

Iem: … mesmo... JB?

JB: …! LÛgico!

CI: [Sumiu! Sumiu!

Imc: Mas isso È importante... constar no livro!

Neste outro fragmento do mesmo encontro (CCA05), Imc levanta as

possibilidades de recolocaÁ„o profissional que CI teria caso tivesse

permanecido em seu trabalho anterior. Sua fala provoca um coment·rio irÙnico

de JB, discordando do ponto de vista de Imc de que todos os af·sicos do grupo

falam bem:

Imc: Mas se vocÍ tivesse l· atÈ hoje... hoje em dia vocÍ poderia dar curso...

se ele tivesse mantido o vÌnculo //Olha para Iem// nÈ? Porque vocÍs

//Faz gesto circular com a m„o indicando todo o grupo//... ... falam bem!

JB: …!

Imc: NÈ? //Falando para JB//.

JB: ‘!

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CI: E outra: vai... a afasia afasia È È trabalhando... vai diminuindo a afasia!

Trabalhando!

JB: Aqui? //Cutuca Imc e aponta para CI//.

Imc: Agora... //Pondo a m„o no ombro de JB// porque tambÈm que... ele fa

e... aqui ele fala melhor ñ ele quer dizer isso... o JB ñ //Sorrindo e

olhando para Iem//. Mas... por quÍ? Porque ele... ele tenta. Ele vai... ele

n„o desiste. Sabe... isso È importante tambÈm... viu JB? NÈ?

JB: [Tenta... È. [….

Neste outro fragmento (CCA17) durante a discuss„o sobre uma das

questıes debatidas para o livro do CCA, JB mostra-se mais uma vez

provocador e irÙnico em seus coment·rios. CI expıe ao grupo sua idÈia da

existÍncia de graus de severidade das afasias, e JB quer saber a opini„o de CI

sobre sua fala:

CI: Hoje eu estou num grau... tÙ ... //Faz gesto de ìmais ou menosî com a

m„o//.

Imc: Light!

JB e LM: //D„o risada//.

CI: … È È... terceiro grau... eu quero... eu quero voltar a

Imc: [Melhorar mais!

CI: … È È... melho... eu dava palestra e tal... eu tinha bom portuguÍs... eu

quero voltar a estar estudando e tal

JB: [Eu! E eu? E eu? //Perguntando para CI//.

CI: Ent„o... vocÍ tambÈm fala bom... muito bem nÈ?

JB: //Cai na gargalhada//.

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O livro do CCA como construÁ„o referencial

… no desenrolar de processos de referenciaÁ„o que os interlocutores

elaboram objetos de discurso. Mondada (2001, p.9) define os objetos de

discurso como

des entitÈs qui ne sont pas conÁues comme des expressions

rÈfÈrentielles en relation spÈculaire avec des objets du monde ou avec

leur reprÈsentation cognitive, mais des entitÈs qui sont interactivement

et discursivement produites par les participants au fil de leur

Ènonciation. Les objets de discours sont donc des entitÈs constituÈes

dans et par les formulations discursives des participants: cíest dans et

par le discours que sont posÈs, dÈlimitÈs, dÈveloppÈs et transformÈs

des objets de discours qui ne lui prÈexistent pas et qui níont pas une

structure fixe, mais qui au contraire Èmergent et síÈlaborent

progressivement dans la dynamique discursive. Autrement dit, líobjet de

discours ne renvoie pas ‡ la verbalisation díun objet autonome et

externe aux pratiques langagiËres; il níest pas un rÈfÈrent qui aurait ÈtÈ

codÈ linguistiquement.1

Se os objetos de discurso enquanto produtos da linguagem n„o se

confundem com os objetos do mundo, e se s„o fruto de uma construÁ„o dos

sujeitos, eles n„o est„o numa relaÁ„o de total exterioridade com o sujeito.

Entre o sujeito, seu discurso e o universo que ele constrÛi se cria uma relaÁ„o

complexa. A referenciaÁ„o corresponde, nas palavras de Borel (1987, p.78,

apud Salazar Orvig, 1999), a esta

1 Objetos de discurso s„o definidos como entidades que n„o s„o concebidas como expressıes

referenciais que guardariam uma relaÁ„o especular com os objetos do mundo ou com sua representaÁ„o cognitiva, mas sim como entidades que s„o produzidas interativamente e discursivamente pelos interlocutores durante a enunciaÁ„o. Os objetos de discurso s„o, portanto, entidades constituÌdas nas e pelas formulaÁıes discursivas dos interlocutores; È no e pelo discurso que os objetos de discurso ñ que n„o prÈ-existem ao discurso, mas que emergem e se elaboram progressivamente na din‚mica discursiva e n„o tÍm uma estrutura fixa ñ s„o propostos, delimitados, desenvolvidos e transformados. Ou seja, o objeto de discurso n„o remete ‡ verbalizaÁ„o de um objeto autÙnomo e externo ‡s pr·ticas ìlinguageirasî; ele n„o È um referente que teria sido codificado linguisticamente. (TraduÁ„o ALT.)

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capacitÈ de reprÈsenter quelque chose en langage comme Ètant hors

langage. On a donc un rapport, complexe, de deux rapports. Díabord un

rapport díextÈrioritÈ entre deux termes: langage et rÈalitÈ, ensuite un

rapport díintÈrioritÈ structurant líun des termes seul, ‡ savoir le langage,

qui est tel quíil permet non seulement de ìfigurerî dans les mots le

rapport díextÈrioritÈ, mais aussi de líÈtablir, de le ìjouerî avec des mots

et de permettre de ìsíy prendreî.2

Os objetos de discurso s„o, portanto, produtos da linguagem, frutos de

uma construÁ„o dos sujeitos em interaÁ„o, e, desta forma, n„o se confundem

com os objetos do mundo. O livro do CCA ser· aqui tomado n„o sÛ como

objeto de discurso em construÁ„o, mas como tambÈm um objeto do mundo em

construÁ„o. O referente ñ o livro do CCA ñ n„o existe a priori e vai sendo

fabricado como objeto de discurso ao longo do processo de referenciaÁ„o. Isso

implica assumir um dos postulados de ApothÈloz & Reichler-BÈguelin (1995)

citado em Koch (2004): ìo discurso constrÛi aquilo a que faz remiss„o, ao

mesmo tempo em que È tribut·rio dessa construÁ„oî. Em 13 de outubro de

1999 (CCA10), Ijt expıe a SM que o livro do CCA ainda n„o existe em sua

materialidade e explicita ao grupo que È um objeto em construÁ„o:

Ijt: SM... vocÍ est· sabendo do livro que nÛs estamos escrevendo?

SM: Estou.

Iff: //Levantando-se// Deixa eu ver se ele estava no... (vai verificar no

caderno de anotaÁıes a presenÁa ou n„o de SM no CCA nos encontros

anteriores).

Ijt: VocÍ lembra do que que È o livro?

SM: O livro o livro a u pessoalzinho comentar aqui... a Iem... a Imc... mas eu

n„o tenho o livro pa/

2 A referenciaÁ„o corresponde a esta capacidade de representar alguma coisa em linguagem

como estando fora da linguagem. Tem-se, portanto, uma relaÁ„o, complexa, entre duas relaÁıes. Inicialmente, uma relaÁ„o de exterioridade entre dois termos: linguagem e mundo; em seguida, uma relaÁ„o de interioridade que estrutura somente um dos termos ñ a linguagem ñ e que È tal que permite n„o sÛ que a relaÁ„o de exterioridade se manifeste nas palavras, mas tambÈm que se estabeleÁa, que jogue com as palavras e aÌ se constitua. (TraduÁ„o ALT.)

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Ijt: [N„o... mas nÛs estamos escrevendo ainda... n„o existe o

livro ainda. N„o existe... os li... o livro est· aqui //Apontando para a

cabeÁa// na cabeÁa de vocÍs... da gente... entendeu?

No inÌcio desse processo, as primeiras referÍncias a livro est„o

relacionadas a livros outros sobre afasia. ¿ medida que as discussıes v„o

ganhando espessura, livro passa a categorizar o livro do CCA. Tomemos por

exemplo os fragmentos de dois encontros do CCA ocorridos em 1999 e um

outro ocorrido em 2001 como forma de ilustrar este aspecto.

Em 31 de marÁo de 1999,3 CI comenta sobre o livro O af·sico ñ

convivendo com a les„o cerebral. CI È um dos sujeitos af·sicos do CCA

bastante interessado em buscar informaÁıes sobre as afasias e os af·sicos.

Tinha h·bitos de leitura e escrita freq¸entes antes de tornar-se af·sico e, com a

afasia, estava sempre pesquisando a literatura sobre o tema, bastante escassa

e, ‡s vezes, pouco acessÌvel. CI parece surpreso por ter tido acesso a um livro

que discute diretamente a quest„o do af·sico. Imc n„o sabe a qual livro CI se

refere.

CI: Vou falar mais sobre o livro.

Imc: Que livro?

CI: O livro: ìAf·sicoî.

Imc: O livro chama ìO af·sicoî.

CI: … um livro que nem todo mundo leu mas que fala sobre os NOSSOS

problemas. Fala muito sobre nossos problemas...

Em 8 de setembro de 1999,4 Iem propıe que se relate ‡ IP ñ uma

senhora af·sica que havia participado do CCA anteriormente e que visitava o

grupo nesse dia ñ quais s„o as atividades desenvolvidas pelo grupo, e EF, ao

escrever livro, permite que todos se mobilizem para explicitar o livro do CCA.

3 CCA02, no qual estavam presentes CI, SI, MS, EF, Imc, Iff e Ijt.

4 CCA06, no qual estavam presentes EF, SP, CI, IP, Imc, Iem, Ijt e SM.

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Livro passa a ser tratado como tÛpico assumindo essa condiÁ„o particular, no

discurso e na interaÁ„o, de ser identificado, reconhecido e definido pelos

sujeitos que lhe atribuem propriedades especÌficas que n„o s„o preexistentes,

mas que s„o construÌdas, desenhadas ao longo da interaÁ„o (Mondada, 2001,

p.9).

Iem: E se a gente contasse um pouco pra dona IP sobre este grupo... que

que a gente anda fazendo nesse grupo. Pode tentar... seu SP?

EF: //Escreve algo no papel//.

CI: O que estamos fazendo nesse grupo... N„o sei... //Brincando//.

SP: //Faz gesto com a m„o, como se indicasse ìpode serî//.

Iem: Vamos contar? //Falando para CI//.

CI: Eu... eu... acho que n„o...

Iem: Vamos... vamos... vamos lembrar um pouco disso aqui! //Pondo a m„o

sobre a cabeÁa de CI//.

Todos: //D„o risada//.

Iem: Vamos l·! O que que a gente faz aqui!

EF: ” //Estendendo a folha de papel para Iem//.

Iem: Ah! ìLivroî o senhor escreveu. Livro!

EF: ‘!

IP: Ah!

Iem: Vamos dar detalhes pra ela. Al·... dona IP... vamos l·. Que mais? Fala...

seu SP! //Todos olham para SP, menos CI, que est· mais afastado da

mesa//.

IP: //Olha o papel onde EF escreveu ìlivroî//.

EF: //Faz sinal de positivo com o polegar//.

Iem: Ele falou livro. Vamos tentar contar essa novidade pra ela... ent„o.

Vamos comeÁar pela novidade //Pondo a m„o sobre o braÁo de IP//

depois a gente fala do que faz todo dia //Ri//.

IP: Isso!

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Em 29 de maio de 2001,5 logo no inÌcio da reuni„o do grupo, EF mostra

para Iem alguns documentos correspondentes ao processo e ao pedido de

indenizaÁ„o que vem movendo contra uma empresa fabricante de cigarros,

como j· relatado anteriormente. EF entrega os documentos para Iem

produzindo o enunciado ìlivroî, que È imediatamente reconhecido como o livro

do CCA.

Mas o livro do CCA vai ser referido de v·rias formas pelos sujeitos ao

longo de sua co-construÁ„o referencial. Analisaremos a seguir os movimentos

de referenciaÁ„o acionados pelos sujeitos nessa atividade da construÁ„o

referencial de livro.

Processos de referenciaÁ„o: os sujeitos constroem o livro do CCA

A idÈia de se escrever um livro, um livreto, um manual, um folheto ñ as

v·rias formas pelas quais o livro do CCA vai sendo categorizado ñ ou outro tipo

qualquer de material que pudesse divulgar a afasia e o af·sico para leigos no

assunto surgiu no CCA por iniciativa dos prÛprios af·sicos, como j· comentado

no primeiro capÌtulo.

O reconhecimento da inexistÍncia de livros sobre afasia acessÌveis para

leigos ñ uma das causas da empreitada ‡ qual o grupo se lanÁa ñ È explicitado

por CI no fragmento seguinte, extraÌdo do excerto CCA05:

CI: Eu eu eu eu eu depois do do derrame... eu procurei livros nÈ? L· na

biblioteca... Livros È pra... pra mim entender... o que aconteceu comigo

nÈ... derrame cerebral. N„o encontrei livros nÈ... livros muito... ca... È...

muito È È È voltados pra professores nÈ... livro pra professores... È...

palavras difÌceis... porque eu perdi as palavras nÈ? VocÍ lembra //Fala

para Iem// nÈ? Eu perdi as palavras. AÌ eu achei È È È eu achei um um

uma enciclopÈdia È È È pra ensi... pra pro pra pra enfermeiro nÈ...

5 CCA26, no qual estavam presentes Ijt, Iem, IP, MG, NS, SI, Imc, EF e SP.

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enfermeiro... È È È aÌ eu achei a parte de afasia... e a parte de derrame

cerebral. Boa! Mas pra enfermeiro!

EF: //Enquanto CI fala, EF levanta-se e pega sua pasta, de onde tira um livro

que fica segurando na m„o//.

Imc: AcessÌvel...

CI: Enfermeiro. N„o pro mÈdi... N„o pra paciente!

Iem: N„o pra leigos... È isso...

CI: Tudo tudo sobre derrame cerebral... eu vou eu vou eu vou eu xero xe xe

xero xeroquei cinco p·ginas... nÈ? Cinco p·ginas. Afasia duas p·ginas.

Iem: VocÍ encontrou esse material onde... hein CI?

EF: //LÍ algo no livro//.

CI: … È È È um enfermeiro aqui... tem È uma uma uma biblioteca... È È È um

volume... emprestou pra mim. Enfermeiro l· l· da igreja. Enfermeiro...

nÈ? Mas bom... È È vou trazer pra vocÍs. Derrame cerebral e afasia. AÌ

eu procurei... È... l· l· nas livraria... negÛcio de afasia. N„o achei!

Livraria especÌfica pra professores... pra... È È È È a as palavras... È...

DifÌceis. N„o È pra nÛs! Porque a gente tem que ter palavra f·cil...

porque a gente tem dificuldade pra entender!

Assim como CI, EF tambÈm sempre colaborou na din‚mica inicial ent„o

implantada no grupo: a busca, a leitura e a discuss„o de material especÌfico

sobre as afasias.

Retomo mais uma vez o fragmento do encontro ocorrido em 2 de junho

de 1999 (CCA04), no qual s„o esboÁados os primeiros movimentos de

referenciaÁ„o sobre o livro do CCA:

Iem: ... uma idÈia que surgiu aqui... n„o È... de fazer um livro... n„o È... de

fazer um livro... sobre...

Imc: ...Qual È o tema? As a: fa:si:as...

Iem: ...Que È uma iniciativa do grupo... de fazer em conjunto um livro... sobre

as afasias... nÈ

Iem: Os assuntos ... quais s„o os tema... nÈ que seria importante tocar nesse

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livro? Primeiro explicar o que s„o as afasias nÈ?

Imc: Hum... hum ....

Iem: Explicar o que s„o as afasias... que mais alÈm disso... que seria

importante?

Imc: [A semana passada... que que nÛs ... trabalhamos muito?

EF: [Ah ...

Imc: Pode ser um outro assunto do livro? Comen:t·:ri:os ... nÈ?

EF: [ri:o ... È!

Imc: ExperiÍncia... que seria importante relatar pra uma pessoa que est·

interessada no tema... ou que est· passando pela dificuldade. N„o È

isso?

SP: T· certo!

Iem: A idÈia È divulgar! … de divulgar! O que s„o as afasias... explicando o

que s„o as afasias... qual È o impacto que a afasia tem na vida da... das

pessoas... n„o È isso?

EF: […...

Imc: Depoimentos... coment·rios...

Iem: O que que seria esses depoimentos... de vocÍs?

EF: …... da... da...

Imc: Semana passada fize...

EF: [Eu...

Imc: Isso! De todos!

Iem: E esse depoimento seria basicamente o quÍ? Contar a experiÍncia de

ser af·sico?

EF: //IninteligÌvel por baixa intensidade//.

Iem: As dificuldades que enfrenta?

EF: ‘... Ù...

Nesse fragmento observamos que o livro do CCA È apresentado a partir

de seu tema, ou seja, as afasias, e È tambÈm evocado como o fruto de um

trabalho conjunto, de co-construÁ„o desse grupo que representa o CCA. Como

forma de explicitar o livro, o grupo È mobilizado em torno da discuss„o sobre

seu conte˙do. As pesquisadoras Iem e Imc v„o delineando os assuntos, e os

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demais participantes aderem ‡ discuss„o. O livro È evocado tambÈm a partir de

seu objetivo ñ divulgar as afasias ñ que vai sendo apresentado sob diversos

pontos de vista: divulgar para uma pessoa interessada no tema ou que esteja

passando pela mesma dificuldade o que s„o as afasias, explicando com

coment·rios e depoimentos que relatem a experiÍncia de ser af·sico e o

impacto da afasia na vida das pessoas.

Outros temas para o livro do CCA v„o sendo derivados a partir da

avaliaÁ„o de um material trazido por EF, como informaÁıes tÈcnicas sobre o

funcionamento do cÈrebro, a relaÁ„o com a famÌlia a partir da afasia e

depoimentos de familiares sobre a experiÍncia com o af·sico.

Iem lanÁa a proposta de terem um material de base para ser lido,

comentado, criticado e complementado pelo grupo e a partir do qual derivariam

as questıes para compor o livro ñ o nosso livro.

Iem: Talvez fosse interessante a gente ter um material de base... que a gente

daria uma lida... pra depois ver È... como È que o nosso livro seria feito.

EF: Hum!

Iem: Que que vocÍs acham nÈ? Ter um material de base significa o quÍ?

Todo mundo ter uma cÛpia... dar uma lida em casa e a partir deste

material... a gente complementa... com coisas que a gente quer dizer

tambÈm... a gente pode discordar do material tambÈm!

SP: Certo!

Iem: Pode discordar... falar: ìAh... n„o! N„o sinto que È assim! N„o È uma

verdadeî... porque no geral esse material È feito por gente que n„o...

nunca viveu a afasia ...

SP: Certo!

Iem: N„o sabe o que È nÈ? N„o viveu na pele n„o conviveu com af·sico... ‡s

vezes È... entende? ¿s vezes È material... por exemplo... feito por

mÈdicos! Fazer um exame È uma coisa conviver com uma pessoa

af·sica È outra! … ou n„o È?

SP: … lÛgico!

Iem: Fazer l· um teste È uma coisa... agora... conviver com uma pessoa

af·sica È outra! … ou n„o È? Esse livro vai depender muito daquilo que

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vocÍs julgarem importante falar porque vai ser um livro diferente de

material mÈdico que fale: ìa afasia decorre de uma les„o cerebralî...

Como podemos observar, o grupo vai delineando os contornos do livro

que pretende escrever n„o sÛ pelo conte˙do que quer divulgar, mas tambÈm

pela recusa a determinadas concepÁıes e prÈ-construÌdos que seriam

veiculados principalmente em publicaÁıes mÈdicas ñ a afasia reduzida a uma

quest„o de les„o cerebral. Outro diferencial do livro do CCA em relaÁ„o ‡s

outras publicaÁıes quanto aos autores envolvidos no projeto: o livro do CCA

ser· escrito por quem vive a afasia, por quem convive com o af·sico e n„o por

mÈdicos que descrevem a afasia com o distanciamento de quem procede a um

exame.

… a partir dessas consideraÁıes que a pesquisadora Iat propıe que os

depoimentos dos af·sicos constituam, tambÈm, um material de base, pois a

singularidade do livro do CCA estaria, justamente, nos relatos de experiÍncias

de cada um dos af·sicos com a afasia.

Iat: Eu acho que a forÁa maior estaria comeÁando nos depoimentos...

porque dos depoimentos vocÍ pode tirar... derivar todas as coisas... por

exemplo: o seu SP fala... a explicaÁ„o que ele d·... ìvai fininho... vai

grossoî aÌ tal ... e cada um tem a experiÍncia profissional... de impacto

na famÌlia nÈ? Ent„o... tirar dos depoimentos... derivar todas as outras

informaÁıes... que seriam assim pras outras pessoas.

Imc: Talvez tirar do... daquele livro 6 que o Maciel escreveu... tambÈm acho

que È... sobre derrame cerebral. Talvez tirar algumas coisas dali eu j·

est„o ...

Iem: ìComo enfrentar o derrame cerebralî.

Imc: ìComo enfrentarî... È... talvez tirar alguma coisa tÈcnica dali pra n„o ter

que ficar... fazendo pesquisa sobre isso nÈ?

Iem: Depoimentos... est· certo aÌ? Vamos comeÁar com os depoimentos ...

6 Op. cit., p.30.

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Iat: Acho que dos depoimentos d· pra tirar ...

Imc: [Sair informaÁ„o!

Iat: ...porque È assim: na verdade... quando ele... por exemplo... nÈ... È

fininho... È grosso... s„o as idÈias que se v„o fazendo do... //IninteligÌvel

por sobreposiÁ„o//

Imc: [Do senso comum...

Iat: ... porque na verdade... muito j· foi escrito //IninteligÌvel por

sobreposiÁ„o//.

Imc: [Claro... a novidade n„o est· aÌ... nÈ?

Iat: ... eu acho que a grande forÁa... que eu acho que È aqui a caracterÌstica

do Centro... nÈ? Acho que È... que s„o as prÛprias pessoas.

Imc: [ExperiÍncia... nÈ?

Iat: ... tem toda a histÛria... a histÛria de cada um...

Iem verifica ent„o, junto ao grupo, a ades„o ou n„o ‡ proposta de Iat, e

o grupo propıe que se construa uma espÈcie de roteiro com perguntas para

ajudar na reflex„o e na composiÁ„o dos depoimentos. … importante ressaltar

que o roteiro construÌdo pelo grupo n„o se constituiu em mero recurso

metodolÛgico ñ tornou-se importante instrumento norteador e organizador da

narrativa.

Em 16 de junho de 1999 (CCA05), a quest„o que contrapıe o livro do

CCA com as demais publicaÁıes sobre afasia È novamente evocada na fala de

Iem: Bom... a gente vai fazer o nosso... a gente est· pensando em fazer um

livro que seja nosso. E para isso, para ser nosso livro, alÈm de informaÁıes de

ordem cientÌfica e terapÍutica ñ que existem na maior parte das publicaÁıes

sobre o tema ñ o livro do CCA trar· a experiÍncia de cada um com a afasia.

Esta È a estratÈgia assumida pelo grupo: construir um livro que, a partir

dos depoimentos dos af·sicos sobre sua experiÍncia com a afasia, seja um

livro n„o sÛ de informaÁ„o, n„o sÛ um livro cientÌfico, um livro n„o sÛ de

divulgaÁ„o, n„o um livro de um cientista falando sobre as conseq¸Íncias da

afasia, mas um livro das pessoas compartilhando de problemas pr·ticos, de

questıes que efetivamente foram vividas, superadas, enfrentadas, um livro que

consiga tocar, que consiga ter impacto sobre as pessoas, um livro que

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sensibilize as pessoas pela compartilha de experiÍncias. No fragmento a seguir

observamos esses diversos movimentos de referenciaÁ„o na construÁ„o do

livro:

Iem: Bom... a gente vai fazer o nosso... a gente est· pensando em fazer um

livro que seja nosso. Isso quer dizer... que ele vai ter algumas

particularidades... ele vai ter algumas coisas... „h... de informaÁıes

gerais. Nas informaÁıes gerais... vale esse material que vocÍs tambÈm

est„o trazendo. O senhor trouxe o material sobre derrame //Referindo-se

a EF//. Est· aÌ uma coisa que tambÈm vai ter no livro: informaÁıes... È...

de ordem cientÌfica... de ordem pr·tica... de ordem terapÍutica... isso È

importante... mas o que seria bacana neste livro... È... È tentar contar a

histÛria deste grupo aqui! Porque quando a gente conta È... quando a

gente torna o relato uma coisa pessoal tambÈm... toca mais as

pessoas... vocÍs percebem ?

EF: …!

Iem: Um livro de ciÍncias n„o toca tanto as pessoas... n„o toca a

sensibilidade delas... o coraÁ„o delas... a inteligÍncia delas... muitas

vezes... como uma coisa de ordem pessoal... quando vocÍ conta uma

coisa vivida...

Imc: [Com depoimentos... com depoimentos...

Iem: Isso... nÈ! Ent„o esse livro //Folheando o livro ìO af·sicoî// por

exemplo... tem v·rias coisas que v„o nos interessar nÈ? Ent„o a gente

vai l· nos capÌtulos... por exemplo... tem informaÁıes de que ordem?

N„o sÛ de ordem... informaÁıes importantes... informaÁıes... È... sobre

sa˙de... sobre neurologia e tudo o mais... mas fala sobre o quÍ? Fala

sobre a famÌlia da pessoa... fala sobre o impacto que a afasia tem na

vida de cada um... na vida dos seus familiares... a quest„o do trabalho

nÈ? Fala sobre „h... a inserÁ„o social muitas vezes deve ser retomada

quando a pessoa fica af·sica... e fica fora do trabalho... ‡s vezes fica um

pouco fora da famÌlia... e assim vai! Tudo È importante dizer... mas a

nossa estratÈgia... era outra aqui... n„o era? Era partir... dos

depoimentos. Era... dos depoimentos fazer so... fazer... È... saltar as

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informaÁıes necess·rias que deve ter num livro de divulgaÁ„o. N„o È

um livro sÛ cientÌfico... pra isso tem muito livro aÌ... com esse tipo de

informaÁ„o. Mas È um livro que consiga tocar... nÈ? Consiga ter um

impacto... sobre... sobre as pessoas. E o depoimento... muitas vezes...

ele È capaz de fazer isso! N„o È verdade... quando vocÍ lÍ um livro de

autobiografia... ou de depoimento... fala: ìOlha! A pessoa viveu aquiloî...

nÈ? N„o È que È um cientista falando sobre as conseq¸Íncias da

afasia... È um livro das pessoas compartilhando... nÈ... de problemas

pr·ticos... de questıes que efetivamente foram vividas... nÈ... foram

superadas... foram enfrentadas. E muitas vezes a gente pode ajudar as

outras pessoas sÛ por conta disso. Por conta da... da compartilha de...

de experiÍncias. Ent„o È isso!

Ainda nesse mesmo encontro (CCA05) o grupo se envolve num debate

sobre a din‚mica cerebral nas afasias: os conceitos de afasia e de les„o

cerebral s„o discutidos na perspectiva da regeneraÁ„o cerebral e da

recuperaÁ„o do af·sico, expondo pontos de vista distintos em relaÁ„o ‡

plasticidade cerebral. Tal debate permite que o grupo se posicione na

caracterizaÁ„o do livro como um veÌculo n„o sÛ de divulgaÁ„o e de informaÁ„o,

mas tambÈm capaz de derrubar mitos e preconceitos sobre as afasias e os

af·sicos. Os fragmentos a seguir ilustram essas posiÁıes:

Iem: ‘ CI... vocÍ acha ent„o... que livros... sobre afasia... sobre as

conseq¸Íncias da afasia... como conviver com a afasia... seria

importante pra pessoa que fica af·sica e pra familiares e amigos dela?

CI: [… È È... Pras pessoas que fica

af·sico.

EF: […... È. ‘... Ù! //Ergue o

polegar e acena afirmativamente com a cabeÁa//.

CI: Porque n„o tem livro! NÈ... ninguÈm vÍ livro!

EF: [Ah... ah... ah ...

Iem: O senhor acha tambÈm... seu EF?

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EF: Ah... ah... ah...

Iem: Quando... Se as pessoas podem ler livros sobre afasia... as pessoas

leigas... amigos tambÈm de pessoas... ou pessoas interessadas... nÈ...

que n„o s„o mÈdicos... que n„o s„o terapeutas... aÌ poderia tirar muitos

mal entendidos sobre afasia... poderia instruir as pessoas... n„o È?

//Agacha-se junto a EF//.

EF: [Ah... ah... È... //Mostra o livro que tinha

nas m„os para Iem//.

CI: …!

EF: Ah... ah... … p· p· //Aponta algo no livro//.

O grupo vai delineando o conte˙do do livro, que deve ter informaÁıes

cientÌficas, mas n„o numa linguagem cientÌfica ñ o livro de ciÍncias se

contrapıe ao livro para leigos:

Iem: O senhor acha que um livro sobre divulgaÁ„o das afasias... que sirva pra

leigos... que sirva pra.. familiares... amigos de pessoas af·sicas...

Imc: [Familiares...

Iem: O senhor acha... por exemplo... que uma informaÁ„o sobre o cÈrebro È

importante?

EF: A... È... no no... Ù... Ù... Ù! //Aponta o lado esquerdo de sua cabeÁa//.

Iem: Mas tem que ser numa linguagem que n„o sÛ cientÌfica!

EF: A... a! //Apontando no livro alguns trechos//.

Iem: O senhor acha que vai um uma parte do livro sobre isso?

CI: [Vai... vai...

Iem: Falando sobre o cÈrebro... como ele funciona...

EF: [A... Ù... Ù!

A estratÈgia de se escrever o livro a partir dos depoimentos È retomada.

A singularidade da afasia e, portanto, a de cada af·sico refletem tambÈm a

singularidade do livro do CCA:

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CI: Agora... cada um... cada um... particularmente... tem... È... È... tem uma

experiÍncia prÛpria! //Pegando no braÁo de EF//.

CI: ... e pode ler um livro atÈ cheio de experiÍncia... cheio de estÛria.

Parecidas... parecidas. Comigo... com ele... com ela.

CI: Parecidas... mas È prÛpria... cada um È prÛpria! Por que... essa

particularidade?... Porque as pessoas s„o diferente!

Iem: Ent„o a afasia acaba afetando de maneira diferente cada um!

Outros temas do livro s„o arrolados e discutidos nesse encontro, como,

por exemplo, as causas da afasia; o impacto da afasia na vida de cada um dos

af·sicos; as perdas conseq¸entes ‡ afasia, incluindo o isolamento social e

familiar e a incompreens„o das pessoas diante da afasia; a perda do trabalho,

as leis que desconhecem os af·sicos e a aposentadoria por invalidez; as

possibilidades de tratamento e de recuperaÁ„o. A discuss„o leva o grupo a

referir o livro como importante por seu confronto com a desinformaÁ„o e o

preconceito que cercam a afasia. … Iem quem resume a discuss„o:

Iem: Olha... ent„o vocÍs j· repararam... que o nosso livro... o nosso livro... ele

vai ser um livro importante... porque È um livro que vai se confrontar

sabe com quÍ? Com desinformaÁ„o... com medo... com preconceito...

com ignor‚ncia... ent„o vejam como È importante...

Retomando o encontro de 8 de setembro de 1999 (CCA06), no qual EF

escreve ìlivroî como resposta ‡ proposiÁ„o de Iem de que se relatem ‡ IP as

atividades desenvolvidas pelo grupo, observamos v·rios movimentos

enunciativos dos sujeitos mobilizados na tarefa de co-construÁ„o da

referenciaÁ„o do livro do CCA. Tais movimentos enunciativos configuram

atividades de evocaÁ„o lexical, predicaÁ„o e categorizaÁ„o, de forma

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intersemiÛtica, no concurso de v·rios processos semiolÛgicos (verbais e n„o

verbais), cujo sentido È sancionado no centro das interaÁıes.

Iem: Ele falou livro. Vamos tentar contar essa novidade pra ela, ent„o.

IP: Isso!

CI: //CI olha para SP//.

SP: U...U...U...Um //Aponta com o dedo indicador para EF//.

Imc: Pergunta pr· ele... //Olhando para SP//.

SP: //Leva o dedo prÛximo ‡ sua boca//.

Iem: Que que a gente est· planejando nos ˙ltimos tempos? Ele escreveu

ìlivroî.

EF: Livro //Confirmando com a cabeÁa//.

Iem: D· um pouco mais de detalhes.

SP: [Na na na u di È: esse qui uma //Apontando para EF e, depois,

apontando para a sua prÛpria boca//.

IP: //D· caneta e papel para SP//.

SP: …... u...um //Fica com a caneta na m„o, mas n„o escreve//.

Iem: Quer ajudar... CI? //Tocando no braÁo de CI//.

CI: //Acena com a cabeÁa afirmativamente, mas n„o fala nada, como se

estivesse aguardando para falar//.

SP: …... È... ai... //BalanÁando no ar a m„o fechada//.

IP: Ler? Comprar? //Tocando SP no braÁo//.

SP: N„o num sei... falar... e...e... ele... ele //Apontando com o indicador para

EF//.

Imc: Escreveu?

SP: D·. U... livro. Mas n„o n„o era co como u: u... //Faz gesto com a m„o

como se virasse uma manivela e aponta a prÛpria boca//. U... era... È

che... se... che... ra... como era u...

Iem: Fala um pouco mais seu EF.

IP: Cheirar?

Imc: Xerox?

SP: //Olha para EF e faz gesto de virar manivela// …... u... N„o È isso que È

u...qui... u u...

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(Imc e Iem se entreolham. Iem faz um gesto n„o identific·vel para Imc.)

Imc: …... mas //Aponta EF// seu EF... //Olhando para Iem// seu EF... fala

alguma coisa sobre esse livro //Apontando a palavra ìlivroî escrita no

papel//.

IP: [D· mais uma dica... seu EF... d· mais uma

dica!

EF: //Pega a caneta para escrever//.

Iem: ”! //Dirigindo-se a EF e fazendo gesto com o dedo indicador para cima e

traÁando um cÌrculo//.

Imc: Que ìlivroî abre um monte de perspectivas... nÈ... ent„o...

EF: [A ba a ba //Fazendo gesto circular sobre o

papel//.

Imc: D· uma...uma ajudada um pouco aÌ.

SP: //Leva a m„o ‡ cabeÁa, indicando a cabeÁa// U u cÈrebro... cÈ...

Iem: [Livro sobre o quÍ... seu

EF... livro sobre o quÍ? //Gesto circular com o dedo indicador para

cima//.

EF: //Abre a boca como se fosse articular, tentando copiar a articulaÁ„o de

Iem. Levanta e pega sua pasta//.

Iem: Ele vai pegar...

IP: Ele falou ìsobre cÈrebroî... nÈ? //Fala para Iem apontando para SP//.

Iem: [//Levanta da cadeira. Sai da sala//.

SP: …... isso //Apontando para sua cabeÁa// aÌ... È... Û

IP: Na mente... nÈ? //Fala para SP//.

SP: …... o o...

EF: //Retira papÈis da mala//.

SP: //Aponta para a mala de EF com o dedo indicador//.

Todos: //Observam EF retirando papÈis da mala//.

Iem: //Retorna ‡ sala trazendo um livro//.

EF: //Pıe os papÈis que retirou da mala sobre a mesa//.

SP: //Apontando os papÈis de EF// …... //Ri//.

EF: //Escreve//.

SP: … isso aqui.

Iem: … esse aÌ... lembrou... nÈ?

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Imc: O que tem esse livro? O que tem esse livro aqui? //Pegando o livro de

EF e mostrando para os outros//.

EF: […... be... //Faz gesto circular com a

m„o aberta virada para baixo//.

Imc: Ajuda aÌ gente... vamos l·!

CI: Sobre o af·sico nÈ. … um livro sobre af·sico. (...) Conta a experiÍncia de

conviver com af·sico... È È essa experiÍncia È terrÌvel. Ent„o È essa

experiÍncia que nÛs queremos mostrar

Iem: [Um livro de divulgaÁ„o... das afasias... esse grupo

aqui.

Nesse fragmento observam-se v·rios movimentos enunciativos dos

sujeitos presentes ao encontro. … Iem quem convoca os participantes a

relatarem as atividades do grupo para IP. Ela se dirige a SP e a CI, mas È EF

que, ao produzir a escrita da palavra ìlivroî, posiciona o grupo na cena

enunciativa. IP sabe, ent„o, que se trata de um livro, mas o grupo tem

dificuldade para especificar que livro È esse. SP usa gestos apontando a

prÛpria boca e apontando para EF e aÌ n„o sabemos se ele est· se referindo

ao livro tentando explicitar que È sobre pessoas af·sicas, com dificuldades para

falar, ou se est· dizendo de sua prÛpria dificuldade, naquele momento, para

responder. IP, ao oferecer papel e caneta a SP, propıe o mesmo recurso

usado por EF, a escrita. IP interage fazendo perguntas sobre o livro: Ler?

Comprar? E nesse momento SP produz um outro gesto, o de virar uma

manivela, ao mesmo tempo em que afirma n„o saber falar. SP estava se

referindo a um livro sobre derrame cerebral que estava com EF e do qual o

grupo havia feito cÛpias xerogr·ficas. O gesto de manivela (referÍncia aos

antigos mimeÛgrafos, cujas cÛpias eram produzidas uma a uma, ‡ manivela) e

a produÁ„o do enunciado ñ U... era... È che... se... che... ra... como era u ñ s„o

interpretados por Imc como xerox, enquanto IP toma como referÍncia apenas o

enunciado oral, interpretando como cheirar. … sÛ quando EF tira um livro de

sua pasta que o movimento enunciativo de SP fica explicitado para o grupo: o

livro do CCA ganha materialidade na forma de um outro livro.

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SP, ent„o, ao fazer gesto mostrando sua cabeÁa e ao enunciar cÈrebro,

aponta a referÍncia do livro para uma determinada direÁ„o discursiva: a afasia

como quest„o cerebral. IP identifica esse movimento referencial ñ Ele falou

ìsobre cÈrebroî... nÈ? Na mente... nÈ? ñ mas Iem, fazendo um gesto circular

com o dedo indicador para cima e perguntando ñ Livro sobre o quÍ... seu EF...

livro sobre o quÍ ñ constrÛi uma outra referÍncia: o livro È do CCA.

O sujeito CI, geralmente bastante participativo nas discussıes e apesar

de ter sido convocado por Iem desde o inÌcio, sÛ nesse momento se manifesta:

o livro È sobre af·sicos e a experiÍncia de conviver com af·sicos. … Iem, mais

uma vez, quem faz a remiss„o ao CCA: Um livro de divulgaÁ„o... das afasias...

esse grupo aqui.

A discuss„o prossegue com o adensamento de temas j· discutidos e

com novos temas sendo incorporados. Iem retoma os objetivos do livro, que È

ent„o referido a partir da justificativa de sua construÁ„o:

CI: O objetivo È nossa experiÍncia...

Iem: [A nossa intenÁ„o... pelo menos...

CI: ...experiÍncia e... comu È u livro pra divulgar pras pessoas... pra saber

que È af·sico. … È È...

Imc: [Passar nossa experiÍncia?

CI: … af·sico... aÌ vai ver no livro... a nossa experiÍncia...

O livro do CCA vai ser categorizado de v·rias formas durante a sua

elaboraÁ„o. O estudo dos processos de categorizaÁ„o ling¸Ìstica ou n„o

ling¸Ìstica mostra que n„o se trata de um mundo prÈ-codificado, mas de

processos inst·veis e dependentes da situaÁ„o e dos diferentes pontos de vista

nos quais os sujeitos se inscrevem. Os sujeitos, diante de um objeto ainda

desconhecido e n„o totalmente identific·vel como È o livro do CCA, far„o

aproximaÁıes parciais de reconhecimento, identificando sua natureza,

encontrando semelhanÁas com outros objetos, evocando a partir dele outras

situaÁıes, outras experiÍncias, e ent„o, as palavras e as categorizaÁıes

parciais disponÌveis. As categorizaÁıes produzidas pelos sujeitos n„o derivam

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unicamente das caracterÌsticas intrÌnsecas dos objetos do mundo, mas

dependem das condiÁıes da situaÁ„o, da relaÁ„o interlocutiva e de seus

objetivos, do contexto ling¸Ìstico. As categorizaÁıes s„o, portanto, inst·veis, e

s„o submetidas ‡s negociaÁıes intra e intersubjetivas. Apontaremos a seguir a

existÍncia dessa instabilidade do processo de categorizaÁ„o do livro do CCA.

Durante uma das discussıes em que o grupo decide qual metodologia

ser· adotada para orientar o debate dos temas ainda faltantes e analisar o

material j· compilado, IP refere-se ao livro do CCA como livreto.7 Com tal

formulaÁ„o ñ referir o livro do CCA no diminutivo ñ IP poderia conferir um

sentido depreciativo ao livro, mas n„o parece ser esta a quest„o. Embora Iem

e Imc estejam falando exatamente sobre o livro ao deliberar com o grupo o

tema de discuss„o para a semana seguinte ñ os depoimentos transcritos ou as

afasias, mitos e d˙vidas ñ IP n„o reconhece o livro nesses temas ao fazer sua

proposiÁ„o: Devia comeÁar com o livreto. Ao mesmo tempo, ao enunciar

livreto, IP aponta uma posiÁ„o talvez compartilhada por outros participantes: o

grupo ainda n„o tem uma referÍncia definida, estabelecida, do livro enquanto

objeto do mundo.

Iem: Ent„o... mas... enfim... a gente j· passou

IP: [Pra aqui... livreto...

Iem: um pouco pelos depoimentos... n„o sei... veja... que temas que a gente

poderia... que a gente tem que se preparar agora... nÈ? Cada semana a

gente poderia fazer uma discuss„o... grava e depois vai tentando... mais

pra frente... transcrever esse material... pra ver: ìolha... bom... aqui est·

bomî... o que que falta e aÌ ir complementando. Mas... por exemplo...

olha... dos itens que nÛs preparamos para a discuss„o qual deles È que

pode ser a discuss„o da semana que vem... a quest„o do trabalho... por

exemplo... ou do que fazer... ou uma discuss„o sobre o que È afasia...

mitos e d˙vidas?

IP: Acho esse.

7 A forma livreto consta no dicion·rio como ìlivro pequeno, de poucas p·ginasî, ìfolhetoî, assim

como o verbete libreto, do italiano libretto, ìlivrinhoî. J· a forma livrete (do francÍs, livret) significa ìpequeno livroî. Mas o verbete livreco, alÈm de significar ìpequeno livroî tem tambÈm um sentido depreciativo, ìlivro sem valorî, ìlivro relesî (Dicion·rio Houaiss da LÌngua Portuguesa; Novo Dicion·rio AurÈlio da LÌngua Portuguesa).

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Imc: A gente teria pra semana que vem... talvez j· pronto... uma parte dos

depoimentos transcritos... se quiserem mexer nisso... nÈ?

Iem: Eu acho muito //Erguendo os ombros//.

Imc: N„o... olhar o texto.

Iem: VocÍ tem essa transcriÁ„o?

Imc: Elas est„o fazendo... pra semana que vem acho que vai estar pronto

uma parte. Pra eles olharem o texto.

Iem: [H· umas alunas que est„o transcrevendo //Olha para

todos do grupo// os depoimentos. Bom... desde que elas tenham.

IP: Devia comeÁar com o livreto.

Em 29 de setembro de 1999 (CCA08), tambÈm Iff ñ e provavelmente

pelas mesmas circunst‚ncias em que IP o faz ñ refere-se ao livro como livretos

ao contar ao grupo que EF ñ que È advogado ñ estudar· no livro O af·sico ñ

convivendo com a les„o cerebral questıes relativas ao af·sico e ‡ legislaÁ„o

para compor um capÌtulo nos livretos sobre o trabalho e a perda de emprego.

Em 11 de maio de 2000 (CCA15), ao final do encontro no qual CI levara

o roteiro respondido por sua esposa, o livro do CCA È referido de v·rias formas

ao longo de movimentos de recategorizaÁ„o que v„o produzir um

deslocamento, afetando o ponto de vista sobre o objeto referencial construÌdo:

o livro do CCA È pesquisa, È acervo (patrimÙnio comum), È matÈria (enquanto

disciplina), sendo assim inscrito numa perspectiva particular denotando

consenso nos ajustes efetuados pelos sujeitos.

CI: ”timo... Ûtimo... faz parte da nossa pesquisa //Referindo-se a um artigo

de Iem sobre as afasias//.

Iem: Do nosso acervo.

CI (falando para Iem): Ent„o... viu que gostoso?

Iem: O quÍ?

CI: Essa matÈria... o nosso livro.

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Em 29 de maio de 2001 (CCA26), tambÈm Iem ñ que geralmente se

refere ao livro do CCA como nosso livro ñ vai produzir livreto e livrinho ao

explicitar o livro para NS e MG, novas integrantes do CCA que n„o conhecem o

projeto, como j· referido anteriormente, no CapÌtulo 1.

Iem: Um livreto... na verdade... nÈ... com informaÁıes sobre... as afasias...

sobre seq¸elas de lesıes neurolÛgicas (...) Ent„o... a nossa idÈia ñ isso

foi durante todo o ano de dois mil ñ foi discutir... em conjunto... como È

que a gente iria... fazer esse livrinho...

Iem: Ent„o nÛs ficamos um temp„o... e um temp„o porque somos muitos...

um temp„o porque s„o v·rios os temas que a gente ia abordar nesse

livrinho... n„o È? TambÈm teve uma parte desse... desse livrinho em que

as pessoas falam o seu... os seus depoimentos.

Referir-se ao livro do CCA como livreto e livrinho nesse momento do

processo significa mais uma vez defini-lo n„o por seu conte˙do e sim enquanto

objeto do mundo mas agora com sua materialidade mais definida: Iem vinha

discutindo com a editora da Unicamp questıes pr·ticas acerca do livro ñ

dimens„o, formato, n˙mero de p·ginas, n˙mero de exemplares ñ para

viabilizar sua publicaÁ„o. Iem sabia que o livro teria caracterÌsticas materiais

que o aproximavam mais de um ìpequeno livroî ou de um ìlivrinhoî.

Em 6 de marÁo de 2003 (CCA28) com o livro j· editado, n„o sÛ Iem,

mas tambÈm Ijt v„o mais uma vez referir-se ao livro (com formato de bolso e

com 62 p·ginas) como livrinho:

Iem: (...) Ent„o... o nosso livrinho... nesse sentido... eu estava conversando

com o Ibd... que È o mÈdico da maioria do... do grupo aqui nÈ? E o Ibd

falou que na verdade o livrinho... ele vai ser tambÈm n„o sÛ pra dar

informaÁ„o. Ele falou que o livrinho... vai acabar agindo como formaÁ„o!

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Em 22 de setembro de 1999 (CCA07), Iem, alÈm de se referir ao livro do

CCA como nosso livro, vai explicit·-lo para MS ñ um senhor af·sico que h·

seis meses n„o freq¸enta o CCA ñ mobilizando diversas categorias em seu

trabalho de referenciaÁ„o: complexidade de conte˙do do livro, p˙blico leitor,

objetivos.

Iem: (...) A gente est· pensando em elaborar um livro...

MS: Hum...

Iem: Um livro... simples... n„o È?... (...) A gente acha... que fazendo o livro e

divulgando... a gente vai... estar informando sobre... sobre as afasias...

vai estar ajudando tambÈm... a... a superar preconceitos... a ignor‚ncia

sobre afasia... nÈ... porque... h· muita confus„o muitas vezes. Fala:

ìAh... o sujeito tem afasia... ser· que ele tem um problema mental? Ser·

que ele tem um problema sÛ fÌsico?î. E a gente est· pensando em...

com a experiÍncia de todo mundo... cada um tem uma experiÍncia

diferente... mas em geral... decorre uma dificuldade de comunicaÁ„o...

decorre um... uma possibilidade de ficar isolado... do mundo... de ficar

afastado do trabalho. ¿s vezes perdeu o respeito prÛprio... ou da famÌlia.

Os amigos se afastam. Ent„o... com esse livro a nossa idÈia È: divulgar.

E o senhor sabe que a informaÁ„o È hiper importante para combater a

ignor‚ncia e ajudar muita gente que esteja nessa situaÁ„o... a tambÈm

procurar ajuda.

MS: [Pois È.

Iem: NÈ? Porque... a afasia tambÈm ela pode ser... È È... È superada... pode

ser trabalhada... pode ser contornada. E podemos tambÈm conviver com

a afasia. NÈ?

MS: ….

Iem vai ent„o se referir ao livro do CCA em relaÁ„o ao seu conte˙do,

que vem sendo delineado pelo grupo ao longo das discussıes:

Iem: Ent„o eu vou contar pro senhor o que que a gente achou importante

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colocar no livro.

MS: [….

Iem: A gente achou muito importante dar muita informaÁ„o sobre o que que È

afasia... È... quais s„o as causas... nÈ... da afasia... quais s„o as

implicaÁıe..., da afasia. A gente acha importante isso... nÈ?

MS: [Isso. Isso.

Iem: Que tambÈm n„o È assim... nÈ: teve um problema cerebral... ficou

af·sico e acabou a vida! A gente acha que n„o deve deixar essa idÈia.

MS: [N„o... n„o.

SP: [Justamente... justamente.

Iem: Que o cÈrebro... ele È pl·stico... ele se reformula... ele se... ele se

reconstrÛi... a pessoa tem condiÁıes de melhorar... SÛ que... tambÈm...

o cÈrebro n„o funciona sozinho!

MS: N„o.

Iem: Ent„o... È importante a pessoa se manter ativa... ter um papel de

ocupaÁ„o social... participando tambÈm de processos terapÍuticos. A

famÌlia... a gente achou que È importante tambÈm... anotar o papel que

ela tem... na recuperaÁ„o da pessoa que fica af·sica... nÈ... enfim. Esse

È o teor... um pouco... do... das discussıes que a gente vem fazendo atÈ

aqui. NÈ? Por exemplo... que a gente tambÈm aborde... questıes de

ordem... trabalhistas. Muita gente aqui... ficou afastado do trabalho

porque ficou af·sico.

Ainda nesse encontro o livro do CCA È definido em relaÁ„o ‡ estrutura

do livro espanhol trazido por EF e organizado sob a forma de v·rias perguntas

e respostas curtas acerca das afasias (È dentre essas perguntas que o grupo

selecionaria as perguntas do roteiro). Iem define o livro espanhol como tendo

boas perguntas, mas respostas nem sempre interessantes. J· o livro do CCA

ser· organizado sob a forma de depoimentos e de informaÁ„o sobre as afasias.

Da crÌtica a esse e a outros livros, da avaliaÁ„o do material j· compilado

e que vem sendo debatido, o grupo decidir· o livro que quer construir. Para

Iem, o livro do CCA È tambÈm um trabalho social:

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Iem: A gente re˙ne esse material e decide o que È bom e o que n„o È bom...

porque nem sempre nesses livros todos tÍm coisas boas. ¿s vezes eles

tÍm a intenÁ„o que È boa... de divulgar... mas divulga... ‡s vezes... com

prÛprio preconceito. Ent„o a gente tem que avaliar o que È bom e o que

n„o È e construir o livro que a gente quer fazer. T· bom?

MS: [Isso mesmo. Porque... porque todos nÛs tem tem a

afasia! NÈ?

Iem: Eu acho que...

MS: [Todos nÛs... hoje... hoje //Faz gesto circular com a m„o

indicando todos do grupo//... todo mundo... nÈ?

Iem: …! NÛs... A gente tem um importante trabalho social a fazer... viu gente?

Que È fazer esse livro... divulgar... nÈ?

CI: Porque tem muitos af·sicos!

Iem: E que nem sabem que est„o af·sicos!

Todos os livros compilados pelo grupo que compıem o material que de

certa forma fundamenta as primeiras discussıes em torno do livro do CCA s„o

tomados como referentes e constituem um ponto de vista a partir do qual o livro

do CCA vai sendo construÌdo. Esses referentes s„o portadores de pontos de

vista a partir dos quais o locutor os apresenta ou evoca. Assim, CI ao acusar a

inexistÍncia de livros sobre afasia acessÌveis aos af·sicos exprime o ponto de

vista de que os livros em geral ñ e mesmo o artigo de Iem sobre as afasias ñ

tÍm uma linguagem tÈcnica e s„o escritos por e para profissionais

especializados na ·rea. Os leigos teriam dificuldade no entendimento desses

livros em funÁ„o dos termos tÈcnicos, do uso de um jarg„o que, ao mesmo

tempo em que È reconhecido como cientÌfico, provoca um distanciamento em

seus leitores leigos. Se para os leigos n„o af·sicos o acesso È difÌcil, para os

af·sicos os obst·culos s„o maiores ainda, pois a leitura e sua compreens„o

podem estar alteradas nos quadros af·sicos. Para os pesquisadores do CCA,

que s„o especialistas em linguagem e em Neuroling¸Ìstica, esses outros livros

no geral tomam a afasia como uma quest„o circunscrita ao cÈrebro lesado e È

desse ponto de vista ñ ou seja, a abordagem e o tratamento dados ‡ linguagem

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e ‡ afasia ñ que os pesquisadores se posicionam em relaÁ„o a tais livros (e

vem daÌ a crÌtica feita ‡s respostas do livro espanhol).

Os depoimentos dos af·sicos aparecem ent„o como o espaÁo no qual

os pontos de vista do leigo e do pesquisador ganham certa convergÍncia em

torno da experiÍncia de se escrever o livro do CCA. Construir o livro do CCA

atravÈs dos depoimentos e do roteiro de perguntas ñ selecionadas das

perguntas do livro espanhol e que ser„o respondidas a partir da experiÍncia

com a afasia ñ parece uma estratÈgia que vai conferir organizaÁ„o e

estabilidade dos pontos de vista dos interlocutores em torno de suas posiÁıes

enunciativas. A configuraÁ„o textual dos depoimentos cria um ajuste nas

expectativas e perspectivas dos interlocutores em relaÁ„o ao livro. Os

depoimentos s„o relatos dos prÛprios af·sicos, por isso espera-se que a

linguagem seja coloquial, n„o tÈcnica, portanto acessÌvel aos af·sicos. PorÈm,

como nos depoimentos s„o os af·sicos que d„o voz ‡ afasia, o ponto de vista

segundo o qual a afasia È uma quest„o social ganha forÁa contra o ponto de

vista que a reduz a uma quest„o cerebral.

No fragmento a seguir (retirado do excerto CCA17) as posiÁıes de Iem,

Iat e CI reafirmam os depoimentos como um espaÁo de convergÍncia dos

pontos de vista dos interlocutores sobre o livro do CCA:

Iem: Ent„o... isso tambÈm faz parte da resposta e n„o jogar tudo para a

quest„o mais biolÛgica.

CI: …!

Iem: E a gente enxer... esquece o lado social de utilizaÁ„o da linguagem.

Entendeu? E o que vocÍs acham disso?

Iat: [Eu acho que È isso que vai... vai fazer diferenÁa...

Iem: [Essa È a minha proposta.

CI: Bem È... È... È... È

Iem: [SÛ um minutinho... Iat... desculpa... mas...

Iat: Claro! Claro!

CI: Eu tenho a... a... a... a minha lembranÁa... Eu tinha dificuldade. Eh... Eu

tava deprimido. Deprimido... deprimido... AÌ...Eh... Escrever... fez... o

vocÍ falou para mim escrever um caderno e tal. AÌ eu comecei a ... fazer

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os caderno... t·? Dificuldade... porque eu tinha dificuldade de ler. Eu n„o

entendia ler... eu n„o conseguia ler. Quando eu... eu tive o acidente... eu

n„o conseguia ler... eu n„o conseguia nada... AÌ... eu fui lendo... fui

lendo... e fui fazendo o trabalho... fiz trÍs cadernos que t· com vocÍ.

Iem: Foi.

CI: E esses caderno... depois eu fui trabalhando... nÈ... venceu È... de... a ca

liÁ„o... aÌ comeÁou a melhorar... comeÁou a melhorar e t· melhorando...

nÈ? Porque eu era muito orgulhoso e tal. AÌ eu fiquei humilde... Ent„o

minha famÌlia È... sente eu humilde. Mas eu falo assim: ìMas como eu

posso ser orgulhoso... e tal... Eu n„o tenho di... eu n„o posso fazer

nada!î. AÌ... ìtamo falando que n„o... vocÍ pode fazer... precisa viajarî...

tal. AÌ eu comecei a ... ter esse sentimento... t· ?! Que È... porque a

gente... a gente... a gente perde muito... a gente perde muito... todos os

af·sicos perde muito... dificuldade que È tem que se comunicar.

Iem: Sem d˙vida.

CI: AÌ... aÌ... a gente sente muito.

Iem: Fala... Iat!

Iat: …... ent„o eu acho que isso que vocÍs est„o colocando È MUITO

importante... È o que faz a diferenÁa... porque a maioria dos livros... sÛ

levam/

Iem: [Sobre

as afasias...

Iat: Sobre as afasias... sÛ levam em conta o tamanho da les„o... a idade da

pessoa...

CI: [… //Ergue o polegar em sinal

de confirmaÁ„o//. …!

Iat: o local da les„o... o tempo que teve o problema... e n„o levam em conta

nada disso que vocÍs est„o colocando... quer dizer... a relaÁ„o que cada

um tem com a sua afasia... entendeu... que È o que faz a diferenÁa.

CI: [Isso... isso.

… ainda nesse mesmo encontro (CCA17) que se inicia a discuss„o sobre

o livro a partir do roteiro. A an·lise do roteiro, que foi elaborado com a

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finalidade de provocar e orientar os debates, como j· mencionado, aponta que,

apesar de ter sido construÌdo a partir de perguntas de um outro livro sobre

afasias, representa o conjunto de questıes, inquietaÁıes, reflexıes e vivÍncias

que o grupo tem experimentado no CCA ao longo de sua histÛria. O roteiro

representa a seleÁ„o, no conglomerado de conte˙dos que circulam no CCA, de

categorias nas quais os temas s„o organizados. A introduÁ„o do roteiro como

mobilizador dos debates vai conferir um novo sentido ao espaÁo no qual ele

vem se inscrever.

Em 16 de novembro de 2000 (CCA23) È feita a projeÁ„o e a leitura de

trechos transcritos do encontro de 16 de junho de 1999 (CCA05). Durante a

projeÁ„o o grupo discute principalmente aspectos relacionados ‡ metodologia:

selecionar trechos a partir da leitura da transcriÁ„o para compor o capÌtulo

sobre informaÁıes gerais sobre as afasias e decidir se as falas ser„o

transcritas mantendo-se as marcas da oralidade ou se as falas ser„o editadas.

Imc e SP defendem posiÁ„o contr·ria ‡ de Ijt:

Imc: O primeiro depoimento do CI.

Ijt: Eu tenho d˙vida em relaÁ„o a isso.

Imc: Ent„o... eu acho... Ah... isso aqui... por exemplo: ìeu vou... eu vou... eu

vou... eu vou... xero... xe

Ijt: [Eu vou... eu

vou... eu vou... xe

Imc: Tem que guarda..., porque isto È... a express„o do C..., que È a maneira

como... eu acho

SP: [Justamente... È... porque...

Ijt: Agora... no livro... isso... registra?

SP: … lÛgico. … lÛgico.

Imc: [Porque veja... Ijt... se a gente editar... n„o È mais o CI... n„o È mais...

a gente corrige a fala.

Ijt: N„o... n„o... n„o. T·. T·. Eu acho assim... assim: Uma uma opini„o...

uma coisa È registrar... alguns trechos pra ficar claro a possibilidade do

di·logo... a possibilidade de dialogar... mesmo com a dificuldade de falar

È evidente que È possÌvel dialogar. Agora... eu digo assim... pra

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compreens„o... por exemplo do pensamento... Imc... n„o sei... alguns

momentos... Eu acho assim que como exemplificaÁ„o dos di·logos...

entendeu?

Imc: [Porque a idÈia È...

mesmo com a dificuldade... ele È capaz de de estar //SI// a atenÁ„o.

Ijt: [Sim... sim... eu acho que tem atÈ/

Imc: [NÈ...

a dificuldade faz parte.

Ijt: Mas isso... por exemplo... como como como sendo colocado como...

sendo colocado como... por exemplo... uma... uma... um trecho onde fica

claro a possibilidade de comunicaÁ„o.

Imc: Isso.

SP: Certo.

Ijt: Agora... num... determinado momento... a a

Imc: [No livro.

Ijt: A minha pergunta È... se n„o È interessante... por exemplo... È... È... n„o

È editar... mas... traduzir esse pensamento mesmo: ìolha... o que ele

disse È issoî.

SP: [E eu

//Gesticula em direÁ„o ‡ tela com a transcriÁ„o projetada//.

Ijt: [Objetivamente

È isso. Tem um trecho que est· claro o di·logo... alguma coisa... mas

por exemplo... n„o sei se... a compreens„o/

SP: [Eu acho... eu acho que... ele fala

certo l· //Apontando para a tela com a transcriÁ„o//.

Imc: Que d· pra saber o que ele falou mesmo assim //Aponta para tela//... È

isso?

SP: Justamente. …. Porque ele fa... È... È... ele fala... pro... todo... a... o... u...

//Apontando para a tela, lendo//. Tem... tem... tem a //Olha para Ijt e leva

a m„o ‡ cabeÁa, batendo com os dedos na cabeÁa// tem... a/

Imc: [O pensamento

est· aÌ.

SP: Justamente!

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Imc: O senhor est· dizendo o seguinte: … importante tambÈm pras pessoas

que v„o ler esse livro... que tÍm afasia... verificar que mesmo pessoas

com dificuldades conseguem dizer o que pensam.

SP: Justamente.

Imc: E que nÛs //Aponta para si mesma// que n„o temos afasia //Aponta para

a cabeÁa// tambÈm fazemos estas hesitaÁıes.

Ijt: [N„o... tem uma frase da Iem aÌ que est·

uma... uma coisa!

Imc (falando mais para SP e SI): [Tem uma

frase da Iem que È igual! Exatamente! Como vai ter minhas... como vai

ter suas... como vai ter de todo o mundo. Porque a oralidade È assim... a

gente fala muito ìnÈî... a gente faz hesitaÁ„o...

SP: [Certo.

Imc: A gente fala uma palavra quando queria dizer outra. Enfim... depois a

gente retoma e tudo. Mas tem essa cara. O oral È assim. Tem essa cara.

Pra todo mundo tem essa cara.

SP: [Exato... tal e qual.

Imc: Tal e qual //Imitando a pron˙ncia de SP// como diz o senhor SP... nÈ? …

isso aÌ... n„o È?

SP: [//Ri//.

Imc: Pra desmistificar um pouco que pessoas com les„o falam certo... e

pessoas... N„o. Pessoas sem les„o falam certo e pessoas com les„o

falam errado.

SP: Certo.

Imc: Ou ent„o... pessoas sem les„o... mas que n„o estudaram muito falam

errado... e pessoas sem les„o que estudaram muito falam certo! N„o... a

gente tambÈm fala... „h...

SP: [Certo.

Imc: Tem uma... uma... uma fala da Iem que ela diz... que ela n„o faz

nenhum acordo. Ela fala: ìPessoa af·sicoî. NÈ... depois da... acho que È

na segunda folha.

SP: Certo.

Imc: Qual o problema? Qual o ìpobremaî?

SP: Nada. //Ri//.

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Imc: Nenhum problema! Falou assim nessa hora. Nem por isso È mais

inteligente... menos inteligente... mais... nÈ?

SP: [Certo... certo.

SP: E eu... pr· mim... tal e qual //Apontando a tela//.

Imc: Tal e qual. VocÍ tambÈm SI... acha que tem que ser tal e qual.

SI: [‘ //Acenando com a cabeÁa, concordando//.

O grupo parece chegar a um consenso ao decidir manter na transcriÁ„o

as marcas da oralidade.

E em 6 de marÁo de 2003 (CCA28) o livro do CCA, impresso e editado,

È apresentado ao grupo em sua materialidade, e seus objetivos s„o novamente

explicitados:

Iem: Viu como È que saiu o... o tÌtulo? 8 Olha aqui... SM //Mostrando a capa

do livro para SM//... leia pro grupo.

SM: Sssobre a afasia e a os af·sicos //Lendo//.

Iem: Sobre as afasias e tambÈm sobre os af·sicos.

Iem: …. As afasias. E tambÈm tem embaixo //Lendo//: ìSubsÌdios teÛricos e

pr·ticos elaborados pelo Centro de ConvivÍncia de Af·sicosî.

Em um outro fragmento desse mesmo encontro, JL, ao relatar ao grupo

o desconhecimento de um mÈdico (que o examinava para liberar seu acesso ‡

piscina do clube) sobre o que seria afasia, mobiliza Iem que, fazendo remiss„o

a um coment·rio de Ibd, define o livro por seu objetivo: informar e ensinar.

Iem: Olha que horror... nÈ? Ent„o... o nosso livrinho... (...) ele vai ser tambÈm

n„o sÛ pra dar informaÁ„o (...) vai acabar agindo como formaÁ„o!

JL: Certo.

8 O tÌtulo provisÛrio do livro era ñ Afasia: o que È e como conviver com ela e com os af·sicos.

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Iem: N„o È sÛ pra informar... mas pra ensinar coisas.

JL: ….

Iem (para NM): A senhora vÍ? Um mÈdico esportista n„o sabe o que que È

um AVC... n„o tem informaÁ„o...

A apresentaÁ„o do livro e de seu conte˙do vai mobilizar os sujeitos

novamente na din‚mica de discuss„o acerca das afasias, principalmente em

torno do conceito de cura.

S„o NM e JL9 os principais provocadores do debate ao formularem,

respectivamente, nunca se fica bom na verdade e o problema È que todo

mundo quer que cure a afasia, e ao traduzirem, com suas falas, a expectativa

de grande parte dos af·sicos da cura da afasia.

O livro est· pronto e impresso e, no entanto, ele n„o est· acabado.

Cada nova intervenÁ„o, cada nova contribuiÁ„o carrega o novo e modifica o

curso da interaÁ„o. Com isso, o livro do CCA È um objeto de discurso em

constante reelaboraÁ„o, em constante reconstruÁ„o. Nas palavras de Grunig

(1994), o material discursivo produzido em uma dada circunst‚ncia n„o cessa

de ser trabalhado. O di·logo continua para alÈm do encontro (Salazar Orvig,

1999, p.185).

Para concluir

Ao longo do processo de construÁ„o do livro do CCA as condiÁıes

materiais de sua produÁ„o foram se modificando. Das discussıes e debates ñ

oralidade ñ atÈ o livro impresso e publicado ñ escrita ñ temos a gravaÁ„o em

vÌdeo e em ·udio, a transcriÁ„o desses registros, a projeÁ„o e a leitura da

transcriÁ„o, respostas manuscritas ao roteiro, leitura dessas respostas,

impress„o do livro. As discussıes no CCA, as transcriÁıes dessas discussıes

9 NM n„o chegou a participar de encontros nos quais o livro foi debatido. J· JL entrou para o

CCA em 16 de agosto de 2001 e participou apenas da fase final da leitura do texto piloto e da decis„o sobre a capa. Nessas ocasiıes, JL faz reivindicaÁıes junto ao grupo para explorar melhor os tÛpicos, faz coment·rios sobre trechos do livro, tenta reformular algumas questıes e critica a forma das respostas, que deveriam ser mais diretas.

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e as reuniıes para ver as transcriÁıes (CCA22, CCA23 e CCA24) s„o como

uma vontade de que o livro fosse o espelho das discussıes.

A opÁ„o de manter na transcriÁ„o as marcas da oralidade vai permitir

que alguns preconceitos sejam debatidos: essas marcas ñ hesitaÁıes,

repetiÁıes, reformulaÁıes ñ est„o presentes na fala de todos os falantes ñ e

n„o sÛ dos af·sicos ñ sendo, portanto, independentes da afasia e mesmo do

grau de escolaridade do falante. AlÈm disso, os vestÌgios da oralidade, uma vez

presentes, reafirmam a vontade de que o livro seja o espelho de seu processo

de construÁ„o.

Tanto as gravaÁıes da voz, das posturas e dos gestos, quanto a

transcriÁ„o conferem estabilidade ao oral, tornando-o t„o est·vel quanto o texto

escrito. Das discussıes atÈ a impress„o, o texto escrito obriga seu autor a

estrutur·-lo de maneira a torn·-lo compreensÌvel: fazer de seu enunciado um

texto. Com sua escrita e impress„o o livro ocupa um espaÁo material. Da fala

de Ijt ñ N„o existe o livro ainda... o livro est· aqui //Apontando sua cabeÁa// na

cabeÁa de vocÍs... da gente ñ e do caminho percorrido pelo grupo na

construÁ„o do livro como objeto de discurso, o livro ganha sua materialidade.

O espaÁo discursivo n„o pode ser concebido como uma rede

congelada, fixa ou est·vel na qual as palavras vÍm ganhar sentido. Com efeito,

mesmo tomado a um dado momento do desenvolvimento do discurso, esse

espaÁo n„o sÛ È portador de significaÁıes de diferentes ordens, como est·

igualmente em constante mudanÁa (Salazar Orvig, 1999, p.182). Se o espaÁo

discursivo È aberto sobre o passado (mesmo que as pessoas estejam se

encontrando pela primeira vez, o espaÁo discursivo nunca È ìbrancoî ou vazio

ao inÌcio da interlocuÁ„o), ele o È tambÈm sobre o futuro.

O livro se projeta no futuro como objeto de discurso. O livro est· pronto,

mas o espaÁo discursivo por ele construÌdo n„o cessa de ser modificado a

cada novo enunciado nele inscrito. Koch (2004, p.78) afirma que os objetos de

discurso ìv„o sendo construÌdos e reconstruÌdos durante a interaÁ„o verbalî e

ìs„o, portanto, altamente din‚micos, ou seja, uma vez introduzidos na memÛria

discursiva, v„o sendo constantemente transformados, reconstruÌdos,

recategorizados no curso da progress„o textualî. Para Salazar Orvig (1999,

p.160), toda palavra pronunciada (e tambÈm os olhares, os gestos, a voz, a

postura) tem, para alÈm de sua materialidade, um outro tipo de existÍncia, uma

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existÍncia memorial. Uma vez produzida, toda palavra vem alimentar o

conjunto daquilo que foi dito (e tambÈm o que h· de ruÌdos e inesperados na

comunicaÁ„o) e que permanece presente em graus de atualizaÁ„o, de

import‚ncia, de relev‚ncia. A partir da materialidade das palavras produzidas,

enunciadas, compartilhadas, cria-se um espaÁo intangÌvel no qual se

cristalizam, interagem e atuam as diferentes significaÁıes.

Concluo citando Bakhtin (1997, p.413) para reafirmar a condiÁ„o de

constante transformaÁ„o de um objeto de discurso, como o livro do CCA:

N„o h· uma palavra que seja a primeira ou a ˙ltima, e n„o h·

limites para o contexto dialÛgico (este se perde num passado ilimitado e

num futuro ilimitado). Mesmo os sentidos passados, aqueles que

nasceram do di·logo com os sÈculos passados, nunca est„o

estabilizados (encerrados, acabados de uma vez por todas). Sempre se

modificar„o (renovando-se) no desenrolar do di·logo subseq¸ente,

futuro. Em cada um dos pontos do di·logo que se desenrola, existe uma

multiplicidade inumer·vel, ilimitada de sentidos esquecidos, porÈm, num

determinado ponto, no desenrolar do di·logo, ao sabor de sua evoluÁ„o,

eles ser„o rememorados e renascer„o numa forma renovada (num

contexto novo). N„o h· nada morto de maneira absoluta. Todo sentido

festejar· um dia seu renascimento.

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3 Rede de formulaÁıes, rede de significaÁıes: a construÁ„o referencial de afasia e cura

Este capÌtulo procura destacar a rede de formulaÁıes tecida no

desenrolar de processos de referenciaÁ„o de sujeitos af·sicos e n„o af·sicos

durante a elaboraÁ„o do livro do CCA.

Analisar e exemplificar as relaÁıes entre a referenciaÁ„o e a construÁ„o

de objetos de discurso, tendo como locus o CCA e seus sujeitos envolvidos em

pr·ticas discursivas, implica apresentar de que forma algumas noÁıes ñ

pr·ticas discursivas, referÍncia e referenciaÁ„o, objetos de discurso ñ s„o

tratadas.

As pr·ticas discursivas s„o definidas como ìaquelas atividades que

prevÍem uma reversibilidade entre o que se produz como texto (linguagem,

gesto, pantomima, desenho etc.) e aquilo que diz respeito ‡s referÍncias do

mundo socialî (Morato, 2000), reversibilidade essa entre linguagem e

sociedade determinada pelo conjunto de condiÁıes de sua produÁ„o (cf.

Maingueneau, 1984, 1989), isto È,

as propriedades da lÌngua, da cogniÁ„o e do inconsciente; a qualidade

das interaÁıes humanas; as condiÁıes materiais de vida em sociedade;

o valor intersubjetivo da linguagem; os diferentes universos discursivos

ou sistemas de referÍncia cultural (na acepÁ„o de Franchi, 1977)

atravÈs dos quais agimos e orientamos nossas aÁıes no mundo; as

normas pragm·ticas que regem por gest„o social a utilizaÁ„o da

linguagem; os diferentes contextos ling¸Ìstico-cognitivos nos quais as

significaÁıes s„o produzidas. (cf. Morato, 1997, p.26)

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A referÍncia, por sua vez ñ tema cl·ssico da filosofia da linguagem, da

lÛgica e da ling¸Ìstica ñ tem sido tratada historicamente como um problema de

representaÁ„o do mundo, como uma quest„o de correspondÍncia entre as

palavras e as coisas. A noÁ„o de que a lÌngua È um sistema de etiquetas que

se ajustam ‡s coisas ñ numa vis„o referencialista da lÌngua e da linguagem ñ

tem atravessado a histÛria do pensamento ocidental.

Com Benveniste (1989), por exemplo, temos uma concepÁ„o de signo

que o retira de sua clausura no interior do sistema da lÌngua. Benveniste

propıe, para alÈm do modo semiÛtico de significar a lÌngua ñ ou seja, da

estrutura formal da lÌngua ñ, um modo sem‚ntico, engendrado pelo discurso,

ou seja, pela lÌngua em funcionamento. A lÌngua È ent„o desdobrada em forma

e em funcionamento. Enquanto forma, a lÌngua consiste em unidades distintas,

sendo cada uma delas um signo. Enquanto funcionamento, a lÌngua manifesta-

se pela enunciaÁ„o que contÈm referÍncia a uma situaÁ„o dada. Falar È

sempre ìfalar deî. Benveniste resgata, com seu modo sem‚ntico, a quest„o da

referÍncia. E inclui o pragm·tico, pois se a lÌngua È funcionamento e realizaÁ„o

ela supıe necessariamente um locutor, um interlocutor e a situaÁ„o deles no

mundo. O signo È tratado como unidade da lÌngua enquanto estrutura. J· a

lÌngua enquanto funcionamento ter· como unidade a palavra. Tomada como

estrutura ou como funcionamento, o car·ter primordial da lÌngua È, para

Benveniste, a significaÁ„o ñ ìo prÛprio da linguagem È, antes de tudo,

significarî.

Em Benveniste (1989) a quest„o da referÍncia e, portanto, da relaÁ„o da

linguagem com a realidade È tomada como parte integrante da enunciaÁ„o

que, por sua vez, È um processo de apropriaÁ„o individual da lÌngua pelo

locutor:

na enunciaÁ„o, a lÌngua se acha empregada para a express„o de uma

certa relaÁ„o com o mundo. A condiÁ„o dessa mesma mobilizaÁ„o e

dessa apropriaÁ„o da lÌngua È, para o locutor, a necessidade de referir

pelo discurso e, para o outro, a possibilidade de co-referir

identicamente, no consenso pragm·tico que faz de cada locutor um co-

locutor. A referÍncia È parte integrante da enunciaÁ„o. (Benveniste,

1989, p.84)

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Benveniste inaugura, por assim dizer, a referÍncia retirada do

isolamento do signo e incluÌda no quadro da enunciaÁ„o, ou seja, no

funcionamento dialÛgico da lÌngua que inclui os interlocutores ñ locutor e

alocut·rio ñ e o contexto situacional. A referÍncia passa a ser condiÁ„o da

enunciaÁ„o.

Koch (2001) discute o processo de referenciaÁ„o como atividade

discursiva, posiÁ„o que, para a autora, implica uma vis„o n„o-referencial da

lÌngua e da linguagem. Essa autora considera a referÍncia n„o como simples

representaÁ„o extensional de referentes do mundo real, mas, sim, como aquilo

que designamos, representamos, sugerimos quando usamos determinada

palavra ou determinado termo, ou quando criamos uma situaÁ„o discursiva

referencial. Palavras, termos e situaÁıes s„o considerados como objetos de

discurso (definidos como ìentidades alimentadas e reproduzidas pela atividade

discursivaî) e n„o como objetos do mundo (definidos como ìentidades extra-

discurso e extra-mentaisî). Para Koch, nossa maneira de ver e dizer o real n„o

coincide com o real: nÛs reelaboramos o real no discurso, obedecendo a

ìrestriÁıes impostas pelas condiÁıes culturais, sociais, histÛricas e pelas

condiÁıes de processamento decorrentes do uso da lÌnguaî.

Koch adota as postulaÁıes de ApothelÛz & Reichler-BÈguelin (1995) de

que ìtodo discurso constrÛi uma representaÁ„o que opera como uma memÛria

compartilhada, alimentada pelo prÛprio discursoî.

A autora defende ent„o a idÈia de que ìa lÌngua n„o existe fora dos

sujeitos sociais que a falam e fora dos eventos discursivos nos quais eles

intervÍm e nos quais mobilizam suas percepÁıes, seus saberes quer de ordem

ling¸Ìstica, quer de ordem sÛcio-cognitiva, ou seja, seus modelos de mundoî.

Para Koch os modelos de mundo n„o s„o est·ticos, mas ì(re)constroem-se

tanto sincrÙnica quanto diacronicamente, dentro das diversas cenas

enunciativasî.

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Para Vion (1992, p.211),

rÈfÈrer consiste ‡ sÈlectionner dans la totalitÈ des ìÈvÈnementsî

possibles des objets de discours. Face ‡ la multiplicitÈ des maniËres de

rapporter un ìmÍmeî ÈvÈnement, chacun des Ènonciateurs qui doit le

verbaliser se trouve dans líobligation de sÈlectionner des personnages,

des faits et des ordres de causalitÈ. La lecture de líÈvÈnement quíil

propose, Ètablit des infÈrences qui relËvent de ses choix intersubjectifs

et de donnÈes personnelles.1

A idÈia de referenciaÁ„o em Vion (1992, p.212) diz respeito tambÈm ‡

construÁ„o conjunta da significaÁ„o com os sujeitos envolvidos efetuando

constantes ajustes. A atividade de referenciaÁ„o constitui, tambÈm, uma das

passagens da negociaÁ„o do sentido. Se ìcommuniquer cíest síentendre sur

les motsî, isto pode implicar tanto um trabalho de colaboraÁ„o, com os sujeitos

cooperando uns com os outros para que a significaÁ„o se dÍ, quanto uma

verdadeira batalha e disputa pelo sentido, com cada sujeito tentando impor ao

interlocutor suas prÛprias categorias referenciais.

Morato (1999) toma a referenciaÁ„o numa perspectiva enunciativo-

discursiva e considera que uma determinada palavra pode encerrar um ìfeixe

de sentidosî t„o-somente porque ìela È investida de maneira polissÍmica e

polifÙnica da memÛria de outros dizeres, porque ela È constituÌda por seu

passado discursivo, apreensÌvel pela memÛria comum dos interlocutoresî

(Morato, 1999a, p.5). Para a autora, portanto, o trabalho do sujeito sobre as

palavras e seus feixes de sentidos, que poderÌamos chamar de atividade 1 Para Vion a referenciaÁ„o consiste em selecionar, em escolher em uma totalidade de ìeventosî possÌveis, objetos de discurso. Diante da diversidade de formas de referir um ìmesmoî fenÙmeno, cada enunciador deve selecionar personagens, fatos e ordens de causalidade. A interpretaÁ„o do evento proposta pelo enunciador estabelece as inferÍncias que relevam de suas escolhas intersubjetivas e de seus dados pessoais. (TraduÁ„o ALT.)

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referencial, È mais afetado pelas ìinst‚ncias e contingÍncias discursivas e

histÛricas que marcam as formas do dizerî do que pela relaÁ„o entre o sujeito e

a lÌngua. O sentido deixa de ser propriedade da lÌngua, n„o se encerra nas

palavras e nem se reduz a uma quest„o meramente lexical. Nas palavras de

Anscombre (1995, apud Morato, 1999a, p.5): ìSob as palavras, n„o h· objetos

do mundo, mas outras palavrasî. Toda palavra, todo enunciado, toda

enunciaÁ„o tem um passado discursivo que se refere a prÈ-construÌdos

dispostos na cultura. Esses prÈ-construÌdos, memÛrias de outros dizeres que

as palavras carregam,

produzem determinados efeitos de sentido que se repetem, se chocam,

se transformam em tantos outros atravÈs do que Courtine (1981)

chamou de ërede de formulaÁıesí. Esta rede de formulaÁıes estabelece

a referÍncia dos objetos de discurso, reconhecendo-os e

representando-os, identificando os sentidos que veiculam. (Morato,

1995, p.84)

Para Maingueneau (1997, p.115), toda formulaÁ„o estaria colocada na

interseÁ„o de dois eixos: o ìverticalî, do prÈ-construÌdo, do domÌnio da

memÛria, e o eixo ìhorizontalî, da linearidade do discurso, que oculta o primeiro

eixo, j· que o sujeito enunciador È produzido como se interiorizasse de forma

ilusÛria o prÈ-construÌdo que sua formaÁ„o discursiva impıe. Toda formaÁ„o

discursiva tem em si associada uma memÛria discursiva, memÛria essa que,

para Courtine (1981, p.52) guarda a existÍncia histÛrica do enunciado no

interior de pr·ticas discursivas reguladas por aparelhos ideolÛgicos.

Mondada & Dubois (2003) concebem a quest„o da referÍncia a partir da

idÈia de que, contrariamente ao que postulam os diferentes quadros

conceituais sobre a quest„o ñ e que implicam uma vis„o referencialista da

lÌngua e da linguagem ñ, a lÌngua n„o refere o mundo numa relaÁ„o de

correspondÍncia entre as palavras e as coisas, como um ìsistema de etiquetasî

ou numa ìconcepÁ„o especular do saber e do discursoî. Para as autoras,

discutir a referÍncia implica n„o mais se perguntar como os objetos do mundo

s„o representados, mas sim ìbuscar como as atividades humanas, cognitivas e

ling¸Ìsticas, estruturam e d„o um sentido ao mundoî. As autoras propıem

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ent„o uma discuss„o sobre a referenciaÁ„o considerando-a ñ assim como a

categorizaÁ„o ñ como um processo relativo a pr·ticas simbÛlicas. E ressaltam

que

estas pr·ticas n„o s„o imput·veis a um sujeito cognitivo abstrato,

racional, intencional e ideal, solit·rio face ao mundo, mas a uma

construÁ„o de objetos cognitivos e discursivos na intersubjetividade das

negociaÁıes, das modificaÁıes, das ratificaÁıes de concepÁıes

individuais e p˙blicas do mundo.

As duas autoras defendem uma concepÁ„o segundo a qual ìos sujeitos

constroem, atravÈs de pr·ticas discursivas e cognitivas social e culturalmente

situadas, versıes p˙blicas do mundoî. Desta forma, as categorias e os objetos

de discurso pelos quais os sujeitos compreendem o mundo n„o s„o dados a

priori, mas s„o fabricados no interior das pr·ticas discursivas. Isso implica que

tanto as categorias quanto os objetos de discurso sofrem constantes

transformaÁıes a depender dos contextos em que s„o gerados. Marcam-se,

portanto, por uma instabilidade constitutiva.

Ainda segundo Mondada & Dubois (2003), a perspectiva de uma

ìcartografia perfeita entre as palavras e as coisasî, de um mundo no qual os

objetos s„o est·veis e os falantes infalÌveis (e qualquer atividade ìdesvianteî do

sujeito ñ imprecis„o, dificuldades de nomear, erros, insucessos ñ È imputada

tanto ‡s imperfeiÁıes das lÌnguas ìnaturaisî quanto a um sistema cognitivo

imperfeito ñ um falar popular, ignorante ou mesmo patolÛgico) n„o mais se

sustenta frente ‡ concepÁ„o de instabilidade constitutiva. Essa noÁ„o de que

os desvios, os conflitos e as contradiÁıes n„o s„o imput·veis ao erro, ‡ loucura

ou a qualquer outro tipo de patologia ñ mas s„o constitutivos das prÛprias

categorias e dos objetos de discurso ñ nos È particularmente interessante, pois

a referenciaÁ„o ser· analisada num contexto em que o patolÛgico se faz

presente (afinal, trata-se de um centro de convivÍncia de af·sicos e de n„o

af·sicos), mas nem por isso ou per si configura ou totaliza a qualidade das

interaÁıes entre os sujeitos af·sicos e n„o af·sicos: a instabilidade das

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categorias e dos objetos de discurso È constitutiva tanto da fala de af·sicos

quanto da de n„o af·sicos.

Na perspectiva aqui adotada, a referenciaÁ„o n„o se reduz, portanto, a

um aspecto sem‚ntico-ling¸Ìstico e nem diz respeito apenas ‡ metalinguagem

no seu domÌnio estritamente cognitivo. O lugar da linguagem deixa de ser o de

localizar logicamente os objetos do mundo, categoriz·-los. A referÍncia, que

antes era diretamente capturada na lÌngua, supondo a existÍncia de uma

coincidÍncia entre as palavras e as coisas, passa a ser uma relaÁ„o de sentido:

o que temos n„o È mais uma relaÁ„o entre palavras, mas, sim, entre sentidos.

As palavras tornam-se largamente dependentes do que acontece fora da

lÌngua. No fundo, toda palavra È a atestaÁ„o do interdiscurso (A. Culioli), e È

nesse lugar que v„o ocorrer os desdobramentos da relaÁ„o entre o processo

de referenciaÁ„o e a construÁ„o de objetos de discurso.

Pr·ticas discursivas

As pr·ticas discursivas podem ser apreendidas em termos de atividades,

processos ou operaÁıes como referenciaÁ„o, retomada, reformulaÁ„o,

categorizaÁ„o, denominaÁ„o, recategorizaÁ„o e modalizaÁ„o, entre outras.

O ato de denominaÁ„o est· diretamente relacionado com a forma de

categorizaÁ„o do elemento verbalizado. Para Kerbrat-Orecchioni (1980 apud

Vion, 1992, p.212),

dÈnommer, cíest choisir au sein díun paradigme dÈnominatif; cíest faire

ëtomber sous les sensí, cíest orienter dans une certaine direction

analytique, líobjet rÈfÈrentiel; cíest abstraire et gÈnÈraliser, cíest

classifier et sÈlectionner: líopÈration dÈnominative, quíelle síeffectue

sous la forme díun mot ou díune pÈriphrase ... níest donc jamais

innocente et toute dÈsignation est nÈcessairement ëtendancieuseí.2

2 Denominar È fazer escolhas a partir de um paradigma; significa ìtomar partidoî, orientar o objeto referencial dentro de certa direÁ„o analÌtica; significa abstrair e generalizar, classificar e selecionar: o processo de denominaÁ„o, quer se efetive sob a forma de uma palavra ou de uma perÌfrase ... n„o È jamais inocente e toda designaÁ„o È necessariamente ìtendenciosaî. (TraduÁ„o ALT.)

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Esse tipo de categorizaÁ„o n„o se opera com o isolamento do

interlocutor. Considerando-se que toda forma de comunicaÁ„o È interativa, o

ato de denominaÁ„o sempre se d· num contexto de interaÁ„o, implicando um

ou dois parceiros, presentes ou ausentes, reais ou imagin·rios.

O modo de construÁ„o da referÍncia est· relacionado diretamente com

uma espÈcie de regulaÁ„o interativa da subjetividade e com um controle do

car·ter metacomunicativo sobre o desenvolvimento da relaÁ„o e da

significaÁ„o. Cada ato de denominaÁ„o implica pressupostos. A referenciaÁ„o

implica, portanto, o reconhecimento de implÌcitos culturais relacionados com a

situaÁ„o de interaÁ„o.

Se a referenciaÁ„o estiver relacionada ‡ seleÁ„o de temas, ela implicar·

um ato de denominaÁ„o. O tema corresponde a um objeto de discurso posto

em circulaÁ„o e È uma unidade sem‚ntica ìlargaî, implicando um conjunto de

operaÁıes de referenciaÁ„o na medida em que o mesmo tema discursivo

supıe seleÁ„o de fatos, de personagens e de inferÍncias operados entre eles.

A retomada È a reproduÁ„o de uma seq¸Íncia discursiva anterior tal

qual ela foi formulada. A retomada pode ser a repetiÁ„o de seq¸Íncias

discursivas do prÛprio enunciado (auto-repetiÁ„o) ou do enunciado do

interlocutor. A retomada tem sempre uma funÁ„o dominante. Pode ser usada

com o objetivo de assegurar a intercompreens„o, ou de solicitar uma

confirmaÁ„o, quando acompanhada de entonaÁ„o interrogativa. Pode mesmo

ter o objetivo de marcar a presenÁa do co-enunciador na interaÁ„o. A retomada

significa que o enunciador toma o interlocutor em consideraÁ„o e tambÈm os

objetos de discurso construÌdos na interaÁ„o. Sendo a manifestaÁ„o de que os

interlocutores est„o ìde acordoî ou chegaram a um consenso, È tambÈm marca

formal da compreens„o. A retomada marca a presenÁa do interlocutor que, de

certa forma, ao retomar a fala do outro, renuncia ao seu prÛprio turno de fala.

A reformulaÁ„o È definida como uma retomada em que h· modificaÁ„o

da proposiÁ„o anterior. Os fenÙmenos de reformulaÁ„o fazem parte de pr·ticas

discursivas mais complexas na medida em que implicam uma vis„o

metaling¸Ìstica e metacomunicativa sobre a linguagem e sobre a interaÁ„o. Os

processos de reformulaÁ„o constituem um universo caracterizado por uma

polifuncionalidade (Vion, 1992), na medida em que se alimentam da

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combinaÁ„o de outras pr·ticas ñ modalizaÁ„o, modulaÁ„o, referenciaÁ„o,

implicitaÁ„o.

Vion (1992, p.220) cita G¸lich & Kotschi (1983) sobre a hipÛtese de

existirem marcadores para a identificaÁ„o dos fenÙmenos de reformulaÁ„o,

postulando que a reformulaÁ„o parafr·stica necessita um marcador, sem o qual

ser· dificilmente reconhecÌvel como par·frase de outro enunciado. Expressıes

como eu explico, quer dizer, ent„o, ou seja, bom s„o exemplos de marcadores

geralmente acompanhados por fenÙmenos supra-segmentais ñ entonaÁ„o,

acentuaÁ„o, Ínfase, aumento de volume, velocidade. Vion ressalta, contudo,

que nem sempre a presenÁa de um marcador indica uma atividade

parafr·stica, pois, ‡s vezes, o marcador pode funcionar como conector

argumentativo.

A reformulaÁ„o provoca necessariamente um deslocamento, e È isso

que a distingue da retomada. Esse deslocamento pode afetar o sistema de

referentes, ou seja, as diversas categorias constitutivas do enunciado inicial,

constituindo uma recategorizaÁ„o dos elementos de referÍncia. E tambÈm

pode afetar o ponto de vista sobre os objetos referenciais construÌdos,

expressando graus de generalizaÁ„o ou de especificidade do discurso ou

remetendo a universos discursivos associados atravÈs da modalizaÁ„o. Neste

caso, as categorias referenciais s„o conservadas, mas o ponto de vista sobre o

objeto È modificado, por exemplo, com o uso de um hiperÙnimo (que

generaliza).

A reformulaÁ„o exibe o modo de funcionamento da enunciaÁ„o que, de

maneira cooperativa ou conflitante, se movimenta pela ruptura e pelos

deslocamentos.

Ela pode se efetuar tanto sobre o enunciado do prÛprio interlocutor

(auto-reformulaÁ„o) como sobre o enunciado do parceiro da interlocuÁ„o

(hÈtero-reformulaÁ„o). Vion (1992) postula algumas funÁıes prÛprias ‡s

pr·ticas de reformulaÁ„o:

A auto-reformulaÁ„o tem a funÁ„o de auto-regulaÁ„o do conte˙do, da

relaÁ„o ou da discursividade:

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1. Auto-regulaÁ„o do conte˙do: a construÁ„o do sentido È feita por

aproximaÁıes sucessivas, cada nova seq¸Íncia contribui para modificar as

precedentes (por exemplo, quer dizer, melhor dizendo, isto È).

2. Auto-regulaÁ„o da relaÁ„o: s„o fenÙmenos de autocorreÁ„o pelos quais o

sujeito reformula seus propÛsitos para melhor adapt·-los ao seu parceiro e

‡s maneiras habituais de se expressar (por exemplo, eu quero... e eu

gostaria de...).

3. Auto-regulaÁ„o da discursividade: a seq¸Íncia inicial e a seq¸Íncia

reformulada constituem o momento da argumentaÁ„o de uma tese. Tal

seq¸Íncia, apresentada inicialmente como tese, torna-se a conclus„o a

partir dos argumentos destinados a justific·-la.

A hÈtero-reformulaÁ„o tem a funÁ„o de negociaÁ„o de conte˙dos,

negociaÁ„o da relaÁ„o e da discursividade:

1. NegociaÁ„o de conte˙dos: algumas reformulaÁıes permitem ao sujeito

colocar-se numa situaÁ„o de escuta mais ou menos compreensiva,

adotando uma estratÈgia de alerta. Neste caso, como a reformulaÁ„o do

enunciado do parceiro constitui o ponto de partida da intervenÁ„o, ela pode

ter v·rias funÁıes:

1.1. ReformulaÁ„o como marca de intercompreens„o: ao reformular a

proposiÁ„o do outro, damos mostra de sua presenÁa e garantimos a

compreens„o em relaÁ„o ‡ proposiÁ„o apresentada.

1.2. ReformulaÁ„o como legitimaÁ„o de sua prÛpria fala: ao reformular a

proposiÁ„o do parceiro, o locutor manifesta estar ativamente

presente na interaÁ„o e se legitima em seu turno de fala.

1.3. ReformulaÁ„o como busca de um consenso: alÈm das marcas

pontuais de presenÁa e de compreens„o, os sujeitos envolvidos na

interaÁ„o podem buscar as bases de um consenso. A reformulaÁ„o

das proposiÁıes do outro constitui um dos elos deste trabalho

conjunto. Tais reformulaÁıes s„o acompanhadas freq¸entemente de

interpelaÁıes que visam receber o aval do outro (se eu entendi bem,

vocÍ quer dizer que) e de uma entonaÁ„o de solicitaÁ„o. … um

procedimento que tem por objetivo verificar a natureza dos objetos

construÌdos. A reformulaÁ„o ocorre porque o sujeito deve se

apropriar de alguns conte˙dos, mas dentro de seu prÛprio sistema de

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119

referÍncias, verificando se a forma de se apropriar desse conte˙do

n„o implica contra-senso ou deslocamentos significativos. Recolocar

a reformulaÁ„o em circulaÁ„o significa submetÍ-la ‡ apreciaÁ„o do

outro. Este trabalho de co-adaptaÁ„o e de construÁ„o conjunta do

sentido mobiliza tempo e energia dos sujeitos envolvidos na

interaÁ„o. Entretanto, mesmo com m˙ltiplos ajustes, È difÌcil

assegurar-se de que o consenso È real.

1.4 ReformulaÁ„o e introduÁ„o da divergÍncia: todo discurso divergente,

sobretudo se ele se desenvolve num quadro mais cooperativo,

pressupıe que as divergÍncias sejam atenuadas pela reafirmaÁ„o da

existÍncia de uma base consensual. A reformulaÁ„o permite que a

diferenÁa seja introduzida. 2. NegociaÁ„o da relaÁ„o: um grande n˙mero de negociaÁıes n„o se baseia

exclusivamente nos conte˙dos, mas sim, na relaÁ„o recÌproca que È

construÌda durante a interaÁ„o. Assim, se um dos sujeitos n„o aceita a

posiÁ„o que lhe È conferida durante a interaÁ„o, ele pode ser levado a

(re)definir os lugares ocupados na interaÁ„o. Ao reformular suas

proposiÁıes, os sujeitos efetuam um conjunto de reajustes para alÈm do

conte˙do, o que os leva a modificar seu posicionamento recÌproco (por

exemplo, quando discutem a quest„o da autoria do livro do CCA).

3. NegociaÁ„o da discursividade: neste nÌvel situa-se o trabalho de

cooperaÁ„o, de complementaÁ„o recÌproca e de facilitaÁ„o, permitindo que

cada um se inscreva na enunciaÁ„o de forma a construir suas pr·ticas

discursivas. Este tipo de reformulaÁ„o pode ser introduzido, por exemplo,

por vocÍ quer dizer que...

O termo modalizaÁ„o caracteriza as abordagens enunciativas e diz

respeito ‡ atitude que o sujeito falante adota perante suas produÁıes verbais.

Vion (1992, p.239) cita Apfelbaum sobre o conceito de modalizaÁ„o, que

È definida como um processo de avaliaÁ„o e de deslocamento em relaÁ„o aos

enunciados e ‡ enunciaÁ„o produzidos conjuntamente pelos interlocutores. Na

concepÁ„o desse autor, a modalizaÁ„o est· inscrita na enunciaÁ„o, est·

carregada de efeitos pragm·ticos e faz parte do espaÁo discursivo no qual os

interlocutores se inscrevem. Tal conceito de modalizaÁ„o remete a um quadro

pragm·tico e interacional, uma vez que privilegia a avaliaÁ„o dos enunciados

na interaÁ„o e n„o tomados como enunciados isolados.

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Vion propıe que a modalizaÁ„o seja a pr·tica pela qual os sujeitos

inscrevem os conte˙dos que eles constroem conjuntamente em perspectivas

particulares. Tais perspectivas se referem ao possÌvel, ao desej·vel, ao

necess·rio, ao facultativo, ao imagin·rio e ao certo, por exemplo. De toda

forma, nesta abordagem a quest„o da modalizaÁ„o n„o È tratada no ‚mbito de

enunciados isolados e fora de contexto, ou como uma atividade que dependa

exclusivamente do sujeito que fala. As atividades linguageiras s„o inscritas

numa ou noutra perspectiva a depender da interaÁ„o, de forma que a atividade

de cada um È feita de adaptaÁ„o, de projeÁ„o e de negociaÁ„o.

Vion ressalta que as mudanÁas (deslocamentos) de perspectiva que

ocorrem nas pr·ticas de modalizaÁ„o implicam mudanÁas de pontos de vista,

como afirmamos h· pouco, enquanto a recategorizaÁ„o atinge mais

diretamente os processos de referenciaÁ„o.

A modalizaÁ„o, da mesma forma que a reformulaÁ„o, pode ocorrer

sobre a prÛpria fala do interlocutor ou sobre a fala do parceiro. Desta forma, a

modalizaÁ„o pode ser auto-iniciada ñ quando o sujeito modaliza sobre sua

prÛpria fala ñ ou hÈtero-iniciada ñ quando o sujeito modaliza como reaÁ„o ‡

fala ou ao comportamento do interlocutor.

As pr·ticas discursivas como a referenciaÁ„o, a reformulaÁ„o e a

modalizaÁ„o n„o s„o autÙnomas, s„o mobilizadas de forma concorrente para

definir a relaÁ„o, construir as significaÁıes e tecer a trama discursiva. Vion

(1992) fala em estratÈgias para se referir ‡s atividades mobilizadas pelos

sujeitos para marcar sua presenÁa na interaÁ„o. Esse autor discute trÍs

diferentes estratÈgias: investimento mÌnimo, busca de vantagem e busca de

consenso.

A estratÈgia de investimento mÌnimo (Vion, 1992, p.249) consiste no

posicionamento do interlocutor em escuta atenta. Essa posiÁ„o implica que o

interlocutor produza constantes reguladores, verbais e n„o verbais, entre os

quais o hum hum È uma das formas mais freq¸entes. EF, por exemplo, usa a

escrita no ar, em papel, sobre a mesa, como estratÈgia de investimento

mÌnimo, ‡s vezes tomando o turno e garantindo sua participaÁ„o na interaÁ„o.

ProduÁıes desse tipo atestam a presenÁa ativa do sujeito na interaÁ„o e s„o

indispens·veis para o desenvolvimento da interaÁ„o. A produÁ„o de elementos

f·ticos, verbais, como hum, hum hum, sim, „ h„, È, claro, com certeza e sem

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d˙vida, ou n„o verbais, como o sorriso, acenos de cabeÁa ou gestos, s„o

constitutivos da interaÁ„o. Eles tÍm funÁıes diversas: contribuem para definir a

posiÁ„o daquele que momentaneamente est· em situaÁ„o de escuta; indicam

que o interlocutor est· acompanhando a fala de seu parceiro; indicam tambÈm

que aquele que escuta est· presente na interaÁ„o e que continua a delegar seu

turno de fala ao parceiro que se vÍ assegurado na posiÁ„o de locutor; eles

constituem marcas formais podendo significar tanto que o parceiro est· sendo

considerado na interaÁ„o como a manifestaÁ„o de estar de acordo com os

conte˙dos compartilhados na interaÁ„o.

O investimento mÌnimo na interaÁ„o consiste em raramente tomar seu

turno de fala, em produzir apenas reguladores ou respostas reativas. A

iniciativa discursiva È deixada ao parceiro. Isto n„o significa, contudo, que

exista um monopÛlio nas trocas verbais: o sujeito aparentemente ìpassivoî È

um co-enunciador que se manifesta atravÈs de sinais verbais e n„o verbais e

que tambÈm contribui para definir a situaÁ„o de interaÁ„o na qual ele est·

envolvido.

Mas esse tipo de estratÈgia tem o inconveniente de manter aquele que a

utiliza em uma posiÁ„o baixa na interaÁ„o, deixando toda a iniciativa

enunciativa e a estruturaÁ„o da enunciaÁ„o a cargo do interlocutor. … muito

raro que uma interaÁ„o se mantenha do inÌcio ao fim dentro de uma estratÈgia

de investimento mÌnimo. Se for este o caso, provavelmente se trata de uma

interaÁ„o fortemente hierarquizada na qual um dos sujeitos È quem comanda a

interaÁ„o restando ao outro acatar os conte˙dos propostos, muitas vezes em

funÁ„o do desconhecimento desses conte˙dos.

Em relaÁ„o ‡ estratÈgia de busca de vantagem, Vion postula que as

interaÁıes n„o se deixam sub-categorizar em interaÁıes cooperativas de um

lado e conflituosas e competitivas de outro, pois sempre que falamos ñ mesmo

que as relaÁıes sejam marcadas pelo conflito e pela disputa ñ estamos no

terreno da cooperaÁ„o. Ao responder a um advers·rio, por exemplo, eu o

legitimo como parceiro da interaÁ„o, da mesma forma que, ao esperar meu

turno de fala para refut·-lo, eu levo em consideraÁ„o sua posiÁ„o na interaÁ„o.

Esses aspectos constituem marcas de cooperaÁ„o que, portanto, se referem

ao engajamento dos interlocutores na conduÁ„o de uma tarefa conjunta, quer

se trate de uma conversa ou de uma discuss„o.

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No entanto, Vion retoma a noÁ„o de heterogeneidade das inst‚ncias

enunciativas para tratar a quest„o das interaÁıes com predomÌnio do conflito.

Se um dos parceiros conduz a interaÁ„o, dominando o turno de fala, exercendo

uma espÈcie de lideranÁa e posicionando-se com vantagem em relaÁ„o ao seu

parceiro na conversaÁ„o, o outro ser· necessariamente remetido a uma

posiÁ„o ìbaixaî em relaÁ„o aos lugares que s„o construÌdos pelos sujeitos.

Kerbrat-Orecchioni (1987 apud Vion, 1992, p.252) propıe a noÁ„o de

taxema, ou seja, indicadores de lugares no curso da interaÁ„o, para explicar

essa tomada de ìdianteiraî, essa dominaÁ„o de um dos parceiros sobre o outro

e a remiss„o a posiÁıes diferentes durante a interaÁ„o.3 A heterogeneidade

constitutiva das inst‚ncias enunciativas impede que o sujeito produza um

sistema homogÍneo de lugares. Os taxemas n„o correspondem apenas a

unidades ling¸Ìsticas ñ taxemas verbais ñ, podendo ser n„o-verbais do tipo

est·tico (o olhar, por exemplo) ou do tipo cinÈtico (postura, gestos, movimentos

de cabeÁa, piscar de olhos) ou mesmo para-verbais (entonaÁ„o, pausas,

hesitaÁıes, Ínfase, timbre de voz).

A estratÈgia de busca de consenso (Vion, 1992, p.254) diz respeito ‡s

interaÁıes nas quais predomina a cooperaÁ„o. A conversaÁ„o, a discuss„o, a

negociaÁ„o e a reuni„o s„o exemplos de tipos de interaÁ„o nos quais a

intercompreens„o e os acordos constituem os fundamentos. Aqui a noÁ„o de

trabalho conjunto È facilmente observ·vel. As pr·ticas discursivas mobilizadas

para a construÁ„o de um consenso implicam que os sujeitos est„o de acordo

sobre o contexto situacional, sobre os lugares ocupados por cada um, sobre as

significaÁıes elaboradas e os objetos de discurso construÌdos. Como a

significaÁ„o n„o est· enclausurada nos objetos de discurso construÌdos, o

consenso nem sempre est· garantido e pode ser constantemente recolocado

3 Vion propıe para a an·lise da estratÈgia de ìtomar a dianteiraî na interaÁ„o que sejam consideradas questıes como as seguintes (que n„o s„o analisadas no escopo deste trabalho):

• Quem toma a iniciativa e, portanto, define mais diretamente a situaÁ„o e o tipo de interaÁ„o?

• Quem toma a iniciativa discursiva em relaÁ„o aos temas e objetos mobilizados na interaÁ„o?

• Quem fala mais e mais freq¸entemente? • Quem manifesta um melhor domÌnio de si, da lÌngua e da situaÁ„o? • Quem impıe seu estilo, suas categorias, seu sistema de referÍncias, sua vis„o de

mundo? • Quem impıe as regras do jogo definindo o ritmo argumentativo? • Quem distribui os turnos de fala? AlguÈm controla e concede os turnos?

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em quest„o. Concordar com o contexto situacional significa que os sujeitos se

confirmam e se vÍem confirmados (de forma verbal e n„o-verbal) nos lugares

que ocupam por sua prÛpria iniciativa e nos lugares que s„o convocados a

ocupar.

A construÁ„o da rede de significaÁıes que os sujeitos pretendem

partilhar ñ na escrita do livro do CCA ñ implica que os sujeitos desenvolvam um

trabalho conjunto. A busca de um consenso vai exigir freq¸entemente que os

sujeitos procedam a um ajustamento progressivo de significaÁıes e que se

envolvam em atividades de referenciaÁ„o, reformulaÁ„o, retomada e

modalizaÁ„o, num jogo de interpelaÁıes recÌprocas e aproximaÁıes

sucessivas. Numa interaÁ„o como a que se desenvolve no CCA na atividade

de elaboraÁ„o do livro ñ conversaÁ„o ou discuss„o ñ È preciso um trabalho de

ajustes sobre as significaÁıes de acordo com o sistema de referÍncias que

est· em jogo.

A seguir, vejamos como s„o tratados certos objetos de discurso

construÌdos pelos sujeitos af·sicos e n„o af·sicos durante a atividade de

elaboraÁ„o do livro do CCA, focalizando nossa an·lise na construÁ„o

referencial conjunta de afasia ñ um conceito essencial ao grupo e ao livro ñ e

cura.

Das afasias e dos af·sicos: das pr·ticas ‡ construÁ„o de objetos de discurso

As pr·ticas mobilizadas pelos sujeitos af·sicos e n„o af·sicos durante o

processo de elaboraÁ„o do livro foram organizadas em torno de algumas

categorias, a saber:

1. Afasia: definiÁ„o e identificaÁ„o de prÈ-construÌdos.

2. A caracterizaÁ„o das alteraÁıes da linguagem nas afasias.

3. O af·sico e o falante n„o af·sico idealizado.

4. As implicaÁıes sociais da condiÁ„o de af·sico.

5. Linguagem, cÈrebro e cogniÁ„o.

6. Cura.

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Essas categorias ser„o exemplificadas nos fragmentos de v·rios

encontros que compıem o corpus desta tese.

1. Afasia: definiÁ„o e identificaÁ„o de prÈ-construÌdos 1.1 Afasia e suas causas

Uma das escolhas feitas pelos sujeitos ñ af·sicos e n„o af·sicos ñ para

denominar a afasia È correlacion·-la com uma de suas causas ñ a les„o

cerebral.

Os sujeitos, ao discutirem, por exemplo, no seguinte fragmento (CCA17),

a resposta dada pela esposa de CI ‡ pergunta do roteiro ñ O que provoca a

afasia? ñ parecem chegar a um consenso de que a afasia decorre de uma

les„o cerebral:

Iem: ìA afasia È provocada por uma les„o cerebralî. AtÈ aÌ a gente

concorda... faz parte tambÈm do nosso conhecimento...

CI: […... concorda... nÈ?

Iem: da nossa opini„o...

CI: [Concorda!

JB e LM: //Acenam positivamente com a cabeÁa//.

CI: Eu n„o tinha afasia... porque eu n„o tinha les„o cerebral!

Imc: Claro!

No prÛximo fragmento (CCA06), CI compara sua recuperaÁ„o com a de

um conhecido seu, bem mais jovem e tambÈm af·sico. A definiÁ„o mais

recorrente de afasia vai ser enunciada por Iem: Afasia È um problema de

linguagem que decorre de les„o no cÈrebro.

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CI: Vinte e cinco anos ele tem agora. Mas ele n„o fala... n„o faz nada.

Porque eu... eu... eu... a... a... a... Iem forÁou eu falar... forÁou atÈ atÈ

que eu falei nÈ? //Olhando para Iem e sorrindo//.

Iem: N„o È bem assim nÈ //Rindo//. Mas escuta... o que È determinante... È...

no livro... È como a gente enxerga a afasia... a gravidade dela... a

extens„o que ela tem na vida de cada um.

CI: [Gravidade.

Ent„o... È esse //SI//.

Iem: Ent„o olha... se ela È causada por uma les„o no cÈrebro... essa È uma

definiÁ„o que est· em todos os compÍndios nÈ?

CI: ….

Iem: Todos os livros. Afasia nÈ... È um problema de linguagem que decorre

de les„o no cÈrebro. Agora... o... o que significa essa afasia vai muito

alÈm dessa definiÁ„o.

No prÛximo fragmento (CCA15), os sujeitos conversam sobre o

desconhecimento dos mÈdicos, em geral, sobre a afasia. Embora CI

compartilhe o mesmo ponto de vista do grupo sobre essa quest„o, ele acaba

definindo a afasia por uma de suas causas, ou seja, pelo derrame cerebral. Iem

n„o contesta a definiÁ„o feita por CI ñ Afasia È derrame cerebral ñ mas

reformula seu enunciado, provocando o grupo para discutir outras causas que

n„o o derrame.

Iem: O mÈdico sabe... por exemplo... que a afasia pode acontecer como

resultado: È: de um derrame nÈ? De algum tipo

CI: [….

Iem: de les„o cerebral //Leva a m„o ‡ cabeÁa// decorrente de algum

problema de sa˙de que a pessoa tem... nÈ... n„o È isso?

CI: […... È... aÌ teve uma... uma pessoa... que foi... È...

È que teve derrame cerebral e teve afasia? Foi... teve afasia! Afasia È

derrame cerebral... ent„o... È derrame cerebral que tem afasia.

Iat, EF, Ijt: [//Sorriem concordando//.

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Iat: //Olha para CI e concorda com aceno da cabeÁa//.

Iem: … sÛ derrame cerebral que d· afasia? //Com a caneta na m„o,

escrevendo//.

Imc: //Escreve//.

EF: //Faz esboÁo de um movimento negativo com a cabeÁa//. … È //Acena

vigorosamente a cabeÁa de forma afirmativa//.

SI: //Olha para EF//.

CI: …... eu acho que n„o... mas

Imc: [”... SM n„o //Apontando para SM e referindo-se

ao fato de que SM n„o teve um AVC mas, sim, um traumatismo

cranioencef·lico//.

JB: N„o È //Permanece de braÁos cruzados//.

Imc: //Olha para JB//.

CI: Noventa por cento È derrame cerebral... mas dez por cento n„o È

derrame cerebral.

Iem: Tem alguma idÈia do que È... se n„o for derrame o que È que causa?

No fragmento CCA28, os sujeitos tecem coment·rios sobre o livro do

CCA e se detÍm na quest„o da cura da afasia. Iem discute o fato de que a

afasia È muitas vezes considerada como uma doenÁa. Iem procede a algumas

auto-reformulaÁıes, tentando definir a afasia n„o como uma doenÁa, mas

como uma seq¸ela. Mais uma vez a afasia È definida em relaÁ„o ‡ les„o

cerebral: Achando que a afasia È sÛ doenÁa... e a doenÁa j· n„o existe mais na

afasia nÈ? Afasia significa que a pessoa teve uma les„o no cÈrebro. Isso j· n„o

È doenÁa... È uma seq¸ela que ficou! A doenÁa È quando vocÍ tem uma gripe...

quando vocÍ tem uma virose! Isso È um estado de enfermidade. Na afasia...

vocÍ tem o quÍ? Uma seq¸ela de uma les„o cerebral. Nesse sentido... n„o È

uma doenÁa no sentÌ... nÈ... classicamente. E aÌ... mas as pessoas tÍm essa

idÈia... que a gente... que padecem de um mal.

No prÛximo fragmento (CCA05), o grupo discute se um tema sobre o

funcionamento cerebral È pertinente ou n„o para o livro do CCA. … nesse

contexto que CI categoriza a afasia como perda e troca de neurÙnios,

circunscrevendo-a ‡ quest„o cerebral. Iem produz uma reformulaÁ„o sobre o

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enunciado de CI, introduzindo um ponto de vista divergente ñ a linguagem n„o

est· sÛ no cÈrebro ñ que È, ao mesmo tempo, modalizado na busca de um

consenso:

CI: Afasia È neurÙnio! … neurÙnio! Trocou neurÙnio!

Iem: N„o! Olha... afasia n„o È sÛ uma quest„o de neurÙnio e cÈrebro...

Imc: [N„o!

Iem: NÈ? Por quÍ? Porque veja sÛ nÈ? A linguagem n„o est· sÛ no cÈrebro!

A linguagem... a Iff estava explicando tambÈm... est· no corpo... nÈ...

est· na interaÁ„o com as pessoas! … claro que pra linguagem ser „...

adequada... digamos assim... È tambÈm que o cÈrebro... È preciso

tambÈm que ele esteja... bom!

1.2 Afasia e graus de severidade

A afasia È tambÈm definida em relaÁ„o ‡s caracterÌsticas do quadro

af·sico e de sua gravidade. Enquanto os sujeitos n„o af·sicos ñ pesquisadores

ñ referem-se ‡ afasia geralmente como uma quest„o de linguagem, os sujeitos

af·sicos invariavelmente referem-se ‡ afasia como um problema de fala. A

afasia È definida pelos af·sicos como ausÍncia de fala ñ o ìn„o falar nadaî ñ e

sua gravidade È definida tanto em relaÁ„o ‡ fluÍncia verbal, traduzida em

termos de ìquantidade de falaî ñ ìfalar maisî, ìfalar menosî ñ quanto em

relaÁ„o ‡ extens„o da les„o cerebral ñ ìmais derrameî, ìmenos derrameî.

No prÛximo fragmento (CCA05), CI relata ao grupo as circunst‚ncias nas

quais se tornou af·sico:

CI: Eu subi ‡s ‡s seis horas da manh„ nÈ? Eu falei que eu eu eu ag¸ei as

planta tudo... fui dormir. AÌ aÌ aÌ eu tive o derrame cerebral nÈ? Mas eu

acordei ‡s oito horas da manh„. Era quest„o de minutos! De segundos!

JB: [Hum!

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Imc: [VocÍ

foi dormir ‡s seis da manh„ e acordou ‡s oito?

CI: ¿s oito! Tentei acordar... tentei acordar... tentei acordar! Duas horas que

eu j· tinha...

Iem: [Acordou

af·sico?

CI: AÌ... Û! Eu n„o falava nada! Demorou trÍs meses pra mim conse

comeÁar a falar.

No seguinte fragmento (CCA06), CI introduz o tema sobre o conceito de

afasia, mas agora na perspectiva de uma discuss„o sobre os graus de

severidade das afasias ñ que ele denomina inicialmente como ìparte da afasiaî,

ìpouco derrame, muito derrameî, ìexplicaÁ„o das afasiasî e como ìpadrıesî e

que Iem vai recategorizando de diferentes maneiras ao longo da fala de CI:

causas, gravidade, graus de severidade. A noÁ„o de severidade da afasia,

como tambÈm a noÁ„o de afasia, geralmente associadas ‡ les„o cerebral ñ

extens„o, localizaÁ„o, tipo ñ e, portanto, com forte determinaÁ„o biolÛgica, s„o

recategorizadas no grupo com a argumentaÁ„o de que s„o tambÈm

determinadas pelas formas de interaÁ„o social do af·sico.

CI: I...e....„ //Tocando no braÁo de Iem//... sÛ um aparte...

Iem: ... fala... diga l·!

CI: Existe parte da afasia... por exemplo... afasia a a gente teve derrame...

„... pouco derrame... ou muito derrame. E...existe a explicaÁ„o da

afasia?

Iem: //4í// VocÍ fala... por exemplo... as causas... „ vocÍ est· falando sobre

causas... sobre o que causa a afasia...

CI: […... n„o.

Iem: Sobre a gravidade?

CI: Gravidade! Da afasia... da afasia.

IP: E com o tempo... //Fazendo gesto com a m„o, indicando passagem do

tempo//.

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CI: As pessoas que tÍm afasia... ela teve afasia //Apontando IP//... ela

melhorou. Outros n„o tiveram... teve as afasias... n„o melhora.

IP: Eu era assim //Apontando para EF//. Nossa! Como melhorou! Ichi!

CI: Ent„o... eu... eu melhorei bastante... porque n„o falava nada. Ent„o...

existe È È pa pa padrıes que

Iem: [Graus de severidade.

IP: […... t·.

CI: Graus... porque „... tem af·sicos que fica em casa... que fica em casa.

(...)

Iem: Porque veja... a gravidade da afasia n„o depende sÛ... por exemplo... do

tipo de les„o que a pessoa sofreu... ou da extens„o da da les„o que

sofreu no cÈrebro nÈ. O tipo de vida que a pessoa tem... nÈ.

SP, IP e EF: //Concordam com gesto de cabeÁa//.

Iem: O tipo de de impacto que tem a afasia tambÈm sobre a vida dos seus

familiares e o entendimento que tem sobre a afasia... o meio social em

que ela vive tambÈm repercute na gravidade... È ou n„o È?

Todos: //Concordam afirmativamente com a cabeÁa//.

CI: ….

EF: ‘.

Iem: A prÛpria personalidade tambÈm da pessoa

IP: [Afeta...

Iem: A maneira como... exatamente... a maneira como aquela experiÍncia...

nÈ de ter ficado af·sico e outras coisas que acompanham a afasia... por

exemplo... a hemiplegia... a dificuldade no campo visual... tudo isso È...

diz respeito tambÈm ‡ gravidade da afasia... n„o È sÛ a... sÛ a... parte

biolÛgica... sabe... sÛ... o que determina a afasia e a severidade de... È a

les„o... È a les„o do cÈrebro... n„o apenas a les„o no cÈrebro.

EF: …... È... hum...

Imc: A qualidade de vida.

No prÛximo fragmento (CCA17), a quest„o do que seja a afasia È

formulada metaling¸isticamente, pois È a primeira pergunta do roteiro

desenvolvido pelo grupo para nortear a discuss„o sobre o livro do CCA. … CI

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quem inaugura a discuss„o do roteiro lendo a resposta dada por sua esposa,

MI. CI vai concordar com a resposta dada por sua esposa ñ … a dificuldade de

se expressar ñ pois ela toca num aspecto que parece definir a afasia ñ a

dificuldade de express„o ñ independentemente de sua gravidade. CI evoca

novamente a idÈia de graus de afasia em sua argumentaÁ„o.

CI: O que È afasia? Ela perguntou: ìo que È afasia?î //Lendo a primeira

pergunta do roteiro respondido por sua esposa//.

Iem: A primeira pergunta È: o que que È afasia nÈ? O que que ela falou?

CI: Ela sabe o que que È afasia... ent„o ela escreveu: ìÈ a dificuldade de se

expressarî //Lendo//.

Iem: Que que vocÍ achou dessa resposta?

CI: Achei boa. Porque... porque ela disse que tem que expressar... porque

af·sico tem... v·rios graus de af·sico nÈ? Tem v·rios graus: tem af·sico

È... È... fica mudo... nÈ...

Iem: ….

CI: … af·sico! Fala pouco... È af·sico! Fala muito... È af·sico tambÈm!

Iem: ….

JB: //D· risada//.

CI: ... Mas tem problema de expressar! Isso que È af·sico.

Nesse mesmo encontro (CCA17), a quest„o dos graus de severidade

das afasias È retomada por CI, provocado pela resposta de sua esposa ‡

quarta pergunta do roteiro ñ Todas as pessoas af·sicas tÍm a mesma

dificuldade para se comunicar? Imc, embora n„o aderindo ‡ idÈia de graus proposta por CI, recoloca a

quest„o sob o ponto de vista da flexibilidade desses graus, que variam com a

melhora da afasia. Tanto Imc quanto Iem v„o argumentar contra a idÈia de que

a afasia seja determinada apenas pela condiÁ„o estrutural do cÈrebro e,

portanto, pela les„o cerebral, propondo ao grupo que reflita sobre o conceito de

afasia como uma quest„o de linguagem e, alÈm disso, assegurando seu

car·ter social e de interaÁ„o.

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CI: Quatro: ìTodas pessoas af·sicas tÍm a mesma dificuldade pra se

comunicar?î //Lendo//.

Iat: E o que que ela responde?

CI: ìN„oî //Lendo//.

JB: //Ri//.

Iem: N„o... n„o tÍm a mesma dificuldade... tÍm dificuldades diferentes.

CI: ìIsso depende do grau de afasiaî //Lendo//. AÌ sim! ìGrau de capacidade

de comunicaÁ„o e compreens„oî //Lendo//. Porque È „ af·sico tem

v·rios graus... trÍs graus nÈ?

Iem: TrÍs?

Imc: TrÍs? Da onde vocÍ tirou?

JB: //D· risada//.

Iat: //Sorri//.

CI: … trÍs! N„o... È È È eu o primeiro... nÈ... digo que... È... „... eu esqueci o

nome!

Iem: [T· bom!...

CI: Afasia... a af·sico È... È... È... n„o fala nÈ? Pronto... n„o tem como

mudar... n„o tem como arrancar.

JB: [N„o tem jeito.

CI: AÌ af·sico fala e outro af·sico... depois... com o tempo... fala

normalmente.

Iem: Hum hum!

CI: Ent„o... esses graus de de afasia tÍm tÍm um nome... eu esqueci o

nome!

Iem: T·! VocÍs acham importante falar sobre isso...

Imc: [Mas a gente n„o falou //Fazendo gesto com a m„o para Iem

esperar//

Iem: ... sobre esses graus?

Imc: A gente n„o fa acabou de dizer... nÈ... e est· fazendo nessas duas

sessıes... porque esses graus... eles mudam!

CI: …!

Imc: VocÍ pode mexer com eles... pode/

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CI: [Com o tempo muda... porque eu n„o falava!

Ent„o tava num grau...

Imc: Grave!

CI: Grave!

Iem: […!

CI: AÌ... comecei a falar: grau... mÈdio!

Imc: Mudando...

CI: Hoje eu estou num grau... tÙ... //Faz gesto de ìmais ou menosî com a

m„o//.

Imc: Light!

JB e LM: //D„o risada//.

CI: …... È... È... terceiro grau... eu quero... eu quero voltar a

Imc: [Melhorar mais!

CI: …... È... È... melho... eu dava palestra e tal... eu tinha bom portuguÍs... eu

quero voltar a estar estudando e tal...

(...)

Iem: (...) Ent„o... a resposta nossa para o fato de que as pessoas af·sicas

n„o tÍm a mesma dificuldade È... n„o reduzir a nossa resposta ao fato

de ela ter uma maior ou uma menor les„o cerebral. A maneira como ela

reage ‡s afasias e... na verdade tambÈm... o meio em que ela vive e

reage ‡ afasia... faz com que ela tambÈm tenha maiores ou menores

dificuldades... t· certo? Por exemplo... tem pessoas que tambÈm ficam

mais ou menos af·sicas a depender com quem estejam conversando.

Imc: E tem pessoas que falam mais e tem pessoas que falam menos.

(...)

Iem: Ent„o... isso tambÈm faz parte da resposta e n„o jogar tudo para a

quest„o mais biolÛgica.

CI: …!

Iem: E a gente enxer... esquece o lado social de utilizaÁ„o da linguagem.

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1.3 Afasia e preconceito

Os sujeitos af·sicos, in˙meras vezes, definem a afasia fazendo uso da

negaÁ„o, ou seja, definindo-a por aquilo que ela n„o È. Esse tipo de pr·tica

revela mais uma vontade do af·sico de se defender de qualificaÁıes que ele

prÛprio rejeita, do que uma dificuldade de se definir a afasia por aquilo que ela

È (o que tambÈm n„o È simples).

As formulaÁıes produzidas geralmente pelos af·sicos carregam o n„o-

dito e tambÈm veiculam o interdiscurso, ambos revelados na forma de prÈ-

construÌdos e de preconceitos identificados pelos prÛprios af·sicos. As

formulaÁıes efetuadas atravÈs da negaÁ„o inscrevem as afasias em categorias

diversas ñ outras patologias, por exemplo ñ e, muitas vezes, traduzem

preconceitos dos prÛprios af·sicos.

1.3.1 Afasia n„o È deficiÍncia mental

Nos trÍs fragmentos que se seguem, a afasia È definida pela negaÁ„o da

deficiÍncia mental.

No fragmento seguinte (CCA02), CI lÍ para o grupo um trecho do livro O

af·sico 4 ressaltando a experiÍncia de um aviador que ficou af·sico e recusou-

se a ser aposentado por invalidez, adaptando-se, com sucesso, ao seu antigo

trabalho:

CI: E... a mente dele... a mente dele estava normal... porque nÛs temos a

mente normal!

MS: …!

CI: SÛ mesmo n„o temos acesso a a a È a gente... a gente... est·... ela...

afastado... porque... as pessoas n„o sabem disso... n„o sabem... n„o

sabem esse problema... que nÛs temos.

Imc: Acha que porque n„o fala...

4 O af·sico ñ convivendo com a les„o cerebral (1995, p.35).

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CI: [Acha que nÛs temos deficiÍncia mentais! O que È

deficiÍncia mental? Eu fiquei impressionado porque falar que È

deficiÍncia mental! Afasia n„o È deficiÍncia mental!

No prÛximo fragmento (CCA05), o grupo discute a quest„o de

diagnÛsticos equivocados em funÁ„o do desconhecimento, mesmo de mÈdicos,

do que seja a afasia. … CI quem novamente retoma e recusa o ponto de vista

da afasia como doenÁa mental, ganhando a ades„o do grupo.

CI: Agora a afasia È È È... considerada doenÁa mental nÈ?

EF: ‘! //Ri//.

CI: Agora... È importante saber que doenÁa mental... doenÁa mental... n„o

d· muita bola!

EF: [A... a... a.

CI: Af·sico... pensando que È doenÁa mental!

JB: [//Ri//.

Iem: Exatamente!

CI: Essa doenÁa mental È È È... Brasil sÛ que È essa essa essa cultura que

afasia... e... essa doenÁa mental!

No fragmento seguinte (CCA07), o grupo examina um livro espanhol

com perguntas e respostas sobre afasia. Uma das perguntas ñ O af·sico È um

doente mental? ñ mobiliza os sujeitos e provoca uma resposta enf·tica de MS

que sai ìem defesaî do af·sico:

Iem: O af·sico È um doente mental? //Apontando sua cabeÁa//.

MS: [N„o! NÈ? N„o È demente mental n„o! Viu?

Iem: O problema maior È pra... //Leva a m„o ‡ boca//.

MS: [Paralisia!

EF: [Falar! Falar!

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1.3.2 Afasia n„o È deficiÍncia auditiva No prÛximo fragmento (CCA05), o grupo discute o livro do CCA e retoma

a decis„o de tomar os depoimentos dos af·sicos como fonte para o conte˙do

do livro: o que È afasia, o que significa conviver com o af·sico, esclarecer

preconceitos e equÌvocos acerca das afasias e dos af·sicos. O enunciado de

EF ñ A a a. … È sudo. Sudo! ñ mobiliza o grupo na definiÁ„o da afasia como um

n„o problema de audiÁ„o.

Iem: Eu lembro de alguÈm dizendo... uma vez nÈ... o LC falou: ìOlha... a

gente È sÛ af·sico!î.

EF: ‘... u È... Ù!

Iem: Lembra uma vez que ele disse isso? Quer dizer... ìa gente pode n„o

falar direito... mas È sÛ af·sicoî. N„o tem outros problemas... que n„o sÛ

para falar... pra se comunicar atravÈs da fala.

EF: A... a... a. …... È... sudo. Sudo!

Imc: Pensam que È surdo!

EF: A! A! A!

Iem: [N„o È surdo. Escuta!

EF: A... i //Ri//.

Iem: …! A pessoa af·sica... Isso È uma coisa legal nÈ? Quer dizer... o que que

n„o È uma pessoa af·sica. O que È e o que n„o È. Porque... ‡s vezes...

as pessoas... porque tambÈm n„o tÍm muita informaÁ„o... porque

imagina isso... nÈ? Que as pessoas af·sicas n„o falam... porque

tambÈm n„o escutam...

Imc: [Falam alto com ela!

Iem: N„o pensam direito! NÈ? O problema de comunicaÁ„o de uma pessoa

af·sica È diferente de outras pessoas que podem tambÈm ter outras

dificuldades. Como o surdo... por exemplo... tem dificuldade para falar

porque n„o escuta! Ele tem outras formas! Ou ele aprende a falar

mesmo sendo surdo...

EF: A!

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1.3.3 Afasia e cogniÁ„o

Nos prÛximos exemplos, a afasia ñ como tambÈm o af·sico ñ È definida

pela remiss„o a um dos pressupostos e prÈ-construÌdos culturais que a

cercam: a proposiÁ„o bem elaborada cognitivamente È enunciada claramente.

Seu corol·rio: se h· problemas em enunciar claramente uma proposiÁ„o, ela

n„o foi bem elaborada cognitivamente. Ou seja, a afasia implica alteraÁıes n„o

sÛ da linguagem, mas tambÈm da cogniÁ„o (inteligÍncia, memÛria etc.).

S„o geralmente os af·sicos que fazem remiss„o a essa quest„o do falar

bem È pensar bem ñ ponto de vista dos interlocutores n„o af·sicos ñ

formulando-a e refutando-a de maneira veemente.

No fragmento seguinte (CCA04), Iem faz remiss„o a uma fala de RR ñ

um senhor af·sico que freq¸entara o CCA anteriormente ñ sobre esse prÈ-

construÌdo. SP se manifesta discretamente, mas EF recusa o prÈ-construÌdo

manifestando-se enfaticamente com gestos e fala:

Iem: O RR tambÈm... do outro grupo l· que vinha de segunda-feira. Ele dizia:

ìpelo fato de eu n„o falar direito... as pessoas acham que eu n„o penso

direito!î.

EF: ‘... Ù... Ù! //Ergue o polegar e o braÁo, enfaticamente//.

SP: //Ri//.

Iem: Ele tinha essa... ele tinha essa sensaÁ„o! Ele tinha essa sensaÁ„o!

VocÍs percebem tambÈm isso... ou n„o?

EF: Per:ce:bo:! Eu: per:ce:bo! //Ergue o polegar em gesto de ìpositivoî//.

Iem: Percebe nÈ?

EF: …!

(Iem, dirigindo-se ao grupo, propıe que o preconceito seja um tema a ser

abordado no livro, especificando-o.)

Iem: Hum hum... e tambÈm essa experiÍncia tambÈm como a forma de

preconceito... que È essa de... de... de as pessoas imaginarem que

porque n„o fala nÈ... porque n„o fala direito... n„o pensa direito e assim

vai.

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No prÛximo fragmento (CCA06), o grupo comenta o conte˙do do livro O

af·sico e Iem ressalta a import‚ncia da informaÁ„o para romper com mitos e

crenÁas sobre a afasia. … nesse contexto que EF escreve ìinteligÍnciaî em uma

folha de papel, olha para o grupo e faz gesto de ìpositivoî com o polegar

erguido.

EF: //Escreve a palavra îinteligÍnciaî//: Ah! //Faz gesto de positivo com o

polegar//.

Imc: Ele quer dizer que se mantÈm a inteligÍncia...

EF: [InteligÍncia //Com entonaÁ„o de

aprovaÁ„o//.

Imc: A inteligÍncia se mantÈm e as pessoas n„o sabem disso. Ent„o... tratam

que nem deficiente mental... tratam que nem... rebaixam a pessoa nÈ?

EF: Ossa si... //Com entonaÁ„o de quem recusa as categorias de deficiÍncia

mental ou de rebaixamento mental dos af·sicos//.

Imc reconhece na express„o interjectiva e no gesto de EF uma posiÁ„o

enunciativa que ela compartilha ñ a inteligÍncia n„o È afetada pela afasia. Imc

interpreta a escrita e as outras semioses utilizadas por EF produzindo uma

reformulaÁ„o ñ Ele quer dizer que se mantÈm a inteligÍncia. Com seu

enunciado, Imc inscreve as formulaÁıes de EF em seu prÛprio sistema de

referÍncias. Essa inscriÁ„o È aceita por EF que retoma, na fala, a palavra

ìinteligÍnciaî, assegurando a intercompreens„o. O objeto de discurso

construÌdo È partilhado.

IP, porÈm, talvez em funÁ„o das dificuldades de relacionamento com os

colegas de trabalho, de quem ela percebe menosprezo e desvalorizaÁ„o por

sua condiÁ„o de af·sica, vai modalizar essa posiÁ„o conjuntamente construÌda

ñ a inteligÍncia n„o È afetada pela afasia ñ inscrevendo sua formulaÁ„o em

uma perspectiva distinta, provocando um deslocamento do ponto de vista

anteriormente assumido pelo grupo.

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IP: InteligÍncia eu penso assim...

Iem: Fala...

IP: Que se mantÈm em parte. ¿s vezes eu penso assim.

Ela justifica seu ponto de vista ñ a inteligÍncia se mantÈm em parte ñ a

partir de sua experiÍncia com a afasia. Ela reconhece ter dificuldades para ler

como fazia antes da afasia, e tambÈm dificuldades para evocar palavras, o que

associa com alteraÁ„o de memÛria. AlÈm disso, ela apresenta um argumento

sobre a irreversibilidade da les„o cerebral: as cÈlulas do cÈrebro se degeneram

e morrem, e n„o mais se regeneram depois do AVC.

1.3.4 Afasia e doenÁa mental A afasia È tambÈm definida em relaÁ„o ‡ doenÁa mental: a afasia como

entidade nosolÛgica È pouco conhecida, ao passo que a des-raz„o, a loucura,

a doenÁa mental ñ mesmo para aqueles que com elas n„o convivem ñ s„o

mais facilmente reconhecidas como categoria patolÛgica. Em nosso sistema de

referÍncias, para qualquer comportamento desviante ou alterado, loucura pode

ser uma escolha lexical possÌvel. No caso da afasia, a denominaÁ„o de loucura

funcionaria como um hiperÙnimo, deslocando o ponto de vista e

recategorizando a afasia como desvio.

Uma pr·tica bastante comum aos sujeitos af·sicos e n„o af·sicos do

CCA È referir a afasia com um gesto da m„o tocando ou apontando a cabeÁa,

gesto que est· metonimicamente vinculado ao cÈrebro, ‡ cogniÁ„o, ao

pensamento, ‡ mente, ao psÌquico e tambÈm ‡ les„o cerebral. No fragmento

seguinte (CCA27), Imc constrÛi referencialmente os objetos af·sico e afasia de

forma verbal e gestual, enunciando ìproblemaî e apontando para sua cabeÁa.

Imc: ‘ MG! Vamos ver aqui como vocÍ... com a NS e com a dona CL.

Ent„o... o af·sico pode continuar a trabalhar?

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CL: O quÍ?

Imc: O af·sico... nÈ... as pessoas que tÍm um problema //Aponta a cabeÁa//.

Em nosso sistema de referÍncias, para significar a condiÁ„o de louco ou

de alguÈm de alguma forma desprovido de capacidades mentais Ìntegras, o

gesto de ìtocar ou apontar a cabeÁa com a m„oî vem acompanhado de

determinada express„o facial que ganha diferentes significaÁıes a depender

do contexto em que ocorre e tambÈm da forma como esse toque do dedo na

cabeÁa se d·. Isso È diferente de quando apontamos o cÈrebro ou a boca para

nos referirmos ‡ causalidade do problema af·sico. … o que ocorre no fragmento

anterior: aponta-se a cabeÁa para explicar que a afasia tem a ver com les„o

cerebral, n„o que È uma doenÁa ou deficiÍncia mental. Do mesmo modo,

aponta-se tambÈm a boca para assinalar o tipo de dificuldade que caracteriza a

afasia, que nesse caso n„o È prioritariamente referida a partir do gesto indicial

que faz o sujeito levar a m„o ‡ cabeÁa.

No prÛximo exemplo (CCA09), os sujeitos conversam sobre o

desconhecimento das pessoas em geral sobre o que È afasia. Iem comenta

que a ignor‚ncia È um fator grave, que pode produzir preconceitos. Ijt admite

que, mesmo ele, antes de iniciar o trabalho de teatro com os af·sicos do CCA,

n„o tinha nenhum conhecimento ou informaÁ„o sobre afasia. MS assume a

mesma posiÁ„o enunciativa de Ijt: nada sabia sobre afasia ou sobre o papel do

cÈrebro na linguagem antes de tornar-se af·sico. O gesto de ìtocar a cabeÁaî

vai ser utilizado por v·rios sujeitos na construÁ„o referencial da afasia em

relaÁ„o ‡ loucura (seja girando o dedo indicador ao redor da tÍmpora, seja

procedendo nessa regi„o a sucessivos toques com o dedo indicador).

MS: Eu eu n„o sabia co como que era... essas coisas

JB: [Mas a a //Levando a m„o

prÛxima ‡ boca// fala bem vai a //Dirigindo-se a MS com gesto da m„o

sendo lanÁada em direÁ„o a MS//.

Iem: T· falando que o senhor fala bem aÌ.

MS: //Ri um pouco desconcertado//.

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EF: [‘:: //Concordando com JB//.

JB: T· louco... meu! AÌ Û vai...Ù! //ìT· loucoî È uma express„o interjectiva

muito usada por JB, sem nenhum sentido associado ‡ loucura//.

MS: Mas È È eu a gente nunca nunca //Toca a regi„o da tÍmpora esquerda

com a m„o// pensou que... que... a a a pessoa //Toca a cabeÁa// vivia

nessa //Toca a cabeÁa// nessa È... agonia... porque eu nunca pensei que

com... porque eu num... num... eu num... num... eu nunca pensei que

uma pessoa... È que... louco eu eu sabia! SÛ! SÛ!

Iem: O senhor sabia o que que era ìloucoî?

MS: [Louco. SÛ. Porque eu vi... eu vi

Iem: [¿s vezes n„o È

f·cil saber quem È louco e quem n„o È louco.

EF, SP, Imc e SI: //Risadas//.

MS: [N„o... n„o... porque... louco eu sabia porque a

mente //Batendo duas vezes com a ponta do dedo na testa// nÈ? Agora...

n„o sabia que a pessoas ficava nesse estado.

EF: [Louco //Fala olhando para MS//. //Ri//.

MS: Nesse estado... nÈ?

EF: //Ri alto//.

SP: //Ri//.

MS: Agora... quando quando quando veio comigo... Ah... agora eu pensei

//Toca a tÍmpora com a ponta do dedo// que o cÈrebro num num faz...

tem tem a v·rias repartiÁ„o //Toca a cabeÁa// que È a vida //Toca a

cabeÁa// da gente. Eu num sabia nada eu num pensei pra pensar //Leva

a m„o perto da boca//. Eu num pensei nada. A vida... //Faz gesto com as

duas m„os como se estivesse tocando uma coisa para frente//... vai com

a barriga... n„o È?

Imc: [Hum hum.

EF: [//Ri

alto//.

SP: //Acena discretamente com a cabeÁa//.

(Iem ressalta a responsabilidade do grupo na elaboraÁ„o do livro do CCA, ao

fornecer informaÁ„o e combater o preconceito):

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Iem: Devem ter pessoas af·sicas mas nem procuram ajuda... enterradas

debaixo de preconceitos. Porque desconhecem e vivem na desinformaÁ„o.

EF: //Escreve ìloucoî em uma folha de papel e mostra para Imc//.

Imc: …... ele sabia... ele falou que louco nÈ //Dirigindo-se a EF//... seu EF

escreveu //Falando para o grupo// ìloucoî... que louco o senhor sabia

que n„o era nÈ //Olhando para MS//.

MS: […. ….

EF: [//Ri//.

MS: [//Acena

vigorosamente com a cabeÁa e movimenta o corpo para frente,

concordando com Imc//. Isso.

Imc: Estava tudo aqui //Tocando com os dedos trÍs vezes o alto da cabeÁa//.

MS: [Isso isso isso.

Imc: Aqui È que estava difÌcil //Enquanto fala repete por cinco vezes

movimento da m„o com as pontas dos dedos juntas, da boca para frente

em um gesto referente a falar//.

MS: Isso! ISSO mesmo.

EF: //Ri alto//.

SP: //Ri//.

Imc: //Toca o alto da cabeÁa duas vezes com a ponta do dedo indicador e

logo em seguida faz sinal de ìpositivoî com o polegar erguido, mantendo

a m„o prÛxima ‡ cabeÁa//.

MS: //Toca sua cabeÁa com a m„o e abre a m„o no ar, concordando com

Imc//.

SP: //Toca sua testa com a palma da m„o espalmada por quatro vezes,

sorrindo//.

Observamos que os sujeitos atuam procurando situar suas orientaÁıes

em um determinado contexto enunciativo, o que vai requerer ajustes

enunciativos constantes. Quando MS enuncia ñ Louco eu eu sabia! SÛ! SÛ! ñ

duas direÁıes enunciativas diferentes s„o tomadas no grupo. Iem interpreta o

enunciado de MS como se ele soubesse o significado de louco ñ O senhor

sabia o que que era ìloucoî? ñ mas n„o o de afasia. Imc, ao reformular tanto o

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enunciado de MS quanto a produÁ„o escrita de EF ñ louco ñ recobre os

enunciados de uma nova significaÁ„o: louco o senhor sabia que n„o era nÈ, ou

seja, MS sabia, a partir de seu sistema de referÍncias e de seu conhecimento

sobre loucura, que aquela agonia que ele n„o sabia referir ñ a afasia ñ n„o era

loucura. Os gestos empreendidos por MS e a entonaÁ„o de seu enunciado ñ

ISSO mesmo ñ s„o movimentos que indicam que os sujeitos est„o agora em

posiÁıes enunciativas convergentes. Imc retoma o enunciado de MS atravÈs

de expressıes gestuais que referem a afasia como um problema de linguagem

ñ Aqui È que estava difÌcil //Apontando a boca// ñ no qual a cogniÁ„o, a mente,

o pensamento e o psÌquico est„o preservados ñ Estava tudo aqui //Apontando

a cabeÁa//.

No prÛximo fragmento (CCA24), os sujeitos fazem a leitura da

transcriÁ„o do depoimento de JB em um trecho onde ele produz a express„o

interjectiva ìt· loucoî, bastante freq¸ente em sua fala. Nesse contexto, EF

enuncia louco e o grupo, mobilizado, discute a relaÁ„o entre afasia e loucura.

LM faz uso de um gesto que envolve a cabeÁa, a express„o facial e o

dedo indicador, que ele gira ao redor da tÍmpora. Na gestualidade de LM o

grupo reconhece o sentido de louco.

CI: Porque a hemiplegia... ninguÈm sabe o que quer dizer isso. …... Acham

que È loucura das pessoas.

Iat: A hemiplegia ou a afasia?

CI: A afasia... as pessoas //Gesto com a m„o de ìafastarî// ela se afasta... e

as pessoa... n„o fala mais... acha que est· louca. N„o n„o n„o //Com

gesto de ìafastarî// escuta o que a pessoa tem... pra dizer.

Iat: LM isso aconteceu com vocÍ... o que eles est„o falando? Das pessoas

acharem assim que vocÍ estava louco... que vocÍ estava... deficiente...

que n„o sabia mais de nada... e se isolaram... se afastaram de vocÍ?

LM: …. //5í// AtÈ hoje.

Iat: AtÈ hoje?

LM: ... Ainda... tem gente que... Ainda tem gente que... n„o d·... bola.

Iat: N„o d· bola?

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LM: Ainda tem gente... Porque eles acham que... que eu //Faz gesto de

ìloucoî, girando o dedo indicador ao redor da tÍmpora//... falo assim ...

Iat: //4í// //Repete o mesmo gesto de LM//. VocÍ...

LM: N„o bato.... bem... da cabeÁa.

Iat: VocÍs ouviram o que o LM falou?

EF: //Acena com a cabeÁa, afirmando//.

Iat: Diz que atÈ hoje nÈ... as pessoas acham que ele n„o bate bem. Isto a

gente tem que //Falando para LM//

CI: [A gente... eu acho que È importante isso daÌ porque... eu

dou risada porque as pessoas acham que eu n„o bato bem da cabeÁa.

LM: //Ri//.

1.3.5 Af·sicos e n„o af·sicos: preconceitos na interaÁ„o

Os trÍs prÛximos trechos foram selecionados para exemplificar o

preconceito que se constrÛi no interior do grupo social no qual o af·sico

convivia antes da afasia.

No primeiro fragmento (CCA06), a fala de IP sobre sua experiÍncia de

retorno ao trabalho ñ onde È identificada pelos colegas como ìaquela que teve

derrameî ñ mobiliza o grupo.

Iem: A experiÍncia do grupo aqui... por exemplo... pelo que se tem dito... È

que normalmente as pessoas n„o sabem o que que È afasia...

CI: …... n„o sabem.

Iem: NÈ? AtÈ daÌ È que surgiu a idÈia de fazer o o livro tambÈm nÈ? As

pessoas n„o sabem o que que È afasia... o que È uma pessoa af·sica.

CI: Noventa por cento da populaÁ„o n„o sabem o que È afasia

IP: […... uma vez tambÈm negÛcio pra eu

entrar da minha cirurgia... eu falei nÈ... da esterectomia e //SI// carÛtida e

uma pessoa falou assim ìAh... ela teve derrameî... aÌ... sabe como È isso

//Gesto com duas m„os com dorso para baixo, descendo do alto para

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baixo e entonaÁ„o irÙnica//. Assim bem na minha cara... Imc... ìEla teve

derrameî! //Olhando para Imc//.

CI: ìTeve derrame?î...

IP: … derrame... derrame... mas

CI: [Por que n„o fala: ìeu tive derrameî...

IP: E daÌ? Eu tive! Eu sempre falo... mas eu sempre falo... eu num oculto.

Pelo contr·rio... ‡s vezes assim as pessoas

CI: [GraÁas a Deus... est· bem.

IP: Exatamente... por exemplo... a minha sobrinha de Campinas eu venho

pra cuidar dos sobrinho-neto... todo mundo confia em mim. Agora no

Posto n„o... a turma fala assim mas pra te derrubar. Qual È o nome dele

mesmo? //Apontando para CI e dirigindo-se a Imc e Iem//.

Iem e CI: CI //Dizem o nome de CI//.

IP: CI. Mas pra te derrubar... CI. Porque eu sei que eu tive derrame... eu

assumo. Eu falo ‡s vezes pras pessoas: ìgente eu n„o sou a mesmaî...

ìgente... eu tive derrameî... mas assim... n„o precisa falar... enfatizar pra

vocÍ... que vocÍ teve derrame... concorda nÈ?

A fala de IP, que CI interpreta como vergonha de assumir ou admitir seu

derrame, mobiliza CI para a necessidade de enfrentar a condiÁ„o de quem teve

um AVC comeÁando por verbalizar essa condiÁ„o para os outros. Mas para IP

a formulaÁ„o de seus colegas ñ ìela teve derrameî ñ carrega outros sentidos

para alÈm do acidente vascular cerebral: incapacidade, desvalorizaÁ„o e

desconfianÁa. E s„o esses sentidos que ela recusa ao recusar o termo

derrame.

No prÛximo fragmento do mesmo encontro (CCA06), Imc tece

consideraÁıes sobre o impacto da afasia na pessoa, que passa a ser tratada

como ìcafÈ com leiteî. IP se identifica com a formulaÁ„o de Imc: em sua

experiÍncia, as pessoas hostilizam os af·sicos, imitando-os e caÁoando deles.

Imc: E tambÈm essa coisa que seu EF falou nÈ... de se transformar... a

pessoa fica ìcafÈ com leiteî nÈ?

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145

EF: I· //Concordando com a cabeÁa//.

Imc: Ent„o d· uma... uma rebaixada... se sente assim ìcafÈ com leiteî sabe...

quando È crianÁa...

IP: [E de

imitarem a gente... imitarem a gente.

Imc: Imitar? //Dirigindo-se a IP com entonaÁ„o de surpresa//.

Iem: VocÍ acha que... que LIMITAM?

IP: Imitam!

Imc: [Imita... caÁoa.

IP: …... È. As //SI// ‡s vezes n„o consigo falar alguma coisa... A A A A //Com

sua boca bem aberta e com resson‚ncia gutural//. ¿s vezes eu vou falar

alguma coisa... ‡s vezes...

Imc: Nossa senhora... //Com entonaÁ„o de desaprovaÁ„o//.

IP: …... E ‡s vezes eu n„o lembro um termo...

No fragmento seguinte (CCA15), Iat tece alguns coment·rios sobre a

dificuldade que se tinha no passado (e que persiste ainda hoje) de se proceder

a um diagnÛstico diferencial entre os transtornos de linguagem presentes em

quadros af·sicos, em doenÁas psiqui·tricas ou, mais recentemente, nas

demÍncias. Suas formulaÁıes remetem CI a uma experiÍncia por ele vivida em

sua atividade de consultoria sobre qualidade total no trabalho, apÛs sua

primeira isquemia: as dificuldades de fala que apresentou foram interpretadas

como falta de competÍncia profissional.

CI: Ent„o... eu era... eu era orador... t·. Eu fui em Santa Catarina...

Tubar„o... eu fui dar uma palestra depois que eu tive de o primeiro

derrame. E eu n„o consegui dizer a u a u umas coisa... eu n„o

conseguia falar nÈ? AÌ... a a a a oradora nÈ... dis... comeÁou a

desconfiar de mim porque //Rindo// ela pensou que que eu eu n„o

conseguia dizer as palavras.

JB: [//Ri tambÈm//.

Iat: Que vocÍ era incompetente.

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146

CI: Incompetente... eu... È È È eu cinco anos eu fiz discurso nÈ... oraÁ„o em

faculdade... tudo... eu era bom nisso aÌ. Mas ela ficou desconfiada de

mim.

Nos dois exemplos que se seguem (CCA20), o preconceito contra o

af·sico È construÌdo n„o sÛ pelos interlocutores n„o af·sicos, mas tambÈm

pelo prÛprio af·sico.

O grupo discute um argumento que incide sobre a relaÁ„o entre afasia e

condiÁ„o socioeconÙmica do af·sico. V·rios argumentos v„o se suceder em

torno do argumento inicial ñ af·sico rico n„o È af·sico ñ defendido

principalmente por CI. Iat, por exemplo, argumenta que a afasia independe da

posiÁ„o social da pessoa e que a diferenÁa entre af·sicos ricos e pobres reside

nas condiÁıes de acesso ao tratamento. A discuss„o culmina com o grupo

assumindo o pressuposto cultural de que a riqueza concede privilÈgios e

permite facilidades no enfrentamento de problemas de qualquer natureza.

Contudo, a riqueza n„o impede que a pessoa torne-se af·sica ou mesmo,

vÌtima de preconceitos. Iem comenta uma formulaÁ„o de Ijt, feita em um

encontro anterior (CCA17) que de certa forma se traduz em uma outra forma

de preconceito: ìO af·sico rico tem muito mais a perder que o af·sico pobreî.

Essa quest„o provoca um novo embate: o que se perde com a afasia n„o È

materialmente mensur·vel. … Iem quem reformula o enunciado de Ijt: Mas se

perde coisas materiais sÛ? Quem È que vai medir o que um perde e o que o

outro perde?

Um outro pressuposto È evocado nesse momento da discuss„o ñ o

sofrimento do af·sico È determinado pelas caracterÌsticas de sua afasia. E seu

corol·rio ñ uma fala mais fluente significa um sofrimento menor ñ È debatido no

grupo.

Iem: Eu lembro que alguÈm falou assim... n„o sei... alguÈm falou assim: ìAh...

vocÍ fala melhor do que euî. Por exemplo vocÍ //Aponta para CI//... …...

tem uma fluÍncia diferente de... de outra pessoa por exemplo nÈ? Do

JB... por exemplo... nÈ?

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CI: Eu... eu n„o falava nada.

Iem: [Ent„o... ent„o! VocÍ n„o falava nada... mas tem isto nÈ. Ou... de

outras pessoas e tal.

Iem: Ent„o... isso n„o faz com que... „...

Imc: Seja menor ou maior o problema...

Iem: [Seja menor... Ou maior

Imc: [o seu problema //Toca em CI// e maior o dele

nÈ?

Iem: Exatamente!

Iat postula, ainda dentro dessa mesma argumentaÁ„o, que o prÛprio CI

È vÌtima desse pressuposto uma vez que ele j· trouxe ao grupo o fato de que È

discriminado por outras pessoas, e mesmo por outros af·sicos, por ter uma fala

fluente ñ seu sofrimento diante da afasia È minimizado por seus interlocutores

af·sicos.

Iat: Mas o prÛprio CI j· falou isso uma vez: ì…... todo mundo diz: vocÍ fala...

vocÍ falaî. Os outros que tÍm mais dificuldade dizendo: ìAh... vocÍ t·

bomî... quer dizer... atÈ... sabe... diminuindo/

Imc: [Desqualificando nÈ?

Iat: Desqualificando. Quer dizer... ìah... vocÍ fala... o CI n„o tem o mesmo

problema que a genteî.

EF: [A //Faz sinal de positivo com o polegar erguido//.

Iem: [SÛ a gente sabe os problemas

que enfrenta.

EF: [‘ Ù Ù Ù //Ri//. A

//Ri//.

Iat: NÈ? VocÍ sente isso. Quer dizer... È um preconceito tambÈm nÈ... contra

vocÍ.

CI: Contra mim...

Iat: Por que vocÍ fala melhor... digamos assim nÈ?

CI: Em relaÁ„o... ‡s pessoa... que È... n„o tÍm... È.... problemas...

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EF: [A //Colocando a m„o na

garganta//.

CI: …... essas pessoas... n„o tÍm... n„o tÍm... condiÁ„o de È de... È de...

de... eu falar. Ent„o... descarta l·! //Faz gesto de ìmandar emboraî//.

EF: [A //Acena a cabeÁa, concordando//.

CI: Eu j· sinto isso. Eu tambÈm sinto. Mas desde o acidente n„o tem

condiÁ„o.

EF: [‘ Ù Ù a a a È fa //Aponta para si mesmo// si sinto Û.

Imc: Sente tambÈm.

EF: [//Acena com a cabeÁa e faz sinal de ìpositivoî com o polegar

erguido//.

SP: Eu... eu... tambÈm l· (...).

CI, ao enunciar ñ Ent„o... descarta l·! //Faz gesto de ìmandar emboraî//.

Eu j· sinto isso. Eu tambÈm sinto. Mas desde o acidente n„o tem condiÁ„o ñ

parece n„o acompanhar a argumentaÁ„o de Iat, pois sua fala incide mais sobre

o pressuposto de que todos os af·sicos s„o vÌtimas de discriminaÁ„o, pelo fato

de serem af·sicos, do que sobre o pressuposto que estava em discuss„o. EF e

SP v„o aderir ao argumento de CI, sustentando-o: os af·sicos s„o

discriminados pelos n„o af·sicos.

2. A caracterizaÁ„o das alteraÁıes da linguagem nas afasias

As pr·ticas discursivas acionadas pelos sujeitos af·sicos e n„o af·sicos

na construÁ„o referencial de objetos de discurso relacionados ‡s alteraÁıes de

linguagem presentes nas afasias ser„o apreendidas em termos dos processos

de referenciaÁ„o aÌ envolvidos. Nos processos de referenciaÁ„o, os sujeitos

ora descrevem as dificuldades de linguagem e demais alteraÁıes associadas ‡

afasia, ora descrevem a din‚mica da linguagem nas afasias ñ da formulaÁ„o ‡

enunciaÁ„o.

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2.1 AlteraÁıes da linguagem nas afasias

Os sujeitos af·sicos se referem ‡s alteraÁıes de linguagem nas afasias

geralmente como perda de capacidades anteriores ‡ afasia como falar, ler,

escrever, lembrar ñ quase n„o h· referÍncias a compreender. A afasia È

referida como dificuldade, alteraÁ„o, problema, dist˙rbio ñ de linguagem, fala,

express„o, de dizer as palavras, da memÛria das palavras ñ e sempre em

relaÁ„o ‡ capacidade de linguagem do sujeito af·sico antes da afasia.

Embora com diferentes caracterÌsticas af·sicas, variando de uma maior

fluÍncia a um quase mutismo, os af·sicos ñ e a afasia ñ s„o categorizados pela

dificuldade de linguagem, independentemente da severidade.

CI: ...porque af·sico tem... v·rios graus de af·sico nÈ? Tem v·rios graus:

tem af·sico È... È... fica mudo nÈ...

Iem: ….

CI: … af·sico! Fala pouco... È af·sico! Fala muito... È af·sico tambÈm!

Iem: ….

JB: //D· risada//.

CI: ... Mas tem problema de expressar! Isso que È af·sico.

Os sujeitos consideram que a perda sofrida com a afasia n„o È a mesma

para todos os af·sicos, nem em relaÁ„o ‡ gravidade, nem em relaÁ„o ‡s

funÁıes afetadas. Nos fragmentos seguintes (retirados do excerto CCA02), MS

questiona Imc sobre as diferentes dificuldades de leitura entre ele e CI, e a

discuss„o que se segue exemplifica a quest„o:

Imc: (...) Pra ler est· complicado?

MS: Tudo!

Imc: O senhor me perguntou... por que ele //Referindo-se a CI// consegue ler

e o senhor n„o. Era isso?

MS: [Isso!

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Imc: Primeiro que no comeÁo... depois ele pode falar sobre isso...

CI: [Eu vou falar.

Imc: Ele vai explicar como ele estava no comeÁo nÈ logo apÛs que ele teve o

derrame cerebral e como ele est· agora. Bom... as pessoas s„o

diferentes... a idade È diferente... o local da les„o pode ser diferente...

quer dizer... v·rias coisas podem contribuir pra vocÍs terem o que a

gente chama de sintomas... de... ah... qualidades diferentes um do outro.

Mesmo sem nenhuma les„o cerebral as pessoas s„o iguais?

MS: N„o.

Imc: N„o?

MS: N„o!

Imc: E por que elas seriam... apÛs um derrame. NÈ?

(...)

MS: Mas assim... a gente n„o... Como È que... Bom... a senhora j· j·

explicou...

Imc: N„o... Fala seu MS! Assim a gente...

MS: N„o. Assim porque a gente fica... a gente fala assim nÈ: ìEsse... esse...

eu num num num temî... a gente num num tem problema do outro nÈ?

Imc: Ah! Os problemas s„o diferentes nÈ?

No prÛximo trecho, MS vai caracterizar suas dificuldades e alteraÁıes de

linguagem: leitura, leitura de n˙meros (embora ele conheÁa as quantidades),

tabuada (embora ele use a calculadora), nomes de cores (embora ele as

identifique perceptualmente), fala (que, segundo ele, se limita a cumprimentar).

MS: A gente num num vÍ n˙mero tambÈm... porque eu conheÁo n˙meros...

mas eu... a a...

Imc: A leitura do n˙mero...

MS: A leitura do n˙mero...

Imc: A identificaÁ„o do n˙mero

MS: [A identificaÁ„o do n˙mero... eu eu n„o

conheÁo... sÛ que com a maquininha a gente faz o que tem que fazer...

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Imc: AÌ o senhor faz.

MS: Mas... mas a cabeÁa //Aponta para sua cabeÁa// n„o È a...

Imc: [A mesma.

MS: N„o È... n„o È... n„o È igual do porque... a... a gente... se È dezoito...

quarenta...

Imc: [Tabuada...

Mn: Isso. Isso n„o d·.

Imc: N„o alterou?

MS: N„o! Alterou sim! Alterou sim! Era esse daÌ tambÈm... nÈ?

Imc: Tabuada?

MS: Em sinaleiros tambÈm... agora... no comeÁo... n˙mero. N˙mero n„o.

N˙mero n„o.

Imc: Cor!

MS: Cor! Cor e... porque tÙ tÙ ensinando a ler. As cores a gente procura...

porque cores no sinaleiro a gente a gente procura... identificar nÈ. Agora

tambÈm a minha filha fala fala... ìAs letras... È essa? … essa?î... mas eu

n„o eu n„o tenho a certeza de que È! N„o tenho a certeza do que È. N„o

tenho certeza.

Iff: As letras?

MS: As letras... n„o... a a a... o o... as coisa... as letras num... a gente n„o

vai... a gente n„o faz num faz as sibas... sÌbalas... a gente n„o faz na

cabeÁa mais n„o... a gente assim vÍ o ìaî... a gente n„o sabe o que È.

VÍ o ìuî... tambÈm. Tudo tudo.

Imc: Se for se for analisar o senhor nÈ...

MS: [….

Imc: Mas o senhor fala com

MS: [Falo.

Imc: Sons... sÌlabas... palavras nÈ? O senhor fala! O senhor est· falando

usando sons... usando sÌlabas... usando palavras... frases...

MS: N„o... frase fra fra frase eu n„o sei tambÈm.

Imc: O senhor n„o fala?

MS: [SÛ cumprimento. SÛ. Porque eu cumprimento //Olhando para os

outros do grupo como se os estivesse cumprimentando// mas... falar

n„o!

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Imc: O senhor n„o fala n„o?

SI: //Ri//.

JB e SP: //Se entreolham e riem//.

Todos: //Risos//.

Imc: O senhor n„o fala nada?

MS: Falo... eu cumprimento. Professora... cumprimento a gente fala mas fala

assim... a gente n„o sabe.

… na perspectiva de quem toma como fala a capacidade de linguagem

anterior ‡ afasia que MS formula que n„o sabe falar ñ sÛ cumprimentar. Imc

n„o aceita a argumentaÁ„o de MS ñ fala È fala.

No prÛximo fragmento (CCA02), CI modaliza a formulaÁ„o de MS ñ

cumprimento a gente fala mas fala assim... a gente n„o sabe ñ reformulando-a

na busca de um consenso. As alteraÁıes de linguagem v„o ser associadas ‡

memÛria.

Imc: Eu queria que ele percebesse que ele est· falando que ele n„o fala!

Quer dizer... ele est· o tempo todo falando. E dizendo que ele n„o fala!

CI: Ele n„o tem È... noÁıes do que ele estudou antes... ele ele n„o lembra.

MS: N„o lembro. Ele est· certo //Apontando para CI//.

No prÛximo fragmento (CCA25), o sujeito SP caracteriza suas

dificuldades de linguagem relatando que, apesar de o idioma francÍs ser sua

lÌngua materna, o portuguÍs ñ apÛs o segundo AVC ñ tornou-se o idioma

usado para a interaÁ„o na famÌlia, no CCA e nas demais comunidades das

quais faz parte.

SP: N„o... l·... l·... o... o... vocÍ entende... quando falar... falar... l·... tudo

isso... bom... bem... Ûtimo... bom... n„o... o ˙nico... ˙nico... era francÍs

//Faz gesto relativo ao n˙mero ì1î com o dedo indicador//. Ent„o l·... o...

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tudo... tudo... ìaî ìbeî ìceî ìdeî a... ra... pa... pa... pa... pa... pa... pa...

bom... l·.

Iat: Tratamento da fala sÛ quando o senhor veio aqui //Referindo-se ao

CCA//.

SP: Ah... n„o! … da... n„o... n„o... l· como È... falava bem... do do... bem...

l·... l·. Mas a depois quando novamente //Faz gesto com a m„o,

indicando abaixar, descer// na na

Iem: [T·. Ele teve um AVC...

Iat : [Um segundo... T· certo.

Iem: AÌ se virava um pouco... tal e teve um segundo nÈ... e aÌ depois

realmente ficou mais af·sico.

Iat: [Ah... t· certo.

SP: //Faz gesto com a m„o de ìdescerî significando ìpiorarî//.

SP: A... a... francÍs... a... a... ìbasî! //Gesto com a m„o mostrando altura

baixa// e... o... na //Faz gesto mostrando altura mais alta//... na... como

È...

Iat: Por... //Tenta ajud·-lo a enunciar ìportuguÍsî//.

SP: [I... i... i... n„o... inglÍs n„o //Ri//.

Iat: PortuguÍs?

SP: PortuguÍs... um pouco //Mostrando com a m„o uma altura mais alta//.

Iat: Melhor. Ah! Entendi. T· certo.

2.2 A din‚mica da linguagem nas afasias

Os sujeitos ñ af·sicos e n„o af·sicos ñ constroem referencialmente a

afasia a partir da descriÁ„o da din‚mica de funcionamento da linguagem.

AtravÈs de formulaÁıes como ìeu penso e a palavra n„o vemî, ìest· aqui na

minha cabeÁa e a palavra n„o vemî e ìa gente conhece as palavras, se lembra

das palavras, mas n„o vem a palavraî, os sujeitos pressupıem que a

linguagem esteja preservada no pensamento-memÛria-cÈrebro, mas sua

realizaÁ„o como fala-boca n„o È possÌvel ou È difÌcil. ¿s vezes os sujeitos ñ

af·sicos e n„o af·sicos ñ retomam essa formulaÁ„o, mas atravÈs de gestos:

apontar a cabeÁa e fazer sinal de positivo com o polegar, em seguida apontar a

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boca ou a garganta e acenar negativamente com a cabeÁa ou com o dedo

indicador.

No prÛximo fragmento (CCA18), Iem relembra um senhor af·sico, BA,

que havia freq¸entado o CCA e que constantemente a interrogava acerca do

funcionamento do cÈrebro e da din‚mica das alteraÁıes de linguagem nas

afasias. Ela retoma uma formulaÁ„o de BA ñ Por que eu penso e a palavra n„o

vem? ñ e o grupo se mobiliza nessa discuss„o. SP e EF constroem

referencialmente a din‚mica do processo da linguagem principalmente atravÈs

de gestos: SP enuncia t· aÌ e aponta a boca e depois aponta a cabeÁa.

Enuncia t· l·, aponta a boca novamente e faz gesto de ìnadaî com as m„os.

EF toca a testa com a m„o e leva a m„o ‡ garganta.

Iem: …. BA. Ele falava pra mim assim: perguntava sÛ coisas que eu n„o

conseguia responder. Francamente. Por mais que eu tenha estudado

essa... esse... essa quest„o nÈ... do cÈrebro... da linguagem... falava

assim: ele parecia um ling¸ista... de

SP: [//Sorri//.

Iem: tanto que era ìa linguagem... o cÈrebro... o que aconteceî... eu falava:

ìseu BA... eu tambÈm n„o seiî //Rindo//. ìEu n„o sei... mas tambÈm acho

que ninguÈm sabe aindaî.

EF: [//Ri//.

SP e SM: //Sorriem//.

Iem: Ele falava assim: ìPor queî... ele falava pra mim... ìpor que... Iem... que

eu penso e a palavra n„o vem?î.

EF: A... a.

SP: …Ö Isso aÌ.

Iem: ìPor que que est· aqui na minha [cabeÁa e a [palavra n„o [vem?î Eu

falava: ìseu BA... n„o seiî.

EF: [//Faz gesto de positivo com o

polegar para cima//.

EF: [//Toca a testa com

a m„o//.

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SP: [//Levanta

o dedo indicador, sorrindo e acenando afirmativamente para Imc//.

EF: [//Leva a m„o ‡ garganta//.

Iem: ìEu ia ganhar o Oscar... o Nobel... se eu soubesseî.

Todos: //Riem//.

SP: Est· vendo?

Iem: Mas a gente ia aos livros. Ent„o eu falava assim:

SP (para Imc): [T· aÌ //Aponta a boca e depois aponta a cabeÁa//

T· l· //Aponta a boca novamente// //Faz gesto de ìnadaî com as m„os//.

Iem: ìOlha seu BA... È um mistÈrio!î //Ri//.

CI: A gente conhece as palavras. A gente se lembra das palavras...

Iem: h?

CI: A gente conhece as palavras.

Imc: Claro!

CI: Mas n„o vem... a palavra! Mas conhece.

Imc: Conhece e pensa nela nÈ!

Como os sujeitos constroem referencialmente o conceito de que nas

afasias, o af·sico n„o consegue enunciar ñ falar, produzir, expressar ñ a

linguagem que est· preservada internamente ñ no pensamento, na mente, na

memÛria ñ a atividade ling¸Ìstica È correlacionada aos processos de memÛria,

de evocaÁ„o, de lembranÁa das palavras. As alteraÁıes de linguagem nas

afasias s„o, portanto, referidas como alteraÁıes de memÛria. A tÌtulo de

exemplificaÁ„o, foram selecionados alguns fragmentos.

Neste prÛximo trecho (CCA18), Iem retoma com o grupo a explicaÁ„o

dada ao sujeito BA sobre a din‚mica das alteraÁıes de linguagem nas afasias.

A afasia È referida como ìn„o lembrar maisî:

Iem: Olha... n„o È assim que o senhor teve assim um... levantou um belo

dia... encanou de n„o lembrar mais. N„o! Ele teve uma les„o cerebral...

isto perturbou a agilidade toda que ele tinha com as palavras nÈ? Houve

uma relaÁ„o de causa e efeito... que È ineg·vel.

Imc: [Hum hum.

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156

Nos dois fragmentos que se seguem ñ retirados do excerto CCA28 ñ

tanto os sujeitos af·sicos quanto os n„o af·sicos mobilizam o conceito de

afasia relacionada ‡ memÛria. No primeiro fragmento, NM comenta suas

dificuldades de linguagem apÛs a afasia: n„o lembro e daÌ a pouco lembro.

NM: Eu acho que quando eu tive no hospital... o derrame... eu n„o era

assim... eu n„o falava assim. Hora falo... hora n„o falo.

JL: [Ah„.

JL: Sei.

NM: Hora... hora... hora tem uma coisa aqui //Pega na garganta// que me

prende. Hora... fico fico rouca. Fico assim.

JL: Ah„.

NM: Eu n„o era assim. Depois comecei a ficar assim. Eu n„o sei. E agora o

que me... o que... o que me me //Pega na garganta// incomoda È isto.

JL: Ah„.

Iem: Que ‡s vezes a palavra sai e ‡s vezes n„o sai?

NM: …... ‡s vezes eu quero falar uma coisa e n„o lembro e daÌ a pouco

lembro!

JL: Mas a a antes... n„o... n„o... da... antes //3í// //Sorri diante da prÛpria

dificuldade//.

NM: //Aponta para JL e olha para Iem//.

Iem: Vamos l·! Vamos l·! … pra isso que serve...

JL: [Antes n„o acontecia isso?

Iem: //Faz sinal de positivo com o polegar erguido em direÁ„o a JL//. Isso...

seu JL!

MN: Antes de eu ter derrame... n„o...

Neste outro fragmento, Ijt comenta suas prÛprias impressıes acerca das

dificuldades de linguagem de JL, dificuldade de lembrar:

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157

Ijt: NÈ seu JL! Essa dificuldade de lembrar que o senhor: tem ‡s vezes de

trocar... n„o È que o senhor n„o sabe falar... o senhor sabe muito bem o

que o senhor quer falar tanto que o senhor... tanto que o senhor p·ra

de... nÈ... tanto que o senhor p·ra.

JL: [Sim... sei. Definitivamente.

Ijt: O senhor sabe que o senhor errou... o senhor p·ra: ìOpa! N„o era isso

que eu queria falar!î. O senhor sabe muito bem o que o senhor est·

falando.

JL: [….

3. O af·sico e o falante n„o af·sico idealizado

Nenhum de nÛs ñ sujeitos da linguagem e na linguagem ñ somos

falantes ideais em todas as situaÁıes de interaÁ„o ou nos diversos contextos

de nosso cotidiano. Diante da afasia, no entanto, os sujeitos af·sicos parecem

evocar esse car·ter idealizado de um falante perfeito que deixaram de ser. Os

exemplos que se seguem buscam ilustrar como os sujeitos trabalham na

construÁ„o desse sujeito falante ideal que s„o eles prÛprios, antes de se

tornarem af·sicos.

Tomo como exemplo o CCA01,5 quando os encontros do CCA

aconteciam em uma sala de aulas do Instituto de Estudos da Linguagem ñ IEL

ñ e a idÈia de se escrever um livro para divulgar as questıes da afasia e dos

af·sicos n„o era sequer cogitada. Desse encontro foi extraÌdo um fragmento

que nos remete a uma das formas pela qual o grupo vai se referir ‡ afasia: n„o

existe um falante ideal, embora os af·sicos se refiram a esse car·ter idealizado

da linguagem dos n„o af·sicos. A discuss„o gira em torno das reaÁıes das

pessoas af·sicas em situaÁıes sociais, as dificuldades de interaÁ„o e o

isolamento muitas vezes conseq¸ente. Iem questiona todos os participantes

sobre suas possibilidades de interaÁ„o com outras pessoas em seu grupo

social. A maioria evita contatos, alguns conversam apenas com quem sabe de

5 CCA01 realizado em abril de 1998, no qual estavam presentes os sujeitos SP, SI, CL, AG, Iem e Iic.

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seu problema e outros tÍm respostas lacÙnicas para contornar o problema e se

manter na conversaÁ„o.

CL: Mas eu fui... fui no a na festa... que que houve agora... eu fui.

Iem: E aÌ?

CL: Ent„o... eu fu pe... eu pro...curei „... ficar perto de uma „... senhora

velha que sabia que eu estava doente e eu falei sÛ com ela. Com os

outros eu n„o falei n„o.

(Iem questiona, ent„o, SP sobre suas possibilidades de interaÁ„o social.)

Iem: Seu SP... tambÈm?

SP: Bom... o u u ˙nico... ˙nico da da... baile... tudo isso aÌ... vou l· e la la mm

aa minha mulher vai... o filho... vai vai l·... mas a... festa... o a

Iem: [Reuniıes sociais?

SP: N„o... mm... mm.

CL: Eu num vou... nenhuma.

Iem: Mas reuni„o social È o quÍ... tambÈm? Pode ser uma festa em famÌlia...

nÈ? Pode ser aÌ... uma visita... a alguma pessoa... alguma pessoa que o

visita... enfim. Reuni„o de condomÌnio tambÈm È uma reuni„o social

enfim!

SP: E e e eu... tem uma coisa... mm gosto para quer... a hum È //Aponta para

sua boca// agora... agora.

Iem: Quando o senhor est· com a palavra... quando vai falar alguma coisa

numa reuni„o... ou com seu filho e sua esposa... ou entre algumas

pessoas amigas... vizinhos...

SP: [AÌ... aÌ t· certo... aÌ t· certo... mas a...

Iem: [AÌ o senhor conversa... tenta se fazer entender...

SP: Mas a a um pouco... depois... esqueci... È È „... como È? … eu eu... para

agora.

CL: Quando È... „... quando È a gente quer falar alguma coisa... num sai...

ent„o.

SP: [Justamente. E È po

pÛ... num sei.

Iem: E ‡s vezes È o quÍ? T· acabando um pouco a conversaÁ„o?

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SP: Ent„o vai vai la e de de falar sim... sim... n„o... n„o... n„o... sim... sim...

non... non.

Iem: [Fica mais

lacÙnico... assim?

SP: …... non... non... non.

Iem: Mas de toda a maneira est· ali na na conversa... est· ali na na

interaÁ„o...

SP: [Ah... sim... sim. …

lÛgico... È lÛgico...

(Iem discute, ent„o, com o grupo, a idÈia que muitas vezes È veiculada da

existÍncia de um falante idealizado.)

Iem: Olha... quer saber nÈ? Quer dizer... naturalmente as as dificuldades n„o

s„o sempre as mesmas nÈ... em todas as situaÁıes. Que restem...

Como a vi... como acontecia antes da vida de vocÍs... antes de ficarem

af·sicos nÈ? Havia situaÁıes tambÈm em que se falava com maior

desenvoltura ou com menos desenvoltura. … ou n„o È? Tem situaÁıes

por exemplo... que vamos supor... vai pedir aumento de sal·rio pro

chefe...

Todos: //D„o risada//.

Iem: ìN„o consigo falar!î. Vai pedir a m„o em casamento: ìAi... meu Deus...

n„o consigo falarî... nÈ! Assunto difÌcil... complicado nÈ... comove... „:

enfim... de s„o v·rias situaÁıes que fazem com que todo mundo que

fala... com problemas ou n„o... È: tenha maior ou menor desenvoltura

em diferentes situaÁıes. Esta È uma coisa nÈ?

SP: Ah È.

AG: ….

Iem: A gente n„o È assim um falante cem por cento em todas as situaÁıes da

vida nÈ? Agora... a gente tambÈm sabe que a fala È um meio usual de

comunicaÁ„o... TambÈm sabe nÈ?

SP: [Certo.

Iem: Isso È uma... È uma verdade a respeito das nossas comunicaÁıes... ‡s

vezes com dificuldades acentuadas de linguagem... por exemplo... a

gente sente sim nÈ... que... que a nossa possibilidade de... de inserÁ„o

ali naquele mundo... diminui... como por exemplo alguÈm que n„o fala

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uma lÌngua estrangeira... que est· num paÌs. Est· na R˙ssia por

exemplo... e n„o fala um ìaî de russo... se È que russo tem ìaî. NÈ?

Todos: [//D„o risada//.

No fragmento a seguir (CCA02), MS È quem mobiliza esta discuss„o no

grupo questionando as diferenÁas entre as caracterÌsticas das alteraÁıes de

linguagem dos outros af·sicos do grupo. Imc vai tecer alguns coment·rios

sobre as diferenÁas existentes entre as pessoas, independentemente da les„o

cerebral ñ e da afasia:

Imc: (...) NÛs n„o somos iguais. N„o somos iguais a ninguÈm. N„o tem um

rosto... nenhum rosto igual nÈ? Somos seis bilhıes de pessoas na Terra

e nenhum rosto igual... a n„o ser os gÍmeos... univitelinos... sei l· o quÍ.

Mas... as pessoas s„o diferentes... por que seriam iguais a partir de um

derrame?

MS: …! //Ri//. ….

Imc: Agora... precisamos entender esta diferenÁa em relaÁ„o ao que o senhor

era antes. Ent„o... antes o senhor tinha sua inteira capacidade... de

falar... de ouvir... de entender... de ler... quer dizer... o senhor tinha aÌ

sua inteira capacidade. Esta inteira capacidade È que foi abalada... nÈ?

Ela teve um transtorno aÌ... e que a gente est· tratando de ajudar o

senhor nesse sentido. Quer dizer... muitas vezes vocÍs pensam: ìah...

ser· que... bom... eu n„o entendo mais... eu n„o consigo falar como eu

falavaî... mas o pensamento //Aponta a cabeÁa// est· ali.

No prÛximo fragmento (CCA17), o grupo discute a quarta pergunta do

roteiro ñ Todas as pessoas af·sicas tÍm a mesma dificuldade para se

comunicar? Iem vai trazer para o debate o argumento de que as pessoas n„o

af·sicas tambÈm n„o tÍm a mesma facilidade para se comunicar, pois a

atividade ling¸Ìstica n„o È apenas determinada pela condiÁ„o estrutural do

cÈrebro, mas, sim, pelas condiÁıes de sua prÛpria produÁ„o: em que contexto

a linguagem ocorre, para quem se fala, de que se fala etc. Esse argumento

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apontado por Iem ñ a proximidade entre os contextos normal e patolÛgico de

fala ñ vai mobilizar CI, que conta ao grupo como os aspectos afetivos tambÈm

podem afetar a fala. CI, embora reconheÁa o argumento de Iem, reafirma sua

posiÁ„o sobre a relaÁ„o entre o comprometimento cerebral e a natureza das

dificuldades de express„o dos af·sicos. A discuss„o se mantÈm, com Iem

propondo ao grupo que tente refletir sobre a afasia como uma quest„o de

linguagem e n„o como um problema restrito ao cÈrebro lesado.

Iem: Deixa eu fazer uma pergunta com relaÁ„o a esse ponto nÈ?

LM: [//Ri, olhando para JB//.

Iem: Olha aqui... ela disse que a... a... as pessoas af·sicas elas n„o tÍm a

mesma dificuldade... nÈ? Elas n„o tÍm a mesma dificuldade porque

tambÈm as pessoas... n„o af·sicas e mesmo as af·sicas...

JB: [//Ri

novamente//.

Iem: ... n„o tÍm a mesma tambÈm... È... facilidade... as pessoas n„o... n„o...

agem da mesma forma com a... com a linguagem. ¿s vezes a gente age

de uma maneira boa num certo contexto e depois vai pedir aumento...

por exemplo... fica nervoso.... a fala tambÈm n„o sai nÈ?

CI: …!

JB: […!

Iem: N„o precisa estar af·sico nÈ... pra vocÍ ter esquecimento das palavras...

ficar perturbado com as palavras ou ent„o... n„o ficar satisfeito com

aquilo que falou nÈ?

JB: [….

CI: Depende quem interroga nÈ?

Iem: Depende quem interroga... depende com quem vocÍ fala... depende do

que vocÍ faz com a linguagem nÈ? Ent„o n„o È sÛ que as pessoas n„o

tÍm a mesma È... È... È ela... È interessante essa resposta dela

//Referindo-se ‡ resposta de MI, esposa de CI ‡ quarta pergunta//

porque nos leva pra um caminho que È o seguinte: as pessoas n„o tÍm

a mesma dificuldade... por quÍ? Porque tÍm idades diferentes... aÌ vai

dizer os livros e os compÍndios de neurologia... porque algumas cÈlulas

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se afetaram mais do que outras... quer dizer... uma parte do cÈrebro est·

mais afetada do que outra... quer dizer... a... a causa foi mais... da afasia

foi mais grave... foi menos grave n„o È? A pessoa reage de maneira

diferente com relaÁ„o aos problemas que tem. Quem fica muito

deprimido por exemplo... tende a ter um problema que parece que È

maior do que poderia ser na verdade n„o È? Mas isso tambÈm com

relaÁ„o ‡s pessoas que n„o s„o af·sicas... n„o È verdade? ¿s vezes...

por exemplo com... ‡s vezes estou melhor... ‡s vezes eu dou aula

melhor... ‡s vezes dou aula pior nÈ? ¿s vezes estou mais inspirada... ‡s

vezes estou menos inspirada... ‡s vezes vocÍ fala com desenvoltura

num lugar... aÌ vai contar uma histÛria cabeluda ou ent„o vai pedir um

aumento nÈ... vai fazer alguma coisa muito tensa nÈ... emocionalmente

tensa... vai pedir a m„o de alguÈm em casamento... que seja... tudo isso

faz com que a gente altere nossa forma de falar. Ent„o as pessoas em

geral... n„o tÍm a mesma facilidade nem a mesma dificuldade pra falar.

N„o seria diferente no caso da afasia.

(...)

Iem: Mas o que eu gosta... È... isso tudo nÛs vamos... seguramente tocar nÈ

no nosso livro. Mas o que eu tÙ propondo ao grupo... È que n„o deixe de

ponderar n„o È... a semelhanÁa tambÈm que isso tem... com contextos

normais de utilizaÁ„o da linguagem nÈ? Entendeu? h... e alÈm disso...

o fato de que muitas vezes as pessoas... af·sicas... tÍm mais dificuldade

do que outras pra falar... n„o porque sua les„o tambÈm È maior... mas

tambÈm porque a sua relaÁ„o com a afasia È difÌcil ainda! Ent„o a

pessoa que È deprimida por exemplo... tende ao silÍncio. Tende... tende

ao silÍncio.

JB: … isso mesmo!

Iem: Tende a ficar calada nÈ?

Imc: Mesmo a pessoa que n„o tem afasia.

Iem: h?

Imc: Mesmo a pessoa que n„o tem afasia e est· deprimida... ela tende ao

silÍncio.

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No prÛximo fragmento (CCA18), o grupo discute a import‚ncia da

convivÍncia do af·sico nas diferentes comunidades das quais faz parte. … o

que permite desenvolver um repertÛrio compartilhado que d· mais chances de

interaÁ„o ao af·sico. … nesse contexto que Iem retoma nossa postura de

falantes idealizados que tomam a linguagem como objetiva e transparente.

Iem: Ent„o n„o se pode esperar que por exemplo... a express„o verbal seja

verdadeira... seja sempre transparente... sempre objetiva. Ela n„o È...

em espÈcie alguma. E ela n„o È sobretudo quando as pessoas ficam

af·sicas. Quer dizer... a linguagem n„o tem assim esse poder de ser

sempre assim... objetiva... transparente... vocÍ entende? E h· outras

maneiras de se expressar que n„o apenas a fala. N„o È? A gente

deposita todas as nossas fichas... na fala. E numa fala muito idealizada.

E aÌ n„o consegue se entender n„o È?

No prÛximo trecho (CCA28), È Ijt quem formula a possibilidade de

ocorrÍncia de dificuldades de linguagem em contextos normais de fala.

Ijt (falando para NM): Agora... o que eu estou dizendo pra senhora È o

seguinte: claro que a senhora teve um episÛdio n„o... na... na... no

cÈrebro tal... Ûbvio que isso resulta em algumas dificuldades a mais.

Agora... È... a gente... talvez a senhora n„o se lembre que antes da

afasia... tinha momentos que a gente... tem momentos que a gente fica...

o cÈrebro est· cansado... a gente tem dormido mal ou ent„o tem muita

preocupaÁ„o... ou ent„o... vocÍ tem... tem momentos que o cÈrebro

troca coisas... a gente gagueja pra falar... n„o lembra palavras. Eu sou

ator nÈ? Ent„o... ‡s vezes tem que decorar textos e textos... de

p·ginas... p·ginas assim //Mostrando as p·ginas do livro do CCA que

est· em suas m„os//. E eu consigo decorar e falar bem. Agora nem

sempre isso acontece. Ent„o... no cotidiano È... a gente esquece! A

gente se esquece das palavras. Troca as palavras! Isso acontece

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normalmente. Agora... obviamente se vocÍ teve um... um... uma les„o

no cÈrebro... n„o h· como n„o ter dificuldade. ”bvio!

4. As implicaÁıes sociais da condiÁ„o de af·sico

As pr·ticas discursivas acionadas pelos sujeitos na co-construÁ„o

referencial do conceito de af·sico foram aqui categorizadas em relaÁ„o ‡s

formas de interaÁ„o do af·sico com outras comunidades de pr·ticas que n„o o

CCA, formas essas determinadas pelo grau de conhecimento que sujeitos

outros ñ mÈdicos e profissionais da sa˙de, familiares, amigos, vizinhos ñ tÍm ñ

ou n„o ñ sobre o af·sico.

4.1 Desconhecimento sobre afasia

No prÛximo fragmento (CCA06), o grupo postula o desconhecimento que

as pessoas em geral tÍm do que seja afasia e af·sico ñ raz„o pela qual os

sujeitos empreendem conjuntamente a elaboraÁ„o de um livro de divulgaÁ„o.

Iem: A experiÍncia do grupo aqui por exemplo... pelo que se tem dito... È que

normalmente as pessoas n„o sabem o que que È afasia

CI: […... n„o sabem.

Iem: NÈ? AtÈ daÌ È que surgiu a idÈia de fazer o o livro tambÈm nÈ? As

pessoas n„o sabem o que que È afasia... o que È uma pessoa af·sica.

CI: Noventa por cento da populaÁ„o n„o sabem o que È afasia...

Nos prÛximos trÍs exemplos (CCA05), os sujeitos af·sicos relatam o

afastamento de parentes e amigos e a perda de um papel social, conseq¸Íncia

do desconhecimento da comunidade sobre a afasia.

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CI: Foge... todo mundo foge!

Imc: S„o todas as perdas... que vai... //Faz gesto com a m„o, indicando uma

seq¸Íncia//.

CI: [Os parente... atÈ os parente foge...

Iem: … mesmo?

CI: …... atÈ os parente foge. SÛ pai m„e irm„os que n„o!

Imc: [Mas talvez fujam porque n„o

sabem lidar... quer dizer... tem um... nÈ...

CI: [Porque n„o sabem lidar. Ent„o quantos... quantos...

quantos... quantos af·sicos tÍm no Brasil?

Imc: [Dificuldades das pessoas

em lidar. As pessoas se distanciam.

CI: Quantos af·sicos... tÍm no Brasil?

Imc: [Muitos.

CI: TÍm no mundo?

Imc: Muitos.

CI: Tem muito. Tem... acho que... acho que de cinco a dez por cento... de

af·sicos...

Imc: Por isso È que È importante o livro nÈ?

Iem: [E ninguÈm fala sobre isso...

CI: NinguÈm fala sobre isso... ninguÈm fala nada!

EF: [A a a... //Com entonaÁ„o de concord‚ncia//.

(...)

CI: Minhas filhas... eu estava no Hospital das ClÌnicas... minhas filhas foram

no Hospital das ClÌnicas... depois sumiram um ano e meio.

EF: ‘u! //Ri//.

CI: Porque... È... È ficou com medo... porque: af·sico? Que È af·sico? AÌ... a

a recuperou... e tal... a a hora que eu prÈ... „... estava fazendo comida...

vieram comer!

EF: //Ri//.

JB: [//Ri//.

CI: Ficaram um ano e meio pra/

Imc: [Como a falta de informaÁ„o... … isso que vocÍ

est· chamando atenÁ„o nÈ?

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CI: [E os amigos //Faz gesto de ìafastarî//...

Iem: [Seus amigos.

CI: Perderam a comida... deixei de fazer feijoada... deixei de fazer tudo... aÌ

aÌ su sumiram.

Imc: [Deixaram

de freq¸entar a sua casa!

EF: //Acena afirmativamente com a cabeÁa//.

(...)

CI: Porque a casa È... vivia cheia de gente. Depois que teve derrame

cerebral: pchiu! //Com movimento r·pido da m„o esquerda da direita

para a esquerda//... sumiu!

No prÛximo trecho (CCA15), CI reitera em seu relato a quest„o de que o

desconhecimento sobre a afasia n„o È sÛ de leigos, mas de profissionais da

sa˙de, de Ûrg„os e instituiÁıes p˙blicas da sa˙de, no que ganha a ades„o do

grupo que aÌ tambÈm inclui os serviÁos especializados:

CI: Eu posso dizer o meu caso. … È eu faÁo cardiologia n„o È? Cada trÍs

meses eu consulto o cardiolÛgico... È È... cardiologia. E sempre tem um

„: um a sextoanista... e... de plant„o nÈ... pra pra atender e eu tenho que

contar TODAS VEZ eu tenho que contar TUDO que aconteceu comigo

//Pontuando a fala//.

Imc: … sempre um diferente?

CI: Sempre. Ele n„o lÍ.

Imc: A... n„o lÍ o que est· l· no prontu·rio.

CI: N„o lÍ. Pergunta: ìO quÍ que aconteceu?î //Imitando outra voz como se

fosse o mÈdico//. Ent„o eu vou explicando pra ele que que È... Ele n„o

sabe o que È afasia... n„o sabe o que que È a afasia... ent„o... a maioria

n„o sabe.

(...)

Iem: Bom... quer dizer... a afasia... ela ainda È bem desconhecida... mesmo

nos serviÁos especializados. N„o sÛ em geral as pessoas leigas n„o

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sabem bem o que È... como os serviÁos especializados tambÈm n„o

sabem... n„o sÛ o que È... mas tambÈm n„o sabem bem como enfrent·-

la. … isto?

CI: Estamos falando... estamos falando... a ieniÈssi... o ieniÈssi (INSS) n„o

sabe o que È afasia. … aposentado por hemiplegia... n„o na afasia.

CI: Ent„o... o o o oo oo o ministro da da da da PrevidÍncia... da Sa˙de

tambÈm... falou n„o sabe o que È afasia.

Imc: E n„o sabendo o que È... n„o sabe lidar com ela.

4.2 Desconhecimento sobre as formas de interaÁ„o com o af·sico

Mas o desconhecimento da afasia e do af·sico, como j· exposto aqui,

n„o se limita aos sujeitos leigos da comunidade ñ os profissionais da sa˙de

s„o tambÈm incluÌdos nesta categoria, o que determina sua forma de interaÁ„o

com os af·sicos. O prÛximo fragmento (CCA05) exemplifica essa quest„o:

CI: Porque È difÌcil a pessoa entender... ter paciÍncia... pra entender a gente

falar!

JB: [… isso mesmo!

JB: …! AÌ È //EntonaÁ„o de quem est· dando uma bronca e em seguida faz

gesto de corpo retraÌdo, fazendo gesto de ìsilÍncioî com o dedo

indicador esticado diante dos l·bios//.

EF: [F·sico! f·sico!

Iem: AÌ vocÍ fica assim //Fala para JB, imitando a postura de JB com o corpo

encolhido//.

EF: [F·sico ! F·sico! //Leva a m„o ‡ boca//.

Iem: Af·sico? Ent„o... n„o entende...

CI: N„o entende dificuldade! N„o tem paciÍncia pessoa pra entender o que

È af·sico. N„o tem... procurar descobrir... n„o tem. N„o tem! PaciÍncia

zero!

JB: ….

Iem: T·!

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CI: A pessoa tem... zero!

Imc: Mas n„o tem paciÍncia muitas vezes nem com a pessoa que fala um

pouco devagar... que s„o idosos nÈ.

CI: [Nem que È que È que recebe... que È

mÈdico... enfermeiro... n„o tem paciÍncia!

As formas de interaÁ„o dos af·sicos com a comunidade s„o

determinadas por essa condiÁ„o de desconhecimento acerca da afasia ñ n„o

conhecer a afasia implica n„o saber como interagir com o af·sico. A interaÁ„o

demanda a convivÍncia com o af·sico. O trecho que se segue (CCA18) ilustra

essa quest„o:

CI: Eu quero falar uma coisa. ENTRE af·sicos nÈ... eu eu consegui... quatro

pessoas nÈ... mesmo problema que eu tive... conversando com essas

pessoas... com dificuldade mas conversando com essas pessoas! …...

a... a gente co... se entendeu!

Imc: Hum hum.

CI: TÍm a mesma dificuldade que eu tenho.

Imc: Claro.

CI: A gente se entendeu com as pessoas. Mas com com a... o mÈdico... ou

com o paciente... ou ou com os outros... n„o consiga.

Iem: ‘ CI... vocÍ est· dizendo que mesmo o especialista se comporta como

um leigo?

CI: Isso //Fazendo gesto de ìn„oî com o indicador//.

Iem: Ele tem como assim um temor de falar com o af·sico.

CI: [N„o sabe... n„o sabe... quando ele/

Iem: [Ent„o ele prefere n„o

falar com ele.

CI: Quando ele... a aÌ... a gente... quando quando ele a quando aÌ a o a a aÌ

a gente descobre alguÈm que fale com af·sico... a esse alguÈm a... i... a

tem experiÍncia com af·sico.

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No prÛximo exemplo (tambÈm extraÌdo do excerto CCA18), uma outra

caracterÌstica de instituiÁıes p˙blicas de sa˙de ñ aliada ao desconhecimento

dos profissionais da sa˙de sobre a afasia ñ vai determinar tambÈm a forma e

as possibilidades ñ ou n„o ñ de interaÁ„o: o tempo restrito disponÌvel para a

consulta.

CI: Ih:: j· aconteceu comigo... eu fiquei muito chateado. NÈ? Horas pra falar

com o mÈdico. Quinze minutos falar com o mÈdico //Faz gesto como se

fosse o mÈdico lendo prontu·rio// ìbÈ rÈ rÈ È Èî. ìPamî //Gesto de

ìmandar emboraî//.

Imc: J· dispensou!

CI: N„o veio falar nada... nada. ìAlguÈm t· com ele?î. ìAh... minha esposa!î.

Nos exemplos que se seguem (CCA18), os sujeitos CI e SP relatam

experiÍncias bastante diferentes na interaÁ„o com mÈdicos especialistas em

cardiologia. CI freq¸enta os serviÁos p˙blicos, e o sujeito SP, serviÁos

particulares, provavelmente conveniados. O relato dos dois se d· no contexto

da discuss„o, pelo grupo, da quinta pergunta do roteiro ñ Pode-se falar com o

af·sico sobre suas dificuldades ou sobre o estado de sa˙de? ñ que vai

provocar duas direÁıes argumentativas diferentes. Ao ser formulada, a quest„o

pretendia responder ou refletir sobre o direito ou n„o do af·sico de ser

informado sobre sua condiÁ„o, implicando com isso o lidar com estigmas e

preconceitos. Mas CI inicia o debate por um outro ponto de vista: as pessoas

em geral, e mesmo alguns profissionais da sa˙de, ignoram o af·sico como

interlocutor, excluindo-o da conversaÁ„o por pressupor que, sendo af·sico, ìele

n„o sabe falar nadaî. Iat, que È fonoaudiÛloga, aponta uma situaÁ„o bastante

comum relatada pelos pacientes af·sicos, em que o mÈdico conversa com o

acompanhante do af·sico sem dirigir-lhe a palavra ou mesmo o olhar. CI se

identifica com essa condiÁ„o e relata como ele, por exemplo, ao perceber que

o mÈdico se dirigia apenas ‡ sua esposa, isolando-o totalmente durante as

consultas, conseguiu reverter essa situaÁ„o, exigindo que sua esposa

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aguardasse por ele na sala de espera e obrigando o mÈdico a interagir com

ele.

CI: A gente vai... vem... mÈdico de coraÁ„o nÈ? E... eu vou cada trÍs mÍs...

cada quatro mÍs eu vou fazer o exame de coraÁ„o.

Iem: Certo!

CI: Ent„o tem algumas... algumas pessoas af·sicas que n„o falam nada

nada nada e ninguÈm pergunta! A... a... a turma... muita gente participa

da da... do... do mÈdico... como È que chama o mÈdico?

Iem: [Cardiologista?

Iat: [Cardiologista?

CI: Cardiologista! Muita gente participa do cardiologista e n„o pergunta nada

pro af·sico. Eu... eu... eu achei inte... importante isso. Por quÍ? Porque

tem problema de afasia... aÌ ele n„o sabe falar nada! Somente com o

mÈdico ou estagi·rio que pergunta pra ele ou n„o pergunta.

Todos: //Calados//.

CI: //6í//. Interessante isso!

Iem: Ent„o s„o dois problemas. VocÍ est· falando de uma coisa o seguinte...

CI: […!

Iem: ...È ...È ....eu tÙ entendendo que tem duas coisas aÌ: O af·sico... mesmo

quando ele pode falar... consegue falar... ele fi... ele silencia?

CI: Silencia.

Iem: Ele prefere n„o falar... mesmo quando ele consegue falar?

CI: [N„o. Porque ninguÈm pergunta pra ele!

Iem: Porque tambÈm ninguÈm fala com ele?

CI: [NinguÈm pergunta!

Imc: [NinguÈm se interessa!

Iem: Porque tambÈm ninguÈm fala com ele... porque tem a dificuldade e aÌ

fica aquela coisa... ìbom... ent„o...î. N„o sabe o que falar.

CI: [Fala com outros mas n„o

fala com af·sico... ent„o fica quieto! E a acho que È importante falar

sobre o estado de sa˙de, nÈ? NinguÈm pergunta o estado de sa˙de!

Imc: An h„n.

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Iat: E muitas vezes... numa consulta... a gente vÍ tambÈm por exemplo... se

vai o marido que est· af·sico e a esposa... o mÈdico se reporta ‡

esposa... fala com a esposa: ìmas o seu marido... n„o sei o quÍ?î... e aÌ

ela responde por ele... a pessoa fica l·...

CI: [Isso! E n„o fala com o af·sico! …... e ele fica È....

„ ....

Imc: Fica mais calado.

CI: Eu cortei a esposa... eu cortei a esposa //Com gesto da m„o,

ìafastandoî// eu... eu falo.

Iem (para SP): [Viu... seu SP?

Imc (para CI): VOC quer falar nÈ?

SP: Hein?

CI: Falo com ele... porque a È... eu cortei a esposa. Minha esposa ia... ia

sempre l· no cardiologista. AÌ eu falei... È....

Iem (para SP): SÛ falavam com ela... n„o falam com ele //Aponta CI//.

CI: [N„o falam com ele. AÌ... cortei. AÌ È obrigado a

falar comigo!

O sujeito SP relata uma vivÍncia diferente da de CI em relaÁ„o ‡s

formas de interaÁ„o com profissionais da sa˙de. … importante ressaltar que nas

consultas mÈdicas na rede p˙blica nem sempre o paciente È atendido

seguidamente pelo mesmo profissional, o que dificulta a interaÁ„o, pois tanto o

mÈdico quanto o paciente s„o estranhos um ao outro, com poucas

possibilidades de construir uma convivÍncia entre si. Esse È o caso de CI. J·

SP freq¸enta sozinho consultas regulares com o mesmo mÈdico cardiologista,

o que determina outras formas de interaÁ„o.

SP: …... È... n„o a... esse hotel marcar l· uma //Gesto indicando fora da sala//

doutor Ta... deu.

Iem: [Isso. Ah„.

SP: Ent„o l·... È a a SA (esposa de SP) sÛ o telefone //Gesto de ìtelefonarî

com a m„o junto ‡ orelha// l· pa pa pa pa pa. … È...

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172

Iem: Ela marca?

SP: Ent„o l·... ela vou l·... È e n„o n„o foi ela sozinha... sempre sempre vai

embora... vou l·... vou l·. Ent„o... vai l· ele do o do coraÁ„o //Aponta

coraÁ„o// l· o o //Aponta abdÙmen// tudo tudo o l· e È È o ca ca

//Apontando o coraÁ„o// como È? //Olha para Iat e depois para Imc//.

Iat: [Cardiologista //Em volume

baixo de voz//.

Imc: Car-dio-lo-gis-ta.

Iat: [Car-dio-lo-gis-ta.

SP: d... saÖ //Tentando articular//. T· vendo... l·? //Rindo, aponta a boca, a

cabeÁa e a boca//. L· tudo mais... tudo tudo tudo. Quando vai l· Û

//Gesto de ler algo em um papel// t· Ûtimo. Pronto. Eu... È... n„o sei

//Gesto apontando a boca// mas tudo tudo vem... que vem na o... papel

nÈ È est„o tudo l·... //Gesto com a m„o sobre a mesa como se

mostrasse ìexamesî//.

Iem: O senhor... freq¸enta essas consultas sozinho?

SP: Sozinho //Gesto com a m„o indicando ìbastaî// sozinho... sozinho.

Iem: [SÛ com ele? AÌ ele pergunta

e o senhor tambÈm... n„o È sÛ perguntar nÈ... na verdade... n„o È sÛ

assim... perguntar. Conversar com o af·sico n„o È sÛ fazer perguntas

nÈ... ao contr·rio.

SP: Eu sempre l· com... brinca o //SI// e pronto nÈ.

Iem: O senhor se sente ‡ vontade...

CI: [Se sente bem nÈ? E consegue falar!

SP (para CI): …... justamente.

CI: E consegue falar! A a a a a o mÈdico que n„o d· moleza... ‘u! Esse eu

n„o falo com ele... ent„o dificuldade!

Iat: Mas pra qualquer um!

As pr·ticas de interaÁ„o s„o determinadas pelo conhecimento que o

interlocutor tem sobre a afasia e o af·sico, e tambÈm pelas possibilidades de

convivÍncia entre os interlocutores: a convivÍncia permite construir

conjuntamente um repertÛrio compartilhado de formas de express„o (verbal e

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n„o-verbal) que s„o reconhecidas e compartilhadas na comunidade. Os

sujeitos relatam pr·ticas de interaÁ„o no inÌcio de sua histÛria de afasia nas

quais os familiares, sem saber como proceder, exacerbavam as dificuldades

ling¸Ìsticas dos af·sicos. Os trÍs exemplos que se seguem (CCA18) ilustram

algumas pr·ticas de interaÁ„o dos sujeitos af·sicos com a comunidade.

No prÛximo fragmento, CI relata como sua esposa tomava seus turnos

de fala, falando por ele. O casal construiu, com a convivÍncia, pr·ticas de

interaÁ„o que restauraram o papel de CI como interlocutor nessa comunidade.

CI: Mas eu... a minha esposa nÈ... ela... ela falava comigo... e... e ela

entendia e j· fazia coisa! Eu falava: ìN„o n„o n„o... espera! Espera!

Iem: [Deixa eu me

expressar! //Ri//.

CI: Eu quero isso aÌ... mas vocÍ espera!

Iem: … isso!

CI: O... hoje ela ela espera eu falar e tudo. AÌ... ela sabe... o que eu quero

dizer. AÌ ela faz

Iat: [Foram os ajustes tanto teus nÈ... e dela tambÈm.

CI: …... ela queria saber... tchum tchum tchum. Ah...

Imc: Calma... calma... calma...

Iem (dirigindo-se mais a SP): Entendeu como È que È? Falar no lugar! A

pessoa demora pra falar? P· //Batendo o dorso de uma m„o na palma

da outra// pimba! Fala no lugar!

CI: [Falava no meu lugar!

CI: Eu ficava muito tra triste com ela... E hoje ela ela espera... eu falar tal.

AÌ...

Imc: VocÍ guardou o seu lugar ali nÈ? //Dando a m„o para CI,

cumprimentando-o//. JÛia!

No prÛximo fragmento, SP relata pr·ticas de interaÁ„o nas quais os

familiares tentavam adivinhar o que ele queria falar, dando v·rias alternativas e

impedindo-o de se expressar:

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174

SP: Porque... uma vez... l·... l·... È comigo nÈ //Faz gesto apontando para si

prÛprio// comigo. Ent„o... È... l·... a minha... como È... l·... num //Aponta

a boca// È... o... È... Est· vendo? O... È... d·... „... fa //Aponta a prÛpria

boca//.

SM: Professor?

SP: N„o n„o n„o... era na... na fami... famÌlia... famÌlia nÈ? //Fazendo gesto

circular com a m„o//.

Iem: [Ah... t·.

SM e Iem: //Trocam sorrisos//.

SP: L·... „... Ent„o... ela ela falava ìb„ ...ta ta ta taî //Marcando cada sÌlaba

com movimento da m„o, batendo//. Ent„o... ba... ent„o... espera l· //Faz

gesto com a m„o de ìesperarî// lal· lal·. Depois //Apontando a prÛpria

boca// falta... //Leva a m„o ‡ cabeÁa, ‡ boca e ‡ cabeÁa

sucessivamente// uma //Apontando a boca//.

Iem: Palavra? //Acena com a cabeÁa//.

EF: [//Acena com a cabeÁa// Palavra.

SP: Hum hum. Ela fo... ela ela for: ìN„o È essa t· n·? T·?î //Faz gesto com

os dedos mÈdio e indicativo estendidos e girando a m„o significando

ìtrocarî// ìN„o È ta r·?î //Repete o mesmo gesto de ìtrocarî// ìN„o È?

N„o È buuuu?î //Faz gesto indo para tr·s com o corpo e com a m„o

espalmada para frente e fazendo careta//. AÌ acabou!

Iat: Tentando adivinhar... seu SP?

SP: AÌ... n„o! //Fazendo gesto de ìacabouî//.

Iat: AÌ o senhor ficava... o senhor desistia nÈ?

SP: Ent„o... n„o! Tem... tem //Juntando os dedos num gesto significando

ìabsurdoî// //Ri// …... uma... era... casada com... o meu irm„o l·!

Iat: Sua cunhada! Cunhada!

Iem: [Ah... t·!

Iem: AÌ È difÌcil!

SP: Ent„o: ìP„u! P„u! P„u!î Est· vendo? …: ìN„o! N„o! N„o!î //Com gesto

acompanhando a fala// … NO!

Iem: … difÌcil falar assim nÈ?

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CI: Fica nervoso.

Iem: …... eu sei.

Iat: As pessoas n„o sabem como ajudar nÈ? N„o sabem... puxa... de que

forma nÈ?

SP: …... justamente! Ent„o... t· l·... porque ela... devagar nÈ? Devagar l·

//Gesto de ìesperarî//.

Iem: Devagar vai.

SP: Ent„o... ela fa t· espera t· a //Aponta a boca e depois a cabeÁa// era pÛf

//Gesto com os dedos de ìtrocarî// l· l·... pÛf //Repete gesto de ìtrocarî//

//Repete gesto de ìtrocarî// //Ri// Ent„o... era ent„o P” P” P” P” //Com

gesto de antebraÁo e m„o erguidos, movimentados para a direita e para

a esquerda indicando ìn„oî, ìchegaî//.

No prÛximo fragmento, o grupo tece coment·rios acerca da interaÁ„o do

af·sico com outros interlocutores. Para CI, tomar o af·sico como interlocutor

vai depender tambÈm de suas possibilidades de comunicaÁ„o, das dificuldades

ling¸Ìsticas do af·sico, da severidade da afasia ñ que ele denomina graus de

afasia. Em algumas circunst‚ncias, È importante a presenÁa de alguÈm que

possa ajudar o af·sico a se comunicar. Iem pondera que mesmo que se tenha

um interlocutor mediando a interaÁ„o do af·sico na comunidade, esse

interlocutor sÛ pode interpretar a fala do af·sico em relaÁ„o ao seu prÛprio

sistema de referÍncias: ele jamais ser· a voz do af·sico. Por isso, Iem ressalta

que a interaÁ„o deve sempre tomar o prÛprio af·sico como interlocutor.

CI: Dependendo do grau de afasia tambÈm nÈ? Depende. Porque tem

pessoas que n„o falam nada. N„o conseguem dizer. Ent„o... tem que...

uma uma alguÈm que teve junto com essas pessoas.

Iem: [VocÍ fala aÌ que ela n„o teria capacidade de se

expressar t„o bem... pra falar de seus problemas/

CI: [Tem... tem capacidade de

entender... mas n„o tem capacidade de falar. Alguma coisa... È... fala.

Ent„o È a gente que... acompanhante dele que entende.

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Iem: Mas È sempre uma interpretaÁ„o. Nunca que o acompanhante vai ser

assim um... uma espÈcie de ventrÌloquo.

CI: [Mas... ele...

CI: [Mas e ele conhece bem.

Iem: Conhece mais as pessoas...

CI: Conhece mais...

Iem: O jeito tambÈm... de se expressar...

CI: AÌ aÌ aÌ aÌ... a resposta minha t· certa //Apontando a folha com as

respostas escritas por sua esposa//.

Imc: Mas mesmo assim È importante que a pessoa se dirija ‡ outra pessoa...

e por aÌ vai. Sen„o...

CI: [Ah È. Sei.

CI: Porque... porque ‡ medida que vai //SI// com a pessoa...

Imc: [Isso.

CI: tranq¸ilizando a pessoa... vai dando... confianÁa... e a pessoa fala! Tem

hora que fala!

Imc: [Hum hum.

CI: Duas palavras... mas fala!

5. Linguagem, cÈrebro e cogniÁ„o

As pr·ticas discursivas aqui analisadas dizem respeito aos processos de

referenciaÁ„o mobilizados pelos sujeitos af·sicos e n„o af·sicos na construÁ„o

de objetos de discurso relacionados ‡ concepÁ„o de linguagem e cogniÁ„o e a

teorias sobre o funcionamento cerebral.

5.1 CÈrebro: um enigma

Embora com diferentes conhecimentos acerca do cÈrebro e de seu

funcionamento, tanto os sujeitos af·sicos quanto os n„o af·sicos compartilham

o ponto de vista de que o cÈrebro È ainda um enigma e que muitas questıes

ainda est„o sem resposta.

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No exemplo a seguir (CCA18), estava em discuss„o a quinta pergunta

do roteiro ñ Pode-se falar com o af·sico sobre suas dificuldades ou sobre seu

estado de sa˙de? Iem formula a posiÁ„o assumida pelo grupo ñ o

conhecimento deve ser compartilhado, mesmo que n„o se tenham todas as

respostas.

Iem: (...) Gente... o sistema nervoso humano essa coisa... o cÈrebro... È um

dos maiores enigmas que nÛs temos hoje em dia. … aquilo que

enlouquece os cientistas. N„o sabemos tudo. Sabemos algumas coisas.

Essas coisas que nÛs sabemos... as pessoas tÍm direito tambÈm de

saber do profissional.

EF: [Hum //Acena com a cabeÁa

concordando//.

Imc: Mm hum.

No fragmento a seguir (CCA21), o mesmo tema È mobilizado por SP,

que faz coment·rios sobre a capacidade de animais como o cachorro e o

macaco entenderem ordens verbais, por exemplo. Iem cita a capacidade do

papagaio de imitar a fala dos humanos, e se refere a essa capacidade

utilizando o termo ìfalaî.

SP: NÛs falamos ìpa pa paî... nÈ... e o cachorro n„o tem l·... È... mas a... a...

no... no... no longe l·... e... t·... au au au au au l·... na... na... t·... t· ...

//Aponta a orelha esquerda// no n„o sei l·. O o o macaco... tudo isso...

porque ele n„o n„o n„o est· falando //Aponta a prÛpria boca// nÈ?

Ent„o... nÛ... ele ele ele vÍ... o... o... as... la... ma... ele... ele //Faz gesto

de pegar algo com a m„o e levar ‡ boca//.

Iem: Mas ele faz associaÁıes... e tal.

SP: [Justamente.

Iat: Ele aprende pequenas coisas.

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Iem: [Ent„o... repare: Com um pouquinho //Faz gesto de ìpoucoî com os

dedos indicador e polegar// de massa cinzenta... olha quanta coisa ele j·

faz... faz atÈ muito mais.

SP: //Ri//.

Iem: Bom... poderÌamos fazer muito mais.

SP: //Ri//.

Iat: Provavelmente.

Iem: Mas estamos indo. N„o... um pouquinho sÛ de massa cinzenta... veja o

papagaio... j· sai falando... j· sai falando //Muda a entonaÁ„o,

reprovando o termo ìfalarî// enfim... j· sai imitando.

O grupo aceita os pressupostos de que alguns animais, mesmo tendo

bem menos tecido cerebral que os humanos (Iem usa o termo ìmassa

cinzentaî para se referir ao cÈrebro), conseguem aprender tarefas e

habilidades. Mas o cÈrebro humano È extremamente mais complexo e,

portanto, torna-se mais difÌcil entender seu funcionamento.

Iem (para SP): Com um pouquinho... um pouquinho sÛ de massa

cinzenta... ele j· faz isso! (referindo-se ao papagaio).

SP: Pois È.

Iem: Calcula nÛs... n„o... calcula N”S que temos mais... que fazemos mais

associaÁıes... temos realmente um sistema nervoso mais complexo...

tanto que n„o conseguimos entender perfeitamente o... como funciona .

Iat: Claro.

No prÛximo fragmento (CCA21), o grupo chega a um consenso em

relaÁ„o ‡ sexta pergunta do roteiro ñ Existe algum tratamento farmacolÛgico ou

cir˙rgico para melhorar a afasia? ñ assumindo a posiÁ„o de que n„o existem

nem medicamentos nem cirurgias para curar a afasia: trata-se de uma seq¸ela

com a qual as pessoas, atÈ o momento atual da ciÍncia, tÍm que conviver. O

cÈrebro humano e seu funcionamento ainda n„o s„o suficientemente

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conhecidos para serem manipulados por f·rmacos ou cirurgias. No entanto h·

muitas pesquisas em desenvolvimento que buscam compreender a din‚mica

do cÈrebro humano. Iem comenta que h· pesquisas sobre envelhecimento

patolÛgico, sobre a doenÁa de Alzheimer e sobre a doenÁa de Parkinson, e

mesmo cirurgias para controle da epilepsia, mas ressalta que nada disso È

afasia. O grupo compartilha o ponto de vista de que ainda n„o se conhece

suficientemente o funcionamento do cÈrebro para entender a linguagem, a

memÛria e suas alteraÁıes.

Iem: Mas... È... nada disso È afasia (referindo-se a outras patologias cujas

seq¸elas podem ser minimizadas com o uso de f·rmacos).

SI: //Acena afirmativamente com a cabeÁa//.

EF: [//Acena afirmativamente com a cabeÁa//.

Iat: [//Acena afirmativamente com a cabeÁa//.

Iem: NÈ? Nada disso È afasia nÈ? Nada disso por exemplo È... na verdade...

È... „... consegue curar ou entender nÈ... essas pesquisas... n„o

conseguem decifrar... ou ent„o... interpretar nÈ como È que... „... o

cÈrebro funciona nÈ para que a gente possa falar... memorizar...

esquecer... lembrar... etc.

5.2 CÈrebro e linguagem

Nos exemplos que se seguem, os sujeitos af·sicos ñ talvez por ser

consenso no grupo que a afasia implica a existÍncia de les„o cerebral ñ

pressupıem que a linguagem seja de responsabilidade exclusiva de um

cÈrebro Ìntegro. S„o v·rios os movimentos discursivos engendrados para

efetuar a construÁ„o conjunta da referÍncia de linguagem em relaÁ„o ao

funcionamento cerebral.

No prÛximo fragmento (CCA05), o grupo discute o argumento formulado

por CI ñ afasia È troca de neurÙnio ñ que reduz a afasia ñ e a linguagem ñ a

uma quest„o circunscrita ao cÈrebro, e a recuperaÁ„o torna-se dependente

apenas da substituiÁ„o de neurÙnios afetados.

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CI: N„o... a hora que souber o neurÙnio que foi... a a a aÌ n„o... aÌ n„o //Faz

ìn„oî com o dedo indicador//.

Imc: [Mas essa coisa que

a Iem falou... quer dizer: existem outras partes do cÈrebro que podem...

com tratamento... com a inserÁ„o do indivÌduo...

CI: [Afasia! …

neurÙnio! … neurÙnio! Trocou neurÙnio!

Iem: N„o! Olha... afasia n„o È sÛ uma quest„o de neurÙnio e cÈrebro...

Imc: [N„o!

Iem: NÈ? Por quÍ? Porque veja sÛ nÈ... a linguagem n„o est· sÛ no cÈrebro!

A linguagem... a Iff estava explicando tambÈm... est· no corpo nÈ... est·

na interaÁ„o com as pessoas! … claro que pra linguagem ser „...

adequada digamos assim... È tambÈm que o cÈrebro... È preciso tambÈm

que ele esteja... bom!

O ponto de vista de CI È sustentado pela literatura cientÌfica sobre as

afasias, profÌcua em postular a existÍncia de uma correlaÁ„o direta entre o

cÈrebro e as possibilidades de recuperaÁ„o, por exemplo. Iem e Imc, que n„o

concordam com a argumentaÁ„o de CI, buscam o consenso na perspectiva da

linguagem enquanto produto das interaÁıes humanas ñ e n„o produto apenas

de um cÈrebro Ìntegro.

No prÛximo fragmento (CCA21), os sujeitos af·sicos e n„o af·sicos

parecem ter posiÁıes divergentes sobre a linguagem ñ produto de ·reas

especÌficas do cÈrebro ou produto da interaÁ„o social?

Iem: A linguagem nossa sÛ depende daquela regi„o ali //Leva a m„o ‡

cabeÁa// do cÈrebro?

EF: //Acena afirmativamente com a cabeÁa//.

SI: //Acena afirmativamente com a cabeÁa//.

Iem: N„o.

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SI: //P·ra de acenar com a cabeÁa//.

Iem: Isso n„o È verdade. Depende do cÈrebro todo.

SP: Mas È tudo tudo tudo tudo tudo.

Iem: E... e depende de outras coisas que est„o fora do nosso corpo. A

linguagem depende de outras coisas tambÈm nÈ. Depende de nossa

interaÁ„o com as pessoas... n„o È?

No prÛximo trecho (CCA21), a discuss„o sobre funcionamento cerebral

e linguagem continua. Iem provoca o grupo, que se envolve na discuss„o sobre

as funÁıes de linguagem, memÛria e pensamento, defendendo a posiÁ„o de

que estas funÁıes n„o est„o circunscritas a determinadas regiıes do cÈrebro e

nem localizadas em uma cÈlula que poderia ser transplantada no caso de uma

les„o. E mesmo se isso fosse possÌvel, a linguagem e tambÈm a memÛria

dependem de outros fatores que n„o apenas os biolÛgicos ou org‚nicos. A

linguagem n„o depende apenas de um cÈrebro intacto, mas tambÈm de nossa

experiÍncia de vida, da afetividade, da relaÁ„o que estabelecemos com o

mundo e com as pessoas. A posiÁ„o de Iem ganha ades„o de todos do grupo.

Iem: T·. … que a gente est· falando por exemplo... de funcionamento do

cÈrebro (Dirigindo-se a SP, que falava sobre pesquisas ou cirurgias para

afasia realizadas nos Estados Unidos).

SP: Sei... sim... È //Aponta para testa//.

Iem: Ent„o... por exemplo... h· algumas ·reas do cÈrebro... que È chamada...

„... por exemplo... que est„o aÌ no sistema nervoso central... no cÛrtex

//Leva as duas m„os ‡ cabeÁa//

SP: [Justamente...

nÈ.

Iem: que... que È respons·vel... por exemplo... por coisas como linguagem e

memÛria... n„o È?

SP: Hum.

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Iem: H· outras ·reas do cÈrebro por exemplo... como as respons·veis pelo

movimento... que se chama sistema ou que tambÈm s„o funÁıes de

outros sistemas...

SP: [Certo... certo.

Iem: sistema nervoso perifÈrico por exemplo... que... È... tÍm muito mais

avanÁos. E sabe por que que È... tem muito mais avanÁos ? Porque n„o

toca... n„o toca... nem... n„o toca numa ·rea do cÈrebro //Olha para SP//

SP: [Certo //Leva a m„o

‡ cabeÁa//.

Iem: e n„o toca em funÁıes ligadas ‡ memÛria... ‡ linguagem... ao

pensamento... que dependem n„o sÛ daquela regi„o do cÈrebro //Leva a

m„o direita ‡ cabeÁa, olhando para SP//.

SP: [Exatamente.

Iem: mas que dependem da nossa experiÍncia de vida.

Iem: E n„o d· pra transplantar cÈlula... imagina que transplanta com isso

linguagem e memÛria... porque n„o d· pra trans... n„o d· pra transportar

a minha //Leva as duas m„os ao tÛrax// experiÍncia...

SP: [//D· risada//

Iem: a minha //Leva as duas m„os ao tÛrax// afetividade... o meu //Leva as

duas m„os ao tÛrax// temperamento... os meus //Leva as duas m„os ao

tÛrax// desejos... a minha //Leva as duas m„os ao tÛrax// vontade... os

meus //Leva as duas m„os ao tÛrax// sentimentos... pra vocÍ //Pıe a

m„o na cabeÁa de SP//.

SI, SM e SP: //Sorriem//.

EF e Iat: [//Concordam com a cabeÁa//.

Iem: E isto n„o est· marcado l· no DNA nÈ? Ent„o o cÈrebro È importante... a

biologia È importante.

Iat: [N„o est· na cÈlula.

Iem: Mas para resultar em memÛria e linguagem È preciso que eu tenha a

minha prÛpria vida

SP: [Ah... È... È...

SI e EF: //Acenam com a cabeÁa//.

Iem: de... È assim n„o de vinte e cinco anos... dos vinte e trÍs... nÈ... de uns

dezenove.

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SP: //Ri//.

Iem: Isso eu n„o posso transplantar. Eu n„o posso transplantar

personalidade... identidade... t· certo?

SP: ….

Iem: Ent„o... mesmo que isso fosse possÌvel... porque n„o È... È risÌvel falar

em transplante de cÈrebro nÈ? Mesmo que fosse possÌvel transplantar o

cÈrebro... transplantar uma parte

SP: [Certo.

Iem: l·... de uma parte que n„o est· lesada para aquela parte que foi lesada

na cabeÁa de outra pessoa... eu n„o vou estar transplantado

linguagem... consciÍncia... lembranÁa... memÛria... sentimento...

amizade... È... vida... vida pessoal... vida familiar.

SI e EF: //Concordam com a cabeÁa//.

Iem: Essas coisas n„o est„o localizadas l· na cÈlula... t· certo?

SP: [Hum.

EF: //Acena com a cabeÁa, concordando//.

Iem: A gente depende de um cÈrebro bom pra poder lembrar das coisas... pra

poder lembrar as coisas.

SP: [Sim sim sim.

Iem: Mas n„o est„o l·.

No prÛximo fragmento (CCA17), o grupo discute a resposta dada pela

esposa de CI ‡ segunda pergunta do roteiro ñ O que provoca a afasia? A

primeira parte da resposta È assumida pelo grupo: a afasia decorre de uma

les„o cerebral. Podemos observar que outros termos ñ acometimento,

alteraÁ„o cerebral, destruiÁ„o de ·reas cerebrais, morte de cÈlulas, prejuÌzo ñ

s„o arrolados para se referir ‡ les„o cerebral. Geralmente os sujeitos ñ

af·sicos ou n„o ñ tocam o lado esquerdo ou direito da cabeÁa com a m„o

quando se referem ao cÈrebro e ‡ les„o cerebral. A segunda parte da resposta,

porÈm, vai provocar polÍmica no grupo, pois nela a esposa de CI modaliza a

formulaÁ„o inicial de que a afasia È provocada por les„o cerebral e postula a

existÍncia de uma cÈlula que comanda a fala. Nos movimentos discursivos dos

sujeitos percebem-se seus ajustes e aproximaÁıes sucessivas na construÁ„o

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referencial das ·reas cerebrais da linguagem: n„o seria uma ˙nica cÈlula a

comandar a linguagem, mas sim, um conjunto de cÈlulas, um monte de cÈlulas,

uma regi„o, neurÙnios, um tecido ñ ìcomo se fala na neurologiaî.

Iem: Ta... ent„o tem isso: que a afasia decorre de uma les„o cerebral. ìOu

seja...î //Lendo//.

CI: ...ìou seja... uma cÈlula que comanda a fala //Aponta a garganta com o

dedo// È afetadaî //Lendo//.

Iem: T· certo!

LM: //Acena afirmativamente com a cabeÁa//.

CI: Ent„o... eu acho que t· certo!

Iem: Ent„o ela tem a idÈia È o seguinte nÈ? Que tem uma les„o cerebral

//Toca o lado esquerdo da cabeÁa com a m„o// portanto tem uma... essa

les„o cerebral implica tambÈm uma... um acometimento //Toca o lado

esquerdo da cabeÁa com a m„o// ou uma alteraÁ„o...

Iat: [PrejuÌzo.

Iem: ou uma destruiÁ„o daquelas ·reas //Toca o lado esquerdo da cabeÁa

com a m„o// daquela ·rea ali... do cÈrebro... que atua na express„o... na

produÁ„o da fala.

CI: [Certo.

Iem: Ent„o aquilo estando destruÌdo ou estando alterado pela les„o

cerebral... pela morte dessas cÈlulas por exemplo...

CI: [Isso!

Iem: Isso faz com que ... mas n„o È uma cÈlula sÛ nÈ?

CI: [N„o! … um monte de cÈlula.

Iem: ... um conjunto de cÈlulas... È uma regi„o! N„o È uma cÈlula sÛ... uma

cÈlula sÛ n„o faz nada na verdade! NÈ? Quer dizer... È um conjunto...

um tecido... como se fala na neurologia nÈ?

CI: [Um

conjunto.

Iat: [NeurÙnios nÈ?

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185

Em um outro trecho desse mesmo encontro (CCA17), os sujeitos

conversam sobre les„o cerebral e CI faz remiss„o a um ator que se tornou

af·sico apÛs ser ferido por arma de fogo.

CI: Ele n„o fala nada nada nada. Fisioterapeuta... tudo tudo... tem trÍs

mÈdicos. E n„o fala nada. Por quÍ? Porque o cÈrebro dele foi //Faz

gesto de tirar algo da cabeÁa// a parte do cÈrebro... foi perdida!

Iem: Na verdade foi assim... uma grande les„o que ele sofreu nÈ?

Iat: Ele perdeu mesmo //Faz gesto como se algo saÌsse da cabeÁa referindo-

se ‡ massa encef·lica//.

CI: Perdeu!

Iat: Massa nÈ?

Iem: T·.

CI: Agora se a a a se a se a... a... neurÙnio da fala... ele sÛ pode ter perdido!

A formulaÁ„o feita por CI ñ neurÙnio da fala... ele sÛ pode ter perdido! ñ

retoma a formulaÁ„o que j· havia sido recusada ñ uma ˙nica cÈlula

comandando a linguagem ñ e aponta para a instabilidade presente nos

processos de categorizaÁ„o.

5.3 CÈrebro: les„o e afasia

No trabalho dos sujeitos de co-construÁ„o referencial de afasia, a les„o

cerebral È constantemente evocada, uma vez que o grupo compartilha a

concepÁ„o de afasia que a toma como seq¸ela de les„o cerebral. No exemplo

a seguir (CCA15), os processos de referenciaÁ„o acionados pelos sujeitos

durante o relato de CI sobre sua trajetÛria desde a primeira hospitalizaÁ„o atÈ o

diagnÛstico tardio ñ feito apenas no segundo episÛdio cerebral ñ exibem as

v·rias formas pelas quais a les„o cerebral È predicada e categorizada. Os

sujeitos ñ af·sicos e n„o af·sicos ñ se revezam no uso de termos mais ou

menos tÈcnicos, acionando atividades de reformulaÁ„o ou modalizaÁ„o, a

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186

depender do interlocutor: derrame, derrame cerebral, acidente vascular,

sangue grosso, isquemia, embolia, episÛdio neurolÛgico, acidente vascular

cerebral, entupimento dos vasos da circulaÁ„o intra-cerebral.

CI: E e eu fiquei internado trÍs dias... o primeiro derrame que eu tive

//Mostra um dedo ñ o indicador//. AÌ tive o segundo... trÍs meses depois

//Mostra trÍs dedos// aqui... fui aqui... eu fui hospital daqui... aÌ

descobriram... a Unicamp descobriu.

Iem: E aÌ foi atr·s da causa do derrame cerebral ent„o... o que foi que causou

nÈ... o acidente vascular.

CI: […... isso.

CI: Era o sangue que tava grosso //Fazendo gesto com a m„o, fechando-a e

apertando-a//.

Iem: Exato nÈ... uma isquemia... uma embolia //Em intensidade mais baixa de

voz e dirigindo-se a Iat//.

CI: Eu n„o sabia que o sangue tava grosso. Eu... eu seis meses e n„o

sabia.

Iat: VocÍ n„o tomou nenhuma medicaÁ„o entre o primeiro e o segundo

porque n„o tinha um diagnÛstico.

Imc: [….

CI: [Pra sangue... nada!

Iem: …... ent„o ele n„o pode... n„o sabendo... n„o fazendo o diagnÛstico... ele

n„o pode prevenir... e aÌ aqui quando ocorreu quando ocorreu o

segundo episÛdio neurolÛgico como se fala nÈ l· no hospital... aÌ sim...

foi atr·s do diagnÛstico... neurolÛgico... mas tambÈm do diagnÛstico da

CAUSA nÈ... desse acidente vascular cerebral... isquemia... desse

entupimento dos vasos que que fazem a circulaÁ„o intra-cerebral nÈ... e

isso tem uma causa nÈ?

Tanto os sujeitos af·sicos como os n„o af·sicos invocam teorizaÁıes

sobre a din‚mica cerebral e a neurofisiologia da les„o cerebral e da afasia.

Nessa atividade referencial, v·rios movimentos discursivos dos sujeitos s„o

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187

acionados na busca da intercompreens„o dos fenÙmenos relacionados ‡

afasia.

No prÛximo fragmento (CCA02), por exemplo, MS faz um

questionamento acerca das diferenÁas de caracterÌsticas entre sua afasia e a

de outros af·sicos que participam do grupo: por que ele perdeu certas

capacidades ñ leitura ñ e CI, por exemplo, n„o? O grupo, mobilizado por MS,

vai construir conjuntamente a referÍncia do funcionamento dos processos

cognitivos a partir da formulaÁ„o de Imc, que usa uma met·fora para as

alteraÁıes sofridas com a les„o cerebral ñ portas fechadas ñ que dificultariam o

acesso ‡ linguagem e ‡ cogniÁ„o. O grupo sustenta o ponto de vista de que

diante da les„o cerebral n„o h· perdas, mas sim vias de acesso interrompidas,

conferindo um car·ter de transitoriedade ‡s alteraÁıes decorrentes.

MS: Agora... agora eu preciso perguntar a senhora... o meu amigo aqui

//Pondo a m„o no braÁo de CI//... ele n„o perdeu a a... ele n„o perdeu

a... a a

CI: [Conhecimento.

MS: …! Conhecimento... conhecimento! E eu perdi. Por quÍ?

Imc: O senhor acha que o senhor perdeu o conhecimento... ou o senhor acha

que ‡s vezes... chegar nesse conhecimento pode ser difÌcil? Por que ‡s

vezes... veja bem...

CI: [N„o perde. [Isso.

Imc: …...

CI: Porque n„o perde.

Imc: ¿s vezes ele est·... esse conhecimento t· l· nÈ... dormindo //Faz gesto

com as duas m„os juntas tombando a cabeÁa sobre elas//... est· l·...

passivo e a gente n„o tem acesso a eles. N„o consigo ter acesso. …

como uma porta que eu n„o consigo abrir... mas se eu abro... a coisa

est· l·. Ent„o... o que que a gente faz aqui em grupo e nas terapias

individuais? Ajuda vocÍs abrirem essa porta. Entendeu? Quer dizer... o

conhecimento... a palavra est· l· //Aponta a cabeÁa// vamos dizer. Mas

o senhor... o senhor n„o consegue dizÍ-la... mas ela est· l·!

(...)

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188

Imc: A portinha l·... fechada... nÛs temos que abrir essa porta!

MS: … a portinha... a portinha.

CI: Est· fechada. Mas abre... abrir a porta. Abre a porta!

Todos: //Risos e sobreposiÁ„o de vozes//.

Imc: Abre a porta //Rindo//.

Iic: Abre a porta eu quero entrar //Rindo e com entonaÁ„o de voz de quem

pede ajuda//.

Nos dois exemplos que se seguem (CCA05), CI apresenta sua teoria

sobre a din‚mica cerebral nas afasias: morte, troca e substituiÁ„o de

neurÙnios.

No prÛximo trecho, CI comenta o relato de um aviador ñ af·sico e

hemiplÈgico ñ no livro O af·sico, e È nesse contexto que ele se refere ‡ afasia

e ‡ les„o cerebral:

CI: Hemiplegia... hemiplegia È È È um problema... È È È do corpo humano!

Hemiplegia n„o È do cÈrebro! Porque os neurÙnios foram trocados... nÈ?

Tem muitos... milhıes de neurÙnios. Morreu alguns nÈ porque nÛs

tivemos les„o cerebral morreu alguns mas foram substituÌdos. Ent„o

ninguÈm sabe que foi. Nem mÈdico sabe o neurÙnio. Est„o estudando.

Os mÈdico est„o estudando pra descobrir o dia que vai ser... o ano que

vai ser... o ano que vai ser pra saber o neurÙnio que substituiu e

trabalhar. Vai demorar muitos anos. Mas v„o descobrir!

No prÛximo trecho, os sujeitos discutem a pertinÍncia ou n„o de

informaÁıes de ordem cientÌfica sobre o funcionamento cerebral no livro do

CCA. CI explicita mais uma vez sua formulaÁ„o sobre a neurodin‚mica das

afasias. Os sujeitos JB e EF acham graÁa nas formulaÁıes de CI, enquanto

Iem e Imc acionam outros pontos de vista como plasticidade cerebral e

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interaÁ„o, que estendem a noÁ„o de afasia para outras categorias que n„o a

de les„o cerebral irreversÌvel.6

EF: A... a! //Apontando no livro que tem nas m„os alguns trechos sobre o

funcionamento do cÈrebro//.

Iem: O senhor acha que vai um uma parte do livro sobre isso? //Dirigindo-se a

EF//.

CI: [Vai... vai...

Iem: Falando sobre o cÈrebro... como ele funciona...

EF: [A... Ù... Ù!

CI: NÛs sabemos... nÛs sabemos que perdemos neurÙnios nÈ... ninguÈm

sabe, o mÈdico nenhum n„o sabe... os cientistas nenhum que neurÙnios

perderam. NinguÈm sabe... o mundo inteiro n„o sabe...

EF: [//D· risada//.

JB: //Ri//.

CI: Est„o descobrindo nÈ? Tem tem tem cientista que est· descobrindo...

pra descobrir que ne ne ne neurÙnios perderam!

Iem: Mas tem coisa importante que tem que saber tambÈm... saber por quÍ?

CI: Agora nÛs sabemos que perdemos neurÙnios, porque nÛs temos al al al

al o braÁo //Mostra o braÁo direito//... a perna //Toca a perna direita// mas

que ne ne ne ne normal. Mas n„o funciona.

JB: [//Ri//.

CI: Por que n„o funciona? Por quÍ? NeurÙnio que... È È È È neurÙnio... que

trocou... neurÙnio que È È È de gente de... crianÁa nÈ! NeurÙnio trocou!

AÌ vai muitos anos pra educar neurÙnios!

No prÛximo fragmento (CCA17), CI retoma a mesma argumentaÁ„o

sobre a din‚mica cerebral, postulando a morte e a substituiÁ„o de neurÙnios

nas afasias.

6 Ver em 5.4.

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CI: E outra! Foi substituÌda a cÈlula... mas ninguÈm sabe o que que foi

substituÌda. NinguÈm sabe!

Iem: Como assim... foi substituÌda?

CI: Porque a... a... a les„o cerebral È... morre neurÙnio... aÌ entra outros

neurÙnios. Mas ninguÈm sabe que neurÙnio que entrou porque... um È

crianÁa nÈ? N„o fala tal... e e tem tem um cÈrebro! AÌ depois... vaÌ

descobrindo e tal... nÛs temos dificuldades comeÁo de... derrame nÈ?

VocÍ lembra nÈ? Como È que eu tinha de... n„o falava nada... tal... aÌ

depois o tempo... È... falando... tal... melho melho melhoria que n„o

sei...tem neurÙnio que...

5.4 Plasticidade cerebral e afasia

O cÈrebro È geralmente categorizado pelos sujeitos af·sicos como uma

estrutura rÌgida, passiva e est·vel, formada por neurÙnios que s„o

irreversivelmente destruÌdos pela les„o cerebral. J· os sujeitos n„o af·sicos

referem o cÈrebro como um sistema din‚mico, ativo e flexÌvel, com capacidade

de readaptaÁ„o e evoluÁ„o mesmo diante de alteraÁıes de sua estrutura. Os

af·sicos, leigos que tomam contato com as afasias e com todo um cabedal de

informaÁıes sobre questıes a elas relativas a partir de seus

comprometimentos neurolÛgicos e de contatos com todo um metadiscurso ou

pr·ticas clÌnicas em geral tradicional, inicialmente levam em conta apenas os

fatores biolÛgicos quando argumentam sobre as possibilidades de reabilitaÁ„o.

Os pesquisadores-membros do CCA, por sua vez, ressaltam a existÍncia de

uma profÌcua interaÁ„o de nossas aÁıes no mundo com a din‚mica do

funcionamento cerebral. S„o esses movimentos discursivos que

exemplificaremos a seguir.

No prÛximo fragmento (CCA05), os sujeitos discutem a din‚mica do

funcionamento cerebral. CI argumenta que na les„o cerebral se perdem

neurÙnios, perda que ele considera de certa forma irreversÌvel. Iem contra-

argumenta com a idÈia de plasticidade cerebral. EF parece apoiar a posiÁ„o de

CI, e Imc sustenta a argumentaÁ„o de Iem. O grupo n„o chega a um consenso.

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Iem: Ent„o uma coisa importante È saber ent„o... como o cÈrebro funciona.

De que maneira o... o pro... de que maneira a les„o cerebral afeta o

funcionamento do cÈrebro...

CI: Isso È È importante! No livro...

Iem: [Agora n„o sÛ que neurÙnio È perdido. TambÈm

tem uma informaÁ„o importante... que eu acho que È menos sabida do

que essa... que... que È o seguinte: o cÈrebro tambÈm se regenera!

CI: [N„o! NeurÙnio trocou! Trocou!

CI: […. Trocou.

EF: [‘... Ù!

Iem: N„o È sÛ que o cÈrebro fica alterado e morto! NÈ... morreu neurÙnio!

Ele...

CI: [Ih! //Faz gesto estalando

os dedos//... Bilhıes e bilhıes deÖ aÌÖ e...

Imc: Morreu aqui e ali...

Iem: Ele se regenera! Ent„o tem muito... inclusive atÈ mÈdico que acha que

morreu pra sempre! A pessoa n„o se recupera...

EF: [‘ Ù Ù...

CI: [N„o! N„o! //Fazendo gesto de ìn„oî com o dedo

indicador esticado//. NÛs... nÛs trocamos neurÙnio! Agora... ninguÈm

sabe que neurÙnios que perdemos.

Iem: [Ah... bom!

Imc: Mas importa saber qual È o... nÈ? VocÍ acha que importa muito isso CI?

CI: N„o... a hora que souber o neurÙnio que foi... a a a aÌ n„o... aÌ n„o //Faz

ìn„oî com o dedo indicador//.

Imc: [Mas essa coisa que a

Iem falou... quer dizer: existem outras partes do cÈrebro que podem...

com tratamento... com a inserÁ„o do indivÌduo...

Os dois exemplos que se seguem foram extraÌdos do mesmo encontro

(CCA21), com o grupo envolvido em uma discuss„o sobre tratamento e cura da

afasia.

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No prÛximo fragmento, a posiÁ„o dos sujeitos af·sicos sobre a din‚mica

cerebral ñ como a irreversibilidade da les„o cerebral ñ È evocada por Iem para

justificar a posiÁ„o assumida por EF: n„o h· cura nem melhora da afasia.

Iem: VocÍ entende como È que È. Que que È cura... que que È melhora nÈ?

Agora o senhor //Aponta para EF// est· dizendo que do ponto de vista do

que a gente conhece sobre neurologia... neuropsicologia... n„o h· cura...

EF: [Cura.

Iem: Porque n„o h· uma alternativa... nÈ... para a morte de tecido cerebral

que acontece //Aponta a parte superior da cabeÁa// na les„o cerebral. …

isto nÈ?

EF: [//Concorda com a cabeÁa//. ‘.‘. [//Leva a m„o ‡

cabeÁa//.

Iem: Quer dizer... n„o... n„o se altera esse quadro lesional... digamos assim...

que provoca como seq¸ela

EF e SI: [//Concordam com a

cabeÁa//.

SP: [Certo... certo...

Iem: ‡s vezes dificuldades para falar... ‡s vezes dificuldade para entender a

fala... ‡s vezes dificuldade para se movimentar... para se expressar

gestualmente... È ou n„o È?

SP: [Certo.

EF: //Concorda com a cabeÁa//.

No fragmento seguinte, o grupo parece ter construÌdo um ponto de vista

consensual sobre o funcionamento cerebral ao concordar com as formulaÁıes

de Iem sobre a plasticidade cerebral, n„o condicionada apenas aos fatores

biolÛgicos e neurofisiolÛgicos, mas sim determinada por nossa forma de agir no

mundo social.

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Iem: O que que pıe o cÈrebro pr· funcionar? NÈ? A gente... estando na vida

completamente... nÈ?

EF: [… //Concorda com a

cabeÁa//.

SI: [‘... Ù //Concorda

com a cabeÁa//.

Iem: Vivendo com as pessoas... trabalhando... botando a cabeÁa pra

funcionar. … isso que faz com que uma, uma crianÁa se desenvolva em

termos cognitivos... que faz a gente poder... sempre... se superar... ou

ent„o... ter alternativas para resolver um problema.

SP: [Certo.

No prÛximo fragmento (CCA25), os sujeitos se mobilizam para

responder ‡ sÈtima pergunta do roteiro ñ Qual È o momento mais

recomend·vel para dar inÌcio ao acompanhamento terapÍutico de um af·sico?

ñ e apontam, em sua argumentaÁ„o, alguns prÈ-construÌdos acerca das

possibilidades de recuperaÁ„o do cÈrebro ñ e do af·sico.

Iem: Tem algum momento recomend·vel... para dar inÌcio ao

acompanhamento terapÍutico? //Olha para o grupo//. …... qual que È o

momento recomend·vel?

CI: A parte clÌnica est· liberado deve ser... deve ser //SI por sobreposiÁ„o

de vozes//.

Iem: SI... seu SP... concordam com isso? Ou deve esperar seis meses como

na maioria das vezes nÈ/

CI: [N„o.

Iem: para ver a estabilidade do quadro neurolÛgico... tal... n„o.

CI: [N„o n„o. Tss... tss.

Iem: Hein? Como È que essa pessoa fica os seis meses nÈ... muitas vezes. …

uma batalha nÈ?

CI: [….

CI: VocÍs dizem seis meses nÈ?

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Iem: N„o... eu estou...

CI: [//Ri//. VocÍs dizem...

Iem: [Eu estou me lembrando sabe do quÍ? De coisas que eu

escuto nÈ? Escuto... escuto ‡s vezes de mÈdicos... ‡s vezes de

fonoaudiÛlogos. ¿s vezes eu leio nos livros... sabe os livros de terapia...

terapÍutica?

Iat: [Porque... [Mas tem uma coisa com os

seis meses nÈ?

Iem: ?

Iat: Tem uma coisa com os seis meses... que os mÈdicos acham... quer

dizer... os estudos... alguns estudos... do jeito como eles fazem os

estudos... que seis meses... È o tempo pro cÈrebro se recuperar sozinho.

Iem: Mas a intervenÁ„o terapÍutica È terapia pra pessoa ou È terapia no

cÈrebro?

CI: ….

Iem: Qual È o lugar da... vocÍ entende... quer dizer... qual È o mÈrito... a

funÁ„o... de uma... de uma... de um acompanhamento terapÍutico?

Melhorar a vida da pessoa... ajud·-la a superar as suas dificuldades...

que s„o imediatas... n„o v„o esperar seis meses. N„o v„o esperar o

cÈrebro se... enfim... arranjar... se movimentar.

Imc: Tem uma coisa... uma coisa relaciona-se com a outra.

Iem: [Exatamente.

Imc: N„o È uma coisa... ou outra! //Fazendo gestos com as m„os, marcando

dois lugares distintos//.

O grupo conclui que os fatores determinantes do encaminhamento ou

n„o do af·sico para tratamento (isto porque o grupo assume que nem todos os

af·sicos s„o encaminhados para reabilitaÁ„o) est„o geralmente associados ao

conceito que aquele que faz o encaminhamento ñ o mÈdico, por exemplo ñ tem

sobre o funcionamento cerebral. Se a reabilitaÁ„o do af·sico for reduzida ‡

recuperaÁ„o do cÈrebro enquanto les„o cerebral e condicionada a certas

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crenÁas7 como, por exemplo, a existÍncia de um perÌodo de ìrecuperaÁ„o

espont‚neaî ñ que corresponderia aos seis primeiros meses apÛs o AVC e que

totalizaria as possibilidades de recuperaÁ„o do cÈrebro ñ, qualquer outra forma

de intervenÁ„o terapÍutica ser· desconsiderada.

6. Cura

A sexta pergunta do roteiro ñ Existe algum tratamento farmacolÛgico ou

cir˙rgico para melhorar a afasia? ñ vai provocar no grupo uma importante

discuss„o acerca de questıes que, alÈm de polÍmicas ñ e dolorosas ñ s„o

pouco enfrentadas no universo das pesquisas e estudos sobre afasias e

af·sicos: cura e melhora.

A maioria dos af·sicos que freq¸entam o CCA ñ e talvez isso possa ser

generalizado para muitos outros af·sicos ñ parece ter uma expectativa de cura

da afasia: voltar a falar, a conversar, a se comunicar, a se expressar, a dizer de

si e do mundo da mesma forma como faziam antes da les„o cerebral e da

afasia. A noÁ„o de cura ñ como processo de erradicaÁ„o de um mal ñ È

atravessada pela noÁ„o de melhora ñ que implica evoluÁ„o, progress„o,

recuperaÁ„o de uma condiÁ„o anterior ñ e, por isso, s„o conceitos que fazem

parte de uma mesma rede de significaÁıes. O grupo consegue chegar a um

consenso sobre a noÁ„o de cura. O conceito de melhora da afasia, no entanto,

talvez por ser construÌdo a partir de sistemas referenciais muito distintos ñ o

dos sujeitos af·sicos e o dos sujeitos n„o af·sicos ñ gera maior instabilidade.

As pr·ticas discursivas aqui analisadas dizem respeito, portanto, aos

processos de referenciaÁ„o mobilizados pelos sujeitos do CCA na construÁ„o

de cura e melhora da afasia.

7 ìDurante os seis primeiros meses que se seguem ao AVC a parte lesada do cÈrebro procura sarar. … o que se chama de perÌodo de ërecuperaÁ„o espont‚neaí. Mostra a experiÍncia que os pacientes se saem melhor quando tratados pela foniatria nesse perÌodo. Deve-se porÈm ter em mente que grande parte da recuperaÁ„o da linguagem depende do processo de cura do cÈrebroî (Sarno, J. & Sarno, M. T. Derrame: tratamento e prevenÁ„o, p.1977, p.100). ìDevemos lembrar que o foniatra n„o pode fazer nada mais do que assistir processos naturais, pois o grande determinante do grau de retorno da funÁ„o da fala È a cura natural da ·rea lesada do cÈrebroî (Ibidem, p.102).

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6.1 Afasia: os sentidos de cura e melhora

Nos fragmentos que se seguem (CCA21), a quest„o proposta pelo

roteiro tinha por objetivo discutir a existÍncia ou n„o de tratamento

farmacolÛgico e cir˙rgico para as afasias, o que fica inicialmente explicitado por

Iem com o uso de um hiperÙnimo ñ remÈdios ñ que inclui comprimidos,

c·psulas, medicamento e cirurgia na mesma categoria. EF È veemente em sua

negativa: …... N„o... n„o. Afasia... n„o. O que EF enuncia È, provavelmente,

uma negativa ‡ proposiÁ„o feita ñ n„o existe tratamento farmacolÛgico ou

cir˙rgico para as afasias. Mas duas reformulaÁıes de Iem da proposiÁ„o inicial

ñ Ent„o afasia n„o tem cura? N„o melhora? ñ v„o dar outra direÁ„o

argumentativa ‡ fala de EF, e o grupo passa a discutir conceitos de cura e de

melhora em afasia.

Iem: Muito bem. Existe algum tratamento farmacolÛgico nÈ... ou seja...

remÈdios nÈ... falando comprimido... c·psulas... medicamento... ou

cirurgia... para melhorar a afasia?

EF: …... n„o... n„o //BalanÁando negativamente a cabeÁa//.

Iem: Que que... qual a resposta aÌ?

Iem: O senhor... n„o. Vamos ver o que ela respondeu aqui //Procurando as

respostas dadas ao roteiro pela esposa de CI, MI//.

EF: Afasia... n„o.

Iem: Vamos l·. T·. Ent„o afasia n„o tem cura?

EF: //Acena negativamente com a cabeÁa//.

Iem: N„o melhora.

EF: //Acena negativamente com a cabeÁa//.

Iem: S„o duas coisas diferentes nÈ? Falar que a afasia n„o tem cura e falar

que a afasia n„o melhora... n„o s„o coisas diferentes?

EF: //Acena afirmativamente com a cabeÁa//.

Iem: A... a pessoa melhora da afasia? //Dirigindo-se para EF e acenando

afirmativamente com a cabeÁa e fazendo ìpromptingî do fonema

/m/):mmm...

EF: N„o.

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Iem: [Melho... n„o melhora?

EF: //Acena negativamente com a cabeÁa//.

Iem (para EF): Por exemplo... o senhor n„o melhorou nada desde quando

ficou...

EF: //Faz gesto com a m„o de ìmais ou menosî//.

Iem: Pensa um pouco. Pensem em vocÍs. Pensem na experiÍncia que vocÍs

tÍm nÈ? Como È que vocÍs... È.... que tipo de... de problema vocÍs

enfrentavam ASSIM que sofreram derrame cerebral ou traumatismo...

enfim uma seq¸ela... que se depararam com algum tipo de seq¸ela de

les„o cerebral nÈ? VocÍs... È... melhoraram? Melhorar significa assim...

Û bom È... evoluÌram nÈ? Melhoraram?

SP: //Rindo//... N„o sei... o a... o o... como È? …... porque... È du È mas a a

SA SA SA (fala o nome de sua esposa trÍs vezes) vai mas o... È... mas

//Faz gesto com a m„o esquerda subindo a palma em degraus// mas

acham sempre a... a... t· //Aponta para fora// vocÍ... o outro l·... tem...

n„o sei.

Iem: T·. Algumas pessoas comentam que o senhor melhorou por exemplo...

que acham que o senhor melhorou... que n„o falava nada...

SP: […... È... justamente.

Iem: ... por exemplo... e depois passou a falar... lembra de um depoimento

que deu o CI nÈ... por exemplo... que n„o falava nada passou a falar...

mais... tal.

EF declara n„o sÛ que n„o existe cura para a afasia, como tambÈm que

ele n„o vÍ melhora em seu quadro af·sico, discordando da posiÁ„o de Iem. A

fala de EF durante a discuss„o sobre a expectativa de existir um remÈdio que

pudesse ìcurarî a afasia parece emblem·tica de sua posiÁ„o sobre o

significado de melhora: retornar ‡ condiÁ„o de falante anterior ‡ les„o cerebral

e ‡ afasia. Melhorar significa ìn„o ser mais af·sicoî.

Iat: E mesmo... n„o È Iem... n„o tem um remÈdio que de repente vocÍ tome

e comece a falar de novo... como vocÍ falava.

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EF: //Concorda com a cabeÁa e faz gesto com a m„o//.

SP: … lÛgico. … lÛgico. //Ri//.

Iem: Por exemplo... coloca

Iat: [Ou uma cirurgia nÈ?

Iem: T·. … isto.

Iat: [Tem muita gente que acredita. ¿s vezes as pessoas chegam

SP: [N„o n„o n„o n„o.

Iem: Sem d˙vida. Tem algum remÈdio para curar isto? Como se fosse uma

gripe.

Iat: […... e fala assim: ìN„o tem um

remÈdio para eu falar de novo? Amanh„ eu vou acordar... vou tomar

esse remÈdio e vou estar falando de novoî.

Iem: H· uma expectativa... da gente... eu acho que da gente n„o È... que a

medicina... a medicina... n„o È... possa resolver problemas... „...

nossos... desta forma: tomando um remÈdio ou fazendo uma cirurgia.

Para muito caso... n„o sÛ a afasia nÈ... mas para muitas outras... outras

coisas que afligem a gente... no campo tambÈm da sa˙de... a medicina

tambÈm n„o resolve tomando... dando... nos dando um comprimido ou

um remÈdio ou fazendo uma cirurgia. H· in˙meras outras dificuldades

de sa˙de tambÈm... n„o sÛ de sa˙de mas tambÈm... „... decorrentes de

les„o cerebral como seq¸elas por exemplo... que aÌ j· n„o pode falar

que È um mal de sa˙de nÈ... „... que... que... que nÛs apresentamos...

que nÛs temos... que nÛs temos que conviver com elas... porque a

medicina ainda n„o nos... È... auxilia nesse campo... ou seja... n„o

erradica... o problema que nÛs temos... o problema de sa˙de que nÛs

temos... È ou n„o È? Como se fosse uma febre... como se fosse uma

gripe.

EF: [… //Acena com a cabeÁa//.

SP: […. //Ri//.

Iem: Toma um remÈdio... uma aspirina e... //Estala os dedos// boa. E

melhorou. E isso por conta de quÍ?

SP: [//Ri//.

EF: Falar... falar... falar.

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¿ quest„o inicial ñ Existe tratamento farmacolÛgico ou cir˙rgico para as

afasias? ñ seguem-se v·rios desdobramentos que v„o sendo expostos ao

longo do debate: a afasia n„o tem cura; a pessoa melhora da afasia; melhorar

significa evoluir; melhorar significa n„o falar nada e passar a falar; o que È que

melhora, quando melhora; a melhora diz respeito a alguma idÈia de cura; cura

n„o significa erradicaÁ„o da doenÁa; n„o h· cura do ponto de vista neurolÛgico

e neuropsicolÛgico. Tais proposiÁıes s„o geralmente apresentadas por Iem e

v„o ganhando mais ou menos ades„o dos outros participantes.

Parece consenso no grupo que n„o h· tratamento farmacolÛgico para a

afasia, embora isto pareÁa ser a expectativa dos af·sicos em geral, isto È, de

que a medicina e os avanÁos tecnolÛgicos possam resolver a quest„o da

recuperaÁ„o do tecido cerebral lesionado, resolvendo com isso uma de suas

seq¸elas, ou seja, a afasia. Nesse sentido, o grupo assume a posiÁ„o de que

n„o h· cura para a afasia. J· a quest„o da melhora parece estar relacionada

diretamente ‡s possibilidades atuais do af·sico de falar e de se expressar:

melhorar significaria passar da condiÁ„o de ìn„o falar nadaî para a condiÁ„o de

ìfalar alguma coisaî. SP adere a esse argumento, exemplificando, com a leitura

da pergunta do roteiro, sua melhora em relaÁ„o ‡ leitura oral:

Iat: O quÍ que o senhor sente... senhor SP... o senhor sente que o senhor

melhorou... nesses tempos?

SP: Porque... a num num... È È È... porque... È... antigamente l· da da ìe...

zis... t„ ta ta ta ta taî //Lendo a pergunta do roteiro//.

Iem: [Existe algum tratamento...

SP: Ent„o... l·... È... agora n„o... nÈ ìexistem alguns tra tratamentos para...î

//Lendo a mesma pergunta e mostrando mais facilidade na leitura//.

Iem: Agora o senhor lÍ com mais agilidade e antes n„o conseguia ler.

Iem postula tambÈm que n„o existe cura no sentido da biologia, ou seja,

da recuperaÁ„o do tecido cerebral afetado pela les„o.

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Iem: A gente depende de um cÈrebro bom pra poder lembrar das coisas... pra

poder lembrar as coisas.

SP: [Sim sim sim.

Iem: Mas... n„o est„o l·. Por isso... gente... È que n„o tem... n„o tem cura

nesse sentido e que a cura sÛ vem da biologia... sÛ vem... na verdade

//leva a m„o ‡ cabeÁa// do cÈrebro.

EF: [A! //Acenando afirmativamente

com a cabeÁa//.

SP: [… È È. //Mostra sua cabeÁa// …... t· l· e depois.

O grupo fecha a discuss„o em torno do consenso de que n„o h·

medicamentos para curar ou tratar a afasia, nem cirurgias para o tratamento

das afasias e nem cura da afasia. H· melhora. E essa melhora È determinada

pela forma como o af·sico enfrenta a sua vida com a afasia.

Iem: (...) Mas n„o para... n„o para curar a afasia ela MESMA que j· È uma

seq¸ela de uma les„o cerebral. E n„o existe medicamento.

SP: Certo.

Iem: Mas as pessoas melhoram quando ficam af·sicas. A praxe È que...

quando ficam af·sicas... nÈ... depois de um certo tempo passam a

melhorar. Pode ser que n„o se cure. Pode ser. Em geral... n„o se cura...

EF: [Fa... falar.

Iem: Mas melhoram.

Iem: Mas... ent„o seria interessante a gente associar ‡ nossa explicaÁ„o...

que n„o tem cura... do ponto de vista... „... do ponto de vista

farmacÍutico ou cir˙rgico...

SP: [Certo.

Iem: Ent„o... nÈ... n„o h· cura nesse sentido... nÈ... pode ser que n„o

melhore diretamente nesse sentido... mas a praxe... por v·rios motivos...

que temos que saber quais s„o... as pessoas melhoram.

SP: ….

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Iem: Melhoram por terapias... melhoram porque n„o se afastam da vida... por

exemplo. Ent„o o cÈrebro fica funcionando //Gesticula com as m„os em

torno da cabeÁa//

SP: [Exatamente.

Iem: VocÍ mexe com ele... t· certo?

SI: [//Ri//.

EF: //Concorda com movimento de cabeÁa//.

(...)

Iem: A vida social n„o faz isso... pessoal... a nossa vida? Botar a cabeÁa pra

funcionar È... È n„o ficar isolado... n„o ficar afastado nÈ? … isto tambÈm.

E v·rias outras coisas ajudam a melhorar a afasia. Temos que... acho...

que falar sobre isso.

SP: Certo... È.

EF e SI: //Acenam afirmativamente com a cabeÁa//.

Iem: Porque sen„o fica sÛ ele assim ìOlha n„o tem cura... viu... ent„oî... AÌ o

que acontece... a pessoa fica af·sica e fala ìAh... pronto... n„o vou mais

melhorarî ... Ent„o... se n„o tem remÈdio... n„o tem cirurgia... n„o tem

jeito.

Iat: [N„o tem jeito.

Iem: E tem jeito sim. Tem jeito de me-lho-rar //Fala escandindo a palavra

ìmelhorarî//. Pode n„o ter jeito de curar... mas tem jeito de melhorar.

SI: Hum.

SP: Ah. Certo.

Iem: Tem jeito de conviver com ela... de super·-la... de enfrent·-la... n„o È

seu SP?

SP: Hum.

Iem: N„o È?

SP: ….

No fragmento seguinte (retirado do excerto CCA25), Iem comenta

novamente a melhora da afasia de SP, associando a idÈia de melhora ‡ idÈia

de qualidade de vida:

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Iem: E houve uma melhora da afasia dele nÈ? Melhorou a sua afasia

//Falando para SP//. Tem mais facilidade pra ler... pra se expressar... e a

sua vida melhora se o senhor se expressa mais... n„o melhora?

SP: Melhora //Rindo//.

Iem: Estou falando agora de...

Iat: [Qualidade.

Iem: da qualidade de vida.

6.2 Medicina e reabilitaÁ„o

A quest„o que se coloca frente ‡ cura e ‡s possibilidades de melhora do

af·sico est· associada ‡ crenÁa de profissionais da sa˙de sobre a din‚mica

cerebral: se o profissional de sa˙de ñ aquele que encaminha ou n„o o af·sico

para a reabilitaÁ„o ñ acredita que o cÈrebro est· irreversivelmente danificado

pela les„o e que as atividades de linguagem sÛ podem se dar no contexto de

um cÈrebro Ìntegro, dificilmente o af·sico ser· encaminhado.

A histÛria de SP, no exemplo a seguir,8 reitera o prÈ-construÌdo, n„o sÛ

de leigos mas dos prÛprios mÈdicos, de que n„o h· possibilidades de

recuperaÁ„o da linguagem apÛs uma les„o cerebral que resulte em afasia. O

grupo discutia a sÈtima pergunta do roteiro ñ Qual È o momento mais

recomend·vel para dar inÌcio ao acompanhamento terapÍutico de um af·sico?

ñ e SP, motivado pelo debate e pela atestaÁ„o do grupo de que o af·sico

muitas vezes n„o È acompanhado desde o inÌcio porque o mÈdico n„o acredita

em reabilitaÁ„o, uma vez que considera o dano cerebral irreversÌvel, vai

complementar seu depoimento: em seu caso, o mÈdico n„o sÛ n„o o

encaminhou como descartou qualquer possibilidade de recuperaÁ„o.

SP: O „... „ a... mulher l·... ele falar a... e... Ele me... ele se... o... e... como

È? Ent„o... ele ele falou... ele... que falou... l·... ele falar... de... deixa ele

8 Retirado do excerto CCA25, o dado completo est· no CapÌtulo 2 desta tese.

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//Faz gesto com a m„o de ìcolocar de ladoî// num num forro l· na na È

casa... castelo... l· l·. E esquece esquece //Faz gesto com os dedos

juntos para cima, indicando ìabsurdoî//.

6.3 Em busca da linguagem: a expectativa do af·sico

Se, com seu depoimento, SP expıe uma condiÁ„o de melhora de sua

linguagem e de suas possibilidades de interaÁ„o apÛs o inÌcio de sua afasia, e

com isso assume tambÈm o ponto de vista de que a melhora da afasia È

possÌvel, EF vai reiterar seu ponto de vista de que melhora significa o retorno ‡

competÍncia ling¸Ìstica anterior ‡ afasia e qualquer tipo de tratamento est·

relacionado a ìvoltar a falarî. Isto fica claro nos fragmentos seguintes (CCA25):

CI: …... porque... a vontade de falar... È grande... que a gente tem.

Iem: [E È desde o inÌcio que a pessoa fica

af·sica.

EF: […... È //Pega na garganta//.

CI: ”... Û //Apontando para EF//... n„o tem.

Iem: T·.

CI: E e a vontade de falar È grande!

EF: ”... t· //Acenando com a cabeÁa, concordando com CI e apontando na

direÁ„o de CI//.

CI: Eu eu eu eu pedi... au almoÁo. Fiquei o dia inteiro sem almoÁo!

EF: //Cai na risada//.

SP: //Sorri//.

Iem: //Pıe a m„o no ombro de CI//.

CI: Eu fi... eu falei... eu fiquei nervoso. Minha esposa entendeu. Eu fiquei

nervoso //Com entonaÁ„o de voz como se estivesse bravo//... bravo! AÌ

entendeu! //Ri//.

Iem: [Claro.

CI: AÌ ela ela trouxe maÁ„ da do... foi l· fora e comprou maÁ„!

EF: AlmÛssu! AlmÛssu! A! //Faz gesto de ìpoucoî com a m„o//.

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CI: Mas almoÁo n„o deu!

Iat: Mas n„o dava pra falar nÈ?

CI: N„o... porque eu n„o falava!

Iat: [TÙ com fome! //Com a voz grossa e apontando

para SP//.

SP: //Ri e passa a m„o na cabeÁa de Iat//.

(...)

CI: Pessoas que fica af·sica... e v„o pra casa... e n„o... ninguÈm... d· bola!

O mÈdico n„o d· bola!

EF: A! …! //Pegando na garganta//. A... falar falar falar falar!! //Gesto da m„o

indicando ìnadaî//.

Iem: Que tipo de ajuda vocÍs acham... que pode ser dada a uma pessoa por

exemplo... que ficou af·sica... bastante af·sica por exemplo... e alÈm de

af·sica teve outros... problemas associados como a hemiplegia n„o È...

como uma certa dificuldade para entender o que est· acontecendo

naquele momento... dificuldade de ficar assim vÌgil nÈ... est· um pouco

sonolento... e tal. Que tipo... que est· acamada nÈ? …... Se a gente acha

que o momento recomend·vel È desde na verdade... do acontecimento...

nÈ... do problema neurolÛgico... que tipo de ajuda vocÍs acham que

pode ser dada para uma pessoa que est· nessas condiÁıes... por

exemplo... no hospital ou em casa...

EF: … //P·ra de escrever e mostra para Iem a prancheta com o papel onde

escreveu algo//.

Iem: Pra pessoa... pros seus familiares... amigos?

EF: … //Aponta para Iem o que escreveu no papel//. …... a //Pegando na

garganta e fazendo gesto de ìn„oî com a cabeÁa//.

Iem: Aqui o senhor... o senhor escreveu... deixa ver se eu entendi: ìQual?

Qual efeito... af·sico?î //Lendo e mostrando para EF//.

EF: [….

EF: [… //Vai acompanhando com o dedo a leitura//.

EF: A! //Pegando na garganta e fazendo gesto de ìn„oî//.

Iem: T·! O senhor... por exemplo... que... qual efeito... af·sico?

EF: [//Acena afirmativamente com a

cabeÁa e pega na garganta// Afa... È...

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Iem: T·.

EF: … //Tenta escrever algo//.

Imc: Saber... o que est· acontecendo?

Iem: //Afirma com a cabeÁa//.

EF: N„o... n„o... ... Falar... falar... falar... falar. A //Pegando na garganta//

CRRRIW //Com ruÌdo gutural e fazendo gesto de ìn„oî com cabeÁa e

m„o//.

Iem: Hum hum. Bom... se a gente est· falando nÈ... que tipo de... de ajuda

pode ter... alguÈm que est·... por exemplo... no leito do hospital...

acabou de ficar af·sico... tem v·rias dificuldades que tem aÌ que

enfrentar... o senhor acha... aÌ o senhor escreveu: ìQual o efeito af·sicoî

ñ eu estou interpretando o que o senhor escreveu aqui...

EF: [A. A //Pegando na

garganta//.

Iem: O senhor acha que... por exemplo... uma coisa interessante seria...

informar sobre afasia e demais dificuldades que a acompanham

eventualmente... … isso?

EF: [Falar...

falar... falar! Fa falar. A //Pegando na garganta//.

Iat: Tem que fazer falar! … isso seu EF?

Imc: [Como fazer pra voltar a falar... como fazer pra... passar

a falar...

EF: [//Acena afirmativamente para Imc//.

No prÛximo fragmento (CCA28), com o livro do CCA impresso e

apresentado ao grupo, os conceitos de cura e melhora s„o novamente

retomados e trabalhados discursivamente a partir de uma formulaÁ„o de NM ñ

uma senhora af·sica que n„o chegou a participar do projeto do livro. O grupo

tece coment·rios sobre o ponto cinco ñ Breve histÛria do Centro de

ConvivÍncia de Af·sicos ñ discorrendo sobre as reuniıes do CCA e suas

atividades. … nesse contexto que NM enuncia uma formulaÁ„o ñ Mas num...

nunca se passa disto nÈ ñ que ela mesma reformula em seguida ñ Nunca se

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fica bom na verdade ñ e que È reformulada por Iem ñ A gente tenta abordar

essa quest„o da cura.

Iem: Mas como È que funciona o CCA na pr·tica? E como È que a gente faz?

A gente chega... se re˙ne... e sai falando simplesmente assim... sobre

qualquer coisa... ou È planejado... a gente tem uma agenda nossa

interna... de... de trabalho. Tenta explicar.

NM: Mas num... nunca se passa disto nÈ?

Iem: Como assim?

NM: Nunca se fica bom na verdade.

Iem: …... a gente explica isso... a gente tenta abordar essa quest„o... da

cura... naquele ponto l·. Lembra aquele ponto... a cura para a afasia?

N„o sei qual que È //Procurando no livro//. Vamos voltar l·.

(Todos do grupo procuram localizar o tema no livro).9

NM: ìH· tratamento para as afasias?î //Lendo//.

Iem: Isso. A gente tenta abordar essa quest„o. Porque a dona NM estava

dizendo uma coisa... que È importante. Muita gente pergunta isso de

cara. Achando que a afasia È sÛ doenÁa... (...) Ent„o... h· cura para

esse mal?

JL: ìN„o existe tratamento far... farma... farmacolÛgicoî //Lendo//. … isto?

Iem: …!

JL: ìIndicara ou cir˙rgico de af„... de afasia... de...

Iem: [ìque cureî...

Iem: e a enteî //Lendo//... ts... //Movimenta a cabeÁa com gesto de ìn„oî

diante da dificuldade de fala// ìque cure a afasiaî //Lendo//.

Iem: Ent„o... de cara...

JL: [Para melhorar...

Iem: Ent„o... de cara... sÛ um... com licenÁa. De cara a gente responde. N„o

h· tratamento farmacolÛgico... por exemplo... remÈdio. RemÈdio que

pode curar uma dor de barriga... por exemplo... que pode curar uma dor

9 Ver no livro Sobre as afasias e os af·sicos o item 2.6, ìH· tratamento para as afasias?î, ‡ p.31.

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de cabeÁa. NÈ? Nesse... nesse sentido n„o h· nenhum remÈdio que

cure a afasia. TambÈm n„o h· cirurgia. Que cure a afasia.

(...)

Iem: O que h· s„o medicamentos... na verdade... que combatem... „... a

aquilo que talvez tenha sido... a causa da afasia. Que combate por

exemplo o quÍ? Press„o alta... problemas vasculares... (...) RemÈdios

que ajudam... na verdade... os neurotransmissores a se ligarem uns aos

outros. Mas isso ainda n„o cura... a afasia. Ent„o... bom. Cura no

sentido mÈdico. Qual È o sentido mÈdico da cura? VocÍ tinha... um

estado... e n„o tem mais esse estado. NÈ? A cura no sentido mÈdico È

isso: vocÍ tinha uma coisa e n„o tem mais ela. Ent„o... esse È o sentido

cl·ssico... de erradicaÁ„o da doenÁa. (...) Ent„o... no caso da afasia... se

n„o h· um tratamento de erradicaÁ„o nÈ... das seq¸elas da fala... ou da

escrita... ou de outras coisas tambÈm... existe uma idÈia de melhora... de

evoluÁ„o... que depende um pouco da administraÁ„o dos remÈdios...

etc... mas tambÈm depende basicamente do quÍ? //4í// De algo... que

est· na vida inteira da pessoa.

JL: [….

V·rios conceitos sobre a afasia s„o nesse contexto novamente

veiculados: a afasia pressupıe a existÍncia de uma les„o cerebral; a afasia em

si n„o È uma doenÁa e sim uma seq¸ela de uma doenÁa ou de uma les„o

cerebral; n„o h· medicamentos nem cirurgias que curem a afasia; os

medicamentos existentes tratam das causas e dos fatores de risco das afasias

e, portanto, pode-se tratar com medicamentos as causas das afasias, mas n„o

propriamente as afasias; n„o h· cura no sentido mÈdico do termo, ou seja, de

erradicaÁ„o da doenÁa, mas existe uma idÈia de melhora e de evoluÁ„o.

… ainda nesse mesmo contexto de discuss„o sobre cura e melhora

(CCA28), que JL enuncia uma formulaÁ„o que provavelmente traduz a

expectativa de grande parte dos af·sicos:

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JL: ... o problema... o problema È que todo mundo quer que cure a afasia!

//Ri//.

Ijt: Exatamente! Essa È a dificuldade.

NM: Nossa! //Olhando para JL com ar de surpresa//.

Iem: Mas essa È a expectativa nÈ? //Olha para NM//.

NM: Quan quando eu... È... È... eu... eu fico assim...

JL: [//Ri// ‘ÙÙ //Leva as duas m„os ‡ cabeÁa// cirursa

cirurgicamente!

Iem: Com remÈdio... o que seja.

Iem, ‡ guisa de conclus„o, resume, no fragmento seguinte (CCA28), o

trabalho do grupo na co-construÁ„o referencial de cura e melhora da afasia:

Iem: Que ìcuraî no sentido cl·ssico de que tinha um problema antes e n„o

tem mais... n„o existe... pras afasias ainda. (...) Ent„o o que que resta?

Resta o quÍ? AÌ nÛs falamos: restam o os tratamentos. NÈ? Assim... as

terapÍuticas... na verdade. N„o È? Resta a... informaÁ„o pra pessoa

lidar com o problema que tem. N„o È?

NS: //Acena a cabeÁa, concordando//.

Iem: Resta a gente combater o preconceito... para que pessoas que tenham

certas dificuldades possam ter uma vida normal uai!

SI e JL: //Acenam a cabeÁa, concordando//.

Para concluir

A rede de formulaÁıes tecida pelos sujeitos af·sicos e n„o af·sicos na

construÁ„o dos objetos de discurso aqui selecionados ñ afasia e cura ñ permite

entrever que as atividades de categorizaÁ„o, predicaÁ„o, evocaÁ„o lexical, ou

seja, os movimentos interativos e discursivos da referenciaÁ„o, s„o processos

inst·veis e dependentes da situaÁ„o e dos diferentes pontos de vista nos quais

os sujeitos se inscrevem.

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Os sujeitos, af·sicos e n„o af·sicos, diante de objetos de discurso como

afasia e cura, objetos em construÁ„o e, portanto, ainda n„o totalmente

identific·veis, fazem aproximaÁıes parciais de reconhecimento, aderem ou

recusam prÈ-construÌdos, reconstroem o sentido a partir de experiÍncias

compartilhadas, efetuam acordos sem que isso signifique o apagamento das

diferenÁas.

A construÁ„o conjunta da significaÁ„o implica tanto um trabalho de

colaboraÁ„o, com os sujeitos cooperando uns com os outros para que a

significaÁ„o se dÍ, quanto um cen·rio de disputas pelo sentido, com cada

sujeito tentando impor ao outro suas prÛprias categorias referenciais.

Nos processos de referenciaÁ„o desses sujeitos, no expor e no

compartilhar pontos de vista sobre a afasia, observamos movimentos de

convergÍncia e divergÍncia, com os sujeitos expressando, ‡s vezes, pontos de

vista polÍmicos, posiÁıes antagÙnicas, mas tambÈm efetuando constantes

ajustes e chegando a um consenso.

Questıes como a causa da afasia ñ a les„o cerebral ñ por exemplo, s„o

compartilhadas tanto pelos af·sicos quanto pelos n„o af·sicos:

CI: Eu n„o tinha afasia porque eu n„o tinha les„o cerebral.

Iem: Afasia significa que a pessoa teve uma les„o no cÈrebro.

No entanto, apreendemos junto aos sujeitos n„o af·sicos,

principalmente, movimentos de modalizaÁ„o e de recategorizaÁ„o desse dizer

compartilhado, uma vez que o ponto de vista desses sujeitos È o de que a

afasia n„o seja tomada apenas na perspectiva circunscrita ao cÈrebro lesado,

mas tambÈm como uma quest„o de linguagem e uma quest„o social.

CI: Afasia È neurÙnio! Trocou neurÙnio!

Iem: Afasia n„o È sÛ uma quest„o de neurÙnio e cÈrebro... porque a

linguagem n„o est· sÛ no cÈrebro... est· na interaÁ„o com as pessoas.

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O mesmo movimento È apreendido quando se discute a severidade da

afasia. Para os sujeitos af·sicos, a gravidade da afasia È definida em relaÁ„o ‡

fluÍncia verbal, com os graus de severidade relacionados ‡ les„o cerebral ñ

tipo, extens„o e localizaÁ„o. Os sujeitos n„o af·sicos apresentam o ponto de

vista de que a afasia e sua gravidade n„o dependem apenas das

caracterÌsticas da les„o cerebral mas, sim, de outros aspectos que tambÈm

repercutem na gravidade: o tipo de vida que o af·sico leva, sua personalidade,

o entendimento sobre a afasia em seu meio social, o impacto que a afasia traz

sobre a qualidade de vida. O ponto de vista sempre evocado pelos sujeitos n„o

af·sicos È o da afasia como uma quest„o de linguagem, uma quest„o social e

de interaÁ„o. A afasia, para alÈm das questıes biolÛgicas, circunscritas ao

cÈrebro, evoca o car·ter social de utilizaÁ„o da linguagem.

As divergÍncias, que n„o s„o apenas o resultado das diferenÁas

preexistentes dos sujeitos, mas tambÈm fruto das dissimetrias de pontos de

vista que se constroem na e pela interaÁ„o, surgem tambÈm quando se discute

a quest„o da plasticidade cerebral. Os sujeitos af·sicos em geral categorizam o

cÈrebro como uma estrutura rÌgida e est·vel, enquanto os sujeitos n„o af·sicos

referem o cÈrebro como um sistema din‚mico, com possibilidades de

readaptaÁ„o e em constante evoluÁ„o. Mais uma vez, os pontos de vista

conflitantes se devem ‡ concepÁ„o de linguagem engendrada pelos diferentes

sujeitos: a linguagem comandada por uma cÈlula ou a linguagem como produto

da interaÁ„o de nossas aÁıes no mundo com a din‚mica cerebral.

Em relaÁ„o ‡ cura ñ e ‡s possibilidades de melhora da afasia ñ os

sujeitos tambÈm apresentavam posiÁıes antagÙnicas que foram confrontadas,

reformuladas e negociadas, chegando-se a um consenso que exigiu muitos

ajustamentos recÌprocos.

Os sujeitos parecem concordar que cura e melhora s„o objetos de

discurso diferentes. Cura significaria o retorno da competÍncia ling¸Ìstica

prÈvia ‡ afasia, enquanto melhora significaria afastar-se, em graus e aspectos

distintos, da linguagem af·sica em seu momento mais crÌtico em direÁ„o ‡

competÍncia ling¸Ìstica prÈvia ‡ afasia. Para alguns af·sicos, cura e melhora

s„o a mesma categoria referencial, ou seja, ambas investidas de um sentido de

retorno ‡ competÍncia ling¸Ìstica prÈvia.

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211

Iem: A... a pessoa melhora da afasia? //Dirigindo-se para EF e acenando

afirmativamente com a cabeÁa e fazendo ìpromptingî do fonema /m///.

EF: N„o.

Iem: [Melho... n„o melhora?

EF: //Acena negativamente com a cabeÁa//.

Os pontos de vista, tanto dos sujeitos af·sicos quanto dos n„o af·sicos,

convergem no sentido de que n„o h· cura da afasia. Para os n„o af·sicos,

porque a afasia n„o È uma doenÁa que poderia ser erradicada. Para os

af·sicos, porque sua prÛpria vivÍncia com a afasia exibe o distanciamento

entre a linguagem e a vida anteriores ‡ afasia, que se tornam idealizadas no

mito do falante perfeito e, portanto, cada vez mais difÌceis de serem resgatadas

ñ Nunca se fica bom na verdade.

No entanto a melhora, quando tomada como possibilidades de

recuperaÁ„o, de progress„o gradativa em direÁ„o a uma dada condiÁ„o

anterior ‡ afasia, ocorre por razıes distintas quer se tome o ponto de vista do

af·sico ou do n„o af·sico. Para o af·sico, a melhora deve-se ‡ recuperaÁ„o

circunscrita ao cÈrebro, ou seja, ‡ reabilitaÁ„o do tecido neuronal. Para o n„o

af·sico, novamente se evoca o ponto de vista das interaÁıes sociais como

mobilizadoras das possibilidades de recuperaÁ„o.

A quest„o decisiva para o entendimento da afasia e da cura ñ ou da

melhora ñ parece ser, portanto, a concepÁ„o de linguagem que se adota diante

dos v·rios movimentos interativos e discursivos dos sujeitos: o consenso vem

da linguagem tomada como uma quest„o social, muito alÈm das cÈlulas e

neurÙnios que comandariam a fala.

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213

4 Pr·ticas de comunidade, pr·ticas discursivas: a elaboraÁ„o do livro do Centro de ConvivÍncia de Af·sicos

… no espaÁo do CCA e em sua cena enunciativa que o trabalho de

elaboraÁ„o do livro se desenvolve. E È do processo de construÁ„o do livro

pelos integrantes do CCA que vai emergir a quest„o central deste capÌtulo: em

que medida um texto, o livro de divulgaÁ„o das afasias, por exemplo, pode se

transformar em um texto sobre a instituiÁ„o na qual ele foi elaborado, o Centro

de ConvivÍncia de Af·sicos?

Maingueneau (1997) fala de pr·tica discursiva para designar a

reversibilidade essencial entre as duas faces do discurso, a textual e a social.

Para o autor, a noÁ„o de pr·tica discursiva integra, portanto, a formaÁ„o

discursiva e o que ele chama de comunidade discursiva. Para que uma

formaÁ„o discursiva seja possÌvel n„o È suficiente a existÍncia de um conflito

social, de uma lÌngua, de ritos e de lugares institucionais de enunciaÁ„o. …

preciso pensar que o prÛprio espaÁo de enunciaÁ„o, longe de ser um simples

suporte, um quadro exterior ao discurso, supıe a presenÁa de um grupo

especÌfico sociologicamente caracteriz·vel, que n„o È apenas um agrupamento

ocasional de porta-vozes. A comunidade discursiva È o grupo em cujo interior

s„o produzidos e gerados os textos que dependem da formaÁ„o discursiva.

Constituem a comunidade discursiva os que produzem o discurso, que fazem o

discurso circular, que se re˙nem em seu nome e nele se reconhecem.

Sujeitos engajados em um mesmo projeto ñ o livro de divulgaÁ„o das

afasias ñ, o depoimento de cada um e sua histÛria individual s„o tomados

como co-enunciadores de sua histÛria coletiva: o livro È o patrimÙnio

conjuntamente construÌdo por esses sujeitos, que pıe necessariamente em

relaÁ„o o texto (o livro) e a instituiÁ„o (o CCA). Para Maingueneau (1997, p.70),

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214

os textos aparecem, ao mesmo tempo, como uma das modalidades do

funcionamento da comunidade discursiva e o que a torna possÌvel; a

comunidade se estrutura pelo mesmo movimento que gera os

enunciados, suscetÌveis, por sua vez, de tematizar, por vezes

sutilmente, as instituiÁıes que neles est„o implicadas e seu prÛprio

imbricamento com estas ˙ltimas. Este elo crucial entre o fazer e o dizer

de uma comunidade representa o ponto cego do discurso, a evidÍncia

primeira que funda a crenÁa.

A noÁ„o de comunidade discursiva ñ que por ser comunidade n„o

implica necessariamente cooperaÁ„o ou o apagamento de diferenÁas ñ

pressupıe conflitos, disputa de sentidos, negociaÁ„o de posiÁıes,

heterogeneidade de significaÁıes. E È assim que produz texto. Bourdieu afirma

que ìa instituiÁ„o n„o È completa e inteiramente vi·vel, a menos que se

objetive de forma duradoura, n„o apenas nas coisas ... mas tambÈm nos

corposî (citado em Maingueneau, 1997, p.56). O livro d· temporalidade ao

discurso da instituiÁ„o. Os sujeitos af·sicos e n„o af·sicos enquanto constroem

o livro v„o tecendo, confrontando, assumindo posiÁıes enunciativas e

discursivas. Os fragmentos dos 28 encontros do CCA1 que compıem o corpus

desta tese deixam entrever o que afirma FranÁois (1986; 1993, apud Morato,

2001): ìas significaÁıes se desenham no fio do discursoî.

A din‚mica do trabalho linguageiro dos sujeitos no processo de construÁ„o do livro do CCA

O desenrolar do discurso nos permite observar as diferentes formas nas

quais aquele que fala se posiciona em relaÁ„o ao mundo, aos outros, a ele

mesmo, a seu prÛprio discurso ñ os movimentos, portanto, de variaÁ„o de

perspectivas, de mudanÁas de planos, de ajustamento de perspectivas

(Salazar Orvig, 1999, p.9). O sentido se constrÛi naquilo que os movimentos

discursivos, as afinidades, as recorrÍncias e as rupturas desenham, ou seja, 1 O corpus, cumpre lembrar, È composto de fragmentos de 28 encontros ñ CCA01 a CCA28 ñ realizados entre abril de 1998 e marÁo de 2003, nos quais o livro do CCA foi tema de debate.

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215

naquilo que nÛs n„o apreendemos a n„o ser a partir de uma atitude

interpretativa.

A opÁ„o por uma an·lise interacional, ao contr·rio de uma an·lise

centrada nas estruturas do discurso, privilegia os traÁos comuns aos grupos e

subgrupos, colando, de certa forma, a especificidade de seus membros

tomados um a um. Os indivÌduos s„o como testemunhas de um grupo. Todo

sujeito se caracteriza por um pertencimento a um ou v·rios grupos. Ele est·

imerso em uma cultura e sofre as determinaÁıes sociais diversas que se

manifestam nas modalidades de seu discurso. Salazar Orvig (1999, p.27)

empresta de FranÁois as noÁıes sobre elaboraÁ„o discursiva, que seria um

processo de retomada-modificaÁ„o, de inscriÁ„o num fundo social e cultural e

re-criaÁ„o, investimento renovado da elaboraÁ„o discursiva. O sujeito seria,

assim, sujeito genÈrico e fruto de uma histÛria particular, lugar de encontro

singular de determinaÁıes heterogÍneas. Isto se revela na fala de CI em 16 de

junho de1999 (CCA05), quando o grupo decidia que o diferencial do livro do

CCA em relaÁ„o ‡s demais publicaÁıes sobre afasia seria exatamente o

depoimento dos af·sicos relatando sua experiÍncia com a afasia. As questıes

vividas, enfrentadas e superadas seriam compartilhadas com os leitores, e isso

constituiria a singularidade do livro:

CI: Agora... cada um... cada um... particularmente... tem... È... È... tem uma

experiÍncia prÛpria!

CI: Parecidas... mas È prÛpria... cada um È prÛpria! Por que... essa

particularidade?... Porque as pessoas s„o diferente!

Esse fragmento d· sustentaÁ„o ao fato de que no discurso o sujeito faz

ver o mundo de certa maneira ao categoriz·-lo e atribuir-lhe sentido,

construindo ent„o um sistema de referÍncias. Segundo Salazar Orvig (1999,

p.59), o que È pertinente na referÍncia n„o È a confrontaÁ„o com uma

realidade dada, mas sim a maneira como o objeto È portador de um ponto de

vista a partir do qual o sujeito o apresenta ou o evoca. Para FranÁois (1994),

ìponto de vistaî significa, de uma parte, que existe uma realidade comum e, de

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outra parte, que essa realidade È dada de diferentes maneiras, que n„o existe

um ponto de vista abrangente que sintetizaria todos os pontos de vista (apud

Salazar Orvig, 1999, p.58).

O sujeito, em sua atividade discursiva, apresenta o objeto de discurso

como novo ou conhecido, como particular ou genÈrico. Ele o designa,

denomina e apresenta sob um determinado ‚ngulo. Desta forma o sujeito

manifesta seus saberes, seus conhecimentos, seus afetos, as relaÁıes de

dist‚ncia e de ades„o estabelecidas com os objetos que ele coloca em

palavras.

Predicar, determinar, categorizar, denominar e referir s„o atividades

construÌdas a partir de certo ponto de vista. N„o h·, portanto, construÁ„o da

referÍncia que seja neutra: ela sempre deriva de certo ponto de vista que È

produto da interaÁ„o, dependente da situaÁ„o de interlocuÁ„o, dependente do

cen·rio no qual o discurso se inscreve e fruto de um encontro, de certa

convergÍncia de espÌritos em torno de uma experiÍncia. Desta forma, toda

categorizaÁ„o, toda construÁ„o de uma referÍncia n„o depende unicamente do

ponto de vista do locutor, mas tambÈm e, sobretudo, da maneira pela qual o

locutor se ajusta ‡ perspectiva de seu interlocutor que deve fazer o mesmo, a

seu turno. Essa convergÍncia ñ aponta Salazar Orvig (1999, p.94) ñ provÈm

daquilo que Rommetveit (1990, p.97) chama de ìthe attunement to the

attunement of the otherî, ou seja, um ajuste m˙tuo de perspectivas entre os

interlocutores, o estar sintonizado com o outro da interaÁ„o.

Salazar Orvig (1999, p.87) refere-se ‡ atividade interpretativa do sujeito

como uma representaÁ„o ñ ìce jeu de miroir en abÓmeî ñ na qual o sujeito se

observa a si prÛprio enquanto observador: o enunciador È parte ativa na

representaÁ„o da experiÍncia. Algumas vezes È sujeito da interpretaÁ„o de um

espet·culo e espectador de sua prÛpria atividade, objeto, portanto de sua

prÛpria interpretaÁ„o. A autora cita Bakhtin (1999, p.102):

je ne deviens conscient de moi, je ne deviens moi-mÍme quíen me

rÈvÈlant pour autrui, ‡ travers autrui et ‡ líaide díautrui ... líhomme ne

possËde pas de territoire intÈrieur souverain, il est entiËrement et

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toujours sur une frontiËre regardant ‡ líintÈrieur de soi, il regarde dans

les yeux díautrui ou ‡ travers les yeux díautrui.2

O discurso que se constrÛi na din‚mica da interaÁ„o coloca-se sempre

entre duas tendÍncias: a da convergÍncia e a da divergÍncia ou deslocamento.

Mas postular a existÍncia de uma co-construÁ„o e o ajuste m˙tuo de

perspectivas e pontos de vista entre os interlocutores em interaÁ„o n„o

significa dizer que os sujeitos se encontram numa total convergÍncia: a

interaÁ„o È tambÈm o lugar dos conflitos, dos desacordos e dos mal-

entendidos.

O espaÁo discursivo apresenta este aspecto paradoxal de ser ao mesmo

tempo comum, uma vez que È o resultado de contribuiÁıes conjuntas dos

interlocutores, e fundamentalmente dissimÈtrico, lugar de cristalizaÁ„o das

diferenÁas dos interlocutores. Salazar Orvig (1999, p.189) ressalta que

FranÁois insiste na tens„o entre certo grau de comunidade, necess·rio ao

desenvolvimento da interaÁ„o, e certo grau de diferenÁa, sem a qual as trocas

verbais n„o seriam mais do que uma seq¸Íncia de enunciados previsÌveis.

Existe, portanto, uma tens„o entre aquilo que nos È comum, que permite uma

comunidade na forma de olhar a atividade verbal, e o que È particular ou

diferente, entre o que È prÈ-codificado ou prÈ-construÌdo e o curso especÌfico

que toma cada troca particular. Os sujeitos n„o participam das interaÁıes com

os mesmos objetivos, os mesmos fins, e n„o mobilizam as mesmas

disposiÁıes ou o mesmo engajamento em uma interaÁ„o. Isto porque os

sujeitos tambÈm n„o tÍm necessariamente o mesmo ponto de vista a respeito

da experiÍncia sobre a qual eles interagem.

2 Eu n„o me torno consciente de mim mesmo, eu n„o me torno eu mesmo que n„o sendo revelado por outro, atravÈs de outro e com a ajuda de outro... O homem n„o possui um territÛrio interior soberano, ele est· sempre e totalmente numa fronteira observando a si mesmo, ele olha nos olhos de outro ou atravÈs dos olhos de outro. (TraduÁ„o ALT.)

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A construÁ„o de uma comunidade discursiva: exemplificaÁ„o 1. CCA: sobre aposentadoria e nÌvel socioeconÙmico 3

Nesse encontro estavam presentes os sujeitos af·sicos SI, LM, EF, CI,

SP e JB e os sujeitos pesquisadores Imc (sentada entre EF e CI), Iem (sentada

entre JB e SI), Iat (sentada ao lado de SP, que est· ao lado de CI) e Ijt

(sentado um pouco atr·s, entre SI e LM).

O livro de divulgaÁ„o das afasias È o ˙nico tema abordado nesse

encontro, que se d· em torno de uma grande mesa retangular. O grupo recebe

LM, que retorna ao CCA apÛs um perÌodo de afastamento.

Enquanto Iem faz uma leitura do material compilado para discuss„o, os

integrantes comeÁam a discutir alguns tÛpicos relativos ao livro. Critica-se a

idÈia de um falante ideal que n„o existe, discute-se a quest„o da melhora da

afasia, a cura; CI relata o exemplo de uma conhecida sua, af·sica, que sofreu

um acidente de carro, ficou paraplÈgica e melhorou depois de v·rios anos. CI

comenta, tambÈm, sobre o desconhecimento das pessoas em geral e mesmo

de autoridades como, por exemplo, o ministro da Sa˙de, sobre o que È afasia.

Iem levanta a quest„o das leis, o desconhecimento delas e o n„o

cumprimento das existentes, enquanto CI aborda a quest„o da aposentadoria

por invalidez e da impossibilidade de se obter uma aposentadoria em funÁ„o da

especificidade da afasia.

1.1 Af·sico n„o È problema de aposentadoria

CI: Af·sico n„o È problema de aposentadoria... n„o È //Com o dedo

indicador da m„o esquerda erguido//.

Imc: Hum hum.

Iem: …. Essa È outra quest„o.

CI: Porque ninguÈm sabe que È... o...

3 CCA14, em 4 de maio de 2000.

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Imc: [o que È.

Iem: A pessoa fica af·sica... se aposenta. Essa È a histÛria do grupo.

SP: //Acena afirmativamente com a cabeÁa//.

CI: Eles... N„o È n„o. N„o È por aÌ. Eu sou aposentado porque eu tive

hemiplegia //Mostra o braÁo direito//.

Imc: [Problema motor.

CI: Motor... porque afasia n„o È problema //Faz gesto de ìn„oî com o dedo

indicador//.

CI: VocÍ a...po... a...fa fa af·sico... ele n„o aposentou... n„o aposentou

porque n„o conseguiu provar //Apontando para JB//. E outro af·sico...

tem muitos aÌ //Faz gesto indicando ìa esmoî em direÁ„o a EF//.

Iem: [O

LM... muitos tÍm outra histÛria //Virando-se em direÁ„o a LM, que est·

sentado ‡ esquerda de Iem, depois de SI//.

Iem: ‘ LM! Eu me lembro que vocÍ foi aposentado... nÈ?

LM: //Acena levemente a cabeÁa, confirmando//.

Iem: Ent„o... O que quer dizer ìaposentadoî? Quer dizer que n„o foi vocÍ que

pediu para ser aposentado nÈ?

Imc: N„o.

CI: [N„o.

EF: [N„o //Afirma com a cabeÁa//.

Iem: N„o foi que vocÍ cumpriu o tempo. Foi...

Imc: //SI//.

LM: //Olha para Imc//.

Iem: Foi sugerido pra vocÍ que fosse aposentado? Porque n„o È qualquer

aposentadoria nÈ gente?

SP: //Acena discretamente com a cabeÁa, concordando//.

Iem: … aposentadoria por... ... INVALIDEZ.

Imc: [Por invalidez.

CI: In:va:li:dez.

SP: ….

Iem: Ent„o tem uma idÈia em que se o corpo n„o È de uma determinada

forma/

Imc: [… inv·lido.

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Iem: [que ele È inv·lido. NÈ? E n„o È inv·lido.

Imc: Hum hum.

Iem: N„o quer dizer que porque vocÍ n„o... n„o pode... por exemplo

fisicamente fazer umas coisas... que vocÍ È inv·lido... ... //Olhando para

LM//.

CI: [Que È È

Imc: Que vocÍ È inv·lido //Virando-se para CI, que est· sentado ‡ sua

esquerda//.

Iem: Pra trabalhar.

CI: E outra! N„o pode arrumar emprego.

Iem: Entendeu como È que È? //Olhando para LM//.

Imc: Porque a carteira

CI: [Porque È È È invalidez n„o pode arrumar emprego... n„o

pode arrumar nada.

O que CI sustenta inicialmente como ponto de vista È que È muito difÌcil

para uma pessoa aposentar-se tendo apenas a afasia como causa para a

aposentadoria. … muito mais f·cil conseguir a aposentadoria pelo dÈficit motor,

a hemiplegia. Considerando-se que as leis sÛ tratam das seq¸elas de AVC

(acidente vascular cerebral) naquilo que diz respeito ‡ deficiÍncia fÌsica, e que

portanto o problema de linguagem dos af·sicos n„o È contemplado pela lei, CI

tem raz„o em sua argumentaÁ„o.

A argumentaÁ„o de Iem busca uma outra orientaÁ„o: n„o È porque o

empregado tornou-se af·sico que deve ser aposentado por invalidez. Para

sustentar seu ponto de vista, Iem pede que LM relate sua experiÍncia de ter

sido aposentado por invalidez. Ele era metal˙rgico, foi aposentado apÛs v·rias

perÌcias e o mÈdico nunca lhe explicou o porquÍ da decis„o em torno de sua

aposentadoria. LM nunca mais teve nenhuma ocupaÁ„o remunerada, com

vÌnculo empregatÌcio, e atualmente cuida da casa e de seus filhos.

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1.2 LM e sua aposentadoria por invalidez

LM: Ent„o um mÍs... fiquei... ... trÍs anos... ... afastado ... ... depois eles

esperaram e ... aposentaram.

Iem: Como È que eles aposentaram? Falaram pra vocÍ... fizeram uma

consulta... Como È que... vocÍ ficou sabendo que vocÍ foi aposentado?

Perguntaram pra vocÍ... como È que foi isso?

LM: //3í// A ˙ltima perÌcia... //3í// que eu fiz o mÈdico falou... ... ... que eu ia

ser... aposentado.

Iem: E ele explicou por quÍ?

LM: N„o //Acena negativamente com a cabeÁa//.

EF: U...

JB: //D· risada e acena negativamente com a cabeÁa//.

LM: ... //10í// Mas... ... È ruim... nÈ... fazer... //3í// invalidez... nÈ?

Iem recoloca, ent„o, seu ponto de vista contr·rio ‡ aposentadoria por

invalidez para os af·sicos. Fala da possibilidade de o livro, ao informar sobre

as afasias, poder mudar a mentalidade conservadora n„o sÛ dos mÈdicos, mas

das pessoas de forma geral, porque provavelmente o desconhecimento, a

ignor‚ncia e a falta de informaÁ„o È que levam aos preconceitos. CI vai

reintroduzir seu ponto de vista, aparentemente defendendo a aposentadoria por

invalidez:

1.3 A discuss„o sobre a aposentadoria

Iem: Ah... n„o pode fazer esse trabalho... aposento. N„o! Tem que pensar o

seguinte: que outra coisa eu poderia?

EF: …...”... //Fazendo gestos circulares no ar indicando ìoutra coisaî//.

Iem: Pra mudar essa mentalidade n„o È f·cil. A impress„o que a gente tem...

LM... È que com... com informaÁ„o a gente consiga... com informaÁ„o.

Com informaÁ„o. Porque... Que que a gente t· imaginando aÌ: que È a

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falta de conhecimento... a ignor‚ncia mesmo dos assuntos que faz com

que a gente n„o veja nunca saÌda. A nossa vida È um pouco assim...

nÈ? ìAh... eu n„o vejo saÌda!î.

CI: …...È...È... //Quer o turno / ergue o dedo indicador//.

Iem: Ah?!... //Inclinando-se para CI, que est· sentado ‡ sua frente//.

CI: Eu sou obrigado a falar! //Dirigindo-se a Iem//.

Iem: Vai... diga!

CI: Aposentadoria... t·? A gente... eu descobri... a gente... eu.... es.... trocou

de mÈdico.... nÈ.... SumarÈ para Hortol‚ndia. E o mÈdico... que me

atendeu... era esclarecido. ìOlha... È... eu vou aposentar vocÍî. O

mÈdico... dois anos depois... eu fu foi aposentado... nÈ? Mas È: È: tinha

pessoas... tem onze anos... que t„o brigando... brigando pra se

aposentar... //Faz gesto de ìn„oî com o dedo// n„o consegue

aposentadoria porque o mÈdico n„o permite. E tÍm o mesmo problema

que eu tive. Mesmo problema de afasia... de hemiplegia... mesmo

problema que eu tive. Eu falei assim: ìDeus me livreî.

JB: //D· risada//.

CI: Ainda bem que eu tou aposentado! Porque a cada trÍs meses precisa ir

l· be:

Imc: [Fazer

perÌcia.

CI: Ent„o esse problema de mÈdico È esclarecimento... È esclarecimento. O

mÈdico n„o È... n„o È esclarecido... n„o aposenta!

Iem: Mas... por exemplo... vocÍ acha... veja no caso dele //Apontando para

LM//.

CI: [ent„o... aÌ... aÌ... aÌ //Faz gesto com a m„o aberta indicando

ìesperarî//. Sei o que vocÍs v„o dizer.

Iem: [È: o discurso È ao contr·rio do seu... nÈ?

CI: Ele... ele... ele apo... foi trabalhando... trabalhando... trabalhando

Iem: [NÈ... d· pra vocÍ ver

esse contraste, n„o? //Falando para JB ao mesmo tempo em que faz

gestos com as m„os indicando duas posiÁıes diferentes//.

CI: [e aÌ ele teve o problema... a aposentou.

Iem: Por invalidez.

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CI: Por invalidez. Mas o INSS n„o... ... aposenta.

Iem: [T·.

CI: …... È esse o problema.

Iem: N„o... ele foi aposentado //Indicando LM com o polegar//.

CI: … porque tava trabalhando na empresa e a empresa È: pode ...

aposentar.

Iem: [Mas vocÍ acha que as pessoas tÍm que ser

aposentadas porque ficaram af·sicas... porque tÍm um problema fÌsico...

como a hemiplegia?

CI: [N„o... n„o... n„o... e: eu sinto essa

dificuldade... porque È impossÌvel trabalhar. E: eu eu eu leio jornal... eu

continuo atividade ... fÌsica. Ent„o... eu eu eu a tou ensinando a::

obrigando minha esposa... se formar. Porque... a:: o estudo que eu tive...

trÍs faculdades... perdeu.

JB: //D· risada, aparentemente identificando-se com o que CI diz//.

CI: NinguÈm... È: ninguÈm d· valor nada.

Imc: NinguÈm d· valor... nÈ?

Iem: Ser· que n„o È o caso de a gente imaginar critÈrios... saÌdas...

alternativas para as pessoas af·sicas? Pensar em critÈrios para a

aposentadoria? ¿s vezes uma aposentadoria precoce... por exemplo...

ou injustificada... È danosa para uma pessoa.

CI: Aos quarenta anos eu sou aposentado.

Iem: Ah bom... nÈ...

CI: Aos quarenta... //Fala olhando para SP e Iat//.

Iem: ¿s vezes... ‡s vezes È justa... n„o? ¿s vezes n„o tem outro...

JB: //Ri//.

Iem: Outra alternativa... outra saÌda.

Iat: [Outra saÌda.

CI: GraÁas a Deus eu... ainda bem que tou aposentado porque sen„o...

Iem: N„o receberia nem um tost„o furado.

CI: [N„o recebia nem...

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A posiÁ„o de CI È de que existam os mesmos direitos de aposentadoria

tanto para os af·sicos que s„o hemiplÈgicos quanto para os que n„o o s„o. Ele

parece, em alguns momentos, contudo, defender a aposentadoria por invalidez.

Na verdade, sua posiÁ„o revela a falta de condiÁıes de sobrevivÍncia digna de

um sujeito que se tornou af·sico, ou doente, ou limitado fisicamente num paÌs

como o Brasil. … quase obrigatÛrio aceitar a imposiÁ„o da aposentadoria. N„o

h· outra escolha.

Iem aborda, ent„o, a injustiÁa relativa a aposentadorias precoces, a falta

de alternativas concretas de recolocaÁ„o profissional. Imc sugere que seja

incluÌda no livro uma parte sobre leis. Iat, que È autora de um capÌtulo sobre a

situaÁ„o trabalhista do af·sico e a legislaÁ„o brasileira no livro O af·sico ñ

convivendo com a les„o cerebral, comenta que a aposentadoria por invalidez

interessa basicamente ao empregador, que acaba por n„o ter mais nenhuma

responsabilidade sobre o empregado (tratamentos, direitos trabalhistas etc.).

1.4 Af·sico rico... n„o È af·sico

CI: Eu quero dizer... eu quero dizer... eu quero dizer... È:: af·sico... nÛs

estamos tra tratando do nosso meio... t·? Porque af·sico rico... rico...

n„o È af·sico. Fica um ano... dois anos... nÈ... recuperando e tem

empresas... tem firmas e tem lojas... tem tudo e

Iat: [N„o... n„o... CI

CI: ninguÈm fala nada de af·sico. NinguÈm nada. Pode n„o falar nem nada.

Tem empresas. Agora...

Iat: [//SI// tem mais condiÁ„o.

CI: Agora... nÛs estamos tratando... de empregado porque rico... n„o È

problema de af·sico.

Imc: Ele tem mais condiÁ„o de tratar.

Iat: Ele tem um problema de af·sico...

Imc: Mas ele tem mais condiÁ„o de tratar.

CI: N„o. Mas... ele tem um problema de af·sico... mas tem terapeutas... tem

mÈdicos... tem tudo. E fica l·.

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SP: [//SI// e

agora l· t·.

Imc: Tem mais condiÁıes de tratar.

Iat: Eu acho que ele pode ter mais condiÁ„o... ele pode n„o ter o problema

de... do que vai pÙr na mesa pra famÌlia comer... tal... n„o sei o quÍ.

CI: [Ent„o... mas ele tem empresas... tem empresas e aposentadoria

ninguÈm

Imc: [Precisar de dinheiro...

Iat: Mas... mas o problema persiste CI... sabe?

Imc: Claro!

Iem: Claro!

Iat: O problema de af·sico... È... È um problema ... vocÍ... eu tenho histÛrias

de pessoas que est„o t„o marginalizadas quanto. N„o importa. O

dinheiro n„o d·/

Iem: [Em seu prÛprio meio!

Iat: A famÌlia faz isso. A famÌlia faz isso.

Iem: [TambÈm. AÌ um outro ponto.

CI: A famÌlia... a famÌlia faz tudo.

Iat: Eu conheÁo gente internada!

CI: Como?

EF: //Acena afirmativamente com a cabeÁa, concordando com Iat//.

Imc: Que fica internada... nÈ?

Iat: A famÌlia... ficou af·sico/

Iem: [E rico... que tinha alternativas.

Iat: [Rico... mas est· internado.

Imc: [Est· internado porque a famÌlia

pode pagar... nÈ?

Iem: O preconceito est· por todo lugar.

Iat: Ent„o n„o n„o È isso que //SI por sobreposiÁ„o de vozes//.

CI: [A m„e... a m„e È sempre ligada... a m„e... O pai È È

meio... meio... nÈ? //Faz gesto de ìmais ou menosì com a m„o//. Mas a

m„e È sempre ligada.

Iem: … sempre o quÍ? //Falando para CI//.

Imc: Ligada.

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226

CI: …... È a hora que est· o o: af·sico... a m„e cuidando.

Imc: A m„e fica ligada no filho.

Ijt: ‘... CI... pode falar uma coisa? //Falando para CI// Eu acho que isso

depende muito do nÌvel do problema... do impacto da afasia... do tipo da

afasia... que problema causa... as conseq¸Íncias. Se for pequena... eu

acho que eu concordo com vocÍ um pouco. O cara continua

exercendo... o cara continua se impondo e tal. Mas vamos pensar que

quando o cara È rico demais tambÈm tem outros interesses envolvidos...

quando ele sofre uma afasia muito provavelmente tem essa histÛria de

internar... ou de colocar... porque o interesse em torno È muito maior.

Iem: Claro... nÈ CI?

CI: Ah... È... fica ligando... È: cuidando das empresas

Imc: [N„o pode mais cuidar dos negÛcios.

CI: Ligado pelas empresas dele... È È È ligado por pessoas... nÈ? Mas

quando ele volta... volta... aÌ ele //Faz gesto com a m„o esquerda

indicando ìvoltaî, ìretornoî//.

Iem: Por isso que a gente pode falar no livro que a afasia n„o È sÛ uma

quest„o... por exemplo... de sa˙de... embora seja tambÈm... uai... as

pessoas que tÍm afasia... tÍm porque tiveram alguma... alguma les„o no

cÈrebro... alguma coisa assim... nÈ?

CI: [PequeninÌssima... mas... //Ri e faz gesto de

ìpequenoî com os dedos indicador e polegar ligeiramente afastados//.

Iem: [Mas tem... mas È uma

quest„o social... I-NA-PE-L¡-VEL //Articulando ìinapel·velî de forma

escandida//.

CI: … i-napel·vel. //Acenando negativamente com a cabeÁa, sorrindo//.

CI afirma que estamos tratando no CCA de pessoas do ìnosso meioî.

Assumir esse ponto de vista significa que as pessoas af·sicas que freq¸entam

o CCA n„o s„o ricas, s„o empregadas, dependem do INSS e est„o sujeitas ao

descaso e ao desamparo legal. Frente ‡ formulaÁ„o ñ afasia n„o È problema

de rico ñ o grupo interpreta que, para CI, os ricos n„o ficam af·sicos e que,

portanto, sÛ as pessoas do ìnosso meioî ficam af·sicas. Iat, Iem, Imc e Ijt v„o

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227

argumentar contra a posiÁ„o de CI: existem pessoas ricas que ficam af·sicas e

que tambÈm sofrem com a afasia, apesar de terem mais condiÁıes para dispor

de recursos mÈdicos, terapÍuticos etc. CI veicula em sua argumentaÁ„o a idÈia

de que o af·sico rico sofre menos do que o af·sico pobre. O grupo questiona

esse prÈ-construÌdo cultural e todos concordam que n„o È uma quest„o de

maior ou menor sofrimento, mas de se ter mais ou menos condiÁıes de

tratamento. CI aponta, ent„o, uma outra argumentaÁ„o, relativa ao trabalho e ‡

aposentadoria, que era o tema que vinha sendo debatido: o af·sico rico tem

empresas e n„o precisa se preocupar com a aposentadoria por invalidez. O

ponto de vista de Ijt parece encerrar o conflito. O debate culmina com a

veiculaÁ„o de uma posiÁ„o exemplar em torno do conceito de afasia: a afasia È

uma quest„o social, inapelavelmente.

… interessante observar e analisar a retomada da formulaÁ„o de Iem por

CI ñ inapel·vel ñ sobre a afasia ser uma quest„o social e n„o uma quest„o

circunscrita ao cÈrebro e ‡ les„o cerebral. Ao reproduzir a seq¸Íncia discursiva

anterior de Iem tal qual ela foi formulada, CI parece de certa forma assegurar a

intercompreens„o ñ os interlocutores est„o ìde acordoî e compartilham o

mesmo ponto de vista sobre o tema em discuss„o ñ ao mesmo tempo em que

marca sua presenÁa como co-enunciador na interaÁ„o ñ afinal, CI parecia ser o

˙nico a ter um ponto de vista divergente sobre a quest„o da aposentadoria e,

com a retomada da fala de Iem, garante sua ades„o ao ponto de vista do

grupo.

2. CCA: sobre a prevenÁ„o da afasia 4

No CCA07 estavam presentes os sujeitos SI, EF, SP, MS, CI, Iff, Iem e

Ijt. MS volta ao CCA apÛs seis meses de ausÍncia a convite de Iem para

participar, com sua experiÍncia e vivÍncia com a afasia, do projeto do livro do

CCA.

Em dado momento do encontro, o grupo avalia o material sobre afasia

disponÌvel para as discussıes sobre o livro do CCA, comentando algumas

4 CCA07, em 22 de setembro de 1999, e CCA17, em 8 de junho de 2000.

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perguntas do livro em espanhol trazido por EF.

Uma das questıes, sobre prevenÁ„o da afasia, tambÈm vai provocar

polÍmica, uma vez que MS e CI tÍm pontos de vista diferentes sobre

prevenÁ„o:

2.1 A prevenÁ„o da afasia

Iem: Se pode prevenir a afasia?

MS: N„o! //Com Ínfase na voz//.

Iem: O senhor acha que n„o?

MS: N„o! N„o... porque eu deitei... dormi... aqui //Toca sua perna direita//...

//Leva a m„o em direÁ„o ‡ boca// afasia. N„o teve... n„o tem cabimento.

Eu deitei e... afasia.

CI: Existe prevenÁ„o.

CI passa a argumentar sobre a possibilidade de prevenÁ„o de doenÁas

que podem causar afasia citando como exemplos o controle de colesterol, da

hipertens„o arterial. Iem assume o ponto de vista de CI, falando sobre a

prevenÁ„o de acidentes de tr‚nsito, causa maior dos traumatismos cr‚nio-

encef·licos.

O que se depreende da an·lise desse fragmento È que os

encadeamentos ñ a relaÁ„o entre dois ou mais enunciados ñ desenham n„o

apenas o que È elo explÌcito entre os diferentes pontos de vista, mas tambÈm

aquilo que constitui implÌcito partilhado ñ aquilo que È comum, que È

conivÍncia, o que È aceito, acordado entre os interlocutores ñ e diferenÁa entre

os pontos de vista ñ objeto de divergÍncia, desacordo, conflito. A fala de MS ñ

n„o tem cabimento... eu deitei e... afasia ñ veicula o ponto de vista de que n„o

È possÌvel a prevenÁ„o da afasia. A fala de CI ñ existe prevenÁ„o ñ È uma

reformulaÁ„o que introduz um ponto de vista divergente e que exibe o modo de

funcionamento do discurso que, de maneira cooperativa ou conflitante, se

movimenta pela ruptura e pelos deslocamentos.

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229

Mas È no CCA17, no qual estavam presentes JB, SI, LM, CI, Iem, Imc,

Iat, e Ijt, que a discuss„o sobre a prevenÁ„o da afasia ser· retomada com mais

vigor. Cumpre lembrar que È nesse encontro que o grupo inicia formalmente a

discuss„o do roteiro. Embora as quatro primeiras perguntas do roteiro tenham

sido debatidas nesse encontro, È a terceira ñ Podemos prevenir a afasia? ñ

que interessa ‡ presente discuss„o.

No fragmento que apresentaremos a seguir, a tÌtulo de exemplificaÁ„o,

observamos que o discurso divergente que se estabelece entre a possibilidade

de prevenÁ„o da afasia e a impossibilidade de prevenÁ„o, por se desenvolver

num quadro mais cooperativo que È o da interaÁ„o no CCA, pressupıe que as

divergÍncias sejam atenuadas pela reafirmaÁ„o da existÍncia de uma base

consensual: existe a possibilidade de prevenÁ„o, mas n„o da afasia em si e,

sim, de suas possÌveis causas.

Na discuss„o empreendida pelo grupo, observamos que a construÁ„o da

rede de significaÁıes que os sujeitos pretendem partilhar implica que eles

desenvolvam um trabalho conjunto. A busca de um consenso vai exigir

freq¸entemente que os sujeitos se envolvam em atividades de reformulaÁ„o,

num jogo de interpelaÁıes recÌprocas e aproximaÁıes sucessivas (explicitaÁ„o

de pressupostos, verbalizaÁ„o de intenÁıes). Na busca de um consenso, a

natureza do quadro interativo ser· a da conversaÁ„o ou da discuss„o. Nessa

busca deparamos com questıes de natureza metaling¸Ìstica: ìil faut síentendre

sur les motsî (Vion, 1992, p.255). Numa interaÁ„o desse tipo È preciso um

trabalho de ajustes sobre as significaÁıes de acordo com o sistema de

referÍncias que est· em jogo.

Nesse ajustamento progressivo de significaÁıes as atividades de

modalizaÁ„o, retomada, reformulaÁ„o e referenciaÁ„o ser„o exigidas. Cada um

desses processos ser· ñ pelo menos de forma implÌcita ñ submetido ao

julgamento do outro, podendo mesmo ser refutado embora se trate da busca

de um acordo.

De toda forma, esse consenso ou acordo n„o implica que o trabalho de

construÁ„o do sentido, de construÁ„o da relaÁ„o e das pr·ticas discursivas,

seja um trabalho linear no qual os protagonistas progridem passo a passo, de

comum acordo uns com os outros. Sobre esse aspecto Vion (1992, p.256) cita

Cicourel (1979):

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230

Dans les conversations de routine, les interlocuteurs et les

auditeurs attendent des propos ultÈrieurs quíils leur permettent de

dÈcider ce qui Ètait signifiÈ prÈcÈdemment. Interlocuteurs et auditeurs

assument que ce que chacun dit ‡ líautre pourra, ‡ un moment donnÈ,

Èclaircir un discours ou une description ambigus dans líimmÈdiat.5

Os sujeitos que participam de uma interaÁ„o podem a qualquer

momento recobrir os enunciados de uma nova significaÁ„o. Esta concepÁ„o

n„o-linear do tempo e da interaÁ„o vai contra as estruturas formais que

pretendem que a significaÁ„o de uma seq¸Íncia discursiva seja determinada

pelas seq¸Íncias anteriores.

2.2 Podemos prevenir a afasia? Eu creio que n„o... eu creio que sim!

CI n„o concorda com a resposta dada por sua esposa, de que n„o h·

prevenÁ„o para a afasia ñ e surge o conflito. Por que respostas diametralmente

opostas para esta quest„o? A discuss„o que se segue no grupo vai apontar

para duas direÁıes argumentativas diferentes, a depender do conceito que se

tome de ìprevenÁ„o da afasiaî: prevenir a afasia em si ou prevenir suas

causas. O grupo elenca uma sÈrie de causas que podem levar a alteraÁıes

cerebrais e, conseq¸entemente, ‡ afasia, e que podem ser prevenidas. … Iat

quem vai apontar para a quest„o de que a prevenÁ„o da afasia n„o È direta.

Ao final, todos concordam que È possÌvel prevenir a afasia do ponto de vista de

suas causas. AlÈm disso, È fundamental divulgar a informaÁ„o de que existe a

possibilidade de prevenÁ„o para que se retire a idÈia de fatalidade que, muitas

vezes, cerca a afasia.

5 Nas conversaÁıes de rotina, os interlocutores esperam que as proposiÁıes feitas posteriormente lhes permitam compreender o que foi anteriormente dito. Os interlocutores assumem que aquilo que È dito ao outro poder·, a um dado momento, esclarecer um enunciado, uma ambig¸idade ou um mal-entendido no fio da enunciaÁ„o. (TraduÁ„o ALT.)

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231

CI: ... Podemos prevenir a afasia? //Lendo//. ìEu creio que n„oî //Lendo a

resposta de sua esposa// ela ela respondeu. Eu creio que SIM!

JB: //Ri//.

Iat: Podemos prevenir... a afasia?

CI: Podemos prevenir...

Iem: NÛs conversamos um pouco j· nÈ tambÈm na semana passada?

CI: … conversamos nÈ? Eu creio que sim! Por quÍ? A È... È... È... È...sangue

nÈ? Noventa por cento È problema de sangue t·? Se houvesse um

exame de sangue È... È... È todo ano... a gente saberia prevenir a

afasia... de de acordo com o sangue. …... È... È problemas de coraÁ„o...

problemas de È... È... È... alta a... a... È È hipertens„o... problemas de...

nÈ? Controla e evita afasia porque depois que tem afasia... depois que

d·... d· o derrame aÌ que... aÌ //Com gesto de ìacabarî//.

Iem: [VocÍ viu a quest„o LM? NÈ? Que a pergunta È: ìpodemos prevenir

a afasia?î A per... a resposta... inclusive do ponto de vista cientÌfico È

sim! N„o È?

LM: Sim!

CI: ….

Iem: Sim... porque se vocÍ conhece as causas... vocÍ pode tentar prevenir...

vocÍ... vocÍ...

CI: […... porque eu n„o n„o sabia que eu tava... que eu eu eu tinha o

derrame! NinguÈm sabia!

Iem: T·! Mas tambÈm as pessoas podem ter afasia por... por causas

diferentes dessas que vocÍ falou.

CI: [Causas diferentes... claro!

Iem: Por exemplo... uma pessoa que tem um acidente no tr‚nsito...

automobilÌstico!

CI: [Acidente...

acidente... È....

Iem: AÌ a prevenÁ„o È uma prevenÁ„o pra qualquer tipo de problema... n„o È

verdade? NÈ? Porque... por exemplo... se sabe hoje nÈ quer dizer... que

È... que... que eu ser n„o... n„o precavido no tr‚nsito pode causar... n„o

sÛ uma les„o cerebral... pode causar outras coisas...

CI: Acidentes de tr‚nsito...

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Iem: AtÈ a... atÈ a... atÈ a morte!

CI: Acidentes de tr‚nsito...

Iem: [Mas n„o È bem isso a prevenÁ„o nÈ?

CI: ...acidentes de tr‚nsito no Brasil... È causa È... È... È muitas dificuldades

È... È... È... causa muitos È... È tem afasia porque n„o tem a prevenÁ„o

a... a... a prevenÁ„o do acidente de tr‚nsito....

Iem: Porque a pessoa pode ter traumatismo cranioencef·lico.

CI: Porque o jovem dirigindo... tudo bem... tem que dirigir. Mas quando

acontece acidente... aÌ tem o derrame cerebral... aÌ aÌ aÌ que acontece a

famÌlia toda... se... vai saber.

JB: A novela... das oito nÈ? //Faz gesto com a boca aberta e balanÁando

cabeÁa e corpo, com m„os tortas//.

Iem reconhece que JB est· falando sobre um ator que sofreu um

acidente automobilÌstico na vida real e teve um traumatismo cranioencef·lico

(TCE). Na novela, ele representa um personagem que tem problemas de fala,

tambÈm ocasionado por TCE. CI, JB, Iem, Iat, Imc interagem conversando

sobre esse tÛpico enquanto LM e SI permanecem calados, acompanhando.

Iem retoma a discuss„o.

Iem: Ent„o... nossa idÈia È o seguinte tambÈm de... quando respondermos...

porque a idÈia È que no livro tenha essas essas perguntas e as

respostas. Ent„o a nossa atitude... n„o È... È informar que que pode

prevenir nesses termos em que nÛs estamos falando aqui.

CI: Todos digam que sim //Escrevendo//.

Iem: T·.

CI: Concorda? //Olhando para todos//. Todos digam que sim //Terminando

de escrever//.

Iem: Porque se a gente n„o diz... olha... porque se a gente n„o diz... se a

gente diz por exemplo que n„o tem... que n„o pode prevenir nÈ... fica

todo com uma aparÍncia de fatalidade.

CI: [….

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233

CI: …!

Iem: NÈ? Quer dizer nÈ? VocÍ n„o tinha assim nenhuma... nenhuma...

CI: [AÌ... aÌ a gente

sente que È um por cento fatal! AÌ a gente fica preocupado.

Iem: AÌ vocÍ vai ver È fatal... ah mas a pessoa tinha diabetes... n„o cuidava...

tinha hipertens„o e n„o sabia.

CI: Diabete tem cura.

Iem: N„o È?

Iat: Eu acho que a gente podia falar em... n„o prevenir a afasia

diretamente... mas diminuir os riscos de vocÍ ter... nÈ alguma coisa que

pode... que possa estar levando ‡ afasia.

Imc: [Isso... cuidar da sa˙de.

Iem: [Les„o cerebral... por exemplo.

CI: …... e e se tem al È pre press„o alta... ta... va... exame de sangue faz um

ano... faz cada seis meses!

Iem: Sem d˙vida.

Iat: ….

Imc: Isso!

Iem: …... porque olha... vejam essa resposta... a segunda: se È se È fato se È

fato que... „... pra conceituar... pra entender a afasia... faz parte dessa

idÈia o fato //Leva a m„o ao lado esquerdo da cabeÁa// de È... decorrer

de alguma les„o cerebral //Retira a m„o do lado esquerdo da cabeÁa//

ent„o a gente tem que preservar o cÈrebro... vocÍ entende? Quer dizer...

quer dizer... o cÈrebro tem que ficar Ìntegro... tem que ficar bom nÈ? Do

ponto de vista estrutural... nÈ? Quer dizer... n„o pode ter uma les„o...

n„o pode ter uma alteraÁ„o... sen„o ele n„o funciona direito. Em ele n„o

funcionando direito por exemplo... a linguagem pode n„o funcionar

direito.

CI: Isso!

Iem: Por exemplo... n„o È? Ent„o... È... podemos falar da prevenÁ„o nesses

termos em que nÛs estamos falando aqui nÈ?

Iat: h„...

Iem: N„o È? T· jÛia!

Iat: Porque n„o È direta nÈ?

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Iem: …... exato.

Iat: N„o È direta.

Imc: Hum hum.

Iem: …. Mas de qualquer maneira h· uma idÈia de prevenÁ„o e n„o h· uma

idÈia de fatalidade... porque a fatalidade tambÈm tem... decorre em outra

coisa que È o quÍ: ìn„o posso fazer nada quanto a issoî.

CI: N„o... noventa por cento... idÈia... idÈia...

Iem: [NÈ? ìVou viver assim... È fatal mesmo...

Deus quisî e assim vai!

LM: //Ri, concordando com a cabeÁa//.

CI: [Das pessoas que s„o

af·sicas acreditam que È... È... È...

LM: [ìDeus quisî //Rindo//.

CI: Acreditam que n„o pode prevenir... certo?

Iem: [Deus o livre!

CI: Noventa por cento acredita que n„o pode prevenir. Eu acredito que pode

prevenir sim!

Imc: Cuidar da sa˙de nÈ?

CI: …! Porque n„o prevemos... por que n„o prevenimos? Bebia... fumava...

tudo!

Imc: E aÌ deixa... larga... nÈ?

Iem: [Se a gente n„o acredita em prevenÁ„o... È... aÌ veja o que

acontece...

CI: [Aconteceu nÈ?

Iem: ...como tudo est· ligado! Se a gente n„o acredita em prevenÁ„o... n„o

acredita em enfrentamento... n„o acredita em terapia... n„o acredita em

melhora nÈ? N„o acredita em nada dessas coisas que vÍm junto. N„o

acredita inclusive em conviver com algumas dificuldades que

permanecem n„o È? Quer dizer... n„o acredita... na qualidade de vida

nÈ... se a gente n„o acreditar em prevenÁ„o.

CI: Isso!

Iem: Ent„o...n„o È isso?

CI: [Isso... parabÈns.

JB, LM, Imc e Iem: //Riem//.

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A heterogeneidade constitutiva do espaÁo discursivo È fonte de uma

grande diversidade de possibilidades de desenvolvimento da interaÁ„o. N„o

existe um caminho previsÌvel para o desenrolar do discurso. Os movimentos

tem·ticos ìobservados n„o correspondem a uma progress„o linear, mas ao

entrelaÁamento de diferentes fios condutores com os quais os interlocutores

jogam em seus encadeamentos e deslocamentos. As palavras s„o construÌdas

em relaÁıes de similitude, de contraste, de oposiÁ„o, de diferenÁa. Salazar

Orvig (1999, p.192) apresenta os encadeamentos entre os pontos de vista

como ìdes interstices qui nous permettent díentrevoir les diffÈrentes dimensions

‡ líoeuvre dans la construction de líespace discursifî. Os encadeamentos

carregam graus de descontinuidade, deslocamentos, e nos permitem ver as

diferentes figuras da articulaÁ„o dialÛgica.

No fragmento anterior È possÌvel, levando-se em conta as diversas

atividades discursivas construÌdas conjuntamente pelos sujeitos, apreciar todo

o trabalho que conduz os sujeitos a um consenso. Conforme a natureza do

quadro interativo a busca de um consenso ter· maior ou menor cooperaÁ„o

dos participantes da interaÁ„o. Da mesma forma, o consenso ser· mais ou

menos aceito pelos parceiros da interaÁ„o.

A busca de um consenso sobre a quest„o da prevenÁ„o da afasia n„o È

o que movimenta os sujeitos na interaÁ„o. No entanto, como no tipo de

interaÁ„o que ocorre no CCA a cooperaÁ„o predomina e a intercompreens„o e

os acordos constituem os fundamentos ñ o que pressupıe um engajamento

convergente dos interlocutores ñ os sujeitos acabam por assumir um ponto de

vista consensual sobre a quest„o da prevenÁ„o.

Quando o consenso È alcanÁado, n„o necessariamente a interaÁ„o

finda. O consenso marca um momento na interaÁ„o em que o conflito termina e

os mal-entendidos e as incompreensıes s„o administrados. A busca de um

consenso constitui um eixo ao redor do qual cada um dos atores pode marcar

suas diferenÁas: ao se delimitarem os pontos de acordo, apreendem-se as

zonas de divergÍncias (Vion, 1992, p.257).

Os movimentos discursivos nos permitem ver em sua din‚mica, em seus

deslocamentos, em suas rupturas, os diferentes planos e as diferentes faces a

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partir dos quais se constitui o trabalho linguageiro dos sujeitos que interagem

na construÁ„o do livro do CCA como objeto de discurso. E nesse trabalho o

que temos È a partilha e a incerteza da partilha, lugar de convergÍncias e de

divergÍncias, trama e urdidura do tecido discursivo.

3. O CCA em cena A noÁ„o de espaÁo discursivo se fundamenta na pressuposiÁ„o da

inscriÁ„o, em uma inst‚ncia memorial, daquilo que È produzido na interaÁ„o

(Salazar Orvig, 1999, p.227). Os sujeitos implicados numa interaÁ„o verbal

est„o constantemente submetidos a uma tens„o entre significaÁıes que

constituem uma rede heterogÍnea de possibilidades: significaÁıes esperadas,

previstas, prÈ-construÌdas, e significaÁıes que se instauram no hic et nunc da

interaÁ„o.

Nesse sentido, podemos falar que toda interaÁ„o È atravessada pela

tens„o entre uma convergÍncia sustentada pela idealizaÁ„o da partilha de

conhecimentos e de pertinÍncias e por uma divergÍncia dependente das

orientaÁıes efetivas dos interlocutores, da pluralidade de fios condutores que

ligam os enunciados e das diferentes vias que os interlocutores podem seguir e

privilegiar.

A interaÁ„o est· ent„o constantemente submetida a uma tens„o entre

uma comunidade fundamental e uma diferenÁa irredutÌvel (Salazar Orvig, 1999,

p.229). E essa comunidade n„o È um dado a priori. Ela È o fruto de uma

histÛria, histÛria de grupo e histÛria individual. A comunidade pode ser tomada,

como sugerem as palavras de Bourdieu (1997, p.15), como fruto das

particularidades de histÛrias coletivas diferentes.

Nos fragmentos a seguir ñ todos retirados de encontros nos quais o livro

do CCA foi tema de discuss„o ñ o CCA entra em cena como o fruto da

construÁ„o de seus interlocutores em seus movimentos de convergÍncia e de

divergÍncia: ao construir um objeto de discurso como o livro do CCA, os

sujeitos aÌ inscritos partilham vivÍncias, experiÍncias, saberes, conhecimentos

semiÛticos e ling¸Ìsticos, e est„o engajados em uma atividade comum, com um

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mesmo objetivo, na construÁ„o conjunta de um discurso partilhado; e ao

mesmo tempo convivem com diferenÁas de pontos de vista, com olhares

diversos tanto sobre o objeto em construÁ„o ñ o livro do CCA ñ como sobre o

prÛprio espaÁo discursivo onde a interaÁ„o se d· ñ o CCA.

3.1 CCA: tempo e lugar de convivÍncia

No encontro a seguir transcrito6 estavam presentes os sujeitos JB, SI,

LM, CI, Iem, Imc, Iat e Ijt.

CI relata ter assistido na televis„o a um programa sobre exercÌcios para

reabilitaÁ„o de pacientes com seq¸elas motoras. Afirma ter ficado

entusiasmado ao constatar que a melhora È possÌvel mesmo muito tempo apÛs

a les„o cerebral.

Os sujeitos se definem aqui pelo tempo de convivÍncia no CCA, que

muitas vezes coincide com o tempo de sua histÛria da afasia. Para SI o espaÁo

do CCA È categorizado como ìescolaî e, provavelmente dentro de sua

perspectiva, o conceito de îescolaî ultrapassa o de ìestabelecimento p˙blico ou

privado onde se ministra, sistematicamente, ensino coletivoî. O ponto de vista

evocado È o de conhecimento compartilhado, saber, estudo ñ afinal o grupo

trabalhou com afinco em pesquisas e leituras na elaboraÁ„o do livro ñ,

experiÍncia e vivÍncia.

A fala de CI mobiliza cada um dos outros participantes e provoca uma

discuss„o sobre a quest„o da melhora e, conseq¸entemente, da cura da

afasia.

Existe uma idÈia arraigada no senso comum, e mesmo no metadiscurso

cientÌfico, de que as pessoas que tÍm uma les„o cerebral jamais recuperar„o

os movimentos ou a fala. A experiÍncia vivida pelos af·sicos que freq¸entam o

CCA aponta para uma histÛria de evoluÁ„o, de melhora e de recuperaÁ„o. CI,

LM, JB e SI v„o se revezando nos depoimentos, que tÍm em comum o fato de

todos terem readquirido certa autonomia apesar dos diferentes tipos e nÌveis de

gravidade da afasia e das dificuldades motoras.

6 CCA17, em 8 de junho de 2000.

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238

CI: NÛs ficamos admirados porque pode ter vinte anos que aconteceu o

acidente... mas o treinamento

Iem: [Ainda h· melhora...

CI: Isso! E as pessoas... as pessoas... t· o braÁo direito... tinha quinze anos

que teve o derrame cerebral.

Iem: [E sentiu uma melhora. Fala LM... vocÍ quer falar?

LM: Ent„o... eu... me lembrei porque... com vinte anos... isso faz... catorze

nÈ?

Iem: Sei... sei //Rindo//.

CI e JB: //Riem tambÈm//.

CI: E eu... eu... eu... eu faÁo quinze. Faz catorze anos... nÈ? //Apontando

para JB//.

JB: Quinze hoje? //Aponta para si prÛprio//.

CI e Iem: ….

JB: //Mostra ì7î com os dedos//.

Iem: Sete.

JB: Sete.

CI: Sete anos? Ent„o... meu... olha isso! //Rindo//.

JB: ”... Û //Rindo//.

JB (para LM): Cinco anos... cinco anos? Sete anos.

LM: Eu... faz catorze anos.

JB: Nossa senhora!

Iem: ...Teve o acidente

CI: Ele È mais velho... ele È mais velho //Rindo e apontando para LM//.

JB: //Ri//.

Iem: Ele È mais velho do que ... //Aponta LM//.

LM: … //Concorda com a cabeÁa//.

CI (para Iem): …... È... hemiplegia...

JB (para SI): [E vocÍ... quanto?

SI: ” //Mostra ì6î com os dedos// Seis anos.

CI: Seis anos. Ent„o...

Iem: [Seis anos.

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JB: Porque n„o... n„o tem. Mais!

SI: Hum?

JB: Mais!

Imc (para SI): … mais!

JB: Mais!

SI: …?

LM: De profiss„o...

Iem (para LM): Fala!

LM (para Iem): De profiss„o... eu tenho... catorze anos.

Iem: De profiss„o?

LM: //Ri// Profiss„o de...

SI: [N„o... eu vou fazer... vou fazer... dÈ dÈ dÈ dÈ dez anos.

JB: [Ah!!!

Imc: Dez anos.

SI: Na... na escola... eu vim... È... quan... seis anos...

Iem (para SI): VocÍ foi para a escola... a senhora foi para a escola... quando

tinha seis anos.

CI: [Quando? VocÍ tinha oito anos... vocÍ tinha oito

anos.

Imc: [N„o... ela t· falando... quando

ela veio... a escola È aqui... o CCA... quando ela fala ìescolaî È aqui.

Iem: Ah... t·! Que vocÍ... t·! Que vocÍ freq¸enta aqui... h· seis anos!

Imc: Mas eu acho que faz mais... dona SI... acho que vocÍ est· aqui desde

noventa e um.

(...)

CI: AÌ... aÌ... eu vejo o seguinte: eu... eu cozinho... nÈ? Ao longo do tempo...

eu percebi que a minha mulher descascava as batatas... salada... tudo e

deixava tudo pronto pra mim fazer a comida. AÌ... aÌ... ela n„o estava...

sempre ela n„o estava l·... nÈ... porque ela saÌa... i e „... Campinas...

fazer o serviÁo de dia. AÌ... eu comecei a descascar batata... tomate

//Fazendo gestos com a m„o esquerda correspondentes a descascar,

cortar// salada de alface. AÌ... aÌ... aÌ... ela ficou admirada... nÈ...

primeira vez... ìcomo È que vocÍ fez?î Falei: ìEu usei essa m„o e cortei

com essa esquerdaî //Acompanha a fala com gestos//. ìMas como?

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VocÍ pode... vocÍ corta!î //Com entonaÁ„o de reprovaÁ„o//. ìEu n„o

cortoî. GraÁas a Deus eu n„o me cortei.

(...)

Imc: VocÍ acha que... ‡s vezes... os familiares... fazem no seu lugar? VocÍ

acha isso JB //Aponta para JB// tambÈm... SI //Aponta para SI//... LM?

//Olha para LM//. Que o familiar faz no lugar de vocÍs... por querer

ajudar... mas... enfim...

CI: Querer ajudar... mas... È...vocÍ... n„o posso fazer nada... ent„o...!

JB: … //Ri//.

Imc: VocÍ acha que faz no seu lugar... JB?

JB: Ah... //Gesto de ìdar de ombrosî//.

Imc: A BE (esposa de JB) faz no seu lugar?

JB: N„o sei ....

Imc: N„o? LM?

SI: //Ri//.

LM: N„o.

Imc: N„o?

LM: …... J·... comigo È... diferente.

Imc: … diferente? Ent„o conta.

LM: Eles... n„o me ajuda... fazer nada.

JB, SI e Imc: //D„o risada//.

Imc: Pıem vocÍ na maior fogueira.

LM: Mas È... por causa... disso mesmo.

Imc: Pra vocÍ se virar.

LM: Tem que... se virar.

CI: No comeÁo ajudava... nÈ? Quando... comeÁou?

LM: [Isso. …... mas... j· faz... muitos anos.

Imc: Hum hum.

JB: //D· risada//. Se vira.

Imc: E vocÍ... SI... alguÈm te ajuda ou vocÍ tem que se virar?

SI: Tem que... se virar //D· risada//. NinguÈm ajuda //D· risada//.

CI: [GraÁas a Deus.

Iem: [LM... mas o que vocÍ acha dessa

postura... dessa posiÁ„o aÌ dos familiares?

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LM: N„o... eu acho bom.

Iem: VocÍ acha?

CI: Eu tambÈm acho bom.

LM: …... de vez... machuca... mas... num bom.... sentido... sabe? …... eles

acha que... tem que... pÙr esse braÁo //Toca no braÁo direito com a m„o

esquerda// pra... funcionar.

JB: E... //Olha para Iem//.

LM: Uma dessa... eu vem... melhorando... um //Faz gesto de ìpoucoî com os

dedos indicador e polegar da m„o esquerda//... pouquinho... mas... ...

vem melhorando.

No fragmento seguinte7 o CCA È definido pela existÍncia do grupo, pela

sua din‚mica de trabalho, pela possibilidade de compartilhamento de

experiÍncias, pela convivÍncia. … um lugar de ìencontroî que n„o significa,

necessariamente, o encontro absoluto entre seus interlocutores, mas

justamente a diferenÁa de pontos de vista, de olhares sobre o mesmo objeto ou

sobre a situaÁ„o de comunicaÁ„o. A construÁ„o do espaÁo discursivo n„o È um

processo nem regular nem homogÍneo: o que faz avanÁar a interaÁ„o na

construÁ„o de um espaÁo discursivo como o CCA È, nas palavras de Salazar

Orvig & Hudelot (1989), ìla conjugaison hereuse de la diffÈrence dans la

connivenceî (apud Salazar Orvig, 1999, p.237).

Iem: T·! Pelo que eu estou entendendo... com relaÁ„o aos depoimentos...

seria importante falar no livro... sobre o impacto ent„o da afasia na vida

de cada um de vocÍs.

EF: Ah!

Imc: [Isso... isso!

Iem: As mudanÁas que a afasia ...

Imc: ... causou ...

Iem: ... provocou ... provoca ... que a afasia provoca ... a as novas condiÁıes

7 CCA04, em 2 de junho de 1999.

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tambÈm que ela impıe... ent„o vocÍ n„o tem ‡s vezes como falar uma

coisa... fala de outro jeito. Quer dizer: vocÍ n„o consegue se expressar

pela fala... pode fazer o gesto... isso...

Imc: TambÈm vocÍs falaram da import‚ncia do grupo... aqui.

SP: ….

Iem: T·!

Imc: Lembram de mais alguma coisa que falaram? Cada um falou um

pouco... o CI tambÈm falou da experiÍncia profissional...

Iem: Qual seria a import‚ncia do grupo... na opini„o de vocÍs? Do grupo

aqui... do nosso grupo? Qual È a import‚ncia dele? VocÍs acham que se

uma pessoa... por exemplo... fica af·sica... seria importante que ela

tivesse tambÈm uma experiÍncia de grupo como nÛs temos? O grupo È

importante pra pessoa enfrentar a afasia... recuperar ...

EF: [‘Ö Ù ...

Iem: Por que seu EF? Por quÍ?

EF: …... È ...

Imc: Por que o grupo È importante?

EF: …... È... È ...

Imc: Por quÍ?

Imc: Por que que o senhor acha que o grupo... a pergunta da Iem... foi

importante... tanto pro senhor... como pra ... os outros que participam?

Por que raz„o? Pelo encontro... por que raz„o?

EF: En:con:tro:

Imc: Encontro? E que que significa encontrar com pessoas toda semana?

Partilhar ... o que que significa? Esse? ...

EF: O u... o u ...

Imc: N„o... tenta falar! Ou escrever uma palavra que resuma qual a

import‚ncia do grupo... o senhor acha que esse grupo tem.

EF: ”: e:con:tro!

Imc: Encontro.

Iem: O encontro È importante? O encontro do grupo È importante nÈ? A gente

vai ter que contar... vai ter que... explicitar... detalhar...essa experiÍncia

particular e em grupo que cada um tem aqui.

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O prÛximo fragmento refere-se a um encontro8 no qual estavam

presentes no CCA os sujeitos EF, SP, CI, IP, Imc, Iem e Ijt. Iem apresenta IP

aos integrantes do grupo que n„o a conheciam. Ela freq¸entou o CCA

anteriormente e veio rever as pessoas, visitar o grupo e conhecer o novo

espaÁo do CCA. Todos concordam que, nesse dia, muitas pessoas faltaram.

Fazem uma lista dos participantes do grupo que n„o est„o presentes,

informando sobre cada um deles, por exemplo, as dificuldades para vir e o que

andam fazendo. Iem propıe que se relate ‡ IP quais s„o as atividades

desenvolvidas pelo grupo, e EF, ao escrever ìlivroî, permite que todos se

mobilizem para explicitar o livro do CCA.

Iem: Ele falou livro. Vamos tentar contar essa novidade pra ela, ent„o. Vamos

comeÁar pela novidade //Pondo a m„o sobre o braÁo de IP//... depois a

gente fala do que faz todo dia //Ri//.

O CCA È categorizado por CI como um espaÁo de convivÍncia, e a

participaÁ„o ou n„o dos af·sicos nesse espaÁo determina de certa forma as

possibilidades de recuperaÁ„o e os graus de severidade da afasia. Ele relata a

histÛria de um vizinho que È af·sico e n„o sai de casa para nada, pois a famÌlia

n„o permite, mesmo que seja para freq¸entar o CCA.

CI: A turma participa do CCA. Eu conheÁo essa turma que participa do CCA.

… diferente da turma que n„o participa do CCA... que vem ao Hospital

das ClÌnicas somente para o e a pa pa e volta pra c„s..., vem com a

famÌlia e volta pra casa e fica em casa //Acompanhando com gestos da

m„o//.

Iem: Ela n„o tem convivÍncia com outras pessoas af·sicas.

8 CCA06, em 8 de setembro de 1999.

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CI: N„o tem convivÍncia... ent„o È essa... essa... È essa a diferenÁa que eu

vejo muito grande das pessoas.

3.2 O CCA e o cotidiano

No encontro a seguir9 estavam presentes ao CCA os sujeitos CI, EF,

SI, JB, Imc, Iff e Iem. Em dado momento eles discutem as possibilidades ou

dificuldades de acesso ao tratamento e tambÈm a import‚ncia do trabalho

desenvolvido no CCA na vida de cada um dos participantes do grupo:

Imc: VocÍs todos conhecem outras pessoas af·sicas que n„o tÍm

tratamento...

EF: [‘... Ù...

Imc: ...que n„o passaram por essa possibilidade que a gente tem aqui... e

que tiveram... tiveram uma outra realidade?

CI: ConheÁo... conheÁo... aqui no CCA... aqui tem...

Iem: O senhor conhece... seu EF?

CI: Muito.

EF: ConheÁo!

Imc: Quer dizer: daÌ... daÌ È fundamental... quer dizer... vocÍs colocarem o

depoimento de vocÍs sobre o... o que..., o que È essa convivÍncia... o

que que o CCA propiciou pra vida de vocÍs enfrentarem aÌ...

(...)

CI: A famÌlia protege muito e tem muitos af·sico... tem muitos... È È È

af·sicos... e e e //Toca o braÁo e bate na perna//...

Iem: [HemiplÈgico?

CI: HemiplÈgico que... est· em casa! Em casa! Que n„o sai de casa! N„o

sai de casa.

EF: Hum //Concordando//.

9 CCA05, em 16 de junho de 1999.

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Iem: Quer dizer: n„o sÛ n„o tem tratamento... como est· apartado da vida...

como que acha que //Levando a m„o ‡ cabeÁa//...

CI: [Um rapaz que

mora pertinho de casa... pertinho de casa È È È... hemiplÈgico e af·sico.

Um tiro que ele recebeu... nÈ... um tiro... um tiro. A famÌlia protege e n„o

sai de casa! Nunca sai de casa! Nunca sai de casa.

Imc: [Protege...

esconde... nÈ.

Iem: Isso revela um...

Imc: Preconceito... nÈ...

CI: [As irm„ a fa... a... a... os irm„o sai... os irm„o sai... a as irm„

sai... ele n„o sai de casa!

A dificuldade de acesso ao tratamento ou a informaÁıes

esclarecedoras sobre a afasia acaba por restringir o cotidiano do af·sico, e

suas chances de reinserÁ„o social s„o praticamente nulas:

Iem: O senhor mostrou com a m„o isso aqui //Mostrando ì4î dedos da m„o

para EF// o senhor conhece quatro pessoas...

EF: [//Mostra ì4î com os dedos da m„o e acena afirmativamente com

a cabeÁa//.

CI: [Eu conheÁo um monte de pessoas... muitas pessoas af·sicas.

Iem: Af·sicas? //Falando com EF//.

EF: //Acena com a cabeÁa, confirmando//.

Iem: O senhor tem contato com elas?

EF: //Acenando com a cabeÁa//.Tenho. Tenho!

Iem: E elas est„o como na vida? Elas est„o... elas tÍm... procuraram algum

tipo de ajuda... de terapia?

EF: [N„o... n„o... n„o.

Iem: N„o!

CI: SÛ televis„o... sÛ televis„o... sÛ televis„o...

Imc: [Aquela coisa que... adapta... nÈ?

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Iem: Isoladas. O isolamento social È uma coisa muito grave... nÈ?

Imc: [Muito ruim... muito ruim...

CI: [SÛ televis„o!

Imc: Pra qualquer pessoa! N„o È sÛ pra pessoa que tem um problema!

CI: [Acorda... de manh„ liga a televis„o...

e vai dormir... desliga a televis„o.

3.3 CCA: patrimÙnio e memÛria

No encontro a seguir10 estavam presentes os sujeitos SI, SP, Iem, Imc e

Ijt. O grupo discute o planejamento para o ano 2000 em relaÁ„o ‡s atividades

no CCA. Retomam o tÛpico do livro e discutem a din‚mica do grupo, como

tambÈm as demais atividades de convivÍncia:

Iem: Uma coisa È a gente falar... outra coisa depois È alguÈm transcrever isto

e a gente escolher certas partes pra publicar... contidas no livro. Essa È

uma coisa que vai continuar... È uma proposta nossa... nÈ... para esse

ano. Porque esse grupo... que È um grupo È: que tem uma convivÍncia

maior... nÈ... um grupo que h· tempos... nÈ... j· est· se encontrando...

um grupo que j· tem confianÁa o suficiente... nÈ... na na na interaÁ„o

que tem... no trabalho que conhece para falar sobre ele... n„o È? E

juntos a gente vai fazer esse livro... provavelmente atÈ o final do ano...

nÈ? … uma coisa importante essa... que a gente t· fazendo. Mas ao

mesmo tempo... como isso aqui È um centro de convivÍncia... a gente

vai querer investir mais nesses aspectos de convivÍncia... nÈ? Porque È

na convivÍncia que mais a a fala... È: aparece... nÈ? N„o sÛ aparece

como como se justifica... se organiza... È ou n„o È?

SP: ….

SI: //Acena afirmativamente com a cabeÁa//.

10 CCA13, em 10 de fevereiro de 2000.

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Iem: N„o È? A gente sÛ conversa... a gente sÛ fala... a gente sÛ expressa

coisas que a gente pensa e justifica porque tem uma relaÁ„o com outra

pessoa... com outras pessoas... com o mundo.

SP: [Certo.

Iem: Ent„o a gente... È... acho importante falar do livro mas tambÈm manter

toda essa din‚mica que a gente vem fazendo.

Iem fala das outras atividades que s„o desenvolvidas no CCA e da

import‚ncia da convivÍncia neste espaÁo:

Iem: Agora... as outras atividades que s„o tÌpicas de um centro de

convivÍncia... na verdade... È... que fora essa nossa... esse nosso

encontro semanal... e a compartilha que a gente faz da... da... da nossa

vida... nÈ?

Imc: [….

Iem: …... atravÈs disso a gente vai experimentando... nÈ... v·rias

possibilidades de falar de um jeito... falar de outro... contar de uma

maneira... e assim vai. Ajudar as pessoas tambÈm... n„o È... a... a...

reformular... a dizer de novo... a encontrar a melhor forma pra se

expressar. Isso... tudo bem... a gente vai continuar... È importante a

agenda... È importante que a gente continue a montar o nosso painel de

notÌcias... e acompanhar... discutir. Esse È o nosso patrimÙnio de... de

coisas comuns. … a nossa memÛria. … ou n„o È? Isso È a convivÍncia.

3.4 CCA: espaÁo fÌsico e espaÁo discursivo 11

No prÛximo fragmento, Iem faz referÍncia tanto ao espaÁo discursivo

quanto ao espaÁo fÌsico do CCA:

11 CCA14, em 4 de maio de 2000.

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Iem: Contar uma coisa muito peculiar a nÛs que È esse Centro... que È a

histÛria desse Centro. A nossa histÛria tem sido contada desde quando

ele existe. E marcada pelas particularidades dessa histÛria. A gente n„o

tinha esse espaÁo antes... contava: ìOlha... a gente tem uma salinha l·

na Unicamp em que a gente se re˙ne pra enfrentar o problema da

afasiaî. Agora a gente est· assim... Û... agora a gente tem um Centro!

//Indicando com a m„o o espaÁo fÌsico do CCA//.

CI: Ah... Ù! Um Centro!

Funcionando desde 1989 e, inicialmente, em uma sala de aulas do

Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, o CCA a partir de 1998 passou

a ter um prÈdio prÛprio, onde s„o desenvolvidas suas atividades. O prÈdio, ao

abrigar o CCA, conferiu materialidade ao Centro e, alÈm disso, deu-lhe uma

referÍncia atravÈs da concretude de suas portas, janelas, mesas e cadeiras. O

livro de divulgaÁ„o das afasias traz uma materialidade diversa, pois, atravÈs

dele, falam seus sujeitos e suas idÈias circulam.

3.5 CCA: compartilhamento e identificaÁ„o de questıes comuns

Neste encontro12 estavam presentes os seguintes sujeitos sentados em

torno da mesa, da esquerda para a direita: SI, EF, Iat, SM, Iem e Isp. Ao final

do encontro, Iem lÍ a resposta dada pela esposa de CI ‡ sexta quest„o do

roteiro que norteava os debates ñ Existe algum tratamento farmacolÛgico ou

cir˙rgico para melhorar a afasia? Na resposta dada por alguÈm que aprendeu a

conviver com um af·sico, a esposa de CI reafirma o espaÁo do CCA e o grupo

como um espaÁo de compartilhamento, em certo sentido definindo o CCA

como uma comunidade.

12 CCA21, em 10 de agosto de 2000.

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Iem: Ela diz: ìN„oî. Na opini„o dela nÈ... o conhecimento que ela tem...

ìn„o... a medicina ainda n„o sabe qual È a cÈlula que comanda a falaî.

(...) Mas ela fala //Continuando a leitura//: ìN„o... a medicina ainda n„o

sabe qual È cÈlula que comanda a falaî. AÌ ela faz um coment·rio... ela:

ìTenho observado a recuperaÁ„o do meu esposo e admiro o imenso

carinho que vocÍs tÍm com os pacientes af·sicosî. Ela est· falando de

nÛs aqui do grupo.

SP: Hum... certo.

SM: //Sorri//.

Iem (Lendo): ìCreio que a grande... creio que grande parte da recuperaÁ„o

deles È devido a issoî.

Estavam presentes no encontro a seguir13 os sujeitos CL, MG, NS, Imc,

EF e SP, sentados em cadeiras formando um semicÌrculo. O debate se

desenvolve em torno da dÈcima primeira quest„o do roteiro ñ Que ajuda

profissional deve-se prestar ao af·sico?

Imc: Que profissionais podem ajudar as pessoas que tÍm uma //Aponta a

cabeÁa//... uma les„o e... dificuldades que vÍm desta... deste quadro?

Que profissionais?

EF: […. … //Apontando algo na prancheta que est· com

Imc//. ...

MG: T· //Olha para CL//.

Imc: Quem ajudou vocÍ... MG? Que ajuda profissional vocÍ teve... quando

vocÍ teve //Aponta para a cabeÁa//... ... o seu problema?

EF: ‘... a (mostrando algo para Imc).

Imc: //Faz gesto com a m„o para EF ìesperarî pois NS comeÁa a falar//.

NS: [Eu... eu... eu... È... sÛ //Batendo com o dedo na cabeÁa// a sÛ a

cabeÁa... n„o ajuda //Bate seis vezes com a ponta do dedo na cabeÁa//.

NÈ?

13 CCA27, em 5 de junho de 2001.

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Imc: SÛ o mÈdico n„o ajuda. … isso?

NS: …. Eu... eu gosto aqui //Fazendo gesto circular com a m„o e repetindo o

gesto por seis vezes indicando o espaÁo da sala//.

Imc: SÛ gÛ... desseÖ //Repete o mesmo gesto de NS// desse grupo?

NS: …. ….

EF: Eu... eu... Û //Batendo no braÁo de Imc e apontando algo na prancheta//.

Imc (para EF): SÛ um minutinho. Vamos ouvir o que a NS est· falando //Com

voz baixa e tranq¸ila//. Ela diz que sÛ //Batendo com a m„o na prÛpria

cabeÁa// a cabeÁa...

NS: [N„o ajuda.

Imc: N„o ajuda.

EF: A t·.

NS: Mas... quem sabe... nÈ... com o grupo //Fazendo gesto circular com a

m„o//...

Imc: O grupo!

NS: …. O grupo... eu consigo. NÈ?

Imc: Quer dizer... o grupo... vocÍ est· dizendo que o grupo fez bem a vocÍ.

NS: Isto. ….

… interessante observar que a formulaÁ„o de NS ñ Eu... eu... eu... È... sÛ

a sÛ a cabeÁa... n„o ajuda ñ diante de duas possÌveis interpretaÁıes como ñ sÛ

tratar a cabeÁa n„o resolve ñ ou ñ a cabeÁa n„o est· boa, n„o ajuda ñ È

interpretada por Imc como sÛ o mÈdico n„o ajuda. Mas NS vai explicitar em

sua fala o grupo e o CCA como possibilidades de melhora e, assim, ela toma o

grupo e o CCA como resposta ‡ quest„o das possibilidades de ajuda

profissional ao af·sico.

3.6 CCA: direitos e enfrentamentos sociais

Nesse encontro14 participaram os seguintes sujeitos, sentados em um

14 CCA26, em 29 de maio de 2001.

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semicÌrculo, da esquerda para a direita: Ijt, Iem, IP, MG, NS, SI, Imc, EF e SP.

Logo no inÌcio da reuni„o, EF mostra para Iem alguns documentos sobre

um processo que move contra uma empresa fabricante de cigarros e se refere

ao ìlivroî. Iem propıe ao grupo que conte para NS e MG sobre o livro de

divulgaÁ„o das afasias, uma vez que elas n„o chegaram a participar, atÈ ent„o,

de nenhuma discuss„o acerca do livro.

Embora novas no grupo, NS e MG desde o inÌcio fazem parte dessa

comunidade que se caracteriza pela partilha de experiÍncias e vivÍncias que

ela pressupıe. O livro do CCA È sempre mobilizador dessa partilha.

Iem: Ent„o... a nossa idÈia ñ isso foi durante todo o ano de dois mil ñ foi

discutir... em conjunto... como È que a gente iria... fazer esse livrinho...

que È distribuÌdo... que dever· ser distribuÌdo nas escolas... nos

hospitais... de divulgaÁ„o... nÈ... sobre esses problemas... essas

dificuldades enfrentadas por todos que freq¸entam aqui o Centro de

ConvivÍncia...

EF: [Ah! //Ergue o polegar para

cima//. Ah!

Iem: Que s„o... que È um centro de convivÍncia de pessoas af·sicas... tÍm

dificuldades e graus variados... por motivos variados... de express„o...

nÈ... da linguagem e tudo... n„o È?

EF: [A ñ f· ñ si ñ ca!

Iem: E esse È um centro de convivÍncia com pessoas que tambÈm n„o s„o

af·sicas... nÈ... ent„o... a atÈ para que... dÈ dessa interaÁ„o possa surgir

muitas idÈias de enfrentamento... de melhora... de evoluÁ„o das

dificuldades que tÍm.

EF: [A //Faz sinal de positivo com

o polegar erguido//.

Iem lembra que um dos temas, entre os v·rios discutidos para o livro, diz

respeito aos direitos das pessoas af·sicas, principalmente aos direitos

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trabalhistas. Ela relata a NS e MG que alguns dos integrantes do CCA foram

despedidos ou aposentados por invalidez ao tornarem-se af·sicos.

Iem: A gente tem histÛria aqui... NS e M..., de gente que sÛ porque ficou

af·sico //Faz movimento da m„o junto ‡ boca// ficou com dificuldades

pra falar... foi despedido... por exemplo!

Imc: Foi aposentado!

Iem: Foi aposentado! Quer dizer... nÈ? Aposentado por invalidez! O mÈdico

faz uma perÌcia e fala: ìAh! Aposentaî. Essa pessoa n„o precisaria estar

aposentada. Era sÛ ela mudar de lugar na firma. De posto... de funÁ„o.

NS e EF: //Concordam com a cabeÁa//.

Iem retoma, como exemplo, a histÛria de LM, metal˙rgico que foi

aposentado por invalidez ao tornar-se af·sico e que, no entanto, poderia ter

sido remanejado para uma outra funÁ„o na mesma empresa.

Iem: Um dos aspectos de discuss„o importante no livro seria basicamente

isso... o direito da pessoa af·sica. Ela tem direito de continuar

trabalhando... mesmo estando com problemas para se expressar... pra

falar... entendeu? Agora È preciso abrir a cabeÁa das pessoas... abrir a

cabeÁa do povo. … ou n„o È? Que È muito desinformado a respeito

disso.

Para concluir

A histÛria da construÁ„o do livro do CCA È um pouco a histÛria do

prÛprio CCA como comunidade, por revelar a din‚mica de funcionamento

desse espaÁo em que se conjugam, no cotidiano, determinadas pr·ticas

sociais, comunicativas e discursivas. Os sujeitos autores aÌ inscritos mobilizam

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253

v·rias pr·ticas discursivas ao longo do processo de elaboraÁ„o desse objeto

de discurso que È o livro do CCA.

Os sujeitos encontram-se como que ancorados em um grupo e em um

dado contexto nessa tarefa de construÁ„o do livro do CCA. Tal ancoragem n„o

nos permite, contudo, falar de uma comunidade homogÍnea, mas sim da

participaÁ„o dos sujeitos ñ em graus e em modos distintos ñ em diferentes

comunidades superpostas, disjuntas ou em interseÁ„o. Todos nÛs somos

membros de comunidades mais gerais e igualmente membros de conjuntos

mais restritos determinados por certa localizaÁ„o geogr·fica, por nossa

inscriÁ„o em grupos ou redes sociais, culturais, ling¸Ìsticas, profissionais etc.

Se admitimos a multiplicidade de inscriÁıes dos sujeitos em diversas

comunidades, devemos admitir que a comunidade È, ela mesma, atravessada

pela heterogeneidade e em nÌveis que podem parecer bem genÈricos, como

condiÁıes de vida ou fatores culturais.

No seio de uma comunidade como o CCA podem-se observar

subgrupos que se formam entre aqueles que vivenciaram diretamente a

experiÍncia da afasia ñ os af·sicos ñ e aqueles que sÛ podem projet·-la ou

imagin·-la por analogia a experiÍncias similares ñ os n„o af·sicos. Mas os

sujeitos af·sicos e n„o af·sicos em interaÁ„o e engajados na atividade do livro

acabam por produzir um discurso que se torna o patrimÙnio comum dessa

comunidade que, por essa raz„o, podemos chamar de comunidade discursiva.

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255

Conclus„o

As reflexıes acerca das afasias e dos af·sicos apresentadas ao longo

desta tese ñ e que recobrem um perÌodo extenso e intenso de atividades

desenvolvidas pelos sujeitos af·sicos e n„o af·sicos ñ resultaram no livro

Sobre as afasias e os af·sicos ñ subsÌdios teÛricos e pr·ticos elaborados pelo

Centro de ConvivÍncia de Af·sicos, publicado em abril de 2003.

Os sujeitos integrantes do CCA, de diversas maneiras, transformaram

suas vivÍncias e convivÍncia com as afasias e com os af·sicos em conversas,

discussıes e reflexıes que foram dando ìforma e conte˙doî ao livro.

Iem: Ent„o nÛs ficamos um temp„o... e um temp„o porque somos muitos...

um temp„o porque s„o v·rios os temas que a gente ia abordar nesse

livrinho... n„o È? TambÈm teve uma parte desse... desse livrinho em que

as pessoas falam o seu... os seus depoimentos. Ent„o s„o os relatos de

experiÍncias com as afasias...

Consensual enquanto projeto a ser realizado pelo grupo, seus objetivos,

bem como o seu formato e conte˙do, contudo, precisaram ser negociados para

que fosse um livro de todos...o nosso livro, o livro do CCA. … desse processo,

portanto, que trata o presente trabalho.

A partir das pr·ticas discursivas e interativas do CCA (discussıes,

formulaÁıes, revisıes, retomadas etc.) mais pontuais organizou-se a vers„o

final do livro, estruturado para circular entre interessados leigos e especialistas.

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256

As respostas ao roteiro de perguntas que constituiria uma das sessıes do

livro,1 por exemplo, serviu como uma espÈcie de instrumento narrativo.

A funÁ„o de reunir os elementos que deveriam constar do livro, por

decis„o negociada em todo o processo, coube aos pesquisadores integrantes

do Centro, envolvidos desde o inÌcio com o projeto. Tais elementos incluem,

por exemplo, objetivos, conceitos, articulaÁ„o entre as linguagens tÈcnica e

leiga, preocupaÁ„o com virtuais leitores e p˙blico, compartilhamento de

realidades e experiÍncias concretas e divulgaÁ„o da existÍncia e do

funcionamento do prÛprio CCA, alÈm de orientaÁıes gerais a amigos e

familiares de af·sicos. Dessa maneira, a autoria, em relaÁ„o ‡ elaboraÁ„o ou

execuÁ„o desse projeto, acabou sendo reconhecidamente de todos, que dele

foram participando de diversas formas, disposiÁıes e competÍncias. Sobre

isso, retomemos alguns exemplos preciosos:

Iem: Ent„o... nossa idÈia È o seguinte tambÈm de... quando respondermos...

porque a idÈia È que no livro tenha essas essas perguntas e as

respostas. Ent„o a nossa atitude... n„o È... È informar que que pode

prevenir nesses termos em que nÛs estamos falando aqui.

CI: Todos digam que sim //Escrevendo//.

Iem: T·.

CI: Concorda? //Olhando para todos//. Todos digam que sim //Terminando

de escrever//.

Iem: Porque se a gente n„o diz... olha... porque se a gente n„o diz... se a

gente diz por exemplo que n„o tem... que n„o pode prevenir nÈ... fica

todo com uma aparÍncia de fatalidade.

CI: [….

CI: …!

Iem: (...) Se a gente n„o acredita em prevenÁ„o... n„o acredita em

enfrentamento... n„o acredita em terapia... n„o acredita em melhora nÈ?

1 Ver Nota 40 do CapÌtulo 1.

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257

N„o acredita em nada dessas coisas que vÍm junto. N„o acredita

inclusive em conviver com algumas dificuldades que permanecem n„o

È? Quer dizer... n„o acredita... na qualidade de vida nÈ... se a gente n„o

acreditar em prevenÁ„o.

CI: Isso!

Iem: Ent„o... n„o È isso?

CI: [Isso... parabÈns.

JB, LM, Imc e Iem: //Riem//.

Iem: Olha aqui... a gente tem uma introduÁ„o... essa introduÁ„o fui eu que

escrevi... ah escrevi uma introduÁ„o contando qual foi o espÌrito do livro

nÈ... contando um pouco sobre qual foi a idÈia pra explicar pro leitor que

n„o compartilhou com a gente nÈ... porque nÛs ficamos aqui uns dois

anos nesse trabalho nÈ... ent„o conta um pouco sobre o espÌrito ... o que

que tem dentro dele... qual È a a nossa expectativa com o livro...

Iem: ìOrientaÁıes b·sicas aos familiares e amigosî //Lendo no livro//. A gente

escreveu esse texto com base nÈ... no recolhimento nÈ... na recolha ...

com base na experiÍncia de vocÍs... muitos falaram lembra disso? Ah...

n„o se pode falar... na presenÁa do af·sico como se ele fosse uma...

tivesse fora da conversa nÈ... eles tÍm uma orientaÁ„o b·sica nÈ... ‡s

vezes... v·rias recomendaÁıes... nÈ... pra entender um pouco o o

impacto que tem a pessoa nÈ quando fica af·sica... depois dessas

recomendaÁıes nÈ... de ordem mais pr·tica... aos amigos e familiares

de af·sico sobretudo na fase inicial nÈ... da sua afasia...

O livro finalmente publicado, com tiragem inicial de mil exemplares e

pronto a ser distribuÌdo ao p˙blico a que se destinava (a saber, instituiÁıes de

ensino superior, centros de sa˙de, bibliotecas e hospitais especializados ñ

outra decis„o tomada em conjunto por todos os envolvidos), È processo e

produto.

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Como pondera Mondada (1994; 2001, p.9), os objetos de discurso n„o

s„o concebidos como tendo uma relaÁ„o de especularidade com os objetos do

mundo. Do mesmo modo, podemos pensar que o inverso tambÈm ocorre, ou

seja, o que se produz materialmente evoca e se constitui a partir do processo

que o engendrou, guardando ñ em termos Ètico-discursivos ñ o que foi

construÌdo interativamente e discursivamente pelos sujeitos. N„o È ‡ toa, que

diante do livro publicado, o reconhecimento da projeÁ„o de todo um processo

presente naquela materialidade discursiva (escrita) È assinalado pelos sujeitos

envolvidos:

Iem: Viu como È que saiu o... o tÌtulo? Olha aqui... SM //Mostrando a capa do

livro para SM//... leia pro grupo.

SM: Sssobre a afasia e a os af·sicos //Lendo//.

Iem: Sobre as afasias e tambÈm sobre os af·sicos.

Iem: …. As afasias. E tambÈm tem embaixo //Lendo//: ìSubsÌdios teÛricos e

pr·ticos elaborados pelo Centro de ConvivÍncia de Af·sicosî. D· uma

olhadinha... gente... no sum·rio. No sum·rio... no Ìndice... enfim. ...

Deixa eu ver //Procurando no livro//. Aqui gente... Û //Mostrando a p·gina

do Ìndice// aqui contÈm os itens... do livro. Lembra que a idÈia do livro

era... escrever algo para divulgar... pra informar... pra combater o

preconceito... Pra ensinar tambÈm... e pra contar uma experiÍncia de

grupo que nÛs temos de pessoas que s„o af·sicas... de pessoas que

n„o s„o af·sicas.

NM: Mas num... nunca se passa disto nÈ?

Iem: Como assim?

NM: Nunca se fica bom na verdade.

Iem: …... a gente explica isso... a gente tenta abordar essa quest„o... da

cura... nÈ... naquele ponto l·. Lembra aquele ponto... H· cura para a

afasia? N„o sei qual que È //Procurando no livro//. Vamos voltar l·. Tem

o que È afasia depois... qual ponto que È aquele que a gente tenta

responder se tem cura ou n„o?

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NM: Ah... n„o sei...

Iem: Vamos voltar dona NM... pra isso que serve um livro... ainda bem que

ele È material... que a gente pode voltar a ele...

(Todos do grupo procuram localizar o tema no livro).

NM: ìO af·sico pode continuar a trabalhar?î //Lendo no livro//.

Iem: N„o. H· uma coisa... //Procurando no livro//. Est· aqui... Û! O ponto dois

ponto seis.2

NM: ìH· tratamento para as afasias?î //Lendo//.

Iem: Isso. A gente tenta abordar essa quest„o. Porque a dona NM estava

dizendo uma coisa... que È importante. Muita gente pergunta isso de

cara. Achando que a afasia È sÛ doenÁa... (...) Ent„o... h· cura para

esse mal?

JL: ìN„o existe tratamento far... farma... farmacolÛgicoî //Lendo//. … isto?

Iem: …!

Ijt: Agora... isso È o resultado do da les„o... do do problema... de fato.

Saber que... È isso que o livrinho tenta falar: ìOlha... tem que saber

conviver com estas dificuldadesî.

O livro j· publicado, outra materialidade discursiva, d· visibilidade aos

objetos de discurso construÌdos, estabilizados, como fruto da negociaÁ„o de

pontos de vista diferentes dos sujeitos acerca das afasias e de questıes a ela

relacionadas. Ao longo desta tese procurei, essencialmente, destacar todo o

processo por meio do qual o livro do CCA, como construÁ„o discursiva, È

capaz de exibir o espet·culo da diversidade de pontos de vista em torno de

conceitos inicialmente fluidos ñ afasia, cura, prevenÁ„o, relatos de vida etc. ñ

que v„o sendo negociados atravÈs de movimentos de aproximaÁıes

sucessivas, de ajustes m˙tuos da significaÁ„o diante de objetos de discurso em

construÁ„o.

2 Sobre as afasias e os af·sicos, p.31.

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Com a escrita e com a impress„o, o texto publicado ñ sem que

deixemos de considerar as peculiaridades da materialidade discursiva oral e

escrita ñ acaba por trazer as marcas desse processo. De fato, quando o grupo

decide o que colocar ìno papelî, e o coloca, o conte˙do e o formato discutidos

ao longo de mais de dois anos no CCA expressam uma vontade coletiva de

n„o sÛ explicitar, mas tambÈm de alguma forma ìcristalizarî (uma cristalizaÁ„o

relativa...) certa estabilidade discursiva. AlÈm disso, uma vontade coletiva de

configurar a prÛpria histÛria de um trabalho de co-construÁ„o:

Ijt: (...) N„o... mas nÛs estamos escrevendo ainda... n„o existe o livro ainda.

N„o existe... os li... o livro est· aqui //Apontando para a cabeÁa// na

cabeÁa de vocÍs... da gente... entendeu?

CI: ”timo... Ûtimo... faz parte da nossa pesquisa.

Iem: Do nosso acervo.

CI: Ent„o... viu que gostoso? //Falando para Iem//.

Iem: O quÍ?

CI: Essa matÈria... o nosso livro.

NM: Quais... ìquais s„o os impactos mais freq¸entes na atividade

ocupacional e na vida familiar e social do af·sico?î //Lendo no livro//.

Iem: A gente tenta... com base na experiÍncia do grupo... responder a essa

pergunta... ser· que tem implicaÁıes na vida... quais s„o as implicaÁıes

da afasia em geral na vida das pessoas? Tem gente aqui que contou

que mudou de emprego ou mesmo perdeu o emprego... que os amigos

se afastaram... que outras coisas foram aprendidas porque justamente

ficou af·sico... temos v·rias respostas pra isso.

NM: ìO af·sico pode continuar a trabalhar?î //Lendo no livro//.

Iem: … uma pergunta. Isto... isso aqui vai instruir atÈ os mÈdicos... tem mÈdico

que acha... lembra da perÌcia? Ou porque vocÍ n„o mexe o braÁo ou

porque tem uma dificuldade gestual n„o pode trabalhar em mais nada...

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261

enquanto muitas pessoas poderiam estar simplesmente... mudando de

atividade... lembra do LM contando?

SM: ….

Iem: que ele era metal˙rgico e nem pro almoxarifado ele pÙde ir... foi de cara

aposentado por invalidez?

JM: ….

Iem: E inv·lido inv·lido na verdade quase n„o se fica... È preciso adaptar-se

‡s vezes... nÈ...

Se a referenciaÁ„o enquanto pr·tica discursiva designa o processo de

colocar em relaÁ„o a linguagem, a experiÍncia e o produto desse processo, isto

significa que a referenciaÁ„o n„o corresponde a uma equivalÍncia entre as

palavras e o mundo, mas a um processo de criaÁ„o, de construÁ„o, no e pelo

discurso, de um certo universo de significaÁ„o.

¿ guisa de conclus„o desta tese que trata fundamentalmente dos

processos interativo-discursivos da referenciaÁ„o mobilizados pelos sujeitos na

construÁ„o conjunta de objetos de discurso, resta destacar alguns aspectos

relevantes no percurso interacional, dialÛgico e discursivo, aqui descrito e

analisado:

• Os af·sicos n„o deixam de exibir no decurso das interaÁıes um conjunto

de competÍncias (comunicativas, pragm·ticas, discursivas) com o qual

enfrentam ñ como e com os demais interlocutores ñ a complexidade de

relacionar recursos ling¸Ìsticos e semiÛticos em tarefas expressivas e

interpretativas com as quais atuam no mundo. Em todo o processo de

elaboraÁ„o do livro os sujeitos af·sicos, mesmo os que apresentam

acentuada dificuldade de produÁ„o oral e por isso se valem de v·rios

outros processos semiolÛgicos (gestos, posturas, olhares etc.), como EF,

SP e JB, se mostram n„o apenas engajados nas atividades concernentes

ñ participando delas ñ como tambÈm as conduzem, propıem, avaliam,

negociam, recusam, argumentam e explicam. A construÁ„o do livro se

torna, paulatina e decisivamente, co-construÁ„o.

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Imc: Eu queria que ele percebesse que ele est· falando que ele n„o fala!

Quer dizer... ele est· o tempo todo falando. E dizendo que ele n„o fala!

CI: Ele n„o tem È... noÁıes do que ele estudou antes... ele ele n„o lembra.

MS: N„o lembro. Ele est· certo //Apontando para CI//.

• A elaboraÁ„o pragm·tico-enunciativa da elaboraÁ„o do livro n„o se deu,

como vimos, de forma caÛtica, ainda que tivesse sido circunstanciada

pelas necessidades e demandas do conjunto de outras atividades e

preocupaÁıes desenvolvidas no CCA. Na ìformaî e no ìconte˙doî, o

roteiro foi estabelecendo em seu formato as marcas e os movimentos

enunciativos e pragm·ticos das negociaÁıes, argumentaÁıes,

reformulaÁıes, conivÍncia e divergÍncia, mal-entendidos, inserÁ„o de prÈ-

construÌdos etc.

• A forma como os sujeitos explicitam e constroem o sentido, construindo e

estabilizando a referÍncia ñ os objetos de discurso ñ salienta que a

referenciaÁ„o n„o È apenas parte integrante da enunciaÁ„o. Ela È em si

mesma um ato enunciativo que requer participaÁ„o ativa dos sujeitos, por

meio de v·rios processos semiolÛgicos. Morato (2001a) afirma que ìa

referenciaÁ„o È ela mesma um ato de enunciaÁ„oî uma vez que:

O mundo que o sujeito constrÛi em seu relato depende em

grande medida de suas escolhas lexicais, de suas intenÁıes

discursivas, do reconhecimento de implÌcitos culturais, do

reconhecimento de elementos tem·ticos, das posturas meta-

enunciativas dos interlocutores, do tipo de relaÁ„o que estabelece com

os outros, de coordenadas dÍiticas de que lanÁa m„o para transformar

ìreferentesî em ìobjetos de discursoî. (Morato, 2001a, p.59)

• Tomando retrospectivamente esse trabalho coletivo da e sobre a

linguagem, toma-se tambÈm que a construÁ„o de um ponto de vista

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comum, longe de ser consensual, n„o deixa de identificar uma vontade

coletiva expressa em certas formulaÁıes conceituais e extraÌda de uma

pr·tica coletiva de uma determinada comunidade de pr·ticas, de uma

determinada comunidade discursiva.

• H· v·rios tipos de interaÁ„o (Cf. Vion, 1999) nas pr·ticas do CCA, e elas

qualificam a maneira como se desenvolve a construÁ„o do livro enquanto

objeto de discurso. DissimÈtricas e heterogÍneas por v·rias ordens, n„o

deixam de revelar a construÁ„o de um ìponto de vistaî dos membros de

uma comunidade que age de forma organizada, planejada. O livreto, o

livrinho, o livro simples, o nosso livro vai se construindo ‡ medida que o

que vai identificando sua autoria È o prÛprio leitmotiv do Centro: a

convivÍncia e suas circunst‚ncias e objetivos. O que acaba sendo meta

de divulgaÁ„o È um conjunto de interesses: informaÁ„o sobre as afasias,

implicaÁıes de todo tipo sobre o impacto da afasia na vida das pessoas,

compartilhamento de experiÍncias, narrativa de uma histÛria de

comunidade de af·sicos e n„o af·sicos. … a qualidade dessa convivÍncia

que gesta os v·rios conte˙dos elencados ao fim. Na ApresentaÁ„o do

livro j· publicado, Morato afirma:

Foi necess·rio que um grupo de pessoas af·sicas e n„o

af·sicas amadurecesse a qualidade de suas interaÁıes e os prÛprios

objetivos do CCA para que projetos comuns como o que se vÍ aqui se

tornassem n„o apenas exeq¸Ìveis como imprescindÌveis. E por que

imprescindÌveis? Ao focalizar questıes num campo comum de interesse

podemos entender melhor por que os gregos achavam que o di·logo È

fundamental para o bem estar da polis; podemos entender melhor que

juntos podemos ser, numa bonita express„o de L˙kacs, como que

ìirm„os perseguindo as mesmas estrelasî. (Morato et al., 2003)

Em suma, n„o apenas o processo que aqui se descreveu e analisou

pode salientar o percurso interativo-discursivo da referenciaÁ„o, mas tambÈm o

prÛprio livro enquanto obra se projeta no futuro como objeto de discurso.

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Iem: (...) Ent„o tava pensando... porque... claro... cada um È autor nÈ... cada

um fica com livro... mas v„o pensando que lugares È que vocÍs

conhecem que poderiam estar tambÈm... levando... o livro... o senhor

tem a Derdic... ele tem a OAB que È um lugar legal...

JM: ….

Iem: porque uma coisa importante do livro È a quest„o dos direitos que n„o

s„o... s„o desrespeitados nÈ... o senhor fala pra ele dar uma lida

especial

SP: [Justamente

JM: […...

SP: …... mas vai ser... e... esse aqui vai l· na hora

Iem: JÛia... o senhor fala pra ele (refere-se ao filho de SP, que È advogado e

participa da OAB) que tem um capÌtulo...

Ihm: ….

Iem: todo especial pra isso...

Ihm: [N„o precisa nem... nem recomendar isso nÈ Seu SP... que ele vai

l· nÈ... leva direto

Iem: Nossa quem sabe nÈ heim.... a gente tem alguma mudanÁa na lei com

relaÁ„o ‡... nossa...

Ihm: [Exatamente...

Linguagem e mundo ñ discursivamente relacionados na referenciaÁ„o ñ

se confrontam e se constituem mutuamente nas pr·ticas conversacionais do

CCA, nos encontros do grupo e no livro que procura evoc·-los: ìo discurso

constrÛi aquilo a que faz remiss„o, ao mesmo tempo em que È tribut·rio dessa

construÁ„oî.3

3 A frase, de ApothÈloz & Reichler-BÈguelin (1995), È citada por Koch (2004).

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