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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR
CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGSTICA
A construo da "descano" de
Tom Z
Altaila Maria Alves Lemos
Fortaleza-Ce
2006
Livros Grtis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grtis para download.
2
ALTAILA MARIA ALVES LEMOS
A CONSTRUO DA DESCANO DE TOM Z
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Lingstica da Universidade
Federal do Cear, como requisito final para
obteno do ttulo de Mestre em Lingstica.
Orientador: Prof. Dr. Nelson Barros da Costa
FORTALEZA
2006
3
Esta dissertao foi submetida ao Programa de Ps-Graduao em Lingstica como
parte dos requisitos necessrios para a obteno do grau de Mestre em Lingstica,
outorgado pela Universidade Federal do Cear, e encontra-se disposio dos
interessados na Biblioteca de Humanidades da referida Universidade.
A citao de qualquer trecho da dissertao permitida, desde que seja feita de acordo
com as normas cientficas.
_____________________________________
Altala Maria Alves Lemos
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Nelson Barros da Costa Universidade Federal do Cear
(Orientador)
_______________________________________________________________
Prof. Dr.
(1 Examinador)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Universidade Federal do Cear
(2 Examinador)
_______________________________________________________________
Prof Dr Universidade Federal do Cear
(Suplente)
Dissertao defendida e aprovada em ___/___/_____
4
Engrandecimentos
Ao meu querido e sempre Andr, por me seduzir a escrever com vida,
morando ao meu lado.
Ao amigo e companheiro Talvanes, por confessarmos um ao outro nossos
desassossegos em conversas harmoniosas e angustiantes ao telefone.
Ao Nelson Costa, por ter sido delicado, compreensivo, amigo e orientador em
vrios momentos desse percurso.
Ao grupo Discurso, Cotidiano e Prticas Culturais, por propiciar a expanso de
questes e pesquisas literodiscursivas.
professora Bernadete Biasi, por no incio do curso ter me aceitado,
distncia, como sua orientanda, embora eu no tenha continuado sob sua
orientao.
professora Mnica Cavalcante, por sua afetuosa ateno em momentos que
esteve em risco o caminhar no mestrado.
Ao carinhoso, amigo e professor Jlio Csar, por sua fora espiritual ao me
incentivar e me ajudar no processo de seleo do Mestrado com o emprstimo
de livros e com suas idias.
Ao Washington, por nossas conversas sutis sobre Tom Z e sobre outras
canes.
professora e coordenadora Mrcia Nogueira, por sua postura serena ao lidar
conosco e com as nossas pendncias no Programa e por nossas trocas de
comentrios e empolgaes cinematogrficas.
Aos sobrinhos meigos Diego, Juninho, Ingrid, Lia e Ayla, por expressarem o
bonito desejo constante de viver.
Ao meu outro sobrinho Renan Poeta, por perceber, antecipadamente uma das
caractersticas da natureza humana ao afirmar que todas as pessoas so
misturadas e que a viagem a vida da gente.
s minhas irms Altair, Rosngela e ao irmo Ivanildo, pelas reais e
saudveis divergncias existentes entre ns; e aos amigos primos Luis Alves e
Mirian pela fora constante.
minha Me Ozana, por sempre tentar me compreender e me acompanhar do
seu modo.
5
amiga afetuosa Luanda, por seu sincero companheirismo e por sua fora em
distribuir energia de ativao.
E aos demais amigos (prximos e distantes) que foram sinceramente amigos
em momentos sensveis desse percurso: Isabel Silvino, Felipe, Ana Cludia,
Robrio Augusto, Dona Ercy, Carmen Silva, Lda, Grazi, Jlio Lira, Andria
Mary e mais outros dos quais me lembrarei depois.
Ao programa de Ps-Graduao em Lingstica, Laura e Antnia.
FUNCAP, por financiar este trabalho.
6
minha famlia
7
RESUMO
Este trabalho pretende discutir os modos do compositor baiano Tom Z
se inserir no mundo atravs de uma quantidade significativa e qualitativa de
canes1. A partir da anlise de investimentos discursivos, ou seja, das
maneiras do qu e do como se diz ou se faz dizer sua construo
literodiscursiva. Focalizamos alguns pontos, como modos do compositor se
posicionar diante da mdia fonogrfica, valores estticos musicais. Utilizamos
como referencias tericos algumas categorias da Anlise do Discurso, segundo
Dominique Maingueneau (cdigos de linguagem, ethos, cenografia, paratopia),
os conceitos grotesco e carnavalizao de Mikhail Bakhtin, alm de outros
autores. Discutimos, portanto, que efeitos de sentidos geram os investimentos
na cano, os quais nos levaram a pensar na idia de uma descano.
Palavras chaves: cano, investimentos discursivos, descano.
1Dos lbuns:
Z, Tom. Estudando o Pagode. 2005.
Z, Tom. Jogos de Armar- Faa voc mesmo. Trama, 2002
Z, Tom. Srie dois Momentos Vol. 15 (Relanamento do Cd Estudando o Samba, 1975, e de O Correio
da Estao do Brs, 1978). Continental, 2000.
Z, Tom. Srie dois Momentos Vol. 14 (Relanamento em cd de Estudando o Samba, 1972, e de Todos
os olhos, 1973). Continental, 2000.
Z, Tom. Com defeito de fabricao. Luaka Bop/WEA, 1998. Trama, 1999.
Z, Tom. No Jardim da Poltica (ao vivo em 1984 no Teatro Lira Paulistana) Independente, 1998.
8
ABSTRACT
This work intends to discuss the ways the composer from Bahia Tom Z
paths the musical community in order to picture a relevant amount of popular
songs. This point must be aimed through the analysis of discoursive traces, i.e.,
the way he says and is said in the literomusical community. We focused some
points: the way he faces the media and some esthetical values. Our theoretical
basis is the Discourse Analysis (A.D.), according Dominique Maingueneau
(language codes, ethos, cenography, paratopia), the concepts of grotesque and
carnavalization, according to Mikhail Bakhtin, and some other authors. We
discussed, then, what effects of meaning generate the authors traces in the
song activity, what makes us think of what we call a non-song (descano).
Key-words: song, discourse, non-song
9
ndice
INTRODUO----------------------------------------------------------------------------------10
CAPTULO l
O processo do trabalho --------------------------------------------------------------------17
Percurso terico: trilhas e labirintos discursivos---------------------------------------21
Traos Constitutivos da Linguagem: do princpio dialgico ao Interdiscurso---23
A construo da Enunciao----------------------------------------------------------------25
Descano e Deslinearizao--------------------------------------------------------------30
A voz que alimenta a voz--------------------------------------------------------------------37
A performance na cano-------------------------------------------------------------------38
Movimento de Instabilidade na cano: uma condio paratpica---------------40
O ser grotesco e carnavalizante-----------------------------------------------------------42
O Caminho de chegar e no-chegar: percurso do como dialogar com as
canes-------------------------------------------------------------------------------------------45
CAPTULO ll
Apresentao e contextualizao: Tom Z----------------------------------------------48
CAPTULO III
Ressonncias e desformas da cano: Descancionando por entre rasuras e
imagens grotescas-----------------------------------------------------------------------------54
Deslineariazao e defeitos verbais ------------------------------------------------------53
O defeito: problema e perfeio------------------------------------------------------------55
Ser estavelmente paratpico num lugar de entre lugares---------------------------64
A reinterpretao ou releitura: o inacabamento ou efeitos de descano----66
Jogos para desmontar e armar------------------------------------------------------------68
Embates entre posicionamentos discursivos -----------------------------------------78
A construo de cenografias na cano, da cidade longnqua para uma grande
cidade---------------------------------------------------------------------------------------------83
Apenas uma tentativa de concluso------------------------------------------------------92
Referncias Bibliogrficas-------------------------------------------------------------------94
Anexos--------------------------------------------------------------------------------------------97
10
INTRODUO
O que nos trouxe verdadeiramente aqui foram resqucios tocantes,
desses to recentes e to distantes que transformavam corpo em msica. Dos
to distantes, tratava-se de ondas inesperadas e oscilantes causadas por
Jimmy Page, guitarrista do grupo musical de rock Led Zeppelin, o primeiro
escutado por mim, por intermdio de um amigo chamado, guitarristicamente2,
Beto. No momento da escuta, as distores de timbres sonoros se expandiam.
Isso foi o longo comeo que me levou a um lugar, bateristicamente
falando, de transtornadas e distintas ondas musicais (compositores e ritmos),
ao lado de amigas (Ana Cludia, Andria e Denise). Reunamo-nos
semanalmente para tocar e ouvir, no formato do grupo musical intitulado Dress.
A partir dele, ns nos movamos em ondas, sendo cada uma delas de
diferentes timbres, tocados em uma nota s. Juntas, seguindo estrada e
estradas de palcos perifricos, chegamos num lugar comum, onde todos
tocavam e se tocavam, ao ponto de destocarmos e desenlaarmos nossas
cordas.
Foi nesse fim e chegada que se iniciou novo caminho, descortinado pelo
outro: o caminho de nova vitalidade musical, de uma msica com outros
significantes e significados, sugerindo-nos, at ento, a novidade de um olhar
dedicado ao significar amplo. No era s a descoberta do par instrumento e
voz, era muito mais complexo e triplo.
Foi quando escutei e vi com meus prprios olhos um corpo, uma voz
estranha, arranhada e familiar em lngua nordestina, um tanto bem humorada
e irnica num palco pertencente a vrias lnguas que falavam simultaneamente.
Foi nesse lugar que vi pela primeira vez Tom Z cantando, no ano de 2004, no
festival Vida e Arte. Tardiamente ou em circunstncias ideais? Tomo as duas
opes como verdadeiras.
2 Palavra incorporada por Rogrio Duarte no livro Tropicaos. O qual autor e artista mltiplo (design
grfico, compositor, poeta, professor, compositor e um dos membros experienciador do evento
Tropicalista).
11
Foi esse o momento de transio: a mudana de um antigo objeto de
pesquisa de mestrado, a escrita de si no gnero textual virtual blog para uma
escrita de si e de vrios outros, na linguagem do gnero musical cano.
Vi a possibilidades de se ouvir msica em outro lugar, alm de ouvi-la
no palco. Senti a cano, em seu sentido amplo: modos de habitar o mundo,
atravs de uma lngua e de lnguas, de uma construo esttica, contaminada
de valores culturais; e em seu sentido restrito: a msica no gnero especfico, o
cancional, letra e som, palavra e instrumentos em um s corpo.
Percebi palpavelmente a inquietude que sua cano me proporciona,
observando nela inquietaes metamusicais e socioculturais.
A palavra cantada j se tornava precria frente a gestos e expresses
sem palavras verbais que deixavam pistas para construirmos teias de relaes
entre seu discurso e outros. Foi a que vi o no dizer sendo dito, de algum
modo, o verbo e in-verbo enlaados.
O interesse em estudar msica no ambiente acadmico tambm foi
influenciado pela disciplina Tpicos em Anlise do Discurso, cursada no
Mestrado em Lingstica da Universidade Federal do Cear, no perodo de
2004-2. Essa foi ministrada pelo professor e doutor Nelson Barros da Costa,
amigo afetuoso, meu orientador. A partir desse perodo, discuti com ele
possibilidades de se estudar msica, o que resultou no seu apoio e dedicao,
pacientemente, durante os processos de mudanas de ordens terica, afetiva e
psicolgica, ocorridas ao longo do curso de mestrado.
Foram esses aspectos que me levaram a investigar Tom Z. Ao lado de
um amigo musical, singularmente to presente em aula e em fora de aula, e to
inquieto quanto Tom Z, chamado um tom Talvanes.
Assim, logo surgiu a idia de dialogar com o discurso literomusical de
Tom Z, aliado s inquietaes que percebi na sua msica: o modo de se
posicionar diante do pblico, quanto s questes referentes ao fazer cancional,
ao dilogo com o outro, seu exterior; questes polticas, questes da linguagem
verbo-musical, as quais nos suscitavam efeitos de sentido.
A desconstruo musical, a problematizao da vida, a apresentao e
representao realistas de um mundo conflituoso so tomadas em suas
12
canes, surgidas em experimentaes rtmicas e verbais num corpo
cancional. Foi atravs da percepo e da ruminao de tais elementos que
apontamos e refletimos sobre investimentos discursivo e interdiscursivo, ou
seja, maneiras de habitar e desenhar cano. Inspiramo-nos na idia de
descano, que um modo de se comportar e de se afirma a cano.
Segundo Z (2003), a cano sentida como um acontecimento natural,
no correr do tempo, num contratempo, como um dia atravessando uma vida,
numa improvisao. A cano experimentada a partir de um corpo cancional,
chamado de tero csmico, de montanha virgem e corpo de pedra (Z,
2003, p.24), sendo encontradas l possibilidades de construo, a partir de
pedaos de notas musicais gravadas, guardadas em gavetas.
Aliadas ao corpo cancional, tem-se a problematizao ou doenas da
vida, compreendida por ns como as marcas que apontam para a condio
instvel do indivduo, de ser e no ser, de estar e no-estar. Estudar e divagar
um pouco, portanto, sobre a cano de Tom Z conversar com as entranhas,
brechas e fissuras que a vida gera.
Ao realizarmos um percurso sobre seu trabalho musical, encontramos
relatos documentais e biogrfico em Campos (1993), em Calado (1997), em
Sanches (2002) e Z (2003). Lemos o trabalho biogrfico escrito pelo Tom Z3,
no qual so relatados histrias de vida do msico e sua participao na ecloso
do movimento Tropicalista. O contedo do livro apresenta descries
biogrficas, uma longa entrevista com Lus Tatit4, seo do livro que mais nos
interessa, na qual nos detemos, e mais as letras de canes at ento
realizadas. Tom Z relata os primeiros envolvimentos com a msica, na sua
cidade natal Irar, Bahia5.
H tambm algumas crticas com relao sua participao no
movimento tropicalista, segundo Tatit (in Z, 2003). Atravs desse relato,
investigamos como se deu seu relacionamento com o tropicalismo, em que
Tom Z se torna um tropicalista e um no tropicalista ou um outro tropicalista.
3 Tropicalista Lenta Luta.
4 Lingista e estudioso da semitica musical.
5 Apresentamos detalhes sobre esse assunto mais adiante, no captulo III: apresentao de
Tom Z.
13
Campos (1993)6 realiza uma reviso da histria da msica popular
brasileira referente aos movimentos Bossa Nova e Tropicalismo. Discute as
origens e posturas poltica e musical de ambos os posicionamentos. Com
relao aos msicos e compositores do primeiro, cita Joo Gilberto; e do
segundo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, dentre outros, e no
posfcio cita Tom Z. O autor atribui a ele o carter de baiano esquecido ou o
menos conversado no contexto do tropicalismo. A partir de uma breve
observao sobre suas canes, compara o compositor a um trovador que
sabe fustigar um bom tom e fundir palavra e som (CAMPOS, 1993, p. 335).
Tal comentrio pressupe que Tom Z, de certa forma, tem uma repercusso,
mesmo que aparentemente discreta. Embora toquemos nessa relao, no
desejamos, necessariamente, saber a intensidade de sua participao no
tropicalismo, mas as implicaes de sua cano influenciadas por esse
movimento.
Calado (1997) narra sobre a infncia e adolescncia de Tom Z e suas
influncias musicais. Segundo o autor, o gnero baio de Luiz Gonzaga, os
xaxados de Jackson do Pandeiro, aliados aos cantores de rdio nacional mais
o folclore da regio de Irar (BA) e as cantigas de violeiros e os sambas de
rodas das lavadeiras constituram as inspiraes do baiano. Percebemos a
uma dada ausncia de trabalho mais consistente com relao msica de
Tom Z, a preocupao de Calado, portanto, no passa de uma curiosidade
biogrfica e musical, um tanto discreta, talvez. Tal fato enfatizou a
necessidade de ns adentrarmos na sua cano.
Com relao figura do compositor Tom Z, no presenciamos um
estudo especfico. Apenas o trabalho autobiogrfico a que j nos referimos
acima (Z, 2003).
Nos primeiros sinais de composio, ao ser bloqueado pela presena
da namorada, resolve se reconstruir como compositor, relendo seu processo
de criao, impondo-se as seguintes metas para reinveno de seu trabalho:
mudar o tempo do verbo (mudar o tempo das construes verbais da cano,
do pretrito passado para o presente do indicativo); trocar o lugar no espao-o
lugar (mudar de lugar, sair da cidade natal, Irar, em busca do lugar que lhe
6 Balano da bossa e outras bossas
14
beneficiasse musicalmente); achar um novo acordo tcito(usar assunto-
espelho na cano cujo personagem construdo fosse uma representao da
vida e circunstncia do ouvinte); limpar o campo(no usar um corpocancional,
o cannico, mas plasmar a cantiga com outra matria)( Z, 2003, p. 24).
Ao debruarmos sobre a produo musical de Tom Z, no podemos
deixar de lado sua participao no contexto do movimento esttico ideolgico
Tropicalista7. O movimento que questionou valores culturais, nacional
brasileiros e internacionais, revelou-se num episdio de subverso de
costumes, que ps mesa as contradies de uma sociedade burguesa e o
caos do mundo ps-moderno (o homem e o aglomerado de veculo de
informaes). Expressou-se em vrios mbitos de manifestao artstica, como
na literatura, no cinema, nas artes plsticas e principalmente na msica.
Na msica, por exemplo, a ideologia tropicalista construda atravs da
integrao dos movimentos e gestos do corpo ao canto e fala, atravs da
multissemiose de elementos verbais, resultante da carnavalizao ou da
inverso de hierarquias (morfolgica, sinttica e semntica), bem como no-
verbais (gestos, performances, a relao do corpo com objetos). Com relao
insero do corpo na msica, Barthes (apud Favaretto 2000:37) observa:
A inscrio do corpo na substncia viva do som tenciona a lngua
cantada, levando ao ultrapassamento dos fenmenos decorrentes de
sua estrutura, como estilos de interpretao, idioletos dos compositores,
mudanas rtmicas, variaes de timbres .
A msica de carter tropicalista reconstruiu, desse modo, a noo de
msica, dialogando com as transformaes cultural e industrial da poca,
relendo os costumes tradicionais, causando um curto-circuito na estrutura de
canes at ento construdas.
7 Termo idealizado pelo artista plstico Hlio Oiticica para designar um ambiente Tropiclia ou
um penetrvel, conjunto de cabines que o espectador explorava pisando em areia, pedra e gua, cruzando plantas e araras, lendo frases inscritas em paredes, assistindo a uma tv ligada no fim do labirinto, caminho teleolgico rumo ao ps-moderno. Depois, Gilberto e Caetano se apropriaram do termo para traduzir as subverses de valores na msica, literatura, dentre outros ambientes.
15
H outra viso relacionada ao seu envolvimento com o Tropicalismo, de
acordo com Tatit (apud Z, 2003, p. 223-225). Trata-se da idia de que o
projeto musical de Tom Z, o da busca da imperfeio, da incompletude, da
descano (plasmar a cano com outros elementos) foi movido pelas
angstias calcadas na necessidade de uma nova cano.
Postura diferente dos idealistas centrais tropicalistas, que visavam a
uma cano popular, nova, acabada, pronta para se tornar pop. Tatit (in Z,
2003: p. 223-225) afirma que o aspecto em comum entre Tom Z e o
Tropicalismo era a busca de uma msica nova, mas com vis oposto.
Ao considerarmos tais posturas, no pretendamos neg-las ou afirm-
las, mas investig-las, penetrando mais nas imagens, nas fendas que o som
das palavras cantadas e faladas de Tom Z produz, construindo assim, uma
terceira viso do que venha ser ou no ser tropicalista.
Portanto, levando em considerao sua relao com o posicionamento
ideolgico tropicalista e sua construo discursiva literomusical, partimos de
duas vises diferentes, uma que insere Tom Z integralmente e outra que o
afasta desse posicionamento ideolgico. A primeira refere-se idia de
Sanches (2002) que o considera, de certa forma, um tropicalista puro, de
esquerda, que se ope indstria cultural, deixando-se levar at as ltimas
conseqncias. Mas, o que seria tropicalista de esquerda? estar isolado da
mdia? Mesmo quando estava isolado (aproximadamente entre os anos 70-80),
ele produzia e estudava msica. E hoje, incio da primeira dcada de 2000,
podemos afirmar que ele um tropicalista de esquerda?
Dentre tantas irregularidades, onde e como ver uma possvel ordem do
caos na obra musical de Tom Z, levando em considerao o posicionamento
Tropicalista que o gerou? E hoje que posicionamento ele assume?
Paralelamente ao nosso olhar contemplativo e de espanto diante da
msica de Tom Z, integrou-se a ele a viso terica da Anlise do Discurso, de
Dominique Maingueneau. Essa teoria observa no discurso o lugar de inmeras
relaes entre um discurso e outro, nos quais pressupem-se posicionamentos
de carter ideolgico (como tambm esttico, lingstico e cultural) do
16
enunciador. Um outro aspecto a se notar como se d a condio de
existncia, social, institucional do artista msico, escritor, cineasta, artista
plstico? Como ele se encontra diante de normas e convenes impostas pelo
campo artstico? Como o artista convive com outros em espaos pblicos?
Ao investigarmos tais questes, utilizamos do autor Dominique
Maingueneau o conceito de paratopia, que designa a ocupao de um lugar
instvel do artista no campo artstico. E outros tais como ethos e cenografia.
Trazer para o palco questes estticas e scio-culturais que
colaboravam para uma incessante construo musical e para uma releitura do
lugar no qual ns estvamos e desconhecamos a prpria revitalizao de si,
da msica e de nossas relaes com as polticas cotidianas e com as mais
burocrticas. Desse modo, tornou-se relevante pensar sobre tais questes no
referido trabalho.
O trabalho se inicia com um breve pensar sobre o processo do caminhar
com a pesquisa acadmica. Em seguida, h a apresentao de elementos
tericos centrais referentes idia do signo dialgico da linguagem verbal, aos
conceitos grotesco e carnaval, na perspectiva de Bakhtin (1997,1999),
Teoria da Anlise do Discurso segundo Maingueneau (2001, 2004), idia de
cdigo apriorstico da linguagem de acordo com Campos(1993), de descano
segundo Tom Z, de inacabamento e performance vocal segundo Zumthor
(1998, 2001), e deslinearizao de acordo com Pingnatari (2004). Ainda nesse
primeiro captulo, relatamos o processo de desenvolvimento do trabalho ou o
caminho de chegar e no chegar: percurso do como dialogar com as canes.
No captulo segundo, apresentamos um histrico sobre a vida e contexto
do qual emerge o msico Tom Z.
No captulo terceiro e ltimo iniciamos a leitura e anlise das canes,
seguido o mesmo das concluses e referncias bibliogrficas.
17
CAPTULO 1
1. O PROCESSO DO TRABALHO
Iniciar uma pesquisa acadmica, ao nosso olhar, se permitir descobrir-
se no percurso do trabalho, surpreender-se no processo de descoberta ou de
redescoberta, sentindo os objetos, espiritualmente e materialmente, para criar
sempre um novo objeto. Mas difcil mesmo para ns foi estar em processo de
alienao, como determinadas tendncias cientficas certamente desejam, no
qual o ser humano se afasta de sua real natureza, que exterior sua
dimenso espiritual, colocando-se como uma coisa, uma realidade material,
objeto da natureza. Nesse sentido, alienar-se isolar-se da prpria vida ou
ignorar o tumulto que a vida gera, cotidianamente, em ns. Apesar de
admitirmos o carter de alienao no trabalho cientfico, no atribumos a este
o mesmo. Interpretamos nesta pesquisa um trabalho que se move e cresce a
partir de uma entrega de si num dilogo que se constri com olhares de uma
perspectiva terica e o do pesquisador sobre o objeto.
Portanto, acreditamos que o trabalho, o presente, que se deixa levar ou
arejar-se por interferncias cotidianas da vida, por formas disformes de viver,
no se torna alienado, por vislumbrar a relao entre vrias possibilidades de
olhar. O cruzamento do olhar cientfico com o filosfico talvez seja o que se
interessa pela vida? Talvez sim. Talvez no. Depende da posio
epistemolgica que se assume. Por que a pesquisa cientfica numa tendncia
positivista exige, ou tenta impor, de algum modo, um olhar que no se deixa
interagir com outros, mesmo sabendo ns que num olhar h um outro e outros?
Portanto, a nosso ver, produzir um trabalho de pesquisa acadmica,
tendo como eco a idia de alienao, da submisso espiritual e vital em
prioridade ao objeto, foi difcil e delicado. Mesmo assim, acreditamos e
estamos construindo outros ecos.
18
Em resistncia a essa angstia e crena num novo fazer, tentamos e
insistimos em conversar, ouvir, ler e interpretar, sem deixar de apreciar, as
canes do compositor Tom Z.
Pois, em nossa percepo, Tom Z, ao assumir um lugar de compositor
musical, revela-nos atravs de sua fala musicada angstias tristes e felizes da
vida, ou seja, formas disformes e gelatinosas que, verdadeiramente, compem-
nos. Trao esse que muito nos instiga e nos move a estabelecer uma relao
de proximidade entre o interior e o exterior de sua msica. Vendo como se
do os significados dessa aproximao e relao. Isso o que chamamos sem
querer chamar, de anlise discursiva de um texto, do verbal ao no-verbal.
Mas como tentamos chegar at sua msica? Existem inmeras
maneiras de olhar para ela e de falar com ela: atravs da Historiografia,
Etnografia, Sociologia, Antropologia, Filosofia, Lingstica, Musicologia e de
outras maneiras. Dentre esses possveis olhares, optamos por um que, talvez,
permita a integrao de vrios: o olhar discursivo da linguagem cancional.
Olhar discursivamente levar em considerao contextos interiores e
exteriores a um texto, sendo esses lingstico, histrico, social, filosfico,
cultural, ou a integrao de todos num pancontexto, diramos.
A idia de discurso corresponde a vrias acepes diferentes entre si,
das mais elementares s mais complexas. Optamos pela concepo de
discurso no sentido mais amplo, como uma disperso de textos que se
encontram e dialogam a partir de marcas textuais explcitas ou no.
O olhar discursivo est em circunstncias de comunicao verbal e no
verbal, desde que se perceba a rede de ligaes que h entre uma fala e outra,
entre seu interior e seu exterior. H na cano, como em outras linguagens,
musical e no-musical, um entrelaamento de teias de significados que se
cruzam aleatoriamente, no sendo possvel saber onde se inicia e termina esse
cruzamento.
O estudo da linguagem numa perspectiva discursiva diferencia-se da
perspectiva unicamente lingstica na medida em que a primeira dialoga com
19
seu exterior, permitindo aberturas percepo de traos vertiginosamente
histricos, filosficos, sociais, ideolgicos entre um discurso e outros, para
alm dos traos da materialidade da lngua. Ou seja, uma anlise discursiva
textual de linha francesa no separa o seu exterior (o social, o cultural,
histrico, dentre outros) do seu interior (o material lingstico). J na segunda
perspectiva, uma anlise essencialmente estruturalista efetua cortes, rupturas,
preocupando-se primordialmente com a gramtica da materialidade lingstica.
A relao que se constri nessa anlise interna, se d entre seu
interior e seu outro interior vizinho, num sistema ou arquitetura fechada,
isolada da possibilidade de intervenes externas. J a anlise discursiva tenta
arejar a estrutura fechada.
Nesse sentindo, a Anlise do Discurso de linha francesa visa
concretamente, debruar-se sobre a arquitetura de prdios habitados, que
trazem tona seus significados. Um olhar discursivo percebe a cidade em sua
dinmica, ou seja, a pulsao ecolgica que ela constri com seus habitantes
em mltiplas cartografias.
Tomando como referncia o sentido de discurso na arquitetura de
prdios, vemos na cano que o olhar discursivo se realiza atravs da
interao e dinmica de ritmos, melodia, arranjos, vozes, tons, timbres e
silncio. Onde a tambm encontramos a pulsao ecolgica e mltiplas
cartografias que nos levam a diferentes lugares scio-culturais, desenhando
um corpo e corpos, que nos revelam maneiras da cano se fazer.
As maneiras ou modos de se construir uma cano podem comportar-se
ora como estratgias, ora como investimentos discursivos. Ao realizar
investimentos, o sujeito enunciador no planeja rigorosamente seu discurso,
ele se coloca sem necessariamente desejar vencer ou competir com outro,
enquanto que ao falarmos de estratgias8, h um sentindo militar,
conotativamente, h a idia de uma ao voltada para um ataque.
8 Arte militar de planejar e executar movimentos e operaes de tropas, navios e/ou avies,
visando a alcanar ou manter posies relativas e potenciais blicos favorveis a futuras aes tticas sobre determinados objetivos. Definio transcrita do novo dicionrio Aurlio de Lngua Portuguesa Aurlio (verso eletrnica).
20
Mas o que queremos com isso? Nem sabemos exatamente. Temos
certeza de que nos move aqui no somente apontar investimentos
discursivos e estratgias nas experimentaes orais, poticas e musicais
construdas pelo compositor Tom Z, mas signific-los, ou seja, discutir seus
efeitos de sentidos.
Ao iniciar o trabalho, foi possvel, antecipadamente, relacionar nosso
motivo de pesquisa, ou canonicamente, nosso objeto, as canes de Tom Z,
teoria da Anlise do Discurso de Maingueneau e eleg-la como apoio terico.
Percebemos adiante que o referido apoio no nos instigou a utilizar
positivamente9 as categorias de anlise discursivas, j que optamos por
dialogar tambm com outros pensadores e conseqentemente com outras
categorias, que de certo modo se integram perspectiva discursiva. Os
pensadores referem-se a Bakhtin (1997,1999) que traz as idias da refrao,
do dialogismo, do carter grotesco e carnavalizante do signo lingstico; a Paul
Zumthor (1998, 2001), que nos apresenta um olhar antropolgico sobre a
potica e performance vocal e a idia de inacabamento; a Dcio Pignatari, que
discute aspectos da no linearidade do signo, e Campos(1993) no que se trata
do cdigo apriorstico da linguagem.
D-se mrito a Maingueneau por expor uma metodologia sistematizada
sobre elementos discursivos voltada para a anlise de textos como prticas
discursivas. Para ele, as unidades que compem o discurso compreendem
sistemas de significantes, enunciados ligados a uma semitica textual,
relacionados histria e sociedade. Uma anlise discursiva, portanto, parte
9 O uso de pronomes que se dirigem a pessoas do discurso no decorrer desse trabalho no
linear, ou seja, no conservamos do incio ao fim uma nica pessoa (1 pessoa, 3 pessoa). Ora assumimos nosso discurso em primeira pessoa quando nos mostramos mais sensivelmente envolvido por dado momento do trabalho (como se apresentou na Introduo), ora nos colocamos em terceira pessoa do plural. E noutro momento no assumimos pessoalidade. Esse uso indisciplinado da pessoa discursiva no nosso texto se deu de modo inconsciente e imperceptvel, foi um gesto que se percebeu no fim do percurso e que atribumos a ele um significado relevante: reflete espontaneidade e o no assujeitamento do autor sobre convenes de ordem formal, gramatical. A pessoa do discurso manifestada aqui mltipla, heterognea, um eu que no se livra da interferncia de outros eus. A multiplicidade pessoal no mascarada e nem omitida em nenhum momento, dada a vontade indomvel do eu se colocar diante da leitura do mundo: do percurso do trabalho cientfico, da interpretao da cano com base numa fundamentao terica.
21
de uma anlise simultnea, conjunta de textos provenientes de variados
ambientes histricos e sociais.
Partimos da idia do signo lingstico dialgico que fundou e influenciou
diretamente o pensamento sobre a noo de interdiscurso, segundo
Maingueneau. Em seguida, para uma discusso sobre a idia de signo
redundante ou cdigo apriorstico de acordo com Campos, para dialogarmos
com a idia de descano.
2. PERCURSO TERICO: TRILHAS E LABIRINTOS DISCURSIVOS
Toda imagem artstica, assim como um corpo fsico, produtos e
instrumentos de uso funcional, podem ser revestidos de sentidos para alm de
seus significados primeiros, particulares. Trata-se do que Bakhtin/Volochinov
(1997, p. 31) chama de sentido ideolgico, um significado que remete a outro
fora de si mesmo. Quando h o revestimento de outros significados, atribudos
a um objeto, que atravessem suas particularidades, deposita-se nele um
produto ideolgico, a representao de uma ideologia.
De acordo com Bakhtin (1997), o signo tem carter ideolgico por
revelar uma multiplicidade de significados e sentidos possveis expressos numa
interao social, de acordo com os interesses social, cultural, econmico. O
carter ideolgico estende-se a variadas dimenses fenomenais, do signo
verbal ao no-verbal:
Todo fenmeno que funciona como signo ideolgico tem uma
encarnao material, seja como som, como massa fsica, como cor,
como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer.
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1997, p. 33).
A encarnao material do signo traduz o mundo exterior, um significado
que gera outro signo. O signo no corresponde apenas a duas partes:
significante e significado, como expressa uma das dicotomias saussureanas,
mas a inmeros significados e significantes.
22
A infinidade de significantes e significados do signo lingstico e no
lingstico gera a refrao do signo. Compreendemos, desse modo, que os
signos refratam e refletem o mundo material, carregando diversos e
inacabados feixes de pensamentos construdos na dinmica da vida.
O efeito da coexistncia de distintos valores sociais, culturais e
ideolgicos confrontados e compartilhados entre os indivduos ao longo de
sucessivos ciclos vitais a configurao da refrao do signo lingstico, ou
seja, a multiplicidade de fendas semnticas que o signo constantemente gera,
evitando uma nica verdade. Significar, portanto, refratar; no possvel
significar sem refratar. A refrao, assim, o modo como se inscrevem nos
signos a diversidade e as contradies das experincias histricas dos grupos
humanos. Como nos mostra Faraco (2003), a partir da leitura do pensamento
bakhtiniano sobre a refrao do signo:
Os signos so espaos de encontro e confronto de diferentes ndices
sociais de valor, plurivalncia que lhes d vida e movimento
caracterizando o universo da criao ideolgica como uma realidade
infinitamente mvel (FARACO, 2003, p. 53).
A refrao sgnica compreendida como um entrelaamento de
inmeras linhas de conscincias e verdades explicitadas ou no em diferentes
discursos, no suporte de enunciao. Desse modo, o carter refracionrio do
signo revela vrias direes de significados valorativos e mostra a diversidade
de percepes ideolgicas de determinados grupos humanos, que foram e so,
naturalmente construdas ao longo da experincia do convvio social.
2.1 TRAOS CONSTITUTIVOS DA LINGUAGEM: DO PRINCPIO
DIALGICO AO INTERDISCURSIVO
Ao pensarmos em esfera comunicativa humana na perspectiva de
Bakhtin (1997), estamos nos referindo ao contexto, diramos, da linguagem
estratificada socialmente, de carter predominantemente heteroglossmico ou
23
plurilingstico, revelador de multiplicidade de lnguas sociais. A estratificao
da linguagem representada em enunciados verbais, os quais denunciam a
disposio paralela de estratos cristalizados ou camadas sociais, carregados
de dimenses avaliativa e opinativa, que expressam posicionamentos scio-
ideolgicos diversos.
A comunicao verbal marcada pela interao com o outro, pela
relao do eu com o outro, idia que fundamenta a metfora do dilogo infinito
de um discurso com o outro. A palavra ideologia aqui, em sentido amplo,
significa o universo de produtos do esprito humano ou da cultura imaterial,
cujas manifestaes so de carter filosfico, religioso, poltico, dentre outros.
Levando em considerao a estratificao da linguagem e a refrao do
signo, qualquer enunciado ideolgico, j que toda palavra em uso est
sempre sujeita a ser avaliada, est a servio de julgamentos e opinies.
Para Bakhtin (2002), a linguagem por natureza heterognea e
dialgica em oposio ao carter homogneo e fechado da lngua, tal como
sugeria Saussure.
Mas o que chamamos de carter dialgico da linguagem, atributo que
remete a uma palavra to habitual entre ns: ao dilogo?
Compreendemos por dialogismo uma tenso entre dilogos constantes e
infinitos. Trata-se de cruzamentos de fronteiras vocais, onde diferentes vozes
sociais se entrecruzam continuamente e multiformemente. Ele construdo
atravs de pressuposies de outros dizeres, sendo eles um dilogo com
outros, nem sempre simtrico e harmonioso, entre os diferentes discursos que
se configuram numa comunidade lingstica. Esse dizer , portanto, de uma
reposta ao j dito, ao no dito, e refuta, confirma, prev reflexes, dentre outras
aes.
O dilogo entre discursos a que nos referimos no se trata de um
consenso ou de um acordo entre interlocutores acerca de um pensamento,
mas de uma infinidade de relaes ideolgicas, de um espao de confronto
entre vozes sociais.
24
Desse modo, o dialogismo concebido como o princpio constitutivo da
linguagem e atravs desse princpio gerado, de acordo com Mainguenau
(2004) o primado do interdiscurso.
Maingueneau (op. cit) defende que o discurso se firma a partir da
insero e cruzamentos de outros discursos, o discurso existe a partir de uma
alteridade que sempre o atravessa. A construo interdiscursiva, por sua vez,
perpassa pela trade: universo discursivo, campo discursivo, espao
discursivo.
O universo discursivo compreende a diversidade discursiva, ou seja, as
possibilidades mltiplas de valores e de posturas ideolgicas tomadas pelo
homem ao longo de sua experincia social. E integra o conjunto de distintos
grupos ideolgicos ou campos discursivos que entram em atrito, em confronto,
em afinidades.
Tais grupos so denominados campos discursivos. Cada campo
apresenta um conjunto de formaes discursivas (que designa a construo
histrica, social, cultural, econmica de determinado campo discursivo ou de
um membro que pertena a esse campo).
H os campos poltico, filosfico, cinematogrfico, dentre outros, sendo
esses recortes de um universo discursivo. Isso no significa, portanto, que
cada campo seja isolado um do outro, ao contrrio disso, um perpassa o outro
continuamente, gerando dilogos. Dessa maneira h a visualizao
panormica de diferentes campos, possibilitando a dinmica de trocas e
relaes entre eles.
E sua possvel especificao, como nos referimos acima, ocorre em
favor de uma escolha. A partir da delimitao de um campo discursivo constitui-
se um discurso e nele se visualiza uma rede de operaes consideradas
regulares e que moveu sua formao.
No campo discursivo h uma diversidade de espaos discursivos ou
planos discursivos, coexistentes e concorrentes entre si.
As diferentes formaes social, poltica, ideolgica, cultural, ou seja, as
25
distintas formaes discursivas, movidas por posies e objetivos outros,
podem conviver num mesmo campo discursivo.
Tendo em vista esta breve apresentao dos conceitos dialogismo,
universo discursivo, campo discursivo, formao discursiva e espao
discursivo, consideramo-los elementos que contriburam de algum modo para
discutirmos polmicas em volta de posicionamentos problematizados10 na
cano Tom Z.
2.2 A CONSTRUO DA ENUNCIAO
Agora, explanaremos alguns conceitos referentes aos elementos que
constroem a enunciao, o evento que constitui o agente principal da insero
do homem no mundo:
O piv da relao entre lngua e o mundo: por um lado, permite
representar fatos no enunciado, mas por outro, constitui por si mesma
um fato, um acontecimento nico definido no tempo e no espao
(MAINGUENEAU, 2005, p. 193).
Num dado enunciado, a realizao de um produto verbal e no verbal,
atravs da interao legitimada a partir da integrao de vrios elementos,
dos lingsticos (cdigo de linguagem) aos no lingsticos (gestos, sons,
disposio de objetos). atravs da interlngua11, ou seja, das relaes dadas
numa determinada conjuntura entre as variedades de uma mesma lngua, que
se constitui um cdigo de linguagem, atribuindo singularidade a uma obra.
Maingueneau (2001: 104) define o termo cdigo como um sistema de regras
aliado a um conjunto de prescries e de signos que geram uma comunicao.
A interlngua, relao entre lnguas diferentes e as variaes de uma
mesma lngua, d-se atravs de uma pluralidade de lnguas, externa e interna.
Sabemos que a legitimao de um discurso no se d necessariamente
10
Dilogo entre os posicionamentos Bossanovista e Tropicalista, apresentado no captulo 4, pgs. 70-75 11
A idia de interlngua se relaciona com a noo de heteroglossia ou de plurilingismo, de acordo com Bakhtin (1993).
26
atravs de uma nica lngua. O autor emprico de uma obra pode, em dado
contexto, por alguma razo, romper com a homogeneidade lingstica atravs
do plurilingismo externo, do uso de outras lnguas externas lngua materna.
O efeito do uso de outras lnguas num enunciado sugere vrias
intenes, como a diluio de um conservadorismo lingstico, do domnio ou
de uma suposta superioridade de uma lngua sobre outra.
Um escritor, alm de poder utilizar lnguas externas no seu discurso,
pode usufruir tambm da variao lingstica no mbito de uma mesma lngua.
o que chamamos de plurilingismo interno. Essa variao se d em funo
de distintos contextos: geogrfico (dialetos, regionalismos), social (popular,
aristocrtica, etc.), situao de comunicao (mdica, jurdica...), nveis de
lngua (formal, familiar...).
O enunciado, ao se estabelecer atravs do cdigo de linguagem,
constri cenas de enunciao, o contexto imediato da enunciao. O termo
cena refere-se designao teatral por pressupor numa enunciao a
existncia de bastidores, cenrios, participantes com papeis definidos.
As cenas enunciativas tratam da cena englobante, cena genrica e da
cenografia. A cena englobante implica o tipo de discurso que praticado
(poltico, religioso, publicitrio etc.). J a cena genrica se relaciona ao gnero
do discurso, que prtica discursiva designada, se um artigo jornalstico,
uma propaganda televisiva. Essas duas cenas constituem o quadro cnico que
definido como o espao estvel no interior do qual o enunciado adquire
sentido - o espao instvel do tipo e gnero de discurso (Maingueneau,
2001:87).
E por ltimo, a cenografia designa a condio e o produto de uma
enunciao, constituindo um articulador da obra e do mundo. Ela o processo
fundador de inscrio legitimada de um texto. Apresenta, canonicamente, um
foco de coordenadas estabilizado que se refere direta ou indiretamente
enunciao construda a partir de protagonistas da interao da linguagem:
enunciador, co-enunciador, assim como as circunstncias espacial e temporal
(eu e tu, aqui e agora). Ela define as condies de enunciador e co-
27
enunciador. A cenografia ou situao de enunciao de uma obra enunciada
atravs de uma instituio verbal, de um gnero discursivo (no sendo ele o
fator nico e inteiramente condicionante da obra), que tambm traz suas
prprias condies de produo como participantes: o lugar, o momento para
sua manifestao, os circuitos por quais passa e a norma que presidem o seu
consumo.
De acordo com Maingueneau (2001), a cenografia de uma obra literria
dominada pelo cenrio literrio, que o contexto pragmtico da obra, que
associa uma posio de autor e uma posio de pblico, cujas modalidades
variam de acordo com as pocas e as sociedades. Os elementos que integram
as condies de situao de um enunciado (posturas do enunciador, tempo,
espao), no entanto, nem sempre esto explcitos.
Outro elemento que integra a cena enunciativa o ethos no qual o
enunciador expressa uma voz, uma voz que marca posturas, formas de
habitao do sujeito interlocutor do enunciado e que so assimiladas pelo co-
enunciador frente a uma cena genrica. Estamos falando tambm de um
conceito originado na Retrica antiga, o eth ou ethos, que diz respeito ao
modo como o enunciador orador fala seu discurso, que gestos, posturas
poltica e tica, revelam ao ouvinte. De acordo com Aristteles, a concepo
de ethos, traduzida por Maingueneau, designa:
as propriedades que os oradores se conferiam implicitamente, atravs
de sua maneira de dizer: no o que diziam a propsito deles mesmos,
mas o que revelavam pelo prprio modo de se expressarem.
(ARISTTELES apud MAINGUENEAU, 1997, p. 45)
O ethos que antes era observado apenas em gneros de discursos
recitados e orais (em textos literrios, como na epopia e em discursos
polticos, judicirios, respectivamente), torna-se visvel tambm em textos
escritos. Sua manifestao pressupe a veiculao de um gnero discursivo.
Portanto, o ethos (o modo de se mostrar do enunciador ao co-
enunciador) expresso pela palavra oral e escrita, pelo gesto, aspecto fsico e
entonao, constituindo num gnero discursivo, sendo tais elementos prprios
28
do sujeito encenado e no do sujeito real. Maingueneau (1995, 1997, 2001)
leva em conta trs categorias para se analisar o etos: o tom, delineado numa
vocalidade, o carter e a corporalidade.
Qualquer gnero do discurso carrega consigo uma vocalidade, ou seja,
uma voz do sujeito que expressa atravs de um tom e que conferida pelo
co-enunciador. Como coloca Maingueneau (1997, p. 45), ... a descrio dos
aparelhos no deve levar a esquecer que o discurso inseparvel daquilo que
poderamos designar muito grosseiramente de uma voz.
O tom construdo a partir de uma voz numa dada cenografia,
empregado para todos os enunciados escritos. O tom est ligado ao carter,
que designa um conjunto de propriedades psicolgicas, estereotpicas
especficas de uma poca e lugar, expressas pelo enunciador e sendo
atribudas pelo leitor-ouvinte.
A corporalidade refere-se a uma representao do corpo que envolve a
maneira de se vestir e de se movimentar do enunciador. O corpo no s
explicitado pelo enunciador, mas tambm induzido pelo co-enunciador. No
gnero discursivo de modalidade escrita a corporalidade pode ser percebida
em marcas lingsticas, na iconografia do texto. Na verdade, o corpo ou
corporalidade de um discurso est em diversas linguagens, podendo ser
transmitido de vrias maneiras, pois como explicita Maingueneau (2001, p.
140):
Atravs da iconografia, dos tratados de moral ou de devoo, atravs da
msica, da estaturia, do cinema, da fotografia..., circulam
esquematizaes do corpo, valorizados, ou desvalorizados, que
encarnam vrios modos de presena no mundo.
As categorias que denotam um tipo de etos (tom, carter e
corporalidade) so integradas num discurso formando um corpo que ser
incorporado por um co-enunciador. A incorporao a ao que o etos exerce
no seu co-enunciador, levando-o a conferir um etos ao seu fiador, a leitura
que ns fazemos do etos. De acordo com Maingueneau (2001, p. 140), a
incorporao um processo que pressupe trs registros interligados:
29
- A enunciao da obra confere uma corporalidade ao fiador, d-lhe
corpo;
- O co-enunciador incorpora, assimila desse modo um conjunto de
esquemas que correspondem a uma maneira especfica de se relacionar
com o mundo habitando seu prprio corpo.
- Essas duas primeiras incorporaes permitem a constituio de um
corpo, o da comunidade que comungam no amor de uma mesma obra.
Diante da integrao dos elementos que compem uma enunciao:
interlngua, ethos, as cenas englobante e genrica, montando uma cenografia
(o espao definidor das condies contextuais ou pragmticas do enunciador e
co-enunciador), tm-se como efeito dela um posicionamento ou uma tomada
de posio poltica, ideolgica, assumida pelo sujeito enunciador. O
posicionamento, num sentido amplo, segundo Maingueneau (2001), diz
respeito s:
... doutrinas, escolas, movimentos estudados pelas escolas literrias...
Ao faz-lo, exploramos a polissemia de posio em dois eixos principais:
o de uma tomada de posio, o de uma ancoragem num espao
conflitual (fala-se de uma posio militar) (MAINGUENEAU, 2001, p.
69).
A cano, alm de ser um dilogo entre a vida e as "tcnicas" de
composio, tambm resultante de uma prtica discursiva, por nela estarem
atuando posturas e formaes discursivas concorrentes, constituindo-se em
uma situao de enunciao onde h um sujeito ou sujeitos enunciadores
(cancionistas) que desvendam ao co-enunciador (ouvinte) uma certa atitude,
um posicionamento poltico, explcita ou implicitamente.
Diante da relao dos elementos: cdigo de linguagem, cenografia, etos,
apresenta-se como efeito dessa imbricao um posicionamento social.
30
Portanto, discutimos efeitos de sentido gerados pelos investimentos
discursivos, ou seja, pelos elementos textuais ou no, que legitimam um
discurso, permitindo a insero do homem no mundo, observados no discurso
literomusical de Tom Z.
Chamamos a ateno para o termo investimento discursivo, o qual ser
utilizado ao longo desse trabalho. O referido termo foi designado por Costa
(2001)12, ao se apropriar de umas das categorias discursivas sistematizada por
Maingueneau (2001), a de investimento genrico. Essa define que o
enunciador ao tomar uma posio ideolgica ou posicionamento parte de um
investimento, de uma aposta numa modalidade genrica ou num gnero textual
em defesa e em legitimao de seu discurso. Costa (op. cit.) expande a noo
desse investimento a todas as partes integrantes de uma enunciao,
argumentando que o investimento se d em todos os momentos de inseres
enunciativas.
Portanto, o enunciador ao se pronunciar investe no s num gnero
discursivo, mas tambm num cdigo de linguagem, num ethos, numa
cenografia.
3. DESCANO E DESLINEARIZAO
Apresentamos nesse ponto o que compreendemos sobre descano
(palavra recorrente no nosso trabalho) e algumas consideraes sobre a idia
de deslinearizao, partindo de reflexes de Wisnik (1989), Tom Z (2003),
Pignatari (2004) e de Campos (1997).
A descano como um modo de musicar. Um fazer errado ou um
desfazer fazendo? Como esse modo de fazer cano se constri? Quais
12
Na tese A PRODUO DO DISCURSO LTERO-MUSICAL BRASILEIRO. O estudo pioneiro em
descrever a produo da Msica Popular Brasileira com fundamentos da Teoria da Anlise do Discurso
de linha francesa(AD).
31
percursos so trilhados? Que elementos se relacionam ao carter tropicalista,
ao no tropicalista ou, quem sabe, a um outro ser tropicalista?
Tentaremos definir nesse momento algo quase indefinvel, a descano,
que, para ns, torna-se um incmodo necessrio. Descrever o sentido de
descano dialogar com questes em torno de cano no sentido amplo.
A descano um modo de construir uma cano, diz respeito
construo de arranjos musicais, a gestos enunciativos que envolvem as
manifestaes verbal e no-verbal, que transgridem certa linearidade sonora.
A denominao descano nega a palavra cano, no no seu sentido
genrico amplo, dado como uma msica breve acompanhada de canto e
instrumento, mas no sentido cannico, apreendido pelo cdigo apriorstico,
expresso que designa um modo predeterminado de fazer cano voltada para
fins comerciais.
Antes de nos determos nesse assunto, voltemos um pouco a uma breve
histria e origem da cano brasileira.
Foi atravs da interao entre as culturas indgena, africana (dos rituais
religiosos, magia acompanhado de instrumentos rtmicos, percussivos e de
sopros - gaitas, apitos) e a portuguesa (da manifestao musical mais meldica
que rtmica, em hinos catlicos e cantos gregorianos) que a msica se
expandiu em lugares maiores, aproximadamente no sculo XVII13.
O canto como voz pe em prtica a vontade de dizer, de contar. Aliado
ao som e vozes de instrumentos musicais, materializa-se a cano.
Num sentindo sublime e vital da palavra, a cano um modo de
compor a vida e seu cotidiano em ritmos e melodias, o registro de prticas e
gestos experienciados que traduzem vivncias e histrias do indivduo no
mundo. A voz cantada muito mais que cantar: relatar. A caracterstica
formal que a designa a unio do canto a uma melodia.
13
Para maiores esclarecimentos de fundamentao histrica da Msica Popular Brasileira, consultar o trabalho de Luiz Tatit, O sculo da cano (2005).
32
Partindo de uma reconstruo das razes da cano brasileira, atravs
de uma leitura no to profunda de Tatit (2005), vimos na cano um modo de
afirmao das misturas de representaes vocais dos batuques africanos,
mestios e brancos europeus de classes inferiores.
Tais dados histricos nos mostram uma viso da manifestao musical
naquele perodo e nos leva a relacionar, de algum modo, idia de descano,
como um caminho de mistura de sons e culturas, sem se fixar numa hierarquia
de valores sonoros.
Como ouvir o som de uma descano? Talvez seja necessrio que
entremos numa onda, que nos movimente para vrios lados e perspectivas.
Falo de ondas que nos tocam e tocam, de uma fsica e metafsica
sonora. A onda como corpos vibrantes transmitidos na atmosfera, num tempo
contnuo: impulso e repouso. A msica o som das ondas: movimento em sua
complementariedade, inscrito na sua forma oscilatria, pausa e silncio
quando oscila em seu repouso. H tantos ou mais silncios quantos sons nos
sons(WISNIK, 2004, p. 19).
A afirmao acima j nos diz um quase tudo sobre msica, uma
descrio complexa que nos relata muito mais, instigando-nos a perceb-la
intimamente. A oscilao sonora, ao mesmo instante que nos envolve num
tempo e num contratempo, por outro lado, leva-nos a um impulso, lana-nos
fora de uma linha cancional prevista. A voz, portanto, na cano descano
pousa, arrisca outras vozes e palpita. Perceber que no silncio h tanto som e
que no som h tanto silncio , de algum modo, conceber a msica como uma
forma de descano.
Romper com o tempo previsto da cano, escutar rudos gerados pela
imprevisibilidade do cantar e de um dado arranjo , de certa maneira, desfazer-
se de um cdigo apriorstico musical, de um modelo linear de cano, que se
presta unicamente demanda comercial. Discutir o fazer musical, pensar
outros discursos musicais (valores desconstrutores e reconstrutores musicais,
polticos, cultural, econmico) na cano, significa se introduzir no campo de
uma descano.
33
Ao lermos Tom Z em narrativa do seu processo de composio, a
cano parece ser apenas um meio para se chegar a uma outra cano,
chamada descano: Minha quimera de fazer descano no aludia cano
em si, era s um artifcio para eu poder cantar sem ser cantor (Z, 2003, p.24).
Com esse depoimento Tom Z assume na sua fala um etos de ruptura com a
cano no seu sentido cannico, msica acompanhada de voz e instrumento.
Essas informaes parecem apontar para um modo de compor a descobrir,
insento de predeterminaes. Assim, antecipa-nos a construo do ethos de
uma descano.
Mas no sabemos ainda qual seria essa cano que no cano. Aos
nossos ouvidos, essa cano sempre est por vir, parece que ela no se fecha
nela mesma, e caso isso acontea, dar-se-ia no desencontro com o modelo de
cano determinado.
Pensamos que a idia de descano significa romper com o tempo
previsvel na cano, digamos, uma ruptura no cdigo apriorstico musical.
Noo referente redundncia de conhecimento musical, ao conjunto de
caractersticas de natureza prevista, unidas num cdigo construdo de
elementos que independem da experincia do leitor ouvinte, sendo algo a
priori, apriorstico, que leva o ouvinte absoro global de uma mensagem
musical condicionada sobre valores estticos impostos arbitrariamente.
Ento, a audio possvel de uma cano dar-se-ia pelo reconhecimento
de elementos sonoros repetitivos, previsveis, tornados convencionais pela
mdia. Tal afirmao nega a concepo segundo a qual o artista oscilaria numa
dialtica banal-original, previsvel-imprevisvel, redundante-informativa, de
acordo com A. Mole (apud CAMPOS, 1993, p.180). O reconhecimento dessa
repetio retroalimenta a digesto de mais um produto industrial, em srie,
alimentando a mquina publicitria, comercial fonogrfica.
O ouvinte, portanto, contaminado por valores estticos musicais,
arbitrariamente: como dadas melodias, arranjos e letras, retroalimentados pela
mdia e indstria fonogrficas. Percebemos uma ascenso quantitativa de um
produto finalizado que se ope ao valor qualitativo da msica popular.
34
A msica que favorece o cdigo apriorstico se faz numa redundncia,
na repetio em srie, tida como produto acabado. Quanto maior a
redundncia e a previsibilidade, menor o conhecimento, a informao e a
aprendizagem, se no h conhecimento no h comunicao. Ao consultarmos
Pignatari (1997), vimos que h dois casos extremos de no-comunicao: o da
imprevisibilidade total e o da total previsibilidade dos sinais.
Se h um total estranhamento na cano que no leva interao de
um signo com outro, no possvel sua audio, podendo haver, que o
menos significativo, uma compreenso precria que no traduz sentidos da
escuta. Possivelmente, como exemplo dessa intraduo ou incompreenso
seria, hipoteticamente, uma cano tocada numa lngua indita, totalmente
nova, ao som de instrumentos tambm inusitados aos ouvidos de um pblico
que, culturalmente no usufrui desse tipo de sonoridade.
Caso haja uma total previso do que se pronuncia, a informao torna-
se redundante, a compreenso prolixa, uma prolixidade desnecessria,
impotente. A redundncia, nesse caso, trata-se de uma cano que segue
praticamente um mesmo arranjo, uma mesma temtica, diferenciando-se
apenas uma da outra o timbre de voz, embora muitas vezes h uma repetio
dela14.
Como um locutor, ento, pode emancipar-se, musicalmente, e ocupar
um lugar no mundo se no se comunica? Esse um dos problemas presentes
na cano vinculada ao cdigo apriorstico, que mostra sempre uma mesma
idia de signo musical ou uma mesma configurao de arranjos verbal e no
verbal, os quais tendem a migrar para um no lugar, sendo este o da repetio,
o lugar fixo e pr-estabelecido.
O efeito desse hbito reduz a qualidade de recepo musical do ouvinte.
Ele, convivendo com esse modo de construo musical, em idade mais
avanada, s reconhece e no conhece outro modo de cano. Tal evento
ocorre devido a sua maior resistncia em no aceitar a imprevisibilidade de
arranjos em funo de uma conveno, de um cdigo apriorstico musical, de
um conjunto de arranjos musicais cristalizados, imutveis.
14
Tais como as vozes das cantoras Ivete Zangalo, Daniela Mercury, dentre outras.
35
J a msica numa condio qualitativa, da no redundncia, trata-se de
um processo em construo, que se prope abertura de reformulaes e
recriaes, interrupo da linearidade. A descano, nesse sentido,
atravessa o cdigo apriorstico, abrindo possibilidades de outros cdigos que
constroem imprevisibilidades e descobertas.
Ainda assim, a descano pode gerar tambm uma previsibilidade, no
entanto, diferente da outra, a significativa: a previso da imprevisibilidade.
Minuciosamente, a descano ocorre no plano esttico e no-verbal
(meldico, instrumental e com relao mistura de gneros cancionais), no
seu plano verbal, atravs de modos de desconstrues sintticas, de recriao,
montagem e remontagens lingsticas. Ela no se realiza numa total
impreviso.
A impreviso no significa um fazer aleatoriamente. Paradoxalmente, h
um planejamento da impreviso, seria um acordo tcito, como Tom Z
apresenta no seu livro autobiogrfico:
...era o que eu queria fazer com a cano tradicional: limpar o campo.
Concluso que me induziu a organizar as outras idias que at ento,
vinha praticando intuitivamente e desorganizadamente (Z, 2003, p. 21).
As idias desorientadas tomaram um corpo organizado e se revelaram
num plano compreendido em quatro pontos: mudar o tempo do verbo, trocar o
lugar no espao - o lugar, achar um novo acordo tcito, limpar o campo.
Mudar o tempo do verbo (Z, 2003, p. 21), era sair do passado e
praticar o presente. Acordo contrrio ao das canes tradicionais que
habitavam sempre um passado, o de contao de histrias.
A troca do lugar (Z, 2003, p. 22), onde vivia, em Irar, j atraa um
passado de pocas. Ento, mudar geograficamente era construir um novo
presente, que se refletisse na sua cano. O intuito aparente era expandir a
cano, arej-la e desapegar-se do passado to presente e arraigado. A
mudana do lugar revelava a busca de novas fronteiras para a cano.
36
O terceiro ponto seria um acordo tcito (Z, 2003, p. 22): um dilogo
entre cantor e ouvinte. Atravs do cantar o presente, Tom Z introduziria um
assunto espelho na cano, na qual o ouvinte fosse o prprio personagem.
O ltimo ponto, limpar o campo (Z, 2003, p. 22), um novo passo para
se desfazer de uma cano insatisfeita. Segundo o relato do compositor, ele se
inspirou numa cena do curso de fotografia que havia realizado, descobriu mais
uma maneira de se chegar almejada cano. A cena referida era a do
instante em que lhe foi sugerido a observao de duas fotografias de uma
mesma pessoa. Uma contaminada por objetos desordenados e a outra apenas
com a imagem da pessoa sem objetos. A fotografia mais preenchida de
objetos, que embaraavam a imagem inferia a limpeza desse campo.
Encarregado de retirar os elementos que compunham a primeira foto,
surpreende-se com o processo da retirada. Ao que o levou a relacion-la
com a cano, ao desejo de limpar seu campo cancional, livrar a cano da
contaminao do passado e da temtica padro: o amor infeliz.
No entanto, ao nos aproximarmos desse campo cancional, mais
presente cronologicamente15, compreendido nos lbuns Com defeito de
Fabricao, Jogos de Armar, Imprensa cantada torna-se mais coerente usar a
expresso sujar ou poluir o campo, no limp-lo. Como significa a expresso
pater la bourgeoisie, ou seja, desafinar o coro monofnico dos
contentes etc.
A partir dessas inquietaes foi se construindo o significado de
descano. Alm de se opor ao cdigo apriorstico de msica, uma maneira
de se desapegar do passado cristalizado.
Portanto, consideramos a descano um modo de composio que
gerou a cano de Tom Z, desde o princpio de sua trajetria. Ao mesmo
instante que ela o fez existir, levou-o a uma condio de isolamento16, por ele,
talvez, no ter correspondido s expectativas de gravadoras e produtoras da
15
Aproximadamente entre o perodo 1999-2005. 16
Estamos nos referindo ao perodo (1970-1980) de construo dos lbuns Estudando o Samba, Todos os olhos, Correio da Estao do Brs, Nave Maria, Se o caso chorar. Instante em estado de ostracismo.
37
poca, diferentemente do que ocorreu na dcada de 1990. A partir da, vem se
lanando atravs de uma gravadora de porte pequeno, a Trama, mas com
dada ascenso no mercado fonogrfico.
Ao nosso olhar, o sentido da descano no processo de composio
estende-se tambm aos mais recentes trabalhos de Tom Z17. E assumida
como um posicionamento esttico, ideolgico e poltico.
Um posicionamento descancional que gera uma poltica musical, um
modo de se relacionar com a cano, sublinhando valores e incmodos de
ordem esttica e tica gerados no campo musical. E que so influenciados por
fatores externos e internos ligados cano, tambm no seu sentido formal.
Nesse contexto, ao incorporar a figura de cantor e compositor, Tom Z
leva-nos a reconfigurar aspectos sobre msica popular: quanto distribuio
cannica de gneros cancionais, da cultura nordestina, da mdia e indstria
fonogrficas, de personagens e mitos.
4. A VOZ QUE ALIMENTA A VOZ
A voz jaz no silncio do corpo como o
corpo em sua matriz
Zumthor
Mudando de um lugar para outro e habitando o mesmo, ouvimos com
mais ouvidos a construo de vozes que se cancionam e descancionam na
msica de Tom Z.
No cabe voz apenas um olhar fisiolgico, lingstico, fontico vocal. A
sua emisso cantada, interpretada marca um lugar ou lugares na cano. Para
alm de um debruar-se cientificamente sobre ela, a voz expressa sua
17
Jogos de Armar-Faa voc mesmo (2000); Com defeito de Fabricao (1999); Imprensa Cantada (2003).
38
materialidade no seu prprio ato de manifestao. Delimita uma vontade de
dizer, de existir do indivduo que nela perpassa:
(...) a voz querer dizer a vontade de existncia, lugar de uma ausncia
que, nela, se transforma em presena; ela modula os influxos csmicos
que nos atravessam e capta sinais: ressonncias infinitas que faz cantar
toda matria.... (ZUMTHOR, 1997 p. 11)
A voz constri, em volta da palavra enunciada, simbologias: ... a voz e
suas vias, a garganta mais profunda... boca emblemtica, passagem para alm
do corpo... (p. 15). Assim, traduz-se o intraduzvel. A voz mostra um corpo na
sua dinmica cantada e no cantada.
Ouvimos a msica captando sua voz ou vozes, no s a voz do msico
interpretador (que emite outras vozes, alm da sua) como a voz do arranjo de
instrumentos no verbais, reveladoras do que h em ns. E se direciona ao
outro e a ns mesmos. Sentimos a msica em seu sentido amplo, a msica das
msicas, assim, entre a variedade de vozes, humanas e trans-humanas, talvez.
Apesar da concretude vocal na cano referente aos seus traos
qualitativos palpveis como o tom, timbre, alcance, altura, registro, h tambm
traos talvez inominveis, na sua escuta, que nos sugerem uma hibridao e
disperso de sons, tornando ainda mais viva sua materialidade.
4.1 A PERFORMANCE NA CANO
A diversidade de linguagem humana para expressar inmeras idias e
sensaes vasta e indomvel. A msica, assim como o teatro, dentre outras
vivncias e experincias transcendentais traz corpo, voz e vozes. Possibilita a
desconstruo da linearidade da voz e do corpo previsivelmente modelado
socialmente, dentro de valores comportamentais cannicos, estereotipados.
A desconstruo, portanto, torna-se mais uma maneira de se posicionar
no mundo, mais um modo de vivenciar o corpo sem seguir, necessariamente,
valores pressupostos, institucionalizados.
39
atravs da desconstruo do corpo e voz que adentraremos tambm
na idia de uma performance na cano que, possivelmente, migra para uma
descano ou para a desconstruo de cano. Traz tona rasuras vocal e
instrumental.
Compreendemos o sentido de rasura como ato ou efeito de risco,
raspagem, feito na parte escrita de um texto ou documento etc. para tornar
invlidas ou ilegveis palavras ali contidas18. O risco ou raspagem ocorre no
texto da cano, na voz e instrumento, mas que a possvel invalidade ou
ilegibilidade constri outra validade textual, musical.
Defendemos no contexto de nossa anlise que o sentido do risco ou
raspagem caracterstico da rasura torna um texto ilegvel para assumi-lo em
sua legibilidade. necessrio encobrir, omitir ou errar o texto de uma cano,
potencialmente estereotipada com certos valores pr-estabelecidos, como
apresenta o cdigo apriorstico19, para afirmar o seu contrrio.
A rasura afirma a voz do corpo, dos instrumentos, dos arranjos
instrumentais, criadora de outro tempo e encenao na cano. Levando-nos
dinmica de uma descano.
A rasura percebida como um investimento discursivo, um acrscimo de
algo que perturba uma sonoridade cannica. Ela desencadeada em arranjos
vocal e instrumental, possibilitando gerar atos performticos20 vocais e
corporais (estereotipados ou no) que expressam outros modos de habitar a
msica.
No contexto das artes plsticas, a performance pode ser um ato
transgressor e de ruptura. Foi influenciada pelo pensamento oriundo do
movimento de vanguarda - o futurismo, na Itlia, sculo XX, que tinha como
foco radicalizar os conceitos vigentes de arte. Enfocaremos a performance
vocal na cano, lugar e manifestao musical de maior interesse nosso. A
18
Definio apresentada no dicionrio Houaiss, de Lngua Portuguesa. 19
Pginas 19-21. 20
De acordo com Zumthor, ato performtico uma ao oral-auditiva complexa, pela qual uma mensagem potica simultaneamente transmitida e percebida, aqui e agora. (ZUMTHOR, 2001, p.222).
40
performance musical em sentindo amplo teve significativa interferncia do
compositor Jonh Cage, que incorporava nela silncio, rudos, pausas
imprevisveis, princpios zens, elementos influenciados pela cultura oriental.
Rasurar e performatizar a cano dialogar com outros campos
discursivos da msica. possvel atravs dela desfazer-se de laos familiares
e reconstruir histrias. criar uma nova msica, um novo percurso sonoro,
num sentido amplo, trilhar caminho que integra uma atmosfera sempre em
fertilizao.
A rasurar a cano e assumir atos performticos pode causar efeitos de
carnavalizao e grotesco, no sentido de Bakhtin (1999).
5. MOVIMENTO DE INSTABILIDADE NA CANO: UMA CONDIO
PARATPICA
Nesse instante cabe a apresentao do conceito paratopia, que
denomina uma condio instvel do indivduo.
Em outros termos, a condio paratpica expressa o estado inconstante
do indivduo de estar e no estar em lugares institucionalizados ou no. Refere-
se a uma negociao difcil entre o lugar e o no-lugar, uma localizao
parasitria, que vive da prpria impossibilidade de se estabiliza
(MAINGUENEAU, 2001, p 28).
O termo paratopia designa para alm do topos, do lugar, mas que lugar
esse? Os lugares socialmente cristalizados (classe, papis, cargos, etc.) e,
sobretudo, o da instituio, com a qual um indivduo convive conservando
normas ou regras impostas explicitamente e implicitamente, sendo socialmente
reconhecidas e que lhe cobram fixao e permanncia.
Desse modo, um indivduo escritor ocupa um lugar para alm do lugar
institucional, fato que torna conflituosa sua existncia, pois, assim como um
msico, um danarino, um cineasta, dentre outros, (...) alimentam sua obra
41
com o carter radicalmente problemtico de sua prpria pertinncia ao campo
literrio (digamos o artstico) e sociedade (MAINGUENEAU, 2001, p. 27).
A Literatura, assim como outras linguagens humanas e artsticas
(Msica, Cinema, Teatro, Artes Plsticas)21, so percebidas, de modo amplo,
sociologicamente, mas antes, tambm, em seus micro lugares ou campos
especficos: o literrio, o musical, o cinematogrfico, dentre outros. So nesses
micros lugares que encontramos macro e rgidas regras que fazem o escritor
ou msico, dentre outros, existirem socialmente num campo menor.
Como produzir msica sem corresponder s expectativas contratuais
desse micro campo? Que normas regem o campo musical? Ento, como
ser msico sem ser msico? Como essas questes se refletem na cano de
Tom Z?
A verdade que h vrios campos na Msica, um campo maior (o
dominante) e sub-campos (os marginalizados) em cada gnero cancional. O
campo maior seria o campo apriorstico musical ou cdigo apriorstico, que
segundo Campos (1997), refere-se s leis sagradas e imutveis de um cdigo
de linguagem musical condicionado pelo veculo de massa, retroalimentador de
uma conveno de valores estticos musicais, que cristaliza a msica,
conforme j vimos.
O outro campo denominado subcampo se encontra em espaos sociais
mais isolados, so campos sem pr-determinaes que, movidos por um
intenso desejo de existir, como os grupos nomeados Rock de garagem,
sobrevivem de qualquer modo. A msica que se inscreve nesse campo toca
em lugares especficos, em estdios annimos, por opo prpria ou em outras
circunstncias, raramente tocam em algum lugar, por no cumprir com dados
arranjos e melodias impostos pela indstria fonogrfica.
21
Maingueneau restringe-se em suas anlises textuais ao campo literrio: relao escritor, sociedade, instituio. Em algumas obras, ele analisa textos religiosos, teatrais, jornalsticos e publicitrios. Estamos nesse contexto observando a relao msico, sociedade instituio. O msico como escritor musical.
42
De certo modo, assim se fez a cano de Tom Z22 e de muitos dos
quais nem sabemos pelas razes de optarem por se tornarem inexistentes,
sendo possvel tambm uma outra, a de no corresponder s expectativas
fonogrficas. E nesse subcampo, h ecos de cano sempre dispersos numa
atmosfera musical desinteressada.
5.1 O SER GROTESCO E CARNAVALIZANTE
A condio instvel, parcialmente isolada ou paratpica do indivduo ao
romper com determinada hierarquia institucional pode tambm integrar-se ao
estado de grotesco. Estado em que o indivduo provoca e assume as
necessidades viscerais e vitais do corpo, permitindo-se a vivncia de
mutaes que desintegram uma dada ordem, almejando uma vida distante da
normatividade pr-estabelecida. A seguir, apresentaremos algumas noes
referentes idia do carnaval, derivao carnavalizao, a qual ns
relacionamos condio paratpica e idia de descano.
O grotesco a expresso da figura de linguagem hiprbole, da forma de
comunicao (seja ela corporal, gestual-visual, verbal) que foge a uma
conveno, apresentando alteraes de formas, tamanhos, cores, fonticas,
morfolgicas, sintticas, comportamentais. O carter grotesco traz tona a
abertura do corpo ao mundo, o corpo encarna o universo material, as
instabilidades cosmolgicas: o mundo fsico, ambientes e animais.
Tal caracterstica foi revelada em rituais e eventos carnavalescos no
perodo da Idade Mdia.
A idia de grotesco refletida na obra de Bakhtin (1999) atravs da
manifestao da cultura cmica popular na Idade Mdia e no Renascimento, no
contexto da obra do escritor e pensador Franois Rabelais. Tal manifestao
caracterizada como um evento do carnaval.
22
Embora Tom Z seja visto como marginalizado no momento tropicalista (anos 60-70), recentemente, na dcada de 90 e incio de 2000, observado como um msico e cantor popular, freqentando programas televisivos(Programa do J Soares, Roda-Viva, Provocao), dando entrevista em revistas de circulao nacional (Bravo).
43
A idia de carnaval, concebida por Bakhtin (1997:122), designa uma
forma sincrtica de espetculo de carter ritual, muito complexa, variada, que
sobe base carnavalesca geral, apresenta diversos matizes e variaes
dependendo da diferena de pocas, povos e festejos particulares.
Nesse sentido, o carnaval permite a fuso de elementos culturais
diferentes e antagnicos, em um s elemento. Tal evento se corporifica numa
linguagem de formas concretas-sensoriais e simblicas.
Bakhtin (1999) nos apresenta a vivncia das formas do carnaval da
cultura cmica popular omitida e marginalizada nos estudos literrios e no
contar oficial da histria humana.
Cuidadosamente, ele discute as modalidades de manifestao dessa
cultura, subdividida em trs categorias: as formas dos ritos e espetculos
(festejos carnavalescos, obras cmicas representadas na praa pblica); Obras
cmicas verbais (orais e escritas em Latim ou em lngua vulgar); diversas
formas e gneros do vocabulrio familiar e grosseiro (insultos, juramentos)
(BAKHTIN, 1999, p. 4). Tais manifestaes em si carregam sua singularidade
marcada pela construo de um outro mundo, um mundo margem do mundo
j existente.
O carnaval representava uma postura subversiva com relao a certos
hbitos e rituais institucionalizados. Os eventos ritualsticos apresentavam uma
viso do mundo, do homem e das relaes humanas totalmente diferente,
deliberadamente no-oficial, exterior Igreja, e ao Estado, pareciam ter
construdo, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda
vida(...) (BAKHTIN, 1999, p. 4-5).
Formas ou desformas de alteraes corporais como faces do baixo
ventre a imagem de rebaixamento, da degradao que visa comunho da
vida com a terra. Erguer o baixo revela o estado de transformao, de
metamorfose ainda incompleta no estgio da morte e do renascimento, do
crescimento e da evoluo.
44
Desse modo, a cultura carnavalesca constri-se numa ambivalncia. A
vida tambm experienciada num processo de ambivalncia, numa
contradio constante, a partir de dois plos de mudana: a morte e o nascer; o
princpio e o fim; o antigo e o novo. Isso mostra a influncia cosmolgica na
vida, o fluxo de mudanas geradas no indivduo que reflete a inconstncia do
mundo. O carnaval faz o mundo se apresentar de modo imperfeito, inacabado.
A individualidade passa a ser um estgio de fuso.
Bakhtin (1997) ao tomar como princpio a idia do carnaval
compreendida na linguagem dos rituais nomeou de carnavalizao a
transposio dessa idia para as linguagens de imagens artsticas, literria.
Com isso o autor delineia quatro categorias ou cosmovises
carnavalescas que apontam para maneiras de vivenciar o carnaval, sendo elas:
o livre contato familiar entre os homens, a excentricidade; um modo de
relaes mtuas do homem com o homem; a familiarizao ou msallinaces e
a profanao.
A primeira ou o livre contato familiar entre os homens contesta a
distribuio dos homens numa totalidade hierrquica, a qual dita leis,
proibies e restries. Ope-se concepo hierrquica e inaugura o livre
contato familiar. Os diferentes planos nos quais o homem se encontra, ou seja,
os das desigualdades sociais de classe econmica, de nvel intelectual migram
para outro lugar e fundem um s plano, o da praa pblica.
A segunda categoria revela a libertao do comportamento e gestos do
homem das foras impostas ou do domnio hierrquico da vida
extracarnavalesca. Os homens interagem e se comunicam no levando em
considerao classe social, ttulos, idade e fortuna.
A terceira categoria trata da familiarizao que designa a extenso da
livre relao familiar a tudo: a valores, a idias, fenmenos e coisas. H a
combinao do sagrado com o profano, do elevado com o baixo, do sbio com
o tolo.
45
A ltima, a profanao tambm vinculada terceira formada pelos
sacrilgios carnavalescos que expressam aes iconoclastas, a inverso de
valores bblicos e dignos de respeito, atravs de pardias carnavalescas.
Essas categorias firmam o carter contraditrio da vida humana atravs
da inter-relao de todas as coisas. Elas so idias concreto-sensoriais,
espetacular-rituais vivenciveis e representveis na forma da prpria vida, que
se formaram e viveram ao longo de milnios entre as mais amplas massas
populares da sociedade europia (Bakhtin, 1999, p. 124).
Essas categorias exerceram intensas influncias na Literatura no que se
refere construo de formas e gneros literrios.
Partindo desse percurso, consideramos nesse trabalho que os traos
grotescos e carnavalizantes apresentados tambm se estendem aos modos
de se mostrar a cano, no seu corpo verbal, meldico, sonoro, instrumental. E
funcionam como investimentos discursivos, apontando tambm para o que
apresentamos sobre descano.
6. O CAMINHO DE CHEGAR E NO CHEGAR: PERCURSO DO COMO
DIALOGAR COM AS CANES
Fomos guiados no percurso dessa viagem musical, esse
verdadeiramente inacabado, pelo no saber, causa maior de nossa escuta. O
desconhecido fez-nos ouvir e ver, no escuro, o colorido de canes.
Falar sobre e com a msica, de modo amplo, tentando traduzi-la
verbalmente, em seus efeitos e distores, quase um ato inalcanvel, uma
vez que a linguagem musical no d nomes a coisas visveis e palpveis, tal
como faz a linguagem verbal.
A linguagem musical expressa linhas sonoras e rudos que se encontram
e se desencontram. Por mais que haja uma dedicao em explic-la
verbalmente, a msica aponta com uma fora toda sua para o no-verbalizvel,
atravs de certas redes defensivas que a conscincia e a linguagem
46
cristalizada opem sua ao e toca em pontos de ligao efetivas do mental
e do corporal, do intelectual e do afetivo (WISNIK, 2004, p 28).
A viagem foi movida por um olhar que apreciou a relao de existncia
da msica com o seu mundo exterior e, em parte, com o seu mundo interior,
levando em conta no a quantidade x e exata de canes, mas a intensidade
com que ela ou elas se manifestaram discursivamente.
Explicitamos, portanto, construes sgnicas de traos que perfuram e
integram o discurso literomusical do compositor Tom Z, sem necessariamente
ou unicamente classificar, categoricamente, os modos de inseres
discursivas.
Analisamos uma parcela relevante de canes23 dos lbuns: Jogos de
Armar-Faa voc mesmo, Com Defeito de Fabricao, Correio da Estao
do Brs. E mais uma quantidade mnima significativa de canes dos lbuns
Se o caso chorar, The hips of Tradicion, Todos os olhos e Jardim da
poltica. Outros lbuns como Estudando o Pagode e Estudando o Samba
foram citados com intuitos argumentativos voltados para a construo de
sentido de posicionamentos musicais.
Levamos em considerao melodia24 e letra. Noutro momento, a anlise
do lbum como um todo (encarte25, melodia e letra) de algumas canes
necessrias para discutirmos dados efeitos de alguns investimentos
discursivos. E outros elementos musicais: ritmo, harmonia,