A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS CRIATIVOS ATRAVÉS DO PROCESSO ARTETERAPÊUTICO Angela Philippini

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    A CONSTRUO DE ESPAOS CRIATIVOS ATRAVS DO PROCESSOARTETERAPUTICO

    Angela Philippini

    RESUMOEste artigo aborda o processo de criao em arteterapia, estabelecendo relaes comaspectos histricos e culturais. Localiza a necessidade de construo de espaos criativosinternos e na coletividade, como uma das tarefas do arteterapeuta.

    ABSTRACTThis article approaches the creatives spaces in art therapy, making links with historical andcultural aspects. Adress the need of the construction of creatives spaces, inners and

    collectives, being this one task of art therapist.

    to bonito quando a gente pisafirme nessas linhas que

    esto nas palmas de nossas mos. to bonito quando a gente

    vai a vida nos caminhosonde bate mais forte o corao...

    (Gonzaguinha Caminhos do corao)

    O que significa levarARTEpara a vida de algum? E o que mesmo ARTE?Mais que conceituar ARTE como arteterapia, quero localizar e refletir sobre a

    possibilidade de construir, expandir e multiplicar espaos de criao, a princpio internos, edepois materializados externamente, em mltiplas formas expressivas pela coletividade. Aento, suponho, a Arte acontece...

    Abordagens teraputicas diversas preconizam em suas prticas: respiraoadequada, conscincia e relaxamento corporal, meditao, imaginao ativa, etc, paraauxiliarem na sada de estados ordinrios de conscincia e facilitarem o mergulho em nveispsquicos mais profundos.

    Similarmente, tradies religiosas de matrizes diversas, sugerem que construam-serecantos domsticos, em que pela reunio dos smbolos adequados, facilitem-se condiesde quietude e serenidade. Nestes locais, ento, por prticas persistentes e ritmadas, serpossvel transcender estados ordinrios de conscincia, para estados mais elevados do SER,com amplos benefcios para o indivduo praticante, e em desdobramento para o seuambiente prximo.

    Costa (1994) nos fala do artista como ativista do singular considerado a prticacriadora especfica, como uma espcie de ressonncia/irradiao da atitudecriadora, promotora de movimentos de singularizaro social.

    Como arteterapeutas, de que instrumentos dispomos, neste contexto, para resgatar eampliar possibilidades criativas do cliente?

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    Penso que o primeiro deles, absolutamente primordial, um espao psquicoreservado para a criao que advm de persistncia, disciplina e da determinao de nopermitir, temporariamente, que solicitaes e atribuies externas interfiram no processo

    criativo.Acredito que manter um ateli organizado, possa funcionar da mesma forma como

    um territrio consagrado criao, tal como um laboratrio de experimentaes dos antigosalquimistas, o que delimitar um universo particular para o resgate de prticas imemoriaisde conexo com o si-mesmo. Algo assim como uma regio dedicada s divindades dacriatividade que muitas vezes teimam em manter-se adormecidas e distante. Este sonoprolonga-se por razes diversas, que podem variar da perversa e manipuladora hegemoniada mdia, a distrair nossa ateno com sugestivas imagens prontas, razoes mais singulares,velhas conhecidas da cada um, tais como medo de arriscar, insegurana, o excessivo rigorquanto performance, e o no-desejo de despertar criaturas que vivem abrigadas nospores da nossa psique.

    No trabalho arteteraputico, muitas vezes ouo justificativas/libis para obloqueio criativo:

    - No d porque sou interrompido (a) toda hora.- No tenho tempo- No consigo me organizar...- Falta dinheiro- No posso, pois no tenho um espao adequado em casa...E por a vamos, mas a justificativa mais freqente a falta de um espao externo

    adequado.

    E o que ser este espao ideal? Penso que, s vezes, mesmo num banco de metr,no trajeto de uma viagem, ser possvel iniciar um processo de criao, s dependendo dadisposio criativa...

    Mas talvez possamos em nosso prprio proveito providenciar um pouco mais, umapequena mesa, um banco, algumas tintas e pincis, lpis de cor, carves de desenho, papispara esboos, gravuras para colagem, algum material para modelagem e vale tambm umacaixa de guardados diversos, cheias das mais improvveis coisas (um objeto quearteterapeutas j na estrada sabem como ningum organizar...). Este pode ser o comeo.

    Mas claro est, que s cada um que sabe de que material ou ambiente querealmente precisa para criar, e neste recanto, territrio sagrado, invocar as suas musas dacriatividade, para que despertem e venham a colorir a sua vida de idias originais e novas

    possibilidades de comunicao e expresso.Ento a idia, em sntese, que se deixe por um tempo o turbilho de imagens

    alheias promovidas pela mdia, e se dedique um tempo na rdua, porm, fascinante ecompensadora tarefa de pescar as prprias imagens nas profundezas psquicas.

    FRANGE (1986) ao descrever como mobiliza pessoas e instituies para o trabalhocriativo fala da restaurao de direitos de cidadania, tais como observar, experimentar,imaginar, expressar....

    Certamente o bazar de imagens da nossa cultura contempornea tem um ladoestimulante, mas pode tambm gerar ciladas diversas, atordoando, dispersando esuperficializando. Estas imagens (quem sabe?) podero estar inscritas num macro processode disseminao e construo cultural do nosso tempo, que pretende muitas vezes

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    privilegiar o olhar determinadas regies, procurando desviar sistematicamente o foco deateno de outras direes, experimentaes e, sobretudo, descobertas.

    Costa (1986) fala de uma mdia monopolizadora, instrumento disseminador deuma determinada tica do capital, colonizadora dos universos de vivncia, instrutorade um modelo dominante do tempo da vida e do destino, e destruidora da diversidadecultural, uma riqueza to grande em nosso pas quanto biodiversidade prezada pelosecologistas... E se este arsenal de imagens despejado todos os dias, e nos alcana pelossete buracos de nossa cabea (tal qual nos diz a poesia de Caetano) como ficam asimagens internas?

    E como fica tudo isto em uma estrutura psquica mais vulnervel? Ser que todapresso no pode acabar favorecendo sentimentos de menos valia e baixo auto-estima?Alguns podero pensar que no h nada mais para ser inventado, ou que no vale a penaexpor a prpria produo, com tanta coisa interessante por a.

    Dentro deste contexto, qual a possibilidade para a sada do material simblico

    sombrio, smbolos e imagens representativos de nossa funo psquica inferior,mensageiros de potencialidades em desuso, que timidamente procuram esgueirar-se,tentando atravessar as malhas da conscincia, para alcanar a luz.

    Os arteterapeutas em sua prtica, bem sabem que imagens em processo de ascenso conscincia, surgem de forma difusa, distorcida e quase sempre incompreensveis. E oseventos decorrentes deste movimento de vir tona so recorrentes no processoarteteraputico. Algumas das possibilidades:

    - Um borro ocorre de repente e interfere na pintura que estava quase pronta.(Mas e agora, o que fao? Est tudo perdido!)

    - Uma linha vai tremendo e ficando desvitalizada teimando em no encaixar,comprometendo a configurao de toda a forma desenhada. (Acho que vouconsertar, por cima, para ver se o trao fica mais forte!)

    - E como no considerar aquela modelagem em argila que nenhuma tentativaconsegue satisfazer? (No saiu o que eu queria!)

    - Do mesmo modo aquelas construes que em vez de verticalizarem-se comslido equilbrio, de acordo com o que desejam seus construtores, teimam emadernar para o lado tal qual a Torre de Pizza, e sem nenhuma garantia quesequer assim vo manter-se. E os exemplos seguem inumerveis, mais fico poraqui...

    Similarmente, observo alunos no curso de Formao em Arteterapia ao viverem o

    confronto mais intenso com o simbolismo contido em suas prprias imagens encenarem atrama da Resistncia:

    - Ah! Essas imagens eu separei assim porque no so nada,no! o resto...- Pois , no sei o que eu fao com isso. muito estranho!- Estas imagens aqui no se encaixam em lugar nenhum!- No sei, mas acho que no deve ser minha. Vai ver foi misturada por engano em

    minha pasta...

    E assim l vamos ns, nossos prprios desconhecidos. Ignorando pistas e rastros dosoutros personagens de ns mesmos, desprezando as indicaes de trilhas para nossos

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    prprios territrios inexplorados. Perdendo nossos mapas do tesouro. Aos nossos naturaismecanismos de defesa, nossa resistncia em tornar contato com regies mais profundas dapsique, somam-se questes adversas decorrentes de nossa historicidade e cultura. Ento,

    representa-se dinamicamente, no microcosmo do grupo de Formao em Arteterapia, ou na jornada solitria do cliente individual em processo arteteraputico, a trama mais ampla danossa cultura.

    Reserva-se pouco ou nenhum tempo para a criao. Tem-se pouca pacincia,determinao ou coragem para confrontar o feio, torto, troncho e estranho. Dedica-se poucaenergia ao cultivo das prprias imagens e utiliza-se pouco empenho na tarefa detransform-las. Compra-se pronto e embarca-se em projetos de navegao alheia. No de se estranhar depois, a sensao de ter perdido o rumo ou no entender bem a rota.

    A mdia faz a sua parte na trama, tecendo sedutoramente a induo de que adquirir eacumular trecos e tralhas, rapidamente assegurar o passaporte para a bem aventuranado paraso. Caso no d certo, a soluo tentar outra vez, trocando as ainda novas tralhas

    pelos j lanados e novssimos trecos.Assim, corremos o risco de caminhar no ritmo do coelho branco de Alice no Pas

    das Maravilhas, freneticamente atravessando a cena de l pra c, e de c pra l, com nossosgrandes relgios, a gritar uns para os outros e para ns mesmos: tarde, tarde. tardeat que arde...

    Uma tarefa para ns arteterapeutas ento, poder se construir pacientemente,primeiro em nossa prpria psique, este tempo de criao, que um tempo fora do tempoordinrio cotidiano dos engarrafamentos e filas de banco, das caixas do supermercado, dapoluio visual e sonora, e nos religar memria ancestral, revitalizar nossa conexo com oTodo-Criativo atravs de mltiplos rituais expressivos e celebraes pela vida.

    E relembrar Gambini (1985) que fala da necessidade de processos teraputicos que

    zelem por manter bem fechado o vaso alqumico guardando a temperatura que aquece esteTemeno*, para que possa permanecer adequada e constante, pois s assim podero ocorreras transformaes desejadas. Crer nestas possibilidades deixar-se mover e guiar pelaesperana de mudana e harmonia, contribuindo para que a arte na Arteterapia realize suaparte.

    *Temeno: Vaso Sagrado.

    Referncias Bibliogrficas:

    COSTA, M.S.R. A animao Cultural na Escola in Pesquisa e Musica Vol. I N 2 1995 Conservatrio Brasileiro de Msica RJ

    GAMBINI, R. No Nascer: Alguns Temas da Imagem Arquetpica do Aborto inJunguiana Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analtica Vol. III 1985 SP

    PHILIPPINI, A Universo Junguiano em Arteterapia in Revista Imagens daTransformao Vol. II 1995 RJ

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    Publicado originalmente no Volume IV da Coleo de Revistas de Arteterapia Imagens daTransformao Pomar - 1997

    ngela Philippini arteterapeuta, artista plstica, Mestre em Criatividade pelaUniversidade de Santiago de Compostela (Espanha), editora da coleo de Revistas deArteterapia Imagens da Transformao, autora do livro de arteterapia Cartografias daCoragem, organizadora do livro Arteterapia: Mtodos, Projetos e Processos,coordenadora da Ps-Graduao Lato Sensu em Arteterapia em convnio Pomar ISEPE.

    E-mail: [email protected]