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0 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA – CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E ENSINO LINHA DE PESQUISA: LINGUAGEM E INTERAÇÃO EM CONTEXTO DE ENSINO A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NAS AULAS DE LEITURA: UM OLHAR SOBRE A PRÁTICA Melissa Raposo Costa João Pessoa 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA – CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E ENSINO LINHA DE PESQUISA: LINGUAGEM E INTERAÇÃO

EM CONTEXTO DE ENSINO

A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NAS AULAS DE LEITURA: UM OLHAR SOBRE A PRÁTICA

Melissa Raposo Costa

João Pessoa

2007

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Melissa raposo costa

A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NAS AULAS DE

LEITURA: UM OLHAR SOBRE A PRÁTICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como exigência para obtenção do título de Mestre em Letras, na área de concentração de Linguagem e Ensino.

Orientadora: Profª Drª Evangelina Maria Brito de Faria

João Pessoa 2007

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MELISSA RAPOSO COSTA

A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NAS AULAS DE

LEITURA: UM OLHAR SOBRE A PRÁTICA

Dissertação aprovada como requisito para a obtenção do título de mestre em Letras, área de concentração em Linguagem e Ensino, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba – UFPB.

Aprovação: João Pessoa, 15 de maio de 2007

Profª. Drª. Evangelina Maria Brito de Faria – PPGL/UFPB

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Dissertação de Melissa Raposo Costa, intitulada A construção de sentidos nas aulas de leitura: um olhar sobre a prática, defendida e aprovada como requisito para a obtenção do título MESTRE EM LETRAS, no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________ Profª. Drª. Evangelina Maria Brito de Faria

Orientadora

____________________________________________ Profª. Drª. Elizabeth Marcuschi

____________________________________________ Profª. Drª. Maria Ester Vieira de Souza

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À minha mãe, Conceição de Lourdes Raposo Costa, que mesmo não estando nesta dimensão, está sempre ao meu lado.

DEDICO

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AGRADECIMENTOS

• Aos Deuses e todas às suas sábias e inacreditáveis artimanhas;

• Especialmente à professora Evangelina Maria Brito de Faria (minha

orientadora), e às professoras Elizabeth Marcuschi e Maria Ester Vieira

de Souza, que aceitaram participar da banca examinadora da defesa;

• À professora e aos seus alunos, sujeitos e colaboradores dessa

pesquisa, que permitiram a realização deste trabalho;

• À família, meu pai, meu irmão, minhas tias e tios, e meus primos,

pessoas indispensáveis;

• Aos meus amigos do PET- Letras, em especial à Rosa Maria da Silva

Medeiros, sempre presente, e ao Prof. Dr. José Hélder Pinheiro Alves,

sua dedicação à ciência e seus sábios comentários;

• Aos amigos antigos, em especial à Larissa Raposo Diniz e Ana Cecília

Feitosa de Vasconcelos, e aos novos, em especial à Vera Loureiro;

• Aos amigos e companheiros de mestrado, em especial à Ana Maria

Barreto e Josenildo Forte;

• Ao CNPQ, que financiou esta pesquisa.

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RESUMO

O conceito de leitura modificou-se bastante à medida que os estudos

lingüísticos aprofundaram-se. Atualmente, defendemos uma abordagem sócio-

interacionista de leitura, na qual esta é vista como uma constante construção

de sentidos a partir da interação entre interlocutores. No entanto, apesar dessa

concepção ter-se cristalizado no ambiente acadêmico, é importante

observarmos mais atentamente de que forma a construção dos sentidos dos

textos acontece nas salas de aula do Ensino Fundamental. Diante dessa

dúvida, veio a necessidade de analisarmos mais detalhadamente de que forma

os sentidos dos textos são construídos por uma professora e pelos seus alunos

em aulas de Língua Portuguesa do 4º Ciclo do Ensino Fundamental. Para tanto,

observamos as aulas de Língua Materna de uma professora em duas turmas

de uma escola pública localizada na cidade de Campina Grande, Paraíba: uma

7ª e uma 8ª série. Utilizamos, para a construção da fundamentação teórica da

nossa pesquisa, contribuições dos estudos sócio-interacionistas, dentre os

quais destacamos a importância das teorias de Kleiman (2004), Koch e Elias

(2006), Antunes (2003), Bakhtin (1995), Iser (1979), entre outros. Vimos, ao

final de nossas análises, que mesmo tendo uma formação teórica recente,

tanto a docente quanto os alunos ainda parecem trabalhar com os textos em

sala de aula a partir de uma perspectiva de leitura puramente estruturalista.

Palavras-chave: Ensino de Língua Portuguesa; Leitura; Construção de

sentidos; Textos.

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Abstract

Reading concept has changed a lot at the same time that linguistic studies

increased. Nowadays, we defend a socio-interactionist approach that is seen as

an invariable meaning construction based on the interlocutors’ interaction.

Although this concept has become crystallized in the academic area, it is not

clear yet how text meaning construction happens in Junior High School

classrooms. Due to this uncertainty, this study aims at analyzing how text

meanings are constructed by a teacher and her students in Portuguese

Language classes from Junior High School. To accomplish this goal, it was

observed Portuguese Language classes of a teacher in two groups of a public

school located in Campina Grande, Paraíba (7th and 8th grades). It was used in

the theoretical foundations of this research socio-interactinist study

contributions, such as Kleiman (2004), Kock & Elias (2006), Antunes (2003),

Bakhtin (1995), Iser (1979), among others. The results showed that even with a

recent theoretical formation, both the teacher and students, still seems to deal

with texts in a purely structuralist reading perspective.

Keyword: Portuguese teaching; Reading;Text meaning construction; Texts.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................................10 1. A CONSTRUÇÃO TEÓRICA: O ALICERCE PARA COMPREENDER A CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS ........................................................................................................................14 1.1. SOBRE O INTERACIONISMO.............................................................................................14 1.1.1. O Interacionismo nas Ciências Humanas e a interação em Vigotski, Bronckart e Bakhtin:

um ponto de partida........................................................................................................14 1.1.1.1 O interacionismo em Vigotski .......................................................................................15 1.1.1.2. O interacionismo em Bronckart .....................................................................................18 1.1.1.3. O interacionismo em Bakhtin..........................................................................................21 1. 2. SOBRE A LEITURA E A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO NOS TEXTOS........................... 26 1.2.1. Concepção sócio-interacionista de leitura: buscando o equilíbrio entre texto e leitor............................................................................................................................................ 26 1.2.2. A influência dos estudos sócio-interacionistas na concepção de leitura: a perspectiva da Teoria Literária e da Lingüística....................................................................................................... 31 1.2.2.1. A contribuição da Teoria Literária: a Estética da Recepção, na perspectiva de Iser...............................................................................................................................................32 1.2.2.2. A contribuição da Lingüística..........................................................................................42 1.2.3. A concepção interacionista de leitura nas salas de aula do Ensino Fundamental................................................................................................................................48 1.2.4. Os gêneros textuais dentro e fora das aulas de língua materna: caminhos e possibilidades............................................................................................................................. 54 2. A CONSTRUÇÃO METODOLÓGICA....................................................................................61 2.1.TIPO DA PESQUISA.............................................................................................................61 2.2.SUJEITOS DA PESQUISA....................................................................................................61 2.2.1. Quem são os alunos da 7ª série?.....................................................................................62 2.2.2. Quem são os alunos da 8ª série?.....................................................................................63 2.3. O CORPUS DE ANÁLISE..............................................................................................65 3. A CONSTRUÇÃO DOS DADOS: OS SENTIDOS VÃO SURGINDO....................................67

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3.1. SOBRE O CONHECIMENTO TEÓRICO E A PRÁTICA DE SALA DE AULA DA PROFESSORA............................................................................................................................67 3.2. O TRABALHO COM O TEXTO E A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NA 7ª SÉRIE......................................................................................................................................... 72 3.3. O TRABALHO COM O TEXTO E A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NA 8ª SÉRIE........................................................................................................................................101 4. O QUE ESTAMOS CONSTRUINDO? ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS, MAS NÃO CONCLUSIVAS, SOBRE O CAMINHO PERCORRIDO..........................................................110 REFERÊNCIAS.........................................................................................................................114 ANEXOS...................................................................................................................................116

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INTRODUÇÃO

Quando iniciamos um estudo científico sobre um tema qualquer que seja,

estamos sempre em busca de respostas concretas, como se elas existissem ou como

se fosse possível encontrá-las, principalmente em si tratando das Ciências Humanas.

Ao iniciarmos um estudo mais aprofundado sobre leitura, buscávamos sempre a

resposta à pergunta: o que leitura? E muitos foram os textos teóricos devorados em

busca de uma resposta que nos satisfizesse. Mas, assim como a ciência muitas vezes

nos surpreende, o que não é ciência também nos surpreende. E nos surpreendeu

encontrar a melhor definição de leitura e de sua amplitude de significados em um livro

sobre Feng Shui, arte oriental de cura de ambientes definida por Roberto B. O.

Goldkorn (autor do livro em questão) como a medicina da habitação. Em determinada

parte do seu livro, Feng Shui para brasileiros: A Medicina da Habitação – A arte

milenar chinesa adaptada à nossa realidade, Goldkorn (1998, p. 163) nos relata uma

situação real vivida com seu filho:

Há pouco tempo, estive em um escritório com o meu filho Rafael. Alguém me chamou e me perguntou qual a minha interpretação de determinada tela: em primeiro plano, um menino, aparentemente chorando. Em frente a ele, mais para a esquerda, uma pomba branca parecia morta, com uma mancha de sangue do lado. Em frente ao menino, mais para a direita, um estilingue arrebentado. Atrás do menino uma parede se dividia entre a parte clara e a escura, e ao lado da parte clara havia um arbusto viçoso com frutos. Para mim a interpretação era simples. O menino, movido pelo seu lado ‘escuro’ (grifo do autor) atirou com o estilingue e matou a pombinha. Ao se deparar com a morte, provocada por ele, de uma criatura frágil e indefesa, arrependeu-se, arrebentou o estilingue e chorou – esse era o seu lado ‘claro’ (grifo do autor), da consciência moral, reforçado pela figura da árvore carregada de frutos. Na minha cabeça, aquela era uma interpretação lógica, simples e inquestionável. Mas qual não foi a minha surpresa quando meu filho falou: ‘ _ Não concordo. Acho que pode haver outra interpretação!’ Então perguntei: ‘Qual?’, e ele respondeu: ‘Havia um bando de pombas, o menino só conseguiu matar uma, quando se preparava para acertar outra o seu estilingue arrebentou e ele sentou chorando de raiva.

Esse exemplo nos mostra que a leitura é algo bem mais amplo e complexo do

que poderíamos imaginar num primeiro momento. Vejamos que as duas

interpretações da tela, por mais distantes que sejam, são possíveis e não podemos

dizer qual delas é a certa e qual é a errada porque em si tratando de leitura e de todas

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as variáveis que envolvem o ato de ler e de interpretar o mundo a nossa volta, não

podemos determinar o que é certo ou errado. Podemos sim, a partir do texto que está

sendo interpretado, confirmar nossas leituras, mas não podemos desautorizar outras

leituras também possíveis para aquele texto.

Após essa descoberta da amplitude do ato de ler, buscamos na história da

Lingüística a história da leitura na Lingüística, primeiro para conhecermos essa história

e depois para buscarmos uma corrente teórica que guiasse as nossas análises.

Ao lermos Geraldi (2003), percebemos que as definições de língua, linguagem

e sujeito são essenciais para entendermos as mudanças nas concepções de leitura ao

longo dos tempos e dos estudos lingüísticos. A língua, antes vista pela Lingüística

como algo sistemático, pronto e acabado, passa a ser vista como algo em constante

transformação. A linguagem passa a ser entendida como trabalho social e histórico

realizado pelos sujeitos e para os sujeitos, que, por sua vez, se constituem como tais à

medida que interagem nos mais diversos contextos do meio social. A mudança nessas

definições abre a possibilidade de observarmos o quanto a linguagem é vaga e

imprecisa, e o quanto isso autoriza a construção de sentidos diversos, seja na

modalidade oral, seja na modalidade escrita da língua.

Nesse percurso de leituras teóricas, também descobrimos que as mudanças

nas concepções de língua, linguagem e sujeito interferiram e influenciaram as

mudanças nos paradigmas teóricos referentes à leitura. Assim, esta deixou de ser

vista como um processo de pura decodificação e, atualmente, influenciado por uma

perspectiva sócio-interacionista de linguagem, é vista como uma constante construção

de sentidos a partir da interação entre interlocutores. Dessa forma, não é mais

aceitável que haja uma única maneira para lermos e interpretarmos os textos, sejam

eles orais ou escritos, verbais ou não-verbais.

Além da preocupação teórica com a questão da leitura, os lingüistas também

se preocuparam ao longo dos tempos, principalmente da década de 1980 pra cá, com

os inúmeros problemas que envolvem o ensino de língua materna no Brasil, dentre os

quais, a falta de material didático e/ou a relativa qualidade deste, alunos desmotivados

para ler e escrever, pouca atenção à formação continuada dos professores, etc. Os

estudos desses lingüistas vêm mostrando que, mesmo com todas as teorias sobre

leitura e com todos os avanços da Lingüística no campo da sala de aula, há quase um

consenso entre os professores do Ensino Fundamental quanto à dificuldade que seus

alunos têm para ler e interpretar textos. As reclamações dos docentes parecem

repetir-se: “meus alunos não gostam de ler”, “meus alunos têm preguiça de ler”, “meus

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alunos reclamam do tamanho dos textos”, “não consigo fazer com que meus alunos

compreendam o que leram”.

Ao nos depararmos com tantas e constantes renovações teóricas a respeito da

leitura e observando todas as questões acima colocadas acerca da dificuldade de

leitura nas aulas de língua portuguesa, surgiu a questão que permeia nosso trabalho:

diante da nova perspectiva sócio-interacionista de linguagem e, conseqüentemente,

diante da probabilidade de construção de mais de um sentido para um mesmo texto,

surge a possibilidade de construção e aceitação de todo e qualquer sentido para o

texto lido, por parte de alguns professores em sala de aula?

Diante dessa questão, veio a necessidade de analisarmos mais

detalhadamente quais os sentidos dos textos autorizados por uma professora de

língua materna em salas de aula do 4º Ciclo do Ensino Fundamental.

Portanto, o objetivo da nossa pesquisa é analisar se uma professora de língua

portuguesa do 4º Ciclo do Ensino Fundamental permite a construção de sentidos por

parte dos alunos, de que maneira ela conduz essa construção e se ela permite que os

alunos construam sentidos desautorizados pelos textos trabalhados em salas de aula.

Para tanto, estabelecemos três objetivos específicos: 1) verificar se a

professora permite que os alunos construam sentidos diferentes daqueles que estão

presentes no livro didático durante a leitura e interpretação de textos em sala de aula;

2) se a professora permite que haja construção de sentidos por parte dos alunos,

verificar de que forma esses sentidos são por eles construídos; 3) verificar se há

relação entre a concepção teórica da professora e a sua prática pedagógica nas aulas

de leitura de 7ª e 8ª séries.

Acreditamos que algumas hipóteses podem ser possíveis: 1º) a professora

está consciente das novas teorias de leitura e autoriza os sentidos permitidos pelos

textos; 2º) a professora está consciente das novas teorias de leitura e mantém um

único ou autoriza todo e qualquer sentido para os textos; 3º) a professora não tem o

domínio pertinente da teoria e autoriza os sentidos permitidos pelos textos; 4º) a

professora não tem o domínio pertinente da teoria e autoriza todo e qualquer sentido

para os textos.

Para tanto, o presente trabalho está organizado da seguinte maneira.

Inicialmente, apresentamos um capítulo de fundamentação teórica no qual

explicitamos algumas das teorias que guiaram as nossas análises. Tal capítulo divide-

se em duas partes. A primeira delas intitula-se Sobre o interacionismo, no qual

apontamos as contribuições de Vigotski, Bronckart e Bakhtin acerca da influência da

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visão interacionista nas Ciências Humanas, em geral, e nas Ciências da Linguagem,

particularmente. A segunda parte recebe o título Sobre a Leitura e nela defendemos

uma abordagem sócio-interacionista da leitura e apresentamos as contribuições,

dentro dessa abordagem, da Estética da Recepção, corrente de crítica literária, e da

Lingüística. Ainda nessa parte, apresentamos algumas questões que permeiam o

ensino de leitura, dentre as quais as indicações teóricas e metodológicas presentes

nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa e a influência dos

Gêneros Textuais em uma nova perspectiva de abordagem do texto em sala de aula.

Após o capítulo de fundamentação teórica, apresentamos um outro capítulo

dedicado à metodologia da nossa pesquisa. Nesse capítulo, esclarecemos as

questões referentes ao tipo de pesquisa realizada, aos sujeitos envolvidos nesse

trabalho e ao corpus de análise por nós coletado.

Logo em seguida, apresentamos um capítulo dedicado à análise de dados, que

está dividida em três momentos: o primeiro, no qual fazemos uma análise de uma

entrevista realizada com a professora; o segundo, no qual observamos uma aula de

leitura na 7ª série, em que a professora discute e analisa com os alunos quatro textos

do livro didático; e no terceiro e último momento da análise, observamos uma outra

aula de leitura, desta vez realizada na 8ª série, na qual a professora também discute e

analisa com os alunos um texto do livro didático.

Por fim, apresentamos as nossas considerações finais, momento no qual

concluímos a nossa pesquisa retomando os objetivos que motivaram o nosso trabalho

e respondendo as questões acerca da construção de sentidos nas salas de aula do

Ensino Fundamental.

Tendo em vista a importância da leitura nas aulas de língua materna e na

construção de um leitor crítico, e a relevância do ambiente de sala de aula nessa

construção, acreditamos na pertinência do desenvolvimento dessa pesquisa,

objetivando contribuirmos, de alguma forma, para a melhoria do ensino de língua

materna e para a formação de cidadão críticos e conscientes.

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1. A CONSTRUÇÃO TEÓRICA: O ALICERCE PARA

COMPREENDER A CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS

1.1. SOBRE O INTERACIONISMO

1.1.1. O Interacionismo nas Ciências Humanas e a interação em Vigotski,

Bronckart e Bakhtin: um ponto de partida1

Segundo Morato (2004), o interacionismo em Lingüística representou uma

reação contra as teorias que se centravam, ora exclusivamente no indivíduo, ora

exclusivamente no texto enquanto únicos produtores de sentidos. A perspectiva

interacionista não considera que a linguagem é um sistema abstrato, isolado e

individual, mas a vê na relação com o mundo, em diferentes contextos de uso,

apresentando características bastante heterogêneas.

Para os interacionistas, nenhuma ação humana se realiza sem que haja

interação. Nesse sentido, não há como analisar a linguagem, enquanto ação humana,

sem observar as relações entre os falantes em contextos interativos diversos.

O interacionismo então surge como uma nova possibilidade de compreender as

relações entre indivíduo e sociedade, representando, portanto, uma forma produtiva na

maneira de analisar a linguagem, principalmente porque possibilita a aproximação da

Lingüística às demais ciências humanas na busca pela explicação do fenômeno

lingüístico de um ponto de vista social.

O interacionismo não é estudado apenas pelas Ciências da Linguagem, mas

também por outras Ciências, como a Antropologia, a Sociologia e a Psicologia. Dessa

forma, são vários os objetos de estudo do interacionismo, dentre eles as formas de

organização social da espécie humana, a análise das características estruturais e

funcionais dessas organizações, a forma como os organismos humanos transformam-

se em pessoas conscientes e construtoras da realidade.

Mais especificamente, aqui nos interessam os estudos interacionistas de

Vigotski, Bronkcart e Bakhtin2, os dois primeiros, psicólogos, e o terceiro crítico literário,

1 Não consideramos a ordem cronológica dos estudos citados neste trecho do capítulo teórico. A

organização deste é puramente de ordem didática para o desenvolvimento da nossa análise.

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que desenvolveram teorias bastante relevantes e servem de fundamento aos estudos

lingüísticos contemporâneos.

1.1.1.1. O interacionismo em Vigotski

Um dos principais objetivos dos estudos de Vigotski (2003) foi observar a inter-

relação entre pensamento e linguagem, inter-relação esta que, para ele, sempre foi

negligenciada pelos teóricos da Psicologia.

A principal crítica feita pelo autor aos estudos sobre linguagem e pensamento

refere-se ao método de análise. Para ele, os elementos componentes de um todo

complexo não podem ser estudados separadamente, e cita como exemplo o estudo da

palavra realizado de forma fragmentada: a fonética, que estuda o som, e a semântica,

que estuda o significado.

Diante da crítica a esse método de análise baseado nos elementos

isoladamente, Vigotski propõe a análise em unidades. Para o teórico, a unidade

conserva as propriedades do todo, diferentemente do elemento, que é analisado

separadamente do todo do qual faz parte.

Após definir o método de análise, ele define o objeto de estudo: a unidade do

pensamento verbal, o significado da palavra. E justifica a escolha de tal objeto

afirmando que:

Uma vez que o significado da palavra é simultaneamente pensamento e fala, é nele que encontramos a unidade do pensamento verbal que procuramos. (VIGOTSKI, op. cit., p. 06).

Na citação acima, fica bastante evidenciado o objetivo inicial dos estudos do

autor: analisar o todo, e não as partes que isoladamente compõem o pensamento e a

linguagem humanos.

Segundo o russo, um outro aspecto da relação entre pensamento e linguagem

negligenciado pelos estudos psicológicos foi a questão da função primordial da fala,

que para ele é a comunicação. O autor considera que a comunicação humana seria

2 É importante ressaltar que os estudos de Bakhtin não são identificados, originalmente, como “interacionistas”. Agradeço à Prof.ª Dr.ª Maria Ester Vieira de Souza pela contribuição relativa a essa observação.

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impossível sem um sistema de signos bem estruturado e generalizante. Para o teórico,

uma atitude generalizante é um estágio avançado da significação da palavra. Ele

explica esse importante aspecto da comunicação humana relacionando-o ao

desenvolvimento social das crianças. Vigotski afirma que, à medida que as crianças

vão conhecendo os significados das palavras, mais facilmente elas vão realizando

intercâmbios sociais. Assim sendo,

a concepção do significado da palavra como uma unidade tanto do pensamento generalizante quanto do intercâmbio social é de valor inestimável para o estudo do pensamento e da linguagem, pois permite (...) o estudo sistemático das relações entre o desenvolvimento da capacidade de pensar da criança e o seu desenvolvimento social. (VIGOTSKI, 2003, p. 08).

Nessa citação, fica evidente a preocupação do russo tanto com os aspectos

individuais (pensamento generalizante) quanto com os aspectos sociais (intercâmbio

social) do pensamento humano, reforçando ainda mais a idéia inicial de observar e

analisar o fenômeno da linguagem e do pensamento de maneira global.

Para desenvolver sua teoria, o autor faz a uma crítica a um dos mais relevantes

estudos sobre linguagem e pensamento das crianças, que revolucionou os estudos da

Psicologia: a teoria de Jean Piaget. Para Vigotski, os estudos piagetianos sobre

linguagem e pensamento das crianças destacaram-se por vários motivos, o primeiro

deles foi o fato de Piaget ter sido o primeiro estudioso a observar a percepção e a

lógica infantis. Destaca-se também o fato de Piaget ter demonstrado que a diferença

entre o pensamento infantil e o pensamento adulto é muito mais qualitativa do que

quantitativa.

Um dos principais aspectos da teoria de Piaget, de acordo com Vigotski, é a

questão do egocentrismo do pensamento infantil. Para o teórico, existem dois tipos de

pensamento na criança: o pensamento dirigido, que é social, e o pensamento autístico,

que é individualista. Para Piaget, até antes dos sete ou oito anos de idade, quando o

pensamento dirigido começa a se desenvolver mais rapidamente, o pensamento da

criança caracteriza-se como sendo uma atividade individual e egocêntrica.

Assim como o pensamento, Piaget também classificou as conversas das

crianças em dois grupos: o egocêntrico e o socializado, que se diferenciam de acordo

com suas funções. Na fala egocêntrica, a criança fala para si mesma, sem preocupar-

se com seu interlocutor; é como se fosse um pensamento em voz alta. Na fala

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socializada, a criança tenta estabelecer uma comunicação com os interlocutores.

Segundo Piaget, até os sete anos de idade há predomínio absoluto da fala egocêntrica,

até mesmo porque a fala socializada apresenta pensamento egocêntrico. Piaget

acredita que a fala egocêntrica não tem nenhuma função no comportamento da

criança. Vigotski, por sua vez, acredita que a fala egocêntrica, além de ser um meio de

expressão é também um instrumento do pensamento, uma maneira de planejar a

solução de problemas. Esse autor também defende que a fala egocêntrica é um

estágio transitório para a fala interior silenciosa, que também está presente no

indivíduo adulto e representa o pensar individual, o pensar sozinho e para si mesmo.

Resumindo a teoria de Piaget, vimos que, tanto o pensamento quanto a fala da

criança são processos que apresentam aspectos individuais e sociais. O pensamento

autístico e a fala egocêntrica representam processos individuais e são eles que

primeiramente desenvolvem-se na criança. A partir dos sete anos de idade, a criança

passa a sentir mais necessidade de comunicar-se e interagir com o meio social à sua

volta. Daí o pensamento dirigido e a fala socializada passam a tomar o maior espaço

que antes era dedicado à fala egocêntrica e ao pensamento autístico. Nas palavras de

Vigotski (2003, p. 22) interpretando a teoria de Piaget, lemos:

Para Piaget, o desenvolvimento do pensamento é a história da socialização gradual dos estados mentais autísticos, profundamente íntimos e pessoais. Até mesmo a fala social é representada como sendo subseqüente e não anterior, à fala egocêntrica.

A citação acima nos evidencia que, para Piaget, o desenvolvimento do

pensamento da criança se dá de dentro para fora, do indivíduo para o meio social, dos

estados mentais autísticos para a socialização.

Para Vigotski, o processo de desenvolvimento do pensamento infantil ocorre de

maneira oposta ao que foi proposto por Piaget, ou seja, do social para o individual.

Segundo o teórico russo, a função primordial da fala humana é a comunicação, e,

portanto, o contato social; assim sendo, mesmo a fala mais inicial da criança é uma

demonstração de contato social, de interação da criança com o meio em que ela vive.

A fala egocêntrica, para Vigotski, é, na verdade, a internalização das formas sociais de

interação apreendidas pela criança no meio social e transferidas para as funções

psíquicas interiores. Essa perspectiva teórica defendida por esse autor demonstra a

importância do meio sócio-cultural na formação do indivíduo. Portanto, a maior crítica

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do russo feita à teoria de Piaget centra-se no fato deste não ter dado a devida

importância à situação sócio-cultural dos indivíduos no desenvolvimento do

pensamento e da linguagem.

1.1.1.2. O interacionismo em Bronckart

A teoria de Vigotski (2003), embora tenha iniciado a discussão do verdadeiro

objeto de estudo da Psicologia Interacionista, também é criticada devido a alguns

aspectos teóricos e metodológicos. Bronckart (1999) elenca três desses aspectos.

O primeiro deles é a dificuldade de se chegar a um conceito unificador, como

pretendia Vigotski. Para o estudioso russo, os aspectos fisiológicos, comportamentais,

verbais e mentais devem ser observados e analisados como um todo, ou seja, não

devem ser estudados separadamente. Entretanto, nem mesmo o próprio Vigotski

conseguiu chegar a esse conceito unificador e, segundo Bronckart, até os dias atuais,

os discípulos daquele também não o fizeram.

O segundo aspecto problemático na teoria de Vigotski, apontado por Bronckart,

é a indefinição do que é social e do que é psicológico no comportamento humano

observado e estudado pela Psicologia Interacionista. Segundo Bronckart, decorre

disso o fato de os estudos da Psicologia Interacionista terem-se utilizado de poucas

referências aos estudos da Sociologia, tendo em vista que tais estudos constituem

uma importante referência para uma Psicologia que pretende observar a influência de

fatores sociais na formação dos indivíduos.

O terceiro aspecto é a dificuldade de definir de fato qual o papel da linguagem

na atividade social. Para Bronckart, um dos equívocos da teoria de Vigotski é atribuir à

palavra o status de unidade verbal, enquanto Bakhtin, paralelamente, conceituava os

gêneros do discurso como sendo objeto de estudo da língua. Assim como fez poucas

referências aos estudos da Sociologia, Vigotski, segundo Bronckart, também fez

poucos empréstimos aos trabalhos lingüísticos e sociolingüísticos.

Portanto, defende Bronckart (op. cit., p. 30-31) que:

(...) para atingir seus objetivos específicos, como definidos por Vigotski, a psicologia deve sair de si mesma (grifo do autor), ou, mais precisamente, deve rejeitar os postulados epistemológicos e as restrições metodológicas do positivismo que a fundou, para

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considerar as ações humanas em suas dimensões sociais e discursivas constitutivas.

A crítica de Bronckart à teoria de Vigotski, como podemos perceber na citação

acima, indica que é necessário o estudo interdisciplinar para se alcançar os objetivos

anteriormente definidos por Vigotski. Diante dessa constatação, Bronckart propõe o

Interacionismo Sócio-Discursivo, a fim de responder algumas questões acerca da

relação entre pensamento, linguagem e sociedade que, para ele, não foram

respondidas por Vigotski. Passemos então à explanação de alguns aspectos do

Interacionismo Sócio-Discursivo.

Para Bronckart (1999), a espécie humana apresenta uma complexa

organização social, que está diretamente relacionada ao desenvolvimento e uso da

linguagem. Portanto, a linguagem é um elemento fundamental para a atividade

humana. Vejamos o que afirma o autor sobre a constituição da linguagem humana:

(...) na medida em que os signos cristalizam as pretensões à validade designativa, se estão disponíveis para cada um dos indivíduos particulares, eles também têm, necessariamente, devido a seu estatuto de formas negociadas, uma dimensão transindividual, veiculando representações coletivas do meio, (...). (BRONCKART, op. cit., p. 33).

A citação acima nos evidencia que, tendo surgido a partir de constantes

processos de negociação entre seres humanos, a linguagem verbal, tal como hoje se

apresenta, através de signos, é ao mesmo tempo individual e social. Social, pois

surgiu a partir do desenvolvimento e do uso de representações sonoras e gráficas

(signos) comunicáveis; e individual, pois tais representações significam e são

comunicáveis para cada ser, individualmente.

Diante disso, Bronckart define a linguagem humana como o resultado de

interações sociais através das quais os seres humanos comunicam, representam e

declaram sobre o mundo no qual estão inseridos. Da linguagem surgem atividades

humanas que, sem ela, seriam inviáveis: os discursos e os textos, sendo os primeiros,

representações abstratas, e os segundos, representações concretas nos quais

podemos ver os discursos materializados. São através dos textos que se organizam os

signos e suas inúmeras e momentâneas significações.

Vemos aqui uma das principais diferenças entre a teoria de Vigotski e de

Bronckart. Como sabemos, a unidade verbal para o primeiro é o significado da palavra.

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Para o segundo, a unidade verbal é o discurso, no qual se evidenciam os significados

sempre instáveis das palavras. Os significados são instáveis, segundo Bronckart, pois,

dentro de uma mesma comunidade verbal, ou seja, dentro de um grupo de falantes de

uma mesma língua, há inúmeras formações sociais, ou seja, há, dentre os membros

desse grupo de falantes, várias e particulares modalidades de organização e

significação dos signos. Essa diversidade reflete-se nos inúmeros gêneros de textos

que circulam na sociedade, cada um deles servindo a propósitos sociais distintos.

Uma outra importante característica da linguagem humana é o seu caráter

histórico, como bem define Bronckart (1999):

(...) toda língua apresenta-se como uma acumulação de textos e de signos nos quais já estão cristalizados os produtos das relações com o meio elaboradas e negociadas pelas gerações precedentes.(p. 38).

Podemos observar que a língua é, na verdade, um construto sócio-histórico e

assim sendo, os textos que hoje lemos e produzimos têm em sua constituição os

reflexos das nossas idéias, conceitos, saberes, valores, conhecimentos, crenças, etc.

acumulados ao longo dos tempos. Dessa forma, nossas produções individuais são,

necessariamente, constituídas de intertextualidade.

De acordo com a perspectiva do Interacionismo Sócio-Discursivo, do ponto de

vista psicológico ou individual, o ser humano é visto como sendo um agente ativo e

consciente do seu papel no processo comunicativo. Para Bronckart, o objeto da

psicologia deve ser a ação, definida por ele como sendo um conjunto de

representações construídas pelo ser humano acerca de sua participação na atividade

social.

Um indivíduo torna-se agente ativo e consciente do processo comunicativo

quando, desde criança, é exposto a várias formas de discurso e de texto que circulam

no meio social. A partir da avaliação que o meio social faz de sua fala, a criança vai

internalizando os critérios dessa avaliação social e vai transformando-se em agente

verbal capaz de monitorar o seu dizer. Uma característica importante desse

monitoramento é a percepção que o agente tem dos contextos de uso da língua, ou

seja, a criança, a partir do momento que começa a monitorar suas falas, vai

percebendo que a língua oferece uma vasta possibilidade de signos que podem ser

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utilizados em diversas situações de uso da língua. Em outras palavras, a criança vai

adaptando sua fala aos diversos contextos de uso.

Diante das explanações de Bronckart sobre os aspectos individuais e sociais

que constituem o processo comunicativo humano, ele propõe uma metodologia para

as pesquisas no campo do Interacionismo Sócio-Discursivo.

O primeiro passo é observar as características estruturais e funcionais das

ações humanas inseridas no mundo social e no contexto no qual se realizam. Em

seguida, cabe analisar os aspectos mentais e comportamentais postos em

funcionamento nas ações humanas. Bronckart (1999) sugere como lócus de

observação e análise desses aspectos mentais e comportamentais o ambiente escolar,

afirmando serem as intervenções educativas importantes objetos de estudo para a

psicologia. Também é relevante o estudo da relação das ações de linguagem com o

mundo social e a intertextualidade, e a análise das diversas estruturas textuais e das

operações mentais e comportamentais acionadas durante a produção dessas

estruturas textuais.

Com essa proposta metodológica, Bronckart acredita ser possível responder

aos amplos questionamentos de Vigotski acerca da relação entre pensamento e

linguagem humanos, chegando enfim ao conceito unificador, no qual os aspectos

fisiológicos, comportamentais, mentais e verbais do processo comunicativo humano

estejam inter-relacionados.

1.1.1.3. O interacionismo em Bakhtin

Para Bakhtin (1995, p. 113), tudo aquilo que é dito tem significado para quem

diz e para quem ouve; assim sendo, toda palavra tem duas faces:

Na realidade, toda palavra comporta duas faces (grifo do autor). Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de (grifo do autor) alguém, como pelo fato de que se dirige para (grifo do autor) alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte (grifo do autor).

Vemos nessa citação, que a palavra, segundo o estudioso russo, sempre é dita

por alguém e para alguém. A palavra, portanto, é o produto da interação realizada em

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um contexto mais imediato entre indivíduos socialmente constituídos. A concepção de

palavra, segundo Bakhtin, também nos possibilita fazer uma distinção entre significado

e sentido. O significado está relacionado à língua em sua forma abstrata, aos

significados dicionarizados das palavras. O sentido, por sua vez, é o significado

contextualizado. A palavra e a sentença, isoladas de um contexto enunciativo, têm um

significado abstrato. Somente quando estão inseridas numa situação enunciativa é

que passam a ter uma significação concreta numa situação concreta. No significado

abstrato, o ouvinte/leitor apenas decodifica; no concreto, o ouvinte/leitor assume uma

postura crítica em relação àquilo que está sendo dito/lido.

As definições de palavra, significado e sentido nos evidenciam que, para

Bakhtin (1995), o fato lingüístico não pode ser compreendido como sendo apenas um

fenômeno físico isolado. O fato lingüístico para ser compreendido e interpretado deve

estar inserido numa esfera social, numa situação de interação imediata e num

contexto social mais amplo. Nesse sentido, Bakhtin desenvolve seus pensamentos em

contraponto a duas correntes do pensamento filosófico e lingüístico: o subjetivismo

individualista e o objetivismo abstrato.

A crítica de Bakhtin ao subjetivismo individualista centra-se no fato desta linha

teórica partir do princípio de que o fenômeno lingüístico é criação individual,

desprezando, assim, toda a influência determinante dos aspectos sócio-históricos no

momento de realização desse fenômeno. Na dicotomia entre vida interior e vida

exterior, a segunda estabelece sua superioridade; assim, a expressão lingüística não é

apenas um resultado de mecanismos físicos interiores aos seres humanos:

(...) o centro organizador e formador não se situa no interior, mas no exterior. Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental (grifo do autor), que a modela e determina sua orientação. (BAKHTIN, op. cit. p. 112).

A crítica de Bakhtin ao objetivismo abstrato parte do posicionamento teórico

defendido por Saussure que separa língua de fala. A língua, sendo um aspecto social,

é vista como um objeto externo e seria, portanto, objeto de estudo da Lingüística; já a

fala, enquanto objeto individual, não pode ser tomada como objeto científico. Saussure,

inserido numa perspectiva Racionalista de ciência que buscava verdades universais e

o conhecimento racional, dedutivo e demonstrativo, observou a língua como um

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sistema abstrato de formas imutáveis; a língua como um sistema que estava acima

dos homens e que não era por eles influenciado nem os influenciava.

Contrariando a perspectiva saussuriana, para Bakhtin não há língua sem que

haja um contexto sócio-histórico, sem que existam sujeitos sócio-historicamente

constituídos e que utilizem a língua para significar algo. Nesse sentido, Bakhtin (1995)

destaca a importância do interlocutor para a construção da expressão:

A palavra dirige-se a um interlocutor (grifo do autor): ela é função da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.). Não pode haver interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum com tal interlocutor, nem no sentido próprio nem no figurado. (BAKHTIN, op. cit. p. 112).

Vemos, no trecho acima, que o interlocutor define a fala/escrita do locutor/autor.

No momento em que organiza a sua fala/texto o locutor/escritor deve ter em mente o

público para o qual será destinada essa fala ou esse texto, pois é esse

interlocutor/leitor que definirá, através de sua formação sócio-histórica, a maneira

como locutor/autor desenvolverá a sua fala/escrita, de forma que seus objetivos sejam

atingidos. Esse pensamento bakhtiniano deu origem ao que conhecemos hoje como

as condições de produção dos textos (teoria desenvolvida e termo utilizado pela

Análise do Discurso): o que, quando, onde, para que, por que e para quem eu

falo/escrevo?

Partindo dessa necessidade da existência do interlocutor para que exista, de

fato, a linguagem, Bakhtin acrescenta que não há língua sem que haja enunciação e

interação. Mas, o que define a enunciação? Segundo o autor,

(...) a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor. (BAKHTIN, op. cit., p. 112).

Novamente, a figura do interlocutor é ressaltada. No trecho acima, Bakhtin

ainda acrescenta que esse interlocutor, mesmo não estando fisicamente presente, ele

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existe na consciência do locutor/autor no momento em que este fala/escreve,

retomando, dessa forma, as condições de produção anteriormente descritas.

Mas, o que diferencia o enunciado das palavras e sentenças da língua?

Segundo Bakhtin, palavras e sentenças estabelecem relações exclusivamente

lingüísticas. Os enunciados, por sua vez, relacionam-se com a realidade social e

histórica e com outros enunciados também reais. Todo enunciado é uma unidade do

discurso e toda enunciação é dialógica.

Um outro aspecto importante da constituição dos sujeitos e dos enunciados é o

aspecto histórico que os constitui:

(...) toda língua apresenta-se como uma acumulação de textos e de signos nos quais já estão cristalizados os produtos das relações com o meio elaboradas e negociadas pelas gerações precedentes. Os mundos representados já foram ditos (grifo do autor) bem antes de nós e os textos e signos que os constituíram continuam trazendo os traços dessa construção histórica permanente. (BRONCKART, 1999, p. 38).

Esse trecho nos evidencia alguns aspectos importantes como o fato de que

não há nada daquilo que falamos ou escrevemos hoje que já não tenha sido dito ou o

venha a ser. Nossos textos e nossas falas fazem parte de uma rede de enunciados

que se completam e se interpenetram. Assim sendo, o passado está presente em

nossas enunciações e estará presente nas enunciações futuras e tudo isso ocorre por

meio das inúmeras interações das quais participamos ao longo de nossas vidas e das

quais somos produtos.

Vemos, portanto, que o conceito de enunciação de Bakhtin (1995, p. 123) está

diretamente relacionado ao conceito de interação verbal, sendo este imprescindível

para compreendermos a teoria bakhtiniana:

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal (grifo do autor), realizada através da enunciação (grifo do autor) ou das enunciações (grifo do autor). A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.

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Nesse trecho, evidencia-se a crítica de Bakhtin ao objetivismo abstrato, quando

ele afirma que a língua não é um sistema abstrato de formas lingüísticas. Evidencia-se

também a crítica ao subjetivismo individualista quando o teórico critica a enunciação

monológica isolada. Através dessas críticas, Bakhtin conclui que a verdadeira

substância da língua é a interação verbal e que a enunciação é o seu produto

constituído sócio-historicamente pelos interlocutores. O homem, portanto, é um ser

sócio-histórico e a linguagem, que lhe constitui e é por ele constituída, também é

histórica e social. Interação, portanto, é um fenômeno sócio-historicamente produzido

que se realiza através das enunciações entre interlocutores também sócio-

historicamante constituídos e localizados.

Os pensamentos de Bakhtin (1995, p. 124) desembocam numa nova

concepção de língua, na qual esta deixa de ser um sistema abstrato, ou uma

característica fisiológica dos seres humanos, ou ainda uma enunciação monológica, e

passa a ser vista como algo que está em constante transformação:

as relações sociais evoluem (em função das infra-estruturas), depois a comunicação e a interação verbais evoluem no quadro das relações sociais, as formas dos atos de fala evoluem em conseqüência da interação verbal, e o processo de evolução reflete-se, enfim, na mudança das formas da língua.

Nesse trecho, Bakhtin reafirma a inter-relação entre sociedade e linguagem

quando diz que, à medida que as relações sociais evoluem, as interações verbais

também evoluem e, consequentemente, a língua evolui. Concordamos com essa

perspectiva, no entanto, não achamos que a noção de evolução seja aplicável às

formas da língua e/ou às relações sociais. Na verdade, nem a língua nem as relações

sociais evoluem, mas transformam-se. Evoluir é passar de um estágio inferior para um

outro provavelmente superior, e essa não é a nossa concepção. Acreditamos que,

fazendo parte de contextos sócio-históricos, tanto a língua quanto as relações sociais

transformam-se, adaptando-se a novas realidades e também influenciando-as.

Portanto, não há um movimento unilateral de influência das relações sociais na

linguagem, mas há sim um movimento recíproco de influência, tanto das relações

sociais para a constituição das línguas quanto das línguas para a constituição das

relações sociais.

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1. 2. SOBRE A LEITURA E A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NOS TEXTOS

1.2.1. Concepção sócio-interacionista de leitura: buscando o equilíbrio entre

texto e leitor

Coracini (1995), em seu texto intitulado Leitura: decodificação, processo

discursivo...?, elenca quatro grandes concepções de leitura: 1ª) a estruturalista; 2ª) a

cognitivista; 3ª) a interacionista; e 4ª) a discursiva.

Na concepção estruturalista, o sentido da leitura está exclusivamente no texto.

A leitura é vista como um ato mecânico e ao leitor cabe apenas identificar o significado

dos itens lingüísticos; o texto nada mais é do que um objeto do qual o leitor é

receptáculo de suas informações.

Na concepção cognitivista, percebemos uma grande influência da Psicologia

Cognitiva para a qual o leitor, através de esquemas mentais estruturados, lê e

compreende o texto. Diferentemente da concepção estruturalista de leitura, na qual o

texto é o único detentor do sentido, na concepção cognitivista, o leitor é o único capaz

de construir esse sentido.

Na procura do equilíbrio entre as duas concepções acima citadas, surge a

concepção interacionista de leitura. Para Coracini (op. cit.), nessa concepção, leitor e

texto interagem na busca da construção de sentidos. Os elementos formais do texto

confrontados com o conhecimento prévio do leitor e com os seus esquemas mentais

socialmente adquiridos entrariam em conjunção e daí surgiria a construção dos

sentidos.

A última concepção de leitura citada pela autora é a concepção discursiva.

Nesta, o leitor é sujeito produtor de sentidos e o momento sócio-histórico determina a

construção destes. Conseqüentemente, se os leitores mudam através do tempo, os

sentidos que eles dão aos textos que lêem também mudam. Nessa concepção, o texto

é visto como um objeto esperando que os leitores venham dar-lhes sentido; o autor só

existe enquanto imagem; o leitor, por sua vez, apenas imagina quais as intenções do

autor, mas não pode confirmá-las.

Coracini (2005) publica um novo texto, e neste afirma que há, na realidade,

duas grandes concepções de leitura: 1ª) leitura enquanto decodificação e 2ª) leitura

enquanto interação.

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Quanto à primeira concepção, afirma a autora que nela o leitor é visto como

aquele que busca e encontra o sentido dos textos que lê; esse sentido evidencia-se

através de sinais diversos (signos, formas, cores, gestos, etc.).

Trata-se da visão essencialista da leitura: acredita-se na existência de uma essência e nossa tarefa seria a de buscá-la, resgatá-la, capturá-la. Quem diz essência diz verdade e verdade absoluta que todos nós desejamos e, por isso, buscamos, na ânsia da perfeição, da completude, da totalização. (CORACINI, 2005, p. 20).

Nessa concepção de leitura, o texto é visto como uma estrutura que, para ser

compreendida, precisa ser desmembrada em pedaços menores que, posteriormente,

serão recompostos e decifrarão o sentido textual. O leitor, por sua vez, é aquele que

busca recompor esse sentido. Nessa perspectiva, portanto, não há espaço para a

subjetividade e a leitura torna-se um ato mecânico de simples descoberta do sentido

dos textos.

Para Coracini (op. cit., p. 21), na concepção de leitura enquanto interação,

autor e leitor são vistos como sujeitos ativos no processo de construção de sentidos.

Nessa perspectiva,

(...) a leitura constitui um processo cognitivo que coloca o leitor em frente do autor do texto ou da obra, seja ela de que natureza for, autor que deixaria marcas, pistas de sua autoria, de suas intenções, determinantes para o(s) sentido(s) possível(eis) e com o qual o leitor inter-agiria para construir esse(s) sentido(s).

Segundo a autora, na concepção interacionista de leitura, o autor é o

responsável pelo(s) sentido(s) dos textos. O leitor é aquele que colabora com o autor e

é por ele ajudado para construir o(s) sentido(s) autorizado(s) pelos textos.

A autora ainda afirma que a concepção interacionista de leitura é a mais

adotada nos meios acadêmicos e faz a crítica de que talvez essa seja a concepção

adotada nas academias, pois ela garante que o centro do poder e da autoridade

institucional possibilite a manutenção da racionalidade e da verdade absoluta

ambicionadas pela ciência.

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Na escola, de acordo com a autora, a visão de leitura que permanece é a de

leitura como decodificação, como decifração de um sentido único e absoluto, de uma

leitura única, possível e correta ditada pelo professor e/ou pelo livro didático.

Após apresentar as duas concepções clássicas de leitura, Coracini (2005)

passa a evidenciar as características principais da concepção de leitura como

processo discursivo (sócio, histórico e ideologicamente constituído). Para ela, o leitor,

de acordo com essa concepção, é um sujeito que lança um olhar totalmente subjetivo

aos objetos de leitura e essa subjetividade é sócio-historicamente constituída.

Considerar a constituição sócio-histórica do sujeito significa aceitar que a

individualidade deste se constrói no exterior, ou seja, através das relações sociais das

quais ele participa. Essa concepção de sujeito sócio-historicamente constituído remete

às idéias de Bakhtin (1995) para quem o centro organizador da expressão humana

não é interior, mas sim, exterior, social.

O texto, segundo a concepção discursiva de leitura, não é uma forma pré-

determinada pelo autor, com sentidos pré-defenidos. Para Coracini (op. cit.), o texto é

uma possibilidade aberta de leituras que são exclusivamente determinadas pelos

leitores e nunca pelos textos. Assim sendo, o texto, por si só, não diz nada; apenas o

leitor pode dar-lhe significado; sendo o leitor um sujeito sócio-historicamente

constituído e sendo sua leitura permeada pela subjetividade, podemos confirmar que,

de acordo com a perspectiva discursiva, há uma possibilidade infindável de leituras

para os textos? Dessa forma, tanto o texto quanto o autor nada dizem, apenas o leitor

é capaz dar significado ao texto? Acreditamos que essa perspectiva é extremista

assim como as palavras da própria Coracini (op. cit.,p. 24):

Não se trata mais de respeitar a unidade do texto ou da obra de arte, unidade essa que, aliás, não passa de uma falácia e de uma ficção; não se trata de respeitar as idéias principais ou as intenções do autor, que só fazem sentido no esquema racional, reduzindo tudo à possibilidade de controle, exercido por alguém que detém poder (...).

Concordamos que estabelecer um único sentido, uma leitura única para os

textos é uma postura questionável. Mas também é questionável deixar de buscar no

texto as pistas deixadas pelo autor para construirmos sentidos. Essa é uma postura

radical e perigosa que pode conduzir o leitor ao esquecimento do texto e à

conseqüente construção de sentidos indevidos. Buscar as pistas formais deixadas no

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texto pelo autor, trazer os conhecimentos prévios para auxiliar na construção de

sentidos, dialogar com o texto/autor para compreender um texto, não faz do leitor um

sujeito subjugado ao poder absoluto do texto/autor. Pelo contrário, só podemos nos

posicionar em relação a algo que lemos, quando conhecemos e compreendemos esse

algo. Portanto, só podemos ser sujeitos ativos no processo de leitura se assumirmos a

responsabilidade de dialogarmos com o texto, compreendê-lo e só então adotarmos

uma atitude crítica frente às idéias nele expostas. Na perspectiva de Coracini (2005), a

posição-leitor torna-se tão autoritária quanto à posição-autor que ela mesma critica;

nada mais é do que uma transferência do poder absoluto do autor para o poder

absoluto do leitor. Defendemos que o poder não está no texto, no autor, ou no leitor

vistos independentemente; o poder está na interação entre essas três variáveis e na

construção de sentidos que dela advém.

A autora ainda afirma que é o momento sócio-histórico que aponta as leituras

possíveis e não o texto em si como defende a concepção interacionista de leitura. Ora,

inicialmente, a concepção interacionista não considera que o texto em si e por si só

aponta as leituras possíveis. Pelo contrário: a palavra “interação” já pressupõe uma

interrelação entre texto e leitor, portanto, os dois em colaboração constroem sentidos

possíveis. Concordamos que o momento sócio-histórico é um aspecto importante na

construção de sentidos, entretanto, não é o único; ele deve ser visto como uma

variável importante na construção dos sentidos, mas as pistas formais do texto não

devem ser esquecidas para que não caiamos no risco de construirmos sentidos

indevidos para os textos que lemos.

Diante dessas críticas à concepção pós-moderna de leitura defendida por

Coracini (op. cit.), assumimos uma perspectiva sócio-interacionista para analisarmos

os dados da nossa pesquisa, pois acreditamos que tal perspectiva é a que melhor

conduz os leitores, sejam eles iniciantes ou experientes, a realizarem uma leitura

consciente e crítica.

Assumindo seguir a perspectiva sócio-interacionista de leitura, nos dedicamos

aos estudos já realizados de acordo com tal perspectiva e nos deparamos com vastas

contribuições teóricas. Detalhamos, a seguir, a influência dos estudos sócio-

interacionistas de acordo com duas perspectivas distintas, mas que ao mesmo se

completam: a perspectiva da Teoria Literária e da Lingüística.

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1.2.2. A influência dos estudos sócio-interacionistas na concepção de leitura: a

perspectiva da Teoria Literária e da Lingüística

Acreditamos que diante da necessidade de, cada vez mais, as Ciências

Humanas interagirem para melhor observarem e explicarem os fenômenos sociais que

são objetos de nossos estudos, realizamos leituras teóricas no âmbito da Lingüística e

de outras áreas do saber. A fim de observarmos a influência dos estudos sócio-

interacionistas na concepção de leitura, fizemos algumas leituras teóricas sobre a

Estética da Recepção, corrente teórica de crítica literária, que surgiu na Alemanha, na

década de 60, do século XX, como conseqüência de mudanças históricas, políticas e

intelectuais.

Essas mudanças refletiram-se principalmente na universidade e foi nesse clima

de transformação que em 1967, na Universidade de Constança, Jauss realizou uma

conferência denominada Provocação, na qual, segundo Zilberman (2004, p. 09), há

“(...) uma recusa vigorosa dos métodos de ensino da história da literatura,

considerados tradicionais e, por isso, desinteressantes”. Dessa forma, a Estética da

Recepção surgiu como uma crítica aos estudos literários que desconsideravam a

importância dos momentos históricos na produção e interpretação das obras literárias.

Nos estudos de Jauss, podemos reconhecer uma crítica aos estudos literários

que defendem a autonomia absoluta do texto acreditando que o sentido advém

exclusivamente de sua estrutura interna e desconsiderando a importância do momento

sócio-histórico e do leitor na interpretação desses textos. Uma outra importante

característica dessa corrente de crítica literária é o distanciamento de toda e qualquer

forma de dogmatismo, estando, dessa maneira, sempre aberta às novas tendências e

releituras que se façam necessárias.

No Brasil, as idéias dos pesquisadores da Universidade de Constança, dentre

eles, Jauss, Iser e K. Stierle foram conhecidas a partir de 1979, quando Luiz da Costa

Lima organizou uma coletânea com alguns ensaios desses teóricos.

Em resumo, segundo Zilberman (op. cit., p. 06), a Estética da Recepção é

uma teoria que reflete sobre o leitor, a experiência estética, as possibilidades de interpretação e, paralelamente, suas repercussões no ensino e no meio talvez tenha o que transmitir ao estudioso, alargando o alcance de suas investigações.

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Sendo a Estética da Recepção uma teoria que trata da importância do leitor na

construção dos sentidos dos textos, das várias possibilidades de interpretação e das

repercussões no ensino de leitura, acreditamos que ela seja especialmente importante

no contexto da nossa pesquisa. Seguem abaixo alguns aspectos relevantes da teoria

de Iser acerca da construção dos sentidos nos textos.

1.2.2.1. A contribuição da Teoria Literária: a Estética da Recepção, na

perspectiva de Iser

Para Iser (1979), um dos grandes teóricos da literatura ligado à Estética da

Recepção, o texto e o leitor são os dois pólos do processo comunicativo. Tal processo

se dá através da interação entre texto e leitor, sendo interação a influência recíproca

entre esses dois pólos do processo de comunicação.

A fim de melhor compreender de que maneira acontece a interação, Iser

recorre aos estudos da Psicologia Social realizados por Edward E. Jones e Harold B.

Gerard. Nesses estudos, a interação é definida a partir de quatro grandes tipos – a

pseudocontingência, a contingência assimétrica, a reativa e a recíproca. Definamos

rapidamente cada um desses tipos.

A pseudocontingência ocorre quando, na interação, cada parceiro tem um

plano de conduta e cada um dos parceiros conhece tão bem o plano de conduta do

outro que a interação torna-se previsível. Assim sendo, há um desaparecimento da

contingência, ou seja, do indeterminado, do incerto, do imprevisível, que caracteriza

toda e qualquer situação interativa. Para exemplificar a pseudocontingência, Iser cita

uma ocasião interativa entre atores em uma peça de teatro: nesse caso, os atores já

conhecem antecipadamente os diálogos e as situações interativas antes de elas

acontecerem e se tornarem reais para o público que assiste ao espetáculo.

A contingência assimétrica acontece quando um dos parceiros desiste do seu

plano de conduta e adere ao plano de conduta do outro.

A contingência reativa ocorre quando os planos de conduta dos parceiros são

renunciados devido a uma reação momentânea.

A contingência recíproca acontece quando há um equilíbrio entre os planos de

conduta dos parceiros e as reações momentâneas. Tal interação pode conduzir a duas

situações: ao enriquecimento recíproco entre os parceiros ou ao distanciamento entre

parceiros, sem benefícios a um ou a outro.

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Após uma rápida definição dos quatro tipos de interação social, Iser (1979)

atenta para a importância da contingência no processo interativo. Segundo ele, a

contingência constitui a interação e é por ela constituída e isso ocorre, pois os planos

de conduta dos parceiros são definidos separadamente e, assim sendo, a reação do

outro é imprevisível, o que exige estratégias e reestratégias constantes desses planos

de conduta.

Na Psicanálise, Iser foi buscar, nos estudos de Laing, Phillipson e Lee, outras

importantes reflexões sobre o processo da interação. Para esses estudiosos, nós

agimos constantemente à luz da imagem que pensamos que os outros fazem de nós.

Assim sendo, as nossas reflexões interpessoais estabelecem-se no vazio, na

inapreensibilidade da experiência do outro. Da mesma forma como os estudos da

Psicologia Social anteriormente citados concluíram que a contingência determina e é

determinada nas interações, os estudos psicanalíticos concluíram que as relações

interpessoais são permeadas pela inapreensibilidade e pelos vazios, que tentamos

preencher quando buscamos interpretar as experiências alheias.

Diante dessas constatações, Iser afirma que a característica principal de

qualquer evento interativo é a contingência, a incerteza da reação do outro. Ele

também observa que a interação entre texto e leitor é diferente da interação face a

face, pois nesta os interlocutores podem controlar mais facilmente a contingência. Na

interação entre texto e leitor, essa maior aproximação não acontece; texto e leitor

estão distantes e, por essa razão, há muito mais dificuldade por parte do leitor em ter

certeza de que sua compreensão do texto é aceitável.

Ao mesmo tempo em que diferencia a interação face a face da interação entre

texto e leitor, Iser (op. cit., p. 88) também percebe semelhanças entre essas duas

formas de interação:

(...) a relação interativa no mundo social deriva da contingência dos planos de conduta, i. e., da impossibilidade de experimentar-se a experiência alheia, e não da situação comum ou das convenções que reúnem os parceiros. (...). Do mesmo modo, são os vazios, a assimetria fundamental entre texto e leitor que originam a comunicação no processo da leitura.

O trecho acima nos evidencia que, assim como há imprevisibilidade e

inapreensibilidade nas interações face a face, há vazios na interação entre texto e

leitor que precisam ser preenchidos e é esse preenchimento que possibilita a

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comunicação durante a leitura. São também esses vazios que permitem a construção

de vários sentidos para um mesmo texto, e sobre isso, nos afirma Iser (1979, p. 88)

que:

O equilíbrio só pode ser alcançado pelo preenchimento do vazio, por isso o vazio constitutivo é constantemente ocupado por projeções. A interação fracassa quando as projeções mútuas dos participantes não sofrem mudança alguma ou quando as projeções do leitor se impõem independentemente do texto. O fracasso aí significa o preenchimento do vazio exclusivamente com as próprias projeções.

Para Iser, compreender um texto significa preencher seus vazios através de

projeções, ou seja, através de interpretações. Essas interpretações trazem

características individuais de quem as realiza e isso pode prejudicar o processo

interativo de duas formas: o leitor pode, devido à sua projeção, não conseguir

perceber as várias possibilidades de ler um determinado texto; ou, o leitor pode

interpretar um texto de acordo com suas próprias projeções e esquecer que o texto

traz em si alguns sentidos pré-determinados e que precisam ser desvendados e

compreendidos pelo leitor por mais que este não concorde com esses sentidos.

Portanto, para que haja interação, seja face a face, seja entre texto e leitor, é

necessário que exista influência recíproca entre interlocutores, e é nesse momento de

influência recíproca que ocorre uma diminuição da assimetria entre interlocutores e/ou

entre texto e leitor.

A fim de explicar de que maneira o leitor constrói sentidos em um texto, Iser

remete ao que ele chama de meios de controle. Esses meios estão mais presentes na

interação face a face, mas também aparecem na interação texto/leitor. Assim sendo e

considerando que um texto escrito é constituído de elementos lingüísticos, podemos

concluir que, por tais meios de controle, perpassam os elementos lingüísticos, mas

não apenas eles. Tais elementos encontram-se na superfície textual, mas o que falta

nessa superfície, ou seja, os vazios deixados por esses elementos na superfície do

texto permitem que o leitor diga o que não está dito, evidencie o que não está

explicitado no texto. Dessa forma, o texto será sempre uma dialética entre o dito e o

não-dito.

Um autor estudado e citado por Iser em sua obra é Ingarden (ISER, 1979, apud

INGARDEN, 1960). Segundo Ingraden, há objetos reais, ideais e intencionais. Os

primeiros caracterizam-se por serem universalmente determinados; cabendo-nos

apenas compreendê-los. Os segundos são autônomos, cabendo-nos construí-los. Os

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terceiros, representados pelas obras de arte, caracterizam-se pela impossibilidade de

determinação total. Assim sendo e segundo Ingarden, o texto literário é formado por

vários pontos de indeterminação.

Os pontos de indeterminação têm duas funções: 1ª) diferenciar o objeto

intencional da obra de arte dos demais objetos; e 2ª) ser determinante na

concretização (leitura) da obra. Os pontos de indeterminação tornam a obra de arte

aberta, ou seja, impossível de ser determinada através das concretizações que podem

ser falsas ou verdadeiras, dependendo da concretização individual de cada leitor. Para

Ingarden, deve haver na obra de arte um número determinado de vazios para que

estes possam conduzir à construção de sentidos pertinentes e não conduzam ao

caminho oposto, ou seja, à construção de sentidos indevidos.

Em resumo, os pontos de indeterminação são imprescindíveis para que o

objeto literário torne-se completo através das concretizações dos leitores. Ingarden

defende ainda que há uma concretização adequada, orientada pelo valor estético e

pelas qualidades metafísicas da obra de arte. Quanto ao valor estético, é difícil

descrevê-lo. Quanto às qualidades metafísicas, estas podem ser captadas pelo leitor

através de suas representações.

Iser (1979) faz uma ressalva em relação à teoria de Ingarden sobre os pontos

de indeterminação. Para Iser, Ingarden não observou a interação entre texto e leitor,

pois se deteve à análise do movimento unilateral de construção de sentidos, advindo

do texto para o leitor. Segundo Iser (op. cit., p. 99),

O alcance e a significação dos pontos de indeterminação variam de acordo com a sua função: aparecem como pertinentes em relação ao objeto intencional; tendem a se tornar confusos e incontroláveis em relação à recepção daquele objeto.

Nessa citação, vemos que, os pontos de indeterminação, quando analisados

do ponto de vista da constituição do objeto literário, apresentam-se como sendo

aspectos pertinentes, importantes e imprescindíveis. No entanto, quando vistos na

perspectiva do leitor, ou seja, da recepção da obra literária, os pontos de

indeterminação tornam-se aspectos problemáticos, que podem conduzir o leitor a

construir sentidos indevidos para a obra e, conseqüentemente, prejudicar a construção

de uma leitura adequada. Dessa maneira, a concretização do leitor pode desviar o

verdadeiro significado estético da obra de arte.

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Novamente, de acordo com as palavras de Iser (1979, p. 102), ressaltamos a

crítica deste à teoria dos pontos de indeterminação de Ingarden:

Aparecem, portanto aí duas grandes desvantagens da teoria de Ingarden. Primeiro, ele é incapaz de aceitar a possibilidade de a obra ser concretizada de maneiras diferentes, igualmente válidas. Segundo, por conta de seu preconceito, não leva em conta que a recepção de muitas obras de arte seria simplesmente paralisada se elas só pudessem ser concretizadas de acordo com as normas da estética clássica.

Como vemos na citação acima, Iser afirma que a teoria de Ingarden reflete um

certo preconceito pela dificuldade do autor em aceitar que sentidos diversos e

igualmente válidos possam ser atribuídos a uma mesma obra de arte. Além disso, Iser

também destaca que esse rígido posicionamento de Ingarden em relação às diversas

concretizações dos objetos literários torna os leitores e obras escravos de uma única

leitura legitimada pelas normas da estética clássica.

Diante das críticas à teoria de Ingarden, Iser desenvolve a teoria dos vazios,

segundo a qual os textos ficcionais são constituídos de vazios. Estes são estruturas

textuais importantes na indeterminação dos textos e que possibilitam a interação entre

texto e leitor e, portanto, também possibilitam a construção de sentidos. Assim sendo,

os vazios existem porque o(s) sentido(s) dos textos não está(ão) previamente

determinado(s). À medida que o leitor interage com o texto, ele preenche tais vazios e

é esse preenchimento que possibilita a construção de sentidos. Iser afirma que tal

preenchimento é possível devido à conectabilidade dos textos, uma característica da

estrutura textual. Segundo o teórico, os textos constituem-se de segmentos a serem

conectados pelo locutor através do preenchimento dos vazios no momento da

interação.

Ao definir o significado da conectabilidade, Iser (op. cit., p. 107) diferencia o

uso da linguagem cotidiana do uso da linguagem ficcional afirmando que os vazios são

os principais responsáveis por esta diferenciação:

Como elementos de interrupção da conectabilidade, tornam-se o critério de diferenciação entre o uso da linguagem ficcional face à cotidiana : o que nesta é sempre dado, naquela primeiro há de ser produzido.

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Como vemos, na citação acima, Iser (1979) afirma inicialmente que os vazios

são os elementos responsáveis pela interrupção da conectabilidade dos textos e,

portanto, são também os responsáveis pela possibilidade de construção de sentidos

diversos. O teórico também afirma que tais vazios são ainda responsáveis pela

diferenciação entre o uso da linguagem cotidiana e o uso da linguagem ficcional, pois,

na primeira, tais vazios existem naturalmente, ou seja, são aspectos constitutivos da

linguagem cotidiana, que dela fazem parte e não podem ser eliminados. Já na

linguagem ficcional, os vazios serão artificialmente produzidos por aqueles que

constroem uma obra ficcional. Seja na linguagem cotidiana, seja na linguagem

ficcional, sejam produzidos natural ou artificialmente, os vazios são elementos

constitutivos da linguagem, imprescindíveis no seu uso e, conseqüentemente, na e

para a construção de sentidos.

Iser atenta para a diferença na conectabilidade das estruturas dos textos

ficcionais e expositivos. Ele afirma que, nos primeiros, os vazios apresentam um

grande número de possibilidades de construção de sentidos, cabendo ao leitor

formular e reformular o texto a fim de selecionar quais desses sentidos são

autorizados por esse texto. Já os textos expositivos, devem apresentar uma estrutura

bastante conexa, com poucos vazios, a fim de que a construção de sentidos por parte

do leitor seja limitada.

Seja em relação ao texto ficcional, seja em relação ao texto expositivo, Iser nos

evidencia a importância do leitor na construção dos sentidos. Para ele, como os vazios

rompem com a conectabilidade dos textos, cabe ao leitor reconstruir os segmentos

aparentemente desconexos transformando-os em seqüências integradas e

possuidoras de sentido. Nas palavras do próprio autor:

Disso resulta um acréscimo da atividade constitutiva do leitor, pois se trata agora de converter as articulações aparentemente livre dos esquemas, em uma configuração (‘Gestalt’) integrada. (ISER, op. cit., p. 110).

Iser, a partir da confirmação da importância do leitor para o processo de

construção de sentidos dos textos, também percebe haver uma maior ou menor

participação do leitor nesse processo, de acordo com a caracterização das diversas

estruturas textuais. Nos textos em que a existência de vazios é limitada, a participação

do leitor na construção do(s) sentido(s) também é limitada, isto porque é característica

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da estrutura desse tipo de texto conduzir os leitores à aceitação do conteúdo textual

sem muitos questionamentos, dúvidas ou discordâncias. Nesse sentido, esses textos

são sempre destinados a um público-alvo determinado e as expectativas e valores

desse público são sempre respeitadas. Como exemplos desse tipo de texto, Iser (1979)

cita a propaganda e a publicidade, e afirma que tais textos cumprem com os seus

objetivos quando o leitor pretendido aceita como verdade o conteúdo textual.

Além de considerar a estrutura textual um aspecto essencial no preenchimento

dos vazios e conseqüentemente, na construção dos sentidos dos textos, Iser também

atenta para a importância na maneira e no meio de divulgação desses textos e cita

como exemplo o folhetim. Quanto à maneira de divulgação, segundo o autor, o

folhetim, que se assemelha às demais estórias seriadas (como as novelas, mini-séries,

etc.), é um tipo de texto que visa conquistar o leitor através das interrupções

realizadas nas estórias. Para Iser, a técnica de interromper as estórias em

determinados momentos para continuá-las em um momento seguinte, faz com que o

leitor crie expectativas preenchendo assim os vazios deixados e construindo sentido(s).

Ou seja,

O suspense faz com que, não contando com a informação no momento indispensável, procuremo-nos imaginar o prosseguimento da estória. Qual será sua continuação? À medida que nos pomos esta e outras perguntas semelhantes, aumentamos nossa participação com a estória. (ISER, op. cit., p. 117).

O imaginar o prosseguimento da estória significa preencher vazios e construir

sentidos e significa ainda ver o leitor como uma peça indispensável no processo de

leitura, como um complemento do texto.

A participação do leitor na construção dos sentidos dessas estórias seriadas

também se relaciona ao fato destas serem divulgadas em meios como os jornais e a

TV, e não em livros. Segundo Iser (op. cit., p. 118),

(...) se o texto é publicado em partes causa maior impressão de que em livro, assim sucede porque, através da pausa, acrescenta-se um vazio adicional ao vazio próprio do texto.

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Nessa citação, vemos que, além da maneira, o meio de divulgação dos

diferentes textos também influencia na construção de seus sentidos. Dessa forma, Iser

(1979) afirma que uma mesma estória divulgada em meios diferentes (um livro e um

jornal diário, por exemplo) causaria diferentes reações dos leitores, podendo inclusive,

influenciar no interesse e/ou desinteresse do público-alvo. O autor ainda afirma que a

forma de publicação de textos através de folhetim possibilita ao leitor um vazio

adicional ao vazio já próprio do texto, pois a publicação dessas estórias por partes faz

com que o leitor aumente sua atividade de imaginação.

Portanto, podemos concluir que, além da estrutura dos diferentes tipos de texto,

a maneira e o meio de divulgação desses textos são também importantes aspectos

para a construção dos sentidos. Além disso, todas essas discussões apresentadas por

Iser, nos remetem às atuais teorias lingüísticas acerca dos tipos e gêneros textuais e à

idéia de adequação do gênero ao público-alvo e ao meio de divulgação desses

gêneros (suporte).3

Como vimos, a função primeira dos vazios é possibilitar a não-conectabilidade

entre os segmentos do texto, possibilitando assim a atividade interativa entre leitor e

texto. Sendo formado por segmentos, o texto torna-se um conjunto de segmentos e

vazios que se organizam, mas não se fecham, propiciando ao próprio texto uma

característica de heterogeneidade.

Nesse ponto, surge uma importante questão mencionada por Iser (op. cit., p.

121):

(...) como as equivalências formadas a partir da heterogeneidade dos segmentos textuais podem ser suficientemente controladas, de maneira que sua construção se subtraia, pelo menos estruturalmente, da arbitrariedade subjetividade?

Em outras palavras, a questão exposta por Iser é: como evitar que o vazio

constitutivo da estrutura textual e a conseqüente heterogeneidade de sentidos

advindos das várias possibilidades de ligação entre os segmentos textuais conduzam

o leitor a realizar leituras não-autorizadas pelo texto? Para responder tal questão, Iser

3 Tais questões relacionadas à Lingüística serão abordadas em detalhes em uma outra parte do capítulo

teórico intitulada Os gêneros textuais fora e dentro das aulas de língua materna: caminhos e possibilidades.

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parte do princípio de que é importante conhecermos em detalhes o funcionamento dos

vazios e para tanto, o autor nos apresenta duas propriedades estruturais do vazio.

Entretanto, antes de observarmos em maiores detalhes essas duas

propriedades, é importante sabermos de que maneira Iser (1979) explica como o leitor

constrói os sentidos nos textos. Para ele, o texto é um sistema de perspectivas, ou

seja, nele estão presentes vários pontos de vista (do autor, das personagens, do

narrador, etc.). Ao entrar em contato com estas várias perspectivas, surge no leitor o

que Iser chama de campo, onde pelo menos duas perspectivas relacionam-se. Dessa

forma, de acordo com o autor, “o campo é a unidade mínima de organização de todo

processo de compreensão” (Iser, op. cit., p. 124).

Agora que sabemos como Iser explica de que forma os sentidos se constroem

durante o momento da leitura, voltemos à questão das propriedades do vazio, que

estão intimamente relacionadas a esse momento de construção dos sentidos. A

primeira dessas propriedades é denominada de tema e horizonte. Segundo Iser, ao

entrar em contato com um texto, o leitor vai agrupando os segmentos desse texto,

focalizando um determinado ponto de vista. Essa focalização determina um tema

impossibilitando a tematização de outros pontos de vista. Estes, por sua vez, tornam-

se horizonte, não desaparecendo do texto, apenas perdendo relevância. Assim sendo,

a teoria do tema e horizonte justifica o porquê da existência de leituras às vezes tão

distintas de um mesmo texto e evidencia a importância do papel do leitor na

construção dessas leituras.

A segunda propriedade estrutural do vazio está diretamente relacionada à

primeira. Para Iser, a relação entre tema e horizonte é um processo hermenêutico, ou

seja, realiza-se dentro da própria estrutura textual, dificultando assim a construção de

sentidos indevidos influenciada pela subjetividade do leitor. A estrutura de tema e

horizonte só é transtornada quando o leitor recusa-se a perceber os pontos de vista

evidenciados no texto. Sobre isso, afirma Iser (op. cit., p. 129):

Quanto mais preso esteja o leitor a uma posição ideológica, tanto menos inclinado estará para aceitar a estrutura básica de compreensão do tema e horizonte, que regula a interação entre texto e leitor.

Nessa citação, Iser afirma ser a posição ideológica um empecilho para a

percepção mais abrangente dos textos e para a construção de sentidos diversos.

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Quando um leitor está preso à determinada formação ideológica, os textos que vão de

encontro à sua formação ou não serão bem recebidos, ou serão lidos e

equivocadamente interpretados.

Quem trata dessa questão da influência ideológica na formação dos sujeitos, é

Bakhtin (1995). Segundo ele, há três formas de atividade mental: a atividade mental do

eu, a atividade mental do nós e a atividade mental para si. A atividade mental do eu é

tudo aquilo que não é socialmente verbalizado, e que, como afirma o próprio Bakhtin,

tende para a auto-eliminação. A atividade mental do nós está diretamente relacionada

à ideologia dos grupos sociais com os quais o indivíduo se relaciona, ideologia esta

que se reflete no mundo interior do indivíduo. E há ainda a atividade mental para si a

qual, segundo Bakhtin, trata-se do individualismo que apesar de parecer não é uma

atividade mental individual, mas sim uma variante da atividade mental do nós.

Segundo o próprio Bakhtin (op. cit., p. 117),

a atividade mental de tipo individualista caracteriza-se por uma orientação social sólida e afirmada. Não é do interior, do mais profundo da personalidade que se retira a confiança individualista em si, a consciência do próprio valor, mas do exterior; (...)

Vemos, portanto, que a atividade mental do eu para si, ou seja, a percepção

individualista que cada um tem de si próprio, não vem do seu interior, mas vem do

social e da percepção que esse social tem do indivíduo. Dessa forma, a personalidade

que se manifesta não é um produto do indivíduo, mas um produto da inter-relação

deste com o ambiente social que o rodeia. Assim sendo, a consciência, enquanto

aspecto individual do ser, é uma ficção, pois ela só se torna real após ser

ideologicamente reforçada.

Quanto à ideologia, Bakhtin afirma haver os sistemas ideológicos constituídos

da arte, da religião, da moral social e da ciência, e a ideologia do cotidiano. Esta é a

ideologia não fixada em um sistema e constitutiva de uma determinada época histórica.

Dessa forma, os sistemas ideológicos constituídos influenciam a ideologia do cotidiano

e são por ela influenciados. Vejamos o que nos diz Bakhtin (op. cit., p. 119) a esse

respeito:

Os sistemas ideológicos constituídos da moral, da ciência, da arte e da religião cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano, exercem por sua vez sobre esta, em retorno, uma forte influência e dão assim

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normalmente o tom a essa ideologia. Mas, ao mesmo tempo, esses produtos ideológicos constituídos conservam constantemente um elo orgânico vivo com a ideologia do cotidiano; alimentam-se de sua seiva, pois fora dela, morrem, assim como morrem, por exemplo, a obra literária acabada ou a idéia cognitiva se não são submetidas a uma avaliação crítica viva.

Como vemos, na citação acima, a relação entre os sistemas ideológicos e a

ideologia do cotidiano é uma relação de influência mútua. Um não vive, ou sobrevive

através dos tempos sem o outro, e os dois transformam-se de acordo com as

mudanças históricas. Constatamos, portanto, o poder das forças ideológicas sobre a

nossa formação enquanto cidadãos. Para Bakhtin (1995), não há palavra que não

traga consigo uma significação ideológica; assim, toda palavra em uso é

ideologicamente constituída.

E é justamente essa formação ideológica que está presente no momento em

que entramos em contato com os mais diversos textos. Assim sendo, uma formação

ideológica que nos faz ver o mundo sob um único ponto de vista, limita as

possibilidades de leitura que o texto nos apresenta e, conseqüentemente, inibe a

formação e a percepção de outros sentidos também permitidos pelo conteúdo textual.

Portanto, sabemos que não há apenas uma leitura correta para um texto;

sabemos, sim, que há inúmeras possibilidades de leitura, principalmente quando

lidamos com textos literários. Entretanto, nos textos do dia-a-dia, sejam eles orais ou

escritos, sejam eles formais ou informais, sempre há a possibilidade de mais de uma

interpretação.

Por fim, gostaríamos de esclarecer que, sendo a Estética da Recepção é

evidente que o seu objeto de investigação tenha sido os textos literários. Entretanto,

ao lermos acerca dessa corrente, percebemos alguns pontos em comum com os

estudos realizados pela Lingüística, tanto em relação à interação entre texto e leitor,

quanto em relação aos gêneros textuais. Portanto, acreditamos ser relevante citar

esses estudos, relacionando-os ao nosso objeto aqui analisado, e acreditamos que o

mesmo olhar lançado pelos teóricos da Estética da Recepção aos textos literários

possa ser por nós lançado aos demais gêneros textuais.

Segue, por conseguinte, a contribuição da Lingüística às questões relativas à

leitura.

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1.2.2.2. O processo de leitura e a construção de sentidos: a contribuição da

Lingüística

Segundo Koch e Elias (2006), na concepção de língua como representação do

pensamento, o sujeito-autor é individual e deseja que suas idéias sejam captadas

pelos interlocutores tal qual foram por ele mentalizadas. Nesse sentido, o texto é um

produto lógico e acabado, não restando ao leitor nenhuma função além de traduzir as

intenções do autor que estão expressas no texto. Nessa concepção de língua, a leitura

nada mais é do que tradução das idéias do autor do texto; nessa tradução, não há

participação ativa alguma do leitor, ou seja, não há interação entre autor-texto-leitor.

Na concepção de língua como estrutura, o sujeito é assujeitado, seja pelo

lingüístico, seja pelo social; ele é um ser caracterizado pela não-consciência individual.

Sendo a língua vista como um código, o texto é tido como um produto de um emissor

que deve ser decodificado pelo leitor/ouvinte. Dessa maneira, a leitura é uma atividade

de reconhecimento das palavras, ou seja, reconhecimento do código.

Na concepção de língua como interação, o sujeito é visto como um ser ativo,

que participa dialogicamente da construção do texto. Nessa concepção, o texto é

constituído por vazios que só podem ser preenchidos em situações interativas. É

nessas situações que se constroem os sentidos dos textos, e a leitura passa a ser

vista como uma complexa atividade de construção de sentidos. Nessa atividade,

devem ser considerados os conhecimentos prévios do leitor, os elementos lingüísticos

presentes na superfície textual e a situação sócio-interativa mais imediata e a mais

ampla.

Nessa concepção interacionista de língua, o leitor deve utilizar algumas

estratégias de processamento do texto para construir sentidos. Estratégias cognitivas

de leitura são, segundo Kleiman (2004a), processos nos quais o leitor utiliza os

elementos formais do texto para construir sentidos. A autora ainda afirma que há

alguns princípios que guiam as estratégias cognitivas de leitura: o princípio da

parcimônia, o princípio da canonicidade, o princípio da coerência, e o princípio da

relevância. Cada um desses princípios possui algumas regras próprias. Analisemos

cada um deles.

O princípio da parcimônia explica a tendência do leitor em reduzir as

informações lidas em um texto. Segundo Kleiman (2004a), um texto que permite tal

redução é um texto coeso, ou seja, repleto de repetições, substituições,

pronominalizações e uso de dêiticos. O princípio da parcimônia abrange duas regras:

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a regra da recorrência e a regra da continuidade temática. De acordo com a primeira

regra, o texto deve apresentar um número limitado de informações e estas devem ser

recorrentes através de substituições, repetições, uso de pronomes e dêiticos. Quanto

à segunda regra, em um texto, os temas devem estar inter-relacionados e tal inter-

relação deve estar inferível através dos elementos formais presentes no texto.

O princípio da canonicidade está relacionado à expectativa do leitor de que o

texto apresente uma ordem lógica de encadeamento das idéias. Tal princípio

determinada duas regras: a regra da linearidade e a regra da distância mínima. A

primeira regra nos diz que um texto deve refletir, através de seus elementos

lingüísticos, a ordem natural do mundo. Essa regra facilita ao leitor a construção de

laços coesivos, tendo em vista que,

(...) quando a ordem não é linear seqüencial, a leitura pode se tornar mais complexa, pois faz-se necessário procurar conscientemente o nome ao qual o pronome se refere, (...). (KLEIMAN, 2004a, p. 53).

A regra da distância mínima é uma regra de nível sintático

(...) que diz que quando há mais de um possível antecedente de um pronome ou de um dêitico, aquele mais próximo será interpretado como o antecedente. (KLEIMAN, 2004a, p. 53).

O terceiro princípio é o da coerência para o qual quando há mais de uma

interpretação possível para um texto, devemos escolher aquela que torna o texto mais

coerente. Esse princípio está relacionado à regra da não-contradição, segundo a qual

devemos estabelecer relações entre os elementos do texto a fim de torná-lo coeso e

coerente, ou seja, não contraditório.

O quarto princípio é o da relevância, no qual em um texto, caso haja

informações conflitantes, devemos escolher a mais relevante para o desenrolar do

tema em questão.

Após apontar cada um dos princípios e das regras que guiam as estratégias

cognitivas de leitura, Kleiman (2004a) define o processamento do texto como sendo a

transformação de unidades menores (palavras, por exemplo) em unidades maiores

(frases). Para a autora, tal processamento

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(...) se faz tanto a partir do conhecimento prévio e das expectativas e objetivos do leitor (chama-se esse tipo de processamento descendente ou de-cima-para-baixo (grifo do autor)) quanto a partir de elementos formais do texto à medida que o leitor os vai percebendo (chama-se esse tipo de processamento ascendente, ou de-baixo-para-cima” (grifo do autor)) (KLEIMAN, 2004a, p. 55).

Segundo a autora, essas estratégias são importantes no ensino da leitura, pois,

caso o leitor não tenha ou tenha pouco conhecimento de mundo acerca do tema de

que trata determinado texto, as pistas formais podem auxiliá-lo a encontrar caminhos

que facilitem a compreensão textual.

Retomando a citação acima, vemos que Kleiman (2004a) afirma que o

processamento do texto se realiza, tanto a partir do reconhecimento dos elementos

formais do texto, quanto a partir do conhecimento prévio e dos objetivos e expectativas

do leitor.

Quanto ao conhecimento prévio, afirma a autora que, para a construção dos

sentidos dos textos, interagem três diferentes níveis de conhecimentos: o

conhecimento lingüístico, o textual e o conhecimento de mundo.

A autora define o conhecimento lingüístico como

(...) conhecimento implícito, não verbalizado, nem verbalizável na grande maioria das vezes, que faz com que falemos português como falantes nativos. Este conhecimento abrange desde o conhecimento sobre como pronunciar português, passando pelo conhecimento de vocabulário e regras da língua, chegando até o conhecimento sobre o uso da língua. (KLEIMAN, op. cit., p. 13).

Para a autora, o conhecimento lingüístico é um aspecto importante no

processamento do texto, pois ele permite que os leitores percebam as palavras como

constituintes das frases, estas como constituintes dos textos, estando todas, palavras

e frases, interagindo para formar um todo coerente. Kleiman (2004a) destaca ainda a

importância do conhecimento acerca das regras da língua, sejam elas referentes à

pronúncia, ao vocábulo ou à sintaxe da língua, seus usos e suas funções.

Kleiman (2004a, p. 16) define o conhecimento textual como sendo um “(...)

conjunto de noções e conceitos sobre o texto, (...)”, referindo-se às características das

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diferentes estruturas tipológicas. A autora destaca três dessas estruturas e suas

características mais marcantes: a narrativa, a expositiva e a descritiva.

A estrutura narrativa apresenta marcação temporal e causalidade, destaca os

agentes das ações (personagens), os cenários são, geralmente, bem descritos, e há

uma complicação e a resolução desta.

Na estrutura expositiva, a marcação temporal não é um aspecto essencial; as

idéias são enfatizadas, e não as ações; os agentes das ações também não têm

grande importância. Nas palavras da própria autora,

(...) uma estrutura expositiva está organizada em componentes ligados entre si por diversas relações lógicas: premissa e conclusão, problema e solução, tese e evidência, causa e efeito, analogia, comparação, definição e exemplo. (KLEIMAN, 2004a, p. 18).

Já na estrutura descritiva, há uma listagem de qualidades e/ou defeitos dos

objetos tematizados; não há uma marcação temporal. A descrição é normalmente

encontrada no interior de uma narração ou exposição.

Percebemos que há entre tais estruturas algumas diferenças que, quando

reconhecidas pelo leitor, facilitam o processamento do texto. Dessa forma, quanto

mais acesso o leitor tiver a uma maior diversidade textual, mais conhecimento ele terá

das estruturas textuais e, conseqüentemente, maior facilidade para ler e compreender

textos.

Vimos até então que tanto o conhecimento lingüístico quanto o conhecimento

textual devem ser mobilizados na leitura. Há ainda um outro importante conhecimento

imprescindível para a compreensão textual: o conhecimento de mundo. Tal

conhecimento pode ser adquirido tanto formal quanto informalmente e refere-se à

compreensão que temos acerca dos mais variados assuntos, assuntos estes que

devem estar ativados durante a leitura, facilitando, dessa forma, o processamento do

texto. Quando ativamos esses assuntos diversos, ativamos também nossa memória,

que é nosso depósito de conhecimentos.

Kleiman (2004a) trata de um outro tipo de conhecimento de mundo: aquele que

é adquirido informalmente nas mais diversas situações sócio-interacionais do dia-a-dia.

Sobre tal conhecimento, nos diz a autora:

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Esse conhecimento permite uma grande economia e seletividade, pois ao falar ou escrever, podemos deixar implícito aquilo que é típico da situação e focalizar apenas o diferente, o memorável, o inesperado. O interlocutor, que escuta ou lê, pelo fato de ele também possuir esse conhecimento, será capaz de preencher aqueles vazios, aquilo que está implícito, com a informação certa. (Kleiman, 2004a, p. 22).

A autora denomina esse conhecimento socialmente estabelecido e estruturado

de esquemas. Os esquemas nos possibilitam que sejamos econômicos e seletivos em

situações comunicativas, pois sabemos (ou pelos menos supomos que sabemos)

quais os conhecimentos que o nosso interlocutor partilha conosco, e podemos deixá-

los implícitos na nossa fala/escrita.

Concluímos, portanto, que o conhecimento prévio é constituído pelos

conhecimentos lingüístico, textual e de mundo, e são esses três conhecimentos que

permitem ao leitor fazer inferências, tornando o texto um todo coerente e

estabelecendo-lhe sentido(s). Assim sendo, há constante interação e compensação

entre tais conhecimentos, pois quando um dos níveis de conhecimento apresenta

problemas que podem dificultar a compreensão, outros níveis são imediatamente

ativados para que o leitor compense as dificuldades iniciais.

Além dos conhecimentos citados por Kleiman (2004a), Koch e Elias (2006)

acrescentam o conhecimento interacional relativo às formas de interação através da

linguagem e que engloba outros quatro conhecimentos: o ilocucional, o

comunicacional, o metacognitivo e o superestrutural.

O conhecimento ilocucional está relacionado ao reconhecimento por parte do

leitor/ouvinte dos objetivos do produtor de um texto numa determinada situação

interativa.

O conhecimento comunicacional engloba vários aspectos relacionados a uma

situação interativa. O primeiro deles é a quantidade de informação necessária

fornecida aos leitores/ouvintes para que estes possam construir/reconstruir os sentidos

do texto. O segundo aspecto relativo ao conhecimento comunicacional é a seleção

adequada da variante lingüística a ser utilizada numa dada situação interativa. O

terceiro e último aspecto relaciona-se à escolha, por parte do produtor textual, do

gênero textual adequado ao objetivo comunicacional pretendido.

O conhecimento metacognitivo está relacionado à intenção do produtor do

texto em assegurar a compreensão por parte dos seus interlocutores, utilizando-se,

para tanto, de vários tipos de artefatos lingüísticos na construção textual, como

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palavras grafadas em destaque (negrito, sublinhadas, etc.), e/ou uso de expressões

que são comentários sobre o seu próprio discurso.

Por fim, temos o conhecimento superestrutural ou conhecimento sobre os

gêneros textuais, que permite identificarmos as mais variadas formas e funções dos

gêneros que circulam no nosso meio social. O contato com estes faz com que

desenvolvamos aquilo que Koch e Elias (2006) denominam de competência

metagenérica, ou seja, o conhecimento sobre os gêneros que nos permite reconhecê-

los, diferenciá-los, produzi-los e compreendê-los nas mais diversificadas situações

interativas.

Além de todos esses conhecimentos, o processamento textual também se faz a

partir dos objetivos e expectativas de leitura. Para Koch e Elias, a interação entre

texto-leitor-autor é regulada pelos objetivos da leitura. São eles que orientam o

processo interativo com o texto.

De acordo com Kleiman (2004a), estabelecer objetivos para a leitura é uma

estratégia desenvolvida ao longo dos anos. Assim sendo, um leitor inexperiente tem

dificuldade em estabelecer objetivos para a leitura. Diante disso, um leitor mais

experiente (um professor, por exemplo) pode estabelecer alguns objetivos,

familiarizando o leitor inexperiente com as práticas que facilitam o processamento

textual.

Um outro aspecto importante da leitura é a formulação de hipóteses. Sendo o

texto um processo, portanto, não acabado e propenso a reformulações e

interpretações diversas, o leitor, à medida que interage com o texto, reformula

hipóteses que confirma ou abandona durante a leitura. A formulação de hipóteses,

entretanto, pode prejudicar a compreensão da leitura caso o leitor não consiga

perceber que uma hipótese anteriormente levantada não está sendo confirmada

durante o contato com o texto. Nesse caso, o leitor deve ser orientado para reformular

a hipótese inicial, atentando, principalmente, para os seus conhecimentos textual e

lingüístico.

Retomando o início deste capítulo, relembremos a definição de leitura como

interação de acordo com Koch e Elias: leitura é uma complexa atividade interativa de

construção de sentidos.

Kleiman (2004a) afirma que leitor e autor estabelecem uma relação de

responsabilidade mútua no processo de leitura: o leitor está sempre buscando

compreender e o autor está sempre tentando convencer; os dois, tanto leitor quanto

autor, interagem através do texto.

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A autora também distingue interação face a face da interação entre texto e

leitor. Na primeira, os elementos do contexto mais imediato (gestos, tom de voz,

objetos ao redor, etc.) ajudam na compreensão. Já na segunda, a distância entre

interlocutores não permite o esclarecimento de dúvidas e/ou a discussão de aspectos

relevantes do texto. Assim sendo, as responsabilidades do autor e do leitor aumentam

consideravelmente: o primeiro deve deixar no texto pistas formais suficientes para que

o leitor percorra sem maiores dificuldades o caminho textual; o segundo deve buscar a

compreensão do texto acreditando na relevância e na coerência dos dizeres do autor

explicitados na superfície textual.

Dentre as pistas formais utilizadas pelos autores destacam-se os operadores

lógicos, que refletem o raciocínio do autor e podem estar explícitos ou implícitos; os

modalizadores, expressões que demonstram o grau de comprometimento do autor

com aquilo que ele diz; e os elementos lingüísticos como adjuntos, pronomes, verbos,

que revelam a atitude do autor em relação ao que está sendo dito. Segundo Kleiman

(2004a), na escola o aluno não é conduzido a perceber que há pistas formais nos

textos que evidenciam a intenção argumentativa do autor. Sendo assim, a leitura

crítica fica comprometida, pois o leitor, sendo inexperiente, sente dificuldade em

reconstruir a intenção argumentativa do autor e, conseqüentemente, sua compreensão

do texto fica profundamente comprometida.

1.2.3. A concepção interacionista de leitura nas salas de aula do Ensino

Fundamental

Para Antunes (2003, p. 39),

toda atividade pedagógica de ensino de português tem subjacente, de forma explícita ou apenas intuitiva, uma determinada concepção de língua (grifo do autor).

De acordo com essas palavras, toda prática de sala de aula de língua

portuguesa está fundamentada em princípios teóricos; assim sendo, todos os

professores de português, ao ministrarem suas aulas de leitura, evidenciam quais os

princípios que orientam a sua prática.

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Ciente disso e do reflexo que essa formação teórica proporciona no ensino-

aprendizagem da língua materna, Antunes (2003, p. 41) defende a concepção

interacionista de linguagem:

(...) a evidência de que as línguas só existem para promover a interação entre as pessoas nos leva a admitir que somente uma concepção interacionista da linguagem (grifo do autor), eminentemente funcional e contextualizada, pode, de forma ampla e legítima, fundamentar um ensino da língua que seja, individual e socialmente, produtivo e relevante.

Diante da defesa da concepção interacionista de linguagem como sendo a

mais adequada para o ensino-aprendizagem da língua materna em sala de aula, a

autora define o processo de leitura como sendo uma atividade de interação entre

sujeitos que exige muito mais do que a simples decodificação dos elementos

lingüísticos.

Como vemos, de acordo com a perspectiva interacionista de linguagem, a

leitura não se resume em decodificar textos sem que haja compreensão destes. Para

Antunes (op. cit., p. 67), numa perspectiva interacionista de linguagem,

o leitor, como um dos sujeitos da interação, atua participativamente, buscando recuperar, buscando interpretar e compreender o conteúdo e as intenções pretendidos pelo autor.

Diante de uma nova concepção de linguagem e de leitura, nos perguntamos:

será que o nosso aluno do Ensino Fundamental e Médio tem consciência da

importância de seu papel na construção dos sentidos dos textos? Será que esse aluno

sabe que o texto precisa ser lido e relido para que, não só seu conteúdo, mas também

sua estrutura sejam apreendidos? Será que o aluno percebe que há diferentes

maneiras de se lê um texto? Enfim, será que o aluno interage com os textos que lê em

sala de aula? Quantos aos professores: será que eles encaminham os alunos para

que consigam interagir com os textos? Qual a concepção de leitura que embasa sua

prática pedagógica?

Após a definição da sala de aula como um dos ambientes essenciais para o

desenvolvimento de pesquisas lingüísticas, muitos trabalhos acadêmicos vêm sendo

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feitos buscando respostas para essas perguntas e muito vem sendo descoberto.

Descobrimos, por exemplo, uma enorme dificuldade dos professores em internalizar

as novas concepções teóricas sobre leitura; descobrimos que os livros didáticos

muitas vezes são o único material ao qual professores e alunos têm acesso;

descobrimos ainda que esse material muitas vezes é de qualidade questionável e que,

mesmo assim, o professor continua a utilizá-lo indiscriminadamente nas aulas de

português; descobrimos escolas sem bibliotecas, alunos desinteressados, professores

desmotivados e sem acesso a uma formação continuada, escolas sem carteiras, sem

papel, sem computadores, etc.

Todas as questões acima descritas refletem-se na atitude dos alunos frente à

leitura. Para os professores, os alunos estão a cada dia mais afastados da prática de

leitura, reclamam quando são chamados a ler textos em sala de aula e quando lêem

(quase sempre de maneira forçada) não compreendem o que leram.

Diante de tal realidade, vários lingüistas tentam compreender o porquê desse

distanciamento dos alunos da leitura. Kleiman (2004b) elenca três aspectos que

contribuem para tal distanciamento: 1º) os próprios professores não são leitores, não

desenvolveram e não desenvolvem essa habilidade por motivos inúmeros; 2º) a leitura

legitimada pela tradição escolar resume-se à decifração de palavras, uma atividade

árdua e que não faz sentido para os alunos, levando-os a estabelecer uma relação

negativa com o processo de leitura; e, por fim, 3º) a questão, sempre presente, da

formação do professor. Para a autora,

(...) encontramos, na maioria dos casos e muito rapidamente o professor novo (recém-chegado ou recém-formado e com uma proposta renovadora) que desiste, (...), pelo fato de sua proposta estar baseada apenas numa convicção de necessidade de mudança, mas sem a formação necessária para essa mudança. Por isso, acreditamos na formação teórica do professor na área de leitura. (KLEIMAN, 2004b, p. 17).

Observando a utilização de textos em aulas de língua materna, a autora

afirma que o texto é, muitas vezes, concebido como simples conjunto de elementos

gramaticais, sendo utilizado apenas para reconhecimento destes. Constatamos aqui o

reflexo da concepção estruturalista de leitura, na qual o texto é o detentor do sentido

único. Em outras situações de sala de aula, os textos são considerados simples

conjuntos de palavras e cabe ao leitor extrair as informações por eles veiculadas. Aqui

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se reflete a concepção cognitivista de leitura, na qual somente o leitor é capaz de

construir o significado textual. Nas duas situações, o texto não é abordado em sala de

aula como deveria ser para que os alunos tenham a consciência de sua estrutura e a

percepção profunda e crítica de seu conteúdo.

Segundo Geraldi (2003), o texto é visto de três maneiras nas aulas de língua

materna. Na primeira delas o texto é objeto de leitura vozeada, ou seja, o texto é

utilizado para ser lido em voz alta para toda a classe, e, conseqüentemente, lê melhor

o aluno que mais se aproxima da leitura realizada pelo professor. Na segunda, o texto

é objeto de imitação, servindo de modelo para a produção textual dos alunos. Na

terceira maneira, o texto é objeto de uma fixação de sentidos e nesse sentido, ler é

construir sentidos através das pistas formais fornecidas pelo texto. Essa construção de

sentidos está, na grande maioria das situações de sala de aula, presa à leitura do

professor e/ou à leitura do livro didático, e, assim sendo, a construção de sentidos por

parte dos alunos é prejudicada.

Essas três concepções de texto nas aulas de língua materna nos conduzem a

três concepções de texto enquanto conteúdo de ensino, de acordo com Geraldi: 1ª)

uma única leitura possível passa a ser a única, a legitimada tanto pelos alunos quanto

pelos professores; 2ª) são aceitos todos os sentidos atribuídos ao texto mesmo que

sejam desconsideradas todas as indicações de sentido evidenciadas no próprio texto;

3ª) o texto é visto como um terreno cheio de espaços em branco onde estão colocadas

várias possibilidades de sentido. Essa terceira forma de inserção do texto como

conteúdo de ensino possibilitaria ao professor assumir o papel de mediador nas

interlocuções ocorridas entre os alunos e os textos. Nesse contexto, a sala de aula

seria, de fato, um lugar de construção de sentidos. Mas, o que fazer para transformar

a sala de aula nesse lugar de produção de sentidos? Segundo Geraldi (op. cit., p. 112),

trata-se agora de reconstruir, em face de uma leitura de um texto, a caminhada interpretativa (grifo do autor) do leitor: descobrir por que este sentido foi construído a partir das pistas (grifo do autor) fornecidas pelo texto.

Assim sendo, ler em sala de aula não é mais atribuir um único sentido ao texto,

não é esperar a resposta correta dada pelo professor, mas é construir, em conjunto

com os alunos, sentidos possíveis para o texto, observando sempre a estrutura formal

deste e confirmando ou não as várias hipóteses de leitura dentro do próprio texto. De

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acordo com essa concepção de texto, a leitura em sala de aula significa também

considerar que variáveis sociais, culturais e lingüísticas estão envolvidas na leitura

feita pelo aluno e na construção de sentidos por ele realizada. Ouvir a palavra do outro

é necessário para que a utilização do texto nas aulas de língua materna seja uma

atividade democrática e consciente de produção de sentidos.

A concepção de texto nas aulas de língua materna também é abordada por

Kleiman (2004b) e, segundo ela, esta se reflete na concepção de leitura que permeia

essas aulas. Para a autora, a leitura pode ser concebida em sala de aula como

decodificação, como avaliação e como sentido único. A primeira caracteriza-se através

da realização de atividades que nada exigem do aluno; uma breve olhada no texto

para reconhecimento de palavras garante que eles as respondam. A segunda está

diretamente relacionada à leitura dos alunos em voz alta, momento no qual o professor,

supostamente, pode avaliar a compreensão dos alunos relativa ao conteúdo textual.

Um outro aspecto da leitura como avaliação é a exigência de realização de resumos,

preenchimento de fichas, relatórios, etc. tornando a atividade de leitura uma obrigação.

A terceira concepção de leitura na escola é aquela que considera haver apenas um

sentido para o texto que é medido pela aproximação ou afastamento da leitura

realizada pelos alunos e da leitura “autorizada” pelo professor e/ou pelo livro didático.

Para Kleiman (2004b, p. 23),

a leitura é, no entanto, justamente o contrário: (...) a experiência do leitor é indispensável para construir o sentido, não há leituras autorizadas num sentido absoluto, mas apenas reconstruções de significados, algumas mais e outras menos adequadas, segundo os objetivos e intenções do leitor.

Como constatamos, a leitura, da forma como parece ser abordada em grande

parte das salas de aula, muito pouco contribui para a formação crítica dos alunos. As

aulas de leitura parecem ser simplesmente uma transmissão de conteúdos por parte

do professor; nessa transmissão, ele constrói o sentido do texto, e espera que os

alunos aceitem esse sentido sem maiores questionamentos. Dessa forma, nesse

processo de construção de sentido, não há interação entre professor e alunos sendo o

leitor inexperiente (no caso, os alunos) o maior prejudicado, tendo em vista que é no

momento da interação que esses leitores compreendem os textos e constroem

sentidos. Diante desse fato, é importante ressaltar a importância do professor

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enquanto mediador do processo de ensino-aprendizagem da leitura. Segundo Kleiman

(2004b, p. 24),

sabe-se, pelas pesquisas recentes, que é durante (grifo do autor) a interação que o leitor mais inexperiente compreende o texto: não é durante a leitura silenciosa, nem durante a leitura em voz alta, mas durante a conversa (grifo do autor) sobre aspectos relevantes do texto.

Para a autora, é importante ressaltar que diferentes textos pressupõem

diferentes objetivos de leitura e são esses objetivos que determinarão a condução do

professor em sala de aula. Une-se a essa questão uma outra de fundamental

importância: muitas vezes, as aulas de leitura restringem-se à abordagem de temas

diversos e não à análise detalhada das diferentes estruturas que caracterizam os

textos. Concordamos com Kleiman (2004b) quando ela afirma que o tema é o fio que

permite a entrada nos textos para que, a partir daí, ocorra o desenvolvimento de um

novo sistema simbólico: o da linguagem escrita. Portanto, como podemos perceber, é

função do professor de língua materna não só discutir temas relevantes em sala de

aula, mas principalmente, fazer com que os alunos, através dos textos escritos,

possam compreender de que forma a linguagem escrita se apresenta nos textos.

Como percebemos, as mudanças teóricas ocorridas na forma de se conceber a

leitura e o texto foram muitas. Entretanto, em sala de aula, não sabemos que

concepção de leitura está em evidência, se a prática de leitura em sala de aula está

presa ao passado, ainda como reflexo de uma concepção estruturalista de linguagem,

ou se tal prática já assume os contornos de uma perspectiva sócio-interacionista de

linguagem.

Tratamos até então da questão do texto em sala de aula e de sua íntima

relação com a concepção de leitura nas aulas de língua portuguesa. Entretanto,

sabemos que, para a Lingüística, também é importante abordarmos a questão dos

gêneros textuais, tendo em vista que atualmente grande parte das pesquisas

científicas realizadas nessa área abordam a teoria dos gêneros e sua aplicabilidade ao

ensino de línguas.

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1.2.4. Os gêneros textuais dentro e fora das aulas de língua materna: caminhos e

possibilidades

Segundo Bakhtin (1992), todas as atividades humanas são permeadas pelo

uso da língua, utilizada em forma de enunciados que, assim como as atividades

humanas, são os mais diversos possíveis. Os “tipos relativamente estáveis de

enunciados” são definidos, de acordo com Bakhtin (op. cit., p. 279), como gêneros do

discurso.

Para o teórico, o falante ao querer dizer algo de maneira específica a alguém

escolhe dentre uma vasta quantidade de gêneros aquele que melhor se adapta às

intenções do falante. Dessa forma, sempre que falamos e queremos comunicar algo,

utilizamos alguma forma de gênero do discurso. Assim como aprendemos a falar em

nossa língua materna, também aprendemos a utilizar os gêneros e sabemos identificá-

los e diferenciá-los. Segundo Bakhtin (op. cit.), sem os gêneros do discurso a

comunicação verbal seria quase impossível.

Sendo utilizados em todas as situações de interação, os gêneros do discurso

são de uma variedade infindável, isto porque as interações entre os seres humanos

são constantes e diversificadas. Assim sendo, os gêneros do discurso podem surgir

e/ou desaparecer dependendo da sua função na sociedade.

Bakhtin (op. cit.) afirma que, mesmo diante de tamanha heterogeneidade, é

possível fazer um estudo científico sobre os gêneros do discurso, e, para tal,

classifica-os como primários e secundários. Os gêneros primários seriam os mais

simples, produzidos numa situação de comunicação verbal espontânea. Os gêneros

secundários seriam os mais complexos, produzidos em situações de comunicação

mais elaboradas, como as produções artísticas e científicas.

Havendo uma grande variedade de gêneros, é importante que saibamos utilizá-

los, adequando-os às mais diversas situações. Para tanto, também é imprescindível

conhecermos as estruturas e funções desses gêneros. Conhecê-los e saber utilizá-los

adequadamente é importante para que participemos mais ativamente das mais

diversas situações de interação social, sejam elas mais formais ou mais informais.

Assim sendo, a importância dos gêneros ultrapassa uma discussão unicamente teórica

e adentra numa questão de participação ativa dos sujeitos num maior número de

esferas sociais e, conseqüentemente, na conquista de cidadania.

Para Bakhtin (op. cit.), assim como as formas prescritivas da língua (seus

componentes e suas estruturas gramaticais), os gêneros do discurso também são

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formas prescritivas, pois têm um valor normativo para o indivíduo falante, valor

normativo este que se evidencia porque os gêneros não podem ser modificados e/ou

criados por um indivíduo isoladamente. Sendo uma convenção socialmente

estabelecida, os gêneros do discurso só podem ser criados e/ou modificados pela

sociedade, de acordo com suas necessidades de comunicação.

Assim sendo, não há como separar a realidade da língua da realidade dos

indivíduos que a utilizam. Dessa maneira, a escolha de um gênero do discurso

específico que será utilizado numa determinada situação interativa depende do

destinatário. É o destinatário que define para o locutor/autor o que, como, por que,

quando e de que maneira algo deve ser dito. Portanto, conhecer o destinatário, suas

crenças e valores, seu grau de conhecimento sobre um determinado assunto, suas

opiniões, etc. facilita para o locutor/autor procurar o gênero mais adequado aos seus

objetivos e às necessidades do ouvinte/leitor. Bakhtin (1992, p. 322) traduz

magnificamente a importância do destinatário e da posição social dos parceiros da

interação quando afirma que:

Nas esferas da vida cotidiana ou da vida oficial, a situação social, a posição e a importância do destinatário repercutem na comunicação verbal de um modo todo especial.

Como constatamos, a relação entre os parceiros das interações, a posição

social destes e a utilização de determinados gêneros do discurso é inevitável e

acontece naturalmente no dia-a-dia e em todas as situações interativas. E, como

afirma Bakhtin (op. cit.), assim como adquirimos a habilidade de utilizar os

componentes estruturais da língua, também desenvolvemos a habilidade de utilizar os

gêneros de acordo com as nossas necessidades comunicacionais.

Portanto, concluímos de acordo com Bakhtin (op. cit.), que os gêneros do

discurso são constituídos de acordo com as diversas maneiras que o locutor/autor

encontra para interagir com alguém e pelas concepções que esse locutor/autor tem do

destinatário.

Segundo Koch e Elias (2006), baseadas numa perspectiva bakhtiniana, os

gêneros textuais se caracterizam pela sua composição, conteúdo e estilo. Assim

sendo, observar atentamente essas características dos gêneros é fundamental para

que possamos compreendê-los com mais clareza. Para as autoras, em relação à

composição dos gêneros, devemos observar a organização e distribuição das

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informações, atentando também para a linguagem não-verbal. Quanto ao conteúdo

temático, devemos observar de que forma um determinado tema é abordado, se de

maneira mais objetiva ou mais subjetiva, se é um tema atual e qual o tipo de

acontecimento relatado (de ordem política, econômica, social, cultural, pessoal, etc.).

Já em relação ao estilo, devemos observar as escolhas feitas pelo locutor/autor para

interagir com o seu público-alvo, se ele utiliza um estilo mais formal ou mais informal, a

que destinatário ele escreve/fala, e de que maneira o locutor/autor consegue deixar

transparecer a sua individualidade na escrita sem, contudo, fugir das características

gerais do gênero.

Para as autoras, o reconhecimento dos gêneros e a utilização dos mesmos no

dia-a-dia acontece devido ao desenvolvimento da competência metagenérica pelos

indivíduos. É essa competência que permite aos indivíduos utilizarem os mais diversos

gêneros, adequando-os às mais diversas situações de interação acontecidas nas

práticas sociais. Dessa forma,

(...) se, por um lado, a competência metagenérica (grifo dos autores) orienta a produção de nossas práticas comunicativas, por outro lado, é essa mesma competência que orienta a nossa compreensão sobre os gêneros textuais efetivamente produzidos.”(KOCH e ELIAS, 2006, p. 103).

Como vemos no trecho acima, a competência metagenérica nos possibilita

interagir nas situações sociais diversas, pois é ela que nos permite produzir e

compreender os gêneros textuais. A nossa competência metagenérica também nos

permite reconhecer um determinado gênero, mesmo quando este se apresenta sob a

forma de outro gênero, fenômeno este denominado de intertextualidade inter-gêneros

(cf. MARCUSCHI, 2002, p. 31).

A intertextualidade inter-gêneros nos evidencia serem os gêneros fenômenos

sócio-culturais definidos pela função que assumem e não pela forma que têm. Dessa

maneira, uma propaganda pode assumir a forma de uma carta, mas continuar tendo a

função de uma propaganda; uma charge pode assumir a forma de uma piada, mas

continuar tendo a função de charge; uma poesia pode assumir a forma de uma notícia

de jornal, mas continuar tendo a função de poesia.

Segundo Marcuschi (op. cit., p. 19), “(...) os gêneros textuais são fenômenos

históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social.” Assim sendo, os

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gêneros caracterizam-se como instrumentos bastante dinâmicos que estão em

constante (re)criação, adequando-se às necessidades comunicacionais das

sociedades. Vimos, nos últimos anos, uma variada quantidade de gêneros novos

surgindo devido à grande utilização de novas tecnologias no dia-a-dia. A TV, o

telefone, e mais do que nunca a Internet vêm possibilitando novas maneiras de

comunicação e, conseqüentemente, novos gêneros textuais que vêm sendo criados

para suprir essas necessidades sociais.

Marcuschi (2002) faz uma distinção interessante entre texto e gênero. Para ele,

se um mesmo texto é publicado em outro suporte, tal texto pode constituir-se em outro

gênero. Para ilustrar essa distinção, o autor dá o exemplo de um mesmo texto

publicado numa revista científica e num jornal diário. De acordo com esse exemplo,

um mesmo texto, publicado em suportes diferentes, uma revista científica e um jornal

diário, apresenta-se como gêneros diferentes, respectivamente, um artigo científico e

um artigo de divulgação científica. Concordamos com a distinção realizada pelo autor,

entretanto discordamos do exemplo por ele dado. De maneira alguma, nesse exemplo,

exatamente o mesmo texto seria publicado em dois suportes tão distintos, até porque

esses dois suportes atingem públicos bastante diversificados entre si. Uma revista

científica destina-se a um público específico de uma determinada área de pesquisa

acadêmica; já um jornal destina-se a um público bem mais amplo e não

necessariamente esse público é especialista no tema tratado no artigo científico.

Portanto, para ser publicado num jornal diário, o texto anteriormente publicado na

revista científica, passaria por modificações para se adequar ao público leitor do jornal

diário e, conseqüentemente, não seria mais o mesmo texto.

Acreditamos que um outro exemplo seria mais apropriado, como o exemplo

mostrado por Koch e Elias (2006, p. 116) e que reproduzimos em seguida:

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Um texto de um telegrama poderia ser ao mesmo tempo utilizado em situações

bastante diversificadas, como comunicar ao chefe um afastamento temporário do

emprego, e o mesmo texto poderia ser utilizado numa revista de circulação nacional,

no interior de um anúncio. Na primeira situação, o texto seria um telegrama; na

segunda, seria, de acordo com a sua função, um anúncio.

Um outro importante aspecto relacionado aos gêneros é a diferenciação entre

gênero e tipo textual. Segundo Marcuschi (2002), de acordo com a perspectiva

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bakhtiniana, gêneros são ações sócio-discursivas que traduzem o mundo e assim

sendo, toda e qualquer comunicação verbal realiza-se através de algum gênero. Por

isso, temos uma diversidade tão grande de gêneros: carta, bilhete, artigo científico,

conversa informal, reportagem, horóscopo, piada, bate-papo por computador, etc.

Os tipos textuais, por sua vez, são reconhecidos pelos aspectos formais da

língua que se evidenciam nos textos, como os elementos lexicais, os aspectos

sintáticos e as relações lógicas. Se os gêneros são inúmeros, os tipos resumem-se em

narração, descrição, argumentação, exposição e injunção.

A expressão tipo textual é muitas vezes utilizada de maneira equivocada em

referência não a um tipo de texto, mas sim a um gênero. Mas, apesar de terem

definições teóricas distintas, há uma relação entre tipo e gênero textuais, isto porque

em todo e qualquer gênero podemos observar a existência dos tipos textuais. Dessa

forma, todo gênero é, comumente, tipologicamente heterogêneo, ou seja, é comum

encontrar nos gêneros seqüências narrativas, descritivas, injuntivas, argumentativas e

expositivas.

Observar os gêneros sob o ponto de vista da heterogeneidade tipológica é uma

maneira de compreender mais detalhadamente a estrutura formal desses gêneros e

suas características essenciais. Assim sendo, a predominância e/ou a ausência de

determinadas seqüências tipológicas nos ajuda no reconhecimento dos gêneros

textuais. Defendemos que observar tais seqüências nos textos deve ser uma

constante nas aulas de língua materna para que nossos alunos familiarizem-se com os

mais diversos gêneros textuais. Partir da análise da forma dos textos não significa

abstrair a importância de sua função; pelo contrário, a forma auxilia na compreensão

da função social dos textos. Não adianta dizer ao aluno que determinado texto é uma

notícia e que ela tem a função de informar algo, se esse aluno não sabe identificar

quais os elementos formais presentes no texto que o caracterizam como sendo uma

notícia e não como uma entrevista.

Como vemos, são muitas as características dos gêneros textuais e muitas são

também as formas de abordá-los em sala de aula. Os Parâmetros Curriculares

Nacionais de Língua Portuguesa (PCN), 3º e 4º Ciclos do Ensino Fundamental (1998),

sugerem a abordagem ampla dos gêneros textuais no intuito de desenvolver a

competência discursiva dos alunos. Segundo o documento, a sociedade exige cada

vez mais cidadãos que saibam utilizar a língua adequadamente nas mais diversas

situações interativas, e tal exigência pede novos métodos de ensino-aprendizagem

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nos quais o texto seja a unidade de ensino. De acordo com o próprio documento (PCN,

1998, p. 23),

os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições de natureza temática, composicional e estilística, que os caracterizam como pertencentes a este ou aquele gênero. Desse modo, a noção de gênero, constitutiva do texto, precisa ser tomada como objeto de ensino.

Como vemos, assim como o faz Marcuschi (2002), os PCN também

diferenciam texto de gênero, e afirmam que, como em todo texto sempre está presente

algum gênero, esta noção deve ser tratada como objeto de ensino:

Nessa perspectiva, é necessário contemplar, nas atividades de ensino, a diversidade de textos e gêneros, e não apenas em função de sua relevância social, mas também pelo fato de que textos pertencentes a diferentes gêneros são organizados de diferentes formas. (PCN, op. cit., p. 23).

Observamos nesse trecho a atenção do documento relativa à realização de

atividades em sala de aula que desenvolvam nos alunos as habilidades necessárias

para compreender tanto a função quanto a forma dos gêneros textuais.

O documento ainda afirma que a escola deve tomar para si a responsabilidade

de desenvolver nos alunos a competência para lidar com gêneros orais e escritos,

visando sempre a utilização social destes nos mais diversos contextos interacionais.

Após as contribuições teóricas explicitadas neste capítulo e que serão

retomadas no capítulo dedicado à análise dos nossos dados, passemos então à

próxima etapa do nosso trabalho, a metodologia, na qual especificamos as

características da nossa pesquisa, os sujeitos que dela participaram e a maneira como

colhemos e analisamos os dados.

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2. A CONSTRUÇÃO METODOLÓGICA

2.1. TIPO DA PESQUISA

Segundo os objetivos anteriormente citados, a pesquisa em questão

caracteriza-se, quanto à natureza dos dados coletados, como sendo “qualitativa” ou

“interpretativista”, uma vez que nos preocupamos com as interpretações dos

fenômenos que envolveram as interações entre professor e alunos em sala de aula. A

pesquisa em questão também se caracteriza por não ter intenção de generalização

dos dados, tendo em vista que analisamos duas salas de aula, uma de 7ª e outra de 8ª

série do Ensino Fundamental.

Quanto ao tipo, a pesquisa em questão caracteriza-se como sendo teórico-

analítica, uma vez que nos baseamos em pressupostos teóricos fundamentados numa

perspectiva sócio-interacionista de linguagem, para observarmos se e/ou de que forma

uma professora de língua materna do Ensino Fundamental conduz a construção dos

sentidos dos textos nas suas aulas de leitura.

De acordo com os procedimentos de coleta de dados, a pesquisa caracteriza-

se como sendo “participativa”, tendo em vista que os sujeitos pesquisados nela

envolvidos participaram efetivamente do processo de geração de conhecimento.

A pesquisa fundamenta-se em princípios advindos das teorias interacionistas

de Bakhtin (1995), Vigotski (2003) e Bronckart (1999), em teorias sobre leitura,

advindas da Lingüística – Kleiman (2004a; 2004b), Koch e Elias (2006) e Antunes

(2003), e da Estética da Recepção (Iser, 1979), estudo originário da teoria literária.

Fundamentamo-nos ainda em Bakhtin (1992), Marcuschi (2002) e Koch e Elias (2006)

para abordarmos o tema gêneros textuais e ensino.

2.2. SUJEITOS DA PESQUISA

Participaram dessa pesquisa uma professora de uma escola estadual de

Ensino Fundamental, localizada na cidade de Campina Grande, Paraíba, e seus

alunos de duas salas de aula do turno da tarde: uma 7ª série, com aproximadamente,

20 alunos, e uma 8ª série, com aproximadamente, 30 alunos.

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A professora é formada em Letras pela Universidade Estadual da Paraíba, fez

especialização em Lingüística e Literatura na mesma instituição há aproximadamente

cinco anos, e leciona há quase 20 anos, tanto no Ensino Fundamental quanto no

Ensino Médio. Além de trabalhar em duas escolas na cidade de Campina Grande,

também exerce a profissão de coordenadora de uma escola localizada numa pequena

cidade no interior da Paraíba, para onde se desloca todas as sextas-feiras, dia em que

tem folga do trabalho em Campina Grande. Para maiores detalhes sobre a professora

e sua formação acadêmica, sugerimos que vejam o início da análise de dados em que

analisamos uma entrevista semi-estruturada, realizada com a docente ao final da

coleta de dados, gravada em áudio nas dependências da própria escola, no dia 07 de

dezembro de 2005 (Anexo 01)4.

Quanto aos alunos, também ao final da coleta de dados, pedimos para que

eles respondessem um questionário escrito 5 (Anexo 02). Esse questionário era

composto de três partes: 1ª) Sobre sua vida pessoal; 2ª) Sobre a escola; 3ª) Sobre as

aulas de Português. Com esse questionário, pudemos perceber com mais clareza

quem eram esses alunos. Vejamos algumas observações importantes colhidas a partir

das respostas desses questionários.

2.2.1. Quem são os alunos da 7ª série?

Na primeira parte do questionário, Sobre sua vida pessoal, analisamos quatro

perguntas: 1) Qual a sua idade e a série em que está atualmente?; 2) Você gosta de

ler? Quais os textos que você lê com mais freqüência?; 3) Você já repetiu alguma vez?

Que série?; 4) Você só estuda ou também trabalha? Se trabalha, o que faz e em que

horário? Você acha que trabalhar prejudica o seu rendimento na escola? Por que?.

Em relação aos alunos da 7ª série (19 alunos responderam o questionário),

vimos que, a grande maioria tem entre 13 e 14 anos e estão, portanto, dentro da faixa

etária dessa série.

Em relação à pergunta sobre os gostos dos alunos sobre leitura, vimos que a

grande maioria afirmou que gosta de ler e citou vários tipos de leitura, dentre os quais,

textos bíblicos, revistas, gibis, literatura de cordel, livros da série Harry Potter, textos

de aventura e de romance, etc.

4 Para ver a entrevista na íntegra, vide Anexo 01.

5 Para ver o modelo de questionário utilizado, vide Anexo 02.

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Constatamos também que grande parte dos alunos dessa turma nunca repetiu

nenhuma série (13 alunos nunca repetiram; 06 alunos já repetiram uma ou mais

vezes).

Em relação ao estudo e trabalho, vimos que metade dos alunos dessa turma

dedica-se apenas aos estudos (10 alunos) e a outra metade (09 alunos) divide seu

tempo entre trabalho e estudo. Alguns acham que o trabalho prejudica os estudos;

outros afirmam que trabalhar não interfere no rendimento de sala de aula.

Na terceira parte do questionário, Sobre as aulas de Português, analisamos

três perguntas: 1) Sobre as aulas de leitura e compreensão de textos: você gosta dos

textos que lê nessas aulas? Sim ou não e por que?; 2) Que tipos de texto você

gostaria de ler em sala de aula?; 3) Os textos que você costuma ler fora da escola

estão presentes nas aulas de Português? Que textos são esses?

Em relação à pergunta sobre os textos lidos nas aulas de língua portuguesa,

percebemos que a maioria dos alunos afirmou que gosta desses textos e justificaram

essa afirmação por motivos diversos, dentre os quais, a diversidade e atualidade dos

temas desses textos. Vemos, então, que o tema parece ser o aspecto mais observado

pelos alunos em relação aos textos que são lidos.

Quanto aos tipos de textos que gostariam de ler em sala de aula, as respostas

dos alunos foram bastante diversificadas. Dentre os tipos de leitura citados, estão

textos bíblicos, textos sobre atualidade, gibis, literatura de cordel, textos sobre

sexualidade, etc. Essa diversidade de textos é um aspecto positivo para o professor

em sala de aula, pois ele pode diversificar tanto os textos em sala de aula quanto a

abordagem destes.

Em relação à pergunta sobre os textos do seu cotidiano e os textos lidos nas

aulas de língua materna, a maioria dos alunos (12 alunos) afirmou que não lêem

nessas aulas os textos que lêem no dia-a-dia. Essa afirmação evidencia a distância

que muitas vezes existe entre o interesse dos alunos e os textos que são trabalhados

em sala de aula, distância esta que pode ser um aspecto negativo nas aulas de leitura

e interpretação de textos.

2.2.2. Quem são os alunos da 8ª série?

Seguimos os mesmos procedimentos da análise do questionário da 7ª série na

análise da 8ª série. Na primeira parte do questionário, Sobre sua vida pessoal,

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analisamos quatro perguntas: 1) Qual a sua idade e a série em que está atualmente?;

2) Você gosta de ler? Quais os textos que você lê com mais freqüência?; 3) Você já

repetiu alguma vez? Que série?; 4) Você só estuda ou também trabalha? Se trabalha,

o que faz e em que horário? Você acha que trabalhar prejudica o seu rendimento na

escola? Por que?.

Em relação aos alunos da 8ª série (31 alunos responderam o questionário),

vimos que essa turma é bastante heterogênea em relação à idade: 03 alunos têm 14

anos; 07 alunos têm 15 anos; 08 alunos têm 16 anos; 05 alunos têm 17 anos; 04

alunos têm 18 anos; 03 alunos têm 19 anos e 01 aluno tem 21 anos.

Quanto à pergunta a respeito dos gostos dos alunos sobre leitura, observamos

que a grande maioria afirmou que gosta de ler e citou vários tipos de leitura, dentre os

quais, literatura em geral, incluindo poesias, revistas, jornais, gibis, textos bíblicos,

horóscopo, etc.

Impressiona a grande quantidade de alunos dessa turma que já repetiu alguma

série uma ou mais vezes: 23 alunos já foram reprovados em alguma série e apenas 08

alunos nunca foram reprovados. Esses números explicam a heterogeneidade de

idades nessa turma.

Em relação ao estudo e trabalho, percebemos que grande parte dos alunos

dessa turma apenas estuda: 23 alunos só estudam; 08 alunos estudam e trabalham.

Alguns acham que o trabalho prejudica os estudos; outros afirmam que trabalhar não

interfere no rendimento de sala de aula.

Na terceira parte do questionário, Sobre as aulas de Português, também

analisamos três perguntas: 1) Sobre as aulas de leitura e compreensão de textos:

você gosta dos textos que lê nessas aulas? Sim ou não e por que?; 2) Que tipos de

texto você gostaria de ler em sala de aula?; 3) Os textos que você costuma ler fora da

escola estão presentes nas aulas de Português? Que textos são esses?

Em relação à pergunta sobre os textos lidos nas aulas de língua portuguesa,

constatamos que a maioria dos alunos afirmou gostar desses textos e justificaram

essa afirmação por motivos diversos, dentre os quais, aumentar o conhecimento sobre

um determinado assunto. Outros alunos afirmaram o contrário: que muitos textos são

de difícil compreensão e que deveriam ser mais discutidos em sala de aula.

Observamos, então, que, assim como percebemos na análise das respostas dos

alunos da 7ª série, o tema parece ser o aspecto mais observado pelos alunos em

relação aos textos que são lidos. A questão da dificuldade de compreensão dos textos

e da necessidade de uma maior discussão destes em sala de aula foi um aspecto

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interessante observado no questionário e que será ou não confirmado na análise dos

dados da 8ª série.

Quanto aos tipos de textos que gostariam de ler em sala de aula, as respostas

dos alunos foram bastante diversificadas. Dentre os tipos de leitura citados estão os

romances, as poesias, os textos bíblicos, textos sobre atualidades, suspense, terror,

ação, gibis, etc. Alguns alunos citaram textos relacionados a temas ligados à

adolescência, como sexo e drogas.

Em relação à pergunta sobre os textos do seu cotidiano e os textos lidos nas

aulas de língua materna, a maioria dos alunos (21 alunos) afirmou que não lêem

nessas aulas os textos que lêem no dia-a-dia. Assim como observamos em relação à

7ª série, essa afirmação dos alunos da 8ª série evidencia a distância que muitas vezes

existe entre o interesse dos alunos e os textos que são trabalhados em sala de aula,

distância esta que pode ser um aspecto negativo nas aulas de leitura e interpretação

de textos.

2.3. O CORPUS DE ANÁLISE

Para constituir o corpus da pesquisa foram observadas, gravadas em áudio e

transcritas, aulas nas duas turmas (7ª e 8ª séries), durante o período de 19 de

setembro de 2005 até 07 de dezembro de 2005. Posteriormente, algumas dessas

gravações foram selecionadas e transcritas de acordo com as convenções de

transcrição adotadas em Kleiman (2001)6.

A partir dessas transcrições, escolhemos duas aulas, uma realizada na 7ª série,

no dia 24 de outubro de 2005, e outra realizada na 8ª série, no dia 19 de setembro de

2005. Nas duas aulas, a professora trabalhou com textos que estão presentes no livro

didático utilizado pela escola. Escolhemos essas aulas, especificamente, por dois

motivos: 1º) são aulas sobre leitura e interpretação de textos, nas quais a professora lê

e discute alguns textos com os alunos. Não adentramos na análise das atividades de

compreensão propostas pelo livro didático para esses textos, pois o objetivo do nosso

trabalho está relacionado à atitude da docente e dos alunos em relação à formação 6 “...: pausa pequena; (+): pausa longa; /: interrupção ou corte brusco da fala; _ __ _: silabação; [ ]:

sobreposição de vozes; :: : alongamento forte de vogal; MAIÚSCULAS: alteração de voz com efeito de ênfase; (xxx): fala incompreensível; (...): supressão de trecho da transcrição original; (( )): comentário do analista; trechos em negrito: ênfase do autor a termos referidos na análise. Foram também utilizados sinais convencionais de pontuação gráfica: vírgula (,); ponto (.); ponto de interrogação, assim como as convenções ortográficas do português.” (KLEIMAN, 2001, p. 02).

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dos sentidos dos textos no momento da leitura e não à formação desses sentidos a

partir dos exercícios de interpretação do livro didático; 2º) nas situações de sala de

aula escolhidas para a nossa análise, tanto na 7ª quanto na 8ª série, a professora

utiliza o gênero editorial, então achamos interessante mostrar de que maneira ela

trabalha com o mesmo gênero em turmas diferentes.

Na aula realizada na 7ª série, quatro textos foram trabalhados em sala de aula

e por essa razão ela foi analisada na íntegra. Já na aula realizada na 8ª série,

escolhemos alguns eventos de sala de aula para serem observados e dividimos a

análise em quatro momentos: 1) Antes da leitura oral do texto; 2) Levantamento de

hipóteses sobre o título do texto; 3) Durante a leitura do texto; e 4) Voltando ao título

do texto.

Segue, no capítulo seguinte, a análise dos dados da nossa pesquisa. Antes de

iniciarmos a análise dos dados colhidos em sala de aula, fizemos uma análise da

entrevista que realizamos com a docente, entrevista esta que nos possibilitou termos

acesso a importantes informações sobre a sua formação e atuação docentes.

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3. A CONSTRUÇÃO DOS DADOS:

OS SENTIDOS VÃO SURGINDO...

3.1. SOBRE O CONHECIMENTO TEÓRICO E A PRÁTICA DE SALA DE AULA DA

PROFESSORA

Gostaríamos de iniciar esse capítulo analisando alguns trechos de uma

entrevista realizada com a professora ao final das observações feitas em sala de aula.

Realizamos essa entrevista com o intuito de buscarmos algumas informações sobre a

formação acadêmica da docente, sua experiência em sala de aula, e, principalmente,

seu conhecimento teórico referente às concepções de leitura. Tais informações são de

grande importância para serem posteriormente relacionadas aos dados que

conseguimos coletar em sala de aula. Portanto, seguem abaixo alguns dos trechos

mais relevantes dessa entrevista por nós escolhidos para a análise.

No trecho 01 que segue, a docente fala da sua formação acadêmica:

TRECHO 01

(...) Pesquisadora: em relação à sua formação, qual é sua formação acadêmica? Professora: tenho especialização em Lingüística e Literatura Pesquisadora: você se formou onde? Professora: na UEPB, eu iniciei mestrado, mas por dificuldades financeiras em CASA, não tinha direito à bolsa porque eu sou funcionária pública, aí tive que parar Pesquisadora: e a especialização foi aqui mesmo? Professora: foi aqui mesmo, na UEPB Pesquisadora: há quanto tempo? Professora: ...terminei em 2000, 2001, 2001 (...)

Nesse primeiro trecho, observamos alguns dados interessantes sobre a

formação acadêmica da professora. O primeiro deles é o fato da docente ter duas

especializações, uma na área de Literatura, outra na área da Lingüística, as duas

feitas na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Essas especializações foram

realizadas cinco anos após a sua graduação, e são relativamente recentes, pois foram

concluídas em 2001.

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Esse é um dado interessante para análise por duas razões. A primeira delas

porque os cursos de especialização realizados pela professora foram feitos tanto na

área da Literatura quanto na área da Lingüística, fato que, provavelmente possibilitou

à docente uma visão relativamente abrangente do processo de ensino-aprendizagem

tanto de língua quanto de literatura. A segunda razão é que as especializações foram

concluídas há pouco tempo, no ano de 2001, fato que nos leva a crer que a professora

provavelmente teve acesso a alguns estudos teóricos bem recentes em relação ao

ensino-aprendizagem da língua materna e da literatura. Esse é um dado interessante

para a nossa pesquisa, pois ao observarmos a ação da professora em sala de aula,

poderemos verificar se há ou não um reflexo dessa formação teórica na sua prática

docente.

Ainda nesse trecho, constatamos que a docente fez toda a sua formação

acadêmica, graduação e especialização, na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)

e vemos ainda uma questão que permeia grande parte da formação desses

profissionais: a questão da dificuldade financeira para continuar estudando. A

professora afirma que já iniciou um mestrado, mas teve que parar por dificuldades

financeiras, pois não tinha direito a receber a bolsa do mestrado por ser funcionária

pública (Professora: na UEPB, eu iniciei mestrado, mas por dificuldades financeiras

em CASA, não tinha direito à bolsa porque eu sou funcionária pública, aí tive que

parar). Sabemos que essa é uma dificuldade para a formação continuada dos

professores, pois eles, de fato, praticamente não têm incentivo financeiro para

continuar estudando.

Na dificuldade de conciliar a formação acadêmica à prática de sala de aula, os

professores buscam, muitas vezes, cursos rápidos de aperfeiçoamento. Esse também

foi o caso dessa professora, como podemos observar no trecho da entrevista abaixo

transcrito:

TRECHO 02 (...) Pesquisadora: fez algum curso de aperfeiçoamento promovido pelo estado, município, governo federal ou pela universidade? Professora: pelo estado e pelo município fiz vários Pesquisadora: lembra que cursos foram esses? Professora: foi, foram, deixa eu ver, em Alagoa Gra::nde, são tipo assim, uma REcilagem assim, sabe Pesquisadora: quem ministrava esses cursos? Professora: os professores da UEPB (...)

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Pesquisadora: geralmente, era de quanto tempo a duração desses cursos? Professora: 20 h (...)

No trecho 02, a professora afirma já ter feito muitos cursos de aperfeiçoamento

promovidos tanto pelo estado quanto pelo município, mas ao ser questionada sobre o

conteúdo desses cursos, ela parece não recordar com facilidade (Pesquisadora:

lembra que cursos foram esses? /Professora: foi, foram, deixa eu ver, em Alagoa

Gra::nde, são tipo assim, uma REcilagem assim, sabe). Como podemos perceber, a

professora lembra onde esses cursos aconteceram, mas não comenta sobre o

conteúdo teórico ministrado nesses cursos, fato que nos leva a crer que tais conteúdos

provavelmente não foram bem assimilados pela docente.

A professora também afirma que esses cursos foram ministrados por

professores da Universidade Estadual da Paraíba (Pesquisadora: quem ministrava

esses cursos?/ Professora: os professores da UEPB (...)). Tal informação pode ser

um indício de que esses profissionais tiveram um certo cuidado quanto aos conteúdos

ministrados nesses cursos, isto devido ao fato de a universidade ser uma instituição

reconhecidamente competente em si tratando das questões teóricas referentes ao

ensino-aprendizagem da língua.

Um outro aspecto importante em relação a esses “cursos de reciclagem” é a

sua curta duração. Segundo a professora, eles tiveram a duração em 20 horas, um

espaço de tempo relativamente breve se levarmos em consideração a dificuldade de

acesso a materiais teóricos que a grande maioria dos professores em exercício

apresenta.

Sabendo que a professora participou desses cursos, perguntamos se em

alguns deles ela estudou algo referente às concepções de leitura:

TRECHO 03

(...) Pesquisadora: já fez algum curso sobre leitura? Professora: ...já, fiz uma::uma vez, um extensivo na UEPB também, sobre leitura e elaboração de textos (...) Pesquisadora: para você, na sua opinião, o que é leitura e qual a importância da leitura nas aulas de língua portuguesa? Professora: leitura, pra MIM, é você ENTENDER o que está, LENdo e compreendendo, né, e a importância é porque SEM a leitura nós

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ficamos fora da realidade, com uma boa leitura você viAja, você vê todo o mundo e SAbe conversar e participar do que está em debate (...)

Observamos no trecho acima que a professora afirma já ter feito um curso

sobre leitura, mais uma vez ministrado na Universidade Estadual da Paraíba. Diante

disso, buscamos saber qual a perspectiva teórica sobre leitura abordada nesse curso

e perguntamos à professora, inicialmente, o que significava a leitura para ela.

Obtivemos como resposta algo que não nos satisfez em relação ao que estávamos

buscando: Professora: leitura, pra MIM, é você ENTENDER o que está, LENdo e

compreendendo, né (...).

Constatamos que a resposta da professora não estar fundamentada em

nenhuma concepção teórica acerca da leitura. Segundo ela, ler é entender o que está

sendo lido; mas o que isso significa exatamente? O que é uma compreensão do que

está sendo lido? É simplesmente decodificar? É interagir com o texto? É construir

sentidos?

Por acreditarmos que essa resposta não satisfez o nosso objetivo inicial de

descobrirmos qual a concepção teórica de leitura da professora, refizemos a nossa

pergunta inicial:

TRECHO 04 (...) Pesquisadora: nesses cursos que você falou que fez sobre leitura, algum deles falava sobre concepções de leitura? Professora: sim, falava demais sobre concepções de leitura... Pesquisadora: você lembra de alguma coisa relacionada a essas concepções, o que foi que eles trataram nesses cursos? Professora: ... deixa eu ver, tanta coisa (+) Pesquisadora: eram cursos teóricos? Professora: eram, mais teóricos, eram Pesquisadora: aí, essas professoras entregavam apostilas e discutiam essas concepções de leitura? Professora: era, era Pesquisadora: mas aí você não consegue lembrar assim/ Professora: falava assim, pra gente trabalhar a leitura viSUAL, a oral... esse tipo de leitura (...)

No trecho 04 acima transcrito, muitas questões são interessantes para serem

analisadas. A primeira delas é que a professora afirma que participou de cursos que

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tratavam das concepções teóricas sobre leitura, mas ela não lembra do que foi

discutido acerca dessas concepções: Pesquisadora: você lembra de alguma coisa

relacionada a essas concepções, o que foi que eles trataram nesses

cursos?/Professora: ... deixa eu ver, tanta coisa (+).

Como notamos, a longa pausa no final da fala da professora, representada pelo

sinal da transcrição (+), nos demonstra que ela de fato não recorda essas concepções

teóricas de leitura. Para esclarecermos se, de fato, esses cursos tratavam de questões

teóricas, perguntamos isso à professora e obtivemos a confirmação de que de fato

eles abordaram aspectos teóricos (Pesquisadora: eram cursos teóricos?/ Professora:

eram, mais teóricos, eram).

Diante disso, como explicarmos o fato de a professora não lembrar de

nenhuma concepção de leitura abordada nesses cursos, tendo sido esses tais cursos

essencialmente teóricos? Ante a presença dessa dúvida, questionamos a metodologia

utilizada nesses cursos, e descobrimos que neles, parece ter havido, de fato, uma

discussão teórica acerca das concepções de leitura, pois a docente afirma que eram

entregues apostilas com o conteúdo teórico e este era discutido por todos:

Pesquisadora: aí, essas professoras entregavam apostilas e discutiam essas

concepções de leitura?/ Professora: era, era.

Mais uma vez nos sentimos estimulados a refazer a pergunta inicial,

novamente tentando descobrir qual o conhecimento da professora acerca das

concepções de leitura, tendo em vista que, agora sabíamos que tais concepções

haviam sido abordadas nesses cursos. É nesse momento, então, que se evidencia

que algum problema ocorreu durante a assimilação dessas discussões teóricas sobre

as concepções de leitura, pois a resposta da professora evidencia um conhecimento

pouco aprofundado acerca dessas concepções. A docente responde que nesses

cursos ela foi orientada a trabalhar a leitura visual, a oral (Professora: falava assim,

pra gente trabalhar a leitura viSUAL, a oral... esse tipo de leitura). Novamente nos

perguntamos: o que exatamente significam essas leituras? Leitura oral? Leitura visual?

Ao chegarmos a esse ponto da entrevista, muitos eram os questionamentos e

tínhamos apenas uma resposta possível acerca do conhecimento teórico da

professora sobre as concepções de leitura, e essa resposta era: a professora em

questão parece não ter em mente nenhuma concepção teórica acerca do fenômeno da

leitura e isso de alguma maneira provavelmente se reflete na sua prática docente.

Para observarmos de que forma essa desorientação teórica se evidencia na

prática docente dessa professora, analisamos alguns momentos da atuação desta em

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duas salas de aula distintas: uma 7ª e uma 8ª série. Seguem, abaixo, as nossas

análises.

3.2. A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NA 7ª SÉRIE

Para iniciarmos nossa análise, escolhemos uma aula realizada no dia 24 de

outubro de 2005, na 7ª série. Resolvemos expor a aula na íntegra para que a

percepção dos seus vários momentos seja facilitada e elegemos alguns trechos dessa

mesma aula para analisarmos mais detalhadamente. Nos chama atenção nesta a

quantidade de textos e de gêneros trabalhados: quatro textos e alguns gêneros, dentre

eles uma tira e dois editoriais. Todos esses textos encontram-se no livro didático Ler,

entender e criar, 7ª série, de Maria das Graças Vieira e Regina Figueiredo (livro

didático adotado pela escola), e podem ser vistos na íntegra no Anexo 03 na ordem

em que aparecem no livro didático e também na ordem em que foram trabalhados em

sala de aula. Vejamos então de que maneira a professora aborda esses textos e

gêneros e como se realiza a construção de sentidos nessa aula de leitura.

A professora inicia a aula pedindo para que os alunos façam uma leitura

silenciosa da tira de Luis Fernando Veríssimo, As Cobras, localizada na página 134 do

livro didático (Anexo 03). Essa tira é o último texto da unidade 7, intitulada Charges e

Tiras. Após a leitura silenciosa dos alunos, a professora começa a fazer algumas

perguntas sobre o texto.

Professora: fizeram a leitura silenciosa, e:: o diálogo aí é entre quem? Aluna: as cobra Professora: [as cobras, o técnico e os?] Alunos: jogadores ((alguns alunos respondem em voz baixa)) Professora: jogadores, né? os personagens da tirinha aí são UMAS... Aluna: cobras Professora: cobrinhas, né, umas cobras, e:: veja aí, quando começa o diálogo, vamo fazer o seguinte...as meninas LÊEM, quando for as cobrinhas jogadores, e os meninos quando forem técnico Aluna: âhn? Professora: quando forem jogadores, as meninas lêem, e quando for o técnico os meninos lêem (...)

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Notamos, de imediato, que numa primeira leitura, os alunos parecem

apresentar uma certa dificuldade de compreensão, pois são poucos os que respondem

às perguntas iniciais da professora e o fazem em voz baixa, como se estivessem

receosos em responder. Tal receio pode advir de uma dificuldade de compreensão,

mas também pode ser conseqüência de uma idéia já pré-concebida nos alunos de que

há uma “única resposta certa, um único sentido aceitável” para as perguntas que são

feitas pela professora em sala de aula (Alunos: jogadores ((alguns alunos respondem

em voz baixa))). Diante do silêncio da maioria, a professora pede aos alunos para

relerem o texto, agora não mais silenciosamente, mas sim, oralmente. Essa forma de

leitura é uma prática muito utilizada pela docente não apenas nesta, mas também em

outras aulas de leitura. Entretanto, ela não realiza esse tipo de leitura tendo em vista

algum objetivo pré-determinado. Nos parece que é apenas mais uma forma que ela

utiliza para que os alunos tenham contato com o texto escrito. Entretanto nos

perguntamos: será que uma leitura oral é a maneira mais apropriada para que os

alunos compreendam o texto mais detalhadamente?

Vejamos em seguida o que acontece.

(...) Aluna: [só porque tem mais jogador] Professora: vamos, comecem Alunos: ((os alunos começam a leitura em voz alta, com uma certa dificuldade; em alguns momentos a professora interfere na leitura dos alunos, corrigindo-os)) Professora: ((após a leitura em voz alta dos alunos)) olha a colega aqui não entendeu nada, quem poderia explicar pra ela Aluna: [não entendi nada, bora explica] Aluno: não, não vou explicar nada não Professora: quem entendeu, qual é a mensagem que ele tá nos passando? teve alguém que falou do flamengo, por que vocês levaram a estória da tirinha pra o contexto do flamengo? (...)

Na continuação da aula, a nossa hipótese inicial parece ir sendo confirmada.

De fato a leitura oral não parece ter sido a melhor opção naquele momento para que

os alunos tirassem suas dúvidas em relação à compreensão do texto, pois uma aluna

afirma não ter compreendido nada acerca do conteúdo textual (Aluna: não entendi

nada, bora explica). Mais uma vez, nos questionamos: será que de fato essa aluna

não compreendeu nada do texto ou será que ela, assim como os demais, parece ter

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receio de interpretá-lo e espera a “leitura correta” que será dada pela professora? A

fala seguinte de um aluno parece nos confirmar o receio destes em falar em sala de

aula sobre o texto que estão lendo: Aluno: não, não vou explicar nada não. Essa fala

nos sugere que tal aluno pode ter feito uma interpretação do texto, mas se recusa a

comentá-la em sala de aula.

Após esse momento, a professora nos revela em sua fala qual a concepção de

leitura que parece está subjacente à sua prática: a leitura como uma prática na qual o

texto tem uma mensagem que deve ser buscada durante a leitura pelo aluno. Isso é

uma indicação de uma concepção estruturalista de leitura (Coracini, 1995/2005), e um

exemplo de leitura unicamente no sentido ascendente, ou seja, uma leitura na qual os

sentidos estão todos presentes no texto e cabe ao leitor apenas identificá-los (Kleiman,

2004a). Interessante observarmos esse detalhe, pois durante a entrevista realizada

com a docente e anteriormente descrita, ela não lembrou de nenhuma teoria sobre

concepção de leitura. Entretanto, em sua fala fica evidente a concepção que subjaz à

sua prática.

Vejamos abaixo a continuação dessa aula:

(...) Aluno: porque o flamengo só faz perder Alunos: ((risos)) Professora: só faz perder? SE O FLAMENGO, só sabe perder, o que a tirinha está passando aí pra gente? vamos, explica aí pra colega que não entendeu nada Aluna: por que::? Professora: vamos, principalmente os meninos que gostam de futebol, VAI Alisson, o que é que você entendeu aí da tira, não entendeu nada também? Aluna: eu não entendi NADA Professora: Sandra entendeu? ((silêncio)) vou fazer outra leitura ((a professora, ela sozinha, inicia outra leitura. À medida que vai lendo, ela vai fazendo algumas perguntas aos alunos para que os alunos construam o sentido do texto)) quando É que um TIme, em 99% das vezes, muda de técnico? Aluna: quando tá perdendo Professora: quando está perdendo, vocês concordam? Aluna: NÃO, uma vez por ano Alunos: ((risos)) Aluna: eu num sei não, não entendo nada de futebol Professora: quando o time está dando certo? quando o time só faz perder ou? empatar, aí veja os coitados oh ((a professora continua a leitura do texto até o fim)) e agora, entenderam? Aluna: entendi Professora: qual é a mensagem? Aluna: que:: o time perdia demais, aí chegou um novo técnico que trazia um pensamento positivo pra eles

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Aluna: [pra vê se eles se animavam] Professora: pra adquirir auto-estima né? Aluna: e pra dar um empurrãozinho né, pra vê se... Professora: e será que isso acontece em nossas vidas minha gente? às vezes, pra conseguir uma coisa, algo que a gente quer, chega uma pessoa, ah, você vai conseguir, faça assim desse jeito, você é capaz Aluna: isso mesmo não acontece Professora: por que não acontece? Aluna: porque...deixa pra lá Professora: por que não acontece com vocês isso aí? acontece de que maneira? Aluna: diferente, é tudo negativo Professora: por que negativo? Aluna: é, só vem coisa negativa pro meu lado Professora: não é teu pensamento não, tua filosofia? Aluna: não, é não, É também, é também (...)

Constatamos, logo de início, que um aluno relaciona o assunto “futebol” tratado

na tira ao seu conhecimento de mundo atual sobre o tema. Diante da fala do aluno, a

professora pergunta: Professora: só faz perder? SE O FLAMENGO, só sabe perder, o

que a tirinha está passando aí pra gente? vamos, explica aí pra colega que não

entendeu nada. Vemos, portanto, que a professora utiliza a fala do aluno e o seu

conhecimento de mundo para tentar iniciar uma discussão sobre o conteúdo textual. É

interessante atentarmos para a fala da professora quando ela pergunta “o que a tirinha

está passando aí pra gente?”. A Idéia de que o texto tem uma mensagem a ser

transmitida e esta deve ser decifrada pelos alunos está implícita nessa fala. Em

seguida, a professora pede para que os meninos que entendem de futebol expliquem

a tira para quem não a compreendeu. Os meninos calam. A professora então, diante

da dificuldade dos alunos, faz outra leitura oral do texto, e após essa leitura faz uma

pergunta aos alunos que está diretamente relacionada ao conhecimento de mundo

deles: Professora: quando É que um TIme, em 99% das vezes, muda de técnico?.

Uma aluna responde: Aluna: quando tá perdendo. Diante da resposta, a professora

questiona os alunos novamente. Uma outra aluna afirma que não entende nada de

futebol: Aluna: eu num sei não, não entendo nada de futebol. Novamente

confirmamos a importância do conhecimento de mundo para a leitura que os alunos

fazem dos textos. Quando essa aluna afirma não entender nada de futebol, em outras

palavras ela diz que não consegue dar sentido ao texto a partir desse tema pelo fato

de não conhecê-lo. A professora, entretanto, continua insistindo no tema “futebol” e

complementa a fala anterior dos alunos: Professora: quando o time está dando certo?

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quando o time só faz perder ou? empatar, aí veja os coitados oh ((a professora

continua a leitura do texto até o fim)) e agora, entenderam?. Como vemos, ela vai

construindo o sentido do texto de acordo com a sua leitura. A fala dos alunos

praticamente inexiste nesse momento em que ela está construindo esse sentido.

Percebemos ainda que, mesmo os meninos que demonstram conhecer o tema

“futebol” mais do que as meninas, não se manifestam no momento em que a

interpretação do texto está sendo realizada pela professora. A aluna, que até então

dizia não ter compreendido o texto, afirma agora tê-lo compreendido, isso após a

leitura realizada pela professora: Aluna: entendi. Ou seja, será que de fato ela não

compreendia o texto, ou será que estava esperando que alguém, no caso, a

professora, lhe fornecesse a “leitura correta” do texto?

E, mais uma vez, a professora evidencia a concepção de leitura que embasa a

sua prática docente quando novamente pergunta: Professora: qual é a mensagem?.

Como vemos, desde o início dessa aula, a intenção da professora é fazer com que os

alunos encontrem essa “mensagem” que está presente no texto e que deve ser por

eles decifrada. A aluna, que afirmava não estar compreendendo nada do texto,

responde ao questionamento da professora: Aluna: que:: o time perdia demais, aí

chegou um novo técnico que trazia um pensamento positivo pra eles.

Como notamos, a interpretação que essa aluna dá ao texto, não está

diretamente relacionada ao tema “futebol” anteriormente tratado, isto porque, como ela

mesma já havia confirmado, tal tema não é de seu conhecimento. O que ela conseguiu

compreender do texto está relacionado à atitude negativa dos jogadores em relação às

suas atuações enquanto tais, e à chegada de um novo técnico que vem trazer uma

renovação ao time, um “pensamento positivo”. Lembramo-nos então da explicação de

Iser (1979) sobre a construção dos sentidos no texto através da teoria do tema e

horizonte. Ou seja, diante da dificuldade dessa aluna em construir sentido a partir da

temática “futebol”, ela conseguiu visualizar uma outra possibilidade de construção de

sentido. Assim, a temática “futebol” deixou de ser tema e passou a ser horizonte na

leitura por ela realizada. A professora aceita o sentido construído pela aluna e ainda

ratifica a sua fala: Professora: pra adquirir auto-estima né?, e continua aceitando e

ratificando o sentido construído pela aluna: Professora: e será que isso acontece em

nossas vidas minha gente? às vezes, pra conseguir uma coisa, algo que a gente quer,

chega uma pessoa, ah, você vai conseguir, faça assim desse jeito, você é capaz.

Entretanto, a mesma aluna que construiu esse sentido para o texto, num

momento posterior da aula, discordou da professora, mais uma vez a partir do seu

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conhecimento de mundo: Aluna: isso mesmo não acontece. Nesse momento, um dos

horizontes de leitura, tornou-se tema, ou seja, a aluna percebeu uma outra

possibilidade de leitura para o mesmo texto. Como podemos observar, ela discorda

que existem pessoas que aparecem em nossas vidas para nos dar apoio e nos fazer

acreditar em algo positivo e, conseqüentemente, discorda do sentido que está sendo

construído a partir da leitura do texto. Ao ser questionada pela professora, a aluna

afirma que tudo acontece de maneira negativa e não de maneira positiva como está

sendo construído o sentido do texto em sala de aula: Professora: por que não

acontece com vocês isso aí? acontece de que maneira? / Aluna: diferente, é tudo

negativo / Professora: por que negativo? / Aluna: é, só vem coisa negativa pro meu

lado. Novamente o conhecimento de mundo da aluna se sobressai em sala de aula. E

depois de um tempo convivendo com esses alunos, descobrimos porque essa aluna

pensava dessa forma: advinda de família muito pobre, tinha na época 13 anos e

trabalhava como empregada doméstica para ajudar nas despesas da família;

trabalhava de manhã, a tarde ia para a escola, muitas vezes chegava muito cansada,

outras vezes nem comparecia às aulas e estava apresentando dificuldades em relação

às notas da disciplina de Língua Portuguesa. Ao analisarmos a vida dessa menina e o

seu conhecimento de mundo, compreendemos porque ela conseguia fazer uma leitura

do texto reconhecendo a influência positiva de um novo técnico para o time, mas não

aceitava que esse tipo de situação acontecesse no seu dia-a-dia.

Impossível, nesse momento, não lembrarmos de Iser (1979) e de Bakhtin

(1995) ao tratarem da influência da formação sócio-histórica dos sujeitos no momento

do contato destes com os textos e das possíveis dificuldades interpretativas que

podem advir dessa formação. O momento final dessa interação entre aluna e

professora reflete essa questão discutida pelos teóricos. A professora, ao ver que a

aluna fez uma leitura diferente daquela que até então vinha sendo realizada e

possivelmente aceita pelos demais alunos, questiona a aluna acerca de sua formação

sócio-discursiva: Professora: não é teu pensamento não, tua filosofia?. Ou seja,

conhecendo a aluna e sua realidade, a professora levanta a hipótese de que a leitura

realizada pela discente seja na verdade uma conseqüência de sua formação sócio-

discursiva. A aluna, diante da pergunta, tenta refutar a professora, mas acaba também

percebendo que sua formação sócio-discursiva pode ter influenciado a leitura que fez

do texto: Aluna: não, é não, É também, é também.

Esse trecho da aula nos apresenta muitas questões interessantes acerca da

construção dos sentidos dos textos nessa situação de sala de aula. Primeiro, uma

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aluna constrói um sentido possível para o texto com base na leitura do próprio texto e

a professora aceita esse sentido sem maiores questionamentos. Entretanto, a própria

aluna questiona esse sentido a partir do seu conhecimento de mundo. Esse

questionamento deveria ter sido discutido mais profundamente em sala de aula pela

professora, tendo em vista que o texto não trata apenas de olhar a vida com auto-

estima e entusiasmo, e isto se evidencia através da atitude radicalmente negativa dos

personagens em relação às suas próprias atuações enquanto jogadores de futebol.

Entretanto, a aluna constrói um outro sentido para o texto, embora não esteja

consciente e evidentemente fundamentada no texto, mas o sentido construído é sim

possível. A professora, nesse momento, poderia ter aproveitado para voltar ao texto a

fim de confirmar ou refutar a construção de sentido realizada pela aluna. Seria uma

ótima oportunidade para trabalhar com os elementos estruturais do texto e também

com o não-verbal. Entretanto, ela não o faz e a discussão fica restrita ao conhecimento

de mundo. Notamos, então, que desde o início até o final da aula, o conhecimento de

mundo é o grande condutor da construção dos sentidos dos textos nessa situação de

sala de aula.

Portanto, em resumo, até esse momento da nossa análise, algumas questões

são de bastante relevância para o nosso trabalho. A primeira delas é a constatação da

concepção estruturalista de leitura da professora: ler é captar o pensamento do autor

que está implícito no texto, restando aos leitores identificar esse pensamento. A

construção de sentidos nessa perspectiva torna-se um ato mecânico de simples

decodificação, não havendo possibilidade de haver mais de uma leitura aceitável para

o texto; este então passa a ser um produto lógico e acabado. Dessa forma, o texto é

abordado de maneira superficial, apenas o tema é trabalhado em sala de aula, a

estrutura composicional e o estilo não são debatidos e por isso mesmo não se chega a

uma discussão sobre o gênero, ou seja, as demais informações relevantes para o

conhecimento do gênero, como as suas características básicas, o suporte, o autor,

ano de publicação, etc não são trabalhados pela professora.

A aula continua com a professora retomando a questão da importância do

pensamento positivo para o nosso dia a dia:

(...) Professora: é gente, então nós devemos assumir nossa posição de quê? se SERmos, né Aluna: [também essa tirinha aí ta dizendo que a gente deve pensar só positivo, né?]

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Professora: a gente tem que ter um pensamento positivo em tudo que vamos fazer, muitas vezes vocês vão fazer uma atividade, uma atividade pra nota, tal dia, aí vocês dizem, AVE maria, já sei, vou tirar um zero, NÃO viram NADA da atividade, não sabe nem o que é, nem como vai ser, quer dizer, a auto-estima está LÁ Alunas: [em baixo] Professora: tem é que dizer, ahh eu vou estudar, vou tirar uma nota boa, vou passar, né? pensar negativo atrai também né? aí vamos entrar agora na unidade 8, “assumir uma posição” é o título aí do texto, FAÇA aí uma leitura VISUAL aí dessa página ((página 135 do livro didático; os alunos ficam em silêncio observando a página indicada pela professora. Nesta página, há duas capas diferentes do jornal Folha de São Paulo com manchetes tratando do impeachment do ex presidente Fernando Collor de Mello)) com certeza vocês lembram disso aí né, vocês são jovens né, mas estudam história né, o contexto histórico aí, ultimamente tem se falado MUIto nele né, fazendo um paralelo com o nosso presidente agora... FOLHA DE SÃO PAULO, né? esse aí, esse Folha de São Paulo, isso é o quê, esse nome aí significa o quê? (...)

Percebemos nesse trecho que a professora entra no momento da aula de

fechamento do texto iniciando os comentários finais acerca da tira e estes comentários

novamente reforçam que a idéia central do texto é transmitir uma “mensagem” de

auto-estima e confiança na vida (Professora: a gente tem que ter um pensamento

positivo em tudo que vamos fazer, muitas vezes vocês vão fazer uma atividade, uma

atividade pra nota, tal dia, aí vocês dizem, AVE maria, já sei, vou tirar um zero, NÃO

viram NADA da atividade, não sabe nem o que é, nem como vai ser, quer dizer, a

auto-estima está LÁ / Professora: tem é que dizer, ahh eu vou estudar, vou tirar uma

nota boa, vou passar, né? pensar negativo atrai também né?).

Dessa forma, a professora conclui a discussão do texto, discussão esta que se

limitou à observação do conteúdo temático e que foi finalizada pelo fechamento do

sentido do texto realizado pela docente. Com essas palavras e com essa finalização, a

professora findou também a unidade 7 do livro didático que, como dissemos

anteriormente, denomina-se “Charges e Tiras”. Esse texto final poderia ter sido

utilizado pela professora para retomar o tema central dessa unidade, recordando os

textos anteriormente discutidos, tirando possíveis dúvidas dos alunos referentes aos

gêneros “charge” e “tira” e concluindo os estudos realizados durante a unidade 7 sobre

esses gêneros. Entretanto, isso não foi feito e imediatamente após as palavras da

professora de fechamento do sentido do texto, ela inicia a unidade seguinte,

denominada “Assumir uma posição”, com outros textos, outros gêneros, outras

discussões. A professora, no entanto, não atenta para as diferenças de tema

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existentes entre essas duas unidades do livro e passa à unidade 8 sem concluir a

unidade 7, causando assim uma ruptura no processo de ensino-aprendizagem,

propositalmente organizado pelo livro didático. Inicia-se então a discussão da unidade

8.

Como já dissemos, a unidade 8 tem como título “Assumir uma posição” e traz

na página 135 a reprodução de duas primeiras páginas do jornal Folha de São Paulo

(ver Anexo 03). A professora inicia a unidade pedindo para que os alunos façam uma

“leitura visual” dos textos que estão reproduzidos nessa página. Observando a

entrevista que realizamos com a docente, vimos que nos cursos teóricos que ela

realizou além da graduação e da especialização, os professores ministrantes desses

cursos enfatizaram bastante a questão da “leitura visual” (Professora: falava assim,

pra gente trabalhar a leitura viSUAL, a oral... esse tipo de leitura – ver Anexo 01). Não

compreendemos o que seria exatamente uma “leitura visual”. Será a leitura do texto

não verbal? Não conseguimos saber o que de fato significa essa “leitura visual”, mas

percebemos novamente a interferência de aspectos teóricos, além da concepção de

leitura, presentes na prática de sala de aula da professora. Mesmo não sabendo

definir de fato o que é “leitura visual”, sabemos que essa concepção foi estudada em

cursos teóricos por ela realizados, como ela mesma nos afirmou durante a entrevista.

Vejamos a continuação da aula:

(...) Aluna: isso é o jornal, não é? Professora: o nome do? JORNAL, exatamente Alunos: [jornal] Professora: aí nós temos aí duas? MANCHETES, quem poderia ler essa primeira manchete? Aluna: ((uma aluna inicia a leitura e lê as duas manchetes e o pequeno texto em forma de pergunta do livro didático)) Professora: então vejam, vocês sabem quem é Fernando Collor de Mello, não sabem? vocês que estudam história? Aluna: mais ou menos Professora: quem é, quem foi Fernando Collor de Mello? Aluno: presidente Professora: PRESIDENTE da república, nosso presidente Aluna: [ex] Professora: o que foi que aconteceu com ele, o impeachment foi o quê? hein gente? o que foi o impeachment de Collor? tiraram ele do? PODER, né isso? então veja, já é uma manchete bem antiga, SÓ Erivaldo que sabe a história do nosso ex-presidente? Alunos: ((muitos falam ao mesmo tempo)) (xxx) (...)

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Constatamos que a professora trabalha o aspecto referente ao conteúdo

temático das duas manchetes e mais uma vez apela ao conhecimento de mundo dos

alunos: Professora: então vejam, vocês sabem quem é Fernando Collor de Mello, não

sabem? vocês que estudam história? Professora: quem é, quem foi Fernando Collor

de Mello? Professora: o que foi que aconteceu com ele, o impeachment foi o quê?

hein gente? o que foi o impeachment de Collor? tiraram ele do? PODER, né isso?

então veja, já é uma manchete bem antiga, SÓ Erivaldo que sabe a história do nosso

ex-presidente?

Como podemos perceber, esse primeiro contato dos alunos com o tema central

da unidade, “Assumir uma posição”, fica restrito à exposição do conteúdo temático das

manchetes utilizadas pelo livro didático apenas para ilustrar a temática central da

unidade. Em nenhum momento a professora questiona os alunos sobre o porquê

daquelas manchetes de jornal estarem ilustrando uma unidade do livro didático

denominada “Assumir uma posição”. Ela se restringe a discutir o conteúdo temático

dessas manchetes. E novamente os demais aspectos que constituem o gênero textual

além do conteúdo temático, segundo Bakhtin (1992), o estilo e a estrutura

composicional não são discutidos em sala de aula.

Em seguida a professora deixa de abordar o conteúdo temático das manchetes

para comentar sobre a não imparcialidade dos jornais e dá continuidade à aula:

(...) Professora: ei gente, aqui o que vai nos interessar aqui é o lado da imprensa, do jornal, vocês CONCORDAM que os jornais ((professora lê a pergunta do livro didático, página 135)) “se limitam a noticiar FAtos ou costumam assumir uma posição?” Aluna: ((fala em voz muito baixa)) costuma ASSUMIR uma posição Professora: hein gente? todo mundo por favor participando, aí as colegas, hein gente, vocês acham que os jornais se limitam só a noticiar FAtos, só colocar a notícia e pronto, ou eles tomam alguma posição Aluna: tomam alguma posição porque têm que Professora: [por quê?] Aluna: eles têm que explicar o que colocou no jornal Professora: explicar o que colocou no jornal, vamos ver aí minha gente, só a colega Aluna: DÁ informação à população Professora: tá bom, então se limita só a dar informação, mas eles também tomam parte dessa informação ou não? Aluna: NÃO Professora: jornal? Aluna: ele só faz escrever lá pra gente lê, mas nenhum coloca o nome lá em baixo (xxx) Professora: nenhuma vez eles dão o ponto de vista deles lá?

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Aluna: não Aluna: eu acho que sim Aluna: eu não leio jornal Professora: vamos, eu tô notando que só (xxx) ninguém gosta de ler jornal? Aluna: eu não gosto de ler jornal Aluno: [eu não gosto de ler também] Professora: mas nunca assistiram um jornal de televisão? já está no tempo, viu Aluna: eu assisto todo dia Professora: vocês ultimamente não assistiram ou leram jornal, o que foi que aconteceu ontem no Brasil? Alunos: ((muitos falam ao mesmo tempo)) (xxx) Professora: não viram nada sobre o referendo de dias atrás? Aluna: eu vi ontem quando eu tava assistindo, meu pai assiste, sabe? aí, tem que escutar com ele Professora: vocês não assistiram nenhuma vez (xxx) aquele pessoal, eles só informavam ou davam a opinião deles? Aluna: é Alunos: ((muitos alunos falam ao mesmo tempo, outros conversam entre si)) informavam Professora: quando o pessoal do SIM ia falar, eles tavam (xxx) o que interessava pra eles ou não? Alunos: ((muitos falam ao mesmo tempo)) (xxx) Professora: agora me respondam, os jornais se limitam a anunciar FATOS ou costumam assumir uma posição a respeito desses fatos? ((silêncio dos alunos)) quer dizer que o jornal só coloca a notícia ali e pronto? vocês concordam ou não que eles assumem alguma posição? Aluna: ele tem que assumir sim Professora: é porque eu queria saber do restante Aluna: então deixa os outros falarem Professora: ASSUMEM SIM a posição deles (xxx) (...)

Percebemos que apenas uma aluna participa da discussão, embora a

professora tente chamar a atenção dos demais alunos (Professora: hein gente? todo

mundo por favor participando, aí as colegas, hein gente, vocês acham que os jornais

se limitam só a noticiar FAtos, só colocar a notícia e pronto, ou eles tomam alguma

posição). A mesma aluna que afirmou que os jornais assumem uma posição é

questionada sobre o por quê disso, e dá como resposta: Aluna: eles têm que explicar

o que colocou no jornal. Essa resposta nos parece um pouco vaga, mas ela é aceita

pela professora sem maiores questionamentos sobre o que significa exatamente

“explicar o que colocou no jornal” (Professora: explicar o que colocou no jornal,

vamos ver aí minha gente, só a colega).

Diante do chamado da professora à participação dos demais alunos, uma outra

aluna vai de encontro à resposta da colega e afirma que o jornal apenas informa a

população e não assume nenhuma posição em relação àquilo que está sendo dito

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(Aluna: DÁ informação à população). A professora, não aceitando a resposta da aluna,

tenta convencê-la do contrário; a aluna, entretanto, reluta em aceitar que os jornais

assumem um posicionamento ideológico ao divulgarem suas matérias (Professora: tá

bom, então se limita só a dar informação, mas eles também tomam parte dessa

informação ou não? / Aluna: NÃO / Professora: jornal? / Aluna: ele só faz escrever lá

pra gente lê, mas nenhum coloca o nome lá em baixo (xxx) / Professora: nenhuma

vez eles dão o ponto de vista deles lá? / Aluna: não).

A fala seguinte dessa aluna nos mostra o porquê dela não concordar com a

não imparcialidade dos jornais: ela simplesmente não lê jornais, não tem acesso a

eles: Aluna: eu não gosto de ler jornal. Após essa aluna assumir que não lê jornais

outros dois alunos também o fazem: Aluna: eu não gosto de ler jornal / Aluno: [eu não

gosto de ler também]. As falas desses alunos nos mostram que seria um empecilho à

aula continuar a discussão acerca da não-imparcialidade dos jornais, tendo em vista

que eles não têm contato com esse meio de comunicação impresso. Mais uma vez, o

conhecimento de mundo dos alunos determina a condução da aula. Percebendo essa

lacuna, a professora apela para um meio de comunicação mais comum aos discentes:

a televisão: Professora: mas nunca assistiram um jornal de televisão? já está no

tempo, viu.

Notamos que os alunos estão muito dispersos, conversam entre si e

demonstram não estarem interessados na discussão iniciada pela professora. Por

mais que ela tente convencê-los de que os jornais não são imparciais, eles não

conseguem perceber isso. Analisemos então mais detalhadamente essa situação de

sala de aula: como esses alunos conseguiriam participar de uma discussão acerca de

uma questão que eles desconhecem? Será que eles sabem o que é “assumir uma

posição”, temática central da unidade em torno da qual estão esses textos e gêneros

no momento discutidos em sala de aula? A dispersão dos alunos nos leva a crer que

eles, de fato, desconhecem o significado do que é assumir uma posição. Diante da

dificuldade dos alunos em perceber e compreender a questão da não imparcialidade

dos jornais, a professora simplesmente finaliza a questão dando a sua resposta final à

turma: Professora: ASSUMEM SIM a posição deles (xxx).

Dando continuidade à aula, a professora rapidamente passa a falar dos dois

textos que dão continuidade à unidade 8. Esses dois textos, respectivamente, “Multa

contra a dengue” (Estado de São Paulo) e “À deriva” (O Globo) (ver Anexo 03), tratam

da mesma temática: a epidemia de dengue ocorrida no Brasil em 2002 e as ações que

foram e/ou não foram tomadas para evitar que essa epidemia se alastrasse ainda mais.

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Esses textos são, na verdade, dois editoriais que vêm corroborar com a idéia central

da unidade, “assumir uma posição”, idéia esta que, como vimos, não foi

insistentemente discutida pela docente no momento anterior dessa mesma aula.

Vejamos então como ela discutiu esses textos em sala de aula:

(...) Professora: (...) nós vamos ver aqui dois textos de jornais, é um assunto que já vem há muito tempo no nosso país, o povo falando, sobre DENGUE, né? a luta contra a dengue, que hoje em dia já tá quase extinto mas não é combatido totalmente, então vamo ver isso aí “multa contra a dengue” ((a professora lê o título do texto da página 136)) vamos todos fazer a leitura né? Aluna: eu vi um bocado de gente indo nas casa botar aquele coisa nos pote eu não sei o que é lá que eles botam, um remédio que eles bota e vê se precisa botar, eu vi Professora: eles sempre estão né, nas casas, ENTÃO, vejamos, nós temos um texto aí, um texto jornalístico, que vocês tão achando ENORME pra ler? Alunos: é Professora: tá ENORME Aluna: a gente já leu maior do que esse Professora: [pra que não fique assim tão extenso], os meninos lêem um parágrafo, e as meninas lêem outro parágrafo, AGORA, quando não estiver lendo, ACOMPANHE silenciosamente, não é pra ficar conversando não, eu vou ler o título aí os homens começam no primeiro parágrafo, agora LER, LENDO com vontade viu ((os alunos fazem uma leitura oral do texto da página 136)) ((Após a leitura do texto, a professora inicia a discussão do mesmo com os alunos)) Professora: ele assumiu alguma posição a respeito? Aluna: assumiu Professora: quem mais acha que assumiu ou não? Então, vejamos, luta contra a dengue ((título do texto)), esse título tem a ver com esse texto? Aluna: LÓgico Professora: de quê tá falando esse texto? Aluna: tá falando da dengue Professora: ele tá falando da DENGUE, da multa contra a dengue, então veja, aqui é uma reportagem jornalística, em que o jornal noticia um fato, né isso? que é a notícia, sobre o quê? Aluna: a dengue, a luta contra a dengue Professora: [a dengue, né]? e, em seguida, você pode olhar que ele tá assumindo uma posição quando ele começa a dizer que, já é necessário, ((a professora lê uma parte do texto)) “em algumas cidades do interior de São Paulo já definiram critérios de fiscalização e multa para quem permitir criadouro do mosquito nas propriedades”, então é aí quando ele vai começar a tomar, né, uma posição, assumir uma posição, porque os jornais, além de dar a reportagem eles assumem uma posição, nós vamos ver isso em dois textos, nós temos aqui “multa contra a dengue” e... Alunas: “à deriva” (...)

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Observamos na fala inicial da professora que ela antes de pedir aos alunos que

observem os dois textos para terem um contato inicial com a sua temática, ela logo

anuncia a temática dos dois textos: Professora: (...) nós vamos ver aqui dois textos de

jornais, é um assunto que já vem há muito tempo no nosso país, o povo falando, sobre

DENGUE, né? a luta contra a dengue, que hoje em dia já tá quase extinto mas não é

combatido totalmente, então vamo ver isso aí “multa contra a dengue” ((a professora lê

o título do texto da página 136)) vamos todos fazer a leitura né?.

Esse momento inicial de contato dos alunos com os textos nos remete à leitura

teórica de Kleiman (2004a), quando esta afirma a importância de estabelecer objetivos

e criar expectativas para a leitura de um texto. E uma das formas de criar expectativas

num leitor em relação a um texto que será lido é levantar hipóteses acerca da temática

desse texto. A leitura e interpretação do título dos textos é uma forma de criar

expectativas no leitor e de fazê-lo levantar hipóteses acerca do tema do texto.

Segundo Kleiman (op. cit.), o levantamento de hipóteses deve servir para que o leitor,

à medida que vai lendo o texto, confirme ou refute as hipóteses anteriormente

levantadas. Como vemos, a professora não passa por esse caminho inicial para

chegar ao texto e à sua temática; ela apenas anuncia a temática e pede para que os

alunos leiam o primeiro texto, “multa contra a dengue”.

Na continuação, constatamos que uma aluna traz o seu conhecimento de

mundo sobre a dengue para a discussão do tema em sala de aula: Aluna: eu vi um

bocado de gente indo nas casa botar aquele coisa nos pote eu não o que é lá que eles

botam, um remédio que eles bota e vê se precisa botar, eu vi. A professora, em

seguida, organiza a maneira como o texto deve ser lido: Professora: [pra que não

fique assim tão extenso], os meninos lêem um parágrafo, e as meninas lêem outro

parágrafo, AGORA, quando não estiver lendo, ACOMPANHE silenciosamente, não é

pra ficar conversando não, eu vou ler o título aí os homens começam no primeiro

parágrafo, agora LER, LENDO com vontade viu. Novamente vemos que a professora

utiliza a prática da leitura oral em sala de aula. Dessa vez, o primeiro contato dos

alunos com o texto vai se realizar através da leitura oral. Trata-se de um editorial, um

texto extenso e mais complexo, com uma linguagem mais formal se comparado aos

demais textos lidos em sala até esse momento da aula (uma tira e duas manchetes de

jornal), fato que, provavelmente, vai trazer mais dificuldade de interpretação para os

alunos. Se levarmos ainda em consideração que eles não têm ou têm acesso restrito a

jornais escritos, provavelmente haverá dificuldade para ler e compreender esses

editoriais.

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Após a leitura em voz alta realizada pelos alunos, a professora faz um primeiro

questionamento a respeito do texto: Professora: ele assumiu alguma posição a

respeito? Apenas uma aluna responde: Aluna: assumiu. A professora mais uma vez

repete a pergunta: Professora: quem mais acha que assumiu ou não?. Os alunos não

respondem, um fato que, possivelmente, está relacionado à dificuldade de

compreensão textual por eles sentida. A professora percebe que os alunos não irão

responder o seu questionamento e muda a pergunta: Professora: de quê tá falando

esse texto?, e recebe a resposta de uma aluna: Aluna: tá falando da dengue. A

docente aceita essa resposta e acrescenta outras informações acerca do conteúdo

textual: Professora: ele tá falando da DENGUE, da multa contra a dengue, então veja,

aqui é uma reportagem jornalística, em que o jornal noticia um fato, né isso? que é a

notícia, sobre o quê? Aluna: a dengue, a luta contra a dengue.

Esse é um momento da fala da professora que merece destaque na nossa

análise, pois aqui constatamos que ela confunde vários gêneros textuais. Notemos

que ela classifica o texto lido como reportagem jornalística e como notícia, e, no

entanto, não se trata de nenhum desses gêneros, mas sim, de um de um editorial.

Essa fala da professora nos demonstra que ela provavelmente desconhece a teoria de

gêneros textuais ou conhece tal teoria, mas não faz uso de suas contribuições em sala

de aula. Esse trecho também nos ajuda a compreender a maneira como os demais

textos foram trabalhados em sala de aula. Apenas o conteúdo temático destes foi

abordado; estilo e estrutura composicional não foram discutidos. Possivelmente, se a

professora conhecesse a teoria de gêneros textuais, esses outros aspectos

constituintes dos gêneros teriam sido devidamente elucidados nas aulas de leitura.

Continuando a aula, a professora retoma a discussão acerca da não

imparcialidade dos jornais: Professora: [a dengue, né]? e, em seguida, você pode

olhar que ele tá assumindo uma posição quando ele começa a dizer que, já é

necessário, ((a professora lê uma parte do texto)) “em algumas cidades do interior de

São Paulo já definiram critérios de fiscalização e multa para quem permitir criadouro

do mosquito nas propriedades”, então é aí quando ele vai começar a tomar, né, uma

posição, assumir uma posição, porque os jornais, além de dar a reportagem eles

assumem uma posição, nós vamos ver isso em dois textos, nós temos aqui “multa

contra a dengue” e... / Alunas: “à deriva”. Nesse trecho da aula, notamos que a

professora além de retomar a discussão acerca da não imparcialidade dos jornais

também retoma alguns aspectos do texto referentes ao seu conteúdo temático. Mais

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uma vez, a professora confunde os gêneros e denomina o editorial em questão de

reportagem.

Um outro aspecto que nos desperta o interesse nesse trecho da aula é a rápida

passagem da professora pelo texto. Após esse momento da aula acima transcrito, a

docente já inicia a discussão do texto seguinte denominado “À deriva”. É importante

salientar que os alunos fizeram apenas uma leitura oral do texto e já se iniciou uma

discussão sobre ele. E percebemos que são raras as falas dos alunos nesse trecho da

aula, justamente porque é bastante provável que eles não tenham compreendido o

texto a ponto de se sentirem seguros para fazerem parte de uma discussão em sala

de aula. Não estando seguros, a interpretação que a professora faz do texto é a única

existente e a única que prevalece. A construção de sentidos que prevalece em sala de

aula é a da docente. Quanto aos alunos, não sabemos se eles construíram algum

sentido do texto; se construíram, que sentido foi esse, porque suas falas não

aparecem na aula. Acreditamos, portanto, que eles estão simplesmente aceitando os

sentidos construídos pela professora.

Constatamos até aqui que os textos em sala de aula vêm sendo tratados de

maneira bastante superficial. A professora, provavelmente por não ter conhecimento

teórico sobre gêneros textuais, também não aborda os aspectos essenciais dos

gêneros que estão sendo apresentados pelo livro didático. Além disso, os alunos

desconhecem o suporte (jornal) no qual esses textos (a tira, as manchetes e os

editoriais) estão inseridos. Todos esses aspectos envolvidos deságuam na dificuldade

de construção de sentidos em sala de aula, e como conseqüência, prevalece sempre a

voz da professora. Isso é muito evidente principalmente durante a discussão desse

primeiro editorial, “Multa contra a dengue”. São raros os momentos de fala dos alunos

e todas essas falas estão diretamente relacionadas ao seu conhecimento de mundo.

Ou seja, não conseguimos visualizar momentos da aula em que a esse conhecimento

de mundo que os alunos já têm seja acrescentado algum conhecimento extra, advindo

da aula de língua materna. Não há discussão acerca da estrutura dos textos e o

conteúdo textual não é suficientemente abordado em sala de aula. Cabe-nos então

fazermo-nos uma pergunta: qual o objetivo dessas aulas de língua materna?

Inicialmente deveria ser uma aula de leitura e interpretação de textos, mas isto

realmente está acontecendo? Que sentidos estão sendo construídos nessa aula? Qual

a função desses textos? Eles parecem apenas servir de base para uma discussão de

seus conteúdos temáticos.

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Dando prosseguimento à aula e à nossa análise, segue a discussão do texto

seguinte, um outro editorial denominado “À deriva”.

(...) Professora: o que é À DERIVA hein? Aluna: sei lá Aluna: não tenho a mínima idéia Professora: vocês já viram algum barco indo para o mar? Aluna: ah eu sei Professora: estão à deriva Aluna: tá flutuANndo Professora: tá flutuando? Aluna: SOLTO, tá solto professora Professora: solto, agora solto de que maneira? Aluna: sem destino Professora: exatamente, sem destino né? indo pra qualquer lugar, vocês concordam que à deriva é sem destino? Aluna: uma dúvida professora, uma dúvida, uma DÚVIDA, o mar tem fim? ((a professora não atende a aluna de imediato)) Professora: ai meu deus do céu Aluna: eu perguntei e todo mundo disse que não, mas quando eu vejo, vejo LÁ no final Professora: você vê o final do HOriZONte, mas do mar não ((a discussão sobre esse assunto continua, mas a professora retoma o assunto do texto)) então gente, à deriva é o que Sandra explicou, né, à deriva é quando você está sem destino, né isso, sem saber o que vai fazer, perdido, então um barco à deriva é um barco que tá no mar sem saber direito pra onde vai Aluna: [sem destino] (...)

Observamos, a partir desse trecho, que a professora inicia a discussão do texto

antes mesmo de uma primeira leitura completa do mesmo, chamando a atenção dos

alunos para o título (Professora: o que é À DERIVA hein? / Aluna: sei lá / Aluna: não

tenho a mínima idéia). Inicialmente a professora verifica o conhecimento de mundo

dos alunos acerca do significado da expressão “à deriva”; tendo visto que eles a

desconhecem, ela lança uma pergunta que os conduz à interpretação da expressão:

Professora: vocês já viram algum barco indo para o mar?. Percebemos, então, que o

trabalho que ela faz com esse texto se inicia de maneira diferente daquele realizado

com o texto anterior, no qual ela já iniciou tratando do conteúdo temático do texto

(dengue); não houve um levantamento de hipóteses, anterior a uma primeira leitura,

sobre o assunto do qual poderia tratar o texto ou sobre o significado do título (“Multa

contra a dengue”).

Nesse texto, entretanto, a professora realiza essa discussão inicial sobre o

título e desperta os alunos para participarem da aula. Eles respondem à sua pergunta

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(Aluna: ah eu sei / Aluna: tá flutuANndo). A professora, não obtendo a resposta

esperada, lança um novo questionamento (Professora: tá flutuando?) e obtém uma

outra resposta que mais se aproxima do que ela quer ouvir dos alunos (Aluna: SOLTO,

tá solto professora). Novamente, ela lança um novo questionamento (Professora:

solto, agora solto de que maneira?), até que uma aluna responde o esperado (Aluna:

sem destino). Como podemos observar, a professora, a partir do conhecimento de

mundo dos alunos, vai construindo o sentido do título do texto juntamente com eles.

Dessa forma, ela aproveita as falas dos alunos em sala de aula e vai conduzindo a

construção do sentido a partir delas. Notamos também que ela, mesmo aproveitando

a fala dos alunos, os conduz a chegarem no sentido que ela almeja que eles cheguem,

tanto que, quando uma aluna diz que um barco à deriva é um barco sem destino, a

docente utiliza a expressão “exatamente” em concordância com a fala da aluna

(Professora: exatamente, sem destino né? indo pra qualquer lugar, vocês concordam

que à deriva é sem destino?). Desse modo, a docente vai conduzindo os alunos a

construírem o sentido que ela quer que eles construam e o uso da expressão

“exatamente” na sua fala nos faz perceber que a aluna deu a resposta pretendida pela

professora, ou seja, construiu o mesmo sentido que ela.

Essa questão da construção do sentido do título é retomada pela professora

para finalizar a discussão inicial sobre o texto, e para tanto, ela se utiliza do sentido

construído pela aluna (Professora: (...) então gente, à deriva é o que Sandra explicou,

né, à deriva é quando você está sem destino, né isso, sem saber o que vai fazer,

perdido, então um barco à deriva é um barco que tá no mar sem saber direito pra onde

vai). Nesse momento, a professora finaliza a discussão inicial sobre o título e passa

adiante na discussão do texto pedindo aos alunos que realizem uma primeira leitura

do texto.

(...) Professora: vamos fazer a leitura desse segundo texto, “à deriva”, nesse as meninas iniciam, depois vocês ((novamente, leitura oral, um parágrafo é lido pelas meninas, o outro pelos meninos. As meninas iniciam a leitura oral do texto. A professora vai dando orientações sobre as pausas referentes à pontuação do texto. Após a leitura do texto, a professora pergunta aos alunos)) vocês entenderam o texto “à deriva”? sim ou não? Alunos: não Aluna: não entendi nada Professora: então todo mundo vai fazer uma leitura silenciosa, aí depois a gente debate Aluna: [uma leitura silenciosa, é, é muito melhor] Aluna: os dois não, só um né?

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Professora: só “à deriva” ((os alunos fazem uma leitura silenciosa. Após a leitura, a professora retoma a discussão do texto)) o que à deriva tem e ver com o texto? Aluna: é como se fosse Titanic Aluna: porque a dengue está se espalhando Professora: a dengue está se espalhando SEM.... Alunas: SEM CONTROLE Professora: sem controle, exatamente Alunas: [ehhhhhhhhh] ((as alunas vibram por terem conseguido compreender o sentido do título do texto)) (...)

Notamos que, novamente, a professora pede para os alunos realizarem uma

leitura oral do texto (Professora: vamos fazer a leitura desse segundo texto, “à deriva”,

nesse as meninas iniciam, depois vocês (...) vocês entenderam o texto “à deriva”? sim

ou não?). Após essa leitura, a professora pergunta se os alunos compreenderam o

texto, e eles respondem que não conseguiram compreendê-lo (Alunos: não / Aluna:

não entendi nada). Mais uma vez, a leitura oral não parece ser a mais apropriada para

a compreensão e familiarização dos alunos com o texto escrito. Diante de tal

dificuldade, a professora propõe uma segunda leitura, agora silenciosa e individual

para depois iniciar um debate sobre o texto (Professora: então todo mundo vai fazer

uma leitura silenciosa, aí depois a gente debate). Interessante porque, ao propor uma

leitura silenciosa, uma aluna afirma ser bem mais interessante essa forma de leitura

do que uma leitura oral, fato que vai confirmando a nossa hipótese de dificuldade de

compreensão dos alunos quando estão diante da leitura oral de um texto (Aluna: [uma

leitura silenciosa, é, é muito melhor]).

Os alunos fazem a leitura silenciosa e logo após a professora inicia os

questionamentos sobre o texto (Professora: (...) o que à deriva tem e ver com o

texto?). Esse trecho da aula é interessante, pois a professora retoma a construção do

sentido do título pedindo para que os alunos o relacionem ao conteúdo temático do

texto. Ou seja, é um momento de confirmar ou refutar a construção de sentido

anteriormente realizada, é hora de verificar o porquê de o texto ter sido denominado “À

deriva”.

Em seguida, os alunos começam a responder a pergunta da professora

(Aluna: é como se fosse Titanic / Aluna: porque a dengue está se espalhando). Como

vemos, os alunos parecem ter tido uma maior facilidade de compreensão do conteúdo

temático desse texto, e isso pode ser devido ao fato de a professora ter discutido

anteriormente o título do texto com eles. Uma aluna relaciona o título ao conteúdo

textual e fala no navio Titanic, citado no texto. Uma outra aluna faz de imediato a

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leitura que parecia pretendida pela professora, e conseguimos perceber isto porque a

docente utiliza-se da fala dessa aluna para concluir a respeito da relação de sentido

entre o título e o conteúdo do texto (Professora: a dengue está se espalhando

SEM....); as alunas apenas complementam a fala da professora e a construção de

sentido por ela conduzido (Alunas: SEM CONTROLE / Professora: sem controle,

exatamente). Mais uma vez, a palavra “exatamente” aparece na fala da professora,

novamente confirmando que as alunas estão trilhando o mesmo caminho da

construção de sentido realizado por ela. Isto fica ainda mais evidente, quando a

reação das alunas é vibrar ao perceberem que conseguiram chegar onde a professora

queria que elas chegassem; as alunas comemoram ao perceber que deram a

“resposta certa”, a resposta que a professora queria escutar (Alunas: [ehhhhhhhhh]).

Nesse momento da aula, fica bastante evidente a importância que os alunos

atribuem à aceitação de suas falas por parte da professora. E notamos que essa

aceitação significa para os alunos que eles estão certos porque estão pensando do

mesmo jeito que ela. Esse fato nos mostra que, nessa sala de aula, a construção de

sentido por parte dos alunos parece estar comprometida devido ao fato de a docente

conduzir essa construção e fazer por onde os alunos aceitem-na. É como se eles não

tivessem voz além da voz dela, como se suas leituras e compreensões dos textos não

fossem válidas sem a aprovação dela que, naquela situação, é a única pessoa que

pode ou não aprovar respostas. Daí podemos compreender porque os alunos se

mantêm tão calados na maior parte dessa aula de leitura: eles provavelmente, ou têm

receio de serem censurados em suas interpretações, ou apenas esperam que a

professora construa a “leitura correta”.

Vejamos como continua essa aula:

(...) Professora: mais uma vez, POR FAVOR....o jornal aqui dá sua opinião? ele toma uma posição nesse segundo texto, ou não? Aluna: SIM Professora: ele faz até uma CRÍTICA, né, a respeito, ele fala aí de quem, diz o nome de uma pessoa, quem é a pessoa? Aluna: é:: Oa, Oa Professora: Oswaldo... Aluna: Oswaldo Cruz Professora: que Oswaldo Cruz já é falecido, né isso, há muito tempo, que foi quem criou o quê, Oswaldo Cruz, que diz o texto Aluna: a...a...a, como é que se diz? Aluna: a vacina Aluna: é, era isso que eu queria dizer Aluno: contra a febre amarela

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Professora: que era uma epidemia da época, não é, e não existia controle, aí ele diz, será que é necessário trazer Oswaldo Cruz pra salvar a população? veja, ele faz até essa crítica, veja, o jornal chega a tal ponto que faz até essa crítica, TANTO que ele se envolve no conteúdo, ele assume essa posição... é::por que ele fala que se comporta como se navegasse no Titanic, por quê? que as autoridades se comportam como se navegassem no Titanic, por quê? (...)

Notamos que a professora retoma a questão anteriormente discutida acerca da

não-imparcialidade dos jornais (Professora: mais uma vez, POR FAVOR....o jornal

aqui dá sua opinião? ele toma uma posição nesse segundo texto, ou não). Diante da

resposta afirmativa da aluna (Aluna: SIM), a professora continua com a sua exposição

do texto. Entretanto, ao invés de pedir aos alunos que busquem exemplos no próprio

texto que evidenciem essa não-imparcialidade, ela mesma destaca um trecho do texto

que evidencia uma crítica (Professora: ele faz até uma CRÍTICA, né, à respeito, ele

fala aí de quem, diz o nome de uma pessoa, quem é a pessoa?). Este poderia ter sido

um momento interessante para avaliar se os alunos haviam compreendido a questão

da tomada de posição insistentemente discutida em outra parte desta mesma aula.

Mas a docente preferiu, ela mesma, destacar esse momento de tomada de posição

que se evidencia no texto.

A aula tem continuidade com o encaminhamento da professora para o

reconhecimento dos alunos de parte do conteúdo temático do texto (Aluna: é:: Oa, Ao

/ Professora: Oswaldo.../ Aluna: Oswaldo Cruz / Professora: que Oswaldo Cruz já é

falecido, né isso, há muito tempo, que foi quem criou o quê, Oswaldo Cruz, que diz o

texto / Aluna: a...a...a, como é que se diz? / Aluna: a vacina / Aluna: é, era isso que

eu queria dizer / Aluno: contra a febre amarela). A professora, a partir desse

reconhecimento do conteúdo temático por parte dos alunos, retoma a questão da não-

imparcialidade dos jornais (Professora: que era uma epidemia da época, não é, e não

existia controle, aí ele diz, será que é necessário trazer Oswaldo Cruz pra salvar a

população? veja, ele faz até essa crítica, veja, o jornal chega a tal ponto que faz até

essa crítica, TANTO que ele se envolve no conteúdo, ele assume essa posição...). A

professora identifica que o jornal assume uma posição diante do que escreve, mas ela

não esclarece aos alunos o que ou quem o jornal está criticando. Dessa forma, a

discussão iniciada acerca do conteúdo textual se restringe a tratar de questões que

não adentram de fato na temática do texto, que é o descaso das autoridades diante da

epidemia de dengue no Estado do Rio de Janeiro. Notamos ainda que a professora

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está constantemente mantendo a condução das falas, da interpretação do texto e,

conseqüentemente, da construção dos sentidos.

A fala da docente continua e agora ela lança outro questionamento aos alunos,

mais uma vez relativo ao conteúdo temático do texto (Professora: (...) é:: por que ele

fala que se comporta como se navegasse no Titanic, por quê? que as autoridades se

comportam como se navegassem no Titanic, por quê?). Essa pergunta pode conduzir

os alunos a refletirem sobre o conteúdo textual, fazendo-os perceber a questão central

do texto, que é a crítica às autoridades cariocas diante do rápido crescimento dos

casos de dengue no Estado, e, conseqüentemente, levando-os a construírem sentidos

para o texto. Vejamos como os alunos respondem a essa questão e como a aula tem

continuidade a partir dessas respostas:

(...) Aluna: eu acho que elas saem andado, como é Aluno: Titanic num foi aquele que afundou? Professora: alguém conhece a história do Titanic? Alunos: ((todos falam ao mesmo tempo)) (xxx) Professora: o que foi que aconteceu com o Titanic? Aluno: bateu num iceberg e afundou Professora: e, lá no barco existia VÁRIAS pessoas e poucos botes salva-vidas, quando eles iam saindo lá, no dia da...do Aluna: [acontecimento] Professora: algumas pessoas falaram que os botes não tinha pra todas as pessoas porque eles diziam que nem deus afundaria este barco, então vejam, quando ele compara com o Titanic aqui, com a estória da gente porque as autoridades não estão se preocupando em acabar com o foco Aluna: da dengue (...)

Constatamos que os alunos buscam seus conhecimentos de mundo para

iniciarem uma discussão sobre o navio Titanic, tema este levantado pela professora

em sala de aula (Aluno: Titanic num foi aquele que afundou?). Ela também tenta

reconhecer o conhecimento de mundo dos alunos sobre esse tema para iniciar uma

discussão acerca de questões referentes ao texto (Professora: alguém conhece a

história do Titanic? / Professora: o que foi que aconteceu com o Titanic?). Um aluno

responde os questionamentos da professora (Aluno: bateu num iceberg e afundou) e

ela retoma explicações sobre o mesmo tema, relacionando a história do naufrágio do

Titanic ao conteúdo temático do texto em questão (Professora: e, lá no barco existia

VÁRIAS pessoas e poucos botes salva-vidas, quando eles iam saindo lá, no dia

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da...do / Professora: algumas pessoas falaram que os botes não tinha pra todas as

pessoas porque eles diziam que nem deus afundaria este barco, então vejam, quando

ele compara com o Titanic aqui, com a estória da gente porque as autoridades não

estão se preocupando em acabar com o foco).

Percebemos que, em mais uma situação de leitura em sala de aula, a

professora constrói o sentido do texto, e é um sentido interessante, embora outros

também sejam possíveis. Analisando a sua fala e o texto em questão (“À deriva”),

percebemos que ela constrói o seguinte sentido: da mesma forma como as

autoridades do Titanic não estavam interessadas na segurança dos passageiros, as

autoridades brasileiras também não estão interessadas em resolver ou amenizar o

problema da epidemia de dengue. Entretanto, ao lermos o texto, construímos um outro

sentido, também permitido pelo texto: as autoridades comportam-se como se

navegassem no Titanic, ou seja, fingem que nada de grave está acontecendo, muito

embora saibam que o navio está afundando.

Como observamos nesse exemplo, os vazios possibilitam a construção de mais

de um sentido para esse texto, fato que, novamente observamos à luz da teoria do

tema e horizonte, de Iser (1979): no momento em que a professora construiu um

sentido para aquele trecho do texto, esse sentido passou a ser tema, ou seja, a sua

interpretação daquele trecho. O fato de ela ter construído esse sentido, entretanto, não

impossibilita a existência de outros sentidos também possíveis para o mesmo trecho.

Esses demais sentidos não percebidos pela docente são os horizontes, ou seja, as

outras leituras possíveis para aquele trecho do texto e que não foram percebidas por

ela naquele momento. Já o sentido por nós construído e possível de acordo com o

conteúdo textual, passou a ser o nosso tema, enquanto que o sentido por ela

construído passou a ser horizonte a partir da leitura que realizamos.

A grande questão aqui, entretanto, é: os alunos acompanharam a construção

desse sentido realizado pela professora? Será que eles têm consciência de que um

mesmo texto pode permitir a construção de vários sentidos? Na verdade, acreditamos

que, assim como vem sendo na maioria das situações de leitura de texto nessa sala

de aula, a professora não permitiu que os alunos construíssem sentidos. A voz era só

dela; ela dava todas as explicações e construía todos os sentidos. Cabe-nos então a

pergunta: por que ela não incentivou os alunos a construírem sentidos para o texto ao

invés de entregar-lhes o sentido já pronto e acabado? A atitude dos alunos de calar e

esperar pode ser um reflexo dessa atitude da professora de fazer as leituras e dar as

“respostas certas e prontas” aos alunos, fato que restringe a participação ativa destes

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inibindo seus pensamentos e a sua capacidade de analisar criticamente o que está

sendo lido, tanto dentro quanto fora de sala de aula.

Vejamos então como a professora dá continuidade à aula.

(...) Professora: da dengue né? aí é por isso que diz que a população está afundando igual ao Titanic, porque nós sabemos que a dengue realmente mata, né isso? a dengue só atinge as pessoas de classe baixa? segundo o texto? Aluna: NÃO Professora: por que? Aluna: atinge as pessoas (xxx) Professora: de classe alta também, aí aqui tem o depoimento de UMA cantora, né isso? ela é quem? Aluna: JOYCE Professora: o que é que ela diz? Alunas: ((lendo o texto)) “estão brincando com as nossas vidas” Professora: quem é que estão brincando com as vidas? Alunos: aedes aegypti Alunas: [as autoridades] Professora: o aedes aegypti ou as autoridades? Alunas: as autoridades Aluna: porque não dá um ponto final nesse aedes aegypti (...)

Observamos que, assim como acontece em outros momentos, em grande parte

desse fragmento da aula, professora e alunos discutem acerca do conteúdo temático

do texto (Professora: (...) a dengue só atinge as pessoas de classe baixa? segundo o

texto? / Professora: de classe alta também, aí aqui tem o depoimento de UMA

cantora, né isso? ela é quem? / Aluna: JOYCE / Professora: o que é que ela diz? /

Alunas: ((lendo o texto)) “estão brincando com as nossas vidas” / Professora: quem é

que estão brincando com as vidas? / Alunos: aedes aegypti / Alunas: [as autoridades]

/ Professora: o aedes aegypti ou as autoridades? / Alunas: as autoridades).

Entretanto, nos interessa analisar o primeiro momento desse fragmento da aula,

no qual a professora constrói um outro sentido relacionado ao trecho do texto em que

o navio Titanic é citado: Professora: (...) aí é por isso que diz que a população está

afundando igual ao Titanic, porque nós sabemos que a dengue realmente mata, né

isso? a dengue só atinge as pessoas de classe baixa? segundo o texto?. Segundo a

leitura da professora, a população está afundando como afundou o navio Titanic, isto

porque as autoridades não estão preocupadas em tomar atitudes que pelo menos

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amenizem a disseminação da dengue no Estado do Rio de Janeiro. Vejamos os

parágrafos do texto onde aparece a citação ao Titanic:

O que fazem as autoridades nesse momento? Brigam, como vinham brigando desde o primeiro sinal da epidemia. (...) Comportam-se como se navegassem no Titanic, o transatlântico indestrutível tragado pelo mar. É como se nada de importante estivesse acontecendo. A comparação só não é perfeita porque, no Titanic, havia pelo menos uma pessoa na ponte de comando que conhecia a dimensão da tragédia – o comandante (...). (p. 137 – texto completo, vide Anexo 03).

Como podemos perceber, o trecho acima não afirma diretamente que a

população está afundando como se estivesse no Titanic, mas sim, que as autoridades

comportam-se como se estivessem navegando no Titanic. Como dissemos no nosso

capítulo teórico no qual abordamos as contribuições da Lingüística para os estudos

sobre leitura, de acordo com Kleiman (2004a), na concepção interacionista de língua,

o leitor deve desenvolver estratégias de processamento do texto para construir

sentidos durante a leitura, ou seja, ele deve utilizar-se dos elementos formais do texto

para construir esses sentidos. Segundo a autora, há alguns princípios que guiam as

estratégias cognitivas de leitura: o princípio da parcimônia, o princípio da canonicidade,

o princípio da coerência e o princípio da relevância. Nesse momento, vão nos

interessar os dois últimos princípios. O princípio da coerência nos diz que quando há

mais de uma interpretação possível para um texto, devemos optar por aquela que o

torna mais coerente. O princípio da relevância, por sua vez, nos diz que caso haja

informações conflitantes no texto devemos optar pela mais relevante para o desenrolar

do tema em questão.

De acordo com esses dois princípios, a interpretação realizada pela professora

seria questionada, pois em nenhum momento o texto afirma que é a população que

está afundando como afundou o Titanic. Entretanto, Kleiman (2004a) também afirma

que além do reconhecimento dos elementos formais do texto o conhecimento prévio

do leitor também é um auxiliar na construção dos sentidos dos textos. Tal

conhecimento é constituído por três outros conhecimentos: o lingüístico, o textual e o

conhecimento de mundo. Até então, tínhamos percebido que em vários momentos

dessa aula os alunos utilizam-se do conhecimento de mundo na construção dos

sentidos dos textos, mas vemos nesse trecho da aula que a professora também utiliza

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o seu conhecimento de mundo para construir sentido. Quando ela afirma que “a

população está afundando igual ao Titanic”, não conseguimos perceber essa leitura

por ela realizada diretamente evidenciada nos elementos formais do texto. Entretanto,

ao analisarmos o sentido por ela construído a partir do seu conhecimento de mundo,

notamos que há sim uma possibilidade de construção desse sentido, pois todos nós

sabemos, de acordo com os nossos esquemas (conhecimentos socialmente

estabelecidos) que a população é a que mais sofre quando as autoridades não tomam

iniciativas para conter epidemias.

Esse fato ocorrido nessa aula nos evidencia o quanto é importante estarmos

atentos às leituras que os textos nos possibilitam, sejam essas leituras construídas ou

não a partir dos elementos formais do texto. Um outro aspecto importante desse

momento da aula é a percepção do quão complexo e delicado é o processo de

construção de sentidos, pois ele engloba aspectos que vão desde os relativos à língua

até os mais abstratos e cotidianos.

Vejamos então o desfecho dessa aula.

(...) Professora: nesse texto, tem algumas palavras que vocês não conhecem? quando ele fala nessa fumigação dos focos, o que é fumigação? vocês já viram algum carro da fumigação? Aluna: é o carro fumacê é? Professora: é o carro fumacê, aquele ali chama fumigação, não é o carro não, é aquele VAPOR (xxx) então vejamos, ((a professora lê uma pergunta lançada pelo livro didático, página 137, aos alunos)) “o assunto abordado pelos dois textos despertou seu interesse ou você pensa que diz respeito apenas aos adultos?” Alunas: despertou interesse Aluna: não, é Professora: diz respeito apenas aos adultos ou Aluna: [não, a gente também] Professora: por que? Aluna: o título é interessante Aluna: aí, ele mostra, dá uma curiosidade, eu não sabia o que era à deriva Professora: exatamente, olha o que Rafael disse aqui oh, a dengue atinge adultos e crianças, portanto, é de interesse de todos nós, vocês gostam, vocês dizem que não lêem jornais, fica até difícil, mas esses assuntos tipo dengue, cólera, vocês se interessam assim de ler alguma coisa, procurar saber como é? Aluna: eu sim Professora: já? Aluna: teve uma época que esse povo da SUCAN, quando eles vão nas casa eles entrega os folheto pra mostrar como é explicando como a gente deve ter cuidado não deixar a água parada Professora: os meninos, vocês já leram alguma coisa sobre dengue?

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Alunos: ((permanecem calados; um aluno fala que já teve dengue)) Professora: Anderson, você já teve? como foi a experiência? Aluno: (xxx) Professora: além de Anderson alguém mais aqui já foi picado? Aluna: eu não, eu já vi gente que foi picado, mas eu não Professora: pronto, mas algum comentário? Alunos: ((muitos falam ao mesmo tempo))

Constatamos, nas primeiras falas da professora nesse trecho da aula, que ela

começa a questionar os alunos acerca do significado dos elementos lingüísticos

presentes no texto “À deriva”, e, mais uma vez, os alunos relacionam o conteúdo

textual ao seu conhecimento de mundo buscando o reconhecimento dos significados

desses elementos (Professora: nesse texto, tem algumas palavras que vocês não

conhecem? quando ele fala nessa fumigação dos focos, o que é fumigação? vocês já

viram algum carro da fumigação? / Aluna: é o carro fumacê é? / Professora: é o carro

fumacê, aquele ali chama fumigação, não é o carro não, é aquele VAPOR (xxx) (...)).

A docente inicia então o fechamento da discussão sobre o tema “dengue”

abordado pelos dois textos iniciais da unidade 8, “Multa contra a dengue” e “À deriva”.

Para tanto, lê em sala de aula a pergunta lançada pelo livro didático acerca desse

tema: Professora: (...) então vejamos, ((a professora lê uma pergunta lançada pelo

livro didático, página 137, aos alunos)) “o assunto abordado pelos dois textos

despertou seu interesse ou você pensa que diz respeito apenas aos adultos?”.

Algumas alunas respondem oralmente a questão colocada pelo livro didático (Alunas:

despertou interesse / Professora: diz respeito apenas aos adultos ou/ Aluna: [não, a

gente também]). A professora pergunta porque esses dois textos despertaram o

interesse dos alunos, e duas alunas respondem que sentiram interesse no título do

texto “À deriva”: Professora: por que? / Aluna: o título é interessante / Aluna: aí, ele

mostra, dá uma curiosidade, eu não sabia o que era à deriva.

Esse é um ponto interessante para a nossa análise. Vejamos que a pergunta

do livro didático direciona-se aos conteúdos dos dois textos trabalhados na unidade 08,

no entanto, as alunas só fazem referência a um deles, “À deriva”. Um outro aspecto

interessante das falas dessas alunas é o fato de elas comentarem acerca do título do

texto “À deriva” e não sobre o conteúdo nele tratado. Quando observamos

detalhadamente o desenrolar dessa aula, notamos que o primeiro texto foi

rapidamente lido e discutido pela professora. Já o segundo texto foi mais discutido em

sala de aula e essa discussão foi bastante voltada ao título e sua relação com o

conteúdo textual. E a fala das alunas aborda exatamente o significado desse título, ou

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seja, trata provavelmente da única questão referente aos dois textos que foi de fato

trabalhada pela docente e compreendida pelos alunos durante essa aula. Isso nos

mostra que, quando discutimos algum aspecto de qualquer texto em sala de aula,

devemos fazê-lo de maneira bastante aprofundada e detalhada. Não podemos

esquecer que a grande maioria dos nossos alunos tem pouco contato com textos

escritos e não podemos considerar que esses alunos terão a mesma percepção que

nós podemos ter desses textos.

Na continuação da aula, um aluno responde a pergunta lançada pelo livro

didático, e a professora aproveita essa resposta para fazer comentários gerais acerca

do tema “dengue”, novamente procurando trazer para a discussão em sala de aula o

conhecimento de mundo dos alunos (Professora: exatamente, olha o que Rafael

disse aqui oh, a dengue atinge adultos e crianças, portanto, é de interesse de todos

nós, vocês gostam, vocês dizem que não lêem jornais, fica até difícil, mas esses

assuntos tipo dengue, cólera, vocês se interessam assim de ler alguma coisa, procurar

saber como é?). E, de fato, vemos que esses alunos já tinham algum conhecimento de

mundo sobre o tema anterior à leitura desses textos em sala de aula, pois uma aluna

afirma já ter visto alguns profissionais da saúde pública distribuindo folhetos

explicativos sobre como evitar a dengue (Aluna: teve uma época que esse povo da

SUCAN, quando eles vão nas casa eles entrega os folheto pra mostrar como é

explicando como a gente deve ter cuidado não deixar a água parada). Um outro aluno

da turma afirma que já teve a doença (Professora: Anderson, você já teve? como foi a

experiência?). E com essas discussões tendo por base o conhecimento de mundo dos

alunos a aula chega ao fim.

Acreditamos que esses dois textos foram propositalmente escolhidos pelas

autoras do livro didático para estarem nesse início da unidade pelo seguinte motivo: a

unidade 08 é denominada “Assumir uma posição”, e os dois editoriais que iniciam essa

unidade mostram posicionamentos bastante distintos diante do problema da epidemia

de dengue. O primeiro, “Multa contra a dengue”, publicado no jornal O Estado de São

Paulo, afirma que as autoridades do Estado estão buscando de todas as maneiras

conter a epidemia de dengue. O segundo editorial, “À deriva”, publicado no jornal O

Globo, afirma justamente o contrário, que as autoridades do Estado do Rio de Janeiro

não estão preocupadas em conter a rápida disseminação da doença. Esses dois

textos foram escritos de acordo com as características do gênero editorial, que se

caracteriza como sendo um gênero opinativo, geralmente escrito pelo redator chefe de

um jornal e/ou revista e que possui na sua estrutura e composição ponto de vista e

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argumentos. Portanto, “assumir uma posição” nada mais é do que desenvolver um

determinado ponto de vista através da argumentação, e, evidentemente, o editorial é

um gênero que se caracteriza por constituir-se de muitas seqüências tipológicas

argumentativas. Ao mesmo tempo em que se caracteriza por ser um gênero

tipicamente argumentativo, o editorial circula em suportes que se pretendem

imparciais: os jornais e as revistas. Dessa forma, ao tratar da temática “assumir uma

posição” e expor dois editoriais, as autoras do livro didático pretendiam fazer com que

os alunos percebessem que os jornais e revistas não são tão imparciais quanto se

pretendem parecer.

Ao fim da análise do trabalho feito em sala de aula com esses dois editoriais,

nos cabe fazer a pergunta: será que os alunos conseguiram construir esse sentido

intencionado pelo livro didático? Pelos dados que analisamos, é bem provável que não,

pois, como vimos, a temática central da unidade 08 parece não ter sido amplamente

compreendida pelos discentes, e dos dois editoriais foram trabalhados de maneira

superficial apenas os seus conteúdos temáticos; estilo e estrutura composicional não

foram observados nem discutidos entre professora e alunos.

Ao fim das nossas análises referentes à essa aula da 7ª série, chegamos a

alguns aspectos relevantes para a nossa pesquisa que foram por nós observados e

que retomaremos mais detalhadamente nas nossas considerações finais. São eles:

1º) Identificamos, a partir da observação da prática de sala de aula da

professora, que a concepção de leitura que subjaz à sua prática está baseada numa

concepção estruturalista de língua e linguagem;

2º) Apenas o conteúdo temático dos textos foi discutido em sala de aula. Estilo

e estrutura composicional não foram abordados, e, dessa forma, não há um trabalho

com os gêneros textuais;

3º) As discussões em sala de aula em torno dos textos partem do e retornam

ao conhecimento de mundo dos alunos e parece não haver um acréscimo de

conhecimento para esses alunos a partir da leitura desses textos;

4º) A professora constrói os sentidos dos textos em sala de aula e restringe a

participação dos alunos nesse processo. Estes, por sua vez, também esperam que ela

forneça “a interpretação correta” do que foi lido;

5º) A complexidade do processo de construção de sentidos a partir da leitura

de textos em sala de aula. Como vimos, esse processo passa por vários momentos,

desde a observação dos elementos formais do texto até o conhecimento de mundo

dos sujeitos leitores;

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6º) E, por fim, lançamos a pergunta: qual a função dos textos nas aulas de

língua materna?

E com essa pergunta, partimos para a análise de uma outra aula observada na

8ª série do Ensino Fundamental, na mesma escola e com a mesma professora.

3.3. A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NA 8ª SÉRIE

Para iniciarmos nossa análise de dados referente à 8ª série, escolhemos

alguns trechos de uma aula na qual a professora leu e analisou um texto da unidade

07 do livro didático adotado pela escola para essa série, Ler, entender e criar, de

Maria das Graças Vieira e Regina Figueiredo. A unidade 7 desse livro traz como tema

central a Tecnologia: tudo ficou mais fácil?, e como texto base um editorial, retirado da

revista Educação, São Paulo, 2000 (Anexo 04).

Antes de iniciarmos a análise, é importante definirmos o gênero textual Editorial.

Como já demonstramos anteriormente, numa perspectiva bakhtiniana, os gêneros

caracterizam-se pela sua composição, conteúdo temático e estilo. Dessa forma, o

editorial é um texto opinativo, geralmente escrito pelo redator-chefe de um jornal e/ou

revista que possui na sua estrutura e composição ponto de vista e argumentos.

Quanto ao conteúdo temático, o editorial caracteriza-se por tratar de acontecimentos

de ordem política, econômica, social, histórica ou cultural. Quanto ao estilo, o editorial

apresenta linguagem formal, e, portanto, destinada a um público-alvo com um

conhecimento relativamente aprofundado sobre o tema tratado no gênero em questão.

No caso do editorial lido nessa aula, intitulado Vertigem, o conteúdo temático

trata das inúmeras inovações tecnológicas ocorridas entre o final do século XX e início

do século XXI, e destaca a Internet como a mais importante dessas inovações,

evidenciando a velocidade das mudanças sociais, culturais e econômicas advindas do

rápido crescimento da Rede mundial de computadores. O editorial destaca ainda que

o Brasil é um dos países que mais faz uso da Internet.

Diante da exposição das características que constituem o gênero editorial,

passemos à análise da aula. Para tanto, esta foi dividida em quatro momentos: 1)

Antes da leitura do texto: levantamento de dados acerca do tema tecnologia; 2)

Levantamento de hipóteses sobre o título do texto; 3) Durante a leitura oral do texto; e

4) Voltando ao título do texto.

Passemos então à análise do primeiro momento.

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1º MOMENTO: Antes da leitura do texto: levantamento de dados acerca do tema

tecnologia

EXEMPLO I

Professora: vamos entrar hoje em uma nova unidade, né, que é tecnologia Aluna: OPA Professora: tecnologia...EI, por favor, o texto que tem aí tem a manchetezinha, né? ((Professora lendo um trecho do livro didático, p. 121)) “TECNOLOGIA: tudo ficou mais fácil?”, o que é que vocês acham?, respondam aí por favor Aluna: FICOU (...) Aluna: algumas coisas, o aparelho celular beneficia a gente MUIto, você pode falar com alguém que está distante, é:: a alta tecnologia é massa (...)

Como podemos observar no trecho acima, uma aluna participa mais

ativamente desse momento da aula e demonstra interesse pelo tema em questão.

Notamos que a professora inicia a aula anunciando o tema da unidade e vai

questionando os alunos acerca desse tema, trazendo à tona o conhecimento de

mundo destes (Professora: tecnologia...EI, por favor, o texto que tem aí tem a

manchetezinha, né? ((Professora lendo um trecho do livro didático, p. 121))

“TECNOLOGIA: tudo ficou mais fácil?”, o que é que vocês acham?, respondam aí por

favor). A aluna responde à pergunta da professora demonstrando o seu conhecimento

de mundo sobre o tema e exemplificando esse conhecimento através de alguns

aparelhos tecnológicos que facilitaram a vida moderna (Aluna: (...) algumas coisas, o

aparelho celular beneficia a gente MUIto, você pode falar com alguém que está

distante, é:: a alta tecnologia é massa). Fica evidente que o ponto de partida do

comentário da aluna é o seu conhecimento de mundo sobre o tema, pois ela fala do

aparelho celular, um aspecto do avanço tecnológico ao qual tanto ela quanto a maioria

dos alunos têm acesso e dele fazem uso.

Esse primeiro contato com o tema, anterior à leitura do texto propriamente dito,

é importante para que os alunos ativem os seus conhecimentos de mundo e possam ir

ao texto já com alguns esquemas de conhecimentos ativados, o que pode vir a facilitar

a leitura e compreensão do texto propriamente dito.

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Na continuação da aula, a professora questiona os alunos sobre o título do

texto, Vertigem, e, mais uma vez, busca destes os seus conhecimentos de mundo

através do levantamento de hipóteses sobre o título do texto, fato que caracteriza o

segundo momento da nossa análise:

2º MOMENTO: Levantamento de hipóteses sobre o título do texto

EXEMPLO II

(...) Professora: nós temos AÍ... uma leitura, né isso? o título, OLHA, chama-se, VERTIGEM, vamos ver por que vertigem...o que é vertigem hein, gente? antes de ver o texto, o que é vertigem? quem já ouviu falar nessa palavra vertigem? Aluna: eu já, mas eu não sei o que é, é alguma coisa Professora: é alguma coisa, com certeza Aluno: é alguma coisa, é Professora: quem sabe o que significa? Aluna: se relaciona com ficção, assim..? é...tá falando... Aluno: imaginário...profecias Professora: vamos ler o texto Aluno: tem a ver com profecias? Professora: tem não, vamos ler o texto e a partir do contexto do texto vamos ver se a gente descobre o que é vertigem, certo? (...)

Constatamos, na primeira fala da professora, que ela desperta a atenção dos

alunos para o significado da palavra vertigem (Professora: o que é vertigem hein,

gente?), mais uma vez buscando o conhecimento de mundo dos alunos. Alguns deles

manifestam-se, mas afirmam não conhecerem o significado da palavra em questão

(Aluna: eu já, mas eu não sei o que é, é alguma coisa). Nesse momento, percebemos

que os alunos não demonstram ter conhecimento prévio acerca do significado da

palavra vertigem e levantam algumas hipóteses acerca de tal significado: Aluna: se

relaciona com ficção, assim..? é...tá falando...; Aluno: tem a ver com profecias?. Ao

ser questionada pelos alunos sobre o significado do título do texto, a professora

encaminha os alunos para a leitura do texto, entretanto, não deixa margem para que

eles confirmem ou abandonem suas hipóteses anteriores levantadas sobre o

significado da palavra vertigem, como percebemos na sua fala após o questionamento

do aluno: Professora: tem não, vamos ler o texto e a partir do contexto do texto

vamos ver se a gente descobre o que é vertigem, certo?. Vemos que a professora

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quebra as expectativas dos alunos em relação à construção de sentidos antes da

leitura do texto.

Como notamos, até esse momento da análise, os alunos demonstraram ter

conhecimento de mundo sobre o tema em questão, mas não demonstraram ter

conhecimento lingüístico quando esbarraram no significado da palavra “vertigem”.

Segundo Kleiman (2004a), o conhecimento lingüístico é um dos componentes do

conhecimento prévio e um aspecto importante no processamento do texto, pois ele

permite que os leitores percebam que os textos são o resultado da interação entre

palavras e frases que formam um todo coerente. Ainda segundo a autora, os

conhecimentos lingüístico, de mundo e textual interagem e quando um deles

apresenta problemas que dificultam a compreensão textual, o(s) outro(s) é (são)

ativado(s). A ativação desses conhecimentos permite que o leitor faça inferências, ou

seja, que levante hipóteses sobre o conteúdo e estrutura textuais, confirmando-as ou

não durante a interação com o texto. Nesse trecho da aula, fica evidente que essa

ativação de conhecimentos ocorreu, pois no momento que os alunos perceberam não

conhecer o significado da palavra “vertigem”, eles começaram a levantar hipóteses

sobre o seu possível significado buscando-as no próprio texto (Aluno:

imaginário...profecias / Aluno: tem a ver com profecias?).

Essa é uma questão interessante nesse exemplo. Ao analisarmos as falas dos

alunos, vemos que eles foram buscar no texto a resposta para a pergunta da

professora sobre o significado da palavra vertigem. Ao observarmos o texto (Anexo

04), percebemos que ele se inicia da seguinte maneira:

O ano 2000 chegou sem confirmar as profecias cibernéticas dos livros e filmes de ficção científica, mas com uma boa dose de futurismo em tempo real: aos nossos olhos pululam inovações e conquistas tecnológicas que não conseguimos entender em toda a dimensão.

Percebemos que, logo nas primeiras linhas do texto, está a palavra “profecias”,

a mesma utilizada pelo aluno ao questionar a professora em relação ao significado do

título do texto (Aluno: imaginário...profecias / Aluno: tem a ver com profecias?). Ao

observarmos o início do texto, percebemos que, diante da pergunta da professora

sobre o significado da palavra vertigem, e diante da falta de conhecimento lingüístico

dos alunos acerca do significado de tal palavra, eles recorrem ao texto à procura de

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informações que respondam ao questionamento da professora. Acreditamos que

despertar a curiosidade dos alunos é uma boa forma de provocá-los e conduzi-los à

leitura de textos. Entretanto, nesse exemplo, a curiosidade dos alunos foi tolhida pela

professora a partir do momento que ela rejeitou as hipóteses por eles levantadas

acerca do significado do título do editorial quando respondeu que o significado da

palavra “vertigem” não tinha nenhuma relação com “imaginário” e/ou “profecias”

(Professora: tem não (...)). Acreditamos que essa atitude da professora deve-se a

dois prováveis motivos: 1º) ela não permite que os alunos construam sentidos para os

textos sem que ela os tenha autorizado anteriormente; 2º) a docente pode não ter

planejado que, já nesse momento da aula, os alunos adentrassem no texto e

iniciassem a leitura. Quando se viu diante da “entrada” dos alunos no texto antes do

momento por ela previsto para que isso acontecesse, a professora partiu para o

terceiro momento da aula por nós analisado: durante a leitura oral do texto.

3º MOMENTO: DURANTE A LEITURA ORAL DO TEXTO

A primeira leitura oral do texto foi realizada por uma aluna da turma. Após essa

primeira leitura, a professora iniciou uma segunda leitura oral na qual ela mesma foi

conduzindo a discussão sobre o tema abordado no texto. Vejamos um trecho desse

momento da aula:

EXEMPLO III (...) Professora: ((após a leitura do primeiro período do texto)) quando nós assistimos filme no cinema, de ficção científica, o que o filme nos passa? Aluno: MENTIRA ((os alunos riem)) Professora: por que mentira? Aluno: avanço tecnológico Professora: avanço tecnológico, né? (...)

A professora inicia a discussão novamente buscando o conhecimento de

mundo dos alunos sobre o conteúdo temático, agora, mais especificamente sobre

filmes de ficção científica. Mais uma vez, assim como aconteceu na aula da 7ª série, a

discussão do texto gira em torno do seu conteúdo temático (Professora: ((após a

leitura do primeiro período do texto)) quando nós assistimos filme no cinema, de ficção

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científica, o que o filme nos passa?). Como resposta ao questionamento da professora,

um aluno afirma: Aluno: MENTIRA. A professora, de imediato, questiona o aluno:

Professora: por que mentira?. E obtém como resposta: Aluno: avanço tecnológico,

resposta com a qual ela concorda e aceita: Professora: avanço tecnológico, né?. Ao

observarmos com mais atenção esse diálogo, percebemos que a professora não

espera do aluno a primeira resposta dada por ele. Ela espera, na verdade, a segunda

resposta do aluno, tanto que, ele, ao enunciá-la, recebe de imediato a aceitação por

parte da professora.

Mas, por que isso acontece?

Acreditamos que, após ler o início do texto, que trata dos livros e filmes de

ficção científica e dos avanços tecnológicos dos últimos tempos, a professora espera

que os alunos busquem, agora sim, no texto as respostas aos questionamentos por

ela realizados. A partir do momento que o aluno dá uma resposta “desautorizada” pelo

texto, a professora o conduz à resposta por ela esperada e legitimada. Ou seja, a

construção do sentido, realizada pelo aluno não foi aceita pela professora.

É interessante ressaltar que, mesmo tendo buscado o conhecimento de mundo

dos alunos no início da discussão, a professora não aceita a resposta do aluno que

reflete o seu conhecimento de mundo acerca dos filmes de ficção científica, mas

aceita a resposta dada e buscada por ele no texto. Podemos então fazer a seguinte

leitura: no exemplo III, a professora busca trazer à tona o conhecimento de mundo dos

alunos sobre o tema em questão. Entretanto, tal conhecimento não é aproveitado

como “porta de entrada” para a leitura do texto. Pelo contrário, a professora pede para

que os alunos busquem no texto as respostas por ela esperadas e autorizadas no e

pelo editorial. Em outras palavras: a professora não aproveita o conhecimento de

mundo dos alunos, pois não permite que, a partir dele, os alunos construam sentido

para o texto.

Não discordamos do procedimento de confirmar ou não no texto as leituras que

dele fazemos. Pelo contrário: defendemos que o texto possibilita algumas leituras e

outras não. Entretanto, a primeira fala do aluno no exemplo 03 (“MENTIRA”), se

observada mais atentamente, é sim autorizada pelo texto. Observemos novamente o

início do editorial:

O ano 2000 chegou sem confirmar as profecias cibernéticas dos livros e filmes de ficção científica, mas com uma boa dose de futurismo em tempo real: aos nossos olhos pululam inovações e

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conquistas tecnológicas que não conseguimos entender em toda a dimensão.

Analisando esse trecho do editorial, vemos a afirmação de que as profecias

cibernéticas para o início do século XXI imaginadas pelos diretores dos filmes de

ficção científica não se confirmaram. Ou seja, essas profecias tornaram-se falácias,

que na linguagem do aluno traduziram-se em “mentira”. Lembramo-nos, nesse

momento, das palavras de Iser (1979) sobre o processo de construção dos sentidos

dos textos através do preenchimento dos vazios a partir da interação entre texto e

leitor. Segundo o teórico, interpretar um texto significa projetar algumas características

individuais no preenchimento dos vazios. Essa projeção pode ser prejudicial quando o

leitor interpreta um texto apenas a partir dessa projeção e esquece que esse texto tem

em si alguns sentidos pré-determinados. Para Iser, quando isso acontece, não há

interação entre texto e leitor, pois não há influência recíproca entre esses dois

constituintes essenciais do processo de leitura. Entretanto, como vimos nesse trecho

da aula, a projeção individual do aluno na interpretação do texto não prejudicou o

sentido pré-estabelecido no e pelo texto, mas, mesmo não tendo prejudicado esse

sentido, a leitura realizada pelo aluno não foi aceita pela professora.

Esse exemplo evidencia o quanto a fala dos alunos é desprezada em sala de

aula e o quanto essa fala é importante na construção dos sentidos dos textos, basta

que estejamos atentos a ela e as suas inúmeras possibilidades de leituras.

Após seguir dessa forma na leitura e discussão do conteúdo do texto, a

professora finalizou essa etapa do trabalho de compreensão textual voltando ao

significado do título do editorial, fato que caracteriza o quarto momento da nossa

análise.

4º MOMENTO: VOLTANDO AO TÍTULO DO TEXTO

EXEMPLO IV

(...) Professora: (...) por que vertigem hein, gente? vertigem é o que? vertigem é::algo passageiro que dá na vista da gente, passa bem rápido (xxx) por que vertigem hein? exatamente, a tecnologia cada dia mais avançada (xxx) Aluno: cada dia a tecnologia está avançando

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Professora: vertigem é algo passageiro, né? Aluno: tinha o videocassete aí já tem o DVD, é um avanço, um avanço medonho né professora? tinha o trem, aí já tem trem bala ((muitas vozes sobrepostas)) (...)

A fala inicial da professora é um questionamento destinado aos alunos acerca

do por que da palavra vertigem intitular um editorial que aborda o tema tecnologia

(Professora: (...) por que vertigem hein, gente?). Logo após esse questionamento e

sem esperar a resposta dos alunos, a professora encadeia outra pergunta: Professora:

vertigem é o que?, voltando, dessa forma, ao questionamento feito aos alunos no

início da aula, antes da leitura do texto, e que ficou para ser respondido após a

realização dessa leitura. Novamente sem esperar que os alunos relacionem o título do

texto ao seu conteúdo para tentar responder o seu questionamento, a professora

define rapidamente o que é vertigem: Professora: vertigem é:: algo passageiro que dá

na vista da gente, passa bem rápido (xxx). Após a definição do termo, a professora

volta a questionar o porquê do título do editorial ser esse: Professora: por que

vertigem hein?, e, mais uma vez, conclui sua fala sem esperar a resposta dos alunos:

Professora: exatamente, a tecnologia cada dia mais avançada (xxx).

Como percebemos, nessa fala da professora, mais uma vez, não houve espaço

para a fala dos alunos, e isso, provavelmente, deveu-se a dois motivos: o primeiro, o

fato de o tempo de aula já está acabando, e segundo, pela impossibilidade, de acordo

com a perspectiva da professora, de os alunos responderem aos questionamentos que

lhes foram feitos. É importante lembrar que os alunos não demonstraram ter

conhecimento lingüístico sobre o significado da palavra “vertigem”, e que por essa

razão, a professora pediu para que eles tentassem descobrir esse significado a partir

da leitura do texto.

É interessante percebermos que um aluno inicia um rápido diálogo com a

professora sobre o significado do título do texto (Aluno: cada dia a tecnologia está

avançando) e parece ir construindo o sentido do título a partir da fala da professora

(Professora: vertigem é algo passageiro, né?). A fala final do aluno parece

exemplificar a junção que ele aparentemente faz entre o fato de a tecnologia avançar

rapidamente e o fato de vertigem ser algo, assim como defendido pela professora, que

também passa rapidamente, assim como a velocidade das inovações tecnológicas

(Aluno: tinha o videocassete aí já tem o DVD, é um avanço, um avanço medonho né

professora? tinha o trem, aí já tem trem bala).

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Como constatamos anteriormente nessa mesma aula, a professora não aceitou

que os alunos construíssem sentidos para o texto diferentes daqueles que ela

construiu e/ou autorizou. Novamente percebemos, nesse momento final da aula, que a

docente não permite que os alunos construam sentidos; ela simplesmente “dá a

resposta”, ela constrói os sentidos dos textos em sala de aula.

Para finalizamos a nossa análise, averiguamos que em relação aos dados

analisados referentes à 8ª série, alguns aspectos são relevantes para a nossa

pesquisa e se assemelham aos dados observados na 7ª série. São eles:

1º) O trabalho com o texto realizado pela docente é bastante superficial, pois

apenas o conteúdo temático (“tecnologia”) é abordado. Não há uma discussão sobre a

estrutura composicional e o estilo do editorial;

2º) Novamente percebemos que o conhecimento de mundo dos alunos é o

ponto de partida para a discussão do texto, mas esse conhecimento não é aproveitado

pela professora para auxiliar na construção de sentido do texto;

3º) Assim como ocorreu na 7ª série, o único aspecto do texto sobre o qual a

professora inicia e conclui uma discussão é sobre o significado do título do texto, mas

essa conclusão é feita sem a aceitação das contribuições dos alunos nessa discussão;

4º) A professora constrói os sentidos dos textos e não permite que os alunos o

façam. Esses sentidos construídos pela docente sempre se realizam de modo

ascendente, ou seja, do texto para o leitor.

Por fim, podemos perceber, a partir das análises das aulas das duas turmas,

que as atitudes da professora e dos alunos em relação à leitura e interpretação de

textos são bastante semelhantes: ela está sempre comandando a construção dos

sentidos dos textos e os alunos simplesmente esperam e aceitam esses sentidos que

ela constrói. Dessa forma, evidencia-se a concepção estruturalista de leitura que

permeia as aulas de Língua Portuguesa dessa professora e que ainda parece estar

presente em muitas das aulas de Língua Materna em nosso país.

Seguem, no próximo capítulo, as nossas considerações finais, momento de

conclusão do nosso trabalho em que retomamos todos os capítulos anteriores e

fazemos uma exposição dos resultados obtidos a partir da nossa análise de dados.

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4. O QUE ESTAMOS CONSTRUINDO? ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS, MAS NÃO CONCLUSIVAS, SOBRE

O CAMINHO PERCORRIDO

A nossa pesquisa, A construção de sentidos nas aulas de leitura: um olhar

sobre a prática, teve como objetivo observar a construção dos sentidos a partir da

leitura de textos em sala de aula. Para concretizá-la, realizamos algumas leituras a

partir das quais construímos o capítulo teórico da nossa pesquisa. Neste, inicialmente,

fizemos um levantamento de algumas importantes características do Interacionismo,

citando estudiosos como Bahktin (1995), Vigotski (2003) e Bronckart (1999). Também

dedicamos uma parte desse capítulo ao objeto de nossa análise: a leitura. Nessa parte

da nossa fundamentação teórica, fizemos um passeio pelas teorias sócio-

interacionistas de leitura de alguns autores, e destacamos a importância dos

pensamentos de Iser (1979) e de Kleiman (2004a), pensamentos estes fundamentais

à nossa análise de dados. Acrescentamos ainda um momento do capítulo teórico

dedicado aos gêneros textuais, pois nas nossas análises, trabalhamos com duas

situações de sala de aula nas quais a docente utilizou alguns gêneros textuais, dentre

eles, um gênero que foi igualmente discutido na 7ª e na 8ª séries: o editorial. No

capítulo dedicado à metodologia, tentamos demonstrar de que maneira se estruturou a

nossa pesquisa e como realizamos as nossas coleta e análise de dados.

Na análise dos dados, observamos alguns fatores, que nos revelaram

determinados aspectos importantes para as nossas considerações finais. São eles:

1) A concepção teórica de leitura que estava subjacente à prática de sala de

aula da docente era a estruturalista. Essa nossa descoberta só foi possível a partir da

observação das aulas da professora, pois, durante a entrevista que realizamos com a

mesma, ela não conseguiu falar sobre nenhuma concepção de leitura que tenha

estudado em sua graduação, especialização ou em algum dos cursos de reciclagem

que tenha participado. Ou seja, percebemos que a professora está trabalhando em

sala de aula sem ter uma percepção clara de que há uma concepção teórica

subjacente à sua prática docente e de que concepção teórica é essa;

2) Nas aulas de leitura em que a docente trabalhou com textos em sala de aula,

apenas o conteúdo temático destes foi discutido e de maneira superficial, restringindo-

se a discussão ao conhecimento de mundo dos alunos. E mais sério ainda, em sua

rotina, a professora iniciava as discussões sobre os conteúdos e não as finalizava,

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ficando em aberto o estudo mais aprofundado do texto. Em muitos momentos, o

próprio objetivo do estudo do gênero editorial, “aprender a identificar a defesa do ponto

de vista”, permanecia distante dos alunos. Estes, por sua vez, pareciam desatentos

nas aulas de leituras; poucos participavam dessas discussões. Em nenhum momento

das aulas que observamos, a professora chegou a fazer uma análise do gênero textual,

pois os demais aspectos constitutivos deste, segundo Bakhtin (1992), estilo e estrutura

composicional não foram abordados;

3) As discussões em sala de aula em torno dos textos partem do e retornam ao

conhecimento de mundo dos alunos, não aprofundando as informações que esses

alunos já têm. Acreditamos que esse é um aspecto que está diretamente relacionado à

concepção teórica da docente. Os conteúdos, nos editoriais trabalhados em sala de

aula, estavam relacionados a assuntos que os alunos conheciam (epidemia de dengue

e novas tecnologias). Do ponto de vista da textualidade, seria importante o destaque

para a estrutura composiconal e o estilo desses textos, relacionando-os aos suportes

onde eles circulam, à função social que eles exercem e ao público ao qual se destinam.

Todo esse percurso suscitará, naturalmente, sentidos na leitura. E essa abordagem

não aconteceu justamente porque a professora parece não ter um conhecimento

teórico mais aprofundado sobre os gêneros textuais;

4) A professora construiu os sentidos dos textos em sala de aula e restringiu a

participação dos alunos nesse processo. Na maioria das vezes, os alunos esperavam

que ela fornecesse “a interpretação correta” do que foi lido. Dessa forma, a

interpretação final dos textos era sempre dela. Os alunos participavam apenas

contribuindo com o seu conhecimento de mundo sobre os temas tratados nos textos e

pareciam ter receio ou estarem acomodados diante das discussões desses temas. A

atitude dos alunos de esperar “a leitura correta” nos evidencia que, tanto professora

quanto alunos, não trabalham com textos numa perspectiva sócio-interacionista de

leitura em que mais de um sentido é permitido para os textos;

5) Na prática, a dimensão da complexidade do processo de construção de

sentidos a partir da leitura de textos se evidencia. Como vimos, esse processo engloba

desde os aspectos formais relativos à língua, até os aspectos referentes ao

conhecimento sócio-discursivo dos sujeitos leitores. E essa complexidade nos conduz

a uma importante conclusão acerca do processo de construção de sentidos em sala

de aula: se não observarmos atentamente os textos com os quais trabalhamos, se não

estivermos atentos às suas possibilidades de leitura, se não acolhermos as

interpretações dos nossos alunos, se não imprimirmos outra perspectiva de leitura na

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sala de aula, nós poderemos estar tolhendo a capacidade interpretativa e crítica dos

alunos, tanto dentro quanto fora da sala de aula. As várias possibilidades de leitura de

um mesmo texto estão relacionadas às diversas possibilidades de ver e compreender

o mundo em que vivemos. Se aprendemos na escola que podemos ler um mesmo

texto de várias maneiras, também podemos perceber mais facilmente que os

acontecimentos do mundo à nossa volta podem ser interpretados de maneiras

diferentes. E, para nós, esse é o princípio do respeito ao outro, da aceitação das

diferenças, e, conseqüentemente, do caminho para o estabelecimento de uma

sociedade menos preconceituosa e mais pacífica. Nessa perspectiva, ler não é apenas

construir sentidos, mas sim, compreender mais ampla e conscientemente a sociedade

em que vivemos.

Após observarmos as aulas que aqui foram analisadas, nos cabe fazer um

questionamento: qual a função dos textos nas aulas de língua materna? O que vimos

foram aulas de leitura em que a própria leitura não existia. Os textos eram utilizados

apenas como um apoio para a discussão de temas já conhecidos pelos alunos e que,

por essa razão, não lhes despertava tanto interesse. Sabemos que a presença dos

textos nas aulas de língua materna vem crescendo. É grande a quantidade de

diversos textos e gêneros nos livros didáticos utilizados nas aulas do Ensino

Fundamental. Entretanto, o trabalho realizado com esses textos em sala de aula ainda

é reflexo de uma formação docente baseada numa concepção estruturalista. Segundo

Geraldi (2003, p. 112), a sala de aula precisa ser transformada num espaço de

construção de sentidos, e para tanto:

Trata-se agora de reconstruir, em face de uma leitura de um texto, a caminhada interpretativa (grifo do autor) do leitor: descobrir por que esse sentido foi construído a partir das pistas (grifo do autor) fornecidas pelo texto.

É necessário, portanto, criar espaços para essa voz. Ouvir a palavra do outro é

condição para que a utilização do texto nas aulas de língua materna seja uma

atividade democrática e consciente de produção de sentidos. O cerne da produção de

sentido está na relação entre o texto e o compreendido, se não temos acesso ao

compreendido, não perceberemos os sentidos que poderão ser construídos. Além

disso, os sentidos não são construídos sem que haja uma explicação para tal. Eles

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são construídos em confrontos de relações sócio-históricas do sujeito com o texto. A

construção do sentido implica uma relação com a cultura, com a história, com o social

e com a linguagem. E nessas aulas, parece-nos que faltou abertura a essas

condições para que se produza a construção de sentidos.

Como constatamos, por mais que as discussões sobre a importância da leitura

e da construção de sentidos nas aulas de língua portuguesa estejam presentes nos

meios acadêmicos, elas ainda parecem um pouco distantes da prática de sala de aula

da grande maioria dos professores do Ensino Fundamental. A distância entre teoria e

prática pode ser um dos motivos dessa disparidade. O que fazer, então, para que a

teoria ande lado a lado com a prática de sala de aula? Acreditamos ser esta uma

questão também complexa, mas muito pode ser feito a partir dos cursos de

Licenciatura numa oferta de trabalho direcionado para esse fim: a aplicação prática de

teorias no Ensino Fundamental. Muitos professores universitários levam para a sala de

aula suas pesquisas de Pós-Graduação ou teorias com que trabalham sem construir

um elo com a prática no Ensino Fundamental, resultando na formação de profissionais

que conhecem um pouco da teoria, mas não conseguem estabelecer uma prática

correlata.

Muito já se disse sobre ensino de leitura e, como vimos, há muito ainda a se

dizer e principalmente, a se fazer. Dessa pesquisa, surgiu o desejo de se conhecer os

mecanismos pelos quais se põe em jogo um determinado processo de significação,

isto é, detectar na interação texto/leitor os mecanismos de produção de sentido e

acreditamos que a corrente literária da Estética da Recepção em muito pode auxiliar

os estudos Lingüísticos nesse sentido. Estabelecer a coerência entre fundamentação

teórica e ação prática no ensino da leitura, tornar-se um sujeito leitor de diversos

gêneros e instituir o sujeito leitor em sala de aula são posturas de ensino de leitura

numa visão interacionista que ainda estão na margem da sala de aula e se nosso

trabalho contribuiu um pouco para trazê-las mais para o centro, sentimos que um

objetivo foi alcançado: aumentar a reflexão sobre a prática da leitura na sala de aula.

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___________. A formação do professor: perspectivas da lingüística aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 2001.

KOCH, I. e ELIAS, V. Ler e compreender os sentidos dos textos. São Paulo: Contexto, 2006. MARCUSCHI, L. A. Gêneros Textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, A. & BEZERRA, M. A. (orgs.). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro. Lucerna. 2002. p. 19-36. MORATO, E. M. O Interacionismo no campo lingüístico. In: MUSSALIN, F. (org.). Introdução à Lingüística: fundamentos epistemológicos. São Paulo: Cortez, 2004, p. 331-351.

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PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS DE LÍNGUA PORTUGUESA 3º e 4º ciclos. Brasília: MEC, 1998. VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ZILBERMAN, R. A Estética da Recepção no horizonte dos anos 60. In: ZILBERMAN, R. Estética da Recepção e História da Literatura. São Paulo: Ática, 2004. p. 8-11.

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C837c Costa, Melissa Raposo. A construção de sentidos nas aulas de leitura: um olhar

sobre a prática / Melissa Raposo Costa.- João Pessoa, 2007. 116p.

Orientadora: Evangelina Maria Brito de Faria Dissertação (Mestrado) – UFPB/CCHLA 1. Linguagem e Ensino. 2. Ensino de Língua Portuguesa.

3. Leitura. 4. Construção de sentidos. 5. Textos.

UFPB/BC CDU: 800.1(043)

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