A Construção de Uma Política de Promoção Da Igualdade

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A Construção de Uma Política de Promoção Da Igualdade

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  • OrganizadoraLuciana Jaccoud

    A Construo de uma Poltica de Promoo da Igualdade Racial:

    uma anlise dos ltimos 20 anos

    Braslia 2009 ipea Instituto de PesquisaEconmica Aplicada

  • Governo Federal

    Ministro de Estado Extraordinrio de Assuntos Estratgicos Roberto Mangabeira Unger

    Secretaria de Assuntos Estratgicos

    Fundao pblica vinculada Secretaria de Assuntos Estratgicos, o Ipea fornece suporte tcnico e institucional s aes governamentais possibilitando a formulao de inmeras polticas pblicas e programas de desenvolvimen-to brasileiro e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus tcnicos.

    PresidenteMarcio Pochmann

    Diretor de Administrao e FinanasFernando FerreiraDiretor de Estudos MacroeconmicosJoo Sics Diretor de Estudos SociaisJorge Abraho de CastroDiretora de Estudos Regionais e UrbanosLiana Maria da Frota CarleialDiretor de Estudos SetoriaisMrcio Wohlers de AlmeidaDiretor de Cooperao e DesenvolvimentoMrio Lisboa Theodoro

    Chefe de GabinetePersio Marco Antonio Davison

    Assessor-Chefe da Assessoria de ImprensaEstanislau Maria de Freitas JniorAssessor-Chefe da Comunicao InstitucionalDaniel Castro

    Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria

    URL: http://www.ipea.gov.br

  • OrganizadoraLuciana Jaccoud

    A Construo de uma Poltica de Promoo da Igualdade Racial:

    uma anlise dos ltimos 20 anos

    Braslia 2009 ipea Instituto de PesquisaEconmica Aplicada

  • Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ipea 2009

    A construo de uma poltica de promoo da igualdaderacial : uma anlise dos ltimos 20 anos / organizadora:Luciana Jaccoud. - Braslia: Ipea, 2009.233 p. : grfs., tabs.

    Inclui bibliografia.ISBN 978-85-7811-020-8

    1. Discriminao Racial. 2. Igualdade Social. 3. Desigual-dade Social. 4. Polticas Pblicas. 5. Brasil. I. Jaccoud, Luciana de Barros. II. Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada.

    CDD 305.800981

    As opinies emitidas nesta publicao so de exclusiva e de inteira responsabilidade dos autores, no exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estratgicos.

    A produo editorial desta publicao contou com o apoio financeiro da Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (Seppir).

    permitida a reproduo deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reprodues para fins comerciais so proibidas.

  • SUMRIO

    PREFCIO .......................................................................................................................................7

    APRESENTAO ..........................................................................................................................9

    INTRODUO.............................................................................................................................11

    CAPTULO 1ENTRE O RACISMO E A DESIGUALDADE: DA CONSTITUIO PROMOO DE UMA POLTICA DE IGUALDADE RACIAL (1988-2008) ................................................19

    CAPTULO 2DESIGUALDADE RACIAL E CONSTRUO INSTITUCIONAL: A CONSOLIDAO DA TEMTICA RACIAL NO GOVERNO FEDERAL (1995-2005) ....................................93

    CAPTULO 3A POLTICA DE PROMOO DA IGUALDADE RACIAL NO GOVERNO FEDERAL EM 2006 E O PROGRAMA DE COMBATE AO Racismo Institucional ......................147

    CAPTULO 4A POLTICA DE PROMOO DA IGUALDADE RACIAL NO GOVERNO FEDERAL NO PRIMEIRO SEMESTRE DE 2007 E OS PROGRAMAS DE AO AFIRMATIVA NAS UNIVERSIDADES PBLICAS .......................................................................................171

    CAPTULO 5A POLTICA DE PROMOO DA IGUALDADE RACIAL NO GOVERNO FEDERAL EM 2007 E AS POLTICAS UNIVERSALISTAS ................................................205

  • PREFCIO

    Ministro Edson Santos

    O racismo impede o livre exerccio da cidadania e o acesso democrtico ao de-senvolvimento. Deve, portanto, ser eliminado para permitir que o pas se desen-volva com equidade social. Para tanto, torna-se necessria a aplicao de aes afirmativas, que se definem como polticas voltadas concretizao do princpio constitucional da igualdade e neutralizao dos efeitos da discriminao racial.

    O princpio da igualdade, ou da no discriminao perante a lei, foi tido durante muito tempo como a garantia da concretizao da liberdade. A im-portncia deste princpio inquestionvel. No entanto, no suficiente que o Estado se abstenha de praticar a discriminao em suas leis. Pois cabe a ele favo-recer a criao de condies que permitam a todos se beneficiar da igualdade de oportunidades. Por isso, preciso tratar os desiguais de forma desigual, elevando os desfavorecidos ao mesmo patamar de partida dos demais.

    A Constituio Federal de 1988, pela primeira vez em nossa histria, apre-sentou os caminhos legais para a superao do racismo e das desigualdades. Tan-to por criminalizar a prtica do racismo, quanto por prescrever, em seu captulo sobre os objetivos fundamentais da Repblica, que dever do Estado promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao.

    A aplicao das polticas de aes afirmativas, descritas e analisadas nesta publicao do Ipea, importante passo neste sentido. Trata-se de medidas que surgem para superar as expresses contemporneas do racismo e da discrimina-o racial, e tambm para reparar os fatores que impediram a plena emancipao da populao negra no perodo ps-abolio. Pois no houve, por exemplo, uma reforma agrria que garantisse aos negros o acesso terra. E tampouco lhes foi assegurado o acesso educao, o que lhes permitiria, alm da ascenso intelec-tual, assumir posies mais qualificadas entre as atividades econmicas da ento nascente indstria nacional. Desta forma, os negros permaneceram excludos.

    Indiscutivelmente, ainda hoje a maioria dos pobres brasileiros negra. Esta condio , ao mesmo tempo, causa e consequncia, em um crculo vicioso que se autoalimenta. A viso da pobreza associada ao negro, pelo prisma do racismo, atribui ao prprio negro as causas de sua condio, seja por acomodao, seja

  • pela falta de qualidades para a ascenso social. E, desta forma, a pobreza dos ne-gros e sua ausncia dos espaos de poder poltico e produo de conhecimento foi naturalizada ao longo de nossa histria. Motivo pelo qual ainda hoje raro encontrar negros em espaos de poder e deciso.

    Compreender o processo de aplicao das polticas de promoo da igual-dade racial, que ganharam fora nos ltimos 20 anos por meio das sucessivas ad-ministraes federais, , portanto, fundamental para que possamos aperfeioar os mecanismos capazes de tornar nossa sociedade mais justa e equilibrada sob o ponto de vista das relaes tnicas.

  • APRESENTAO

    Mrcio Pochmann

    Dando continuidade ao esforo de reflexo sobre a temtica racial no Brasil, o Ipea apresenta o livro A construo de uma poltica de promoo da igualdade racial: uma anlise dos ltimos 20 anos. Esta publicao rene captulos selecio-nados sobre o tema da igualdade racial, anteriormente apresentados no boletim Polticas Sociais: acompanhamento e anlise (BPS), produzidos pela Coordenao de Estudos Raciais da Diretoria de Estudos Sociais (Disoc).

    importante lembrar que os surpreendentes e inaceitveis patamares de desigualdade entre brancos e negros, que ainda hoje delimitam o perfil da so-ciedade brasileira, tm sido objeto de permanente debate na instituio, dando origem a um amplo conjunto de estudos e publicaes. neste contexto que o BPS incluiu, a partir de sua stima edio, um captulo dedicado ao tema, pro-porcionando um rico manancial de informaes e de anlises, sobretudo para os pesquisadores e demais interessados.

    A iniciativa de reunir os captulos sobre igualdade racial do BPS traz uma viso panormica sobre a questo racial no Brasil, possibilitando ao leitor o aces-so a informaes importantes sobre a trajetria desta questo ao longo das duas ltimas dcadas. Assim, no esteio dos debates que devero pautar a realizao da II Conferncia Nacional de Promoo da Igualdade Racial, e com vista a imprescindvel mobilizao de esforos para consecuo das orientaes por ela emanadas, a presente publicao intenta colaborar com um conjunto sistemati-zado de informaes sobre questes de relevo, em prol do aperfeioamento das polticas pblicas e da reduo das desigualdades raciais no pas.

  • INTRODUO

    Luciana Jaccoud

    Os textos reunidos nesta publicao foram elaborados entre 2006 e 2009 e lan-ados no boletim Polticas Sociais: acompanhamento e anlise (BPS), publicao semestral do Ipea. Eles fazem parte do trabalho permanente e sistemtico de acompanhamento das polticas pblicas voltadas promoo da igualdade racial realizado pela Coordenao de Estudos Raciais da Diretoria de Estudos Sociais (Disoc). Este trabalho tem como objetivo primeiro sistematizar informaes so-bre iniciativas, programas e aes desenvolvidos pela esfera federal e voltadas reduo das desigualdades raciais, incluindo aquelas dirigidas ao combate ao racismo e discriminao racial. Visa tambm permitir a constituio de um quadro geral, mesmo que preliminar, que abarque o conjunto destas iniciativas, de forma a possibilitar uma aproximao abrangente do esforo realizado no mbito federal. Neste sentido, este trabalho se prope ainda a apresentar uma primeira leitura sobre a sua significncia, impactos, desafios e perspectivas.

    As informaes reunidas, assim como as anlises realizadas, no se limitam ao tratamento das iniciativas governamentais. Elas tambm se estendem con-figurao e ao desenvolvimento do debate pblico sobre o tema da igualdade racial. Este debate foi apresentado sociedade brasileira pelo movimento negro, que defendeu, de forma renovada nas ltimas dcadas, a necessidade no apenas de combater o racismo, mas de efetivar instrumentos de promoo da igualdade racial. Tais demandas provocaram a ampliao do reconhecimento da relevncia do tema do racismo e da discriminao racial como fenmenos sociais ativos na sociedade brasileira, diante do qual, entretanto, levantaram-se resistncias e oposies. Este novo contexto foi marcado por progressiva afirmao do objeti-vo da promoo da igualdade racial como meta poltica e tema organizador de polticas pblicas. Assistiu-se igualmente a um amplo movimento de reinterpre-tao da questo racial e de seu papel na configurao da desigualdade brasileira, que tambm abarcado no esforo de anlise aqui reunido.

    Dessa forma, os textos apresentados no atual volume renem informaes bastante variadas, e cabe observar que o escopo destes no se mantm sempre o mesmo. De fato, os cinco captulos aqui agrupados so produto de uma atividade rotineira de acompanhamento do processo de implementao das polticas de promoo da igualdade racial. Contudo, por terem sido publicados

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    em sequncia, a cada semestre, entre agosto de 2006 e meados de 2009, estes captulos respondem a duas propostas distintas, que definiram a sua ordem de publicao neste volume. De um lado, temos dois captulos que integraram edies especiais do BPS e que foram reunidos na primeira parte deste livro. Na segunda parte, temos os trs captulos que atendem ao formato tradicional do BPS, de acompanhamento semestral das polticas sociais.

    Os captulos que compem a primeira parte deste livro tm um escopo analtico mais amplo e se debruam sobre perodos mais longos de tempo. Eles foram publicados em contextos comemorativos especficos que mobilizaram mais esforos das equipes envolvidas. O primeiro captulo foi elaborado para o BPS no 17 que, em um contexto de comemorao dos 20 anos da Constituio de 1988, buscou realizar uma anlise da trajetria das polticas sociais deste pe-rodo. O segundo captulo integrou o BPS no 13, que teve como desafio realizar um balano da poltica social brasileira de 1995 a 2005.

    A segunda parte deste livro rene os textos publicados nos nmeros 14, 15 e 16 do BPS. Estes trs captulos adotam a estrutura tradicional de organizao dos textos elaborados para as edies ordinrias do BPS. Contam com uma pri-meira seo, dedicada conjuntura. Com o ttulo Fatos relevantes, esta seo busca apresentar ao pblico os eventos que ganharam destaque no semestre em foco. A ela se segue uma segunda seo, dedicada ao acompanhamento da pol-tica e de programas e voltada anlise da implementao das aes federais no campo da promoo da igualdade racial. Uma terceira seo, intitulada Temas em destaque, permite o aprofundamento no tratamento de questes considera-das relevantes para a consolidao daquela poltica.

    Se cada um destes textos tem vida prpria, cabe justificar a sua publicao conjunta. Acreditamos que esta permitir ao leitor uma avaliao da trajet-ria cumprida, nestas ltimas duas dcadas, pelo governo federal, no mbito do enfrentamento da questo racial. De fato, o debate sobre a temtica das desi-gualdades raciais, assim como da discriminao racial, tem ganhado progressivo destaque no pas e tem permitido avano da interveno pblica neste campo. Neste processo, a ampliao da demanda por aes de combate ao racismo e ao preconceito racial promoveu o crescimento de instrumentos repressivos, assim como a adoo de aes de cunho valorizativo, compensatrio e afirmativo, e apontou para a construo de uma poltica de promoo da igualdade racial.

    Em decorrncia da ampliao do debate, o prprio tratamento da temtica das desigualdades raciais alterou-se significativamente.A progressiva disponibi-

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    lizao de dados estatsticos permitiu a produo de indicadores que revelam, cada vez com maior acuidade, a relevncia e a gravidade das desigualdades raciais no pas. A promoo da igualdade racial afirmou-se como objeto da interveno governamental, com a crescente emergncia de iniciativas, programas e aes nos diversos campos das polticas pblicas. Este processo foi acompanhado, mais recentemente, com a construo de um quadro institucional especfico voltado promoo da igualdade racial. Assim, em 2003 foi criada a Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (Seppir), com status de ministrio e tendo como objetivo formular e coordenar polticas e articular aes do governo federal de combate discriminao e desigualdade racial. Foram criados ainda o Conselho Nacional de Promoo da Igualdade Racial (CNPIR) e o Frum Intergovernamental de Promoo da Igualdade Racial (Fipir). E passaram a ser realizadas as Conferncias Nacionais de Promoo da Igualdade Racial, tendo ocorrido a primeira em 2005 e a segunda em junho de 2009.

    Contudo, no podemos ainda falar na efetiva consolidao de uma po-ltica de promoo da igualdade racial, estabelecida com clareza no espao das polticas pblicas. A leitura dos captulos produzidos para o BPS aponta para uma poltica em construo. De um estgio embrionrio, identificado nos primeiros esforos de acompanhamento desta temtica no conjunto da ao governamental,1 os captulos aqui reunidos permitem no apenas reconhecer o crescimento do nmero e escopo das iniciativas, como tambm a afirmao de um campo especfico de poltica pblica. Entretanto, muitos obstculos ainda se levantam afirmao da questo racial como objeto relevante e necessrio da atuao pblica. O primeiro a ser lembrado refere-se minimizao do problema racial brasileiro. De um lado, ainda se observa, da parte de alguns setores, uma posio de negao do preconceito e do racismo como fenmenos que atuam no acesso diferenciado a oportunidades e tratamento no Brasil. De outro, a associao entre os fenmenos de pobreza e da desigualdade racial tem sido apontada como justificativa para a priorizao da primeira em prejuzo da segunda. Tal viso desconsidera o fato de que estes fenmenos coexistem, mas so distintos, como mostram os dados que apontam a crescente desigualdade entre brancos e negros nos estratos de maior escolaridade e nas posies de maior prestgio social.

    1. O acompanhamento das polticas pblicas voltadas promoo da igualdade racial teve incio na edio n-mero 7 do BPS. Os textos publicados nas edies 7 a 13 do BPS esto disponveis em: .

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    Um segundo conjunto de dificuldades levanta-se no prprio processo de implementao da poltica de promoo da igualdade racial. A anlise da traje-tria das iniciativas federais voltadas ao enfrentamento do problema racial tem apontado para a existncia de um conjunto de dificuldades, entre as quais se podem indicar a descontinuidade, a limitada cobertura e a ainda insuficiente coordenao. Ao lado destas dificuldades, referentes gesto, deve-se destacar a complexidade do problema em foco. Os programas, as aes e os instrumentos de combate desigualdade racial enfrentam um conjunto variado de fenme-nos, tais como a discriminao direta, a discriminao indireta, o chamado ra-cismo institucional e o preconceito racial. Enfrenta-se, ainda, o prprio racismo como formulao que sustenta a ideia de uma hierarquia entre grupos raciais. Distinguir este conjunto de fenmenos e enfrent-los permitir no apenas combater o processo de concentrao da populao negra nos segmentos mais baixos da estratificao social, como tambm superar um dos mais importantes fatores atuantes no processo de produo e reproduo da desigualdade social que marca a sociedade brasileira.

    Cabe lembrar ainda o destaque dado, nas anlises que sero apresentadas nos prximos captulos, ao tema da transversalidade. Entre as dificuldades que se apresentam consolidao das iniciativas federais no mbito da promoo da igualdade racial, destaca-se a natureza essencialmente transversal que deve marcar uma poltica neste campo. Como apontam de forma recorrente os dados estatsticos, as desigualdades entre brancos e negros esto presentes nas mais diversas esferas da vida social, sejam escolas, universidades, locais de trabalho, instituies de sade, de segurana pblica, sejam instncias judiciais. No res-tam dvidas de que a afirmao de uma poltica de promoo da igualdade racial depende da mobilizao de instituies e agentes pblicos responsveis por dife-rentes polticas. Assegurar que a perspectiva racial esteja presente nos processos de planejamento, monitoramento e avaliao das polticas pblicas no significa a alterao nos objetivos especficos de cada uma destas polticas. Ao contrrio, implica a plena realizao destes objetivos, na busca da equidade e na promoo de oportunidades iguais aos diversos grupos sociais e raciais.

    Todos esses aspectos, discutidos nos trabalhos aqui reunidos, merecem ser objeto de reflexo aprofundada. Contudo, cabe ainda ressaltar que os dados apresentados neste volume indicam tambm para a efetividade dos avanos j realizados. Em primeiro lugar, as ltimas dcadas assistiram ao fim da invisibi-lidade da questo racial. A emergncia deste tema no debate pblico significou importante avano no processo de reflexo e compreenso da sociedade brasi-

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    leira sobre um dos seus mais importantes mecanismos de excluso e promoo da desigualdade social. Em segundo lugar, as iniciativas pblicas que vm sendo adotadas, descritas nos captulos que se seguem, permitem dar incio ao en-frentamento do preconceito no mbito de diferentes instituies, como as que integram o sistema de ensino e o sistema de sade pblica. Questionamentos comeam a ser levantados no que diz respeito ao perfil desigual de trabalhadores em certos setores da economia, ao mesmo tempo em que se promove a diversi-ficao da elite brasileira por meio das aes afirmativas adotadas pelas universi-dades pblicas. Tais iniciativas, que devem ser complementares a um progressivo avano na qualidade e cobertura das polticas universais, tm sinalizado para um caminho de ampliao da equidade nas oportunidades, de reduo das desigual-dades e de democratizao dos espaos e recursos sociais.

    Como j citado, o livro est organizado em cinco captulos. O primeiro voltado anlise do processo, ocorrido nos ltimos 20 anos, de afirmao do objetivo da promoo da igualdade racial como meta poltica e como objeto de polticas pblicas. Ele tem como marco a Constituio de 1988, que reconhe-ceu, de forma indita, a incompatibilidade do racismo e do preconceito racial com os objetivos fundamentais da Repblica. O captulo acompanha a retoma-da da mobilizao social e a emergncia de uma nova formulao da questo racial no Brasil durante os anos 1980 e seu impacto sobre o texto constitucional. Aborda o tratamento da temtica racial pela Constituio Federal e, acompa-nhando as dcadas de 1990 e 2000, relata a trajetria de progressiva ampliao da interveno pblica nos campos do combate discriminao e da promoo da igualdade racial, seja no mbito da legislao, das polticas pblicas, seja da emergncia de instituies. Procura ainda resgatar os elementos centrais do de-bate atual sobre a questo racial, tal como ele tem se expressado no legislativo federal, no judicirio e na opinio pblica.

    O segundo captulo, partindo da apresentao de um diagnstico sobre a evoluo da desigualdade racial no perodo de 1995 a 2005, dedica-se a apresen-tar um balano das iniciativas do governo federal neste perodo. Traa o processo de construo institucional em torno do tema e procura apresentar as principais aes empreendidas pelo governo federal, destacando as reas de educao, mer-cado de trabalho, sade e quilombolas.

    O terceiro captulo dedica-se ao ano de 2006, apresentando um relato dos programas e projetos em curso, com destaque para o Programa Brasil Qui-lombola e para o Programa de Promoo da Igualdade de Oportunidade para

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    Todos, do Ministrio Pblico do Trabalho (MPT). O captulo trata ainda de experincias de combate discriminao indireta e ao racismo institucional, que apontam para formatos promissores de desenvolvimento de polticas na rea.

    O quarto captulo aborda os fatos relevantes do primeiro semestre de 2007. Alm de traar um quadro geral sobre programas desenvolvidos nas reas de educao, sade e populao quilombola, o captulo destaca o papel das ins-tituies de promoo da igualdade racial Seppir, CNPIR e Fipir e suas tarefas nos campos da formulao, articulao, mobilizao e coordenao da poltica de igualdade racial. Este captulo apresenta ainda um debate sobre a juventude negra e o acesso ao ensino superior. Descreve o quadro das universidades p-blicas que, em 2007, implementavam aes afirmativas, destacando a crescente adeso a estes instrumentos, a multiplicidade de modelos adotados e a relevncia destes mecanismos para a democratizao do acesso ao ensino superior e para a ampliao do acesso da juventude negra s universidades no Brasil.

    Por fim, o quinto captulo aborda o ano de 2007, com destaque, nos fatos relevantes, temtica racial como pauta presente em trs conferncias nacionais: de Polticas para as Mulheres; de Segurana Alimentar e Nutricional; e de Sade. Na seo de acompanhamento de polticas e programas, so tratadas as iniciativas nos campos da sade, da educao com destaque para a implementao da Lei no 10.639/2003 e do Programa Brasil AfroAtitude e da economia solidria, alm do Programa Brasil Quilombola. Na parte final, abordado o processo de reorganizao das polticas sociais brasileiras que segue a promulgao da Cons-tituio de 1988 e seu impacto sobre a populao negra. So assim discutidos o papel e os limites das polticas universais no combate s desigualdades raciais.

    Cabe ainda lembrar que o tema da juventude negra tratado em dois ca-ptulos. Alm do quarto captulo, j citado, o primeiro captulo apresenta um exerccio de acompanhamento da trajetria das crianas nascidas entre os anos de 1987 e 1988 e que atualmente completam seus 21 anos, resgatando sua evoluo na escola e no mercado de trabalho. Destaca tambm a evoluo dos indicadores de educao e renda neste perodo. Os dados apresentados destacam o enorme desafio que se apresenta sociedade brasileira para dotar de perspecti-vas positivas o futuro da juventude negra, assim como permitir-lhe o desenvol-vimento de suas potencialidades. Marcados por trajetrias interrompidas e pela perspectiva de marginalizao social, no apenas a juventude negra a vtima deste quadro perverso. A sociedade brasileira, alimentando a desigualdade e a

  • 17uma anlise dos ltimos 20 anos

    excluso social, ainda se permite abrir mo da capacidade e da possibilidade de contribuio deste grupo e d continuidade ao processo pernicioso de limitar a integrao e interao social entre os seus diversos segmentos.

    Finalmente, cabe expressar agradecimentos queles cujo trabalho e apoio foram essenciais para que este livro pudesse vir luz. Aos colaborado-res dos captulos, cuja competncia e dedicao viabilizaram o trabalho aqui apresentado. Ao conselho editorial do BPS, cujo interesse e cujas cuidadosas leituras de cada um dos textos aqui publicados em muito contribuiu para sua melhoria. equipe do editorial do Ipea, que mais uma vez se mobilizou e, com a competncia habitual, possibilitou que esta edio fosse viabilizada em curto prazo. Seppir, cujo apoio permitiu tornar realidade esta publicao.

  • CAPTULO 1

    ENTRE O RACISMO E A DESIGUALDADE: DA CONSTITUIO PRO-MOO DE UMA POLTICA DE IGUALDADE RACIAL (1988-2008)XXXX

    1 APRESENTAO

    No Brasil, em que pese a centenria presena da temtica racial no debate pol-tico, recente o reconhecimento da promoo da igualdade racial como objeto da interveno governamental. Examinando o significativo intervalo que separa os dias atuais do momento em que foi extinta a escravido de africanos e seus descendentes no pas, constata-se que, para o ressurgimento atual da temtica da desigualdade racial e sua incluso nas polticas pblicas, foram muitas discusses travadas, paradigmas e explicaes superadas, dogmas abandonados e compre-enses reformuladas.

    Este captulo tem como objetivo tratar da promoo da igualdade racial como meta poltica e tema organizador de polticas pblicas. Este foi um processo ocorrido nos ltimos 20 anos que se assenta no tratamento dado temtica racial pela Constituio Federal promulgada em 1988. De forma indita, o texto cons-titucional reconhece o racismo e o preconceito racial como fenmenos presentes na sociedade brasileira, sustentando a necessidade de combat-los. Defende ainda a promoo da igualdade como meta da Repblica, assim como determina a va-lorizao dos diferentes grupos que compem a sociedade brasileira. Contudo, a incluso do tema racial na agenda das polticas pblicas responde tambm a outro movimento histrico. Este foi fruto de um esforo inovador do movimento social negro no sentido de estimular, no debate pblico, a necessidade no apenas de combater o racismo, mas de efetivamente atuar na promoo da igualdade racial. E, neste sentido, ele foi acompanhado por amplo movimento de reinterpretao da questo racial e de seu papel na configurao da desigualdade brasileira.

    O captulo procura, assim, na segunda seo, recuperar as mudanas de interpretaes e de paradigmas que permitiram a emergncia de uma nova

  • 20 A Construo de uma Poltica de Promoo da Igualdade Racial

    configurao da questo racial no Brasil durante os anos 1980 e seu impacto sobre o texto constitucional. A terceira seo trata da trajetria de progressiva ampliao da interveno pblica nos campos do combate discriminao e da promoo da igualdade racial, seja no mbito da legislao, seja da emergncia de instituies. Tal trajetria discutida luz das mudanas observadas no de-bate sobre a questo racial ocorrida na dcada de 1990. A quarta seo enfatiza a diversidade das iniciativas desenvolvidas pelo governo federal na ltima dcada. Em que pese seu carter ainda inicial, os esforos que vm sendo realizados dia-logam com diferentes aspectos do processo de reproduo das desigualdades ra-ciais, desde a luta contra esteretipos e preconceitos ao enfrentamento do racismo institucional, passando pelos instrumentos de promoo do acesso da populao negra a determinados espaos da vida social. A quinta seo procura resgatar os elementos centrais do debate atual sobre a questo racial, tal como ele tem se expressado no legislativo federal, no judicirio e no debate pblico. A sexta seo pretende reunir alguns elementos de reflexo sobre a trajetria recente das desi-gualdades raciais no Brasil, resgatando indicadores que permitam acompanhar a gerao de negros e brancos nascidos no perodo da elaborao da Constituio de 1988, assim como as tendncias gerais de insero de brancos e negros em campos especficos da vida social educao, trabalho e renda nos ltimos 20 anos. Por fim, a stima seo apresenta das concluses finais do texto, destacando o desafio que se impe ao pas para, enfrentando a discriminao e a desigualdade racial, lanar as bases de uma sociedade mais integrada, solidria e justa.

    2 A DCADA DE 1980 E O MARCO DA CONSTITUINTE

    2.1 Antecedentes histricos

    No sculo XIX, ainda que a elite colonial brasileira no tenha organizado um sis-tema de discriminao legal ou uma ideologia racista que justificasse as diferen-tes posies dos grupos raciais, esta compartilhava um conjunto de esteretipos negativos em relao ao negro que amparava sua viso hierrquica de sociedade. Neste contexto, o elemento branco era dotado de uma positividade que se acen-tuava quanto mais prximo estivesse da cultura europeia. Cultivavam-se este-retipos ligados raa e ao ideal de branqueamento que operaram ativamente enquanto vigorou a escravido.

    A abolio tampouco significou o incio da desconstruo dos valores asso-ciados s designaes de cor. Ao contrrio, no apenas se observou a continui-dade de fenmenos do preconceito e da discriminao racial, como estes foram

  • 21uma anlise dos ltimos 20 anos

    fortalecidos com a difuso das teses do chamado racismo cientfico. A adoo pela elite brasileira de uma ideologia racial teve incio nos anos 1870, tendo se tornado plenamente aceita entre as dcadas de 1880 e 1920. A disseminao das teses racistas no Brasil e sua reconstruo na forma de ideologia racial ocor-reram, no perodo final da escravido, enquanto estava em curso o processo de adaptao da sociedade mudana do status jurdico dos negros.

    A formulao e a consolidao da ideologia racista ocorridas neste perodo permitiram a naturalizao das desigualdades raciais que foram, assim, reafirma-das em novo ambiente poltico e jurdico. Como destaca Mattos (2000), a abo-lio coincide com o nascimento da Repblica (1889) e com a disseminao das ideias de igualdade e cidadania que lhe so associadas.1 A coincidncia entre a expanso dos princpios republicanos e liberais e a adeso s formulaes racistas parece refletir a dificuldade ento observada para operar o direito individual e o reconhecimento da cidadania em uma sociedade fundamentalmente hierrqui-ca. O enfrentamento do problema racial brasileiro seria, pois, identificado como exigncia nacional e associado ao princpio de que somente um pas branco seria capaz de realizar os ideais do liberalismo e do progresso.

    A aceitao da perspectiva de existncia de uma hierarquia racial e o re-conhecimento dos problemas imanentes a uma sociedade multirracial deram sustentao no apenas s polticas de promoo da imigrao, como tambm valorizao da miscigenao. A tese do branqueamento como projeto nacional surgiu, no Brasil, como forma de conciliar a crena na superioridade branca com a busca do progressivo desaparecimento do negro, cuja presena era inter-pretada como um mal para o pas. diferena do racismo cientfico, o ideal do branqueamento sustentava-se em um otimismo em relao mestiagem e aos povos mestios, reconhecendo a expressiva presena do grupo identificado como mulato, aceitando a sua relativa mobilidade social e sua possibilidade de continuar em uma trajetria em direo ao ideal branco.

    O ideal de branqueamento consolida-se mesmo com o enfraquecimento das teorias deterministas de raa, observado durante as dcadas de 1920 e 1930. As elites nacionais percebiam a questo racial de forma cada vez mais positiva: o Brasil parecia branquear-se de maneira significativa, e o problema racial se encaminhava para uma soluo. o que apontam, por exemplo, os de-bates parlamentares que acompanharam a apresentao, ainda nos anos 1920,

    1. MATTOS, Hebe Maria. Escravido e cidadania no Brasil monrquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

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    de projetos de lei, na Cmara dos Deputados, visando impedir a imigrao de indivduos da cor preta. Seus opositores reuniam no apenas os que identifi-cavam um teor racista nestes projetos, mas tambm aqueles que os considera-vam incuos, pois a trajetria recente j assegurava que o negro estava fadado ao desaparecimento no pas em horizonte prximo. Este mesmo discurso encontrado ainda nos debates da Assembleia Constituinte de 1934.

    Aps os anos 1930, as teorias racistas e o projeto de branqueamento fo-ram progressivamente sendo substitudos pela chamada ideologia da democracia racial. Nesta nova formulao da questo racial, que se consolida aps os anos 1950, destaca-se a dimenso positiva da mestiagem e afirma-se a unidade do povo como produto da miscigenao racial. Com a mistura das raas e a fuso dos grupos presentes na formao da Nao, haveria espao para o nascimen-to de uma sociedade integrada, mesmo que socialmente heterognea. A demo-cracia racial forneceu nova chave interpretativa para a realidade brasileira da poca: a recusa do determinismo biolgico e a valorizao do aspecto cultural, reversvel em suas diferenas. O enfraquecimento do discurso das hierarquias raciais e sua gradual substituio pelo mito da democracia racial permitiram a afirmao e a valorizao do povo brasileiro. Todavia, cabe lembrar que tal anlise, ancorada na cultura, no implica a integral negao da inferioridade dos negros. De fato, se por um lado o iderio da democracia racial busca deslegiti-mar a hierarquia social fundamentada na identificao racial, por outro refora o ideal do branqueamento e promove a mestiagem e seu produto, o mulato. Ao mesmo tempo, ao negar a influncia do aspecto racial na conformao da desigualdade social brasileira, ela representou um obstculo no desenvolvimento de instrumentos de combate aos esteretipos e preconceitos raciais que continu-avam atuantes na sociedade, intervindo no processo de competio social e de acesso s oportunidades.

    O no reconhecimento da discriminao racial como fenmeno ativo na sociedade brasileira e como objeto legtimo da preocupao pblica comeou a ser duramente questionado durante a dcada de 1970. No perodo de 1964 at fim da dcada de 1970, houve grande refluxo nos movimentos sociais de militncia antirracista.2 O perodo dos governos militares caracterizou-se pela

    2. Apesar das dificuldades no pas, militantes do movimento negro brasileiro participaram de congressos e eventos do movimento negro mundial, tais como: VI Congresso Pan-Africano (Dar-es-Salaam, 1974); I Reunio da Unio de Escritores Africanos & Encontro para Alternativas Africanas (Dacar, 1976); I Congresso de Cultura Negra das Amricas (Cali, 1977); II Congresso de Cultura Negra das Amricas (Panam, 1980), e outros. O Brasil sediou ainda o III Congresso de Cultura Negra das Amricas, ocorrido na cidade de So Paulo, em agosto de 1982.

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    negao da existncia de um problema racial no Brasil, e sua abordagem pas-sou a ser definida como questo de segurana nacional. Neste contexto, at mesmo a pergunta sobre cor foi eliminada do Censo Demogrfico de 1970.3 A suposta irrelevncia da questo justificaria o fato de o governo militar con-firmar o Brasil como ser signatrio de trs importantes tratados internacionais antidiscriminatrios: a Conveno 111 da Organizao Internacional do Traba-lho (OIT) Concernente Discriminao em Matria de Emprego e Profisso (1968); a Conveno Relativa Luta contra a Discriminao no Campo do Ensino (1968); e a Conveno Internacional sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao (1969), e a se fazer presente nas duas conferncias mundiais contra o racismo em 1978 e 1983.4

    No esteio da mobilizao em prol do restabelecimento da democracia, o tema volta ao cenrio poltico, trazido pelo movimento negro que se reorgani-zava. Como consequncia do processo de abertura poltica, a vitria eleitoral da oposio ao regime militar nas eleies municipais e estaduais da dcada de 1980 veio acompanhada pela criao de conselhos e rgos de assessoria que, em alguns estados e municpios do pas, tinham como objetivo atuar na defesa e promoo da populao e da cultura negra.5 Tem incio a presena institucional da temtica racial na organizao pblica brasileira.

    Havia, at ento, enorme dificuldade de dilogo das organizaes do mo-vimento social negro com outras organizaes que defendiam a democracia e o fim do regime autoritrio. Ainda que pudessem ser registradas algumas parcerias estratgicas no perodo da abertura democrtica, a pauta da discri-minao racial permaneceu desprestigiada pelos partidos de oposio, princi-palmente os de esquerda, e pelas organizaes sindicais, para as quais a questo racial era secundria em relao a uma preconizada centralidade da luta de classes. Apesar de seu progressivo reconhecimento, as desigualdades raciais ainda eram largamente interpretadas pelo ngulo da pobreza e como resultado de um acmulo de carncias da populao negra, que impactavam em seu suposto despreparo para participar do mercado de trabalho moderno, que se consolidava gradativamente no pas.

    3. Ver a respeito ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em So Paulo (1888-1988). Bauru: EDUSC, 1998. Ver tambm HASENBALG, Carlos. Entre o mito e os fatos: racismo e relaes raciais no Brasil. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (Org.). Raa, cincia e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, CCBB, 1996. 4. Conforme JACCOUD, Luciana; BEGHIN, Nathalie. Desigualdades raciais no Brasil: um balano da interveno governamental. Braslia: Ipea, 2002.5. Ver a respeito SANTOS, Ivair. O movimento negro e o Estado (1983-1987). So Paulo, Prefeitura de So Paulo, 2006.

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    Dessa forma, se o movimento social negro participou ativamente da luta contra o regime autoritrio em fins dos anos 1970 e incio dos anos 1980, seus parceiros de luta contra a ditadura no apoiaram a formao de uma efetiva frente de apoio luta antirracista no mesmo perodo. Reprimida pela situao, que entendia a discusso racial como questo de segurana nacional, e rejei-tada pela oposio, que compreendia a partir do vis econmico a questo da desigualdade, a bandeira da luta contra o racismo antinegro foi mantida pelas organizaes oriundas da comunidade negra e por algumas das lideranas negras envolvidas em movimentos populares.6

    Apesar dos esforos desses movimentos para tal, a negao de uma questo ra-cial no Brasil e o silncio sobre a mesma continuaram, nessa poca, sendo uma regra, no s para a elite dirigente brasileira, mas tambm para a maioria das organizaes da sociedade civil (partidos polticos, centrais sindicais, sindicatos de trabalhadores, sindicatos de empresrios, movimentos sociais, igrejas catlica e protestante entre outros). Mesmo entre essas ltimas, foram raras as instituies que enxergaram uma questo racial no pas.7

    A dcada de 1980, entretanto, assiste a uma ampla mobilizao em torno da questo racial. Em 1978, havia sido criado o Movimento Negro Unifica-do (MNU), em ato pblico, nas escadarias do Teatro Municipal de So Paulo, com a presena de mais de duas mil pessoas. Nos anos subsequentes, observa-se, alm da expanso de ncleos do MNU nos estados, criao de inmeras entidades negras, ao aparecimento de jornais e proliferao de encontros de militantes e entidades.8 Reproduzem-se encontros regionais em todo o pas9 e surgem campanhas nacionais como a que se organizou sob o lema No dei-xe sua cor passar em branco ou a Campanha da Fraternidade de 1988.10 J em 1980, o movimento negro organizou a primeira subida Serra da Barriga, onde havia sido instalado por cerca de 100 anos o Quilombo dos Palmares.

    6. Ver a respeito SANTOS, Sales A. dos. Movimentos negros, educao e aes afirmativas. Tese (Doutorado em Sociologia) Universidade de Braslia, Braslia, 2007. 7. Santos (2007, p. 138-139). 8. GARCIA, Janurio. 25 anos 1980-2005: movimento negro no Brasil. Braslia: Fundao Cultural Palmares, 2006; e ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amlcar Arajo (Org.). Histrias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: Pallas, 2007.9. De 1981 a 1990, ocorreram dez Encontros de Negros do Norte e do Nordeste. Tambm foram realizados encontros similares reunindo militantes das regies Sul e Sudeste (1987, 1989, 1990) e da regio Centro-Oeste (1988, 1989, 1991). Cabe, ainda, citar a realizao do I Encontro Nacional de Mulheres Negras, ocorrido no Rio de Janeiro em 1988, e do I Encontro Nacional das Entidades Negras, ocorrido em 1991 em So Paulo. 10. A campanha No deixe sua cor passar em branco visava mobilizar a populao para responder ao quesito de autoidentificao da cor no Censo de 1991. A Campanha da Fraternidade de 1988 da Igreja Catlica organizou-se sob o lema Ouvi o clamor desse povo negro.

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    Neste processo, como lembra Garcia (2006), o termo negro resgatado e dotado de nova significao: Negro tornou-se uma palavra de ordem, de re-construo da dignidade, de desenvolvimento da auto-estima. Transformamos desqualificao na qualificao maior de nossa identidade.11

    De fato, o tema da identidade assume grande importncia no processo de reorganizao do movimento negro. A denncia do racismo vinha associada demanda por respeito cultura dos descendentes de africanos e da afirmao de sua identidade especfica. A negao, pela sociedade brasileira, do valor da herana cultural e histrica negra repercute na reivindicao de uma cidadania baseada na preservao e valorizao das tradies culturais de origem africa-na, na reinterpretao da histria e na denncia de todos os fatores de desen-raizamento e de alienao que atingem a populao negra.12 Como destaca DAdesky (2001), o movimento negro que surge no fim da dcada de 1970 no apenas denuncia a imagem negativa do negro na sociedade brasileira desde os livros escolares mdia em geral , como assume e enaltece a histria de seus ancestrais, resgatando uma nova base da qual deve emergir uma identidade do negro, sujeito de sua histria e de sua cultura.

    Com a proximidade da instalao da Assembleia Constituinte, amplia-se a mobilizao social e multiplica-se a realizao de encontros com o intuito de construir propostas visando promoo da populao negra e ao combate ao racismo e discriminao racial. Hlio Santos, que ocupava o cargo de pre-sidente do Conselho da Comunidade Negra de So Paulo, foi nomeado, em 1985, representante da populao negra na Comisso de Estudos Constitucio-nais. Esta comisso, popularmente conhecida como Comisso de Notveis, foi estabelecida pelo presidente Jos Sarney com o intuito de formular, no prazo de dez meses, o anteprojeto da Constituio.13

    Ainda em 1986 ocorre o I Encontro de Comunidades Negras Rurais do Ma-ranho com o tema O negro e a Constituio, que foi seguido por outros eventos similares. No mesmo ano, organizaes do movimento negro realizam em Braslia a Conveno Nacional do Negro pela Constituinte, contando com a presena de

    11. Garcia (2006, p. 23).12. DADESKY, Jacques. Racismos e anti-racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2001, p. 151. 13. A reivindicao pela participao de ao menos um representante da populao negra na Comisso de Estudos Constitucionais foi levada ao ento governador de So Paulo, Franco Montoro, durante ato do Conselho da Comu-nidade Negra em repdio ao regime de apartheid da frica do Sul. Aps a nomeao de Hlio Santos, o Conselho da Comunidade Negra passou a mobilizar uma articulao nacional das propostas do movimento negro para serem includas no anteprojeto (SANTOS, 2006).

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    representantes de 63 entidades dos movimentos negros brasileiros de 16 estados da Federao brasileira, com um total de 185 inscritos. O documento ento aprovado foi entregue aos constituintes e entre as reivindicaes apresentadas encontram-se a criminalizao do racismo e o direito posse de suas terras pelas comunidades quilombolas, temas que sero mais tarde acolhidos no texto constitucional.

    O ano de 1988 foi marcado no apenas pelos trabalhos da Assembleia Constituinte, mas tambm por representar os 100 anos da abolio da escravi-do no Brasil. A data, de alta significao simblica, foi objeto de ampla mo-bilizao do movimento negro, culminando com a organizao de marchas em vrias localidades. Na cidade do Rio de Janeiro, a Marcha contra a farsa da abolio: nada mudou, vamos mudar, embora autorizada pelo governo local, chegou a ser proibida pelo Exrcito brasileiro.14

    Nesse perodo de crescente mobilizao, assistiu-se, no mbito do governo federal, ao aparecimento de uma primeira instituio, visando ao tratamento da temtica racial. Em 1988, foi criada a Fundao Cultural Palmares (FCP),15 organismo federal voltado promoo e preservao da influncia negra na sociedade brasileira. Ligada ao Ministrio da Cultura, tinha tambm entre seus objetivos a identificao das comunidades remanescentes de quilombos e o apoio demarcao e titulao de suas terras. Durante muitos anos, a FCP agre-gou as responsabilidades pela poltica direcionada populao negra, apesar de seu vis predominantemente cultural e da falta dos mecanismos necessrios para o cumprimento adequado de seus objetivos.

    O surgimento dessa fundao simboliza, em nvel federal, a inaugurao de uma nova etapa no tratamento da questo racial. Esta temtica passa a ser reconhecida como portadora de demandas de reconhecimento e legitimidade, que se expressam na adoo da data de 20 de novembro como dia da conscincia negra e no reconhecimento de Zumbi como heri nacional, ambos resultado do esforo empreendido pelas organizaes negras.16 Tais conquistas, ainda que tenham tido importante valor simblico, estavam, entretanto, bastante aqum dos anseios da populao afro-brasileira da poca.

    14. Ver a respeito SILVA, Joselina da. A mobilizao do movimento negro brasileira. In: SILVA, Joselina da et al. Zumbi + 10/2005: o perfil dos participantes. Laboratrio de Polticas Pblicas, UERJ, 2006 (Srie Ensaios & Pesquisa 6). 15. A Fundao Cultural Palmares nascida da Comisso do Centenrio da Abolio da Escravatura no Ministrio da Cultura. 16. O dia 20 de novembro atualmente celebrado oficialmente em mais de 200 cidades brasileiras de todas as regi-es do pas. Zumbi dos Palmares est inscrito oficialmente no livro do Pantheon dos Heris Nacionais, desde 1996, por meio da aprovao da Lei no 9.315.

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    Produto desse contexto, a Constituio Federal de 198817 participa do di-logo direto com a temtica da discriminao racial. Tendo como marco a afirma-o da igualdade, o combate aos preconceitos, o repdio ao racismo e a defesa da pluralidade e da liberdade de culto, o texto constitucional trata do racismo, reconhecido como crime inafianvel e imprescritvel, e da diversidade cultural da Nao como aspecto a ser reconhecido e valorizado. Neste sentido, ela d continuidade trajetria iniciada durante os anos 1980, quando a denncia contra o racismo e a reafirmao e valorizao da cultura negra apresentavam-se como elementos centrais da estratgia poltica do movimento negro, e ao questionamento da ideologia da democracia racial. Outro grande avano foi o reconhecimento dos territrios quilombolas, abrindo-lhes a possibilidade do direito posse de suas terras.

    2.2 A Constituio e a questo racial

    Como j destacado, no mbito da temtica racial, a Constituio de 1988 tratou com destaque os temas da discriminao racial, da diversidade cultural e do re-conhecimento dos direitos da populao remanescente de quilombos.18 O texto constitucional reconheceu o racismo como crime inafianvel e imprescritvel. Reconheceu ainda os territrios quilombolas como bem cultural nacional, ao mesmo tempo em que admitiu o direito posse de suas terras aos remanescentes daquelas comunidades. Afirmou a diversidade cultural como patrimnio co-mum a ser valorizado e preservado.

    O combate s desigualdades raciais no foi objeto de tratamento especfico pela Constituio Federal. Entretanto, como tem destacado a bibliografia sobre o tema, a centralidade dada aos princpios da dignidade da pessoa humana (Art. 1o), da reduo das desigualdades (Art. 3o), da promoo do bem de todos (Art. 3o), da recusa de qualquer forma de preconceito ou discriminao (Art. 3o), da prevalncia dos direitos humanos (Art. 4o) e da defesa da igualdade (Art. 5o), permitiu o aco-lhimento no apenas do repdio ao racismo (Art. 5o, inciso XLII), mas de ampla

    17. Para ver aspectos do tratamento dado questo negra em constituies anteriores ver NASCIMENTO, Abdias; NASCIMENTO, Elisa Larkin. O negro e o Congresso Nacional. In: MUNANGA, Kabengele (Org.). Histria do negro no Brasil o negro na sociedade brasileira: resistncia, participao e contribuio. Braslia: Fundao Cultural Palmares/CNPq, 2004. v. 1.18. Concretizaram-se as primeiras trs reivindicaes do Manifesto da Conveno Poltica do Negro de 1945 e do programa do Teatro Experimental do Negro (TEN) anunciado no jornal Quilombo: a Constituio Cidad anuncia a natureza pluricultural e multitnica do pas (Art. 215, 1o), estabelece o racismo como crime inafianvel e im-prescritvel (Art. 5o, inciso XLII). Alm disso, determina a demarcao das terras das comunidades remanescentes de quilombos (Art. 68, Disposies Transitrias). (NASCIMENTO; NASCIMENTO, 2004, p. 143).

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    defesa da justia, do combate aos preconceitos e da defesa da pluralidade, todos com transbordamento direto questo racial.19 A isonomia de que trata a Constituio brasileira no apenas formal, mas configura uma verdadeira meta para o Estado, que deve agir positivamente para promov-la.20 Reconhecendo que a igualdade racial no faz parte da realidade social brasileira, o texto constitucional prope, ao contrrio, que esta deve ser meta e objetivo da ao do Estado e da sociedade.21

    Nesse sentido, como vem sendo reconhecido por analistas do tema, ape-sar de sua utilizao ainda limitada, ampla a potencialidade transformadora da Constituio no campo racial.22 Deve ser lembrada a proibio da diferena salarial ou admisso por motivos de cor (Art 7o, inciso XXX), e a garantia de uma educao sem preconceitos (Art. 227). Destaca-se, principalmente, a ga-rantia do princpio da igualdade no mais entendido a partir do pressuposto liberal da restrita defesa da liberdade, mas ampliado para a garantia de direitos que assegurem o exerccio destas liberdades fundamentais. Parte-se da premissa de que a igualdade um objetivo a ser perseguido atravs de aes e polticas pblicas, e que, portanto, ela demanda iniciativas concretas em proveito dos grupos desfavorecidos.23 O texto constitucional brasileiro abraa, assim, os prin-cpios da promoo da igualdade e do combate a discriminaes e preconceitos. A Constituio aponta ainda para os instrumentos de defesa de direitos difusos ou coletivos, em que se incluem a defesa dos direitos dos grupos tnicos minori-trios. A relevncia dada pelo reconhecimento de que a defesa de direitos no se restringe queles afetos aos indivduos, mas se estende aos direitos de grupos sociais especficos ou de direitos afetos coletividade como um todo.24 Neste sentido, cabe ao Ministrio Pblico federal a atuao na proposio de aes civis pblicas em prol dos interesses das minorias, o que vem efetivamente permitindo uma ao inovadora em defesa da promoo da igualdade racial, como ser tra-tado na seo 5 deste captulo.

    19. SARMENTO, Daniel. Direito constitucional e igualdade tnico-racial. In: PIOVESAN, Flvia; SOUZA, Douglas. Ordem jurdica e igualdade tnico-racial. Seppir, PUC-SP, 2006. SILVA JR., Hdio. Direito de igualdade racial. So Paulo: Juarez de Oliveira, 2002.20. Sarmento (2006, p. 63). 21. ROCHA, Carmem Lcia Antunes. Ao afirmativa: o contedo democrtico do princpio da igualdade jurdica, Revista Trimestral de Direito Pblico, n. 15, 1996.22. Sarmento (2006) e Silva Jr. (2002).23. Sarmento (2006, p. 66).24. Esse reconhecimento teve incio com a aprovao da Lei no 7.347/1985 e foi reforado pelo texto constitucional. Ver a respeito BARBOSA, Joaquim. O uso da lei no combate ao racismo: direitos difusos e as aes civis. In: GUIMA-RES; HUNTLEY (Org.). Tirando a mscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. So Paulo: Paz e Terra, 2000.

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    Cabe ainda ressaltar o reconhecimento dado pela Constituio plu-ralidade tnica/racial da populao brasileira. Ao estabelecer a necessidade de fixao das datas comemorativas significativas para os diferentes seg-mentos tnicos nacionais (Art. 215) e o acolhimento das contribuies de diferentes culturas e etnias para a formao do povo brasileiro no ensino de Histria (Art. 242), no apenas se reconhece a diversidade da formao nacional, como se aponta a necessidade de acolh-la nos eventos culturais e prticas educacionais.

    3 O PERODO PS-CONSTITUINTE E A CONSOLIDAO INSTITUCIONAL DA TEMTICA RACIAL

    Aprovada a Constituio, observa-se um efetivo movimento de regulamen-tao do texto constitucional. Projetos de lei tipificando os crimes e suas penas tm sido apresentados e aprovados no Congresso Nacional, apro-fundando o tratamento legal como instrumento de combate discrimina-o. Mas o perodo ps-constituinte assiste tambm emergncia de um conjunto absolutamente novo de intervenes pblicas. Incentivados por uma crescente mobilizao do movimento negro, e por um contexto inter-nacional em que o debate em torno do racismo e da discriminao ganham destaque, programas so formulados, instituies so criadas, ao mesmo tempo em que tem incio um instigante debate por aes afirmativas. Este perodo marca a emergncia da promoo da igualdade racial como objeto da ao pblica.

    3.1 A legislao contra a discriminao racial

    A demanda pelo enquadramento criminal do racismo no nova na sociedade brasileira. O primeiro projeto de lei que se conhece sobre o tema de autoria do senador Hamilton Nogueira e foi apresentado Assembleia Constituinte de 1946. Tendo por base o manifesto resultante da Conveno Nacional do Negro,25 Nogueira elaborou um projeto que tornava crime a discriminao racial. Os constituintes rejeitaram a proposta, utilizando, entre outros argu-mentos, a carncia de provas reais da existncia de discriminao racial no pas.

    25. A conveno foi promovida pelo Teatro Experimental do Negro e ocorreu em 1945, em So Paulo, e em 1946, no Rio de Janeiro. Seu manifesto foi entregue aos partidos polticos participantes da Constituio de 1946. NAS-CIMENTO, Abdias. Teatro experimental do negro: trajetria e reflexes. Estudos Avanados, So Paulo, v. 18, n. 50, jan./mar. 2004.

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    Mas, nos anos seguintes, eventos de grande repercusso na mdia26 legitimaram o reconhecimento da discriminao racial, se no como crime, ao menos como contraveno penal. A Lei Afonso Arinos, aprovada em 1951, foi a primeira pea da legislao federal voltada ao enfrentamento do problema da discrimina-o no Brasil.27 Mas sua proposio no teve como motivao o reconhecimento do processo persistente ou sistemtico de discriminao sofrida pela populao negra do pas, mas, ao contrrio, os eventos de discriminao sofridos por es-trangeiros no pas.28 Entretanto, o seu valor est em ser a primeira e, durante muito tempo, a nica legislao penal que abordava, com vista a uma soluo antirracista, a problemtica racial no Brasil.

    Mas o repdio ao racismo declarado na Constituio de 1988 que mo-bilizou os esforos mais significativos com vista substituio da Lei Afonso Arinos. Nesta nova conjuntura, j em 1989, foi aprovada a Lei no 7.716, de 1989, de autoria do deputado federal Carlos Alberto Oliveira. A chamada Lei Ca prev a punio para atos motivados pelo preconceito de cor ou raa, partindo de um exaustivo trabalho de tipificao daqueles atos.29 Contudo, as-sim como a lei anterior, esta tambm deixar, inevitavelmente, situaes em descoberto. Ainda em desfavor da Lei Ca, aponta-se a ausncia de indica-o aos possveis agentes da discriminao, o que fazia a Lei Afonso Arinos.30

    26. Tiveram repercusso nacional e internacional os seguintes incidentes: em 1947, Irene Diggs, antroploga afro-estadunidense, foi barrada no Hotel Serrador, no Rio de Janeiro. No mesmo ano, um grupo de atores do Teatro Experimental do Negro tiveram sua entrada impedida no Hotel Glria, tambm no Rio de Janeiro, para participao em uma festa organizada pela Sociedade Brasileira dos Artistas para a qual eram convidados. Mas o caso que causou maior constrangimento ocorreu em 1950, quando a coregrafa Katherine Dunham e a cantora Marian Anderson, artistas negras estadunidenses e internacionalmente famosas, foram discriminadas no Hotel Esplanada, em So Paulo. (MEDEIROS, Carlos Alberto. Na lei e na raa: legislao e relaes raciais, Brasil-Estados Unidos. Rio de Janeiro: DP&A, 2004).27. A lei identifica como objeto de punio os atos de recusar hospedagem, acesso, atendimento ou inscrio em escolas por motivo de preconceito de raa ou cor. Institui pena de 15 dias a trs meses de priso, multas ou perda de cargo quando o ator da ao for agente pblico. Sobre as legislaes estaduais e municipais que trataram do tema, ver SILVA JR., Hdio. Anti-racismo: coletnea de leis brasileiras (federais, estaduais e municipais). So Paulo: Oliveira Mendes, 1998.28. Declarou o autor que A oportunidade da apresentao do meu projeto deveu-se exclusivamente a um fato es-candaloso que os jornais veicularam e que se tornou, desde logo, do domnio pblico, qual seja, a proibio instituda ou determinada pela gerncia estrangeira de um luxuoso hotel em So Paulo, de receber como hspede uma grande artista de cor, norte-americana, que tem dedicado a sua vida a apresentar ao mundo, por meio de uma mensagem de arte, as queixas e reivindicaes da raa, oprimida nos Estados Unidos. (NASCIMENTO; NASCIMENTO, 2004, p. 131). 29. Alm dos casos j citados na Lei Afonso Arinos, a Lei Ca determina punio para impedimento de acesso a em-prego, transportes pblicos, entradas sociais de edifcios, assim como para o impedimento ou obstculo a qualquer forma de convivncia social ou familiar. As penas variam de um a cinco anos de priso.30. A Lei Afonso Arinos aponta os agentes de cada contraveno, seja ele o diretor, o gerente, seja o responsvel pelo estabelecimento.

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    Mas, segundo a literatura sobre o tema, os grandes problemas para a aplicabilidade desta lei so outros. 31 De um lado, o rigor determinado pela inafianabilidade e im-prescritibilidade fazem que a lei seja considerada por muitos operadores do direito como excessiva e/ou desproporcional. De outro lado, dificuldades como a de consti-tuir a prova do ato de discriminao ou as resistncias encontradas no interior do sis-tema policial e judicirio em reconhecer a motivao racista dos atos denunciados so alguns dos fatores que explicariam o limitado recurso s normas antidiscriminao.

    Em que pesem as dificuldades citadas, outros dispositivos legais foram apro-vados no Congresso Nacional, visando coibir prticas discriminatrias contra a populao negra. Entre os mais recentes, destaca-se a recente Lei no 9459, de 13 de maio de 2007, conhecida como Lei Paim. Esta lei inclui na Lei no 7.716 o crime de incitao ao preconceito ou discriminao, alm de permitir o reco-nhecimento, pelo Cdigo Penal brasileiro, do crime de injria tambm quando utilizando elementos referentes a raa, cor, etnia, religio ou origem.32

    Entretanto, no decorrer da dcada de 1990, analistas e militantes da ques-to racial passam a destacar, cada vez com maior nfase, outras limitaes no uso da fora repressiva no enfrentamento da discriminao racial. Aponta-se que, ao atacar sobretudo o resultado da discriminao, esta legislao afeta pouco suas causas: o preconceito, o esteretipo, a intolerncia e o racismo. Ao mesmo tempo, deixa intocada a forma mais eficaz e difundida de discriminao: aquela que opera no por injria ou atos expressos de excluso, mas por mecanismos sutis e dissimulados de tratamento desigual. A chamada discriminao indireta, largamente exercida sob o manto de prticas institucionais, atua tambm nas polticas pblicas por meio da distribuio desigual de benefcios e servios.33 Estas preocupaes estaro progressivamente presentes no debate sobre o tema do combate discriminao.

    31. Ver, por exemplo, SILVA JR., Hdio. Reflexes sobre a aplicabilidade da legislao anti-racismo. In: SABOIA, Gilberto Vergne (Org.). In: SEMINRIOS REGIONAIS PREPARATRIOS PARA CONFERNCIA MUNDIAL CONTRA RA-CISMO, DISCRIMINAO RACIAL, XENOFOBIA E INTOLERNCIA CORRELATA. Anais... Braslia, Ministrio da Justia, 2001. Ver, ainda, Medeiros (2004) e Silva Jr. (1998).32. Um dos poucos casos em que houve a efetiva aplicabilidade da legislao, histrico processo de crime racial no Brasil, foi o caso do Siegrifried Ellwanger, condenado em 2003 pelo Superior Tribunal Federal (STF) por prtica de racis-mo pela edio e venda de livros com apologia de ideias preconceituosas e discriminatrias. Embora o caso em ques-to no envolvesse a populao negra diretamente, e sim a comunidade judaica, foi fundamental e emblemtica para aplicao da legislao brasileira que criminaliza o racismo, criando jurisprudncia a respeito da matria sobre crimes raciais. Os votos escritos produzidos pelos ministros do STF esto reproduzidos integralmente em SUPREMO TRIBUBAL FEDERAL. Crime de racismo e anti-semitismo: um julgamento histrico do STF. Braslia: Braslia Jurdica, 2004. 33. Ver a respeito GOMES, Joaquim Barbosa. Ao afirmativa e princpio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

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    3.2 A dcada de 1990 e as novas aes federais

    No campo das aes de governo, nos anos subsequentes promulgao da Constituio federal e criao da FCP, registraram-se poucos avanos no que se refere promoo da igualdade racial por parte do governo federal. Somente em 1995, as iniciativas governamentais voltam a ser observadas, basicamente como decorrncia das presses do movimento negro, sobretudo como resultado da Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo pela Cidadania e a Vida, que mobilizou todo o pas em torno de uma ampla pauta de reivindicaes. Em um movimento distinto do observado at a dcada de 1980, entre 1990 e 1995, como lembra Maria Aparecida Bento,34 as centrais sindicais e os principais sindi-catos brasileiros passaram a incluir a temtica das relaes raciais em sua pauta de reivindicaes, o que se refletiu no apenas na promoo de seminrios, encon-tros, cursos e publicaes, como no aparecimento de rgos internos especficos sobre o tema, como a Secretaria de Pesquisas e Desenvolvimento da Igualdade Racial da Fora Sindical ou a Comisso Nacional contra a Discriminao Racial da Central nica dos Trabalhadores (CUT). Esta mobilizao do movimento sindical culminou com a criao, em novembro de 1995, do Instituto Interame-ricano pela Igualdade Racial (Inspir), cujo primeiro presidente foi Vicente Paulo da Silva, ento presidente da CUT. Tambm entre as Organizaes No Gover-namentais (ONGs), a questo racial passa a marcar presena, seja por meio da criao de entidades especficas voltadas a esta questo,35 seja por meio da inclu-so de projetos voltados ao tema por parte de ONGs com perfil de atuao mais amplo, como o Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas (Ibase).36 Neste contexto ps-constituinte, cabe lembrar a ao organizada dos diversos atores e entidades do movimento negro em torno da campanha No deixe sua cor passar em branco, que visava mobilizar a populao quanto resposta ao quesito de autoidentificao da cor no Censo de 1991.

    Contando com ampla mobilizao do movimento negro e do movimento sindical, a organizao da Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo pela Cidadania e a Vida reuniu em Braslia mais de 30 mil pessoas, entre elas 5 mil dirigentes sindicais,37 pressionando o governo a um compromisso pblico contra a discriminao racial. O documento ento entregue ao governo federal ressalta no

    34. BENTO, Maria Aparecida. Racismo no trabalho: o movimento sindical e o Estado. In: GUIMARES; HUNTLEY (2000).35. Ver a respeito TELLES, Eduardo. Racismo brasileira. Rio de Janeiro: Relume-Dumar/Fundao Ford, 2003, p. 73-74.36. Ver a respeito HERING, Rosana. A agenda anti-racista das ONGs brasileiras nos anos 1990. In: GUIMARES; HUNTLEY (2000).37. Bento (2000, p. 325).

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    apenas o protesto contra as condies subumanas em que vive o povo negro deste pas, mas, principalmente, expressa a demanda por aes efetivas do Estado. 38 Apontando a existncia de racismo na escola, que impede a valorizao positiva da diversidade tnico-racial, denunciando uma diviso racial do trabalho no pas, destacando o acesso diferenciado a polticas pblicas, como no caso da sade, da segurana pblica e da justia, o documento da marcha demanda do Estado a criao de condies efetivas para que todos possam se beneficiar da igualdade de oportunidades como condio de afirmao da democracia brasileira. Para isso, duas linhas de interveno so propostas. De um lado, reclama-se a adoo de medidas de valorizao da pluralidade tnica da sociedade. De outro, apresenta-se um programa de aes visando promoo da igualdade e incluindo a implanta-o de aes afirmativas para o acesso a cursos profissionalizantes e universidades.

    Em resposta mobilizao, o governo FHC instituiu, no Ministrio da Justia (MJ), o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) de Valorizao da Populao Negra, com a incumbncia de propor aes integradas de combate discriminao racial e de recomendar e promover polticas de consolidao da cidadania da populao negra.39 O debate sobre o tema da sade da populao negra tambm ganha espao no GTI, em que foi enfatizada a necessidade de se considerar, no desenho desta poltica, as doenas e os problemas de maior inci-dncia sobre a populao negra. Em 1996, foi elaborado o Programa de Anemia Falciforme do Ministrio da Sade (MS) e comea a ser elaborado o Manual de doenas mais importantes, por razes tnicas, na populao brasileira afrodescenden-te, concludo em 2000. A partir de 2003, comeou a ser discutida a elaborao de uma Poltica Nacional de Sade da Populao Negra.

    Ainda nessa segunda metade dos anos 1990, mas respondendo a pres-ses internacionais, o Ministrio do Trabalho (MT) implementou aes vi-sando ao combate discriminao racial. Em 1992, a CUT, com o apoio das demais centrais sindicais, apresentou Organizao Internacional do Trabalho (OIT) uma reclamao formal contra o governo brasileiro por des-cumprimento da Conveno 111.40 Como resposta, o MT criou, em 1996,

    38. Por uma poltica nacional de combate ao racismo e desigualdade racial: Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo pela Cidadania e a Vida. Braslia: Cultura Grfica e Editora, 1996, p. 9.39. Decreto presidencial de 20 de novembro de 1995.40. Bento (2000, p. 330-331). Adotado pela OIT em 1958, e promulgada pelo Brasil em 1964, a Conveno 111 prev que todos os pases signatrios devem promover a igualdade de oportunidades e de tratamento em matria de emprego e de ocupao, incluindo a recusa de qualquer distino salarial ou diferena de tratamento por motivos de cor ou raa.

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    o Grupo de Trabalho para a Eliminao da Discriminao no Emprego e na Ocupao (GTDEO), e em 1997 lanou o programa Brasil, Gnero e Raa, cujo principal objetivo era a implementao de Ncleos de Promoo da Igualdade de Oportunidades e Combate Discriminao. Contudo, o resultado prtico destas iniciativas foi bastante limitado.41

    Alm disso, o governo federal brasileiro realizou em 1996 o seminrio internacional Multiculturalismo e Racismo: O Papel da Ao Afirmativa nos Estados Democrticos Contemporneos, organizado pelo Departa-mento dos Direitos Humanos, da Secretaria dos Direitos da Cidadania.42 O seminrio foi um marco no debate sobre as aes afirmativas e sua apli-cabilidade. Neste mesmo ano, por meio do Decreto no 1.904, de 13 de maio de 1996, foi institudo o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), que, em seu subitem Populao negra integrante do item Proteo do direito e tratamento igualitrio perante a lei traz propostas de aes afirmativas em conformidade com as apresentadas pelo movimen-to negro no ano anterior.43

    Mas foi somente em 2001, em decorrncia dos desdobramentos da mobi-lizao relacionada realizao, em Durban, da III Conferncia Mundial con-tra Racismo, Discriminao Racial, Xenofobia e Intolerncia Correlata, que o Brasil assumiu o compromisso efetivo de implementar polticas de Estado de combate ao racismo e de reduo das desigualdades raciais, com a adoo de novas iniciativas. A conferncia de Durban havia sido convocada pela Assem-bleia Geral da Organizao das Naes Unidas (ONU), em 1997, em contexto de reviso das aes de combate ao racismo em um mundo em que os conflitos de natureza tnica se intensificavam. Sua realizao foi prevista para setembro de 2001, na frica do Sul, onde a poltica de segregao racial conhecida como apartheid havia vigorado at 1990 e mobilizado os debates das duas confern-cias anteriores. Em resposta Resoluo no 2000/14, da Comisso de Direitos Humanos das Naes Unidas, foi institudo, em setembro de 2000, o Comit Nacional para a Preparao da Participao Brasileira na referida conferncia.

    41. Na prtica, porm, estes ncleos funcionaram efetivamente apenas no combate discriminao e de colocao de pessoas com deficincia no mercado de trabalho: 90% dos atendimentos realizados por ano estavam voltados para a populao com deficincia. Ver a respeito o captulo Igualdade Racial nmero 13 deste peridico.42. A cerimnia de abertura assistiu, pela primeira vez, ao reconhecimento pblico de um presidente brasileiro da existncia de discriminao e desigualdade racial em desfavor dos negros (SANTOS, 2007).43. Trata-se aqui do Programa de Superao do Racismo e da Desigualdade Racial, entregue ao presidente da Rep-blica ao fim da Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, em memria ao tricentenrio da morte de Zumbi, conforme j citado no texto.

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    O processo de organizao previu a realizao de conferncias preparatrias nacionais, assim como de conferncias regionais, tendo o governo brasileiro se comprometido a sediar a reunio regional das Amricas. Contudo, alegando ra-zes oramentrias, o Brasil decidiu posteriormente no mais sediar este even-to, que foi realizado, em dezembro de 2000, em Santiago, no Chile. Previu-se tambm a organizao de uma reunio nacional preparatria, que teve lugar no Rio de Janeiro, em julho de 2001.44

    Tanto para as reunies preparatrias da III Conferncia Mundial como para a Conferncia Regional do Chile e para a Conferncia Nacional, as organizaes do movimento negro desenvolveram intenso esforo de prepa-rao e mobilizao. No Brasil, a Conferncia Nacional contou com mais de 2 mil participantes e foi precedida por reunies preparatrias realizadas em quase todos os estados. No mbito internacional, alm das reunies ofi-ciais preparatrias, como a reunio regional das Amricas, foram realizados encontros entre os movimentos negros de vrios pases, elaborando diagns-ticos, pautas e documentos reivindicativos. As ONGs enviaram entre 150 e 200 representantes conferncia de Durban, que se somaram delegao oficial de mais de 50 representantes.45

    O Brasil tornou-se, assim, signatrio da Declarao de Durban, que em seu Art. 108 dispe:

    Reconhecemos a necessidade de se adotarem medidas especiais ou medidas po-sitivas em favor das vtimas de racismo, discriminao racial, xenofobia e intole-rncia correlata com o intuito de promover sua plena integrao na sociedade. As medidas para uma ao efetiva, inclusive as medidas sociais, devem visar corrigir as condies que impedem o gozo dos direitos e a introduo de medidas espe-ciais para incentivar a participao igualitria de todos os grupos raciais, culturais, lingusticos e religiosos em todos os setores da sociedade, colocando todos em igualdade de condies.46

    O mesmo artigo aponta ainda as medidas especiais a serem adotadas: so aquelas que possibilitem garantir representao apropriada nas instituies de ensino, no emprego, nos partidos polticos, nos parlamentos, nos rgo judi-ciais, na poltica, no exrcito e nos servios civis.

    44. Sobre a preparao da conferncia de Durban, ver Telles (2003, p. 87 e seguintes).45. Dados citados por Telles (2003, p. 92 e 94).46. CONFERNCIA MUNDIAL CONTRA RACISMO, DISCRIMINAO RACIAL, XENOFOBIA E INTOLERNCIA CORRELATA, 3., Declarao de Durban e plano de ao. Braslia: FCP/Ministrio da Cultura, 2001.

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    E efetivamente, como lembra Sarmento,47 foi a partir dos trabalhos preparatrios para a conferncia mundial de Durban que as aes afir-mativas comearam a ser pensadas seriamente como instrumento para a reduo da desigualdade racial no Brasil. Esta nova linha de interveno assentou-se sobre a constatao de que, em que pese o progresso observado na legislao antirracista que havia se desenvolvido durante a dcada de 1980 e 1990, e os avanos registrados na melhoria das condies sociais da populao negra a partir da ampliao do acesso das polticas sociais, os altos ndices de desigualdade racial continuaram praticamente inalterados, exigindo aes especficas.

    3.3 A consolidao institucional da temtica racial

    A conferncia de Durban constituiu efetivo marco para o tratamento das questes raciais no Brasil. Pela primeira vez, o governo brasileiro assumiu, na cena pblica nacional e internacional, a existncia de um problema racial no pas e comprometeu-se com seu enfrentamento. Como resultado, vrias medidas comearam a ser implementadas pelo governo federal. Foi criado o Conselho Nacional de Combate Discriminao Racial (CNCD), ligado Secretaria de Estado de Direitos Humanos, tendo como objetivo incentivar a criao de polticas pblicas afirmativas e proteger os direitos de indivduos e de grupos sociais, raciais e tnicos sujeitos discriminao racial. Ainda em 2001 tiveram incio programas de aes afirmativas em alguns minist-rios que, apesar de seus limitados resultados, destacam-se como as primeiras experincias realizadas no campo por rgos pblicos no pas. Programas de aes afirmativas foram anunciados pelos Ministrios do Desenvolvimento Agrrio, da Cultura e da Justia, determinando o estabelecimento de cotas para negros em cargos de direo, no preenchimento de vagas em concurso pblico, na contratao por empresas prestadoras de servio e por organismos internacionais de cooperao tcnica.48 No Ministrio das Relaes Exterio-res teve incio o programa de bolsas-prmio para a diplomacia, em favor de estudantes negros. E, em maio de 2002, o governo publica o Decreto no 4.228, que institui, no mbito da Administrao Pblica federal, o Programa Nacional de Aes Afirmativas. Contudo, adotadas no fim do governo, tais

    47. Sarmento (2006, p. 77).48. Ver a respeito Jaccoud e Beghin (2002) e Telles (2003).

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    medidas no se efetivaram. Excetuada uma ou outra,49 restaram apenas como referncia e indicaes de possibilidades de aes a serem desenvolvidas.50

    Em 2003, com a posse do novo governo, trs inovaes significativas no que se refere promoo da igualdade racial foram estabelecidas. A primeira foi a instituio da Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (Seppir), com status de ministrio e tendo como objetivo formular e coordenar as polticas para a promoo da igualdade racial e articular as aes do gover-no federal de combate discriminao racial. Em segundo lugar, a criao do Conselho Nacional de Promoo da Igualdade Racial (CNPIR). rgo colegia-do de carter consultivo vinculado Seppir, o CNPIR tem como misso propor polticas de combate ao racismo, ao preconceito e discriminao e de promo-o da igualdade racial.51 Outra iniciativa institucional relevante foi a institui-o, ainda em 2003, do Frum Intergovernamental de Promoo da Igualdade Racial (Fipir). Reunindo organismos executivos estaduais e municipais secre-tarias, coordenadorias, assessorias, entre outras voltados para a questo racial, o frum visa articular os esforos dos trs nveis de governo para implementar polticas de promoo da igualdade racial.

    Entretanto, apesar das mudanas institucionais realizadas representarem efetivo adensamento da ao pblica nesta rea, poucos avanos concretos po-dem ser registrados no enfrentamento das desigualdades e da discriminao. De um lado, no foi dada continuidade aos avanos realizados nas polticas pblicas do perodo anterior, tais como os programas de aes afirmativas nos Ministrios do Desenvolvimento Agrrio, da Cultura e da Justia, assim como, apesar de continuar em vigor, no foi implementado o Decreto no 4.228/2002, que institua o Programa Nacional de Aes Afirmativas. Por outro lado, o nas-cimento das novas instituies, como a Seppir ou o Comit de Sade da Popu-lao Negra do Ministrio da Sade, foi acompanhado pela emergncia de uma tmida gerao de novos programas ou aes. A temtica das aes afirmativas

    49. Como o caso do citado programa do Ministrio das Relaes Exteriores, que opera por meio da oferta de bolsas preparatrias ao concurso do Instituto Rio Branco. 50. Cabe lembrar que, ainda em 2002, foi criado, pelo Ministrio da Educao, o Programa Diversidade na Universi-dade, com o objetivo de estimular e apoiar cursinhos pr-vestibulares promovidos por entidades da sociedade civil. O programa foi uma alternativa ao desenvolvimento de cotas no pas e foi adotado em resposta s crescentes pres-ses em prol do desenvolvimento de polticas de ao afirmativa no ensino superior. Sobre a experincia, ver BRAGA, Maria Lcia; SILVEIRA, Maria Helena (Org.). O Programa Diversidade na Universidade e a construo de uma poltica educacional anti-racista. Braslia: MEC/Unesco, 2007.51. Apesar da criao do CNPIR, o CNCD continua em vigncia, pois sua atuao abarca diferentes tipos de discri-minao, alm da racial.

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    no se imps ao governo federal, que teve como nica iniciativa neste campo o envio ao Congresso Nacional, em 2004, de um projeto de lei sobre a instituio de cotas nas instituies federais de ensino superior. Deve-se enfatizar, porm, que alguns programas especficos foram implementados no Ministrio da Sade e no Ministrio da Educao (MEC), visando ampliar o acesso da populao negra ao SUS e implementar o ensino de histria e cultura afro-brasileira, como ser descrito na seo 4 deste captulo. Em que pese a relevncia destas inicia-tivas, observa-se que elas no fazem parte de um corpo integrado de aes no sentido do enfrentamento das desigualdades e da discriminao racial.

    A ausncia de resultados no se explica pela carncia de orientaes. Em 2003, foi lanada a Poltica Nacional de Promoo da Igualdade Racial pela Se-ppir, indicando, como objetivo primordial, a reduo das desigualdades raciais. Determinava ainda algumas orientaes bsicas, entre as quais se destacam a qua-lificao de gestores pblicos e de professores, a adoo de cotas no ensino supe-rior e no mercado de trabalho, o incentivo a programas de diversidade racial nas empresas e o desenvolvimento de programas de sade para a populao negra. Define, tambm, os princpios norteadores da poltica racial, a saber, a trans-versalidade, a descentralizao e a gesto democrtica. Outras orientaes gerais tambm emergiram da I Conferncia Nacional de Promoo da Igualdade Racial (Conapir), realizada em Braslia, em julho de 2005. Reunindo mais de mil dele-gados de todo o pas, a Conapir aprovou amplo conjunto de propostas, visando subsidiar a elaborao do Plano Nacional de Promoo da Igualdade Racial. Este, entretanto, at o final de 2008, no havia ainda sido concludo pela Seppir, apesar de seu lanamento ter sido inicialmente previsto para novembro de 2005.

    3.4 Aes e compromissos no cenrio internacional

    Alm das j citadas adeses brasileiras a tratados e convenes internacionais que abordam o tema do racismo e da discriminao,52 iniciativas advindas do cen-rio internacional nos ltimos anos tambm vm provocando o governo federal a uma ao mais efetiva na implementao de aes de combate discriminao e de promoo da igualdade racial. Sero aqui lembradas duas importantes ma-nifestaes internacionais ocorridas em 2006, expressando crticas em relao atuao do governo brasileiro e solicitando o efetivo cumprimento dos tratados e acordos internacionais ratificados pelo pas.

    52. Cabe lembrar tambm a adeso brasileira ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos; ao Pacto Inter-nacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais; Conveno sobre a Eliminao da Discriminao Racial; e Conveno sobre a Eliminao da Discriminao contra a Mulher.

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    Em 2006, a Organizao dos Estados Americanos (OEA), por meio de sua Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), condenou o Estado brasi-leiro por ter negado a uma vtima de racismo a garantia de proteo judicial, as-sim como por ter violado o seu direito igualdade perante a lei.53 A manifestao da corte da OEA referia-se denncia apresentada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SP) e pelo Instituto Negro Padre Batista com relao ao caso de Simone Diniz. O caso Simone, como ficou conhecido, sintetiza a trajetria in-frutfera dos esforos de penalizao dos atos de racismo no pas. A trabalhadora domstica apresentou, em 1997, denncia de prtica de discriminao contra um empregador que publicou anncio de emprego de cunho racista em jornal de ampla circulao. O crime no apenas permaneceu impune, como sequer foi acolhido pelo Ministrio Pblico e pelo Juiz de Direito ao qual coube avaliar os autos. Em que pesem os depoimentos colhidos confirmando os fatos e as provas materiais existentes, o processo foi arquivado por ausncia de fundamento.

    A manifestao dirigida ao governo brasileiro acusa o no cumprimento do disposto na Conveno Internacional pela Eliminao de Todas as Formas de Discriminao, em especial os artigos que se referem ao compromisso de condenar a discriminao racial, zelar para que as autoridades o faam e garantir o acesso justia e o tratamento igualitrio perante a lei, sem distino de raa ou cor. Em sua anlise sobre o caso, a CIDH considerou o Estado brasileiro omisso, em funo da falta de diligncias para responder pela violao constata-da. Ilustrando o relatrio com outros casos de discriminao no recrutamento por via de anncios em jornais, apresentou ainda uma srie de recomendaes, entre as quais: reparar a vtima Simone Diniz pelos danos morais e materiais de-correntes do fato em anlise; realizar modificaes legislativas e administrativas para que a legislao antirracismo seja efetiva; adotar medidas de educao dos funcionrios da justia e poltica para evitar o efeito de discriminaes nas inves-tigaes e no processo das denncias; promover compromisso com a imprensa, visando eliminao de publicidades e anncios de cunho racista; e solicitar aos Ministrios Pblicos estaduais a criao de promotorias pblicas especializadas na investigao de crimes de racismo e discriminao racial.

    O Relatrio no 66/2006 da CIDH/OEA no apenas condena o Estado brasileiro por omisso e desrespeito ao direito de acesso Justia, como avalia a legislao nacional que regulamenta o dispositivo constitucional que criminaliza os atos de racismo. Segundo a OEA, a Lei no 7.716/1989,

    53. CDIH/OEA. Relatrio no 66/2006. Disponvel em: .

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    principal dispositivo sobre a matria, exige a explcita prtica do racismo e a inteno do ofensor de discriminar a vtima. Tal exigncia no constrange a discriminao tipicamente brasileira, assentada na ao velada e revestida de cordialidade e a discriminao indireta.

    Nesse sentido, o texto provisrio da Conveno Interamericana contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminao e Intolerncia, em debate na OEA, aprofunda e amplia o conceito de racismo, conforme aponta o Procura-dor Geral do Trabalho Otvio Brito Lopes,54

    Se no mbito penal a OEA prope que a ampliao da considerao legal do racismo siga a linha de prescindir da inteno para comprovar uma atitude racista, bastando um efeito de excluso ou bice com fundamento racial, o ainda provisrio texto da Conveno da OEA aprofunda e amplia ainda mais esse princpio. Ao enunciar em seu Artigo 1o, de modo formal e categri-co, que a discriminao indireta est entre as acepes consideradas pela Conveno, a OEA amplia o conceito de discriminao incluindo qualquer proviso, critrio ou prtica que, intencionalmente ou no, resulte em distin-o, desvantagem, excluso ou restrio dos direitos humanos ou liberdades fundamentais de pessoas pertencentes a grupos especficos, como o de negros e de mulheres.55

    Uma segunda manifestao internacional sobre atuao do governo brasi-leiro no que se refere questo racial ocorreu no mbito da ONU, com a publi-cao do relatrio Racismo, Discriminao Racial, Xenofobia e Todas as Formas de Discriminao, elaborado por Doudou Dine, relator especial das Naes Unidas. O relatrio apresentado Assembleia Geral da ONU, em 2006, destaca o pro-fundo enraizamento da discriminao racial na sociedade brasileira, assim como a persistncia da ideologia da democracia racial. A partir de entrevistas realizadas com autoridades brasileiras, o relatrio destaca a importncia do reconhecimento do problema e de sua da relevncia pelo governo federal, mas aponta as resistncias

    54. A OEA tem discutido o texto da Conveno Interamericana contra o Racismo e Todas as Formas de Discrimina-o e Intolerncia que dever ser aprovado proximamente. O texto em debate prope a incluso, no conceito de discriminao, de prticas que intencionalmente ou no, resultem em desvantagens, excluso e restrio de direitos de grupos especficos. Este caminho j vem sendo trilhado no Brasil por meio do resgate, pelo Ministrio Pblico do Trabalho, da Conveno 111 da OIT e do conceito ali acolhido, de discriminao indireta. Sob esta base, o MPT vem desenvolvendo o Programa de Promoo da Igualdade de Oportunidades para Todos. Ver a respeito LOPES, Otvio Brito. A ampliao do conceito legal de discriminao. Correio Braziliense, Braslia, 26 de maio de 2008. Caderno Direito e Justia.55. Lopes (2008).

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    em outros mbitos da administrao pblica,56 assim como a impunidade dos casos de racismo denunciados Justia. Destaca ainda que viajar pelo Brasil como movimentar-se simultaneamente em dois planetas diferentes, aquele da vi-vaz e colorida mistura de raas nas ruas e outro quase que totalmente branco, dos corredores do poder poltico, social, econmico e da mdia.57 Mesmo em regies de ampla predominncia da populao negra, como o estado da Bahia, constata que no se observa a presena deste grupo nos nveis mais altos de poder. Destaca ainda a folclorizao da cultura e religies negras como mecanismo de obscurecer o preconceito e a discriminao que cerca tais manifestaes.

    O relatrio tambm apresentou um conjunto de recomendaes. Cabe destacar o que se refere ao estabelecimento de uma comisso nacional de alto nvel, com o mandato de avaliar as manifestaes, expresses e consequncias do racismo e da discriminao racial na sociedade brasileira. A partir do trabalho desta comisso, prope a elaborao de um programa nacional de erradicao do racismo e promoo da igualdade racial, integrado Poltica Nacional de Pro-moo da Igualdade Racial. Recomenda o fortalecimento da Seppir e prioridade ao combate violncia a qual esto submetidas as populaes negras, especial-mente os jovens. Por fim, destaca surpresa com a inexistncia, no pas, de um memorial nacional da escravido e sugere que ele seja erigido para prestar ho-menagem aos milhes de vtimas e preservar sua memria na histria brasileira.

    Essas manifestaes de organismos internacionais integram o movimento que tem ganhado fora em todo o mundo, desde o fim da dcada de 1990, de combate discriminao racial e ao racismo. Apoia-se em um diagnsti-co compartilhado por governos e organismos de que a internacionalizao da economia, o crescimento das disparidades econmicas entre pases e regies e o consequente aumento migratrio tm feito crescer o racismo e a xenofobia. Ao mesmo tempo, espelha um reconhecimento, do qual o Brasil tem partici-pado, de que os fenmenos de discriminao perpassam sociedades nacionais e atingem grupos histricos e sociais de forma altamente negativa.

    Em consonncia com esse posicionamento, cabe lembrar que uma dimen-so do texto constitucional, ainda no destacada, que transborda de forma efetiva

    56. A visita do relator ao Brasil foi realizada em outubro de 2005. O ento governador de Pernambuco, por exemplo, declarou ao relator que o racismo no um problema no Brasil, como seria comprovado pelo fato de o pas ter dolos negros no futebol e na msica. DINE, Doudou. Relatrio Racismo, Discriminao Racial, Xenofobia e Todas as Formas de Discriminao. Braslia: ONU/PNUD, 2006, p. 9.57. Idem, p. 19.

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    para a exigncia da ao do Estado diante do tema da desigualdade e da discrimi-nao racial. a que diz respeito ao reconhecimento legal dos direitos humanos enunciados em tratados internacionais em que o Brasil seja signatrio.58 Ainda em 1968, o Brasil ratifi