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AS AÇÕES AFIRMATIVAS E OS PROCESSOS DE PROMOÇÃO DA IGUALD ADE EFETIVA JOAQUIM BENEDITO BARBOSA GOMES FERNANDA DUARTE LOPES LUCAS DA SI LVA

ART as ações afirmativas e os processos de promoção da igualdade efetiva

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  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

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    AS AES AFIRMATIVAS E OS

    PROCESSOS DE PROMOO DA IGUALDADE EFETIVAJOAQUIM BENEDITO BARBOSA GOMESFERNANDA DUARTE LOPES LUCAS DA SILVA

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    Srie Cadernos do CEJ , 2486

    Nos ltimos tempos, tm sido

    propostos, no CongressoNacional, diversos projetos de

    lei visando introduo, no Direito bra-

    sileiro, de algumas modalidades de

    ao afirmativa. Esses projetos, apre-

    sentados por parlamentares das mais

    diversas tendncias ideolgicas,2 em

    geral buscam mitigar a flagrante desi-

    gualdade brasileira atacando-a naquiloque para muitos constitui a sua causa

    primordial, isto , o nosso segregador

    sistema educacional, que tradicional-

    mente, por diversos mecanismos, sem-

    pre reservou aos negros e pobres em

    geral uma educao de inferior quali-

    dade, dedicando o essencial dos recur-

    sos materiais, humanos e financeirosvoltados educao de todos os bra-

    sileiros, a um pequeno contingente da

    populao que detm a hegemonia po-

    ltica, econmica e social no Pas, isto

    , a elite branca. Outros projetos, con-

    cebidos no louvvel af de tentar re-

    mediar os aspectos mais visveis e po-

    liticamente incmodos da nossa tristeiniqidade, tentam combater a desi-

    gualdade e a discriminao em seto-

    res especficos da atividade produtiva,

    instituindo cotas fixas para negros nes-

    se ou naquele setor da vida scio-eco-

    nmica.

    Esses projetos, como se sabe, vi-

    sam a instituir medidas compensat-rias destinadas a promover a implemen-

    tao do princpio constitucional da

    igualdade em prol da comunidade ne-gra brasileira.

    O tema de transcendental im-

    portncia para o Brasil e para o Direito

    brasileiro, por dois motivos. Primeiro,

    por ter incidncia direta sobre aquele

    que seguramente o mais grave de

    todos os nossos problemas sociais (o

    qual, curiosamente, todos fingimos ig-norar), o que est na raiz das nossas

    mazelas, do nosso gritante e enver-

    gonhador quadro social ou seja, os

    diversos mecanismos pelos quais, ao

    longo da nossa histria, a sociedade

    brasileira logrou proceder, atravs das

    mais variadas formas de discriminao,

    excluso e ao alijamento dos negrosdo processo produtivo conseqente e

    da vida social digna. Em segundo lu-

    gar, por abordar um tema nobre de Di-

    reito Constitucional Comparado3 e de

    Direito Internacional, mas que , curio-

    samente, negligenciado pelas letras ju-

    rdicas nacionais, especialmente no

    mbito do Direito Constitucional.Assim, neste despretensioso ensaio

    tentaremos examinar (ainda que sem a

    reflexo de long ue haleineque o tema

    requer) a possibilidade jurdica de intro-

    duo, no nosso sistema jurdico, de

    mecanismos de integrao social larga-

    mente adotados nos Estados Unidos sob

    a denominao de af f irm at ive ac t ion(ao afirmativa) e na Europa, sob o

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    nome de discr iminat ion po si t ive(discri-

    minao positiva) e de action posi t ive(ao positiva).

    Trata-se, com efeito, de tema qua-

    se desconhecido4 entre ns, tanto em

    sua concepo quanto nas suas mlti-

    plas formas de implementao. Da a

    necessidade, de nossa parte, de algu-

    mas consideraes acerca da sua gne-

    se, dos objetivos almejados, da proble-mtica constitucional por ele suscitada,

    das modalidades de programas e dos

    critrios e condies indispensveis a

    sua compatibilizao com os princpios

    constitucionais.

    1 AO AFIRMATIVA E PRINCPIO DAIGUALDADE

    A noo de igualdade, como cate-

    goria jurdica de primeira grandeza, teve

    sua emergncia como princpio jurdico

    incontornvel nos documentos constitu-

    cionais promulgados imediatamente

    aps as revolues do final do sculoXVIII. Com efeito, foi a partir das experi-

    ncias revolucionrias pioneiras dos EUA

    e da Frana que se edificou o conceito

    de igualdade perante a lei, uma cons-

    truo jurdico-formal segundo a qual a

    lei, genrica e abstrata, deve ser igual

    para todos, sem qualquer distino ou

    privilgio, devendo o aplicador faz-laincidir de forma neutra sobre as situa-

    es jurdicas concretas e sobre os con-

    flitos interindividuais. Concebida para ofim especfico de abolir os privilgios t-

    picos do anci en rgim ee para dar cabo

    s distines e discriminaes baseadas

    na linhagem, no rang, na rgida e imu-

    tvel hierarquizao social por classes

    (classem ent par ordre), essa clssica con-

    cepo de igualdade jurdica, meramente

    formal, firmou-se como idia-chave doconstitucionalismo que floresceu no s-

    culo XIX e prosseguiu sua trajetria

    triunfante por boa parte do sculo XX.

    Por definio, conforme bem assinala-

    do por Guilherme Machado Dray, o prin-

    cpio da igualdade perante a lei consis-

    tiria na simples criao de um espao

    neutro, onde as virtudes e as capacida-des dos indivduos livremente se pode-

    riam desenvolver. Os privilgios, em

    sentido inverso, representavam nesta

    perspectiva a criao pelo homem de

    espaos e de zonas delimitadas, sus-

    ceptveis de criarem desigualdades ar-

    tificiais e nessa medida intolerveis.5

    Em suma, segundo esse conceito deigualdade que veio a dar sustentao

    jurdica ao Estado liberal burgus, a lei

    deve ser igual para todos, sem distin-

    es de qualquer espcie.

    Abstrata por natureza e levada a

    extremos por fora do postulado da

    neutralidade estatal (uma outra noo

    cara ao iderio liberal), o princpio daigualdade perante a lei foi tido, durante

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    muito tempo, como a garantia da

    concretizao da liberdade. Para os pen-sadores e tericos da escola liberal, bas-

    taria a simples incluso da igualdade

    no rol dos direitos fundamentais para

    se ter esta como efetivamente assegu-

    rada no sistema constitucional.

    A experincia e os estudos de di-

    reito e poltica comparada, contudo, tm

    demonstrado que, tal como construda, luz da cartilha liberal oitocentista, a

    igualdade jurdica no passa de mera

    fico. Paulatinamente, porm, susten-

    ta o jurista portugus Guilherme Macha-

    do Dray, a concepo de uma igualda-

    de puramente formal, assente no prin-

    cpio geral da igualdade perante a lei,

    comeou a ser questionada, quando seconstatou que a igualdade de direitos

    no era, por si s, suficiente para tor-

    nar acessveis a quem era socialmente

    desfavorecido as oportunidades de que

    gozavam os indivduos socialmente pri-

    vilegiados. Importaria, pois, colocar os

    primeiros ao mesmo nvel de partida.

    Em vez de igualdade de oportunidades,importava falar em igualdade de condi-

    es. Imperiosa, portanto, seria a ado-

    o de uma concepo substancial da

    igualdade, que levasse em conta em sua

    operacionalizao no apenas certas

    condies fticas e econmicas, mas

    tambm certos comportamentos inevi-

    tveis da convivncia humana, como o caso da discriminao. Assim, assi-

    nala a ilustre Professora de Minas Ge-

    rais, Carmen Lucia Antunes Rocha, con-cluiu-se, ento, que proibir a discrimi-

    nao no era bastante para se ter a

    efetividade do princpio da igualdade

    jurdica. O que naquele modelo se ti-

    nha e se tem to-somente o princpio

    da vedao da desigualdade, ou da

    invalidade do comportamento motiva-

    do por preconceito manifesto ou com-provado (ou comprovvel), o que no

    pode ser considerado o mesmo que

    garantir a igualdade jurdica.6

    Como se v, em lugar da concep-

    o esttica da igualdade extrada das

    revolues francesa e americana, cui-

    da-se nos dias atuais de se consolidar

    a noo de igualdade material ou subs-tancial, que, longe de se apegar ao

    formalismo e abstrao da concep-

    o igualitria do pensamento liberal

    oitocentista, recomenda, inversamente,

    uma noo dinmica, militante de

    igualdade, na qual necessariamente so

    devidamente pesadas e avaliadas as de-

    sigualdades concretas existentes na so-ciedade, de sorte que as situaes de-

    siguais sejam tratadas de maneira

    dessemelhante, evitando-se assim o

    aprofundamento e a perpetuao de

    desigualdades engendradas pela pr-

    pria sociedade. Produto do Estado So-

    cial de Direito, a igualdade substancial

    ou material propugna redobrada aten-o por parte do legislador e dos

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    aplicadores do Direito variedade das

    situaes individuais e de grupo, demodo a impedir que o dogma liberal

    da igualdade formal impea ou dificul-

    te a proteo e a defesa dos interesses

    das pessoas socialmente fragilizadas e

    desfavorecidas.

    Da transio da ultrapassada noo

    de igualdade esttica ou formal ao

    novo conceito de igualdade substanci-al surge a idia de igualdade de opor-

    tunidades, noo justificadora de diver-

    sos experimentos constitucionais pauta-

    dos na necessidade de se extinguir ou

    de pelo menos mitigar o peso das desi-

    gualdades econmicas e sociais e, con-

    seqentemente, de promover a justia

    social.Dessa nova viso resultou o

    surgimento, em diversos ordenamentos

    jurdicos nacionais e na esfera do Direi-

    to Internacional dos Direitos Humanos,7

    de polticas sociais de apoio e de pro-

    moo de determinados grupos social-

    mente fragilizados. Vale dizer, da con-

    cepo liberal de igualdade que capta oser humano em sua conformao abs-

    trata, genrica, o Direito passa a perceb-

    lo e a trat-lo em sua especificidade,

    como ser dotado de caractersticas

    singularizantes. No dizer de Flvia

    Piovesan, do ente abstrato, genrico,

    destitudo de cor, sexo, idade, classe so-

    cial, dentre outros critrios, emerge osujeito de direito concreto, historicamente

    situado, com especificidades e particu-

    laridades. Da apontar-se no mais aoindivduo genrica e abstratamente con-

    siderado, mas ao indivduo especifica-

    do, considerando-se categorizaes re-

    lativas ao gnero, idade, etnia, raa, etc.8

    O indivduo especificado, portanto, ser

    o alvo dessas novas polticas sociais.

    A essas polticas sociais, que nada

    mais so do que tentativas de concre-tizao da igualdade substancial ou ma-

    terial, d-se a denominao de ao afir-

    mativa ou, na terminologia do Direito

    europeu, de discriminao positiva ou

    ao positiva.

    A consagrao normativa dessas

    polticas sociais representa, pois, um

    momento de ruptura na evoluo doEstado moderno. Com efeito, como

    bem assinala a Professora Carmen L-

    cia Antunes Rocha, em nenhum Es ta-

    d o Dem o crt ic o , a ta dcad a d e 6 0 ,

    e em quase nenhum atesta l t im a

    dcad a d o scu lo XX se cu id ou de p ro -

    m over a i gu alao e venc erem -se o s

    p reconce itos po r com por tam en tos es-

    tata is e par t icu lares ob r igatr ios pelos

    qu a is se superassem to das as form as

    de desi g ual ao i nj ust a. Os neg ro s, os

    po bres, os m argin al izado s pela raa,

    pelo sexo, p or opo relig io sa, po r co n-

    dies econm icas inf er io res, po r d e-

    fi cinci as fsic as ou p squ ic as, p o r id a-

    de , etc . , con t i nuam em estado d e de -

    salento j urdic o em gran de par te do

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    m undo . Inob s tan te a ga ran t i a cons t i -

    t u c i ona l da d i gn i dade hum ana i gua l

    para todo s , da l iberdade igua l para to -

    d os , no so po uc o s o s ho m ens e

    m ulheres que cont inuam sem ter aces-

    so s ig uais o po rt un id ades m nim as de

    t rab alh o , d e p art ici pao po lti ca, de

    c i d adan i a c r i at i v a e com p r om e t i d a ,

    dei xad os q ue so m arg em da co nvi -

    vnc ia soci al, da ex perinc ia dem ocr-

    ti ca n a soc ied ade p o lti ca.Assim, nes-

    sa nova postura o Estado abandona a

    sua tradicional posio de neutralida-

    de e de mero espectador dos embates

    que se travam no campo da convivn-

    cia entre os homens e passa a atuar

    ativamente na busca da concretizao

    da igualdade positivada nos textosconstitucionais.

    O Pas pioneiro na adoo das po-

    lticas sociais denominadas aes afir-

    mativas foram, como sabido, os Es-

    tados Unidos da Amrica. Tais polticas

    foram concebidas inicialmente como

    mecanismos tendentes a solucionar

    aquilo que um clebre autor escan-dinavo qualificou de o dilema ameri-

    cano: a marginalizao social e eco-

    nmica do negro na sociedade ameri-

    cana. Posteriormente, elas foram esten-

    didas s mulheres, a outras minorias

    tnicas e nacionais, aos ndios e aos de-

    ficientes fsicos.

    As aes afirmativas se definemcomo polticas pblicas (e privadas) vol-

    tadas concretizao do princpio

    constitucional da igualdade material e neutralizao dos efeitos da discri-

    minao racial, de gnero, de idade,

    de origem nacional e de compleio

    fsica. Na sua compreenso, a igualda-

    de deixa de ser simplesmente um prin-

    cpio jurdico a ser respeitado por to-

    dos, e passa a ser um objetivo consti-

    tucional a ser alcanado pelo Estado epela sociedade. (I l semble clair q ue les

    d i s c r im i n a t i o n s po s i t i v es i n v i t e n t

    pen ser l gal i tcom m e un o bj ect i f

    att eind re en so. Le sim ple co nstat qu e

    n o s s o c its gnr en t e n c o r e d e

    no m b reu ses i ngali ts d e tr ait em en t

    dev ra i t ds lors in c i t e r les pou vo i rs

    pu b l i cs co m m e les ac t eurs p r ivs

    ado p t e r e t m e t t r e en o euv re d es

    m esu res su scep t ib les de c rer ou de

    m ener p lus d gal i t).9

    Impostas ou sugeridas pelo Es-

    tado, por seus entes vinculados e at

    mesmo por entidades puramente pri-

    vadas, elas visam a combater no so-

    mente as manifestaes flagrantes dediscriminao, mas tambm a discri-

    minao de fato, de fundo cultural, es-

    trutural, enraizada na sociedade. De

    cunho pedaggico e no raramente

    impregnadas de um carter de

    exemplaridade, tm como meta, tam-

    bm, o engendramento de transfor-

    maes culturais e sociais relevantes,aptas a inculcar nos atores sociais a

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    utilidade e a necessidade da obser-

    vncia dos princpios do pluralismo eda diversidade nas mais diversas es-

    feras do convvio humano. Por outro

    lado, constituem, por assim dizer, a

    mais eloqente manifestao da mo-

    derna idia de Estado promovente,

    atuante, eis que de sua concepo,

    implantao e delimitao jurdica par-

    ticipam todos os rgos estatais es-senciais, a se incluindo o Poder J udi-

    cirio, que ora se apresenta no seu tra-

    dicional papel de guardio da integri-

    dade do sistema jurdico como um

    todo e especialmente dos direitos fun-

    damentais, ora como instituio

    formuladora de polticas tendentes a

    corrigir as distores provocadas peladiscriminao. Trata-se, em suma, de

    um mecanismo sociojurdico destina-

    do a viabilizar primordialmente a har-

    monia e a paz social, que so seria-

    mente perturbadas quando um grupo

    social expressivo se v margem do

    processo produtivo e dos benefcios

    do progresso, bem como a robuste-cer o prprio desenvolvimento econ-

    mico do pas, na medida em que a

    universa-lizao do acesso educao

    e ao mercado de trabalho tem como

    conseqncia inexorvel o crescimen-

    to macroeconmico, a ampliao ge-

    neralizada dos negcios, numa pala-

    vra, o crescimento do pas como umtodo. Nesse sentido, no se deve per-

    der de vista o fato de que a histria

    universal no registra, na era contem-pornea, nenhum exemplo de nao

    que tenha se erguido de uma condi-

    o perifrica de potncia econmi-

    ca e poltica, digna de respeito na cena

    poltica internacional, mantendo no

    plano domstico uma poltica de ex-

    cluso, aberta ou dissimulada, legal ou

    meramente informal, em relao a umaparcela expressiva de seu povo.

    As aes afirmativas constituem,

    pois, um remdio de razovel eficcia

    para esses males. indispensvel, po-

    rm, uma ampla conscientizao da

    prpria sociedade e das lideranas po-

    lticas de maior expresso acerca da

    absoluta necessidade de se eliminarou de se reduzir as desigualdades so-

    ciais que operam em detrimento das

    minorias, notadamente as minorias ra-

    ciais.10E mais: preciso uma ampla

    conscientizao sobre o fato de que a

    marginalizao scio-econmico a que

    so relegadas as minorias, especial-

    mente as raciais, resulta de um nicofenmeno: a discriminao.

    Com efeito, a discriminao,

    como um componente indissocivel do

    relacionamento entre os seres huma-

    nos, reveste-se inegavelmente de uma

    roupagem competitiva. Afinal, discri-

    minar nada mais do que uma tenta-

    tiva de se reduzirem as perspectivasde uns em benefcio de outros.11Quan-

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    to mais intensa a discriminao e mais

    poderosos os mecanismos inerciaisque impedem o seu combate, mais

    ampla se mostra a clivagem entre

    discriminador e discriminado. Da re-

    sulta, inevitavelmente, que aos esfor-

    os de uns em prol da concretizao

    da igualdade se contraponham os in-

    teresses de outros na manuteno do

    s t a t u s quo. curial, pois, que as aesafirmativas, mecanismo jurdico con-

    cebido com vistas a quebrar essa di-

    nmica perversa, sofram o influxo des-

    sas foras contrapostas e atraiam con-

    sidervel resistncia, sobretudo da

    parte daqueles que historicamente se

    beneficiaram da excluso dos grupos

    socialmente fragilizados.Ao Estado cabe, assim, a opo

    entre duas posturas distintas: manter-

    se firme na posio de neutralidade, e

    permitir a total subjugao dos grupos

    sociais desprovidos de voz, de fora po-

    ltica, de meios de fazer valer os seus

    direitos; ou, ao contrrio, atuar ativa-

    mente no sentido da mitigao das de-sigualdades sociais que, como de to-

    dos sabido, tm como pblico-alvo pre-

    cisamente as minorias raciais, tnicas,

    sexuais e nacionais.

    Com efeito, a sociedade liberal-

    capitalista ocidental tem como uma de

    suas idias-chave a noo de neutrali-

    dade estatal, que se expressa de diver-sas maneiras: neutralidade em matria

    econmica, no domnio espiritual e na

    esfera ntima das pessoas. Na maioriadas naes pluritnicas e pluricon-

    fessionais, o abstencionismo estatal se

    traduz na crena de que a mera intro-

    duo, nos respectivos textos consti-

    tucionais, de princpios e regras

    asseguradoras de uma igualdade for-

    mal perante a lei, seria suficiente para

    garantir a existncia de sociedadesharmnicas, onde seria assegurada a

    todos, independentemente de raa,

    credo, gnero ou origem nacional, efe-

    tiva igualdade de acesso ao que

    comumente se tem como conducente

    ao bem-estar individual e coletivo. Esta

    era, como j dito, a viso liberal deri-

    vada das idias iluministas que con-duziram s revolues polticas do s-

    culo XVIII.

    Mas essa suposta neutralidade es-

    tatal tem-se revelado um formidvel fra-

    casso, especialmente nas sociedades que

    durante muitos sculos mantiveram cer-

    tos grupos ou categorias de pessoas em

    posio de subjugao legal, de inferio-ridade legitimada pela lei, em suma, em

    pases com longo passado de escravi-

    do. Nesses pases, apesar da existncia

    de inumerveis disposies normativas

    constitucionais e legais, muitas delas ins-

    titudas com o objetivo explcito de fazer

    cessar o status de inferioridade em que

    se encontravam os grupos sociais histo-ricamente discriminados, passaram-se

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    os anos (e sculos) e a situao desses

    grupos marginalizados pouco ou quasenada mudou.12

    Tal estado de coisas conduz a

    duas constataes indisputveis. Em

    primeiro lugar, convico de que pro-

    clamaes jurdicas por si ss, sejam

    elas de natureza constitucional ou de

    inferior posicionamento na hierarquia

    normativa, no so suficientes para re-verter um quadro social que finca n-

    coras na tradio cultural de cada pas,

    no imaginrio coletivo, em suma, na

    percepo generalizada de que a uns

    devem ser reservados papis de fran-

    ca dominao e a outros, papis

    indicativos do s ta tus de inferioridade,

    de subordinao. Em segundo lugar,ao reconhecimento de que a reverso

    de um tal quadro s vivel mediante

    a renncia do Estado a sua histrica

    neutralidade em questes sociais, de-

    vendo assumir, ao revs, uma posio

    ativa, at mesmo radical se vista luz

    dos princpios norteadores da socieda-

    de liberal clssica.Desse imperativo de atuao ativa

    do Estado nasceram as aes afirmati-

    vas, concebidas inicialmente nos Esta-

    dos Unidos da Amrica, mas hoje j

    adotadas em diversos pases europeus,

    asiticos e africanos, com as adaptaes

    necessrias situao de cada pas.13 14

    15O Brasil, pas com a mais longa hist-ria de escravido das Amricas e com

    uma inabalvel tradio patriarcal, mal

    comea a admitir, pelo menos em nvelacadmico, a discusso do tema.16

    2 DEFINIO E OBJ ETIVOS DAS AES

    AFIRMATIVAS

    A introduo das polticas de ao

    afirmativa, criao pioneira do Direito dosEUA, representou, em essncia, a mu-

    dana de postura do Estado, que em

    nome de uma suposta neutralidade, apli-

    cava suas polticas governamentais in-

    distintamente, ignorando a importncia

    de fatores como sexo, raa, cor, origem

    nacional. Nessa nova postura, passa o

    Estado a levar em conta tais fatores nomomento de contratar seus funcionri-

    os ou de regular a contratao por ou-

    trem, ou ainda no momento de regular

    o acesso aos estabelecimentos educaci-

    onais pblicos e privados. Numa pala-

    vra, ao invs de conceber polticas p-

    blicas de que todos seriam beneficirios,

    independentemente da sua raa, cor ousexo, o Estado passa a levar em conta

    esses fatores na implementao das suas

    decises, no para prejudicar quem quer

    que seja, mas para evitar que a discrimi-

    nao, que inegavelmente tem um fun-

    do histrico e cultural, e no raro se sub-

    trai ao enquadramento nas categorias

    jurdicas clssicas, finde por perpetuaras iniqidades sociais.

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    10/69

    Srie Cadernos do CEJ , 2494

    2.1 Definio Inicialmente, as

    aes afirmativas se definiam como ummero encorajamento por parte do Es-

    tado a que as pessoas com poder

    decisrio nas reas pblica e privada le-

    vassem em considerao, nas suas de-

    cises relativas a temas sensveis como

    o acesso educao e ao mercado de

    trabalho, fatores at ento tidos como

    formalmente irrelevantes pela grandemaioria dos responsveis polticos e

    empresariais, quais sejam, a raa, a cor,

    o sexo e a origem nacional das pesso-

    as. Tal encorajamento tinha por meta,

    tanto quanto possvel, ver concretizado

    o ideal de que tanto as escolas quanto

    as empresas refletissem em sua com-

    posio a representao de cada grupona sociedade ou no respectivo mercado

    de trabalho.

    Num segundo momento, talvez em

    decorrncia da constatao da ineficcia

    dos procedimentos clssicos de comba-

    te discriminao, deu-se incio a um

    processo de alterao conceitual do ins-

    tituto, que passou a ser associado idia,mais ousada, de realizao da igualdade

    de oportunidades atravs da imposio

    de cotas rgidas de acesso de represen-

    tantes de minorias a determinados seto-

    res do mercado de trabalho e a institui-

    es educacionais. Data tambm desse

    perodo a vinculao entre ao afirmati-

    va e o atingimento de certas metas esta-tsticas concernentes presena de ne-

    gros e mulheres num determinado setor

    do mercado de trabalho ou numa deter-minada instituio de ensino.17

    Atualmente, as aes afirmativas

    podem ser definidas como um conjunto

    de polticas pblicas e privadas de car-

    ter compulsrio, facultativo ou volunt-

    rio, concebidas com vistas ao combate

    discriminao racial, de gnero, por

    deficincia fisica e de origem nacional,bem como para corrigir ou mitigar os

    efeitos presentes da discriminao pra-

    ticada no passado, tendo por objetivo a

    concretizao do ideal de efetiva igual-

    dade de acesso a bens fundamentais

    como a educao e o emprego. Diferen-

    temente das polticas governamentais

    antidiscriminatrias baseadas em leis decontedo meramente proibitivo, que se

    singularizam por oferecerem s respec-

    tivas vtimas to-somente instrumentos

    jurdicos de carter reparatrio e de in-

    terveno ex pos t fac to, as aes afir-

    mativas tm natureza multifacetria18, e

    visam a evitar que a discriminao se

    verifique nas formas usualmente conhe-cidas isto , formalmente, por meio de

    normas de aplicao geral ou especfi-

    ca, ou atravs de mecanismos informais,

    difusos, estruturais, enraizados nas pr-

    ticas culturais e no imaginrio coletivo.

    Em sntese, trata-se de polticas e de

    mecanismos de incluso concebidos

    por entidades pblicas, privadas e porrgos dotados de competncia

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    11/69

    Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 95

    jurisdicional, com vistas concretizao

    de um objetivo constitucional universal-mente reconhecido o da efetiva igual-

    dade de oportunidades a que todos os

    seres humanos tm direito.

    Entre os tericos do Direito Pblico

    no Brasil, coube ilustre professora Car-

    men Lcia Antunes Rocha o desafio de

    traduzir para a comunidade jurdica bra-

    sileira, em sublime artigo, a mais com-pleta noo acerca do enquadramento

    jurdico-doutrinrio das aes afirmati-

    vas. Classificando-as corretamente como

    a mais avanada tentativa de concre-

    tizao do princpio jurdico da igualda-

    de, ela afirma com propriedade que a

    definio jurdica objetiva e racional da

    desigualdade dos desiguais, histrica eculturalmente discriminados, concebi-

    da como uma forma para se promover

    a igualdade daqueles que foram e so

    marginalizados por preconceitos

    encravados na cultura dominante na so-

    ciedade. Por esta desigualao positiva

    promove-se a igualao jurdica efetiva;

    por ela afirma-se uma frmula jurdicapara se provocar uma efetiva igualao

    social, poltica, econmica no e segun-

    do o Direito, tal como assegurado for-

    mal e materialmente no sistema consti-

    tucional democrtico. A ao afirmativa

    , ento, uma forma jurdica para se su-

    perar o isolamento ou a diminuio so-

    cial a que se acham sujeitas as minori-as.19Essa engenhosa criao jurdico-

    poltico-social refletiria ainda, segundo

    a autora, uma mudana compor-tamental dos juzes constitucionais de

    todo o mundo democrtico do ps-guer-

    ra, que teriam se conscientizado da ne-

    cessidade de uma transformao na

    forma de se conceberem e aplicarem os

    direitos, especialmente aqueles listados

    entre os fundamentais. No bastavam as

    letras formalizadoras das garantias pro-metidas; era imprescindvel instrumen-

    talizarem-se as promessas garantidas

    por uma atuao exigvel do Estado e

    da sociedade. Na esteira desse pensa-

    mento, pois, que a ao afirmativa

    emergiu como a face construtiva e cons-

    trutora do novo contedo a ser buscado

    no princpio da igualdade jurdica. O Di-reito Constitucional, posto em aberto,

    mutante e mutvel para se fazer perma-

    nentemente adequado s demandas

    sociais, no podia persistir no conceito

    esttico de um direito de igualdade pron-

    to, realizado segundo parmetros hist-

    ricos eventualmente ultrapassados. E

    prossegue a ilustre autora: O conte-do, de origem bblica, de tratar igualmen-

    te os iguais e desigualmente os desiguais

    na medida em que se desigualam sem-

    pre lembrado como sendo a essncia do

    princpio da igualdade jurdica encon-

    trou uma nova interpretao no acolhi-

    mento jurisprudencial concernente

    ao afirmativa. Segundo essa nova in-terpretao, a desigualdade que se pre-

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    12/69

    Srie Cadernos do CEJ , 2496

    tende e se necessita impedir para se re-

    alizar a igualdade no Direito no podeser extrada, ou cogitada, apenas no mo-

    mento em que se tomam as pessoas

    postas em dada situao submetida ao

    Direito, seno que se deve atentar para

    a igualdade jurdica a partir da conside-

    rao de toda a dinmica histrica da

    sociedade, para que se focalize e se re-

    trate no apenas um instante da vidasocial, aprisionada estaticamente e

    desvinculada da realidade histrica de

    determinado grupo social. H que se

    ampliar o foco da vida poltica em sua

    dinmica, cobrindo espao histrico que

    se reflita ainda no presente, provocan-

    do agora desigualdades nascentes de

    preconceitos passados, e no de todoextintos. A discriminao de ontem pode

    ainda tingir a pele que se v de cor di-

    versa da que predomina entre os que

    detm direitos e poderes hoje.

    2.2 Objetivos das aes afirmati-

    vas Em regra geral, justifica-se a ado-o das medidas de ao afirmativa com

    o argumento de que esse tipo de polti-

    ca social seria apta a atingir uma srie

    de objetivos que restariam normalmen-

    te inalcanados caso a estratgia de

    combate discriminao se limitasse

    adoo, no campo normativo, de regras

    meramente proibitivas de discrimina-o. Numa palavra, no basta proibir,

    preciso tambm promover, tornando ro-

    tineira a observncia dos princpios dadiversidade e do pluralismo, de tal sor-

    te que se opere uma transformao no

    comportamento e na mentalidade co-

    letiva, que so, como se sabe, molda-

    dos pela tradio, pelos costumes, em

    suma, pela histria.

    Assim, alm do ideal de concre-

    tizao da igualdade de oportunidades,figuraria entre os objetivos almejados

    com as polticas afirmativas o de indu-

    zir transformaes de ordem cultural,

    pedaggica e psicolgica, aptas a sub-

    trair do imaginrio coletivo a idia de

    supremacia e de subordinao de uma

    raa em relao outra, do homem em

    relao mulher. O elemento propul-sor dessas transformaes seria, assim,

    o carter de exemplaridade de que se

    revestem certas modalidades de ao

    afirmativa, cuja eficcia como agente de

    transformao social poucos at hoje

    ousaram negar. Ou seja, de um lado es-

    sas polticas simbolizariam o reconhe-

    cimento oficial da persistncia e da pe-renidade das prticas discriminatrias

    e da necessidade de sua eliminao. De

    outro, elas teriam tambm por meta

    atingir objetivos de natureza cultural, eis

    que delas inevitavelmente resultam a

    trivializao, a banalizao, na pol is, da

    necessidade e da utilidade de polticas

    pblicas voltadas implantao dopluralismo e da diversidade.

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

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    Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 97

    Por outro lado, as aes afirmati-

    vas tm corno objetivo no apenas coi-bir a discriminao do presente, mas

    sobretudo eliminar os efeitos persis-

    tentes (psicolgicos, culturais e

    comportamentais) da discriminao do

    passado, que tendem a se perpetuar.

    Esses efeitos se revelam na chamada

    discriminao estrutural espelhada

    nas abismais desigualdades sociaisentre grupos dominantes e grupos

    marginalizados.20

    Figura tambm como meta das

    aes afirmativas a implantao de uma

    certa diversidade e de uma maior

    representatividade dos grupos

    minoritrios nos mais diversos domni-

    os de atividade pblica e privada.21Par-tindo da premissa de que tais grupos

    normalmente no so representados em

    certas reas ou so sub-representados

    seja em posies de mando e prestgio

    no mercado de trabalho e nas ativida-

    des estatais, seja nas instituies de for-

    mao que abrem as portas ao sucesso

    e s realizaes individuais, as polticasafirmativas cumprem o importante pa-

    pel de cobrir essas lacunas, fazendo com

    que a ocupao das posies do Estado

    e do mercado de trabalho se faa, na

    medida do possvel, em maior harmo-

    nia com o carter plrimo da sociedade.

    Nesse sentido, o efeito mais visvel des-

    sas polticas, alm do estabelecimentoda diversidade e representatividade pro-

    priamente ditas, o de eliminar as bar-

    reiras artificiais e invisveis queemperram o avano de negros e mulhe-

    res, independentemente da existncia ou

    no de poltica oficial tendente a

    subalterniz-los.22

    Argumenta-se igualmente que o

    pluralismo que se instaura em decorrn-

    cia das aes afirmativas traria inegveis

    beneficios para os prprios pases quese definem como multirraciais e que as-

    sistem, a cada dia, ao incremento do fe-

    nmeno do multicultura-lismo. Para es-

    ses pases, constituiria um erro estrat-

    gico inadmissvel deixar de oferecer

    oportunidades efetivas de educao e de

    trabalho a certos segmentos da popula-

    o, pois isto pode revelar-se, em m-dio prazo, altamente prejudicial

    competitividade e produtividade eco-

    nmica do Pas. Portanto, agir afirmati-

    vamente seria tambm uma forma de

    zelar pela pujana econmica do Pas.

    Por fim, as aes afirmativas cum-

    pririam o objetivo de criar as chamadas

    personalidades emblemticas. Noutraspalavras, alm das metas acima menci-

    onadas, elas constituiriam um mecanis-

    mo institucional de criao de exemplos

    vivos de mobilidade social ascendente.

    Vale dizer, os representantes de minori-

    as que, por terem alcanado posies

    de prestgio e poder, serviriam de exem-

    plo s geraes mais jovens, que veri-am em suas carreiras e realizaes pes-

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

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    Srie Cadernos do CEJ , 2498

    soais a sinalizao de que no haveria,

    chegada a sua vez, obstculos intrans-ponveis realizao de seus sonhos e

    concretizao de seus projetos de vida.

    Em suma, com esta conotao, as aes

    afirmativas atuariam como mecanismo

    de incentivo educao e ao aprimora-

    mento de jovens integrantes de grupos

    minoritrios, que invariavelmente assis-

    tem ao bloqueio de seu potencial deinventividade, de criao e de motiva-

    o ao aprimoramento e ao crescimen-

    to individual, vtimas das sutilezas de um

    sistema jurdico, poltico, econmico e

    social concebido para mant-los em si-

    tuao de excludos.

    3 A PROBLEMTICA CONSTITUCIONAL

    As aes afirmativas situam-se no

    cerne do debate constitucional contem-

    porneo, e interferem em questes que

    remontam prpria origem da demo-

    cracia moderna, suscitando questiona-

    mentos acerca de temas fundamentaisdo modelo de organizao poltica pre-

    ponderante no hemisfrio ocidental. A

    presente reflexo no visa a examinar

    com profundidade esses temas. Sobre

    eles faremos, portanto, apenas un tou r

    dhor izon. Vejamos.

    As afirmaes afirmativas suscitam,

    em primeiro lugar, o debate crucial acercada destinao dos recursos pblicos.

    Recursos, frise-se, escassos por defini-

    o. O Estado Moderno, como se sabe,resulta do imperativo iluminista de que

    o conjunto dos recursos da Nao deve

    ser convertido em prol do interesse de

    todos, do bem-estar geral da coletivida-

    de ( The We l f a r e o f l h e Na t i on , De r

    Wohlstand).A Histria e o Direito Com-

    parado a esto para nos fornecer algu-

    mas pistas e nos alertar contra o perigoda inrcia neste domnio. Com efeito,

    at enfadonho relembrar que a ruptura

    brutal com o an ci en rgim ese materia-

    lizou precisamente na abolio dos pri-

    vilgios que, por lei, eram atribudos a

    certas classes de cidados. A Democra-

    cia que se seguiu, sobretudo na concep-

    o ulterior que deu margem aosurgimento do Estado de bem-estar so-

    cial, tem como um dos seus pilares a

    tentativa de distribuio equnime e ge-

    neralizada dos recursos originrios do

    labor coletivo.

    Por outro lado, no se deve perder

    de vista que a amoldagem do atual Es-

    tado promovente (uma realidade quaseuniversal) em grande parte tributria

    desse rigoroso zelo que as verdadeiras

    democracias tm para com o correto

    manuseio de recursos pblicos. De fato,

    questes-chave do constitucionalismo

    moderno derivam dessa matriz: qual se-

    ria o propsito legtimo do dispndio

    de recursos nacionais? Em que medidase pode questionar a constitucionalidade

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    15/69

    Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 99

    de certos programas governamentais

    luz da exata relao deles extravel entredispndio de recursos pblicos e incre-

    mento do bem-estar coletivo? At que

    ponto pode o rgo representante da

    Nao compelir atores pblicos e priva-

    dos beneficirios desses recursos a se

    conformarem s regras de eqidade

    nsitas a toda e qualquer democracia?

    Das mltiplas respostas a essas ques-tes, como se sabe, emergiu o Estado

    interventivo e regulador e o seu corolrio

    o Estado de Bem-Estar Social.

    Ora, o pas que ignora essas no-

    es bsicas e reserva a uma pequena

    minoria os instrumentos de aprimora-

    mento humano aptos a abrir as portas

    prosperidade e ao bem-estar individuale coletivo, e, alm disso (e tambm em

    conseqncia disso), adota, ainda que

    informalmente, uma poltica de empre-

    go impregnada de visvel e insuportvel

    hierarquizao social, pratica nada mais

    nada menos do que uma nova forma de

    tirania.

    Sim, disso que se trata. Uma ti-rania legal, eis que formalmente anco-

    rada em normas emanadas dos rgos

    legislativos e executada por rgos que

    supostamente encarnam a soberania

    popular. No caso brasileiro, no preci-

    so muito esforo para se convencer dis-

    so. Vejamos. No estado atual das coisas,

    a excluso social de que os negros soas principais vtimas no Brasil deriva de

    alguns fatores, dentre os quais figura o

    esquema perverso de distribuio derecursos pblicos em matria de educa-

    o. A Educao a mais importante

    dentre as diversas prestaes que o in-

    divduo recebe ou tem legtima expecta-

    tiva de receber do Estado. Trata-se, como

    se sabe, de um bem escasso. O Estado

    alega no poder fornec-lo a todos na

    forma tida como ideal, isto , em carteruniversal e gratuito. No entanto, esse

    mesmo Estado que se diz impossibilita-

    do de fornecer a todos esse bem indis-

    pensvel, institucionaliza mecanismos

    sutis atravs dos quais proporciona s

    classes privilegiadas aquilo que alega

    no poder oferecer generalidade dos

    cidados. Com efeito, o Estado finan-cia, com recursos que deveriam ser ca-

    nalizados a instituies pblicas de aces-

    so universal, a educao dos filhos das

    classes de maior poder aquisitivo, por

    meio de diversos mecanismos. Isto se

    d principalmente atravs da renncia

    fiscal de que so beneficirias as esco-

    las privadas altamente seletivas eexcludentes. Certo, no seria justo ne-

    gar s elites (supostas ou verdadeiras) o

    direito de matricular os seus filhos em

    escolas seletivas, onde eles se sintam

    chez eux, longe da popu lace. O direito

    de escolher uma educao diferencia-

    da para os filhos constitui, a nosso sen-

    tir, uma liberdade fundamental a ser ga-rantida pelo Estado. O que questionvel

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    Srie Cadernos do CEJ , 24100

    o compartilhamento do custo desse

    luxo com toda a coletividade: atravsdos tributos de que essas escolas so

    isentas, das subvenes diversas que

    lhes so passadas pelos Governos das

    trs esferas polticas, pelo abatimento

    das respectivas despesas no montante

    devido a ttulo de imposto de renda! Es-

    ses so alguns dos elementos que com-

    pem a formidvel m ach ine excl ur eque tem nos negros as suas vtimas pre-

    ferenciais. Essa forma de excluso or-

    questrada e disciplinada pela lei produz

    o extraordinrio efeito de contrapor, de

    um lado, a escola pblica, republicana,

    aberta a todos, que deveria oferecer en-

    sino de boa qualidade a pobres e ricos,

    a uma escola privada, elitista,discriminatria e... largamente financia-

    da com recursos que deveriam benefi-

    c iar a todos.Este o primeiro aspecto

    da excluso.

    O segundo aspecto ocorre na sele-

    o ao ensino superior. A todos j sa-

    bem: os papis se invertem. O ensino

    superior de qualidade no Brasil est qua-se inteiramente nas mos do Estado. E

    o que faz o Estado nesse domnio? Ins-

    titui um mecanismo de seleo que vai

    justamente propiciar a exclusividade do

    acesso, sobretudo aos cursos de maior

    prestgio e aptos a assegurar um bom

    futuro profissional, queles que se be-

    neficiaram do processo de excluso aci-ma mencionado, isto , os financeira-

    mente bem aquinhoados. O vestibular,

    este mecanismo intrinsecamente intilsob a tica do aprendizado, no tem

    outro objetivo que no o de excluir.

    Mais precisamente, o de excluir os soci-

    almente fragilizados, de sorte a permitir

    que os recursos pblicos destinados

    educao (canalizados tanto para as ins-

    tituies pblicas quanto para as de ca-

    rter comercial, como j vimos) sejamgastos no em prol de todos, mas para

    benefcio de poucos. Em suma, trata-se

    de uma subverso total de um dos prin-

    cpios informadores do Estado moder-

    no, sintetizado de forma lapidar em feliz

    expresso cunhada pela Corte Suprema

    dos EUA: the po w er o f Cong ress to

    author ize expendi ture of publ ic m oneys

    for pu bl ic pu rpo ses.

    Esta , pois, a chave para se enten-

    der por que existem to poucos negros

    nas universidades pblicas brasileiras, e

    quase nenhum nos cursos de maior pres-

    tgio e demanda: os recursos pblicos

    so canalizados preponderantemente

    para as classes mais afluentes,23 24 res-tando aos pobres (que so majoritaria-

    mente negros) as migalhas do sistema.

    Este o aspecto perverso do siste-

    ma educacional brasileiro. Os negros so

    suas principais vtimas. E este , sem

    dvida, um problema constitucional de

    primeira grandeza, pois nos remete

    noo primitiva de democracia, a saber:em que, por quem e em benefcio de

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

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    Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 101

    quem so despendidos os recursos fi-

    nanceiros da Nao.Agir afirmativamente significa ter

    conscincia desses problemas e tomar

    decises coerentes com o imperativo

    indeclinvel de remedi-los. Alm da

    vontade poltica, que fundamental,

    preciso colocar de lado o formalismo t-

    pico da nossa praxis jurdico-institucional

    e entender que a questo de vital im-portncia para a legtima aspirao de

    todos de que um dia o Pas se subtraia

    ao oprbrio internacional a que sempre

    esteve confinado, e ocupe o espao, a

    posio e o respeito que a sua histria,

    o seu povo, suas realizaes e o seu

    peso poltico e econmico recomendam.

    No plano estritamente jurdico (quese subordina, a nosso sentir, tomada

    de conscincia assinalada nas linhas an-

    teriores), o Direito Constitucional vigente

    no Brasil, perfeitamente compatvel com

    o princpio da ao afirmativa. Melhor di-

    zendo, o Direito brasileiro j contempla

    algumas modalidades de ao afirmati-

    va, inclusive em sede constitucional.A questo se coloca, claro, no ter-

    reno do princpio constitucional da igual-

    dade. Este princpio, porm, comporta

    vrias vertentes.

    3.3. Igualdade formal ou

    procedimental x igualdade de resulta-

    dos ou material O cerne da questoreside em saber se na implemen-tao

    do princpio constitucional da igualda-

    de o Estado deve assegurar apenasuma certa neutralidade processual

    (procedura l due pro cess of law )ou, ao

    contrrio, se sua ao deve se encami-

    nhar de preferncia para a realizao de

    uma igualdade de resultados ou igual-

    dade material. A teoria constitucional

    clssica, herdeira do pensamento de

    Locke, Rousseau e Montesquieu, res-ponsvel pelo florescimento de uma con-

    cepo meramente formal de igualdade

    a chamada igualdade perante a lei.

    Trata-se em realidade de uma igualda-

    de meramente processual (process-

    regard ing equal ity). As notrias insufi-

    cincias dessa concepo de igualdade

    conduziram paulatinamente adoode uma nova postura, calcada no mais

    nos meios que se outorgam aos indiv-

    duos num mercado competitivo, mas

    nos resultados efetivos que eles podem

    alcanar. Resumindo singelamente a

    questo, diramos que as naes que

    historicamente se apegaram ao concei-

    to de igualdade formal so aquelas ondese verificam os mais gritantes ndices

    de injustia social, eis que, em ltima

    anlise, fundamentar toda e qualquer

    poltica governamental de combate

    desigualdade social na garantia de que

    todos tero acesso aos mesmos ins-

    trumentos de combate corresponde, na

    prtica, a assegurar a perpetuao dadesigualdade. Isto porque essa opo

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    18/69

    Srie Cadernos do CEJ , 24102

    processual no leva em conta aspec-

    tos importantes que antecedem en-trada dos indivduos no mercado com-

    petitivo. J a chamada igualdade de re-

    sultados tem como nota caracterstica

    exatamente a preocupao com os fa-

    tores externos luta competitiva tais

    como classe ou origem social, nature-

    za da educao recebida , que tm ine-

    gvel impacto sobre o seu resultado.25

    Vrios dispositivos da Constituio

    Brasileira de 1988 revelam o repdio do

    constituinte pela igualdade processual

    e sua opo pela concepo de igualda-

    de dita material ou de resultados.

    Assim, por exemplo, os artigos 3o,

    7o, XX; 37, VIII, e 170 dispem:

    Art. 3o. Constituem objetivos fun-

    damentais da Repblica Federativa do

    Brasil:

    I construir uma sociedade livre,

    justa e solidria;

    (...)

    III erradicar a pobreza e a

    marginalizao e reduzir as desigual-dades sociaise regionais.

    Art. 170. A ordem econmica, fun-

    dada na valorizao do trabalho huma-

    no e na livre iniciativa, tem por fim asse-

    gurar a todos existncia digna, confor-

    me os ditames dajustia social, obser-

    vados os seguintes princpios:(...)

    VII reduo das desigualdades

    regionais e sociais (...)

    IX tratamento favorecido para as

    empresas de pequeno porte constitu-

    das sob as leis brasileiras e que tenham

    sua sede e administrao no Pas.26

    Art. 7o. So direitos dos trabalha-

    dores urbanos e rurais, alm de outros

    que visem melhoria de sua condiosocial:

    (...)

    XX proteo do mercado de tra-

    balho da mulher, mediante incentivos

    especficos, nos termos da lei;

    Art. 37 (...)

    VIII A lei reservar percentual doscargos e empregos pblicos para as pes-

    soas portadoras de deficincia e defini-

    r os critrios de sua admisso.

    patente, pois, a maior preocu-

    pao do legislador constituinte origi-

    nrio com os direitos e garantias fun-

    damentais, bem como com a questoda igualdade, especialmente a

    implementao da igualdade substan-

    cial. Flvia Piovesan assinala como sm-

    bolo dessa preocupao (a) topogra-

    f iade destaque que recebe este grupo

    de direitos (fundamentais) e deveres em

    relao s Constituies anteriores; (b)

    a elevao, clusula ptrea, dos di-reitos e garantias individuais (art. 60,

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    19/69

    Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 103

    4o, IV); (c) o aumento dos bens mere-

    cedores de tutela e da titularidade denovos sujeitos de direito (coletivo),

    tudo comparativamente s Cartas an-

    tecedentes27Some-se a isso a previ-

    so expressa, em sede constitucional,

    da igualdade entre homens e mulhe-

    res (art. 5o, I) e, em alguns casos, da

    permisso expressa para utilizao das

    aes afirmativas, com o intuito deimplementar a igualdade, tais como o

    artigo 37, VIII (reserva de cargos e em-

    pregos pblicos para pessoas portado-

    ras de deficincia) e art. 7o, XX (prote-

    o do mercado de trabalho da mu-

    lher, mediante incentivos especficos,

    nos termos da lei).

    V-se, portanto, que a ConstituioBrasileira de 1988 no se limita a proi-

    bir a discriminao, afirmando a igual-

    dade, mas permite, tambm, a utiliza-

    o de medidas que efetivamente

    implementem a igualdade material. E

    mais: tais normas propiciadoras da

    implementao do princpio da igualda-

    de se acham precisamente no Ttulo Ida Constituio, o que trata dos princ-

    pios fundamentais da nossa Repblica,

    isto , cuida-se de normas que infor-

    mam todo o sistema constitucional, co-

    mandando a correta interpretao de

    outros dispositivos constitucionais.

    Como bem sustentou a ilustre Profes-

    sora de Direito Constitucional da PUCde Minas Gerais, Carmen Lcia Antunes

    Rocha, a Constituio Brasileira de

    1988 tem, no seu prembulo, uma de-clarao que apresenta um momento

    novo no constitucionalismo ptrio: a

    idia de que no se tem a democracia

    social, a justia social, mas que o Direito

    foi ali elaborado para que se chegue a

    t-los (...) O princpio da igualdade res-

    plandece sobre quase todos os outros

    acolhidos como pilastras do edifcionormativo fundamental alicerado.

    guia no apenas de regras, mas de quase

    todos os outros princpios que informam

    e conformam o modelo constitucional

    positivado, sendo guiado apenas por

    um, ao qual se d a servir: o da dignida-

    de da pessoa humana (art. 1o, III, da

    Constituio da Repblica).28E prosse-gue a ilustre jurista, fazendo aluso ex-

    pressa aos dispositivos constitucionais

    acima transcritos: Verifica-se que todos

    os verbos utilizados na expresso

    normativa con strui r, errad icar, redu-

    zir , prom over so de ao, vale dizer,

    designam um comportamento ativo. O

    que se tem, pois, que os objetivosfundamentais da Repblica Federativa

    do Brasil so definidos em termos de

    obrigaes transformadoras do quadro

    social e poltico retratado pelo constitu-

    inte quando da elaborao do texto

    constitucional. E todos os objetivos con-

    tidos, especialmente, nos trs incisos

    acima transcritos do art. 3oda Lei Fun-damental da Repblica, traduzem exa-

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    20/69

    Srie Cadernos do CEJ , 24104

    tamente mudana para se chegar

    igualdade. Em outro dizer, a expressonormativa constitucional significa que a

    Constituio determina uma mudana

    do que se tem em termos de condies

    sociais, polticas, econmicas e regio-

    nais, exatamente para se alcanar a re-

    alizao do valor supremo a fundamen-

    tar o Estado Democrtico de Direito

    constitudo. Se a igualdade jurdica fos-se apenas a vedao de tratamentos

    discriminatrios, o princpio seria abso-

    lutamente insuficiente para possibilitar

    a realizao dos objetivos fundamen-

    tais da Repblica constitucionalmente

    definidos. Pois daqui para a frente, nas

    novas leis e comportamentos regulados

    pelo Direito, apenas seriam impedidasmanifestaes de preconceitos ou co-

    metimentos discriminatrios. Mas como

    mudar, ento, tudo o que se tem e se

    sedimentou na histria poltica, social e

    econmica nacional? Somente a ao

    a f i r m a t i v a , vale dizer, a atuao

    transformadora, igualadora pelo e se-

    gundo o Direito possibilita a verdade doprincpio da igualdade, para se chegar

    igualdade que a Constituio Brasi-

    leira garante como direito fundamental

    de todos. O art. 3otraz uma declarao,

    uma afirmao e uma determinao em

    seus dizeres. Declara-se, ali, implcita,

    mas claramente, que a Repblica Fede-

    rativa do Brasil no livre, porque nose organiza segundo a universalidade

    desse pressuposto fundamental para o

    exerccio dos direitos, pelo que, no dis-pondo todos de condies para o exer-

    ccio de sua liberdade, no pode ser jus-

    ta. No justa porque plena de desi-

    gualdades antijurdicas e deplorveis

    para abrigar o mnimo de condies dig-

    nas para todos. E no solidria por-

    que fundada em preconceitos de toda

    sorte (...) O inciso IV do mesmo art. 3omais claro e afinado, at mesmo no ver-

    bo utilizado, com a ao afirmativa. Por

    ele se tem ser um dos objetivos funda-

    mentais prom over o bem de todo s, sem

    preconceito s de o rigem , raa, sexo, co r,

    idade e quaisquer outras form as de dis-

    cr im inao.Verifica-se, ento, que no

    se repetiu apenas o mesmo modeloprincipiolgico que adotaram constitu-

    intes anteriormente atuantes no Pas.

    Aqui se determina, agora uma ao afir-

    mat iva:aquela pela qual se promova o

    bem de todos, sem preconcei tos (de)

    qu aisqu er... fo rm as de d iscrim inao.

    Significa que se universaliza a igualda-

    de e promove-se a igualao: somentecom uma conduta ativa, positiva, afir-

    mativa, que se pode ter a transfor-

    mao social buscada como objetivo

    fundamental da Repblica... Se fosse

    apenas para manter o que se tem, sem

    figurar o passado ou atentar hist-

    ria, teria sido suficiente, mais ainda,

    teria sido necessrio, tecnicamente, queapenas se estabelecesse ser objetivo

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    21/69

    Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 105

    manter a igualdade sem preconceitos,

    etc. No foi o que pretendeu a Consti-tuio de 1988. Por ela se buscou a

    mudana do conceito, do contedo, da

    essncia e da aplicao do princpio da

    igualdade jurdica, com relevo dado

    sua imprescindibilidade para a trans-

    formao da sociedade, a fim de se

    chegar a seu modelo livre, justa e soli-

    dria. Com promoo de mudanas,com a adoo de condutas ativas, com

    a construo de novo figurino scio-

    poltico que se movimenta no senti-

    do de se recuperar o que de equivoca-

    do antes se fez.29

    Esta, portanto, a concepo mo-

    derna e dinmica do princpio constitu-

    cional da igualdade, a que conclama oEstado a deixar de lado a passividade, a

    renunciar sua suposta neutralidade e

    a adotar um comportamento ativo, po-

    sitivo, afirmativo, quase militante, na bus-

    ca da concretizao da igualdade subs-

    tancial.

    Note-se, mais uma vez, que este

    tipo de comportamento estatal no estranho ao Direito brasileiro ps-Cons-

    tituio de 1988. Ao contrrio, a

    imprescindibilidade de medidas correti-

    vas e redistributivas visando a mitigar a

    agudeza da nossa questo social j foi

    reconhecida em sede normativa, atravs

    de leis vocacionadas a combater os efei-

    tos nefastos de certas formas de discri-minao. Nesse sentido, importante fri-

    sar, o Direito brasileiro j contempla al-

    gumas modalidades de ao afirmativa.No obstante tratar-se de experincias

    ainda tmidas quanto ao seu alcance e

    amplitude, o importante a ser destaca-

    do o fato da acolhida desse instituto

    jurdico em nosso Direito.

    4 AO AFIRMATIVA E RELAES DEGNERO

    A discriminao de gnero, fruto de

    uma longa tradio patriarcal que no

    conhece limites geogrficos tampouco

    culturais, do conhecimento de todos

    os brasileiros. Entre ns, o statusde in-

    ferioridade da mulher em relao aohomem foi por muito tempo considera-

    do como algo qui va de soi, normal, de-

    corrente da prpria natureza das coi-

    sas. A tal ponto que essa inferioridade

    era materializada expressamente na nos-

    sa legislao civil.

    A Constituio de 1988 (art. 5o, I)

    no apenas aboliu essa discriminaochancelada pelas leis, mas tambm,

    atravs dos diversos dispositivos

    antidiscriminatrios j mencionados,

    permitiu que se buscassem mecanismos

    aptos a promover a igualdade entre ho-

    mens e mulheres. Assim, com vistas a

    minimizar essa flagrante desigualdade

    existente em detrimento das mulheres,nasceu, entre ns, a modalidade de ao

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    22/69

    Srie Cadernos do CEJ , 24106

    afirmativa hoje corporificada nas Leis nos

    9.100/1995 e 9.504/1997, que estabe-leceram cotas mnimas de candidatas

    mulheres para as eleies30.

    As mencionadas leis representam,

    em primeiro lugar, o reconhecimento

    pelo Estado de um fato inegvel: a exis-

    tncia de discriminao contra as bra-

    sileiras, cujo resultado mais visvel a

    exasperante sub-representao femini-na em um dos setores-chave da vida

    nacional o processo poltico. Com

    efeito, o legislador ordinrio, conscien-

    te de que em toda a histria poltica

    do Pas foi sempre desprezvel a partici-

    pao feminina, resolveu remediar a si-

    tuao atravs de um corretivo que nada

    mais do que uma das muitas tcnicasatravs das quais, em Direito Compa-

    rado, so concebidas e implementadas

    as aes afirmativas: o mecanismo das

    cotas.

    As Leis nos9.100/1995 e 9.504/1997

    tiveram a virtude de lanar o debate em

    torno das aes afirmativas e, sobretu-

    do, de tornar evidente a necessidade pre-mente de se implementar de maneira

    efetiva a isonomia em matria de gne-

    ro em nosso pas. As cotas de candida-

    turas femininas constituem apenas o pri-

    meiro passo nesse sentido. Se certo

    que preciso tempo para se fazer ava-

    liaes mais seguras acerca da sua efi-

    ccia como medida de transformaosocial, no h dvida de que j se anun-

    ciam alguns resultados alvissareiros,

    como o incremento significativo, em ter-mos globais, da participao feminina

    nas instncias de poder31.

    Assim, as mencionadas leis consa-

    gram a recepo definitiva pelo Direito

    brasileiro do princpio da ao afirmati-

    va. Ainda que limitada a uma forma es-

    pecfica de discriminao, o fato que

    essa poltica social ingressou nosmoeurspol i t iques da Nao, uma vez que foi

    aplicada sem contestao em dois plei-

    tos eleitorais.

    5 AO AFIRMATIVA E PORTADORES

    DE DEFICINCIA

    O mesmo princpio tambm vem

    sendo adotado pela legislao que visa

    a proteger os direitos das pessoas por-

    tadoras de deficincia fsica.

    Com efeito, a Constituio Brasilei-

    ra, em seu artigo 37, VIII, prev expres-

    samente a reservas de vagas para defi-

    cientes fsicos na administrao pblica.Neste caso, a permisso constitucional

    para adoo de aes afirmativas em

    relao aos portadores de deficincia f-

    sica expressa. Da a iniciativa do legis-

    lador ordinrio, materializada nas Leis nos

    7.835/89 e 8.112/1990, que regulamen-

    taram o mencionado dispositivo consti-

    tucional. De fato, a Lei no 8.112/1990(Regime J urdico nico dos Servidores

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    23/69

    Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 107

    Pblicos Civis da Unio) estabelece em

    seu art. 5o, 2o, que s pessoas porta-doras de deficincia assegurado o di-

    reito de se inscrever em concurso pbli-

    co para provimento de cargo cujas atri-

    buies sejam compatveis com a defici-

    ncia de que so portadoras; para tais

    pessoas sero reservadas at 20% (vin-

    te por cento) das vagas oferecidas no

    concurso.Comentando o dispositivo transcri-

    to, Mnica de Melo32, com muita proprie-

    dade, afirma:

    Desta fo rm a, qua lquer co ncurso

    pbl ic o q ue se dest in e a preen -

    chim ento de vag as para o serv io

    pbl ico feder al d ever co nt er em

    seu ed it al a p reviso das v agas r e-

    servadas para os po r tad ores de

    defi c inci a. Not e-se qu e o art ig o

    fa la em at20% (v inte po r cent o)

    das vagas , o q ue poss ib i l i ta um a

    reserva m enor e o ou t ro requ is i to

    leg al que as at ri b uies a se-

    rem d esem penhadas sejam com -

    pa tveis com a d efic inc ia ap re-

    sen tad a . H en t end im en t os n o

    sent id o de qu e 10% (dez po r cen-

    t o ) d a s v a g a s s e r i a m um

    pe rcent ual razovel, m ed id a que

    no Br as i l haver ia 10% d e pessoas

    po r tad or as de d ef ic incia segu n-

    do d ado s da O rg ani zao Mu nd i-

    al d e Sade.

    Esta outra modalidade de discri-

    minao positiva tem recebido o be-neplcito do Poder J udicirio. Com efei-

    to, tanto o Supremo Tribunal Federal

    quanto o Superior Tribunal de J ustia

    j tiveram oportunidade de se mani-

    festar favoravelmente sobre o tema,

    verb is:

    Ementa:

    Sendo o art. 37, VII, da CF, norma

    de eficcia contida, surgiu o art. 5o,

    2o, do novel Estatuto dos Servi-

    dores Pblicos Federais, a toda evi-

    dncia, para regulamentar o citado

    dispositivo constitucional, a fim de

    lhe proporcionar a plenitudeeficacial. Verifica-se, com toda a fa-

    cilidade, que o dispositvo da lei

    ordinria definiu os contornos do

    comando constitucional, assegu-

    rando o direito aos portadores de

    deficincia de se inscreverem em

    concurso pblico, ditando que os

    cargos providos tenham atribui-es compatveis com a deficin-

    cia de que so portadores e, fi-

    nalmente, estabelecendo um

    percentual mximo de vagas a

    serem a eles reservadas. Dentro

    desses parmetros, fica o adminis-

    trador com plena liberdade para

    regular o acesso dos deficientesaprovados no concurso para provi-

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    24/69

    Srie Cadernos do CEJ , 24108

    mento de cargos pblicos, no ca-

    bendo prevalecer diante da garan-tia constitucional, o alijamento do

    deficiente por no ter logrado clas-

    sificao, muito menos por recusar

    o dec isum afrontado que no te-

    nha a norma constitucional sido re-

    gulamentada pelo dispositivo da lei

    ordinria, to-s, por considerar

    no ter ela definido critrios sufici-entes. Recurso provido com a con-

    cesso da segurana, a fim de que

    seja oferecida recorrente vaga,

    dentro do percentual que for fixa-

    do para os deficientes, obedecida,

    entre os deficientes aprovados, a

    ordem de classificao, se for o

    caso. (RMS no 3.113-6/DF, 6a T.,6.12.1994, cujo Relator foi o Min.

    Pedro Acioli).

    Conc u r s o p b l i c o e vaga p a r a

    de f i c i en t e s

    Por ofensa ao art. 37, V, da CF (a

    lei reservar percentual d os cargo s

    e empreg os pblico s para as pes-

    soas po rt ado ras de defi c inc ia e

    defi n ir os cr itri os de sua adm is-

    so), o Tribunal deu provimento a

    recurso extraordinrio para refor-

    mar acrdo do Tribunal de J ustia

    do Estado de Minas Gerais que ne-

    gara portadora de deficincia o

    direito de ter assegurada uma vagaem concurso pblico ante a impos-

    sibilidade aritmtica de se destinar,

    dentre as 8 vagas existentes, a re-serva de 5% aos portadores de de-

    ficincia fsica (LC no 9/1992 do

    Municpio de Divinpolis). O Tribu-

    nal entendeu que, na hiptese de

    a diviso resultar em nmero

    fracionado no importando que

    a frao seja inferior a meio , im-

    pe-se o arredondamento paracima. RE no227.299-MG, rel. Min.

    Ilmar Galvo, 14.6.2000.

    (RE no227.299).

    Como se v, a destinao de um

    percentual de vagas no servio pblico

    aos deficientes fsicos no viola o prin-

    cpio da isonomia. Em primeiro lugar,porque a deficincia fsica de que essas

    pessoas so portadoras traduz-se em

    uma situao de ntida desvantagem em

    seu detrimento, fato este que deve ser

    devidamente levado em conta pelo Es-

    tado, no cumprimento do seu dever de

    implementar a igualdade material. Em

    segundo, porque os deficientes fsicosse submetem aos concursos pblicos,

    devendo necessariamente lograr apro-

    vao. A reserva de vagas, portanto, re-

    presenta uma dentre as diversas tcni-

    cas de implementao da igualdade

    material, consagrao do princpio b-

    blico segundo o qual deve-se tratar

    igualmente os iguais e desigualmenteos desiguais.

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    25/69

    Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 109

    Pois bem. Se esse princpio ple-

    namente aceitvel (inclusive na esferajurisdicional, como vimos) como meca-

    nismo de combate a uma das mltiplas

    formas de discriminao, da mesma for-

    ma ele haver de ser aceito para com-

    bater aquela que a mais arraigada for-

    ma de discriminao entre ns, a que

    tem maior impacto social, econmico e

    cultural a discriminao de cunho raci-al. Isto porque os princpios constitucio-

    nais mencionados anteriormente so

    vocacionados a combater toda e qual-

    quer disfuno social originria dos pre-

    conceitos e discriminaes incrustados

    no imaginrio coletivo, vale dizer, os pre-

    conceitos e discriminao de fundo his-

    trico e cultural. No se trata de princpi-os de aplicao seletiva, bons para cu-

    rar certos males, mas inadaptados a re-

    mediar outros.

    6 AO AFIRMATIVA E DIREITO INTER-

    NACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

    O problema aqui tratado, como se

    sabe, transcende o Direito interno brasi-

    leiro e envolve o Direito Internacional,

    especialmente o chamado Direito Inter-

    nacional dos Direitos Humanos. Ele tra-

    duz perfeio o fenmeno que Hlne

    Tourard com muita propriedade classifi-

    cou como I n t e r na t i o na l i s at i on desconst i tu t ions.33

    Com efeito, no obstante as diver-

    gncias doutrinrias e jurisprudenciaisque pairam sobre o assunto, no po-

    demos deixar de consignar a contribui-

    o trazida matria por uma avana-

    da inteligncia do artigo 5oda Consti-

    tuio de 1988, que em seus 1oe 2o

    traz disposies importantssimas para

    a efetiva implementao dos direitos e

    garantias fundamentais. Com efeito, o 1o estabelece que as normas

    definidoras dos direitos e garantias fun-

    damentais tm aplicao imediata no

    pas. J o 2odispe que os direitos e

    garantias expressos nesta Constituio

    no excluem outros decorrentes do re-

    gime e dos princpios por ela adotados,

    ou d os t ra tados in ternac iona is em que

    a Repbl i ca Federat iva d o Brasi l seja

    parte.

    Como resultado da conjugao do

    1o com o 2odo artigo 5o do texto

    constitucional, uma interpretao siste-

    mtica da Constituio nos conduz

    constatao de que estamos diante de

    normas da mais alta relevncia para aproteo dos direitos humanos (e, con-

    seqentemente, dos direitos das mino-

    rias) no Brasil, quais sejam: os tratados

    internacionais de direitos humanos, que,

    segundo o dispositivo citado, tm apli-

    cao imediata no territrio brasileiro,

    necessitando apenas de ratificao.

    Com efeito, esse o ensinamentoque colhemos em dois dos nossos mais

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    26/69

    Srie Cadernos do CEJ , 24110

    eruditos scholars, especialistas na ma-

    tria, os Professores Antnio AugustoCanado Trindade34 e Celso de

    Albuquerque Mello, verbis:

    O d i s p o s t o no a r t . 5 o, 2o, d a

    Consti tu io Brasi leir a d e 198 8 se

    in sere na no va ten dnc ia de Con s-

    t i t u ies lat in o- am ericanas r ecen-

    t e s de concede r um t r a t am en to

    especial ou di feren ciad o tam bm

    no p lano do d i re it o in te rno aos d i -

    re i tos e garan t ias ind iv idua is in -

    t e r n a ci o na lm en t e c on s ag r a do s .

    A especi f i c id ad e e o carter es-

    pe cia l d o s tra ta do s de p ro teo

    in te rnac iona l do s d i rei tos hum a-

    no s encont ram -se , com efe ito , re -

    conhec i dos e sanc i onados p e l a

    Con sti tu io Br asilei ra d e 19 88 :

    se, para os t ratados int ernac ionais

    e m g e r a l , se t e m e x ig i d o a

    i n t e r m ed i ao pe l o p o d e r

    Legislativo de ato com fora de lei,

    de m odo a outorgar a suas d ispo-

    sies vignc ia ou obr ig ato ried ade

    no plano do ord enam ento jurdi -

    co in te rno , d is t in tam ente no caso

    do s trat ado s de p ro teo i nt ern a-

    c iona l dos d i re i tos hum anos em

    qu e o Bras i l parte, o s di re i to s

    f u nd am en t a i s ne l e s ga r a n t i d o s

    passam , consoante o ar t igo 5o,

    2oe 1o, da Const it u io Brasil eir a

    de 1988, a in tegrar o e lenco d os

    d i re i tos const i tuc iona lm ente con-

    sagrado s di reta e im ediatam ente

    exigveis no p lano do ord enam ento

    ju rd ico in terno.35

    A Con st it u io de 1 988, no 2o

    d o a r t . 5 ocons t i t u c i o na l i zou as

    norm as de d i rei tos hum anos con-

    sagrad as nos tratado s. Sign i f ican-

    do isto qu e as referidas norm as so

    norm as cons t i tuc iona is, com o d iz

    Flvia Piovesan cit ada acim a. Con -

    sid ero est a p o sio j com o um

    grand e avano. Cont ud o, sou ain-

    da m ais rad ical no sent ido d e que

    a norm a in te rnac iona l prevalece

    s o b r e a n o rm a co n s t i t u c i o n a l ,

    m esm o naque le caso em que um a

    no rm a c on s t i t u c i o n a l po s t e ri o r

    ten te revogar um a norm a in terna-

    c ional con st i tuc ion al izada. A nos-

    sa p o sio a q ue est consag ra-

    da n a jur ispru dncia e t ratado in-

    t e r n a c i o na l eu r o p eu de que s e

    deve apli car a no rm a m ais benfi-

    ca ao ser hum ano, seja ela inter -

    na o u i nt ern acio nal. A t ese de Fl-

    via Piovesan tem a grand e vanta-

    gem de ev itar que o Suprem o Tr i-

    b un a l Fede r a l v enha a j u l g a r a

    cons t i tuc iona- l idade dos t ra tados

    internacionais. 36

    Assim, luz desta respeitvel dou-trina, pode-e concluir que o Direito Cons-

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    27/69

    Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 111

    titucional brasileiro abriga, no somen-

    te o princpio e as modalidades implci-tas e explcitas de ao afirmativa a que

    j fizemos aluso, mas tambm as que

    emanam dos tratados internacionais de

    direitos humanos assinados pelo nosso

    pas. Com efeito, o Brasil signatrio dos

    principais instrumentos internacionais de

    proteo dos direitos humanos, em es-

    pecial a Conveno sobre a Eliminaode Todas as Formas de Discriminao

    Racial e a Conveno sobre a Elimina-

    o de Todas as Formas de Discrimina-

    o contra a Mulher, os quais permitem

    expressamente a utilizao das medidas

    positivas tendentes a mitigar os efeitos

    da discriminao.

    De fato, a Conveno sobre a Eli-minao de Todas as Formas de Discri-

    minao Racial (1968), ratificada pelo

    Brasil em 27 de maro de 1968, dispe

    em seu artigo 1o, no4, verbis:

    Art. 1o. No sero consideradas dis-

    criminao racial as medidas espe-

    ciais tomadas com o nico objetivode assegurar o progresso adequa-

    do de certos grupos raciais ou t-

    nicos ou de indivduos que neces-

    sitem da proteo que possa ser

    necessria para proporcionar a tais

    grupos ou indivduos igual gozo ou

    exerccio de direitos humanos e li-

    berdades fundamentais, contantoque tais medidas no conduzam,

    em conseqncia, manuteno de

    direitos separados para diferentesgrupos raciais e no prossigam

    aps terem sido alcanados os seus

    objetivos.

    Dispositivo de igual teor tambm

    figura no artigo 4oda Conveno sobre

    a Eliminao de Todas as Formas de Dis-

    criminao contra a Mulher (1979),ratificada pelo Brasil em 1984, com re-

    servas na rea de Direito de Famlia, re-

    servas estas que foram retiradas em

    1994, verbis:

    Ar t i g o 4 o. A ad oo pelos Esta-

    do s-partes de m edidas especiais de

    carte r tem po rri o d esti na d as a

    acelerar a igualdade de fato entre

    o h om em e a m ulher no se consi-

    derar d iscr im inao na fo rm a d e-

    fin id a ne sta Conv eno , m as de

    nenhum a m aneira im pl icar, com o

    co nseqnci a, a m anu teno de

    nor m as desigua is ou separadas;

    essas m edi das cessaro q uando os

    objet ivos de igualdade de opo r tu-

    nidade e tratamento hou verem sido

    alc anados.

    , portanto, amplo e diversificado

    o respaldo jurdico s medidas afirmati-

    vas que o Estado brasileiro resolva em-

    preender no sentido de resolver esse quetalvez seja o mais grave de todos os nos-

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    28/69

    Srie Cadernos do CEJ , 24112

    sos problemas sociais o alijamento e a

    marginalizao do negro na sociedadebrasileira. A questo se situa, primeira-

    mente, na esfera da Alta Poltica. Ou seja,

    trata-se de optar por um m odle d e

    socit, um ch o ix po li t iq ue, como diri-

    am os juristas da escola francesa. No pla-

    no jurdico, no h dvidas quanto sua

    viabilidade, como se tentou demonstrar.

    Resta, to-somente, escolher os critri-os, as modalidades e as tcnicas adap-

    tveis nossa realidade, cercando-as das

    devidas cautelas e salvaguardas.

    7 CRITRIOS, MODALIDADES E LIMI-

    TES DAS AES AFIRMATIVAS

    Ao debruar-se sobre o tema, o Pro-

    fessor J oaquim Falco sustentou que

    se, por um lado, tranqila a

    constatao de que o princpio da igual-

    dade formal relativo e convive com

    diferenciaes, nem todas as diferenci-

    aes so aceitas. A dificuldade de-

    terminar os critrios a partir dos quaisuma diferenciao aceita como cons-

    titucional.37O autor apresenta soluo

    ao problema, afirmando que a justifica-

    o38do estabelecimento da diferena

    seria uma condio s ine qua no npara

    a constitucionalidade da diferenciao,

    a fim de evitar a arbitrariedade. Esta jus-

    tificao deve ter um contedo, basea-do na razoabilidade, ou seja, num fun-

    damento razovel para a diferenciao;

    na racionalidade, no sentido de que amotivao deve ser objetiva, racional e

    suficiente; e na proporcionalidade, isto

    , que a diferenciao seja um reajuste

    de situaes desiguais. Aliado a isto, a

    legislao infraconstitucional. deve res-

    peitar trs critrios concomitantes para

    que atenda ao princpio da igualdade

    material: a diferenciao deve (a) decor-rer de um comando-dever constitucio-

    nal, no sentido de que deve obedincia

    a uma norma programtica que deter-

    mina a reduo das desigualdades so-

    ciais; (b) ser especfica, estabelecendo

    claramente aquelas situaes ou indiv-

    duos que sero beneficiados com a

    diferenciao, e (c) ser eficiente, ou seja, necessria a existncia de um nexo

    causal entre a prioridade legal concedi-

    da e a igualdade socioeconmica pre-

    tendida39. Entendimento semelhante

    esposado por B. Renauld no artigo j

    mencionado: Tro i s lm en t s n o u s

    perm et ten t d e don ner um cont enu Ia

    not ion de discr im inat ion po s i t ive tel le

    quell e sera ut ili se par l a su it e. Pour

    ident i f ier une discr im inat ion p os i t ive, i l

    fau t q ue l o n so i t en p rsenc e du n

    grou pe dindiv idu s suffi samm ent dfrni ,

    d une discr im inat ion struc ture l le do nt

    ls mem bres de ce grou pe sont vict im es

    e t en f i a d un p l an tab l i s s an t d es

    ob ject i fs et dfenissant des m oy ens

    m ett re en oeu vre visant co rrig er la

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    29/69

    Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 113

    di scrim in ati on en visage. Selon les cas,

    le p lan est ad op t, vo ir e im pospar une

    auto r i tpub l ique o u est le fru i t d une

    in it ia t ive p ri ve.

    Sem dvida, os critrios acima es-

    tabelecidos so um timo ponto de par-

    tida para o estabelecimento de aes

    afirmativas no Brasil. Porm, falta ao Di-

    reito brasileiro um maior conhecimento

    das modalidades e das tcnicas que po-dem ser utilizadas na implementao de

    aes afirmativas. Entre ns, fala-se qua-

    se exclusivamente do sistema de cotas,

    mas esse um sistema que, a no ser

    que venha amarrado a um outro critrio

    inquestionavelmente objetivo 40, deve ser

    objeto de uma utilizao marcadamente

    marginal.Com efeito, o essencial que o Es-

    tado reconhea oficialmente a existn-

    cia da discriminao racial, dos seus

    efeitos e das suas vtimas, e tome a de-

    ciso poltica de enfrent-la, transfor-

    mando esse combate em uma poltica

    de Estado. Uma tal atitude teria o sau-

    dvel efeito de subtrair o Estado brasi-leiro da ambigidade que o caracteriza

    na matria: a de admitir que existe um

    problema racial no Pas e ao mesmo

    tempo furtar-se a tomar medidas srias

    no sentido minorar os efeitos sociais

    dele decorrentes.

    Em segundo lugar, preciso ter cla-

    ra a idia de que a soluo ao problemaracial no deve vir unicamente do Esta-

    do. Certo, cabe ao Estado o importante

    papel de impulso, mas ele no deve sero nico ator nessa matria. Cabe-lhe tra-

    ar as diretrizes gerais, o quadro jurdi-

    co luz do qual os atores sociais pode-

    ro agir. Incumbe-lhe remover os fato-

    res de discriminao de ordem estrutu-

    ral, isto , aqueles chancelados pelas

    prprias normas legais vigentes no Pas,

    como ficou demonstrado acima. Mas aspolticas afirmativas no devem se limi-

    tar esfera pblica. Ao contrrio, devem

    envolver as universidades, pblicas e

    privadas, as empresas, os governos es-

    taduais, as municipalidades, as organi-

    zaes governamentais, o Poder J udici-

    rio, etc.

    No que pertine s tcnicas deimplementao das aes afirmativas,

    podem ser utilizados, alm do sistema

    de cotas, o mtodo do estabelecimen-

    to de preferncias, o sistema de bnus

    e os incentivos fiscais (como instrumen-

    to de motivao do setor privado). De

    crucial importncia o uso do poder

    fiscal, no como mecanismo deaprofundamento da excluso, como

    da nossa tradio, mas como instrumen-

    to de dissuaso da discriminao e de

    emulao de comportamentos (pblicos

    e privados) voltados erradicao dos

    efeitos da discriminao de cunho his-

    trico.

    Noutras palavras, ao afirmativano se confunde nem se limita s cotas.

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    30/69

    Srie Cadernos do CEJ , 24114

    Confira-se, sobre o tema, as judiciosas

    consideraes feitas por Wania SantAnnae Marcello Paixo, no interessante traba-

    lho intitulado Muit o Alm da Senzala :

    Ao Afirm at iva no Brasi l, verbis:

    Segun do Hun tl ey , Ao afirm ati -

    va um conceito que inclu i di fe-

    ren tes t ip os de est ra tgias e prt i-

    cas. To das essas est ra tgias e pr-

    tic as esto dest inad as a aten der

    pro blem as histr icos e atuais que

    se constatam nos Estados Unidos

    em re lao s m ulh eres, aos afro -

    am er icanos e a out ros grupos que

    tm sido alvo de d iscr im inao e,

    con seqentem ente, aos quais se

    tem negado a op or tun idade de de-

    senvolver plenam ente o seu talen-

    to , de part ic ipar em to das as esfe-

    ras da sociedad e am ericana. (. . .)

    Ao afirm ati va um co nc eit o que ,

    usualm ente, requer o que ns cha-

    m amos m etas e cronogram as. Me-

    tas so um pad ro d esejado p elo

    qu al se m ede o pro gr esso e no se

    confund e com cotas. Opositores da

    ao afirm ati va nos Estados Unidos

    freqentem ente caracter izam m e-

    tas com o sendo cotas , suger indo

    que elas so in flexvei s, ab so lu tas,

    qu e as pessoas so ob rig adas a

    atingi- las.

    A po lt ica d e ao af irm at iva no

    exige, necessariam ente, o estabe-

    lec im ento de um percentual de va-

    gas a ser preenchido po r um dado

    gr up o da po pu lao. Entr e as es-

    tr atgias p revistas, inc luem -se m e-

    canism os que estim ulem as em pre-

    sas a buscarem pessoas de ou tro

    gnero e de g ru po s tn icos e raci -

    ais especfico s, seja para com po r

    seus qu adros, seja para fins de p ro-

    m oo ou q uali fi cao pro fi ssio nal.

    Bu sca- se, tam bm , a ad eq uao

    do elenco de p ro fission ais s reali-

    dad es verificad as na reg io d e op e-

    rao da em pr esa. Essas m ed id as

    estim ulam as unidades empresari-

    ais a dem onst rar sua pr eoc up ao

    com a divers idade hum ana de seus

    quadros.

    Isto no sign i f ica qu e um a dada

    em presa deva ter um percen tua l

    f i xo de em pregados negros , por

    exemp lo, m as, sim , que esta em -

    presa est dem on strand o a preo -

    cupao em cri ar f o rm as de aces-

    so ao em preg o e ascenso pro fis-

    sion al para as pessoas no lig adas

    a o s g r u p o s t r a d i c i o n a l m e n t e

    hegemn i c o s em de t e rm i n ada s

    funes (as m ais qu alif icad as e re-

    m uneradas) e cargo s (os hierarqu i-

    cam en te su peri o res). A ao afi r-

    m at iva par te do reconhec imento de

    qu e a com petnci a para exercer

    funes de resp onsab ili dade no

    exc lusiva de um determ inado gru-

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    31/69

    Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 115

    po tn ico , racia l o u de gner o . Tam -

    bm consid era que o s fato res qu e

    im pedem a ascenso so cial d e de-

    term inado s gru po s esto im brica-

    dos num a com plexa rede de m ot i -

    vaes, exp lcit a ou im pl ic it am en-

    te, preconceitu osas.41

    Por fim, no que diz respeito s cau-

    telas a serem observadas, valho-memais uma vez dos ensinamentos da Prof.

    Carmem Lcia Antunes Rochas, verbis:

    im po rt ant e salien tar que no se

    quer verem p rod uzidas novas dis-

    cr im inaes com a ao afi rm at iva,

    agora em desfavor das m aior ias,

    que, sem serem m arginalizadas his-

    to ricam ente, perdem espaos qu e

    antes det inham face aos m emb ros

    do s grup os afirm ado s pelo pr inc-

    pio igualador no Direito . Para se evi-

    tar que o extrem o op osto sobrevi-

    esse que os planos e prog ram as

    de ao afirm ativ a ad ot ado s no s

    Estados Unido s e em out ros Esta-

    do s, pr im aram sempre pela fixao

    de percent uais mnim os garant ido -

    res da p resena das m ino rias que

    por eles se buscavam igualar, com

    o objet ivo de se rom perem precon-

    cei tos contra elas ou pelo m enos

    pr op ic iar em -se con dies par a a

    sua su pe rao em face da co nv i-

    vncia ju rid icam ente o bri gada. Por

    ela, a m aioria teria que se acostu-

    m ar a trabalhar, a estudar, a se di-

    vertir, etc., com os negros, as m u-

    lheres, os jud eus, os orientais, os

    velho s, etc., hab itu ando- se a v-lo s

    pro duzir, viver, sem inferioridade ge-

    nti ca d eterm inada pel as suas ca-

    ract ersticas pessoai s resul tan tes do

    grup o a qu e pertencessem . Os pla-

    nos e pro gram as das entidades p-

    b licas e par ti cu lares de ao af irm a-

    tiva d eixam sempre dispu ta livre

    da m aioria a m aior parcela de va-

    gas em escolas, emp regos, em lo-

    cais de lazer, etc., com o form a de

    garan ti a dem ocrti ca do exer ccio

    da li berd ade pessoal e da realizao

    do pri ncpio da no-d isc rim in ao

    (conti do no p rincpio con stitucio nal

    da ig uald ade ju rdica) pela prp ria

    sociedade.

    J OAQUIM BENEDITO BARBOSA GO-

    MES: Professor da Universidade Esta-

    dual do Rio de J aneiro e Procurador

    Regional da Repblica, Rio de J aneiro.

  • 5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva

    32/69

    Srie Cadernos do CEJ , 24116

    1 Doutor em Direito Pblico pela Universidade

    de Paris-II (Panthon-Assas), Frana. Professor da

    Faculdade de Direito da UERJ . Foi Visi t ing Scholar

    da Faculdade de Direito da Universidade de

    Columbia-NY, EUA. Membro do Ministrio Pblico

    Federal (RJ ). Autor das obras La Cou r Sup rm e

    dans le Svs tm e Poli t iq ue Brsil ien, editada pela

    Librairie Gnrate de Droit et J urisprudence (LGDJ),

    Paris, 1994; e Ao Afirm ativ a & Prin cip io Cons-

    t i tuc io nal da Igualdade,