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AS AÇÕES AFIRMATIVAS E OS PROCESSOS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE EFETIVA JOAQUIM BENEDITO BARBOSA GOMES FERNANDA DUARTE LOPES LUCAS DA SILVA

Acoes-Afirmativas e Proc de Promoção de Igualdade Efetiva - Cópia

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  • AS AES AFIRMATIVAS E OSPROCESSOS DE PROMOO DA IGUALDADE EFETIVA

    JOAQUIM BENEDITO BARBOSA GOMESFERNANDA DUARTE LOPES LUCAS DA SILVA

  • Srie Cadernos do CEJ, 2486

    N os ltimos tempos, tm sidopropostos, no CongressoNacional, diversos projetos delei visando introduo, no Direito bra-sileiro, de algumas modalidades de

    ao afirmativa. Esses projetos, apre-

    sentados por parlamentares das mais

    diversas tendncias ideolgicas,2 em

    geral buscam mitigar a flagrante desi-gualdade brasileira atacando-a naquilo

    que para muitos constitui a sua causa

    primordial, isto , o nosso segregador

    sistema educacional, que tradicional-

    mente, por diversos mecanismos, sem-pre reservou aos negros e pobres em

    geral uma educao de inferior quali-

    dade, dedicando o essencial dos recur-

    sos materiais, humanos e financeiros

    voltados educao de todos os bra-sileiros, a um pequeno contingente da

    populao que detm a hegemonia po-

    ltica, econmica e social no Pas, isto

    , a elite branca. Outros projetos, con-

    cebidos no louvvel af de tentar re-mediar os aspectos mais visveis e po-

    liticamente incmodos da nossa triste

    iniqidade, tentam combater a desi-

    gualdade e a discriminao em seto-

    res especficos da atividade produtiva,instituindo cotas fixas para negros nes-

    se ou naquele setor da vida scio-eco-

    nmica.

    Esses projetos, como se sabe, vi-

    sam a instituir medidas compensat-rias destinadas a promover a implemen-

    tao do princpio constitucional da

    igualdade em prol da comunidade ne-

    gra brasileira.

    O tema de transcendental im-portncia para o Brasil e para o Direito

    brasileiro, por dois motivos. Primeiro,

    por ter incidncia direta sobre aquele

    que seguramente o mais grave de

    todos os nossos problemas sociais (oqual, curiosamente, todos fingimos ig-

    norar), o que est na raiz das nossas

    mazelas, do nosso gritante e enver-

    gonhador quadro social ou seja, os

    diversos mecanismos pelos quais, aolongo da nossa histria, a sociedade

    brasileira logrou proceder, atravs das

    mais variadas formas de discriminao,

    excluso e ao alijamento dos negros

    do processo produtivo conseqente eda vida social digna. Em segundo lu-

    gar, por abordar um tema nobre de Di-

    reito Constitucional Comparado3 e de

    Direito Internacional, mas que , curio-

    samente, negligenciado pelas letras ju-rdicas nacionais, especialmente no

    mbito do Direito Constitucional.

    Assim, neste despretensioso ensaio

    tentaremos examinar (ainda que sem a

    reflexo de longue haleine que o temarequer) a possibilidade jurdica de intro-

    duo, no nosso sistema jurdico, de

    mecanismos de integrao social larga-

    mente adotados nos Estados Unidos sob

    a denominao de affirmative action(ao afirmativa) e na Europa, sob o

  • Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 87

    nome de discrimination positive (discri-

    minao positiva) e de action positive

    (ao positiva).

    Trata-se, com efeito, de tema qua-se desconhecido4 entre ns, tanto em

    sua concepo quanto nas suas mlti-

    plas formas de implementao. Da a

    necessidade, de nossa parte, de algu-

    mas consideraes acerca da sua gne-se, dos objetivos almejados, da proble-

    mtica constitucional por ele suscitada,

    das modalidades de programas e dos

    critrios e condies indispensveis a

    sua compatibilizao com os princpiosconstitucionais.

    1 AO AFIRMATIVA E PRINCPIO DA

    IGUALDADE

    A noo de igualdade, como cate-

    goria jurdica de primeira grandeza, teve

    sua emergncia como princpio jurdico

    incontornvel nos documentos constitu-cionais promulgados imediatamente

    aps as revolues do final do sculo

    XVIII. Com efeito, foi a partir das experi-

    ncias revolucionrias pioneiras dos EUA

    e da Frana que se edificou o conceitode igualdade perante a lei, uma cons-

    truo jurdico-formal segundo a qual a

    lei, genrica e abstrata, deve ser igual

    para todos, sem qualquer distino ou

    privilgio, devendo o aplicador faz-laincidir de forma neutra sobre as situa-

    es jurdicas concretas e sobre os con-

    flitos interindividuais. Concebida para o

    fim especfico de abolir os privilgios t-

    picos do ancien rgime e para dar cabos distines e discriminaes baseadas

    na linhagem, no rang, na rgida e imu-

    tvel hierarquizao social por classes

    (classement par ordre), essa clssica con-

    cepo de igualdade jurdica, meramenteformal, firmou-se como idia-chave do

    constitucionalismo que floresceu no s-

    culo XIX e prosseguiu sua trajetria

    triunfante por boa parte do sculo XX.

    Por definio, conforme bem assinala-do por Guilherme Machado Dray, o prin-

    cpio da igualdade perante a lei consis-

    tiria na simples criao de um espao

    neutro, onde as virtudes e as capacida-

    des dos indivduos livremente se pode-riam desenvolver. Os privilgios, em

    sentido inverso, representavam nesta

    perspectiva a criao pelo homem de

    espaos e de zonas delimitadas, sus-

    ceptveis de criarem desigualdades ar-tificiais e nessa medida intolerveis.5

    Em suma, segundo esse conceito de

    igualdade que veio a dar sustentao

    jurdica ao Estado liberal burgus, a lei

    deve ser igual para todos, sem distin-es de qualquer espcie.

    Abstrata por natureza e levada a

    extremos por fora do postulado da

    neutralidade estatal (uma outra noo

    cara ao iderio liberal), o princpio daigualdade perante a lei foi tido, durante

  • Srie Cadernos do CEJ, 2488

    muito tempo, como a garantia da

    concretizao da liberdade. Para os pen-

    sadores e tericos da escola liberal, bas-

    taria a simples incluso da igualdadeno rol dos direitos fundamentais para

    se ter esta como efetivamente assegu-

    rada no sistema constitucional.

    A experincia e os estudos de di-

    reito e poltica comparada, contudo, tmdemonstrado que, tal como construda,

    luz da cartilha liberal oitocentista, a

    igualdade jurdica no passa de mera

    fico. Paulatinamente, porm, susten-

    ta o jurista portugus Guilherme Macha-do Dray, a concepo de uma igualda-

    de puramente formal, assente no prin-

    cpio geral da igualdade perante a lei,

    comeou a ser questionada, quando se

    constatou que a igualdade de direitosno era, por si s, suficiente para tor-

    nar acessveis a quem era socialmente

    desfavorecido as oportunidades de que

    gozavam os indivduos socialmente pri-

    vilegiados. Importaria, pois, colocar osprimeiros ao mesmo nvel de partida.

    Em vez de igualdade de oportunidades,

    importava falar em igualdade de condi-

    es. Imperiosa, portanto, seria a ado-

    o de uma concepo substancial daigualdade, que levasse em conta em sua

    operacionalizao no apenas certas

    condies fticas e econmicas, mas

    tambm certos comportamentos inevi-

    tveis da convivncia humana, como o caso da discriminao. Assim, assi-

    nala a ilustre Professora de Minas Ge-

    rais, Carmen Lucia Antunes Rocha, con-

    cluiu-se, ento, que proibir a discrimi-

    nao no era bastante para se ter aefetividade do princpio da igualdade

    jurdica. O que naquele modelo se ti-

    nha e se tem to-somente o princpio

    da vedao da desigualdade, ou da

    invalidade do comportamento motiva-do por preconceito manifesto ou com-

    provado (ou comprovvel), o que no

    pode ser considerado o mesmo que

    garantir a igualdade jurdica.6

    Como se v, em lugar da concep-o esttica da igualdade extrada das

    revolues francesa e americana, cui-

    da-se nos dias atuais de se consolidar

    a noo de igualdade material ou subs-

    tancial, que, longe de se apegar aoformalismo e abstrao da concep-

    o igualitria do pensamento liberal

    oitocentista, recomenda, inversamente,

    uma noo dinmica, militante de

    igualdade, na qual necessariamente sodevidamente pesadas e avaliadas as de-

    sigualdades concretas existentes na so-

    ciedade, de sorte que as situaes de-

    siguais sejam tratadas de maneira

    dessemelhante, evitando-se assim oaprofundamento e a perpetuao de

    desigualdades engendradas pela pr-

    pria sociedade. Produto do Estado So-

    cial de Direito, a igualdade substancial

    ou material propugna redobrada aten-o por parte do legislador e dos

  • Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 89

    aplicadores do Direito variedade das

    situaes individuais e de grupo, de

    modo a impedir que o dogma liberal

    da igualdade formal impea ou dificul-te a proteo e a defesa dos interesses

    das pessoas socialmente fragilizadas e

    desfavorecidas.

    Da transio da ultrapassada noo

    de igualdade esttica ou formal aonovo conceito de igualdade substanci-

    al surge a idia de igualdade de opor-

    tunidades, noo justificadora de diver-

    sos experimentos constitucionais pauta-

    dos na necessidade de se extinguir oude pelo menos mitigar o peso das desi-

    gualdades econmicas e sociais e, con-

    seqentemente, de promover a justia

    social.

    Dessa nova viso resultou osurgimento, em diversos ordenamentos

    jurdicos nacionais e na esfera do Direi-

    to Internacional dos Direitos Humanos,7

    de polticas sociais de apoio e de pro-

    moo de determinados grupos social-mente fragilizados. Vale dizer, da con-

    cepo liberal de igualdade que capta o

    ser humano em sua conformao abs-

    trata, genrica, o Direito passa a perceb-

    lo e a trat-lo em sua especificidade,como ser dotado de caractersticas

    singularizantes. No dizer de Flvia

    Piovesan, do ente abstrato, genrico,

    destitudo de cor, sexo, idade, classe so-

    cial, dentre outros critrios, emerge osujeito de direito concreto, historicamente

    situado, com especificidades e particu-

    laridades. Da apontar-se no mais ao

    indivduo genrica e abstratamente con-

    siderado, mas ao indivduo especifica-do, considerando-se categorizaes re-

    lativas ao gnero, idade, etnia, raa, etc.8

    O indivduo especificado, portanto, ser

    o alvo dessas novas polticas sociais.

    A essas polticas sociais, que nadamais so do que tentativas de concre-

    tizao da igualdade substancial ou ma-

    terial, d-se a denominao de ao afir-

    mativa ou, na terminologia do Direito

    europeu, de discriminao positiva ouao positiva.

    A consagrao normativa dessas

    polticas sociais representa, pois, um

    momento de ruptura na evoluo do

    Estado moderno. Com efeito, comobem assinala a Professora Carmen L-

    cia Antunes Rocha, em nenhum Esta-

    do Democrtico, at a dcada de 60,

    e em quase nenhum at esta ltima

    dcada do sculo XX se cuidou de pro-mover a igualao e vencerem-se os

    preconceitos por comportamentos es-

    tatais e particulares obrigatrios pelos

    quais se superassem todas as formas

    de desigualao injusta. Os negros, ospobres, os marginalizados pela raa,

    pelo sexo, por opo religiosa, por con-

    dies econmicas inferiores, por de-

    ficincias fsicas ou psquicas, por ida-

    de, etc., continuam em estado de de-salento jurdico em grande parte do

  • Srie Cadernos do CEJ, 2490

    mundo. Inobstante a garantia consti-

    tucional da dignidade humana igual

    para todos, da liberdade igual para to-

    dos, no so poucos os homens emulheres que continuam sem ter aces-

    so s iguais oportunidades mnimas de

    trabalho, de participao poltica, de

    cidadania criativa e comprometida,

    deixados que so margem da convi-vncia social, da experincia democr-

    tica na sociedade poltica. Assim, nes-

    sa nova postura o Estado abandona a

    sua tradicional posio de neutralida-

    de e de mero espectador dos embatesque se travam no campo da convivn-

    cia entre os homens e passa a atuar

    ativamente na busca da concretizao

    da igualdade positivada nos textos

    constitucionais.O Pas pioneiro na adoo das po-

    lticas sociais denominadas aes afir-

    mativas foram, como sabido, os Es-

    tados Unidos da Amrica. Tais polticas

    foram concebidas inicialmente comomecanismos tendentes a solucionar

    aquilo que um clebre autor escan-

    dinavo qualificou de o dilema ameri-

    cano: a marginalizao social e eco-

    nmica do negro na sociedade ameri-cana. Posteriormente, elas foram esten-

    didas s mulheres, a outras minorias

    tnicas e nacionais, aos ndios e aos de-

    ficientes fsicos.

    As aes afirmativas se definemcomo polticas pblicas (e privadas) vol-

    tadas concretizao do princpio

    constitucional da igualdade material e

    neutralizao dos efeitos da discri-

    minao racial, de gnero, de idade,de origem nacional e de compleio

    fsica. Na sua compreenso, a igualda-

    de deixa de ser simplesmente um prin-

    cpio jurdico a ser respeitado por to-

    dos, e passa a ser um objetivo consti-tucional a ser alcanado pelo Estado e

    pela sociedade. (Il semble clair que les

    discriminations positives invitent

    penser lgalit comme un objectif

    atteindre en so. Le simple constat quenos socits gnrent encore de

    nombreuses ingalits de traitement

    devrait ds lors inciter les pouvoirs

    publics comme les acteurs privs

    adopter et mettre en oeuvre desmesures susceptibles de crer ou de

    mener plus dgalit).9

    Impostas ou sugeridas pelo Es-

    tado, por seus entes vinculados e at

    mesmo por entidades puramente pri-vadas, elas visam a combater no so-

    mente as manifestaes flagrantes de

    discriminao, mas tambm a discri-

    minao de fato, de fundo cultural, es-

    trutural, enraizada na sociedade. Decunho pedaggico e no raramente

    impregnadas de um carter de

    exemplaridade, tm como meta, tam-

    bm, o engendramento de transfor-

    maes culturais e sociais relevantes,aptas a inculcar nos atores sociais a

  • Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 91

    utilidade e a necessidade da obser-

    vncia dos princpios do pluralismo e

    da diversidade nas mais diversas es-

    feras do convvio humano. Por outrolado, constituem, por assim dizer, a

    mais eloqente manifestao da mo-

    derna idia de Estado promovente,

    atuante, eis que de sua concepo,

    implantao e delimitao jurdica par-ticipam todos os rgos estatais es-

    senciais, a se incluindo o Poder Judi-

    cirio, que ora se apresenta no seu tra-

    dicional papel de guardio da integri-

    dade do sistema jurdico como umtodo e especialmente dos direitos fun-

    damentais , ora como inst i tu io

    formuladora de polticas tendentes a

    corrigir as distores provocadas pela

    discriminao. Trata-se, em suma, deum mecanismo sociojurdico destina-

    do a viabilizar primordialmente a har-

    monia e a paz social, que so seria-

    mente perturbadas quando um grupo

    social expressivo se v margem doprocesso produtivo e dos benefcios

    do progresso, bem como a robuste-

    cer o prprio desenvolvimento econ-

    mico do pas, na medida em que a

    universa-lizao do acesso educaoe ao mercado de trabalho tem como

    conseqncia inexorvel o crescimen-

    to macroeconmico, a ampliao ge-

    neralizada dos negcios, numa pala-

    vra, o crescimento do pas como umtodo. Nesse sentido, no se deve per-

    der de vista o fato de que a histria

    universal no registra, na era contem-

    pornea, nenhum exemplo de nao

    que tenha se erguido de uma condi-o perifrica de potncia econmi-

    ca e poltica, digna de respeito na cena

    poltica internacional, mantendo no

    plano domstico uma poltica de ex-

    cluso, aberta ou dissimulada, legal oumeramente informal, em relao a uma

    parcela expressiva de seu povo.

    As aes afirmativas constituem,

    pois, um remdio de razovel eficcia

    para esses males. indispensvel, po-rm, uma ampla conscientizao da

    prpria sociedade e das lideranas po-

    lticas de maior expresso acerca da

    absoluta necessidade de se eliminar

    ou de se reduzir as desigualdades so-ciais que operam em detrimento das

    minorias, notadamente as minorias ra-

    ciais.10 E mais: preciso uma ampla

    conscientizao sobre o fato de que a

    marginalizao scio-econmico a queso relegadas as minorias, especial-

    mente as raciais, resulta de um nico

    fenmeno: a discriminao.

    Com efeito, a discriminao,

    como um componente indissocivel dorelacionamento entre os seres huma-

    nos, reveste-se inegavelmente de uma

    roupagem competitiva. Afinal, discri-

    minar nada mais do que uma tenta-

    tiva de se reduzirem as perspectivasde uns em benefcio de outros.11 Quan-

  • Srie Cadernos do CEJ, 2492

    to mais intensa a discriminao e mais

    poderosos os mecanismos inerciais

    que impedem o seu combate, mais

    ampla se mostra a clivagem entrediscriminador e discriminado. Da re-

    sulta, inevitavelmente, que aos esfor-

    os de uns em prol da concretizao

    da igualdade se contraponham os in-

    teresses de outros na manuteno dostatus quo. curial, pois, que as aes

    afirmativas, mecanismo jurdico con-

    cebido com vistas a quebrar essa di-

    nmica perversa, sofram o influxo des-

    sas foras contrapostas e atraiam con-sidervel resistncia, sobretudo da

    parte daqueles que historicamente se

    beneficiaram da excluso dos grupos

    socialmente fragilizados.

    Ao Estado cabe, assim, a opoentre duas posturas distintas: manter-

    se firme na posio de neutralidade, e

    permitir a total subjugao dos grupos

    sociais desprovidos de voz, de fora po-

    ltica, de meios de fazer valer os seusdireitos; ou, ao contrrio, atuar ativa-

    mente no sentido da mitigao das de-

    sigualdades sociais que, como de to-

    dos sabido, tm como pblico-alvo pre-

    cisamente as minorias raciais, tnicas,sexuais e nacionais.

    Com efeito, a sociedade liberal-

    capitalista ocidental tem como uma de

    suas idias-chave a noo de neutrali-

    dade estatal, que se expressa de diver-sas maneiras: neutralidade em matria

    econmica, no domnio espiritual e na

    esfera ntima das pessoas. Na maioria

    das naes pluritnicas e pluricon-

    fessionais, o abstencionismo estatal setraduz na crena de que a mera intro-

    duo, nos respectivos textos consti-

    tucionais, de princpios e regras

    asseguradoras de uma igualdade for-

    mal perante a lei, seria suficiente paragarantir a existncia de sociedades

    harmnicas, onde seria assegurada a

    todos, independentemente de raa,

    credo, gnero ou origem nacional, efe-

    t iva igualdade de acesso ao quecomumente se tem como conducente

    ao bem-estar individual e coletivo. Esta

    era, como j dito, a viso liberal deri-

    vada das idias iluministas que con-

    duziram s revolues polticas do s-culo XVIII.

    Mas essa suposta neutralidade es-

    tatal tem-se revelado um formidvel fra-

    casso, especialmente nas sociedades que

    durante muitos sculos mantiveram cer-tos grupos ou categorias de pessoas em

    posio de subjugao legal, de inferio-

    ridade legitimada pela lei, em suma, em

    pases com longo passado de escravi-

    do. Nesses pases, apesar da existnciade inumerveis disposies normativas

    constitucionais e legais, muitas delas ins-

    titudas com o objetivo explcito de fazer

    cessar o status de inferioridade em que

    se encontravam os grupos sociais histo-ricamente discriminados, passaram-se

  • Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 93

    os anos (e sculos) e a situao desses

    grupos marginalizados pouco ou quase

    nada mudou.12

    Tal estado de coisas conduz aduas constataes indisputveis. Em

    primeiro lugar, convico de que pro-

    clamaes jurdicas por si ss, sejam

    elas de natureza constitucional ou de

    inferior posicionamento na hierarquianormativa, no so suficientes para re-

    verter um quadro social que finca n-

    coras na tradio cultural de cada pas,

    no imaginrio coletivo, em suma, na

    percepo generalizada de que a unsdevem ser reservados papis de fran-

    ca dominao e a outros, papis

    indicativos do status de inferioridade,

    de subordinao. Em segundo lugar,

    ao reconhecimento de que a reversode um tal quadro s vivel mediante

    a renncia do Estado a sua histrica

    neutralidade em questes sociais, de-

    vendo assumir, ao revs, uma posio

    ativa, at mesmo radical se vista luzdos princpios norteadores da socieda-

    de liberal clssica.

    Desse imperativo de atuao ativa

    do Estado nasceram as aes afirmati-

    vas, concebidas inicialmente nos Esta-dos Unidos da Amrica, mas hoje j

    adotadas em diversos pases europeus,

    asiticos e africanos, com as adaptaes

    necessrias situao de cada pas.13 14

    15 O Brasil, pas com a mais longa hist-ria de escravido das Amricas e com

    uma inabalvel tradio patriarcal, mal

    comea a admitir, pelo menos em nvel

    acadmico, a discusso do tema.16

    2 DEFINIO E OBJETIVOS DAS AES

    AFIRMATIVAS

    A introduo das polticas de aoafirmativa, criao pioneira do Direito dos

    EUA, representou, em essncia, a mu-

    dana de postura do Estado, que em

    nome de uma suposta neutralidade, apli-

    cava suas polticas governamentais in-distintamente, ignorando a importncia

    de fatores como sexo, raa, cor, origem

    nacional. Nessa nova postura, passa o

    Estado a levar em conta tais fatores no

    momento de contratar seus funcionri-os ou de regular a contratao por ou-

    trem, ou ainda no momento de regular

    o acesso aos estabelecimentos educaci-

    onais pblicos e privados. Numa pala-

    vra, ao invs de conceber polticas p-blicas de que todos seriam beneficirios,

    independentemente da sua raa, cor ou

    sexo, o Estado passa a levar em conta

    esses fatores na implementao das suas

    decises, no para prejudicar quem querque seja, mas para evitar que a discrimi-

    nao, que inegavelmente tem um fun-

    do histrico e cultural, e no raro se sub-

    trai ao enquadramento nas categorias

    jurdicas clssicas, finde por perpetuaras iniqidades sociais.

  • Srie Cadernos do CEJ, 2494

    2.1 Definio Inicialmente, as

    aes afirmativas se definiam como um

    mero encorajamento por parte do Es-

    tado a que as pessoas com poderdecisrio nas reas pblica e privada le-

    vassem em considerao, nas suas de-

    cises relativas a temas sensveis como

    o acesso educao e ao mercado de

    trabalho, fatores at ento tidos comoformalmente irrelevantes pela grande

    maioria dos responsveis polticos e

    empresariais, quais sejam, a raa, a cor,

    o sexo e a origem nacional das pesso-

    as. Tal encorajamento tinha por meta,tanto quanto possvel, ver concretizado

    o ideal de que tanto as escolas quanto

    as empresas refletissem em sua com-

    posio a representao de cada grupo

    na sociedade ou no respectivo mercadode trabalho.

    Num segundo momento, talvez em

    decorrncia da constatao da ineficcia

    dos procedimentos clssicos de comba-

    te discriminao, deu-se incio a umprocesso de alterao conceitual do ins-

    tituto, que passou a ser associado idia,

    mais ousada, de realizao da igualdade

    de oportunidades atravs da imposio

    de cotas rgidas de acesso de represen-tantes de minorias a determinados seto-

    res do mercado de trabalho e a institui-

    es educacionais. Data tambm desse

    perodo a vinculao entre ao afirmati-

    va e o atingimento de certas metas esta-tsticas concernentes presena de ne-

    gros e mulheres num determinado setor

    do mercado de trabalho ou numa deter-

    minada instituio de ensino.17

    Atualmente, as aes afirmativaspodem ser definidas como um conjunto

    de polticas pblicas e privadas de car-

    ter compulsrio, facultativo ou volunt-

    rio, concebidas com vistas ao combate

    discriminao racial, de gnero, pordeficincia fisica e de origem nacional,

    bem como para corrigir ou mitigar os

    efeitos presentes da discriminao pra-

    ticada no passado, tendo por objetivo a

    concretizao do ideal de efetiva igual-dade de acesso a bens fundamentais

    como a educao e o emprego. Diferen-

    temente das polticas governamentais

    antidiscriminatrias baseadas em leis de

    contedo meramente proibitivo, que sesingularizam por oferecerem s respec-

    tivas vtimas to-somente instrumentos

    jurdicos de carter reparatrio e de in-

    terveno ex post facto, as aes afir-

    mativas tm natureza multifacetria18, evisam a evitar que a discriminao se

    verifique nas formas usualmente conhe-

    cidas isto , formalmente, por meio de

    normas de aplicao geral ou especfi-

    ca, ou atravs de mecanismos informais,difusos, estruturais, enraizados nas pr-

    ticas culturais e no imaginrio coletivo.

    Em sntese, trata-se de polticas e de

    mecanismos de incluso concebidos

    por entidades pblicas, privadas e porrgos dotados de competncia

  • Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 95

    jurisdicional, com vistas concretizao

    de um objetivo constitucional universal-

    mente reconhecido o da efetiva igual-

    dade de oportunidades a que todos osseres humanos tm direito.

    Entre os tericos do Direito Pblico

    no Brasil, coube ilustre professora Car-

    men Lcia Antunes Rocha o desafio de

    traduzir para a comunidade jurdica bra-sileira, em sublime artigo, a mais com-

    pleta noo acerca do enquadramento

    jurdico-doutrinrio das aes afirmati-

    vas. Classificando-as corretamente como

    a mais avanada tentativa de concre-tizao do princpio jurdico da igualda-

    de, ela afirma com propriedade que a

    definio jurdica objetiva e racional da

    desigualdade dos desiguais, histrica e

    culturalmente discriminados, concebi-da como uma forma para se promover

    a igualdade daqueles que foram e so

    marginalizados por preconceitos

    encravados na cultura dominante na so-

    ciedade. Por esta desigualao positivapromove-se a igualao jurdica efetiva;

    por ela afirma-se uma frmula jurdica

    para se provocar uma efetiva igualao

    social, poltica, econmica no e segun-

    do o Direito, tal como assegurado for-mal e materialmente no sistema consti-

    tucional democrtico. A ao afirmativa

    , ento, uma forma jurdica para se su-

    perar o isolamento ou a diminuio so-

    cial a que se acham sujeitas as minori-as.19 Essa engenhosa criao jurdico-

    poltico-social refletiria ainda, segundo

    a autora, uma mudana compor-

    tamental dos juzes constitucionais de

    todo o mundo democrtico do ps-guer-ra, que teriam se conscientizado da ne-

    cessidade de uma transformao na

    forma de se conceberem e aplicarem os

    direitos, especialmente aqueles listados

    entre os fundamentais. No bastavam asletras formalizadoras das garantias pro-

    metidas; era imprescindvel instrumen-

    talizarem-se as promessas garantidas

    por uma atuao exigvel do Estado e

    da sociedade. Na esteira desse pensa-mento, pois, que a ao afirmativa

    emergiu como a face construtiva e cons-

    trutora do novo contedo a ser buscado

    no princpio da igualdade jurdica. O Di-

    reito Constitucional, posto em aberto,mutante e mutvel para se fazer perma-

    nentemente adequado s demandas

    sociais, no podia persistir no conceito

    esttico de um direito de igualdade pron-

    to, realizado segundo parmetros hist-ricos eventualmente ultrapassados. E

    prossegue a ilustre autora: O conte-

    do, de origem bblica, de tratar igualmen-

    te os iguais e desigualmente os desiguais

    na medida em que se desigualam sem-pre lembrado como sendo a essncia do

    princpio da igualdade jurdica encon-

    trou uma nova interpretao no acolhi-

    mento jurisprudencial concernente

    ao afirmativa. Segundo essa nova in-terpretao, a desigualdade que se pre-

  • Srie Cadernos do CEJ, 2496

    tende e se necessita impedir para se re-

    alizar a igualdade no Direito no pode

    ser extrada, ou cogitada, apenas no mo-

    mento em que se tomam as pessoaspostas em dada situao submetida ao

    Direito, seno que se deve atentar para

    a igualdade jurdica a partir da conside-

    rao de toda a dinmica histrica da

    sociedade, para que se focalize e se re-trate no apenas um instante da vida

    social, aprisionada estaticamente e

    desvinculada da realidade histrica de

    determinado grupo social. H que se

    ampliar o foco da vida poltica em suadinmica, cobrindo espao histrico que

    se reflita ainda no presente, provocan-

    do agora desigualdades nascentes de

    preconceitos passados, e no de todo

    extintos. A discriminao de ontem podeainda tingir a pele que se v de cor di-

    versa da que predomina entre os que

    detm direitos e poderes hoje.

    2.2 Objetivos das aes afirmati-

    vas Em regra geral, justifica-se a ado-

    o das medidas de ao afirmativa com

    o argumento de que esse tipo de polti-

    ca social seria apta a atingir uma sriede objetivos que restariam normalmen-

    te inalcanados caso a estratgia de

    combate discriminao se limitasse

    adoo, no campo normativo, de regras

    meramente proibitivas de discrimina-o. Numa palavra, no basta proibir,

    preciso tambm promover, tornando ro-

    tineira a observncia dos princpios da

    diversidade e do pluralismo, de tal sor-

    te que se opere uma transformao nocomportamento e na mentalidade co-

    letiva, que so, como se sabe, molda-

    dos pela tradio, pelos costumes, em

    suma, pela histria.

    Assim, alm do ideal de concre-tizao da igualdade de oportunidades,

    figuraria entre os objetivos almejados

    com as polticas afirmativas o de indu-

    zir transformaes de ordem cultural,

    pedaggica e psicolgica, aptas a sub-trair do imaginrio coletivo a idia de

    supremacia e de subordinao de uma

    raa em relao outra, do homem em

    relao mulher. O elemento propul-

    sor dessas transformaes seria, assim,o carter de exemplaridade de que se

    revestem certas modalidades de ao

    afirmativa, cuja eficcia como agente de

    transformao social poucos at hoje

    ousaram negar. Ou seja, de um lado es-sas polticas simbolizariam o reconhe-

    cimento oficial da persistncia e da pe-

    renidade das prticas discriminatrias

    e da necessidade de sua eliminao. De

    outro, elas teriam tambm por metaatingir objetivos de natureza cultural, eis

    que delas inevitavelmente resultam a

    trivializao, a banalizao, na polis, da

    necessidade e da utilidade de polticas

    pblicas voltadas implantao dopluralismo e da diversidade.

  • Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 97

    Por outro lado, as aes afirmati-

    vas tm corno objetivo no apenas coi-

    bir a discriminao do presente, mas

    sobretudo eliminar os efeitos persis-tentes (psicolgicos, culturais e

    comportamentais) da discriminao do

    passado, que tendem a se perpetuar.

    Esses efeitos se revelam na chamada

    discriminao estrutural espelhadanas abismais desigualdades sociais

    entre grupos dominantes e grupos

    marginalizados.20

    Figura tambm como meta das

    aes afirmativas a implantao de umacerta diversidade e de uma maior

    representatividade dos grupos

    minoritrios nos mais diversos domni-

    os de atividade pblica e privada.21 Par-

    tindo da premissa de que tais gruposnormalmente no so representados em

    certas reas ou so sub-representados

    seja em posies de mando e prestgio

    no mercado de trabalho e nas ativida-

    des estatais, seja nas instituies de for-mao que abrem as portas ao sucesso

    e s realizaes individuais, as polticas

    afirmativas cumprem o importante pa-

    pel de cobrir essas lacunas, fazendo com

    que a ocupao das posies do Estadoe do mercado de trabalho se faa, na

    medida do possvel, em maior harmo-

    nia com o carter plrimo da sociedade.

    Nesse sentido, o efeito mais visvel des-

    sas polticas, alm do estabelecimentoda diversidade e representatividade pro-

    priamente ditas, o de eliminar as bar-

    reiras artificiais e invisveis que

    emperram o avano de negros e mulhe-

    res, independentemente da existncia ouno de poltica oficial tendente a

    subalterniz-los.22

    Argumenta-se igualmente que o

    pluralismo que se instaura em decorrn-

    cia das aes afirmativas traria inegveisbeneficios para os prprios pases que

    se definem como multirraciais e que as-

    sistem, a cada dia, ao incremento do fe-

    nmeno do multicultura-lismo. Para es-

    ses pases, constituiria um erro estrat-gico inadmissvel deixar de oferecer

    oportunidades efetivas de educao e de

    trabalho a certos segmentos da popula-

    o, pois isto pode revelar-se, em m-

    dio prazo, altamente prejudicial competitividade e produtividade eco-

    nmica do Pas. Portanto, agir afirmati-

    vamente seria tambm uma forma de

    zelar pela pujana econmica do Pas.

    Por fim, as aes afirmativas cum-pririam o objetivo de criar as chamadas

    personalidades emblemticas. Noutras

    palavras, alm das metas acima menci-

    onadas, elas constituiriam um mecanis-

    mo institucional de criao de exemplosvivos de mobilidade social ascendente.

    Vale dizer, os representantes de minori-

    as que, por terem alcanado posies

    de prestgio e poder, serviriam de exem-

    plo s geraes mais jovens, que veri-am em suas carreiras e realizaes pes-

  • Srie Cadernos do CEJ, 2498

    soais a sinalizao de que no haveria,

    chegada a sua vez, obstculos intrans-

    ponveis realizao de seus sonhos e

    concretizao de seus projetos de vida.Em suma, com esta conotao, as aes

    afirmativas atuariam como mecanismo

    de incentivo educao e ao aprimora-

    mento de jovens integrantes de grupos

    minoritrios, que invariavelmente assis-tem ao bloqueio de seu potencial de

    inventividade, de criao e de motiva-

    o ao aprimoramento e ao crescimen-

    to individual, vtimas das sutilezas de um

    sistema jurdico, poltico, econmico esocial concebido para mant-los em si-

    tuao de excludos.

    3 A PROBLEMTICA CONSTITUCIONAL

    As aes afirmativas situam-se no

    cerne do debate constitucional contem-

    porneo, e interferem em questes que

    remontam prpria origem da demo-cracia moderna, suscitando questiona-

    mentos acerca de temas fundamentais

    do modelo de organizao poltica pre-

    ponderante no hemisfrio ocidental. A

    presente reflexo no visa a examinarcom profundidade esses temas. Sobre

    eles faremos, portanto, apenas un tour

    dhorizon. Vejamos.

    As afirmaes afirmativas suscitam,

    em primeiro lugar, o debate crucial acercada destinao dos recursos pblicos.

    Recursos, frise-se, escassos por defini-

    o. O Estado Moderno, como se sabe,

    resulta do imperativo iluminista de que

    o conjunto dos recursos da Nao deveser convertido em prol do interesse de

    todos, do bem-estar geral da coletivida-

    de (The Welfare of lhe Nation, Der

    Wohlstand). A Histria e o Direito Com-

    parado a esto para nos fornecer algu-mas pistas e nos alertar contra o perigo

    da inrcia neste domnio. Com efeito,

    at enfadonho relembrar que a ruptura

    brutal com o ancien rgime se materia-

    lizou precisamente na abolio dos pri-vilgios que, por lei, eram atribudos a

    certas classes de cidados. A Democra-

    cia que se seguiu, sobretudo na concep-

    o ulterior que deu margem ao

    surgimento do Estado de bem-estar so-cial, tem como um dos seus pilares a

    tentativa de distribuio equnime e ge-

    neralizada dos recursos originrios do

    labor coletivo.

    Por outro lado, no se deve perderde vista que a amoldagem do atual Es-

    tado promovente (uma realidade quase

    universal) em grande parte tributria

    desse rigoroso zelo que as verdadeiras

    democracias tm para com o corretomanuseio de recursos pblicos. De fato,

    questes-chave do constitucionalismo

    moderno derivam dessa matriz: qual se-

    ria o propsito legtimo do dispndio

    de recursos nacionais? Em que medidase pode questionar a constitucionalidade

  • Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 99

    de certos programas governamentais

    luz da exata relao deles extravel entre

    dispndio de recursos pblicos e incre-

    mento do bem-estar coletivo? At queponto pode o rgo representante da

    Nao compelir atores pblicos e priva-

    dos beneficirios desses recursos a se

    conformarem s regras de eqidade

    nsitas a toda e qualquer democracia?Das mltiplas respostas a essas ques-

    tes, como se sabe, emergiu o Estado

    interventivo e regulador e o seu corolrio

    o Estado de Bem-Estar Social.

    Ora, o pas que ignora essas no-es bsicas e reserva a uma pequena

    minoria os instrumentos de aprimora-

    mento humano aptos a abrir as portas

    prosperidade e ao bem-estar individual

    e coletivo, e, alm disso (e tambm emconseqncia disso), adota, ainda que

    informalmente, uma poltica de empre-

    go impregnada de visvel e insuportvel

    hierarquizao social, pratica nada mais

    nada menos do que uma nova forma detirania.

    Sim, disso que se trata. Uma ti-

    rania legal, eis que formalmente anco-

    rada em normas emanadas dos rgos

    legislativos e executada por rgos quesupostamente encarnam a soberania

    popular. No caso brasileiro, no preci-

    so muito esforo para se convencer dis-

    so. Vejamos. No estado atual das coisas,

    a excluso social de que os negros soas principais vtimas no Brasil deriva de

    alguns fatores, dentre os quais figura o

    esquema perverso de distribuio de

    recursos pblicos em matria de educa-

    o. A Educao a mais importantedentre as diversas prestaes que o in-

    divduo recebe ou tem legtima expecta-

    tiva de receber do Estado. Trata-se, como

    se sabe, de um bem escasso. O Estado

    alega no poder fornec-lo a todos naforma tida como ideal, isto , em carter

    universal e gratuito. No entanto, esse

    mesmo Estado que se diz impossibilita-

    do de fornecer a todos esse bem indis-

    pensvel, institucionaliza mecanismossutis atravs dos quais proporciona s

    classes privilegiadas aquilo que alega

    no poder oferecer generalidade dos

    cidados. Com efeito, o Estado finan-

    cia, com recursos que deveriam ser ca-nalizados a instituies pblicas de aces-

    so universal, a educao dos filhos das

    classes de maior poder aquisitivo, por

    meio de diversos mecanismos. Isto se

    d principalmente atravs da rennciafiscal de que so beneficirias as esco-

    las privadas altamente seletivas e

    excludentes. Certo, no seria justo ne-

    gar s elites (supostas ou verdadeiras) o

    direito de matricular os seus filhos emescolas seletivas, onde eles se sintam

    chez eux, longe da populace. O direito

    de escolher uma educao diferencia-

    da para os filhos constitui, a nosso sen-

    tir, uma liberdade fundamental a ser ga-rantida pelo Estado. O que questionvel

  • Srie Cadernos do CEJ, 24100

    o compartilhamento do custo desse

    luxo com toda a coletividade: atravs

    dos tributos de que essas escolas so

    isentas, das subvenes diversas quelhes so passadas pelos Governos das

    trs esferas polticas, pelo abatimento

    das respectivas despesas no montante

    devido a ttulo de imposto de renda! Es-

    ses so alguns dos elementos que com-pem a formidvel machine exclure

    que tem nos negros as suas vtimas pre-

    ferenciais. Essa forma de excluso or-

    questrada e disciplinada pela lei produz

    o extraordinrio efeito de contrapor, deum lado, a escola pblica, republicana,

    aberta a todos, que deveria oferecer en-

    sino de boa qualidade a pobres e ricos,

    a uma escola privada, elitista,

    discriminatria e... largamente financia-da com recursos que deveriam benefi-

    ciar a todos. Este o primeiro aspecto

    da excluso.

    O segundo aspecto ocorre na sele-

    o ao ensino superior. A todos j sa-bem: os papis se invertem. O ensino

    superior de qualidade no Brasil est qua-

    se inteiramente nas mos do Estado. E

    o que faz o Estado nesse domnio? Ins-

    titui um mecanismo de seleo que vaijustamente propiciar a exclusividade do

    acesso, sobretudo aos cursos de maior

    prestgio e aptos a assegurar um bom

    futuro profissional, queles que se be-

    neficiaram do processo de excluso aci-ma mencionado, isto , os financeira-

    mente bem aquinhoados. O vestibular,

    este mecanismo intrinsecamente intil

    sob a tica do aprendizado, no tem

    outro objetivo que no o de excluir.Mais precisamente, o de excluir os soci-

    almente fragilizados, de sorte a permitir

    que os recursos pblicos destinados

    educao (canalizados tanto para as ins-

    tituies pblicas quanto para as de ca-rter comercial, como j vimos) sejam

    gastos no em prol de todos, mas para

    benefcio de poucos. Em suma, trata-se

    de uma subverso total de um dos prin-

    cpios informadores do Estado moder-no, sintetizado de forma lapidar em feliz

    expresso cunhada pela Corte Suprema

    dos EUA: the power of Congress to

    authorize expenditure of public moneys

    for public purposes.Esta , pois, a chave para se enten-

    der por que existem to poucos negros

    nas universidades pblicas brasileiras, e

    quase nenhum nos cursos de maior pres-

    tgio e demanda: os recursos pblicosso canalizados preponderantemente

    para as classes mais afluentes,23 24 res-

    tando aos pobres (que so majoritaria-

    mente negros) as migalhas do sistema.

    Este o aspecto perverso do siste-ma educacional brasileiro. Os negros so

    suas principais vtimas. E este , sem

    dvida, um problema constitucional de

    primeira grandeza, pois nos remete

    noo primitiva de democracia, a saber:em que, por quem e em benefcio de

  • Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 101

    quem so despendidos os recursos fi-

    nanceiros da Nao.

    Agir afirmativamente significa ter

    conscincia desses problemas e tomardecises coerentes com o imperativo

    indeclinvel de remedi-los. Alm da

    vontade poltica, que fundamental,

    preciso colocar de lado o formalismo t-

    pico da nossa praxis jurdico-institucionale entender que a questo de vital im-

    portncia para a legtima aspirao de

    todos de que um dia o Pas se subtraia

    ao oprbrio internacional a que sempre

    esteve confinado, e ocupe o espao, aposio e o respeito que a sua histria,

    o seu povo, suas realizaes e o seu

    peso poltico e econmico recomendam.

    No plano estritamente jurdico (que

    se subordina, a nosso sentir, tomadade conscincia assinalada nas linhas an-

    teriores), o Direito Constitucional vigente

    no Brasil, perfeitamente compatvel com

    o princpio da ao afirmativa. Melhor di-

    zendo, o Direito brasileiro j contemplaalgumas modalidades de ao afirmati-

    va, inclusive em sede constitucional.

    A questo se coloca, claro, no ter-

    reno do princpio constitucional da igual-

    dade. Este princpio, porm, comportavrias vertentes.

    3.3. Igualdade formal ou

    procedimental x igualdade de resulta-

    dos ou material O cerne da questoreside em saber se na implemen-tao

    do princpio constitucional da igualda-

    de o Estado deve assegurar apenas

    uma certa neutralidade processual

    (procedural due process of law) ou, aocontrrio, se sua ao deve se encami-

    nhar de preferncia para a realizao de

    uma igualdade de resultados ou igual-

    dade material. A teoria constitucional

    clssica, herdeira do pensamento deLocke, Rousseau e Montesquieu, res-

    ponsvel pelo florescimento de uma con-

    cepo meramente formal de igualdade

    a chamada igualdade perante a lei.

    Trata-se em realidade de uma igualda-de meramente processual (process-

    regarding equality). As notrias insufi-

    cincias dessa concepo de igualdade

    conduziram paulatinamente adoo

    de uma nova postura, calcada no maisnos meios que se outorgam aos indiv-

    duos num mercado competitivo, mas

    nos resultados efetivos que eles podem

    alcanar. Resumindo singelamente a

    questo, diramos que as naes quehistoricamente se apegaram ao concei-

    to de igualdade formal so aquelas onde

    se verificam os mais gritantes ndices

    de injustia social, eis que, em ltima

    anlise, fundamentar toda e qualquerpoltica governamental de combate

    desigualdade social na garantia de que

    todos tero acesso aos mesmos ins-

    trumentos de combate corresponde, na

    prtica, a assegurar a perpetuao dadesigualdade. Isto porque essa opo

  • Srie Cadernos do CEJ, 24102

    processual no leva em conta aspec-

    tos importantes que antecedem en-

    trada dos indivduos no mercado com-

    petitivo. J a chamada igualdade de re-sultados tem como nota caracterstica

    exatamente a preocupao com os fa-

    tores externos luta competitiva tais

    como classe ou origem social, nature-

    za da educao recebida , que tm ine-gvel impacto sobre o seu resultado.25

    Vrios dispositivos da Constituio

    Brasileira de 1988 revelam o repdio do

    constituinte pela igualdade processual

    e sua opo pela concepo de igualda-de dita material ou de resultados.

    Assim, por exemplo, os artigos 3o,

    7o, XX; 37, VIII, e 170 dispem:

    Art. 3o. Constituem objetivos fun-damentais da Repblica Federativa do

    Brasil:

    I construir uma sociedade livre,

    justa e solidria;(...)III erradicar a pobreza e a

    marginalizao e reduzir as desigual-dades sociais e regionais.

    Art. 170. A ordem econmica, fun-dada na valorizao do trabalho huma-

    no e na livre iniciativa, tem por fim asse-

    gurar a todos existncia digna, confor-

    me os ditames da justia social, obser-vados os seguintes princpios:

    (...)

    VII reduo das desigualdadesregionais e sociais (...)

    IX tratamento favorecido para asempresas de pequeno porte constitu-

    das sob as leis brasileiras e que tenham

    sua sede e administrao no Pas.26

    Art. 7o. So direitos dos trabalha-

    dores urbanos e rurais, alm de outrosque visem melhoria de sua condio

    social:

    (...)

    XX proteo do mercado de tra-

    balho da mulher, mediante incentivosespecficos, nos termos da lei;

    Art. 37 (...)

    VIII A lei reservar percentual dos

    cargos e empregos pblicos para as pes-soas portadoras de deficincia e defini-

    r os critrios de sua admisso.

    patente, pois, a maior preocu-

    pao do legislador constituinte origi-nrio com os direitos e garantias fun-

    damentais, bem como com a questo

    da igualdade, especialmente a

    implementao da igualdade substan-

    cial. Flvia Piovesan assinala como sm-bolo dessa preocupao (a) topogra-

    fia de destaque que recebe este grupo

    de direitos (fundamentais) e deveres em

    relao s Constituies anteriores; (b)

    a elevao, clusula ptrea, dos di-reitos e garantias individuais (art. 60,

  • Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 103

    4o, IV); (c) o aumento dos bens mere-

    cedores de tutela e da titularidade de

    novos sujeitos de direito (coletivo),

    tudo comparativamente s Cartas an-tecedentes27 Some-se a isso a previ-

    so expressa, em sede constitucional,

    da igualdade entre homens e mulhe-

    res (art. 5o, I) e, em alguns casos, da

    permisso expressa para utilizao dasaes afirmativas, com o intuito de

    implementar a igualdade, tais como o

    artigo 37, VIII (reserva de cargos e em-

    pregos pblicos para pessoas portado-

    ras de deficincia) e art. 7o, XX (prote-o do mercado de trabalho da mu-

    lher, mediante incentivos especficos,

    nos termos da lei).

    V-se, portanto, que a Constituio

    Brasileira de 1988 no se limita a proi-bir a discriminao, afirmando a igual-

    dade, mas permite, tambm, a utiliza-

    o de medidas que efetivamente

    implementem a igualdade material. E

    mais: tais normas propiciadoras daimplementao do princpio da igualda-

    de se acham precisamente no Ttulo I

    da Constituio, o que trata dos princ-

    pios fundamentais da nossa Repblica,

    isto , cuida-se de normas que infor-mam todo o sistema constitucional, co-

    mandando a correta interpretao de

    outros dispositivos constitucionais.

    Como bem sustentou a ilustre Profes-

    sora de Direito Constitucional da PUCde Minas Gerais, Carmen Lcia Antunes

    Rocha, a Constituio Brasileira de

    1988 tem, no seu prembulo, uma de-

    clarao que apresenta um momento

    novo no constitucionalismo ptrio: aidia de que no se tem a democracia

    social, a justia social, mas que o Direito

    foi ali elaborado para que se chegue a

    t-los (...) O princpio da igualdade res-

    plandece sobre quase todos os outrosacolhidos como pilastras do edifcio

    normativo fundamental alicerado.

    guia no apenas de regras, mas de quase

    todos os outros princpios que informam

    e conformam o modelo constitucionalpositivado, sendo guiado apenas por

    um, ao qual se d a servir: o da dignida-

    de da pessoa humana (art. 1o, III, da

    Constituio da Repblica).28 E prosse-

    gue a ilustre jurista, fazendo aluso ex-pressa aos dispositivos constitucionais

    acima transcritos: Verifica-se que todos

    os verbos utilizados na expresso

    normativa construir, erradicar, redu-

    zir, promover so de ao, vale dizer,designam um comportamento ativo. O

    que se tem, pois, que os objetivos

    fundamentais da Repblica Federativa

    do Brasil so definidos em termos de

    obrigaes transformadoras do quadrosocial e poltico retratado pelo constitu-

    inte quando da elaborao do texto

    constitucional. E todos os objetivos con-

    tidos, especialmente, nos trs incisos

    acima transcritos do art. 3o da Lei Fun-damental da Repblica, traduzem exa-

  • Srie Cadernos do CEJ, 24104

    tamente mudana para se chegar

    igualdade. Em outro dizer, a expresso

    normativa constitucional significa que a

    Constituio determina uma mudanado que se tem em termos de condies

    sociais, polticas, econmicas e regio-

    nais, exatamente para se alcanar a re-

    alizao do valor supremo a fundamen-

    tar o Estado Democrtico de Direitoconstitudo. Se a igualdade jurdica fos-

    se apenas a vedao de tratamentos

    discriminatrios, o princpio seria abso-

    lutamente insuficiente para possibilitar

    a realizao dos objetivos fundamen-tais da Repblica constitucionalmente

    definidos. Pois daqui para a frente, nas

    novas leis e comportamentos regulados

    pelo Direito, apenas seriam impedidas

    manifestaes de preconceitos ou co-metimentos discriminatrios. Mas como

    mudar, ento, tudo o que se tem e se

    sedimentou na histria poltica, social e

    econmica nacional? Somente a ao

    afirmativa, vale dizer, a atuaotransformadora, igualadora pelo e se-

    gundo o Direito possibilita a verdade do

    princpio da igualdade, para se chegar

    igualdade que a Constituio Brasi-

    leira garante como direito fundamentalde todos. O art. 3o traz uma declarao,

    uma afirmao e uma determinao em

    seus dizeres. Declara-se, ali, implcita,

    mas claramente, que a Repblica Fede-

    rativa do Brasil no livre, porque nose organiza segundo a universalidade

    desse pressuposto fundamental para o

    exerccio dos direitos, pelo que, no dis-

    pondo todos de condies para o exer-

    ccio de sua liberdade, no pode ser jus-ta. No justa porque plena de desi-

    gualdades antijurdicas e deplorveis

    para abrigar o mnimo de condies dig-

    nas para todos. E no solidria por-

    que fundada em preconceitos de todasorte (...) O inciso IV do mesmo art. 3o

    mais claro e afinado, at mesmo no ver-

    bo utilizado, com a ao afirmativa. Por

    ele se tem ser um dos objetivos funda-

    mentais promover o bem de todos, sempreconceitos de origem, raa, sexo, cor,

    idade e quaisquer outras formas de dis-

    criminao. Verifica-se, ento, que no

    se repetiu apenas o mesmo modelo

    principiolgico que adotaram constitu-intes anteriormente atuantes no Pas.

    Aqui se determina, agora uma ao afir-

    mativa: aquela pela qual se promova o

    bem de todos, sem preconceitos (de)

    quaisquer... formas de discriminao.Significa que se universaliza a igualda-

    de e promove-se a igualao: somente

    com uma conduta ativa, positiva, afir-

    mativa, que se pode ter a transfor-

    mao social buscada como objetivofundamental da Repblica... Se fosse

    apenas para manter o que se tem, sem

    figurar o passado ou atentar hist-

    ria, teria sido suficiente, mais ainda,

    teria sido necessrio, tecnicamente, queapenas se estabelecesse ser objetivo

  • Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 105

    manter a igualdade sem preconceitos,

    etc. No foi o que pretendeu a Consti-

    tuio de 1988. Por ela se buscou a

    mudana do conceito, do contedo, daessncia e da aplicao do princpio da

    igualdade jurdica, com relevo dado

    sua imprescindibilidade para a trans-

    formao da sociedade, a fim de se

    chegar a seu modelo livre, justa e soli-dria. Com promoo de mudanas,

    com a adoo de condutas ativas, com

    a construo de novo figurino scio-

    poltico que se movimenta no senti-

    do de se recuperar o que de equivoca-do antes se fez.29

    Esta, portanto, a concepo mo-

    derna e dinmica do princpio constitu-

    cional da igualdade, a que conclama o

    Estado a deixar de lado a passividade, arenunciar sua suposta neutralidade e

    a adotar um comportamento ativo, po-

    sitivo, afirmativo, quase militante, na bus-

    ca da concretizao da igualdade subs-

    tancial.Note-se, mais uma vez, que este

    tipo de comportamento estatal no

    estranho ao Direito brasileiro ps-Cons-

    tituio de 1988. Ao contrrio, a

    imprescindibilidade de medidas correti-vas e redistributivas visando a mitigar a

    agudeza da nossa questo social j foi

    reconhecida em sede normativa, atravs

    de leis vocacionadas a combater os efei-

    tos nefastos de certas formas de discri-minao. Nesse sentido, importante fri-

    sar, o Direito brasileiro j contempla al-

    gumas modalidades de ao afirmativa.

    No obstante tratar-se de experincias

    ainda tmidas quanto ao seu alcance eamplitude, o importante a ser destaca-

    do o fato da acolhida desse instituto

    jurdico em nosso Direito.

    4 AO AFIRMATIVA E RELAES DE

    GNERO

    A discriminao de gnero, fruto de

    uma longa tradio patriarcal que noconhece limites geogrficos tampouco

    culturais, do conhecimento de todos

    os brasileiros. Entre ns, o status de in-

    ferioridade da mulher em relao ao

    homem foi por muito tempo considera-do como algo qui va de soi, normal, de-

    corrente da prpria natureza das coi-

    sas. A tal ponto que essa inferioridade

    era materializada expressamente na nos-

    sa legislao civil.A Constituio de 1988 (art. 5o, I)

    no apenas aboliu essa discriminao

    chancelada pelas leis, mas tambm,

    atravs dos diversos dispositivos

    antidiscriminatrios j mencionados,permitiu que se buscassem mecanismos

    aptos a promover a igualdade entre ho-

    mens e mulheres. Assim, com vistas a

    minimizar essa flagrante desigualdade

    existente em detrimento das mulheres,nasceu, entre ns, a modalidade de ao

  • Srie Cadernos do CEJ, 24106

    afirmativa hoje corporificada nas Leis nos

    9.100/1995 e 9.504/1997, que estabe-

    leceram cotas mnimas de candidatas

    mulheres para as eleies30.As mencionadas leis representam,

    em primeiro lugar, o reconhecimento

    pelo Estado de um fato inegvel: a exis-

    tncia de discriminao contra as bra-

    sileiras, cujo resultado mais visvel aexasperante sub-representao femini-

    na em um dos setores-chave da vida

    nacional o processo poltico. Com

    efeito, o legislador ordinrio, conscien-

    te de que em toda a histria polticado Pas foi sempre desprezvel a partici-

    pao feminina, resolveu remediar a si-

    tuao atravs de um corretivo que nada

    mais do que uma das muitas tcnicas

    atravs das quais, em Direito Compa-rado, so concebidas e implementadas

    as aes afirmativas: o mecanismo das

    cotas.

    As Leis nos 9.100/1995 e 9.504/1997

    tiveram a virtude de lanar o debate emtorno das aes afirmativas e, sobretu-

    do, de tornar evidente a necessidade pre-

    mente de se implementar de maneira

    efetiva a isonomia em matria de gne-

    ro em nosso pas. As cotas de candida-turas femininas constituem apenas o pri-

    meiro passo nesse sentido. Se certo

    que preciso tempo para se fazer ava-

    liaes mais seguras acerca da sua efi-

    ccia como medida de transformaosocial, no h dvida de que j se anun-

    ciam alguns resultados alvissareiros,

    como o incremento significativo, em ter-

    mos globais, da participao feminina

    nas instncias de poder31.Assim, as mencionadas leis consa-

    gram a recepo definitiva pelo Direito

    brasileiro do princpio da ao afirmati-

    va. Ainda que limitada a uma forma es-

    pecfica de discriminao, o fato queessa poltica social ingressou nos moeurs

    politiques da Nao, uma vez que foi

    aplicada sem contestao em dois plei-

    tos eleitorais.

    5 AO AFIRMATIVA E PORTADORES

    DE DEFICINCIA

    O mesmo princpio tambm vemsendo adotado pela legislao que visa

    a proteger os direitos das pessoas por-

    tadoras de deficincia fsica.

    Com efeito, a Constituio Brasilei-

    ra, em seu artigo 37, VIII, prev expres-samente a reservas de vagas para defi-

    cientes fsicos na administrao pblica.

    Neste caso, a permisso constitucional

    para adoo de aes afirmativas em

    relao aos portadores de deficincia f-sica expressa. Da a iniciativa do legis-

    lador ordinrio, materializada nas Leis nos

    7.835/89 e 8.112/1990, que regulamen-

    taram o mencionado dispositivo consti-

    tucional. De fato, a Lei no 8.112/1990(Regime Jurdico nico dos Servidores

  • Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 107

    Pblicos Civis da Unio) estabelece em

    seu art. 5o, 2o, que s pessoas porta-

    doras de deficincia assegurado o di-

    reito de se inscrever em concurso pbli-co para provimento de cargo cujas atri-

    buies sejam compatveis com a defici-

    ncia de que so portadoras; para tais

    pessoas sero reservadas at 20% (vin-

    te por cento) das vagas oferecidas noconcurso.

    Comentando o dispositivo transcri-

    to, Mnica de Melo32, com muita proprie-

    dade, afirma:

    Desta forma, qualquer concurso

    pblico que se destine a preen-

    chimento de vagas para o servio

    pblico federal dever conter em

    seu edital a previso das vagas re-servadas para os portadores de

    deficincia. Note-se que o artigo

    fala em at 20% (vinte por cento)

    das vagas, o que possibilita uma

    reserva menor e o outro requisitolegal que as atribuies a se-

    rem desempenhadas sejam com-

    patveis com a deficincia apre-

    sentada. H entendimentos no

    sentido de que 10% (dez por cen-to) das vagas ser iam um

    percentual razovel, medida que

    no Brasil haveria 10% de pessoas

    portadoras de deficincia segun-

    do dados da Organizao Mundi-al de Sade.

    Esta outra modalidade de discri-

    minao positiva tem recebido o be-

    neplcito do Poder Judicirio. Com efei-

    to, tanto o Supremo Tribunal Federalquanto o Superior Tribunal de Justia

    j tiveram oportunidade de se mani-

    festar favoravelmente sobre o tema,

    verbis:

    Ementa:

    Sendo o art. 37, VII, da CF, norma

    de eficcia contida, surgiu o art. 5o,

    2o, do novel Estatuto dos Servi-dores Pblicos Federais, a toda evi-

    dncia, para regulamentar o citado

    dispositivo constitucional, a fim de

    lhe proporcionar a plenitude

    eficacial. Verifica-se, com toda a fa-cilidade, que o dispositvo da lei

    ordinria definiu os contornos do

    comando constitucional, assegu-

    rando o direito aos portadores de

    deficincia de se inscreverem emconcurso pblico, ditando que os

    cargos providos tenham atribui-

    es compatveis com a deficin-

    cia de que so portadores e, fi-

    nalmente, estabelecendo umpercentual mximo de vagas a

    serem a eles reservadas. Dentro

    desses parmetros, fica o adminis-

    trador com plena liberdade para

    regular o acesso dos deficientesaprovados no concurso para provi-

  • Srie Cadernos do CEJ, 24108

    mento de cargos pblicos, no ca-

    bendo prevalecer diante da garan-

    tia constitucional, o alijamento do

    deficiente por no ter logrado clas-sificao, muito menos por recusar

    o decisum afrontado que no te-

    nha a norma constitucional sido re-

    gulamentada pelo dispositivo da lei

    ordinria, to-s, por considerarno ter ela definido critrios sufici-

    entes. Recurso provido com a con-

    cesso da segurana, a fim de que

    seja oferecida recorrente vaga,

    dentro do percentual que for fixa-do para os deficientes, obedecida,

    entre os deficientes aprovados, a

    ordem de classificao, se for o

    caso. (RMS no 3.113-6/DF, 6a T.,

    6.12.1994, cujo Relator foi o Min.Pedro Acioli).

    Concurso pblico e vaga para

    deficientes

    Por ofensa ao art. 37, V, da CF (alei reservar percentual dos cargos

    e empregos pblicos para as pes-

    soas portadoras de deficincia e

    definir os critrios de sua admis-

    so), o Tribunal deu provimento arecurso extraordinrio para refor-

    mar acrdo do Tribunal de Justia

    do Estado de Minas Gerais que ne-

    gara portadora de deficincia o

    direito de ter assegurada uma vagaem concurso pblico ante a impos-

    sibilidade aritmtica de se destinar,

    dentre as 8 vagas existentes, a re-

    serva de 5% aos portadores de de-

    ficincia fsica (LC no 9/1992 doMunicpio de Divinpolis). O Tribu-

    nal entendeu que, na hiptese de

    a diviso resultar em nmero

    fracionado no importando que

    a frao seja inferior a meio , im-pe-se o arredondamento para

    cima. RE no 227.299-MG, rel. Min.

    Ilmar Galvo, 14.6.2000.

    (RE no 227.299).

    Como se v, a destinao de um

    percentual de vagas no servio pblico

    aos deficientes fsicos no viola o prin-

    cpio da isonomia. Em primeiro lugar,

    porque a deficincia fsica de que essaspessoas so portadoras traduz-se em

    uma situao de ntida desvantagem em

    seu detrimento, fato este que deve ser

    devidamente levado em conta pelo Es-

    tado, no cumprimento do seu dever deimplementar a igualdade material. Em

    segundo, porque os deficientes fsicos

    se submetem aos concursos pblicos,

    devendo necessariamente lograr apro-

    vao. A reserva de vagas, portanto, re-presenta uma dentre as diversas tcni-

    cas de implementao da igualdade

    material, consagrao do princpio b-

    blico segundo o qual deve-se tratar

    igualmente os iguais e desigualmenteos desiguais.

  • Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 109

    Pois bem. Se esse princpio ple-

    namente aceitvel (inclusive na esfera

    jurisdicional, como vimos) como meca-

    nismo de combate a uma das mltiplasformas de discriminao, da mesma for-

    ma ele haver de ser aceito para com-

    bater aquela que a mais arraigada for-

    ma de discriminao entre ns, a que

    tem maior impacto social, econmico ecultural a discriminao de cunho raci-

    al. Isto porque os princpios constitucio-

    nais mencionados anteriormente so

    vocacionados a combater toda e qual-

    quer disfuno social originria dos pre-conceitos e discriminaes incrustados

    no imaginrio coletivo, vale dizer, os pre-

    conceitos e discriminao de fundo his-

    trico e cultural. No se trata de princpi-

    os de aplicao seletiva, bons para cu-rar certos males, mas inadaptados a re-

    mediar outros.

    6 AO AFIRMATIVA E DIREITO INTER-NACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

    O problema aqui tratado, como se

    sabe, transcende o Direito interno brasi-

    leiro e envolve o Direito Internacional,especialmente o chamado Direito Inter-

    nacional dos Direitos Humanos. Ele tra-

    duz perfeio o fenmeno que Hlne

    Tourard com muita propriedade classifi-

    cou como Internationalisation desconstitutions.33

    Com efeito, no obstante as diver-

    gncias doutrinrias e jurisprudenciais

    que pairam sobre o assunto, no po-

    demos deixar de consignar a contribui-o trazida matria por uma avana-

    da inteligncia do artigo 5o da Consti-

    tuio de 1988, que em seus 1o e 2o

    traz disposies importantssimas para

    a efetiva implementao dos direitos egarantias fundamentais. Com efeito, o

    1o estabelece que as normas

    definidoras dos direitos e garantias fun-

    damentais tm aplicao imediata no

    pas. J o 2o dispe que os direitos egarantias expressos nesta Constituio

    no excluem outros decorrentes do re-

    gime e dos princpios por ela adotados,

    ou dos tratados internacionais em que

    a Repblica Federativa do Brasil sejaparte.

    Como resultado da conjugao do

    1o com o 2o do artigo 5o do texto

    constitucional, uma interpretao siste-

    mtica da Constituio nos conduz constatao de que estamos diante de

    normas da mais alta relevncia para a

    proteo dos direitos humanos (e, con-

    seqentemente, dos direitos das mino-

    rias) no Brasil, quais sejam: os tratadosinternacionais de direitos humanos, que,

    segundo o dispositivo citado, tm apli-

    cao imediata no territrio brasileiro,

    necessitando apenas de ratificao.

    Com efeito, esse o ensinamentoque colhemos em dois dos nossos mais

  • Srie Cadernos do CEJ, 24110

    eruditos scholars, especialistas na ma-

    tria, os Professores Antnio Augusto

    Canado Trindade34 e Celso de

    Albuquerque Mello, verbis:

    O disposto no art. 5o, 2o, da

    Constituio Brasileira de 1988 se

    insere na nova tendncia de Cons-

    tituies latino-americanas recen-tes de conceder um tratamento

    especial ou diferenciado tambm

    no plano do direito interno aos di-

    reitos e garantias individuais in-

    ternacionalmente consagrados.A especificidade e o carter es-

    pecial dos tratados de proteo

    internacional dos direitos huma-

    nos encontram-se, com efeito, re-

    conhecidos e sancionados pelaConstituio Brasileira de 1988:

    se, para os tratados internacionais

    em geral, se tem exigido a

    intermediao pelo poder

    Legislativo de ato com fora de lei,de modo a outorgar a suas dispo-

    sies vigncia ou obrigatoriedade

    no plano do ordenamento jurdi-

    co interno, distintamente no caso

    dos tratados de proteo interna-cional dos direitos humanos em

    que o Brasil parte, os direitos

    fundamentais neles garantidos

    passam, consoante o artigo 5o,

    2o e 1o, da Constituio Brasileirade 1988, a integrar o elenco dos

    direitos constitucionalmente con-

    sagrados direta e imediatamente

    exigveis no plano do ordenamento

    jurdico interno.35

    A Constituio de 1988, no 2o

    do art. 5o constitucionalizou as

    normas de direitos humanos con-

    sagradas nos tratados. Significan-do isto que as referidas normas so

    normas constitucionais, como diz

    Flvia Piovesan citada acima. Con-

    sidero esta posio j como um

    grande avano. Contudo, sou ain-da mais radical no sentido de que

    a norma internacional prevalece

    sobre a norma constitucional,

    mesmo naquele caso em que uma

    norma constitucional posteriortente revogar uma norma interna-

    cional constitucionalizada. A nos-

    sa posio a que est consagra-

    da na jurisprudncia e tratado in-

    ternacional europeu de que sedeve aplicar a norma mais benfi-

    ca ao ser humano, seja ela inter-

    na ou internacional. A tese de Fl-

    via Piovesan tem a grande vanta-

    gem de evitar que o Supremo Tri-bunal Federal venha a julgar a

    constituciona-lidade dos tratados

    internacionais.36

    Assim, luz desta respeitvel dou-trina, pode-e concluir que o Direito Cons-

  • Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 111

    titucional brasileiro abriga, no somen-

    te o princpio e as modalidades implci-

    tas e explcitas de ao afirmativa a que

    j fizemos aluso, mas tambm as queemanam dos tratados internacionais de

    direitos humanos assinados pelo nosso

    pas. Com efeito, o Brasil signatrio dos

    principais instrumentos internacionais de

    proteo dos direitos humanos, em es-pecial a Conveno sobre a Eliminao

    de Todas as Formas de Discriminao

    Racial e a Conveno sobre a Elimina-

    o de Todas as Formas de Discrimina-

    o contra a Mulher, os quais permitemexpressamente a utilizao das medidas

    positivas tendentes a mitigar os efeitos

    da discriminao.

    De fato, a Conveno sobre a Eli-

    minao de Todas as Formas de Discri-minao Racial (1968), ratificada pelo

    Brasil em 27 de maro de 1968, dispe

    em seu artigo 1o, no 4, verbis:

    Art. 1o. No sero consideradas dis-criminao racial as medidas espe-

    ciais tomadas com o nico objetivo

    de assegurar o progresso adequa-

    do de certos grupos raciais ou t-

    nicos ou de indivduos que neces-sitem da proteo que possa ser

    necessria para proporcionar a tais

    grupos ou indivduos igual gozo ou

    exerccio de direitos humanos e li-

    berdades fundamentais, contantoque tais medidas no conduzam,

    em conseqncia, manuteno de

    direitos separados para diferentes

    grupos raciais e no prossigam

    aps terem sido alcanados os seusobjetivos.

    Dispositivo de igual teor tambm

    figura no artigo 4o da Conveno sobre

    a Eliminao de Todas as Formas de Dis-criminao contra a Mulher (1979),

    ratificada pelo Brasil em 1984, com re-

    servas na rea de Direito de Famlia, re-

    servas estas que foram retiradas em

    1994, verbis:

    Artigo 4o. A adoo pelos Esta-

    dos-partes de medidas especiais de

    carter temporrio destinadas a

    acelerar a igualdade de fato entreo homem e a mulher no se consi-

    derar discriminao na forma de-

    finida nesta Conveno, mas de

    nenhuma maneira implicar, como

    conseqncia, a manuteno denormas desiguais ou separadas;

    essas medidas cessaro quando os

    objetivos de igualdade de oportu-

    nidade e tratamento houverem sido

    alcanados.

    , portanto, amplo e diversificado

    o respaldo jurdico s medidas afirmati-

    vas que o Estado brasileiro resolva em-

    preender no sentido de resolver esse quetalvez seja o mais grave de todos os nos-

  • Srie Cadernos do CEJ, 24112

    sos problemas sociais o alijamento e a

    marginalizao do negro na sociedade

    brasileira. A questo se situa, primeira-

    mente, na esfera da Alta Poltica. Ou seja,trata-se de optar por um modle de

    socit, um choix politique, como diri-

    am os juristas da escola francesa. No pla-

    no jurdico, no h dvidas quanto sua

    viabilidade, como se tentou demonstrar.Resta, to-somente, escolher os critri-

    os, as modalidades e as tcnicas adap-

    tveis nossa realidade, cercando-as das

    devidas cautelas e salvaguardas.

    7 CRITRIOS, MODALIDADES E LIMI-

    TES DAS AES AFIRMATIVAS

    Ao debruar-se sobre o tema, o Pro-fessor Joaquim Falco sustentou que

    se, por um lado, tranqila a

    constatao de que o princpio da igual-

    dade formal relativo e convive com

    diferenciaes, nem todas as diferenci-aes so aceitas. A dificuldade de-

    terminar os critrios a partir dos quais

    uma diferenciao aceita como cons-

    titucional.37 O autor apresenta soluo

    ao problema, afirmando que a justifica-o38 do estabelecimento da diferena

    seria uma condio sine qua non para

    a constitucionalidade da diferenciao,

    a fim de evitar a arbitrariedade. Esta jus-

    tificao deve ter um contedo, basea-do na razoabilidade, ou seja, num fun-

    damento razovel para a diferenciao;

    na racionalidade, no sentido de que a

    motivao deve ser objetiva, racional e

    suficiente; e na proporcionalidade, isto, que a diferenciao seja um reajuste

    de situaes desiguais. Aliado a isto, a

    legislao infraconstitucional. deve res-

    peitar trs critrios concomitantes para

    que atenda ao princpio da igualdadematerial: a diferenciao deve (a) decor-

    rer de um comando-dever constitucio-

    nal, no sentido de que deve obedincia

    a uma norma programtica que deter-

    mina a reduo das desigualdades so-ciais; (b) ser especfica, estabelecendo

    claramente aquelas situaes ou indiv-

    duos que sero beneficiados com a

    diferenciao, e (c) ser eficiente, ou seja,

    necessria a existncia de um nexocausal entre a prioridade legal concedi-

    da e a igualdade socioeconmica pre-

    tendida39. Entendimento semelhante

    esposado por B. Renauld no artigo j

    mencionado: Trois lments nouspermettent de donner um contenu Ia

    notion de discrimination positive telle

    quelle sera utilise par la suite. Pour

    identifier une discrimination positive, il

    faut que lon soit en prsence dungroupe dindividus suffi samment dfrni,

    dune discrimination structurelle dont

    ls membres de ce groupe sont victimes

    et enfia dun plan tablissant des

    objectifs et dfenissant des moyens mettre en oeuvre visant corriger la

  • Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 113

    discrimination envisage. Selon les cas,

    le plan est adopt, voire impos par une

    autorit publique ou est le fruit dune

    initiative prive.Sem dvida, os critrios acima es-

    tabelecidos so um timo ponto de par-

    tida para o estabelecimento de aes

    afirmativas no Brasil. Porm, falta ao Di-

    reito brasileiro um maior conhecimentodas modalidades e das tcnicas que po-

    dem ser utilizadas na implementao de

    aes afirmativas. Entre ns, fala-se qua-

    se exclusivamente do sistema de cotas,

    mas esse um sistema que, a no serque venha amarrado a um outro critrio

    inquestionavelmente objetivo 40, deve ser

    objeto de uma utilizao marcadamente

    marginal.

    Com efeito, o essencial que o Es-tado reconhea oficialmente a existn-

    cia da discriminao racial, dos seus

    efeitos e das suas vtimas, e tome a de-

    ciso poltica de enfrent-la, transfor-

    mando esse combate em uma polticade Estado. Uma tal atitude teria o sau-

    dvel efeito de subtrair o Estado brasi-

    leiro da ambigidade que o caracteriza

    na matria: a de admitir que existe um

    problema racial no Pas e ao mesmotempo furtar-se a tomar medidas srias

    no sentido minorar os efeitos sociais

    dele decorrentes.

    Em segundo lugar, preciso ter cla-

    ra a idia de que a soluo ao problemaracial no deve vir unicamente do Esta-

    do. Certo, cabe ao Estado o importante

    papel de impulso, mas ele no deve ser

    o nico ator nessa matria. Cabe-lhe tra-

    ar as diretrizes gerais, o quadro jurdi-co luz do qual os atores sociais pode-

    ro agir. Incumbe-lhe remover os fato-

    res de discriminao de ordem estrutu-

    ral, isto , aqueles chancelados pelas

    prprias normas legais vigentes no Pas,como ficou demonstrado acima. Mas as

    polticas afirmativas no devem se limi-

    tar esfera pblica. Ao contrrio, devem

    envolver as universidades, pblicas e

    privadas, as empresas, os governos es-taduais, as municipalidades, as organi-

    zaes governamentais, o Poder Judici-

    rio, etc.

    No que pertine s tcnicas de

    implementao das aes afirmativas,podem ser utilizados, alm do sistema

    de cotas, o mtodo do estabelecimen-

    to de preferncias, o sistema de bnus

    e os incentivos fiscais (como instrumen-

    to de motivao do setor privado). Decrucial importncia o uso do poder

    fiscal, no como mecanismo de

    aprofundamento da excluso, como

    da nossa tradio, mas como instrumen-

    to de dissuaso da discriminao e deemulao de comportamentos (pblicos

    e privados) voltados erradicao dos

    efeitos da discriminao de cunho his-

    trico.

    Noutras palavras, ao afirmativano se confunde nem se limita s cotas.

  • Srie Cadernos do CEJ, 24114

    Confira-se, sobre o tema, as judiciosas

    consideraes feitas por Wania SantAnna

    e Marcello Paixo, no interessante traba-

    lho intitulado Muito Alm da Senzala:Ao Afirmativa no Brasil, verbis:

    Segundo Huntley, Ao afirmati-

    va um conceito que inclui dife-

    rentes tipos de estratgias e prti-cas. Todas essas estratgias e pr-

    ticas esto destinadas a atender

    problemas histricos e atuais que

    se constatam nos Estados Unidos

    em relao s mulheres, aos afro-americanos e a outros grupos que

    tm sido alvo de discriminao e,

    conseqentemente, aos quais se

    tem negado a oportunidade de de-

    senvolver plenamente o seu talen-to, de participar em todas as esfe-

    ras da sociedade americana. (...)

    Ao afirmativa um conceito que,

    usualmente, requer o que ns cha-

    mamos metas e cronogramas. Me-tas so um padro desejado pelo

    qual se mede o progresso e no se

    confunde com cotas. Opositores da

    ao afirmativa nos Estados Unidos

    freqentemente caracterizam me-tas como sendo cotas, sugerindo

    que elas so inflexveis, absolutas,

    que as pessoas so obrigadas a

    atingi-las.

    A poltica de ao afirmativa noexige, necessariamente, o estabe-

    lecimento de um percentual de va-

    gas a ser preenchido por um dado

    grupo da populao. Entre as es-

    tratgias previstas, incluem-se me-canismos que estimulem as empre-

    sas a buscarem pessoas de outro

    gnero e de grupos tnicos e raci-

    ais especficos, seja para compor

    seus quadros, seja para fins de pro-moo ou qualificao profissional.

    Busca-se, tambm, a adequao

    do elenco de profissionais s reali-

    dades verificadas na regio de ope-

    rao da empresa. Essas medidasestimulam as unidades empresari-

    ais a demonstrar sua preocupao

    com a diversidade humana de seus

    quadros.

    Isto no significa que uma dadaempresa deva ter um percentual

    fixo de empregados negros, por

    exemplo, mas, sim, que esta em-

    presa est demonstrando a preo-

    cupao em criar formas de aces-so ao emprego e ascenso profis-

    sional para as pessoas no ligadas

    aos grupos tradicionalmente

    hegemnicos em determinadas

    funes (as mais qualificadas e re-muneradas) e cargos (os hierarqui-

    camente superiores). A ao afir-

    mativa parte do reconhecimento de

    que a competncia para exercer

    funes de responsabilidade no exclusiva de um determinado gru-

  • Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 115

    po tnico, racial ou de gnero. Tam-

    bm considera que os fatores que

    impedem a ascenso social de de-

    terminados grupos esto imbrica-dos numa complexa rede de moti-

    vaes, explcita ou implicitamen-

    te, preconceituosas.41

    Por fim, no que diz respeito s cau-telas a serem observadas, valho-me

    mais uma vez dos ensinamentos da Prof.

    Carmem Lcia Antunes Rochas, verbis:

    importante salientar que no sequer verem produzidas novas dis-

    criminaes com a ao afirmativa,

    agora em desfavor das maiorias,

    que, sem serem marginalizadas his-

    toricamente, perdem espaos queantes detinham face aos membros

    dos grupos afirmados pelo princ-

    pio igualador no Direito. Para se evi-

    tar que o extremo oposto sobrevi-

    esse que os planos e programasde ao afirmativa adotados nos

    Estados Unidos e em outros Esta-

    dos, primaram sempre pela fixao

    de percentuais mnimos garantido-

    res da presena das minorias quepor eles se buscavam igualar, com

    o objetivo de se romperem precon-

    ceitos contra elas ou pelo menos

    propiciarem-se condies para a

    sua superao em face da convi-

    vncia juridicamente obrigada. Porela, a maioria teria que se acostu-

    mar a trabalhar, a estudar, a se di-

    vertir, etc., com os negros, as mu-

    lheres, os judeus, os orientais, os

    velhos, etc., habituando-se a v-losproduzir, viver, sem inferioridade ge-

    ntica determinada pelas suas ca-

    ractersticas pessoais resultantes do

    grupo a que pertencessem. Os pla-

    nos e programas das entidades p-blicas e particulares de ao afirma-

    tiva deixam sempre disputa livre

    da maioria a maior parcela de va-

    gas em escolas, empregos, em lo-

    cais de lazer, etc., como forma degarantia democrtica do exerccio

    da liberdade pessoal e da realizao

    do princpio da no-discriminao

    (contido no princpio constitucional

    da igualdade jurdica) pela prpriasociedade.

    JOAQUIM BENEDITO BARBOSA GO-MES: Professor da Universidade Esta-dual do Rio de Janeiro e Procurador

    Regional da Repblica, Rio de Janeiro.

  • Srie Cadernos do CEJ, 24116

    1 Doutor em Direito Pblico pela Universidade

    de Paris-II (Panthon-Assas), Frana. Professor da

    Faculdade de Direito da UERJ. Foi Visiting Scholar

    da Faculdade de Direito da Universidade de

    Columbia-NY, EUA. Membro do Ministrio Pblico

    Federal (RJ). Autor das obras La Cour Suprme

    dans le Svstme Politique Brsilien, editada pela

    Librairie Gnrate de Droit et Jurisprudence (LGDJ),

    Paris, 1994; e Ao Afirmativa & Principio Cons-

    titucional da Igualdade, Rio de Janeiro, Editora

    Renovar, 2001.

    2 As proposies legislativas a que nos refe-

    rimos vo desde o projeto de lei apresentado pelo

    Senador Jos Sarney, que reserva aos negros um

    percentual fixo de cargos da Administrao P-

    blica, aos de vrios parlamentares do Partido dos

    Trabalhadores e de outros partidos de esquerda,

    que instituem cotas para negros nas universida-

    des pblicas e nos meios de comunicao. Todos

    esses projetos, que tm sido duramente critica-

    dos pelo establishment branco receoso de per-

    der nacos dos privilgios multisseculares de que

    desfrutam, evidentemente tm reduzidas chances

    de aprovao, a no ser que os negros brasilei-

    ros se organizem de forma mais coerente e pas-

    sem a constituir uma fora poltica expressiva no

    jogo poltico nacional. Fora essa hiptese, s

    mesmo o ocaso ou a emergncia de um lder

    poltico suficientemente forte e dotado de vonta-

    de inquebrantvel de mudana social (no neces-

    sariamente negro, bom frisar!), poder mudar

    o quadro de abandono, ostracismo e violenta ex-

    cluso a que os negros brasileiros so cotidiana-

    mente relegados. Assim, embora as chances de

    aprovao desses projetos sejam reduzidas no

    atual quadro jurdico-poltico do Pas, a reflexo

    acerca do tratamento jurdico do tema neles tra-

    tado reveste-se da maior relevncia.

    3 Para uma reflexo jurdica a respeito desse

    tema, tal como ele se apresenta em seu bero his-

    trico, isto , nos Estados Unidos da Amrica, con-

    sulte-se Joaquim B. Barbosa Gomes, Ao Afir-

    mativa & Princpio Constitucional da Igualdade.

    O Direito como Instrumento de Transformao So-

    cial, Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2001.

    4 Frise-se, por oportuno, que se a teoria das

    aes afirmativas quase inteiramente desconhe-

    cida no Brasil, a sua prtica, no entanto, no

    de todo estranha nossa vida administrativa. Com

    efeito, o Brasil j conheceu em passado no mui-

    to remoto uma modalidade (bem brasileira!) de

    ao afirmativa. a que foi materializada na cha-

    mada Lei do Boi, isto , a Lei no 5.465/1968,

    cujo art. 1o era assim redigido: Os estabelecimen-

    tos de ensino mdio agrcola e as escolas superio-

    res de Agricultura e Veterinria, mantidos pela

    Unio, reservaro, anualmente, de preferncia, 50%

    (cinqenta por cento) de suas vagas a candidatos

    agricultores ou filhos destes, proprietrios ou no

    de terras, que residam com suas famlias na zona

    rural, e 30% (trinta por cento) a agricultores ou

    filhos destes, proprietrios ou no de terras, que

    residam em cidades ou vilas que no possuam es-

    tabelecimentos de ensino mdio.

    NOTAS

  • Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 117

    5 Veja-se a bem elaborada e exaustiva

    monografia de Guilherme Machado Dray, O Prin-

    cpio da Igualdade no Direito do Trabalho, Ed. Li-

    vraria Almedina, Coimbra, 1999.

    6 V. Carmem Lcia Antunes Rocha, Ao Afir-

    mativa O Contedo Democrtico do Princpio

    da Igualdade Jurdica, in Revista Trimestral de Di-

    reito Pblico no 15/85, p. 86.

    7 V. especialmente a Conveno da ONU sobre

    a Eliminao de todas as Formas de Discrimina-

    o Racial (1965); a Conveno da ONU sobre a

    Eliminao de Todas as Formas de Discriminao

    contra a Mulher (1979); o Pacto Internacional so-

    bre Direitos Econmicos, Sociais e Culturais

    (1966); o Pacto Internacional sobre Direitos Civis

    e Polticos (1966).

    8 Flvia Piovesan Temas de Direitos Humanos,

    Ed. Max Limonad, So Paulo, 1998, p. 130.

    9 V. Bernadette Renauld, Les Discriminations

    Positives, in Revue Trimestrielle des Droits de

    lHomme, 1997, p. 425.

    10 Ainda que timidamente, as elites dirigentes

    brasileiras comeam a se expressar publicamente

    a respeito da urgente necessidade de se enfrentar

    com responsabilidade e conseqncia o proble-

    ma racial brasileiro. Cogita-se, veladamente, nos

    crculos governamentais, da introduo de uma

    ou outra forma de ao afirmativa. Num brilhante

    artigo recentemente publicado, ningum menos

    do que o Vice-Presidente da Repblica, Marco

    Maciel, abordou de maneira corajosa e apropria-

    da a questo. Disse S. Exa: As formas ostensivas e

    disfaradas de racismo que permeiam nossa soci-

    edade h sculos sob a complacncia geral e a in-

    diferena de quase todos so parte dessa obra

    inacabada, inconclusa, de cujos efeitos somos res-

    ponsveis. A riqueza da diversidade cultural brasi-

    leira no serviu, em termos sociais, seno para

    deleite intelectual de alguns e demonstrao de

    ufanismo de muitos. Terminamos escravos do pre-

    conceito, da marginalizao, da excluso social e

    da discriminao que caracterizam o dualismo so-

    cial e econmico do Brasil. chegada a hora de

    resgatarmos esse terrvel dbito que no se ins-

    creve apenas no passivo da discriminao tnica,

    mas sobretudo no da quimrica igualdade de opor-

    tunidades virtualmente asseguradas por nossas

    Constituies aos brasileiros e aos estrangeiros que

    vivem em nosso territrio (...) O Brasil ter de con-

    vencer-se de que os negros e seus descendentes

    deixaro de ser minoria no prximo sculo, pois

    j representam maioria em trs das cinco regies

    brasileiras (...) Vencer o preconceito que se gene-

    ralizou e tornar evidente o dbito de sucessivas

    geraes de brasileiros para com a herana da

    escravido que se transformou em discriminao

    so apenas parte do desafio. Se vamos consegui-

    lo com o sistema de quotas compulsrias no mer-

    cado de