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ANTENOR PAROLIN JUNIOR A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO HÉROI CHINÊS NO FILME “A FURIA DO DRAGÃO” SINOP, MT 2009/02

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ANTENOR PAROLIN JUNIOR

A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO HÉROI CHINÊS NO

FILME “A FURIA DO DRAGÃO”

SINOP, MT

2009/02

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ANTENOR PAROLIN JUNIOR

A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO HÉROI CHINÊS NO

FILME “A FURIA DO DRAGÃO”

Monografia apresentada à disciplina de

Linguagem e Pesquisa II do Departamento de

Letras da Universidade do Estado de Mato

Grosso — UNEMAT, campus de Sinop, como

pré-requisito para obtenção do título de

graduação em Licenciatura Plena em Letras.

Orientadora: Prof.ª Ms. Neusa Inês Philippsen.

SINOP, MT

2009/2

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A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO HÉROI CHINÊS NO

FILME “A FURIA DO DRAGÃO”

Antenor Parolin Junior

Graduando

Orientadora: Prof.ª Ms. Neusa Inês Philippsen

Departamento de Letras

UNEMAT - Sinop

Avaliadora: Prof.ª Dr.ª Tânia Pitombo de Oliveira

Departamento de Letras

UNEMAT - Sinop

Avaliador: Prof. Dr. Henrique Roriz Aarestrup Alves

Departamento de Letras

UNEMAT - Sinop

Presidente da banca Prof.ª Dr.ª Tânia Pitombo de Oliveira

Departamento de Letras

UNEMAT - Sinop

______________________________________________________

Ms. Olandina Della Justina

Chefe do Departamento de Letras

UNEMAT - Sinop

SINOP, MT

04 de dezembro de 2009

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Dedico a meus pais

Dedico a minhas irmãs,

Dedico a Deus,

Dedico aos amigos.

Dedico a todos os meus mestres

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, por me presentear com a dádiva da vida. A Sabedoria, que pela

ciência me libertou da escuridão, acordei e vi a luz do saber.

Agradeço na pessoa de meu pai em memória, Antenor Parolin, que sempre acreditou

no conhecimento e me ensinou a valorizá-lo.

Agradeço a minha família nas pessoas de mãe, Ereni, e das irmãs: Laura, Sara e

Maria Inês Parolin, que sempre me apoiaram e me amaram.

Agradeço minha amada, namorada Camila de Souza.

Agradeço a todos os amigos de caminhada especialmente in memoriam Henrique

Froehlich, que sempre me apoiou e acreditou em mim e que me acolheu na cidade de Sinop.

Também nas pessoas dos amigos Weverton e Liomarques, de Pontes e Lacerda, que

foram meus companheiros de estudos linguísticos e literários em minha permanência na

cidade lacerdence.

Nas pessoas de Gleison, Selmo, Lucilene, Anne, Paulo e Gilberto, que sempre

estiveram ao meu lado quando precisei.

Agradeço a todos os colegas acadêmicos e parceiros dos Campi de Sinop e Pontes e

Lacerda.

Faço meus agradecimentos nas pessoas ilustres de Marli Walker Giachini, Eliana de

Almeida, Adriana Lins Precioso, que me acompanharam no meu processo.

Faço o agradecimento em especial à minha Orientadora: Neusa Inês Philippsen, que

acreditou no meu trabalho, apoiou-me e foi muito atenciosa. Fico honrado por ser seu

orientando.

Agradeço a minha banca Avaliadora nas pessoas de: Henrique Roriz e Tânia

Pitombo, pela honra de sua presença e minha imensa gratidão a suas pessoas, que também me

apoiaram e são meus amigos ilustres da Academia.

Agradeço em especial as pessoas de Rogério Mendonça e Gentil Delazari, ilustres

amigos e companheiros, que sempre se preocuparam com minha pessoa.

Agradeço ainda nos Campi de Sinop e Pontes e Lacerda nas pessoas de: Olandina

Della Justina e Antônia Selma Câmara.

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Quando o homem pensa muito e

prudentemente, não é somente seu

rosto, mais também seu corpo, que

toma um ar de prudência.

Friedrich Wilhelm Nietzsche.

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RESUMO

PAROLIN JR., Antenor. A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO HERÓI CHINÊS NO

FILME “A FÚRIA DO DRAGÃO”. 52 fs. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em

Letras), Universidade do Estado de Mato Grosso — UNEMAT, campus de Sinop. 2009.

Este trabalho é o resultado de um estudo sobre linguagem cinematográfica, especificamente

sobre a narrativa “A Fúria do Dragão”, protagonizada pelo ator Bruce Lee. Nossa proposta

teórica se inscreve na Análise de Discurso de linha francesa e as noções operatórias que

enfatizamos foram: o sujeito e a ideologia, mobilizadas na construção do herói chinês no

filme. Procuramos compreender em nossa tessitura analítica como ocorreu a edificação do

herói chinês e como se processaram as relações das ideologias vigentes no contexto de

produção, bem como a construção do imaginário chinês sobre o “outro” e como esse “outro”

o imagina, ou seja, como ocorre essa relação do pensar que se alterna entre ambos e que

constitui o tecido de um todo materializado. Nos gestos finalizadores de nosso estudo

encontramos um herói, representante do coletivo chinês e da própria China, que sintetiza o

que é ser Chinês. A constituição desse herói acontece no conflito secular, ativado pela

memória discursiva, entre chineses e japoneses, que se estabelece durante toda a trama do

enredo. Destacamos como elementos importantes para a significação do chinês as relações de

silêncio e fúria, ambos representam as estratégias de vingança usadas em defesa do seu lugar

social por meio do Kung Fu, instrumento de identificação e defesa. Há no filme a cisão entre

dois discursos: o da China e o sobre a China, que acentuam a inscrição da narrativa nos

contextos sócio-histórico e cultural, assim como a relação de alteridade entre esses discursos.

Palavras-chave: Sujeito. Ideologia. Herói. História e imaginário.

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ABSTRACT

PAROLIN JR. Antenor. THE DISCURSIVE CONSTRUCTION OF CHINESE HERO

IN THE FILM “THE FIRST OF FURY”. 52 p. Work of Course Conclusion (Graduation in

Letters) – University of Mato Grosso State, campus of Sinop. 2009.

This work is the result of a study of film language, specifically on the story "The Fury of the

Dragon", led by actor Bruce Lee Our theoretical proposal is part of the Discourse Analysis of

the French line and the notion that surgical stress were: subject and ideology, mobilized in the

construction of the Chinese hero in the film. We seek to understand in our fabric cost as was

the building of the Chinese hero and how it dealt with relations between the ideologies

existing in the context of production and the construction of Chinese imagery on the "other"

and how this "other" to imagine, that is, as is the relationship of thinking that alternates

between the two and that is the fabric of an entire materialized. Gestures of finalizing our

study we found a hero, representing the collective Chinese and China itself, which

summarizes what is to be Chinese. The constitution of this hero happens in secular conflict,

triggered by the memory discourse between Chinese and Japanese, which is established

throughout the plot of the plot. Highlight as important to the meaning of Chinese relations of

silence and fury, both represent the strategies of revenge used in defense of their social

position through Kung Fu, instrument identification and protection. There is a split in the film

between two discourses: that of China and on China, stressing the inclusion of narrative in

socio-historical and cultural as well as the ratio of difference between these discourses.

Key words: Subject. Ideology. Hero. History and imaginary.

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LISTA DE CENAS

CENA (1) ............................................................................................................. 34

CENA (2) ............................................................................................................. 34

CENA (3) ............................................................................................................. 34

CENA (4) ............................................................................................................. 34

CENA (5) ............................................................................................................. 37

CENA (6) ............................................................................................................. 37

CENA (7) ............................................................................................................. 37

CENA (8) ............................................................................................................. 37

CENA (9) ............................................................................................................. 39

CENA(10) ............................................................................................................ 39

CENA (11) ........................................................................................................... 40

CENA (12) ........................................................................................................... 40

CENA (13) ........................................................................................................... 40

CENA (14) ........................................................................................................... 42

CENA (15) ........................................................................................................... 42

CENA (16) ........................................................................................................... 42

CENA (17) ........................................................................................................... 42

CENA (18) ........................................................................................................... 43

CENA (19) ........................................................................................................... 44

CENA (20) ........................................................................................................... 44

CENA (21) ........................................................................................................... 45

CENA (22) ........................................................................................................... 45

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................. 10

1 ANÁLISE DO DISCURSO ............................................................................ 12

1.1 O SUJEITO .................................................................................................... 14

1.1.1 A ideologia e o jogo imaginário .................................................................. 15

2 CHINA: HISTORICIDADE E RELAÇOES SÓCIO-IDEOLÓGICAS ... 18

2.1 RASTROS HISTÓRICOS ............................................................................. 18

2.1.1 Os conflitos ................................................................................................. 20

2.1.2 Retratos sócio-históricos de 1971 ............................................................... 21

2.1.3 A China contemporânea ............................................................................. 22

2.1.4 As correntes filosóficas ............................................................................... 23

2.2 O KUNG FU .................................................................................................. 26

2.2.1 O herói universal e o da concepção chinesa ............................................... 27

3 O FILME: CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO ............................................... 28

3.1 SOBRE O ENREDO ...................................................................................... 28

3.2 BREVE RELATO BIOGRÁFICO DE BRUCE LEE ................................... 30

4 CONSIDERAÇÕES ANALÍTICAS: EFEITOS DE SENTIDO

APREENDIDOS NO FILME “FIST OF FURY” ........................................... 33

4.1 A IDENTIDADE CHINESA ......................................................................... 34

4.1.1 Herói e imaginário: fatores de identificação ............................................... 36

4.1.2 Os chineses e o “outro”: espaços de conflito .............................................. 39

4.1.3 O silêncio e a fúria ...................................................................................... 41

4.1.4 Os efeitos de sentido da ‘camuflagem’ ...................................................... 43

4.2 O CORPO E A MATERIALIZAÇÃO DE SENTIDOS ............................... 44

4.2.1 Sujeito e ideologia: condições para o (res)significar da identificação

chinesa .................................................................................................................. 45

CONSIDERAÇÕES FINAIS: GESTOS FINALIZADORES ....................... 49

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................. 50

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INTRODUÇÃO

É na Análise de Discurso de linha francesa que nosso corpus se inscreve e se

fundamenta segundo os seus pressupostos. A partir deles, portanto, norteamos a nossa

pesquisa e as noções operatórias que enfatizamos: O sujeito chinês clivado, heterogêneo,

atravessado pelas correntes filosóficas e interpelado pela ideologia.

Em nossas considerações analítico-reflexivas analisamos algumas cenas do filme “A

fúria do dragão”, que foram recortadas de acordo com os propósitos operatórios que

objetivamos. É importante salientar que a narrativa é uma versão em português do original,

que é chinês, portanto, sempre pode haver lugar para o equívoco, pois, de acordo com a

Análise do Discurso (doravante AD) falamos a partir das formações ideológicas e discursivas

que nos constituem e permitem ou não dizer o que é dito.

No primeiro capítulo apresentamos um breve histórico da teoria e as suas fases de

transição, salientamos que nos inscrevemos na atual, depois apresentamos o sujeito e a

ideologia, instrumentalizando – os no objeto de estudo.

A partir do capítulo segundo, fizemos um resgate histórico do contexto chinês, as condições

de produção que explicitam: a China, os conflitos, as correntes filosóficas, o Kung Fu e o

herói, conceituações importantes que fundamentam a compreensão do gesto interpretativo.

Já no terceiro capítulo apresentamos o enredo do filme para o leitor se situar melhor

na proposta de nossa pesquisa e poder fazer as relações de interlocução, também descrevem

brevemente a biografia do ator Bruce Lee para compreendermos a repercussão de sua

representatividade na cinematografia, que se imortalizou e divulgou nas entrelinhas do cinema

o pensamento oriental. Esse ator é responsável, inclusive, pela implementação de técnicas do

Kung Fu, instrumento essencial para a nova identificação chinesa, criando um novo estilo de

arte marcial e, assim, influenciou gerações de chineses e diretores famosos no mundo.

O quarto e último capítulo é o analítico, em que refletimos sobre a constituição do

herói em relação ao sujeito e à ideologia a partir das formulações discursivas e imagéticas que

circulam no filme e interpelam o telespectador/leitor.

Por meio deste dispositivo analítico perpassamos pela historicidade chinesa inscrita,

fundamentalmente, nas relações do imaginário e pela alteridade dos discursos da China e

sobre a China.

Destacamos que o herói mandarim arquiteta o discurso da China e apresenta-se

resistente frente ao discurso preconceituoso japonês. O silêncio desse herói significa a tomada

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de posição e o lugar do chinês na sociedade chinesa, que fica furioso quando humilhado e

hostilizado pelo “outro” e, então, (re)-significa na história o ser e estar no mundo chinês.

Para esta constituição do sujeito que se relacionam à ideologia chinesa, que o

atravessa os elementos de referência importantes são essencialmente: a história, a cultura, as

correntes filosóficas, o Kung Fu e a construção do herói, condições de enunciação e

discursividade que se desenrolam no decorrer dessa trama cinematográfica.

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1 A ANÁLISE DE DISCURSO

Neste capítulo apresentaremos, brevemente, o aporte teórico norteador de nossa

pesquisa, a linha francesa de Análise do Discurso (AD), que teve sua origem na França no

final da década de sessenta do século passado a partir da articulação entre três regiões do

conhecimento científico, a Psicanálise (noção de inconsciente), o Materialismo Histórico

(teoria da ideologia) e a Lingüística (em que se desloca a noção de fala para discurso), seu

principal articulador foi o filósofo Michael Pêcheux.

Em seus pressupostos destacamos o discurso para a compreensão dos efeitos de

sentido da língua como resultado da materialidade e da ideologia; e o sujeito em sua relação

de constituição e produção de sentidos.

Convém ressaltar que em sua epistemologia a AD surge na Europa num contexto em

que o estruturalismo da vertente saussuriano estava no seu apogeu entre os estudiosos de

linguagem e vigorava o estudo da língua em função das relações que se estabeleciam no

interior de um mesmo código lingüístico. A teoria da Lingüística, contudo, é (re) significada e

ganha uma nova roupagem de conceituação:

A Análise de Discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o

homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna

possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a

transformação do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico do

discurso está na base da produção da existência humana. (ORLANDI, 2002, p. 15).

O Materialismo Histórico é agregado à Análise de Discurso a partir da contribuição

de Althusser, que faz uma releitura de Marx e propõe investigar as condições de (re) produção

social, que evidenciam o mecanismo de produção e reprodução dos aspectos vinculados a

ideologia, surge assim o conceito de aparelhos ideológicos do estado, em que somos levados a

refletir e compreender as relações de funcionamento da ideologia.

A Psicanálise, por sua vez, insere-se na AD com a releitura que Lacan faz de Freud e situa o

inconsciente como determinação histórica da linguagem na cadeia dos significantes. Assim, o

inconsciente é o lugar desconhecido, estranho e de onde aflora outros discursos

internalizados, ou seja, o discurso do “Outro” 1 em relação com o sujeito que se define,

posiciona-se e “fala” de algum lugar ideológico.

1 Outro: ‘aquele que desempenha o papel fundamental na constituição do significado’ e sentidos perante os

demais sujeitos, (BRANDÃO, 2004, p.8)

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É importante ainda evidenciarmos que a Análise do Discurso apresenta, no percurso

de sua constituição, três fases distintas. Em sua primeira fase, AD1, o processo discursivo é

dado pela noção de “máquina discursiva” e é conhecida por colocar em curso procedimentos

de “ análise automática do discurso” ; sobre a AD1 Fernanda Mussalim (2001) contextualiza

procedimentos de análises:

1º- primeiramente seleciona-se um corpus fechado de seqüências discursivas, por

exemplo: um manifesto político;

2º - Faz–se a análise lingüística de cada seqüência e considera-se as construções

sintáticas (de que maneira são estabelecidas nas relações entre os enunciados);

3º- Procura -se mostrar as relações de sinonímia e paráfrase decorrentes de uma

mesma estrutura geradora do processo discursivo e o assujeitamento do sujeito à máquina

discursiva; nesta concepção o sujeito é interpelado pela ideologia, a internaliza e a reproduz

pelo discurso.

Na segunda fase, AD2, tem-se a contribuição de Michael Foucault, que traz para o

campo da Análise de Discurso o conceito de formação discursiva e define-o como:

Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no

espaço que definiram em uma época dada, e para uma área social econômica,

geográfica, ou lingüística dada, as condições de exercício da função enunciativa.

(MUSSALIM apud FOUCAULT, 2001, p. 119).

Orlandi explicita da seguinte forma essa definição de formação discursiva

foucaultiana: “A formação discursiva se define como aquilo que numa formação

ideológica dada, ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio–histórica dada

determina o que pode e deve ser dito” (ORLANDI, 2002, p. 43).

Neste contexto o sujeito discursivo ocupa um lugar de onde enuncia e também ocupa

o lugar no interior de uma formação social e por este dominado e determinado por uma

formação ideológica que atravessa o discurso e estabelece possibilidades de sentido.

Finalmente, na terceira fase, AD3, surge à concepção de que diversos discursos

constituem a formação discursiva, ou seja, nasce uma nova noção de objeto de análise, o

interdiscurso, e, a partir dessa fase o sujeito passa a ser definido como: heterogêneo, clivado e

dividido entre as instâncias do consciente e do inconsciente.

Como ressaltado acima, a Análise de Discurso de vertente francesa será nosso instrumento de

interpretação e investigação do funcionamento dos sentidos ideológicos encontrados no

corpus de análise que apresentaremos no terceiro capítulo desse estudo, destacamos que

enfatizaremos a compreensão do simbólico e ideológico em consonância com Orlandi ao

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dizer que: “A Análise de Discurso visa fazer compreender como os objetos simbólicos

produzem sentidos, analisando assim os próprios gestos de interpretação que ela considera

como atos no domínio simbólico, pois eles intervêm no real do sentido”. (Ibidem, p. 26).

As principais noções operatórias com as quais dialogaremos em nosso corpus são: o

Sujeito e a Ideologia, que contextualizaremos de forma mais aprofundada nos próximos

tópicos.

1.1 O SUJEITO

O sujeito da primeira fase, AD1, como abordado acima, é assujeitado à máquina

discursiva e submetido às condições do discurso enunciado; Mussalim assim especifica esse

sujeito:

O sujeito para a AD 1, é concebido como sendo assujeitado à maquina [para utilizar

um termo do próprio Pêcheux (1983/1990)], já que está submetido as regras

especificas que delimitam o discurso que enuncia. Assim, segundo essa concepção

de sujeito “quem de fato fala é uma instituição, ou uma teoria, ou uma ideologia”.

(MUSSALIM, 2001, p. 133)

Na segunda fase, AD2, a Análise do Discurso dá ênfase à formação discursiva (FD) e

a noção de sujeito sofre uma alteração; de acordo com o conceito foucaultiano de FD este

sujeito assume várias posições e papéis diferentes, desse modo, ao enunciar o sujeito

representa um lugar social e ocupa em seu interior uma formação ideológica , que estabelece

relações com os sentidos do discurso.

O sujeito da terceira fase, AD3, “sofre” mais um deslocamento e inaugura uma nova e

atual vertente de Análise do Discurso; nessa concepção, o sujeito aparece como heterogêneo

clivado e dividido entre o consciente e o inconsciente, bem como é o resultado do primado do

interdiscurso (memória discursiva), ou seja, seu discurso é entrecortado de discursos outros,

de já-ditos.

Brandão apresenta-nos essa definição de sujeito da seguinte maneira:

O sujeito é dividido, clivado, cindido. O sujeito não é um ponto, uma entidade

homogênea, mas se constitui também pela interação com um terceiro elemento: o

inconsciente freudiano. Inconsciente que, concebido como linguagem do desejo

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(censurado) é o elemento de subversão que provoca a cisão do eu. (BRANDÃO,

2004, p. 67).

Enfatizamos que, para o nosso contexto de pesquisa, o sujeito que irá

instrumentalizar e permear as reflexões analíticas de nosso corpus é este sujeito atual,

dividido, clivado e heterogêneo, que se circunscreve da terceira fase da AD.

1.1.1 A ideologia e o jogo imaginário

Para a Análise de Discurso, tudo tem uma intencionalidade e a ideologia é

fundamental na constituição dessa intencionalidade, pois não se concebe “sujeito sem

ideologia”; Althusser assim define os sentidos que permeiam a ideologia: “A ideologia é uma

representação da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência”.

(ALTHUSSER, 2007, p. 126).

Dessa forma, a ideologia para a AD concebe essas relações imaginárias no modo de

ver o mundo e também na ocultação da realidade, pela ideologia instaura-se o jogo imaginário

e simbólico do qual o sujeito discursivo participa como dito anteriormente, clivado entre o

consciente e o inconsciente.

Sobre o jogo imaginário Orlandi acentua que “se fazemos intervir a antecipação, este

jogo fica mais complexo, pois incluirá [...] a imagem que seu locutor faz da imagem que ele

faz do objeto e assim por diante” (ORLANDI, 2002, p. 40).

O ideológico, portanto, está presente em todas as situações da vida do sujeito, que se

materializa pelo interdiscurso e pela discursividade. Assim, é a partir dessa noção operatória

que teceremos reflexões sobre os recortes selecionados de nosso corpus, ou seja,

evidenciaremos essa maneira do sujeito se relacionar com o mundo e com o outro e os

sentidos que se estabelecem nessa interação, nesse mesmo enfoque Brandão contribui para

nosso estudo com a definição dada a seguir: “Essa visão da linguagem como interação social,

em que o Outro desempenha papel fundamental na constituição do significado, integra todo

ato de enunciação individual num contexto mais amplo revelando as relações intrínsecas entre

o lingüístico e o social” (BRANDÃO, 2004, p. 8).

O imaginário nesse contexto funciona pela linguagem e se estabelece por intermédio

das relações sociais, que se representam nas posições do próprio sujeito e se materializam no

discurso, permeado de sentidos vinculados à ideologia dominante.

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Quando Orlandi nos fala do imaginário sintetiza as relações que o mesmo constrói:

“O imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da linguagem. Ele é eficaz. Ele

não “brota” do nada: assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem na história e

são regidas, em uma sociedade como a nossa, por relações de poder”. (ORLANDI, 2002, p.

42)

Dessa forma, a ideologia utiliza-se de várias manobras para a ocultação da realidade

e para a legitimação do poder; este pode representar-se por uma classe, uma instituição e até

um grupo social. Uma dessas manobras que reforça a ideologia é a persuasão, a mesma tenta

convencer-nos de que sua materialidade discursiva é legítima, contudo, é necessário refletir

sobre a possibilidade do falsear ou omitir dados, o que instaura um mecanismo de

manipulação a favor das classes dominantes.

Para Brandão essas relações da ideologia se constroem de maneira particular:

“Selecionando, dessa maneira, os elementos da realidade, a ideologia escamoteia o modo de

ser no mundo” (BRANDÃO, 2004, p. 33).

A partir da linguagem é que a ideologia se materializa e através da língua e da história

torna-se eficaz, pois o sujeito em seu “dizer” e pelo uso do código linguístico sintetiza o

“lugar” ideológico. Assim, compreendemos a importância dos estudos científicos da AD por

nos possibilitar a perspectiva de compreensão do imaginário, que é o local em que a ideologia

se aloja e onde, segundo Louis Althusser, ela se eterniza:

Se eterno não significa transcendente a toda a história (temporal), mas onipresente,

trans - histórico, portanto imutável em sua forma em toda a extensão da história,

adotarei de Freud palavra e escreverei a ideologia é eterna, exatamente como

inconsciente. E acrescento que julgo essa comparação teoricamente justificada pelo

fato de que a eternidade do inconsciente guarda alguma relação com a eternidade em

geral (ALTHUSSER, 2007, p. 25).

Pode-se refletir, assim, que é através da ideologia que o homem representa a si e as

condições reais de sua própria existência sob o jogo imaginário, e, em conseqüência constitui-

se pela realidade do significado e do significante e vice-versa, tal como concebida por Fiorin:

“A ideologia é constituída pela realidade e constituinte da realidade. Não é um conjunto de

ideais que surge do nada ou da mente privilegiada de alguns pensadores. Por isso diz-se que

ela é determinada, em última instância, pelo nível econômico.” (FIORIN, 2007, p. 30).

Por isso, entendemos que a ideologia representa a relação imagética e discursiva dos

sujeitos em sua condição de existência; dessa forma, ela “não surge do nada”, ela é construída

pelas instâncias econômicas e geralmente reflete como legítimo o pensamento das classes

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dominantes, ou seja, vinculam sentidos, organiza-se, percorre pelo imaginário, materializa-se

pelo interdiscurso e legitima-se por meio do discurso e das formações discursivas.

Neste primeiro capítulo, abordamos brevemente os pressupostos teóricos da Análise

do discurso de linha francesa para contextualizarmos o aporte teórico que fundamenta nossas

reflexões analíticas, a interpretação e o funcionamento dos aspectos ideológicos, enfim, toda

essa conceitualização apresentada é norteadora de nosso trabalho, que elege como noção

operatória: o sujeito e a ideologia.

No capítulo seguinte, enfatizaremos os meios de produção, que representam as

condições de sentido dos sujeitos de nosso corpus e contexto imediato da situação, ou seja, o

contexto sócio-histórico, cultural e também ideológico. Ressaltamos que é no campo da

história que se produzem os acontecimentos pertinentes à construção da “mesma” e do

próprio sujeito, que é permanentemente interpelado pelo jogo imaginário em que se constitui

e pelas posições e lugares ideológicos que ocupa.

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2 CHINA: HISTORICIDADE E RELAÇÕES SÓCIO-IDEOLÓGICAS

Convém em nosso trabalho analítico designar os meios de produção, para tanto

lançaremos um rápido olhar sobre as condições de produção da China. Pelo contexto histórico

chinês poderemos vislumbrar o propósito de nossa análise e reiterar que tais aspectos,

histórico-sócio-cultural e ideológico, contribuíram para a formulação e fundamentação de

nossa pesquisa.

Desse modo, pelo viés da história procuraremos resgatar nesse capítulo o processo de

produção das relações ideológicas vinculadas na historicidade chinesa e que se incluem no

contexto sócio-histórico e político. Orlandi, em relação às condições de produção, conceitua-

as da seguinte maneira: “O que são, pois as condições de produção? Elas compreendem

fundamentalmente os sujeitos e a situação” (ORLANDI, 2002, p. 30).

Destacamos que elegemos como sujeito central de nossos estudos o herói mandarim,

representado pelo protagonista Chen, interpretado pelo ator Bruce Lee, no Filme First of Fury

(A fúria do Dragão), e enfatizaremos o contexto situacional da década de 70 do século

passado, mais especificamente em 1971, ano de produção do filme.

Contudo, antes de retratarmos essa China contemporânea é necessário tecer algumas

considerações sobre fatos e eventos passados, que constituem a memória discursiva do país, e

que não podem ser dissociados desse espaço sincrônico que recortamos da história.

2.1 RASTROS HISTÓRICOS

A China é um país asiático de tradição milenar e uma das culturas mais antigas do

mundo; é conhecida como o grande “Dragão Vermelho Asiático” e dentre os eventos mais

importantes que registram sua história encontra-se a muralha da China, construída por volta

do ano 221 a.C. Esse evento tornou-se um marco que retrata atitudes políticas supostamente

de proteção para evitar que os chineses fossem ameaçados por guerras e pelas invasões

promovidas por mongóis, povos vindos do norte da Ásia.

Segundo a Revista Série: Culturas, Histórias e Mitos: ·.

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Boa parte foi erguida durante o governo do imperador chinês, Shi Huang Ti, que

entrou para a história também como o principal responsável pela unificação da

China. O paredão de pedra iniciado por ele, certamente, já se constituía a maior obra

de fortificação construída pelo homem (SÉRIE: CULTURAS, HISTÓRIA E MITOS,

2008, nº. 8, p. 6).

A muralha da China é um símbolo histórico importante que foi reconstruída e

recuperada por Deng Xiaoping, sucessor de Mao Tse Tung, e, nesse cenário de restauração,

tornou-se o símbolo nacional chinês que evoca proteção e barreiras, do qual os chineses se

orgulham; dessa forma, é possível afirmar que a obra arquitetônica está construída em

material palpável (o muro) e impalpável (o imaginário).

A China tornou-se também conhecida como a grande “imponência” do Império

Vermelho difundida pela Dinastia Ming (1368-1644), que se tornou célebre pelo seu poder

hegemônico e pelos seus feitos que marcaram a história chinesa.

A Dinastia Ming foi liderada inicialmente por Zheng He, considerado o maior

navegador mandarim. Nesse período da História o poderoso Império Ming divulgou as

proezas da imponência chinesa, que ficaram conhecidas: pelo luxo de seus objetos, cerâmicas,

tapeçarias e por descobertas importantes e relevantes nas áreas da poesia, pintura, escultura,

geografia, arquitetura, matemática e engenharia naval.

Destaca-se também, dentre as suas realizações mais importantes, a construção da

Cidade Proibida, é o que nos informa a Revista Terra para entender o mundo:

Uma das construções mais grandiosas da Dinastia Ming foi o palácio imperial chinês

conhecido como Cidade Proibida, que ocupa uma área de 720 mil metros quadrados

na região central de Pequim (quase a metade do Parque Ibirapuera, em São Paulo).

Recebeu este nome porque o acesso a suas dependências era restrito até para

funcionários do governo e parentes do imperador – só ele podia circular por todos os

seus domínios (TERRA PARA ENTENDER O MUNDO, 2004, nº. 150, p. 32).

Ressaltamos que tais fatos permanecem no imaginário dos chineses e são reativados

nos eventos discursivos que envolvem a memória de seus habitantes. Assim, não é possível

dissociar a história e a cultura que constituíram esse imaginário do tempo cronológico que

enfatizaremos em nosso estudo, o ano de 1971, por ser o ano de produção do filme Fist of

Fury (A fúria do Dragão), que compõe o nosso corpus de análise.

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2.1.1 Os conflitos

Vale ressaltar que os eventos histórico-culturais descritos acima não se sucederam

sempre como períodos de paz e calmaria, pelo contrário, a China apresenta em seus registros

de arquivo muitos conflitos com outras nações, quase sempre motivados por invasões e

disputas por território. Segundo a Revista Série: Culturas, Histórias e Mitos (2006), o conflito

de maior destaque é o que acontece em 1223 em que o país chinês foi conquistado pelo

Império Mongol; liderado por Gengis Khan, que dominou todo o norte chinês.

Outras invasões do domínio mongol aconteceram e contribuíram para que a Dinastia

Ming, retratada no item anterior, iniciasse a construção da muralha chinesa. Ao longo de sua

milenar existência os chineses enfrentaram também em condições de conflito: os japoneses,

os holandeses, os ingleses, os portugueses, os espanhóis e, num contexto mais recente, os

norte-americanos no cenário político da Guerra Fria.

Após a libertação do domínio mongol, a China permaneceu durante os três séculos

de domínio Ming num estado de isolamento em relação à Europa; todavia, essa época é

marcada por muitos acontecimentos importantes, além dos já apresentados no item anterior os

chineses inauguram expedições científicas: o papel, a pólvora e a bússola, realçam o valor

das artes e o seu sistema econômico começou a aflorar dentre os outros povos.

Em nosso trabalho analítico daremos enfoque ao conflito que ocorre entre os

japoneses, que invadiram a Coréia e ameaçaram dominar o território chinês no ano de 1598.

Os japoneses foram derrotados; contudo, desde então, instalou-se uma antiga rivalidade entre

ambos que permanece e traveste-se em uma nova roupagem. O conflito estende-se, no atual

cenário político-econômico, pela luta em atingir o título de potência asiática.

É essa relação de conflito que se apreende nas entrelinhas de nosso corpus. A

temática retratada no filme aborda essa rivalidade, que é retomada entre as duas nações, e se

“(re)constrói” no decorrer do roteiro tanto na materialidade discursiva quanto na

materialidade imagética.

Dessa forma, para compreendermos as relações de sentido que se estabelece entre o

sujeito, o herói mandarim, e as ideologias que se manifestam, é necessário localizar essas

condições de produção que são ativadas nas cenas e constituem os sentidos materializados.

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2.1.2 Retratos sócio-históricos de 1971

No ano de 1971 a China foi admitida pela ONU (Organização das Nações Unidas),

sendo assim este um outro importante marco histórico para os chineses, pois a China começa

a projetar-se no cenário mundial e a se integrar com países que até então mantinha distância

comercial. Inicia-se, assim, uma nova fase para a economia chinesa que desperta o interesse

de novas fronteiras político-econômicas.

Nesse ano (1971), os chineses vivem em plena ascensão do regime comunista em

consequência da reforma de Deng Xiapiong. O início do comunismo chinês data de 1921 e

permanece ‘inabalável’ no contexto político. Todavia, após a inserção da China na ONU o

país, que até então evitava diálogos com o mundo externo, passou a estabelecer relações

diplomáticas entre inúmeros outros países, dentre eles Japão, Rússia, Inglaterra e Estados

Unidos.

Os chineses, bombardeados por mudanças sócio-econômicas e políticas, que

exigiram uma nova postura frente ao mercado internacional, foram obrigados a readaptarem-

se às novas práticas cotidianas e às tecnologias que passaram a ser empregadas nos novos

setores empregatícios.

Contudo, buscaram nesse período os valores esquecidos do pomposo império Ming e

na sua própria história mergulharam, na busca pelos motivos de sua existência e para tentar

sanar os conflitos de identidade que se generalizavam nessa nova sociedade: o valor nacional,

e as correntes filosóficas (budismo, confucionismo, taoísmo e suas crenças populares).

Há uma valorização também do Kung Fu (arte marcial), que passa a ser amplamente

divulgado e desde então se constitui como elemento de referência do país; além disso,

comparável ao florescimento das artes na Dinastia Ming, na década de 70 entra em cena o

cinema Chinês, que ganha projeção internacional com o lançamento de vários filmes, cabe-

nos citar os que mais repercutiram: “Flores de Xangai,” do Hou Hsiao Hsien, “O Dragão

Chinês” e “A Fúria do Dragão” (1971), do diretor Lo Wei.

Na textualidade desses filmes os produtores chineses tentam recuperar o que é ser

chinês, ou seja, a identidade chinesa, por meio do resgate à memória discursiva do país

enaltecendo fatos históricos, culturais, os heróis. É nesse contexto que nasce a construção do

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herói mandarim e são estas relações de sentido sócio-ideológicas que pretendemos investigar

na materialidade de nosso corpus.

2.1.3 A China contemporânea

A China contemporânea conquistou seu espaço no âmbito internacional, sua

economia cresce vigorosamente no comércio mundial e estende-se cada vez mais econômica e

culturalmente sobre a rede internacional. A Revista Planeta em um dossiê sobre a China

veiculada em uma edição especial, escrita pelo articulista Luis Pellegrini, revela-nos que:

China em ponto de mutação com a lentidão de um dragão que leva um século para

desenrolar sua calda e que, de repente precisa de apenas um segundo para saltar e

abocanhar sua presa, a china [contemporânea] começa a nos mostrar a grande

metamorfose que toma conta do seu corpo e do seu espírito. (Planeta, 2004, nº84, p.

43)

Contudo, a muralha chinesa continua e os conflitos não acabaram com seu regime

político recebe várias críticas da comunidade internacional. Há continuidade no re-significar

de sua história e no resgate dos valores filosóficos: o budismo, o taoísmo e o confucionismo,

o Kung Fu (arte marcial) e o herói mandarim.

Esses valores estão cada vez mais presentes na China contemporânea, são veiculados

no cinema, na literatura, na música, na pintura e em outras formas artísticas. No nosso corpus,

na encenação filmica destacam-se no roteiro essas relações de produção históricas, tais como:

a China, suas rivalidades, as correntes de pensamento, o Kung Fu e o Herói, são os elementos

de significação de ordem sócio – histórico- cultural, apresentados e tecidos de um lugar

ideológico, do pensamento oriental de ver o mundo perante o Ocidente e a si próprio.

Atualmente o país chinês também é conhecido pela sua população, que é a maior do

mundo, aproximadamente de 1,3 bilhão2 de habitantes e por ter tornado-se a terceira

economia do mundo, segundo os economistas.

2 Fonte: A população da china (v. referências bibliográficas).

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2.1.4 As correntes filosóficas

Pelas correntes filosóficas que circulam na China, podemos afirmar que o nosso

herói perpassa pela discursividade: confucionista, taoísta e budista, como explicitaremos

melhor no capítulo seguinte.

Essas três correntes são tidas como as três religiões “oficiais da China” e para os

chineses a tríade corrente de pensamento é fundamental, pois sintetiza a visão de mundo e

modo de viver/ser chinês. Hans Küng refere-se a elas da seguinte maneira: “Os antigos

chineses eram de opinião que todas as religiões são boas para o homem praticar o bem”.

(KÜNG, 2004, p. 110).

Os valores dessas linhas de pensamento são histórico-culturais do povo chinês e se

espalharam pelo território oriental e ocidental pelas “artes”, reportagens, artigos e outros.

O Confucionismo surge das escolas filosóficas chinesas com o filósofo Kong

Fuzi, tido por muitos como “sábio chinês”, Küng (2004) denomina-o de “mestre Kong”, no

ocidente é conhecido sob a forma latinizada de Confúcio.

Esse autor, ao qualificar o mestre, diz que ele não é monge, nem asceta, nem místico,

tampouco metafísico, não busca êxtase e o nirvana, não é Deus, nem como o “Filho de Deus”.

Para Küng: “Confúcio confronta-se com a ordem tradicional de uma forma crítica, contra o

conformismo exterior e a hipocrisia buscando uma atitude interior e uma responsabilidade

pessoal.” (Ibidem, p.115).

A corrente confucionista, portanto, busca em sua preocupação primordial o lado

“exterior” da vida chinesa, sua organização, vida familiar e a política, e considera toda a

sociedade como sistema de relações pessoais que precisam ser harmônicas.

A atitude como o respeito à velhice é algo natural, a intensidade das relações

familiares são fundamentais para as famílias chinesas e defende a ética e a moral como

princípios, que buscam conciliar a tradição cultural; constitui-se também nessa corrente o

homo ethicus (é o que pensa nos princípios coletivos e tem pudor no seu agir) e o homo

economicus, esse pensa apenas no seu proveito próprio.

Küng (2004) enaltece essa definição ao citar uma máxima de Confúcio de que só

existem dois caminhos: a “humanidade” e a “desumanidade”. Para os confucionistas o homo

ethicus deve prevalecer na sociedade, o homem chinês tem a ciência desses fundamentos e

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procura valorizar: o carinho, a bondade, a ética, que são princípios louváveis e ligados à moral

chinesa.

“A corrente taoísta, expressão derivada da palavra Tao, é definida como “caminho”

(lei, doutrina e princípio de ordem), caminho é aqui entendido em sentido amplo o princípio

primeiro e último, indefinível, inominável e indescritível” (ibidem, p. 125).

Outro termo representativo para a corrente é “Te”: que significa força ou virtude,

para os taoístas Tao e Te atuam juntos para a transformação e conservação do mundo e se

encontram em todos os fenômenos. Nessa concepção o homem deve procurar se encontrar no

estado de “esvaziamento” (wu), ou seja, liberar-se de suas paixões e desejos e seguir o

caminho (Tao).

No taoísmo há também a meditação “tai chi”, que visa a auxiliar a prática de seus

seguidores com exercícios leves, fluidos, lentos para a coordenação da consciência, respiração

e movimentos. De acordo com Küng:

Na meditação tai chi: os exercícios suaves, fluidos e lentos são destinados a

coordenar consciência, respiração e movimento, a liberar as tensões no corpo e os

bloqueios nos meridianos de energia. Mas esses exercícios também podem ser

realizados com espada, lança ou faca, o que lembra que tai chi era, originalmente,

uma técnica de autodefesa. (ibidem, p. 125).

Os taoístas, desse modo, em suas manifestações filosóficas e religiosas, procuram

pela meditação, pelo silêncio, pelos exercícios, pelo nirvana (estado de transe e plenitude),

que são experiências divinas tidas pelo homem: o culto à purificação, com o auxílio do

insenso, que é oferecido em memória ao ente querido, e o combate ao mal.

E finalmente o budismo. Segundo a Revista China em estudos: “O Budismo é uma

das religiões mais importantes do mundo. A China recebeu influência indiana em sua história

e essa religião chegou aí por volta do primeiro século d.C.” (China em estudos, 1995, n. 2, p.

49-50).

O budismo preocupa-se essencialmente com a “cegueira” (o homem que só vê a si e

não as outras coisas do universo) do envolvimento do homem no mundo, pois o mesmo se

ocupa com o lado negativo da vida, para tanto essa corrente “anuncia” e dissemina um

caminho para a redenção do sofrimento. Essa é a única corrente filosófica que veio de fora da

China.

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O budismo chinês adota uma prática do taoísmo, o meditar, e ambos passam a

congregar o mesmo pensamento, que o homem tem que se desapegar do próprio “eu” e

encontrar o caminho ao renunciar a si mesmo.

Para os budistas, o sofrimento é a própria vida, que inicia com o nascimento e se

estende até a morte: “O sofrimento vem da ânsia de viver, do apego às coisas, da ambição, do

ódio e da cegueira” (KÜNG, 2004, p. 154).

No budismo há ainda elementos que se fundamentam no saber, na condição moral,

na ética, no seu agir e viver e na concentração, que exige atenção. O caminho para a salvação

é diferente do caminho cristão, para atingi-la é necessário o exercício da meditação, a

simplicidade e a transparência dos atos (homo ethicus).

Há também na China outras crenças que fazem parte de sua tradição cultural, tais

como acreditar em espíritos bons e maus; essa crença faz parte da tradição religiosa chinesa.

Segundo a Revista Série: culturas, histórias e mitos: “De acordo com os chineses, os espíritos

bons geralmente são representados por estatuetas de pequenos dragões de um palmo de altura,

postos como proteção em cima dos telhados e dentro das casas”. (SÉRIE: CULTURAS,

HISTÓRIA E MITOS, 2008, n. 8, p. 29).

Para os chineses, a imagem do dragão tem a eficácia de trazer harmonia; representa a

prosperidade. Desde a Dinastia Xia o dragão tornou–se uma marca cultural e representativa na

China; essa marca faz com que o país seja chamado como “país do Dragão”.

Sobre a Dinastia Xia, acreditam-se ter sido a primeira dinastia chinesa, segundo

dados da Revista Nova Escola: “Essa teria sido a primeira dinastia da China. Embora

documentos históricos posteriores relatem sua existência, não há registros escritos sobre ela

datados da época” (NOVA ESCOLA, 2008, nº. 210, p. 73).

Após essa breve reflexão sobre o pensamento religioso chinês e suas correntes

filosóficas, que fundamentam a história e a cultura chinesa na sua forma peculiar de ver o

mundo, e que importam ao nosso trabalho, por representarem a constituição da identidade

chinesa e do sujeito; abordaremos, sucintamente, no item seguinte outro fator importante da

formação histórico-cultural chinesa, as artes marciais, em especial o Kung Fu.

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2.2 O KUNG FU

O Kung Fu é uma arte marcial praticada pelos chineses e divulgada atualmente por

escolas espalhadas pelo mundo inteiro. Destacamos que nosso sujeito de pesquisa, o herói

mandarim, torna-se um dos maiores representantes dessa prática por auxiliar no trabalho de

disseminação dessa arte.

Orlando Duarte, ao documentar a História dos esportes retrata as artes marciais da

seguinte maneira: “Pode-se falar em 4 mil anos para explicar uma arte marcial que tem muito

a ver com budismo, taoísmo e confucionismo, isto é, religiões e filosofia” (DUARTE, 2004,

p. 337).

Dessa forma, percebemos a importância dada às artes marciais no contexto cultural

chinês. Historicamente, os chineses preparavam e preparam os seus lutadores com grande

maestria, ensinando-lhes técnicas de combate principalmente com o uso das mãos, que se

tornam armas letais. As técnicas mais conhecidas na China são: o wushu e o kuoshu, para o

autor acima o objetivo básico é a extração máxima do potencial humano durante o combate

dos lutadores.

Outra técnica conhecida chama-se bloqueio de pulso, que consiste em bloquear os

golpes recebidos do adversário com a força da munheca; e uma outra, “garra de tigre”, é o

contra–ataque direto no pescoço, que pode atingir também: os olhos, o nariz, a garganta, a

laringe e o coração.

O Kung Fu é praticado a partir dos 15 anos de idade; os treinos são intensos e

objetivam também fortalecer os músculos para uma melhor desenvoltura no desenvolvimento

dos golpes. Duarte (2004) nos revela que no Kung Fu os golpes mais conhecidos são: hung-

gar-kuen, tong-long e wing-chun.

De acordo com Duarte: “O curioso no Kung Fu é que os estilos são baseados em

animais: tigre (resistência), cobra (interna habilidade e força para derrubar os pontos vitais do

corpo), leopardo (força), dragão (energia e rapidez de movimentos)” (DUARTE, 2004, p.

339).

Esse autor ressalta ainda a contribuição sobre a divulgação do Kung Fu pelo ator

Bruce Lee por meio do cinema chinês, que se estendeu para todos os cantos do planeta:

“Quando se fala em Kung Fu não se pode esquecer da publicidade que essa modalidade

recebeu do cinema com o ídolo Bruce Lee” (ibidem, p. 338).

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É importante ressaltar que o Kung Fu retoma o agir das correntes filosóficas: a

meditação, a fluidez e a figura do dragão, que invocam o estilo específico do Kung Fu.

A seguir, no último item desse capítulo, apresentaremos muito brevemente a visão

chinesa de herói, visão com a qual dialogaremos nos tecerem analíticos.

2.2.1 O herói universal e o da concepção chinesa

O herói para os chineses é aquele que busca e luta por uma causa que seja justa e

defenda seus ideais. Ele deve representar um modelo a ser seguido e almejado; é dotado de

virtude louvável, é forte, habilidoso, obstinado e sempre vence seus inimigos.

Campbell assim se refere à vida desse herói e suas relações: “Toda vida do herói é

apresentada como uma grandiosa sucessão de prodígios, da qual a grande aventura central é o

ponto culminante” (CAMPBELL, 2004, p. 311).

O herói chinês do filme, Chen, goza dessa grandiosidade de sucessão de prodígios

pelo uso do Kung Fu, torna-se implacável e veloz como um dragão nos movimentos e

enérgico em sua fúria.

Ainda de acordo com Campbell, o herói vence suas limitações históricas: “O herói,

por conseguinte, é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas

pessoais e alcançou formas normalmente válidas, humanas” (ibidem, p. 28.).

O herói mandarim, nas entrelinhas do filme, com sua fúria, consegue vencer suas

próprias limitações, como veremos a seguir, enquanto sujeito sócio-histórico e ideológico.

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3 O FILME: CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO

Neste capítulo apresentaremos brevemente o contexto histórico de produção, o

enredo do filme Fist of Fury (A fúria do Dragão, 1971) e uma pequena biografia do ator

protagonista Bruce Lee, para realizarmos, no próximo capítulo, capítulo das considerações

analíticas, as costuras da materialidade discursiva e imagética com a noção operatória do

sujeito e da ideologia que enfatizaremos.

3.1 SOBRE O ENREDO

O longa-metragem Fist of Fury (A fúria do Dragão), que apresenta tempo (194

minutos) de duração, foi produzido em 1971, pela produtora chinesa de Hong Konng, a

Golden Harvest, sendo seu produtor Raymond Chow e seu diretor Lo Wei. No enredo

destaca-se como protagonista o “herói chinês”, Chen, interpretado pelo ator: Bruce Lee.

O enredo inicia-se com o personagem Chen que volta de férias para a escola de artes

marciais “Ching Hiu”, em Xangai, e na sua chegada depara-se com uma surpresa inesperada,

a morte de seu mestre Hu Hian Chua, outro lendário herói chinês, campeão que muitas vezes

venceu japoneses e russos nos campeonatos de luta fora envenenado.

Chen vai ao seu sepultamento, todos os seus colegas velavam o mestre, mas ele não

se conformou e é tomado por um surto de loucura, fica em crise e cava com as mãos a terra do

caixão, é acalmado por um capitão com um golpe de pá na cabeça, depois de mais calmo quer

ouvir a versão dos colegas, que disseram que o mestre tinha morrido de pneumonia, contudo

ele não acreditou nessa versão.

Concentra-se perante a imagem de seu mestre e sua noiva o traz comida, mas ele

rejeita, não quer comer e diante do incenso aceso lembra-se de seu estimado professor de

Kung Fu, fica incomodado com sua morte, o sentimento de fúria aflora e começa a ser

despertada

Nas últimas homenagens feitas ao mestre, um professor-orador salientou a

importância de Hu Hian Chua e da escola, lembrou que seus ensinamentos “serviam para

fortalecer o corpo, a mente e o caráter” e complementou sobre a importância da honra e de

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servir a China. Depois desse momento solene todos estavam em silêncio, o qual é rompido

pela chegada de japoneses, que trouxeram consigo um quadro moldurado, ao abri-lo os

chineses depara-se com o seguinte enunciado: “homens doentes da Ásia”, escrito em chinês.

Esse insulto faz com que se inicie um momento tenso, que é intensificado pelo

japonês Suzuki, mestre de uma escola de artes marciais rival, denominada “Hu Kiu”, que

reitera que os chineses são homens doentes da Ásia. Esse mestre proferiu ainda em um tom

hostil que os chineses eram patéticos e os desafiou à luta dizendo que não tinham coragem,

que eram medrosos. Todavia, os chineses permanecem em silêncio e não lutaram, respeitando

a memória de seu mestre.

Depois Chen vai sozinho à escola dos japoneses devolver o quadro e os desafia a

lutarem contra ele; a luta acontece e ele se vinga de todos, pois vence um a um. Chen ataca-os

furiosamente com golpes de Kung Fu e, como um Dragão alado, com seus movimentos ágeis,

defende não só a si, mas aos chineses. Antes de sair da escola quebra o quadro, chama dois

japoneses, os obriga a comerem o papel com o enunciado citado acima e deixa o recado de

que os chineses não são doentes.

Em seguida é a vez dos japoneses retribuírem a vingança e atacarem os chineses da

escola Ching Hiu, que estavam praticando Kung Fu, porém Chen não estava lá. Mesmo assim

os japoneses os agridem e deixam um rastro de destruição na escola. A partir de então, a

narrativa passa a apresentar as tramas de Chen para conseguir efetivamente mostrar a

superioridade de sua escola.

Destaca-se em uma das cenas o nosso herói querendo entrar em um parque, quando

um indiano que cuidava da entrada o barrou e mostrou-lhe uma placa anexa à coluna do

portão com o seguinte anúncio: “Proibida a entrada de cachorros e chineses”.

No auge dessa cena uma senhora aproxima-se com um cachorro e entra; ao

questionar o indiano sobre essa atitude o mesmo lhe responde: “Você tem a cor errada”; “Cai

fora daqui”. Nesse momento, aparece um japonês que o afronta e pede para ele imitar um

cachorro e até latir; quem sabe assim poderá entrar no parque; Chen, enfurecido, desfere

golpes no japonês e, no ápice da fúria, com um golpe no ar, estraçalha a placa de proibição.

No clímax da narrativa fílmica, o personagem descobre os verdadeiros assassinos de

seu mestre pertencentes à escola “Hu Kiu” e o plano de vingança ganha contornos mais

elaborados; dentre as estratégias dessa vingança o protagonista se camufla de velho, quando

procurado pelo delegado, de telefonista, para se infiltrar e conhecer o território inimigo, e de

cocheiro, para descobrir os planos do mestre Suzuki.

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Numa das lutas travadas entre as duas escolas os japoneses matam todos os seus

colegas; só sobreviveram aqueles que foram procurar Chen e tentar descobrir onde este

passava as noites. Próximo ao desfecho do filme, nosso personagem entra na escola rival e,

após proferir o seguinte enunciado: “Eu vim vingar meu mestre”, obtém êxito e mata todos os

assassinos.

No final da narrativa, a cena se configura com o delegado querendo prender os

poucos alunos chineses que ficaram vivos. Juntamente com o delegado encontra-se o cônsul

japonês que exerce pressão sobre aquele para executar a prisão. Contudo, para não permitir

que essa ação se realizasse, Chen se entrega após obter a palavra de honra do delegado em

não mais oprimir, coagir ou prender seus colegas.

A cena final deixa a narrativa em aberto, ou seja, há uma quebra de expectativa, pois

o protagonista, que seria levado à prisão, ao se abrirem as portas da escola em que estavam,

desfere um dos saltos do Kung Fu e encerra-se o filme com sua imagem ‘congelada’ no ar;

contudo, mostra-se também nessa cena inerte uma barreira de policiais com fuzis apontados

para ele. Essa estratégia do roteiro passa ao telespectador a responsabilidade da interpretação

última que se abre à possibilidade de vários efeitos de sentidos.

3.2 BREVE RELATO BIOGRÁFICO DE BRUCE LEE

Por considerarmos que a biografia de Bruce Lee importa ao nosso trabalho analítico

por representar e integrar as condições sócio-históricas e ideológico-culturais do ano de 1971,

ano em que o enredo é construído e projetado, iremos apresentá-la resumidamente nesse item.

Bruce Lee nasceu em novembro de 1940, segundo a Revista intitulada Bruce Lee

Definitivo (2006), em um hospital de São Francisco nos Estados Unidos - ano do Dragão para

os chineses. Sua mãe, Lee Grave, e seu pai, Lee Hoi Chuen, conhecido ator de ópera, são de

origem chinesa e haviam chegado aos EUA recentemente; contudo, com Bruce ainda

pequeno, a família Lee volta para Hong Kong, terra natal de Chuen.

Desde criança contracenava com seu pai em peças teatrais. Estreou no cinema aos 7

anos em MY SON A-CHANG, interpretando um pequeno marginal. Já adolescente,

matriculou-se numa escola de wing-chu, uma das ramificações do Kung Fu e tinha a obsessão

de ser o melhor lutador entre todos.

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Bruce Lee retorna aos EUA em 1959 para completar seus estudos. Recebeu então

diploma do Edison Technical School e também foi formado pela Universidade de Washington

em Filosofia. Foi nessa Universidade que ele conheceu sua futura esposa, Linda Emery, com

quem se casou em 1964 e teve um casal de filhos, Shannon e Brandon.

Em 1971, insatisfeito com o preconceito contra estereótipos de atores asiáticos que

encontrava nos Estados Unidos, Lee retornou para Hong Kong com a sua família e então

concretizou sua fama de ator em filmes que divulgavam, fundamentalmente, as artes marciais.

Todavia, além de ator nosso protagonista traz em seu currículo uma variedade de atividades

desenvolvidas simultaneamente; é também filósofo, lutador e diretor; divulga o Kung Fu no

cinema e enriquece a arte cinematográfica chinesa; revoluciona os filmes de ação, dá mais

vida aos movimentos, que até então eram técnicos e mecânicos.

Segundo Lopes :

Inspirou dezenas de atores e imitadores – não foram poucos os que usaram o Lee no

sobrenome artístico. As seqüências de seus filmes de ação influenciaram também

diretores cultuados. John Woo, Ang Lee-de O Tigre e o Dragão (2000)- e Quentin

Tarantino – de Kill Bill 1 e 2 (2003 e 2004) são alguns deles (LOPES, 2006, p. 2)

Criou ainda o Jeet Kune Do, arte marcial, que mistura algumas modalidades de estilo

oriental e expressa uma síntese de seus próprios pensamentos e experiências sobre o combate.

Não se trata apenas de uma técnica, mas, essencialmente, reúne concepções filosóficos

advindas principalmente da corrente Taoísta, com influências do Budismo.

Sua esposa, Linda Emery, segundo fontes da Revista Bruce Lee Definitivo (2006),

lançou um livro, intitulado “Tao Of Jeet Kune Do” (O Tao Jeet Kune Do), contudo, Lee o

teria fundamentado e teorizado.

Bruce Lee morreu em Hong Kong no dia 20 de julho de 1973, aos 32 anos. Muitos

rumores circundaram a sua morte, tais como envenenamento, assassinato por mestres de artes

marciais por ter revelado muitos segredos e ainda vingança e drogas. Contudo, o resultado da

autópsia comprovou que a morte de Bruce Lee foi causada por edema cerebral, que ocasionou

um AVC (Acidente Vascular Cerebral) devido a uma reação alérgica a um remédio tomado

para aliviar uma dor de cabeça que estava sentindo.

O legado que deixou foram inúmeras obras compiladas; os vários filmes em que

atuou como ator e diretor o fizeram tornar-se um mito, a crítica o considera uma lenda no

cinema e existem milhares de fãs clubes e sites dedicados à sua técnica e pensamento.

Atualmente sua memória é lembrada por várias revistas que se dedicam em contar sua

biografia e sua importância para o cinema chinês e universal.

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No Brasil, a tradutora Jussara Simões lançou recentemente uma obra copilada pelo

amigo de Lee, John Little, com o título: A arte de expressar o corpo humano, que sintetiza o

aprimoramento de técnicas de coordenação, velocidade, resistência, nutrição, prática de

exercícios e preza as máximas do pensamento taoísta, budista e o autoconhecimento.

A constituição de sua biografia é, portanto, uma das marcas responsável pela

personificação e identificação do homem asiático, que se torna um ícone da perfeição em artes

marciais, agilidade e força como veremos no capítulo seguinte, o capítulo das análises.

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4 CONSIDERAÇÕES ANALÍTICAS: EFEITOS DE SENTIDO

APREENDIDOS NO FILME “FIST OF FURY”

Esta pesquisa pauta-se no método analítico, tendo como objetivo específico

investigar como se constrói o herói chinês no filme: “Fist of Fury” (“A fúria do Dragão”) a

partir dos pressupostos teóricos da AD francesa, em que recortamos as noções operatórias de

sujeito e de ideologia, que amparam nossas leituras analíticas que realizamos nos tecidos

discursivos e imagéticos que compõem a narrativa do filme.

Cabe-nos explicitar que a narrativa analisada é uma versão em português do original,

que é chinês; portanto, sempre pode haver lugar para o equívoco, pois, de acordo com a AD,

falamos a partir das formações ideológicas e discursivas que nos constituem e permitem ou

não dizer o que é dito.

Maingueneau nos oferece uma importante contribuição sobre a conceituação dessa

área do saber: “Nos dias de hoje, ‘análise do discurso’ praticamente pode designar qualquer

coisa (toda produção de linguagem pode ser considerada discurso), isto provém da própria

organização do campo da lingüística” (MAINGUENEAU, 1997, p. 11).

Dessa forma, se, de acordo com o autor, toda produção de linguagem pode ser

considerada discurso, nosso corpus, que apresenta materialidade linguística e imagética, pode

ser uma rica fonte discursiva para a análise da constituição e identificação ideológica do

sujeito herói chinês.

Assim, amparados em Fiorin: “A nossa intenção é verificar qual o lugar das

determinações ideológicas neste complexo fenômeno que é a linguagem, analisar como a

linguagem veicula a ideologia, mostrar o que é ideologizado na linguagem” (FIORIN, 2007,

p. 7).

A partir dessas acepções apresentadas por Fiorin importa-nos também verificar as

questões não transparentes da linguagem, que não são nítidas, mas que estão presentes em

nossa tela e interpelam o telespectador, que é levado a apreender discursos e sentidos

implicitados nas formulações, pois não se revelam e ficam sugeridas nas entrelinhas da

narrativa fílmica.

Ressaltamos que nosso corpus é composto por recortes de imagens do filme, que

nomearemos como cenas; nelas (cenas) pretendemos verificar como as relações discursivas se

constroem pela própria constituição do herói, do personagem protagonista Chen, e como esse

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sujeito é atravessado pelas ideologias vigentes no contexto de sua produção, o ano de 1971.

Passaremos agora à análise desses recortes e suas temáticas.

4.1 A IDENTIDADE CHINESA

Retrataremos, inicialmente, os elementos de identificação da cultura chinesa, da qual

participa nosso herói mandarim. Fatores que caracterizam o contexto sócio-histórico em que a

narrativa foi produzida.

cena (3)

Cena (1) 01h: 28 min: 10s Cena (2) 01h: 33min: 12s

Cena (3) 01h: 32min: 12s Cena (4) 01h: 37min: 48s

Na interlocução percorrida pelo herói mandarim presentes nas cenas (1 a 4) a

temática de identidade é percebida pelas “marcas”, que se constroem na narrativa e se inserem

em uma materialidade imagética, que retoma o caráter de identidade chinesa.

Na textualidade filmica e nas cenas recortadas (1 a 4) , essas marcas se apresentam: no

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seu vestir – na cena (1) o herói Chen em sua chegada à escola está vestindo tipicamente a

roupa e a cor de sua cultura, o branco, que para os orientais simboliza a tristeza e a perda de

entes queridos; no seu próprio agir - a cena (2) representa e retrata o lugar social (as correntes

filosóficas), as práticas religiosa e filosófica que retomam o taoísmo, pela presença do incenso

aceso em memória do mestre querido; o budismo, pela presença das velas e da imagem

budista, e o confucionismo, pelo respeito ao seu mestre.

Coisa de interesse é notarmos na cena (3) uma referência ao costume tradicional do

respeito à memória do mais velho, por meio da personagem do mestre Hu Hian Chua. E na

cena (4), no dizer do professor-orador, que reforça o contexto sócio-cultural da China, ao

proferir os seguintes enunciados: “fortalecer o corpo e a mente dos nossos jovens e o caráter

da pessoa”,“ honrar as palavras do mestre”, “servir nosso país”, “nosso querido país”, o que

evidencia uma interpelação aos jovens chineses sobre a importância de servir ao Estado pela

ideologia vigente, e enfatizando esse efeito ideológico presente nos fios discursivos ao reiterar

o enunciado “nosso querido país” à maneira de reiteração do amor à pátria, ou seja, o

nacionalismo e o patriotismo chinês.

O caráter de identidade, portanto, inter-relaciona-se com a constituição do sujeito e a

interpelação ideológica, que atravessa a construção discursiva chinesa e a sua formação

social, impressas nas marcas discursivas e imagéticas como vimos nos recortes acima. Essa

interpelação ideológica permite-nos também apreender dois discursos que se sobressaem

nessas materialidades analisadas, o discurso da China (espaço de dizer) e o discurso sobre a

China (fatores de identificação), resgatados pela memória discursiva.

Esses dois discursos, todavia, se entrecruzam no todo enunciativo e se manifestam

pela própria história; dessa forma, no contexto fílmico e de produção da época as correntes

filosóficas chinesas e o Kung Fu passam a ser elementos que buscam a (re)-significação de ser

chinês, esse sujeito que se apresenta heterogêneo, clivado, mergulhado em sua memória para

poder criar sua imagem perante o “outro”, que entendemos aqui como os países ‘opressores’,

que utilizam forças coercitivas para a segregação dos povos por julgarem-se superiores aos

demais.

A eficácia desse gesto de significar sua história sob o enfoque sócio-ideológico e

cultural interpela o telespectador em um jogo imaginário e, nessa perspectiva, o locutor/autor

do filme induz a construir um imaginário positivo dos chineses e do próprio lugar em que os

mesmos se inscrevem.

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4.1.1 Herói e imaginário: fatores de identificação

Na prática, o nosso sujeito-heróico, o protagonista Chen, sintetiza o pensamento

chinês e o seu lugar de significação, representa ainda a própria metonímia da China no resgate

e valorização de sua história e de sua cultura nessa construção do sujeito-chinês, que (re)

produz discursos em nome dos valores almejados pelo povo chinês e disseminados pelos

interdiscursos nas formações ideológicas chinesas. Althusser (1996), amparado em Freud,

chama a atenção exatamente para esse fato de que “a ideologia se eterniza” na memória

discursiva. Orlandi também se posiciona em relação ao sujeito e à ideologia:

O sujeito é a interpretação. Fazendo significar, ele significa. É pela interpretação que o

sujeito se submete à ideologia, ao efeito da literalidade, à ilusão do conteúdo, à

construção da evidência dos sentidos, à impressão do sentido já-lá. A ideologia se

caracteriza assim pela fixação de um conteúdo, pela impressão literal, pelo

apagamento da linguagem, pela estruturação ideológica da subjetividade. (ORLANDI,

2001, p. 22).

Com relação à conceituação acima trazida por Orlandi, vale salientar que “o sujeito é

a interpretação”. Em nossa materialidade discursiva e imagética encontramos esse sujeito, no

caso o personagem Chen, que, ao interpretar as ações sócio-culturais chinesas também as faz

(re) significarem e, dessa forma, posiciona-se perante o “outro”. Assim, o sujeito-heróico, que

é constituído e atravessado pela história chinesa, retoma essa memória que se “eternizou” no

imaginário do herói e legitima a própria identidade chinesa.

Destacamos ainda que a materialidade imagética é de fundamental importância para

o nosso contexto analítico, visto que permite apreender, na linguagem em movimento, muitos

efeitos de sentido que não estão postos na materialidade discursiva, mas são interpretáveis nas

imagens. Martine Joly chama a atenção para essa necessidade de lançarmos um olhar

reflexivo ao plano imagético

De fato, a utilização das imagens se generaliza e, contemplando-as ou fabricando-as,

todos os dias acabamos sendo levados a utilizá-las, decifrá-las, interpretá-las. Um

dos motivos pelos quais elas podem parecer ameaçadoras é que estamos no centro de

um paradoxo curioso: por um lado, lemos as imagens de uma maneira que nos

parece totalmente “natural”, que, aparentemente, não exige aprendizado e, por outro,

temos a impressão de estar sofrendo de maneira mais inconsciente do que consciente

a ciência de certos enunciados que conseguem nos “manipular”, afogando-nos com

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imagens em códigos secretos que parecem zombar de nossa ingenuidade (JOLY,

2007, p. 10).

Assim, de acordo com Joly, podemos afirmar que as imagens projetadas no filme

trazem sentidos que escorregam, ou seja, elas não são transparentes, exigem aprendizado,

todavia suas mensagens atingem o inconsciente do telespectador e os assujeitam às ideologias

presentes na narrativa, ligadas, fundamentalmente, às correntes filosóficas disseminadas na

China.

Para compreendermos melhor essas relações entre o imagético e o imaginário

discursivo, passaremos para as próximas cenas do filme, que analisaremos.

Cena (5) 01h: 38 min: 44s

Cena (6) 01h: 38 min: 35s Cena (7) 01h: 51 min: 22s

Cena (8) 01h: 48 min: 14s

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A primeira cena (5) retrata o exato momento em que o conflito se instaura entre

japoneses e chineses. Esse conflito representa uma espécie de clímax aos propósitos do

autor/produtor do filme, que objetiva retomar a antiga e secular rivalidade entre ambos.

Contudo, a construção discursiva e imagética isenta os chineses da culpa desse

romper de “silêncio”, pois são os japoneses que iniciam o conflito, visto que trouxeram aos

chineses, como já explicitado no capítulo III, um quadro com o seguinte enunciado em chinês:

“os chineses são os homens doentes da Ásia”, em destaque na cena (6).

No sentido semântico a palavra doença, pode significar, na linguagem médica, algo

que é patológico e que necessita ser diagnosticado e, portanto, que precisa de um resultado

profilático, todavia, para o contexto em que a cena acontece, significa que a China representa

o lugar de mal-estar entre os orientais, um mal que causa incômodo entre as supremacias

asiáticas.

As provocações têm continuidade e outros enunciados, que envolvem segregações

étnicas, são proferidos, dentre eles “os chineses são uma raça de patéticos”. Dessa forma, a

partir desse lugar discursivo, o sujeito estrangeiro o “outro” (japonês), trata o chinês de forma

hostil e preconceituosa. Implicitamente percebemos ainda, pela violência psicológica e

verbalizada, a opressão, o renegar ao chinês, seu ser e estar no mundo, sua história, cultura e

identidade.

O herói Chen na cena (7) responde: “Nós não somos doentes”, após essa afirmação

ocorre na narrativa um desencadear de ações, que se sucedem, arquitetados pelo sujeito-herói.

A ênfase dessas ações está justamente no combate ao preconceito, à opressão, à imagem

negativa dos chineses que deve ser desconstruída. Como ferramenta central para esse combate

os chineses têm à sua disposição as técnicas do Kung Fu, que são demonstradas em vários

momentos do enredo.

Para Campbell, a função do herói é oscilar as circunstâncias em que ele vive: “A

façanha do herói é um constante abalar das cristalizações do momento” (CAMPBELL, 2004,

p. 324), nesse caso, o nosso herói Chen abala as ‘circunstâncias’ chinesas pelo uso do Kung

Fu, torna-se implacável, veloz como um “dragão e “enérgico” em sua fúria, essas

características influenciam e modificam o cenário da identificação chinesa.

Contudo, é preciso ressaltar que o sujeito – heróico não age por acaso e postula um

mundo de significações e de ações discursivas em nome do Estado chinês ao qual é

assujeitado. Para Orlandi: “É na formulação que a linguagem ganha vida, que a memória se

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atualiza que os sentidos se decidem que o sujeito se mostra e se esconde”. (ORLANDI, 2001,

p. 9).

Assim, é na ‘formulação’ que encontramos nosso herói, é nela que ele se inscreve e é

nela que a ideologia vigente, no caso a chinesa, se reproduz nas cenas da narrativa, pois nosso

herói é atravessado por ela (a ideologia) a todo momento.

O personagem Chen pode ser considerado, também, o representante máximo do

homo ethicus, pois se compromete e age em nome do coletivo chinês. Homo ethicus ainda

porque no seu agir, pelo senso de honra, pelo respeito aos mais velhos (mestres), pelo cultivo

das filosofias orientais e do Kung Fu, demonstra a grandeza de caráter, o respeito às tradições

e a preocupação com a cultura chinesa.

4.1.2 Os chineses e o “outro”: espaços de conflito

De acordo com Orlandi (2001), para compreendermos um evento discursivo é

preciso levar em conta as condições de produção, que se dividem essencialmente em três

momentos: a constituição (a partir da memória do dizer), a formulação (que acontece em um

contexto histórico) e a circulação (que ocorre em um certo momento e em certas condições).

Dessa forma, em nossas considerações analíticas ativemo-nos a esses três momentos

para verificar as relações interdiscursivas que aparecem nas formulações discursivas e

imagéticas do filme, bem como a propagação do herói mandarim que se estende a vários

lugares sociais.

A seguir nos aprofundaremos ainda mais no tecer de nossos resultados analíticos:

Cena (9) 01h: 55 min: 13s Cena (10) 01h: 55 min: 07s

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Cena (11) 01h: 55 min: 20

Cena (12) 01h: 55 min: 45s Cena (13) 01h: 56 min: 30s

Na sequência das cinco cenas acima, verificamos que em sua constituição há o ápice

do resgate interdiscursivo, visto que a temática do filme em suas formulações retrata e visa a

mostrar ao interlocutor a hostilidade, a opressão e a construção da imagem negativa dos

chineses frente aos demais países asiáticos, mais especificamente ao Japão e à Índia. Esse

ápice tem início quando o herói Chen, cena (9), chega ao Parque Internacional de Xangai1 e é

barrado no portão. O protagonista se depara com um indiano que vigia a entrada do parque e o

mesmo lhe mostra uma placa (cena 10) em uma das colunas do parque com o seguinte

enunciado, escrito em chinês e inglês: “Proibida a entrada de cachorros e chineses”.

1 O contexto sócio-histórico enfatizado no filme refere-se à maior cidade da República Popular da China,

Xangai, cidade portuária, em que ocorre a produçao do filme. Todavia, remete-nos para um momento histórico

anterior ao da produção. A situação narrada refere-se aos tempos em que a cidade, através do Tratado de

Nanquim (1842), constituía-se por uma parte chinesa e outra de domínio europeu e outros países asiáticos,

gozando estes do direito de extraterritorialidade, inclusive com um regime jurídico próprio. O Japão e a Índia

eram países que dispunham direitos de extraterritorialidade e, no caso do Japão, somente foi expulso

efetivamente de Xangai na Segunda Guerra Mundial.

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Nesse instante, uma senhora entra no parque (cena 11) com um cachorro, Chen

imediatamente questiona a razão do ‘porteiro’ ter permitido a entrada do cachorro e estar

querendo vetar a sua, ao que o indiano lhe responde: “Você tem a cor errada, Caia fora

daqui!”

A ênfase ao preconceito étnico intensifica-se ainda mais quando, na cena 12, um

japonês, que supostamente está passando em frente ao parque e vê o acontecimento, pede para

nosso herói imitar um cachorro, ou seja, para ele latir, quem sabe assim seria possibilitada a

sua entrada no estabelecimento.

O chinês, assim, é comparado a um cachorro em sua condição de sujeito. É

importante ressaltar que, no pensamento oriental, o cachorro em relação ao homem é

insignificante, diferente do Ocidente, que tem o cachorro como amigo. Para a cultura chinesa

o cão serve de alimento, nesse contexto, temos o efeito de sentido de que o chinês tem menos

valor que um cachorro, portanto, sem voz, sem vez, sem lugar social.

Chen reage de forma furiosa contra o japonês, explicitamente revela a não aceitação

à hostilidade sofrida e invoca os sujeitos chineses a combaterem essa opressão indicando-lhes

como fazer isso, pelo Kung Fu, pois estraçalha a placa com um golpe veloz e ágil (cena 13).

Assim, o filme sugere a busca de uma nova identidade chinesa, ainda que pelo conflito, pelo

combate ao “outro” que o hostiliza por meio de relações de poder.

Esse “outro”, como vimos, tenta denegrir a cultura e raça chinesa por meio do

simbólico, visto que as palavras podem ser armas dolorosas e terríveis porque se materializam

na linguagem e vêm de um lugar social e de um momento de circulação, internalizando-se nos

sujeitos que as assimilam. Este é um fator central na disseminação da imagem chinesa

negativa (re) produzida tanto nos discursos da China, representados por Chen, que tenta

desconstruí-la, quanto nos discursos sobre a China, representados pelo “outro”, japoneses e

indianos, que querem reiterá-la. .

4.1.3 O silêncio e a fúria

Segundo Orlandi (1997, p. 33), o silêncio não fala “o silêncio é.” O silêncio

“significa”, ou seja, o silêncio é o próprio sentido. O nosso sujeito-heróico no seu silêncio

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também significa como veremos na sequência das cenas (14-19) a seguir. Salientamos que o

silenciamento é uma das formas da resistência à opressão do “outro”:

Cena (14) 01h: 33 min: 50s Cena (15) 01h: 48 min: 05

Cena (16) 01h: 39 min: 30s Cena (17) 02h: 12 min: 22s

O silêncio do protagonista retratado em todas as cenas acima mostra como a

resistência se instaura perante o preconceito contra o chinês, que foi promovido pelos

japoneses e indianos, e o efeito de sentido que se sobressai, então, é a necessidade de

vingança contra o opressor. Dessa forma, em consonância com Orlandi, podemos afirmar que

há, nesse processo de silenciamento, uma ruptura de sentido desejada na materialidade

fílmica.

Para essa autora: “O silêncio imposto pelo opressor é exclusão, é forma de

dominação, enquanto que o silêncio proposto pelo oprimido pode ser uma forma de

resistência. Ambos produzem uma ruptura, no caso, desejada.” (ORLANDI, 1996, p. 263).

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De acordo com a representação ideológico-cultural vigente na narrativa, essa ruptura

é desejada pelo sujeito – heróico; pois no seu agir se postula e se arquiteta a fúria e a

vingança, ambas se desencadeiam no desenvolvimento do filme.

Todo o enredo fílmico corresponde e demonstra essa exclusão e opressão por parte

do “outro” e revela um sujeito – chinês na sua condição de ser e estar no mundo, mostra

também que o opressor precisa excluir para dominar, inferiorizar para se “dizer” superior, ou

melhor.

No caso do herói, portanto, a oposição e resistência significam combater o

preconceito racial que se instituiu no decorrer da narrativa e qualquer tipo de ação que lese o

chinês no âmbito cultural e em defesa da ‘hegemonia’ mandarim. Chen combate esse “mal”,

que se configura através da ruptura desejada e se materializa em uma fúria destrutiva contra o

opressor, essencialmente representado pelo japonês.

4.1.4 Os efeitos de sentido da ‘camuflagem’

Dentre as estratégias utilizadas para a produção do enredo pelo autor/produtor

encontram-se as camuflagens, que se destacam por quererem enganar o seu opressor e

conhecer melhor seu espaço de ‘supremacia’. Tais camuflagens são as dissimulações do herói

e representam as suas próprias marcas atravessadas pela memória, que simbolizam e (re)

significam a historicidade e a cultura chinesa.

Cena (18) 01h: 36 min: 36s

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Cena (19) 02h: 32 min: 58s Cena (20) 02h: 49 min: 28s

O nosso sujeito-herói aparece camuflado em três momentos distintos da narrativa,

consecutivamente de: velho (cena 18), cocheiro (sentido enunciativo diferente do Ocidente,

em vez de um cavalo é um homem que puxa uma pequena carruagem, esse é um meio de

transporte comum na China) (cena 19), e o telefonista (cena 20), a partir desses disfarces se

postulam as táticas de vingança e de resistência contra os japoneses.

Na camuflagem o “ideologizado” está constitutivamente presente, o herói finge ser,

posiciona-se de um lugar discursivo representativo que converge nas ideologias presentes no

seu agir, no dizer, no seu silenciar e em defesa do lugar social chinês.

4.2 O CORPO E A MATERIALIZAÇÃO DE SENTIDOS

Nas cenas finais do filme há como dissemos no capítulo anterior uma quebra de

expectativa, que transfere ao interlocutor/telespectador a responsabilidade da atribuição de

sentidos sobre o final da narrativa. Esse efeito é intencionalmente planejado pelo

autor/produtor e visa a enaltecer e reforçar a grande arma sugerida para vencer a opressão e a

hostilidade advindas do “outro” supostamente superior, o Kung Fu.

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Cena (21) 03h: 12 min: 05s Cena (22) 03h: 13 min: 15s

Na primeira cena (21) podemos observar a polícia armada esperando o sujeito-herói.

E na cena final seguinte, temos um salto e um grito de Kung Fu dados por ele

concomitantemente com o ‘congelamento’ da imagem desse sujeito no ar. Essas ações

expressam a resignação máxima do protagonista que convida o povo chinês a resignar-se

juntamente com ele, o “outro” estrangeiro, que não pertence à sua cultura e à sua sociedade,

pode sim, ainda que extremamente opressor, ser derrotado.

Para a apreensão desse efeito de sentido temos, portanto, a leitura do corpo e a

expressão verbal do grito, que se materializam na discursividade, atravessada de sentidos.

Ambos, o salto e o grito, representam respectivamente: o primeiro a posição e o segundo o

lugar ideológico chinês, a própria voz chinesa, um grito que não é individual e sim coletivo,

que sintetiza a sua posição em relação ao “outro”, posição que, contudo, encontra-se em

conflito.

O estar no alto como um “dragão”, que salta em sua fúria culminante postula a

possibilidade de ascensão e transcendência, ou seja, o próprio despertar chinês para o mundo

como sujeito ativo sintonizado pelo golpe de Kung Fu. Esse golpe pode ser traduzido como

símbolo de retomada da identificação chinesa e a (re) afirmação do discurso da China, que

representa o sujeito chinês em seu desejo e anseio de (re) significar-se na história e no mundo.

4.2.1 Sujeito e ideologia: condições para o (res)significar da identificação

chinesa

Na narrativa metaforicamente o sujeito-herói Chen tem a sua ‘fúria’ relacionada à

“fúria do dragão”. A figura do Dragão no contexto chinês é ímpar, pois representa um animal

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sagrado convocado por Pan Ku (o deus criador) para participar na criação do mundo e

representa também a energia do fogo, que destrói, mas permite o nascimento do novo (a

transformação). Simboliza ainda a sabedoria e o Império. Como vimos na narrativa o herói o

simboliza, e na posição de sujeito, portanto, é atribuído a ele o nascimento da nova

identificação chinesa.

O posicionamento de Campbell em relação ao Dragão chinês é este: “Nossos

dragões, no Ocidente representam a cobiça, mas o dragão chinês é diferente. Ele representa a

vitalidade dos pântanos, e emerge batendo a barriga e rugindo ameaçador. É uma espécie

adorável de dragão, a que libera a generosidade das águas – uma grande gloriosa dádiva.”

(CAMPBELL, 2004, p. 158).

O herói protagonista como sujeito se inscreve nesse aspecto simbólico que Campbell

semanticamente conceitua como ‘ameaçador’, cheio de vitalidade, e, sob este símbolo, o

mesmo sintetiza a ideologia da China e a (re) afirma Para essa (re) afirmação o suporte basilar

é o Kung Fu, que curiosamente na cultura chinesa visa a reproduzir a energia e a agilidade dos

movimentos do dragão.

O herói ainda representa o dragão que bloqueia, golpeia e resiste com sua ágil

destreza e performance ao “outro”. Como defensor, o herói é o modelo universal chinês, que

eleva as máximas da filosofia oriental dominante nesse contexto. Assim, como

representante de um novo olhar para a identidade chinesa o nosso sujeito-herói, como já

dissemos, constitui-se na voz do povo chinês. Para tanto, de acordo com Jung (2000), ele se

postula como arquétipo do pensamento oriental após o ano de 1971, um divisor de águas, ou

seja, é a própria metonímia da China do antes e do depois. Em suma, conforme Fiorin:

A esse conjunto de idéias e representações, a essas representações que servem para

justificar e explicar a ordem social, as condições de vida do homem e as relações

que ele mantém com os outros homens é o que comumente se chama ideologia.

Como ela é elaborada a partir das formas da realidade, que ocultam a essência da

ordem social, a ideologia é ‘falsa consciência’ ( FIORIN, 2007, p. 28).

É essa “falsa consciência” que o “outro” atribui aos chineses que o nosso

protagonista-herói procura desmistificar, bem como fazer com que o povo chinês se sinta em

um lugar social mais humanizado e em igualdade de condições com os demais países. De

acordo com Maingueneau “o discurso se constrói, com efeito, em função de uma finalidade,

devendo supostamente, dirigir-se para algum lugar”. (MAINGUENEAU, 2004, p. 53), essa

finalidade e lugar se reproduzem, em nosso contexto de análise, nos dois discursos que

enfatizamos no corpo do trabalho, o da China e o sobre a China.

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Ainda como esfera simbólica no imaginário chinês podemos citar a “muralha

chinesa”, que foi construída para a defesa desse povo, como vimos no capítulo II. Essa

muralha simula a resistência chinesa no plano material e simbólico em relação ao “outro”

estrangeiro e concretiza a própria constituição do herói Chen, que resiste e se protege na

materialidade discursivo-imagética com seu agir e significar e se configura em defesa dos

sentidos que arquiteta no desenvolver do enredo.

A “arena de conflito”, edificada entre japoneses e chineses durante toda a trama,

perpassa, assim, a origem histórica e cultural chinesa, que para Orlandi significa: “um efeito

que é o efeito ideológico pelo qual o sujeito sendo sempre sujeito, coloca-se na origem do que

diz.” (ORLANDI, 2001, p. 100).

Desse modo, Chen busca na origem do dizer (re)-significar a identificação chinesa

aos olhos do “outro” e por essa razão o sujeito não tem origem em si, mas na intervenção da

ideologia em relação à linguagem.

Portanto: “O sujeito se submete à língua mergulhado em sua experiência de mundo e

determinado pela injunção a dar sentido, a significar em um gesto, um movimento sócio –

historicamente situado que reflete sua interpelação pela ideologia”. (IDEM, 2001, p. 103).

Dessa forma, Chen deseja dar sentido e significação para o chinês no mundo, dizer

de sua importância, que também tem “voz” e lugar, e, finalmente, produzindo a ruptura

desejada de sentidos por meio da fúria no seu silenciamento, o silêncio significante, e das

ações consecutivas promovidas pelo Kung Fu.

Chen constitui-se, assim, num sujeito, que se movimenta no tempo e na história pelo

uso do interdiscurso, nesse movimento materializa o discurso chinês, através de suas atitudes.

No enredo, portanto, se processa a construção desse sujeito nas materialidades, que

se relaciona com a ideologia chinesa e com a alteridade, essa relação que se demanda na

presença de discursos que se legitimam no filme e que se estabelecem em sujeito e ideologia.

A alteridade é produzida em um movimento imaginário de alternância, ou seja, os

‘estrangeiros’ imaginam o chinês e o chinês os imagina, essa relação do pensar que se alterna

entre si se vai legitimando por ambos sobre o “outro” e seus sentidos vinculam–se nesse jogo

imaginário do próprio sujeito.

Brandão enfatiza essa relação do sujeito com o “outro” da seguinte maneira: “A

linguagem não é mais evidência, transparência de sentido produzido, por um sujeito uno,

homogêneo, todo poderoso. É um sujeito que divide o espaço discursivo com o outro.”

(BRANDÃO, 2007, p. 59-60).

Desse modo, conforme Brandão, o “outro” desempenha papel fundamental na

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construção do significado, que se integra ao discurso do sujeito e revela as relações intrínsecas

na realidade. No contexto de nosso estudo, essa alteridade, que se evidencia pelo chinês

(sujeito) e pelo japonês (outro), mostra, pois, que ambos só constituem suas relações de

construção no mundo sustentadas pelos contextos sócio-históricos e ideológicos, que

acontecem em suas interações das formações discursivas.

Assim, de acordo com Orlandi (2001) os discursos não “brotam” do nada, mas são

inscritos e se inscrevem na história e nas relações de poder construídas. Dessa forma, o sujeito

chinês se constitui pelos sentidos de sua própria historicidade, pois “o homem se faz na

história e pela história” (ORLANDI, 2001, p. 102) e de acordo com Fiorin: “O homem

aprende como ver o mundo pelos discursos que assimila e, na maior parte das vezes, reproduz

esses diversos discursos em sua fala”. (FIORIN, 2007, p. 35).

Ressaltamos ainda que, como entidade heróica, Chen divulga o pensamento oriental

implícito pelas correntes filosóficas: o confucionismo, o taoísmo e o budismo e ao representar

o discurso da China e a afirmação de sua própria identidade e legitima o lugar do chinês no

mundo.

Encontramos aqui um ponto de interseção entre o protagonista e o próprio ator,

Bruce Lee, que nao conseguiu mostrar o seu talento nos Estados Unidos durante o seu

percurso estudantil em território americano por ter que enfrentar o preconceito contra

estereótipos de atores asiáticos. Esse sentimento de exclusão e não aceitação desse “outro”

americano, que o faz retornar à China em 1971 e estabelecer uma parceria com a produtora

chinesa de Hong Kong, a Golden Harvest, é percebido na narrativa fictícia e faz com que

realidade e ficção sejam o mesmo tecido de um todo materializado.

O sucesso das atuações de Bruce Lee no cinema fez com que outros atores o

seguissem e imitassem, tornando-se de fato um ícone chinês e uma referência moderna de

identificação chinesa. Como modelo coletivo o protagonista instaura e revigora os valores

nacionais chineses, que são ativados pela memória dos sujeitos, presentes nas marcas da

materialidade discursiva e imagética.

Contudo, o sujeito heróico se relaciona com a ideologia vigente sob um tom de

“opacidade”, ou seja, não transparente e por essas formulações do enredo estabelece-se a

circulação dos sentidos inscritos no herói.

Então o que significa ser chinês a partir de 1971? É pelo herói que se tece e se

projeta a imagem chinesa desde então, essa tessitura acontece pelos sentidos sócio-históricos e

culturais que constituem o seu dizer e pela própria relação entre sujeito e ideologia que

promovem um novo caráter de identificação.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS: GESTOS FINALIZADORES

A filmografia que analisamos permitiu-nos perceber a construção ideológica do herói

chinês e a instauração de sentidos na materialidade discursiva e imagética em suas

formulações e produção, sem desconsiderar, todavia, que esses sentidos são materializados

pelas dimensões da linguagem cinematográfica.

Os aspectos ideológicos no remetem ao tempo da narrativa em que o protagonista

Chen projeta-se na história e constitui-se como sujeito discursivo, que faz uso das ideologias

vigentes que o atravessam a partir dos discursos que são fomentados por essas relações

interdiscursivas: o da China e o sobre a China.

Nessa perspectiva costurou–se sentidos não transparentes, que estão opacos, ou seja,

que estão implícitos e presentes nos vários tipos de “linguagem” exploradas no filme, bem

como apreendemos as relações de saber e poder, que se instituem pelas relações sócio-

ideológicas e que permitem o que pode ou não ser dito.

Dessa forma, compreendemos que, como os discursos são diversos e os

interlocutores são históricos, esses efeitos de sentidos que localizamos em nossa pesquisa, não

podem ser as únicas formas de interpretação, gestos finalizadores, pois os sujeitos alteram a

possibilidade interpretativa pela linha da história.

A própria constituição histórica e condições de produção de outros pesquisadores

podem instaurar outros sentidos e outras (re) leituras da presente narrativa, sendo, portanto,

esse gesto interpretativo apenas uma das interpretações possíveis, e que mostram a

incompletude da linguagem.

O desejo que move e permeia esta pesquisa é contribuir, por meio das considerações

analíticas que fizemos, com as temáticas contemporâneas que envolvem o homem moderno e

seus conflitos e, mais especificamente, chamar a atenção para o sujeito-herói mandarim que

por sua constituição: repete e desloca sentidos e valores que se instituem naquela sociedade

ou categoria dominante e que pela tessitura entre sujeito e ideologia conseguiu tornar-se uma

peça decisiva para a (re) significação da cultura e identificação chinesa.

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