39
Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015 1 A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO 1 Roberto Crema 2 “Torne-se quem você é.” Lema do Bildungsroman, segundo Michel Fabre 3 . I - Histórias de vida Só existe uma história e toda história é única. A existência de cada ser humano é a representação singular de uma mesma epopeia: da humanidade que somos, do mistério que encarnamos. 4 O ser humano é inacabado. Esta concepção remonta a Confúcio (551-479 a.C.), que falava da nobreza humana como o produto de uma tarefa educativa. “Tudo o que é bom, belo, verdadeiro, se encarna, para Confúcio, no ideal do nobre, aquele que se educa a si mesmo”, afirma o filósofo Karl Jaspers (1883-1969) 5 . Diferenciando-se dos animais, que são o que são graça aos instintos, a missão do ser humano é a de se tornar, real e plenamente, humano. Na visão confuciana, além da edificação de uma comunidade e da superação dos instintos, um mesmo dever une toda a humanidade: tornar-se humano. Eis como o mestre resumiu o seu próprio percurso de aprendizado e de autorrealização, segundo a tradução de Fançois Jullien 6 : “Aos quinze anos, apliquei-me aos estudos. Aos trinta, coloquei- me solidamente de pé. Aos quarenta, eu superei as minhas incertezas. 1 Texto traduzido do francês pelo autor, extraído do documento final da sua pesquisa Pour une Education à la Paix – Impact de la formation holistique de base sur la biographisation des parcours, do Master II Europeen de Recherche, pela université Paris 13, em parceria com a université Louvain-la-Neuve (Bélgica), a université de Genève (Suíça) e o Cnam (França), realizado em Paris, 2009-2012. 2 Contato: [email protected] 2 Texto traduzido do francês pelo autor, extraído do documento final da sua pesquisa Pour une Education à la Paix – Impact de la formation holistique de base sur la biographisation des parcours, do Master II Europeen de Recherche, pela université Paris 13, em parceria com a université Louvain-la-Neuve (Bélgica), a université de Genève (Suíça) e o Cnam (França), realizado em Paris, 2009-2012. 2 Contato: [email protected] 3 In: Delory-Momberger C., Les Histoires de Vie – De l’invention de soia u projet de formation – Préface de Michel Fabre, Paris, Antrhropos, E. Economica, 2001, p. XI. 4 Crema, R., Saúde e plenitude: um caminho para o ser, São Paulo, Summus, 1995, p. 13. 5 Jaspers K., Les grands philosophes Tome I. Socrate, Boudha, Confucius, Jésus, Paris, Pocket, 2009, p. 222. 6 Jullien, F., La pensée fondatrice de la Chine, In Droit R-P. (dir.), Philosophies D’Ailleurs Tome I Les Pensées Indiennes, Chinoises et Tibétaines, Paris, Hermann Éditeurs, 2009, p. 200-2001.

A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO - revistapontifex.org.br · 6 Jullien, F., La pensée fondatrice de la Chine, In Droit R-P. (dir.), Philosophies D’Ailleurs Tome I

  • Upload
    dodan

  • View
    214

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

1

A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO1

Roberto Crema2

“Torne-se quem você é.”

Lema do Bildungsroman, segundo Michel

Fabre3.

I - Histórias de vida Só existe uma história e toda história é única. A

existência de cada ser humano é a representação

singular de uma mesma epopeia: da humanidade

que somos, do mistério que encarnamos.4

O ser humano é inacabado. Esta concepção remonta a Confúcio (551-479 a.C.), que

falava da nobreza humana como o produto de uma tarefa educativa. “Tudo o que é

bom, belo, verdadeiro, se encarna, para Confúcio, no ideal do nobre, aquele que se

educa a si mesmo”, afirma o filósofo Karl Jaspers (1883-1969)5. Diferenciando-se dos

animais, que são o que são graça aos instintos, a missão do ser humano é a de se

tornar, real e plenamente, humano. Na visão confuciana, além da edificação de uma

comunidade e da superação dos instintos, um mesmo dever une toda a humanidade:

tornar-se humano. Eis como o mestre resumiu o seu próprio percurso de aprendizado e

de autorrealização, segundo a tradução de Fançois Jullien6:

“Aos quinze anos, apliquei-me aos estudos. Aos trinta, coloquei-

me solidamente de pé. Aos quarenta, eu superei as minhas incertezas.

1 Texto traduzido do francês pelo autor, extraído do documento final da sua pesquisa Pour une

Education à la Paix – Impact de la formation holistique de base sur la biographisation des parcours, do Master II Europeen de Recherche, pela université Paris 13, em parceria com a université Louvain-la-Neuve (Bélgica), a université de Genève (Suíça) e o Cnam (França), realizado em Paris, 2009-2012.

2 Contato: [email protected] 2 Texto traduzido do francês pelo autor, extraído do documento final da sua pesquisa Pour une

Education à la Paix – Impact de la formation holistique de base sur la biographisation des parcours, do Master II Europeen de Recherche, pela université Paris 13, em parceria com a université Louvain-la-Neuve (Bélgica), a université de Genève (Suíça) e o Cnam (França), realizado em Paris, 2009-2012.

2 Contato: [email protected] 3 In: Delory-Momberger C., Les Histoires de Vie – De l’invention de soia u projet de formation – Préface de Michel Fabre, Paris, Antrhropos, E. Economica, 2001, p. XI. 4 Crema, R., Saúde e plenitude: um caminho para o ser, São Paulo, Summus, 1995, p. 13. 5 Jaspers K., Les grands philosophes Tome I. Socrate, Boudha, Confucius, Jésus, Paris, Pocket, 2009, p. 222. 6 Jullien, F., La pensée fondatrice de la Chine, In Droit R-P. (dir.), Philosophies D’Ailleurs Tome I

– Les Pensées Indiennes, Chinoises et Tibétaines, Paris, Hermann Éditeurs, 2009, p. 200-2001.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

2

Aos cinquenta, eu tomei consciência dos preceitos do Céu. Aos sessenta,

eu os escutava de maneira dócil. Agora, aos setenta anos, eu sou o que

deseja o meu fórum interior, sem jamais desviar-me do caminho justo.”

O eminente educador brasileiro, Paulo Freire (1921-1997)7 – que afirmava que

ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho; nós nos educamos em comunhão,

por intermédio do mundo -, através da sua abordagem crítica e emancipadora de uma

pedagogia do oprimido, ao longo de toda a sua obra afirma o fato inelutável do

inacabamento humano. Para Freire, a razão de ser da educação reside no fato da nossa

incompletude, uma carência que solicita um processo pedagógico centrado na

comunicação e no diálogo, para que a pessoa engendre a sua própria palavra e evolua

da condição de mero objeto das circunstâncias para o estatuto de sujeito da própria

existência. Enfim, como sustentava o filósofo Kant, o ser humano se caracteriza por ser

educável e aperfeiçoável.

O ser humano é uma história potencial a ser inventada e partilhada. Entretanto,

do ponto de vista histórico, a consciência de indivíduo é bastante recente. Nos tempos

primevos os poderes cósmicos, divinos e coletivos, se expressavam através do humano,

então destituído de singularidade íntima e de mentalidade própria. No contexto europeu,

a irrupção da individualidade e a ousadia de afirmar o “eu” ocorreu apenas no final da

Idade Média, caracterizada por certa independência dos laços ritualísticos, culturais e

sociais.

Como um ser a quem falta um sujeito, resta-nos a nobre tarefa de construí-lo.

Christine Delory-Momberger8, uma referência internacional da abordagem qualitativa e

hermenêutica da pesquisa biográfica, fala na invenção do sujeito, como a emergência

de uma palavra singular, edificadora de uma identidade, irredutível a qualquer outra.

Talvez cada ser humano exista para contar uma história, seja banal, seja

grandiosa, pouco importa, mas uma história singular, que ninguém poderá contar por

ele. Caso não a conte, ela se perderá para sempre. Contando-a, nós nos tornamos

autores de um processo dinâmico de autopoiese – a capacidade do ser vivo se produzir

a si próprio, segundo Maturana e Varela9 -, sempre inacabado e em permanente

reconstrução.

Seguindo este objetivo, a abordagem biográfica, com a sua riqueza de conceitos

– história de vida, relato de vida, relato de si, relato etnográfico, relato de práticas, etc.

– representa um vasto horizonte de pesquisa e de hermenêutica, aberto ao universo

entrelaçado da sociologia, da etnologia, da história, da educação-formação, da

literatura, da religião e da filosofia. Como afirma Delory-Momberger10, trata-se de

interrogar “a maneira como os indivíduos se tornam indivíduos”, bem como a função da

7 Freire, P., Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975. 8 Delory-Momberger C., op. cit., p. 9. 9 Maturana R.H.; Varela G.F.; Acuña L.J., De máquinas e seres vivos: autopoiese: a organização do vivo, Porto Alegre, Artes Médicas, 1997. 10 Delory-Momberger C., Histoire de vie et Recherche biographique em éducation, Preface de Wulf C., Paris, Anthropos, Ed. Economica, 2005, p. 13.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

3

atividade biográfica no processo de aculturação, de socialização e na produção da

realidade histórica, social e cultural.

Segundo Gaston Pineau e Jean-Louis Le Grand11, a história de vida é, ao mesmo

tempo, pesquisa e construção de sentido, que implica um processo de expressão e de

experiência. Esta clara e específica definição, de acordo com os autores, estende o

território da escrita de si para além do espaço da grafia, não se circunscrevendo aos

meios escritos, a exemplo da biografia, da autobiografia, do jornal íntimo, do diário de

bordo, entre outros, buscando integrar a palavra escrita ao contexto da comunicação

oral da vida. Abre-se, também, para outras formas atuais da grande mídia, a exemplo

do teatro, do cinema, do rádio, da televisão e da internet, que ampliam enormemente as

possibilidades de comunicação e de expressão. Por outro lado, como “práticas

autopoiéticas de pesquisa e de construção de sentidos a partir de fatos temporais

pessoais”, esta abordagem remonta ao bios socrático, como uma arte de gerar

conhecimentos. Para Pineau e Le Grand, as histórias escritas de vida já existiam na

tradição grega, no V século antes de Cristo.

Na sua obra, Les Histoires de Vie – De l’invention de soi au projet de formation12,

Delory-Momberger retraça um vasto e erudito itinerário da narrativa do sujeito na história

ocidental. Esta aventura começa com a figura do cidadão da polis grega do IV século

A.C., quando a pessoa era definida por sua posição na praça pública. Nesta ocasião, a

biografia constituía o elogio de uma existência exemplar ou uma forma de registrar um

caminho rumo à sabedoria – como testemunham as célebres obras consagradas à vida

de Sócrates – segundo o princípio aristotélico de enteléquia como essência da alma, o

ato final perfeito ou a realização plena da potência. Nesta concepção, todas as coisas

portam o seu fim, desde a sua origem.

Este processo continua através dos escritos pessoais e as práticas de si de

Roma, no primeiro século A.C., com os primeiros vestígios autobiográficos

personalizados, além da cena pública, endereçada a um círculo íntimo de familiares e

de amizades, onde a forma mais utilizada era a correspondência – como as Letras à

Atticus, de Cícero, e mais tarde, A Correspondência de Plínio, o Jovem – até as

hagiografias, relatos da vida dos santos, do cristianismo, a partir do IV século D.C., onde

ocupa um lugar de destaque A Vida de Santo Antão (251-356), escrita por Atanásio; a

de São Bento (480-547), relatada por São Gregório Magno e a paradigmática obra do

Santo Agostinho (354-430), Confissões, centrada num relato de conversão, considerada

como a primeira autobiografia, que simboliza o marco de passagem entre a Antiguidade

e a Idade Média.

Considerando a diversidade de expressões da consciência de si da Idade Média,

Delory-Momberger afirma que as funções do rei, do imperador, do papa, do cavaleiro e

do santo eram as mais representativas nas pinturas e esculturas da época, numa

sociedade baseada em personagens com status quo bem definidos pelo modelo feudal.

Neste contexto, há um destaque especial para a hagiografia e a epopeia, centradas,

respectivamente, nas figuras do santo e do herói. Uma real e significativa mudança

11 Pineau G.; Le Grand J-L., Les Histoires de Vie, Collection Que sais-je ?, Paris, PUF, Presses Universitaires de France, 1993, p. 3-4. 12 Delory-Momberger C., op. cit, p. 15-31.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

4

ocorre com a emergência do mundo do trabalho, do dinheiro e do mercado dos

burgueses, os habitantes das vilas comerciais ou burgos, por ocasião da decadência

feudal e do crescimento urbano, que conquistam uma independência com relação aos

poderes senhoriais da igreja da época. “Coletiva e individualmente, o burguês é aquele

que se faz a si mesmo: espaço social e espaço individual se reunindo num mesmo

sentimento de apropriação de si mesmo”, afirma a autora13.

Com a Renascença e a sua explosão de mudanças, as portas se abrem para

uma dinâmica crescente do processo de individualização, com a imperativa valorização

de uma educação integral, ao mesmo tempo intelectual, moral e espiritual, em outras

palavras, holística. Na excelente síntese de Delory-Momberger14, “Todos os grandes

espíritos da Renascença – de Erasmo a Lutero, de Castiglione à Maquiavel, de Rebalais

à Montaigne – se ocuparam da educação, sinal de um tempo onde a educação não era

uma atividade de pedagogos, mas se colocava na própria definição do ser humano. O

ser humano era considerado, na realidade do seu ser, corpo e espírito ao mesmo tempo

e este ser era considerado aperfeiçoável.” Eis um aspecto muito significativo e inspirador

para os tempos atuais, deste período marcante da história europeia, de passagem da

Idade Média para a Moderna, caracterizado pela redescoberta do mundo e do humano.

Seguiu-se, então, um movimento de defesa do íntimo com relação ao homem da

corte, que predominou durante os séculos XVII e XVIII, em torno da dominante

celebração da pessoa real, o Rei Solar, quando as práticas das memórias e do jornal

íntimo abriram espaço para os relatos de si15.

No Iluminismo, Era da Razão, expandiu-se um movimento de intercâmbio

intelectual, que valorizava a capacidade do sujeito de pensar por si mesmo, como

perene aprendiz, na perspectiva de um progressivo aperfeiçoamento evolutivo a partir

da experiência: a formação de si, de acordo com Delory-Momberger16. Nesta época,

surgiu o romance de formação, uma narrativa centrada no percurso de transformação

do indivíduo na sociedade, contendo lições de vida sobre maneiras de ser e de sentir

que, progressivamente, formam uma personalidade. “Les Années d’apprentissage de

Wilhelm Meister”, de autoria de Goethe (1749-1832)17, é considerada a mais famosa e

genial obra do movimento precursor holístico do Romantismo alemão, denominado de

Bildungsroman. Trata-se de um relato, tecido de forma magistral e bem humorada, sobre

o itinerário iniciático de um jovem a procura de sua própria alma, sempre acompanhado

pela presença charmosa e inspiradora de uma mulher. O herói logra a maturidade ao

longo de um processo de desilusões, finalmente realizando-se a si mesmo e se

consagrando ao serviço à comunidade.

A concepção do romance de formação encontra grande ressonância na obra

clássica contemporânea de Joseph Campbell18 (1904-1987), sobre o herói das mil faces,

suportada no conceito do monomito, segundo o qual todos os mitos seguem os mesmos

13 Delory-Momberger C., op. cit., p. 36-45. 14 Delory-Momberger C., op. cit., p. 50-52. 15 Delory-Momberger C., op. cit., p. 64-74. 16 Delory-Momberger C., op. cit., p. 75-81. 17 Goethe, Les Années d’apprentissage de Wilhelm Meister, Éditions de Bernard Lortholary, Paris, Éditions Gallimard, 1999. 18 Campbell J., Le héros aux Mille et um visage, Paris, Oxus, 2010.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

5

esquemas arquetípicos: após um chamado à aventura, o herói mítico abandona o seu

ambiente familiar, confrontando-se com o guardião do portal, atravessando uma série

de provações num singular caminho inventado pelos próprios passos, até a conquista

emancipadora do objeto da sua busca. Então, apaziguado e coroado de êxito, ele

retorna ao seu local de origem, completamente transformado pelo seu percurso

iniciático.

Falando sobre o nascimento da autobiografia moderna, Delory-Momberger19

ressalta a importância da religião do íntimo, ou seja, um movimento de espiritualidade

de retorno a uma fé mais simples e mais interior, a partir de um aprofundamento da

ligação direta com Deus, a exemplo do molinismo espanhol e do quietismo francês – do

lado do catolicismo – e do pietismo alemão e do metodismo anglo-saxão – do lado do

protestantismo. Interessante constatar que uma escrita gerada pela necessidade de

uma comunicação transpessoal, sem intermediário, com a Fonte do Ser, encontra-se na

origem da narrativa biográfica.

Na tradição francesa, As Confissões, de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778),

uma defensiva e apologética resposta do seu autor a Voltaire (1694-1778), seu ardente

crítico, que o acusou de ter abandonado os seus filhos, conforma um marco no gênero

da escritura de si e de desvelamento do íntimo. Com um modelo de narrativa ao mesmo

tempo psicológico e ideológico, Rousseau “forneceu à infância o seu estatuto de

fundação do ser singular”, afirma Delory-Momberger20.

A dinâmica da construção do sujeito prossegue o seu curso, após a Revolução

Francesa e a Revolução Industrial, a partir de uma burguesia liberal que se impõe, com

os seus valores que mesclam o espaço do mundo com o familiar, no contexto de uma

ordem social patriarcal. Assim, um movimento intimista se afirma, com a

correspondência e o jornal praticado, dominantemente, pelas mulheres, neste processo

que Delory-Momberger21 denomina de invenção do sujeito.

II – Wilhelm Dilthey: hermenêutica e compreensão “Cada vida tem um sentido que lhe é próprio. Este

reside num conjunto de relações significativas, no

seio do qual cada momento presente, suscetível de

ser relembrado, possui um valor particular, mas

tem, ao mesmo tempo, quanto ao seu conteúdo,

uma relação no sentido da totalidade”.

Wilhelm Dilthey22

O movimento alemão da Bildung, com a contribuição paradigmática de Wilhelm Dilthey

(1833-1911), foi introduzido na abordagem biográfica francofônica por Delory-

19 Delory-Momberger C., op. cit., p. 82-85. 20 Delory-Momberger C., op. cit., p. 96-97. 21 Delory-Momberger C., op. cit., p. 133. 22 Dilthey W., In: Delory-Momberger C.; Hess R., Le sens de l’histoire – Moments d’une biographie, Anthropos, Ed. Economica, 2001, p. 29.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

6

Momberger. Como afirma Pierre Dominice, um dos pioneiros desta visão na Suíça, no

seu livro, L’Histoire de Vie comme Processus de Formation23, o enfoque significativo

desta autora, em razão do seu duplo pertencimento franco-germânico introduziu, no

mundo francofônico, a perspectiva hermenêutica da Bildung, propondo uma leitura

histórica e crítica de diferentes correntes biográficas que marcaram o pensamento

ocidental.

De acordo com Delory-Momberger, o conceito de Bildung foi desenvolvido no fim

do século XVIII, pelos filósofos do Iluminismo alemão, sobretudo Herder, Schelling,

Humbold e Goethe. Este conceito se inscreve no pensamento da totalidade, como um

movimento de formação de si, através da qual a singularidade de cada ser humano pode

se expressar, com suas características próprias e na perspectiva de um valor universal,

rumo à plena realização. Encontrando-se no coração do cosmos, ao mesmo tempo o

ser humano participa do desenvolvimento do mundo que se realiza, também, no seu

interior. “A Bildung concebe o desenvolvimento humano segundo um modelo

diretamente tomado emprestado das ciências da natureza, assimilando o humano a um

organismo vivo, mantido e alimentado por trocas com o seu meio, como um germe que

cresce e floresce segundo suas próprias forças e disposições, respondendo às

imposições e solicitações do seu meio ambiente”, sustenta Delory-Momberger24.

Na sua abordagem centrada na pessoa, Carl Rogers (1902-1987)25 desenvolveu

uma metáfora também extraída da botânica, referindo-se a uma semente de auto

realização e de auto regulação que existe no interior de cada ser humano, que necessita

apenas de um terreno fértil para desenvolver-se. Por outro lado, C. G. Jung26 afirma a

concepção da vida semelhante a uma planta, cuja vitalidade é impulsionada a partir do

próprio rizoma: propriamente dita, a vida do vegetal não é visível, pois jaz no cerne do

rizoma. O que se torna visível, acima do solo, sobrevive um só verão, para desvanecer-

se, em seguida. O que vemos é apenas a floração, que é efêmera, sendo que o rizoma

persiste, perenemente.

Inspirando-se nos trabalhos do filósofo, hermeneuta das escrituras sagradas e

inspirador do romantismo, Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834), Dilthey

participou deste movimento artístico e cultural alemão de libertação do eu e de reação

ao monopólio da razão do Iluminismo. Tendo o seu nome derivado do romance de

formação, este processo de renovação introduziu, no cenário da consciência, o

sentimento, a experiência profunda da alma, o segredo e uma motivação rumo à união

dos contrários. De forma surpreendente e visionária a sua natureza é essencialmente

holística e, mesmo, prototransdisciplinar.

Como descreve Delory-Momberger27, o romantismo foi um processo de geração

de uma consciência do mundo, que resgatou as grandes questões que apontam para o

23 Dominice P., L’Histoire de Vie comme Processus de Formation, Nouvelle édition, revue et augmentée, Defi Formation, Paris, L’Harmattan, p. 8. 24 Delory-Momberger C., Histoire de vie et Recherche biographique en éducation, Preface de Wulf C., Anthropos, Ed. Economica, 2005, p. 29-30. 25 Rogers C., Um jeito de ser, São Paulo, Ed. E.P.V., 1983. 26 Jung C.G., Ma vie – Souvenirs, rêves et pensées, Recueillis et publiés par Aniéla Jaffé, Nouvelle édition revue et augmentée d’un index, Paris, Gallimard, 1973, p. 22. 27 Delory-Momberger C., op. cit., p. 143-147.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

7

lugar do ser humano no universo e a questão do sentido da existência, abrindo espaço

para um processo mental de integração da reflexão com a ação, da filosofia com a

religião, da poesia com a ciência, insurgindo-se contra as representações mecanicistas

da natureza, típicas da ciência clássica, modeladas pelo Iluminismo. A autora cita

Georges Gusdorf, que demonstrou o globus intellectualis romântico, com a sua busca

ousada de um saber total, ao mesmo tempo desvelando uma teoria de conhecimento,

uma antropologia, uma cosmologia e uma visão aberta para uma consciência universal

do ser humano e do universo. A sua fonte filosófica, além das pesquisas de

Schleiermacher, também se encontram nos autores da Naturphilosophie, uma filosofia

da natureza, preconizada pelo gênio de Friedrich Wilhelm Joseph Von Schelling (1775-

1854), do idealismo alemão, nobre antecedente do movimento da ecologia profunda e

da ecopsicologia. Enfim, esta visão do humano e do mundo, destacando o valor da

experiência individual e conciliando a parte com a totalidade, representou um marco

para os modelos de compreensão das ciências históricas da Alemanha, tendo o seu

ponto culminante na obra de Dilthey.

Com a sua célebre afirmação, “A natureza, nós explicamos; a vida psíquica, nós

compreendemos”, Dilthey fundou as ciências do espírito – posteriormente denominadas

de ciências humanas – em contraposição às ciências da natureza -, considerando o ser

humano como uma unidade, muito além de um simples conglomerado de átomos. “As

ciências do espírito repousam sobre a relação da experiência vivida, da expressão e da

compreensão. (...) Vida, experiência de vida e ciências do espírito encontram-se, assim,

constantemente em relação de coesão interna e de dependência recíproca”, afirma

Dilthey, no seu livro inacabado, L’édification du monde historique dans les sciences de

la nature. Segundo a sua tradutora e apresentadora, Sylvie Mesure28, esta obra é

centrada em três aspectos: a autonomia das ciências do espírito com relação às ciências

da natureza, que representa o seu tema principal; a questão da orientação holística de

uma pesquisa que, por apreender a realidade espiritual, assume uma visão do mundo

histórico como uma totalidade composta de conjuntos interativos, tendo por fundamental

tarefa a compreensão do todo a partir dele mesmo e, finalmente, a determinação do

valor cognitivo das aquisições da ciência do espírito e em que medida ela pode

engendrar um saber científico objetivo.

O filósofo e sociólogo alemão, Jürgen Habermas29, destaca que a obra de Dilthey

desvelou que, ao lado das ciências naturais, um feixe de conhecimentos – a história, a

economia, a política, o direito, o estudo da religião, da literatura, da poesia, da

arquitetura, da música, das visões do mundo, dos sistemas filosóficos e da psicologia –

são interligados entre si por um objeto comum: a espécie humana. Desta forma,

alertando contra o risco da naturalização do espírito, Dilthey apontava para a totalidade

irredutível da vida da alma, fonte de todos os fatos humanos, a partir de um saber

imediato, livre do jugo e arbítrio do método científico natural e do positivismo,

prescrevendo dois caminhos complementares: o da descrição da vida e o da

compreensão da vida por si mesma.

28 Dilthey, W., L’édification du monde historique dans les sciences de l’esprit, Traduit et présenté par Sylvie Mesure, Paris, Les Éditions du CERF, 1988, p. 6. 29 Habermas, J., Conhecimento e interesse, Rio de Janeiro, Zahar, 1982.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

8

Dilthey rejeitava a visão teleológica da história, como também a perspectiva

idealista e metafísica de Hegel (1770-1831) e o evolucionismo de Spencer (1820-1903),

postulando uma Crítica da Razão histórica, onde o humano é um ser historial e um

horizonte aberto de possibilidades; há uma identidade entre o explorador e quem faz a

história. A abordagem diltheyana insiste sobre a historicidade da razão e da consciência

humana: o ser humano apenas pode se compreender no processo histórico. Dilthey,

numa passagem brilhante, de acordo com Mesure30, sugere que é na consciência de si

mesmo, como vontade, que se enraíza no ser humano a necessidade de produzir um

limite entre o reino da natureza e o da história, o que solicita o desafio da elaboração de

uma epistemologia específica das ciências históricas. Percebendo, em si mesmo, a

soberania da própria vontade, o sujeito assume a responsabilidade dos seus atos, sendo

capaz de resistir às propensões e pressões da natureza no seu próprio interior. Emerge,

então, o princípio da sua liberdade, diferenciando-o de uma realidade natural submissa

aos determinismos: a sua singularidade de se cogitar como espírito e como vida. Na

visão diltheyana o campo da história é aquele no qual se opera uma fenomenologia da

liberdade. A partir do estabelecimento da fronteira entre ciências históricas e ciências

físicas, a história torna-se o lugar privilegiado de passagem entre natureza e liberdade.

Na filosofia de Dilthey a vivência é a unidade viva do mundo histórico-social: no

seu nexo encontra-se o significado, já que há de existir sentido onde houver vida. Nesta

visão, a consciência dita o valor da experiência, que é o elemento criador da atividade

psíquica superior: é do interior que o sujeito vivencia a realidade, sendo a compreensão

um ato onde experiência e teoria se entrelaça. Enquanto eventos naturais podem ser

explicados através de hipóteses nomológicas, segundo o método analítico, os

complexos simbólicos são compreendidos a partir da interioridade relacional e da

intersubjetividade, de acordo com o método hermenêutico. Enquanto a natureza se

explica a alma se implica, se assim podemos resumir um postulado básico diltheyano.

A abordagem compreensiva de Dilthey suporta-se, por um lado, numa

epistemologia do reconhecimento do humano pelo humano, segundo a experiência

vivida e, por outro, num postulado da compreensão da vida a partir dela mesma. Esta

compreensão ocorre por meio de um princípio de inteligibilidade narrativa, para a

apreensão de um sistema holístico de relações entre as partes e o todo, a partir de um

complexo de conjuntos interativos, onde os significados nascem sempre da relação

entre o fator parcial e o total. Segundo Delory-Momberger31, estes conjuntos interativos

são dinâmicos, num processo de permanente recomposição, como verdadeiros

operadores de sentidos, num exercício hermenêutico sempre inacabado.

Considerando a importância da biografia como um texto particular representativo

do texto universal e, sobretudo, como manifestação do ato de compreender a vida e o

paradigma mesmo da inteligibilidade humana, Dilthey desenvolveu um tipo de pesquisa,

iniciada por Schleiermacher, que ele denomina de círculo hermenêutico. Trata-se de um

modelo de interpretação que exprime a estrutura circular, a partir da concepção da vida

como um ritmo todo-parte, na busca da compreensão histórica: um processo de ir-e-vir

da parte ao todo e do todo à parte. René Barbier32 afirma que a explicação destrói a

30 Dilthey, W., op. cit., p. 7-12. 31 Delory-Momberger C., op. cit., p. 156. 32 Barbier R., L’Approche Transversale, L’écoute sensible en sciences humaines, coll. Exploration

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

9

significação e que, para Dilthey, nada há abaixo nem além do que nos é imediatamente

dado, no presente. O significado encontra-se no conjunto de todos os elementos do

contexto, interligados entre si.

Como afirmo em obra anterior33, Dilthey enfatiza a conexão entre vida, expressão

e compreensão: a vivência é estruturada dentro de uma totalidade significativa por

conjuntos simbólicos, ligada às intenções e mediatizada por um ato de apreensão de

sentido. A análise é progressiva e fragmenta um todo que pode ser imediatamente

apreendido pelo saber compreensivo, como demonstra o poeta, que esse filósofo

considerava a antena vital da humanidade. Por outro lado, o filósofo afirma que todo

fragmento de recordação relaciona-se com a psique total, sendo o sentido da existência

singular e irredutível ao conhecimento algo como a mônada postulada por Leibniz. Na

sua concepção, o fundamento das ciências do espírito é o ato-de-se-partir-da-vida: o

presente está pleno do passado e prenhe do futuro, sendo o desenvolvimento de uma

biografia individual caracterizado pela vivência de continuidade e de autonomia

espontânea de um processo vivo.

Enfim, o significado das partes encontra-se na totalidade e esta é compreendida

através de suas parcelas. Vida = Todo + Vida = Partes, segundo uma pertinente fórmula

de Pacheco Amaral34, que destaca esta afirmação do próprio Dilthey: “A ideia

fundamental da minha filosofia é que, até agora, não se colocou uma única vez a

experiência plena e não mutilada como fundamento do filosofar, portanto, nem uma só

vez a realidade plena e total”.

A tradição hermenêutica de Dilthey inspirou inúmeras abordagens, notadamente

a sociologia compreensiva de Max Weber (1864-1920), a microsociologia de Georg

Simmel (1858-1918), a sociologia do conhecimento de Karl Mannheim (1893-1947), as

perspectivas da Escola de Chicago e a sua posteridade americana, através do

interacionismo simbólico e da etnometodologia, entre outras.

III – Relato de vida e biografização de percurso “Tudo que eu não invento é falso”.

Manoel de Barros35

Jamais temos acesso direto à experiência vivida - assim como nunca temos contato com

o sonho sonhado -, que não seja através de um relato, ou seja, graças à mediação da

palavra de si, segundo a lógica de uma razão narrativa, de onde emerge e se organiza

a própria existência humana. É através do ato de se relatar que o ser se torna

propriamente humano, o sujeito de uma história, no processo de reflexão sobre a sua

própria vida.

Interculturelle et Science Sociale, Paris, Anthropos, Ed. Economica, 1997, p. 155-156. 33 Crema, R., Saúde e plenitude: um caminho para o ser, São Paulo, Summus, 1995, p. 21-22. 34 Pacheco Amaral, M. N. C., Dilthey: um conceito de vida e uma pedagogia, São Paulo, Perspectiva e USP, 1987. 35 Barros, M., Memórias Inventadas: a segunda infância, São Paulo, Ed. Planeta, 2003.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

10

A narrativa introduz, na temporalidade própria e constitutiva da experiência

humana, segundo Delory-Momberger36, uma estrutura de organização particular, uma

sintaxe, sustentada no fator causal e final. Desta forma, o exercício do relato realiza uma

operação de trans-formação, que consiste numa passagem do estado informe do vivido

para a forma de uma história. Nesta concepção, a história e o sentido de uma existência

decorrem do processo da narrativa de si. “Nós não fazemos o relato de nossa vida

porque nós temos uma história; nós temos uma história porque nós fazemos o relato de

nossa vida”, sustenta a autora.

O filósofo da tradição reflexiva, do diálogo e da hermenêutica, Paul Ricoeur

(1913-2005), na sua obra, Temps et récit37, indica que o ato de se inscrever, por meio

do relato, é inerente à condição humana e que é por meio da narrativa que o tempo se

torna tempo humano. Para Ricoeur, é a interpretação que permite a compreensão dos

signos, dos símbolos e dos textos, como uma hermenêutica a serviço da compreensão

de si mesmo: para se compreender, o ser humano deve se interpretar de maneira

narrativa. Para responder à questão “Quem sou eu, este eu que diz eu?”, Ricoeur

desenvolveu o conceito de identidade narrativa, considerando a relação dialética e

complementar entre a identidade no sentido do termo em latim idem, ou mesmidade, e

a identidade como si próprio no sentido de ipseidade (do latim ipse: eu mesmo ou si

mesmo, o caráter singular de um ente, que o distingue de todos os outros), como um

processo dinâmico e mutante. Nesta concepção, todo individuo se constitui por meio de

uma narrativa de si, jamais definitiva, sem cessar renovada e sempre inacabada.

Os dois conceitos, considerados como germes de um grande desenvolvimento,

que Ricoeur tomou de empréstimo a Aristóteles (384 A.C.-322 A.C.) são os de “mise en

intrigue” e o da atividade mimética. Na sua derradeira obra, Parcours de la

reconnaissance38, discorrendo sobre o poder de narrar e de se narrar, Ricoeur afirma:

“Eu coloco em terceira posição, na fenomenologia do ser humano capaz, a problemática

da identidade pessoal ligada ao ato de narrar. Sob a forma reflexiva de ‘se narrar’, a

identidade pessoal se projeta como identidade narrativa. (...) Foi por ocasião da epopeia

e da tragédia, que Aristóteles elaborou a sua noção de ‘mise en intrigue’ – muthos –

visando a ‘representação’ – mimèsis – da ação”.

Com relação à intriga, Ricoeur diz que nós inventamos o meio privilegiado pelo

qual podemos reconfigurar nossa experiência temporal confusa, informe e muda. Para

este filósofo, mise en intrigue é hermenêutica em ação: a operação capaz de transformar

uma sucessão caótica de eventos em configuração dotada de organização e de

coerência. Nas suas palavras, trata-se de um exercício de síntese temporal do

heterogêneo, de modo a “fazer surgir o inteligível do acidental, o universal do singular,

o necessário ou plausível do episódico” 39. É no tecer dinâmico e integrador da intriga

36 Delory-Momberger, C., Um autre regard : l’approche biographique en formation, In : Barbier J.-M. ; Borugeois E. ; Chapelle G. ; Ruano-Borbalan J., Encyclopédie de la formation, Paris, PUF, Démos, 2009, p. 107-108. 37 Ricoeur P., Temps et récit 1. L’intrigue et le récit de la formation, Paris, Éditions de Seuil, 1983. 38 Ricoeur P., Parcours de la reconnaissance, Collection Folio Essais, Paris, Gallimard, 2004, p. 163-164. 39 Ricoeur P., op. cit., p. 85.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

11

que toma forma o discurso, como um texto inteligível e dotado de nexo e de sentidos,

no qual se manifesta a singularidade de uma história.

No seu livro que trata da condição biográfica, Delory-Momberger40 afirma que é

pela narrativa de si que o ser humano se torna a personagem de sua própria vida,

fornecendo-lhe uma história. Para a autora, o relato não é tão somente um sistema

simbólico, no qual a pessoa pode exprimir os seus sentimentos existenciais; além disso,

a autonarrativa é o espaço mesmo onde a existência toma forma, elaborando-se e

sendo vivenciada na forma de uma história singular. “Não há vida humana sem

narrativa; o ser humano vive a sua vida relatando-a. Para si mesmo e para o outro. (...)

Desde há muito o romance, o cinema, a psicanálise, as ciências humanas em geral e,

mais próximo de nós a biologia e a biogenética desconstruíram a imagem de um sujeito

unificado e de uma identidade biográfica que o curso da vida permitiria edificar sob

medida”, indica a autora. A biografia é um processo de construção por meio da

experiência e pela atividade de integrar, num continuum existencial, o fluxo permanente

de eventos e de situações vividas. “A esta figura de um sujeito, que apenas pode ter

lugar em si mesmo e que somente pode religar o mundo na reflexividade e na

historicidade de sua experiência é que denominamos de condição biográfica”, afirma a

autora.

Um destaque importante é o de não confundir a narrativa com a própria vida, ou

seja, de não colocar a questão da veracidade do relato de vida – o que é proposto por

Philippe Lejeune41, no seu livro clássico, que trata do pacto autobiográfico: “Por

oposição a todas as formas de ficção, a biografia e a autobiografia são textos

referenciais: exatamente como o discurso científico ou histórico, elas pretendem mostrar

uma informação sobre uma “realidade” exterior ao texto submetendo-se, assim, a um

teste de verificação. Seus objetivos não são simples aparências de verdade, mas a

similitude ao verdadeiro”. Opondo-se a esta consideração, Delory-Momberger42 postula

que a abordagem biográfica exclui toda pretensão de veracidade com relação à vida

reportada, não se referindo a vivências passadas reais que são reconhecidas como

certas e verídicas. Mesmo que, numa certa medida, alguns dados factuais de uma vida

possam ser objetivados, as relações entre os fatos narrados e as suas configurações

no relato existencial apenas dizem respeito à mensagem portadora de sentidos de um

sujeito. Há uma relação de adequação entre o vivido e a palavra atual a seu respeito,

caracterizada pela instabilidade e pela dinâmica de uma reconstrução incessante.

Enfim, o ato de rememorar implica, sempre, um processo de recriação, de reconstrução.

Para a autora43, a história de vida é, paradoxalmente, uma ficção verdadeira, ou seja,

uma invenção da verdade do sujeito, que se institui na linguagem, construindo-se na

própria narrativa.

40 Delory-Momberger C., La condition biographique – Essais sur le récit de soi dans la modernité avancée, Paris, Téraèdre, 2009, p. 28-35. 41 Lejeune P., Le pacte autobiographique, Nouvelle édition augmentée, Paris, Éditions du Seuil, 1996, p. 36. 42 Delory-Momberger C., Um autre regard : l’approche biographique en formation, In : Barbier J M. ; Bourgeois E. ; Chapelle G. ; Ruano-Borbalan J., Encyclopédie de la formation, Paris, PUF, Démos, 2009, p. 105. 43 Delory-Momberger C.; Hess R., Le sens de l’histoire – Moments d’une biographie, Anthropos, Ed. Economica, 2001, p. 8.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

12

No prólogo de sua autobiografia, Ma vie – Souvenirs, rêves et pensées, Jung44

- que considerava que toda teoria psicológica é uma confissão do seu autor – afirma

que o que uma pessoa é segundo a sua intuição interior, e o que o ser humano aparenta

ser sub specie aeternitatis, apenas é possível de se expressar por meio de um mito, que

é mais individual, capaz de exprimir a vida de forma mais precisa do que a ciência, que

trabalha com noções excessivamente medianas e gerais, para poder fornecer uma ideia

mais justa da riqueza diversa e subjetiva de uma existência particular. “Inicio hoje, nos

meus noventa e três anos, a contar o mito da minha vida. Mas apenas posso fazer

constatações imediatas, ‘contar histórias’. Serão elas verdadeiras? Este não é o

problema. Eis a questão: esta é a minha aventura, esta é a minha verdade?”

O fato biográfico, na sua dimensão psicológica, antropológica e social, é o objeto

da pesquisa biográfica. Biografar-se, segundo Delory-Momberger45, é dar à vida, no

sentido etimológico, a forma de uma escritura. Assim, a atividade biográfica adquire a

abrangência e importância de uma via mental e reflexiva privilegiada, por meio da qual

o ser humano pode se representar e se compreender. Na sua definição, o processo de

biografização abrange “um conjunto de operações mentais, verbais e comportamentais,

por meio do qual um indivíduo se inscreve e contribui, por sua vez, a produzir os mundos

sociais nos quais participa. A categoria do biográfico é um princípio de organização que

orienta e estrutura, sob a forma de uma linguagem partilhada e transmissível, a

experiência social cotidiana dos indivíduos, possibilitando a integração e a

interpretação, nas condições de suas inscrições sócio-históricas, das situações e dos

eventos de suas existências”.

Enfim, é através do processo da biografização, como uma hermenêutica prática,

que o sujeito se constrói e fornece um sentido ao seu percurso existencial.

IV – O desafio transdisciplinar “Na perspectiva transdisciplinar, há uma relação

direta e incontornável entre a paz e a

transdisciplinaridade. O pensamento fragmentado

é incompatível com a pesquisa da paz na Terra. A

emergência de uma cultura e de uma educação

para a paz conclama uma evolução transdisciplinar

da educação e, particularmente, da Universidade”.

Basarab Nicolescu46

O conceito de transdisciplinaridade foi introduzido, no meio acadêmico, por Jean Piaget

(1896-1980), por ocasião do I Seminário Internacional sobre Pluri e Interdisciplinaridade,

promovido pela Universidade de Nice, em 1970, referindo-se a possibilidade de um

44 Jung C. G., op. cit., p. 20. 45 Delory-Momberger C., Um autre regard : l’approche biographique en formation, In : Barbier J M ; Bourgeois E. ; Chapelle G. ; Ruano-Borbalan J., Encyclopedie de la formation, Paris, PUF, Démos, 2009, p. 107-109. 46 Nicolescu B., La Transdisciplinarité – Manifeste, Transdisciplinarité, coll. Dirigée par Basarab Nicolescu, Paris, Éditions du Rocher, 1996, p. 203.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

13

saber comum e mais completo, desvinculado de uma disciplina particular. Nesta mesma

década, este conceito foi trabalhado nas obras de Edgar Morin e de Eric Jantsche (1929-

1980), entre outros pesquisadores, como uma resposta à proliferação disciplinar e à

abordagem da hiperespecialização, que estilhaçam os conhecimentos, levando a um

aumento exponencial do saber, com a perda de uma visão de integração e de um olhar

global sobre a realidade da condição humana.

Basarab Nicolescu que, nas últimas décadas, destacou-se como o grande

mentor da transdisciplinaridade, afirma que, atualmente, há um crescimento

exponencial dos saberes, sem precedente na história conhecida. O acréscimo dos

conhecimentos sobre o Universo e sobre a natureza, reunidos apenas durante o século

XX, ultrapassa enormemente todo o acúmulo do conhecido em todos os séculos

anteriores, a partir de uma escala jamais antes imaginada, que abrange do ínfimo ao

imenso, do infinitamente breve ao infinitamente longo. A grande contradição

evidenciada por Nicolescu é que, na medida em que conhecemos mais a respeito do

que somos feitos, menos compreendemos quem somos. A proliferação, num ritmo

frenético e crescente das disciplinas tem sido acompanhada por um processo de

fragmentação e de esfacelamento que torna cada vez mais ilusória a apreensão de uma

gestalt cognitiva e o ideal de uma unidade do conhecimento. Na medida em que

aumenta nossos conhecimentos sobre o mundo exterior, diminui e nos escapa o

universo da interioridade e o sentido mesmo de nossas existências. “Será que a atrofia

do ser interior é o preço a pagar pelo conhecimento científico? A felicidade individual e

social, que o cientificismo nos prometia, se distancia indefinidamente, como uma

miragem”, sustenta Nicolescu.

De fato, encontramo-nos diante de um perturbador aspecto paradoxal da crise

contemporânea: a existência de uma hipertrofia de informações e de conhecimentos de

acesso amplo, imediato e sem restrições, acompanhada de uma atrofia do processo de

discernimento e de compreensão. Martin Heidegger (1889-1976) lucidamente afirmava

que nenhuma época acumulou conhecimentos tão numerosos e diversos quanto a

nossa, apresentando o saber humano sob uma forma tão pronta e facilmente acessível.

Mas também nenhuma época soube menos a respeito do que é o ser humano! Na visão

heideggeriana, perdemos a capacidade de saber questionar, que implica na arte de

saber aguardar, em função da voracidade pelo que é veloz, facilmente apreensível e

pagável. “Mas não é o número que é essencial; é o tempo oportuno, ou seja, o instante

oportuno e a perseverança oportuna”, conclui Heidegger47.

Há uma surpreendente convergência entre a transdisciplinaridade e a

abordagem da Naturphilosophie, que mencionamos com relação ao movimento do

romantismo. Segundo Nicolescu, certos cientistas, artistas e filósofos perceberam,

plenamente, o perigo mortal do pensamento racionalista e mecanicista, o que

determinou a emergência da corrente antagonista da Naturphilosophie alemã,

sobretudo centrada em torno da revista Athenaeum, com autores como Schelling,

Schlegel, Novalis, Ritter, Goethe, sob uma influência marcante da obra de Jakob

Boehme. “Vista de nossa época. a Naturphilosophie pode aparecer como uma

deformação grotesca e uma manipulação grosseira da ciência, como uma via sem

47 Heidegger M., Introduction à la métaphysique, traduit de l’allemand et présenté par Gilbert Kahn, Paris, Gallimard, 1967, p. 209.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

14

saída, na tentativa ridícula de um retorno ao pensamento mágico e a uma Natureza viva.

Mas como ocultar o fato de que esta Filosofia da Natureza engendrou, pelo menos, duas

descobertas científicas maiores: a teoria celular e, sobretudo, o eletromagnetismo

(Oersted, 1820)? Creio que o verdadeiro erro da Naturphilosophie foi o de ter aparecida

dois séculos demasiado cedo: lhe faltou a tríplice mutação quântica, tecnológica e

informática”, sustenta, ironicamente, Nicolescu48.

No contexto do “big bang disciplinar”, a exigência de estabelecer elos entre as

diferentes disciplinas acabou produzindo a emergência da pluri e da

interdisciplinaridade. Torna-se necessário precisar estes conceitos, com relação ao da

transdisciplinaridade. De acordo com Nicolescu, a pluridisciplinaridade é o estudo de um

objeto de uma só e mesma disciplina, ao mesmo tempo, por diversas outras disciplinas.

A interdisciplinaridade diz respeito à transferência de métodos de uma disciplina à outra,

segundo três distintos graus: de aplicação, epistemológico e de criação de novas

disciplinas. A pluri e a interdisciplinaridade transcendem as disciplinas, mas suas

finalidades se inscrevem no domínio da pesquisa disciplinar. A transdisciplinaridade diz

respeito, ao mesmo tempo, ao que se encontra entre, através e além de todas as

disciplinas. Para Nicolescu, não se trata de uma nova disciplina, nem de uma

hiperdisciplina, mas de um campo que se nutre da própria pesquisa disciplinar. “Neste

sentido, as pesquisas disciplinares e transdisciplinares não são antagônicas, mas

complementares. (...) A disciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade e

a transdisciplinaridade são as quatro flechas de um só arco: o do conhecimento”

assegura Nicolescu49.

Na abordagem de Nicolescu há três pilares da transdisciplinaridade, que

determinam a metodologia da pesquisa transdisciplinar: os níveis de Realidade, a lógica

do terceiro incluído e a complexidade. O primeiro diz respeito ao reconhecimento da

existência de diferentes níveis de Realidade, regidos por diferentes lógicas, que recusa

toda tentativa de reduzir a Realidade a um só nível, regida por uma só lógica, dado a

sua natureza multidimensional e, também, multirreferencial. A abordagem

transdisciplinar abre-se para a dinâmica criada pela ação simultânea de múltiplos níveis

de realidade e, ao mesmo tempo, implica no conhecimento disciplinar. Em que pese a

distinção radical existente entre elas, a pesquisa transdisciplinar e a disciplinar não se

encontram numa relação de antagonismo e, sim, na de complementaridade, segundo

este autor.

De forma significativa e heurística, Pierre Weil50 desenvolveu uma fórmula muito

sábia e original, para sustentar que a vivência do real pelo sujeito é uma função do

estado de consciência no qual ele se encontra: VR = f(EC). Ou seja, a Vivência da

Realidade (VR) é função (f) do Estado de Consciência (EC). Nas suas palavras, “essa

fórmula nos parece uma das chaves fundamentais para a compreensão da

epistemologia e das relações entre o conhecedor, o conhecimento e o conhecido, isto

é, entre o sujeito, o conhecimento e objeto do conhecimento.”

48 Nicolescu B., op. cit., p. 88-89. 49 Nicolescu B., op. cit., p. 68-69. 50 Weil P., Axiomática transdisciplinar para um novo paradigma holístico, In: Weil P., D’Ambrosio U., Crema, R., Rumo à nova transdisciplinaridade – sistemas abertos de conhecimento, São Paulo, Summus, 1993, p. 50-51.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

15

O segundo pilar indica que dois diferentes níveis de realidade são religados por

uma nova lógica do terceiro incluído, distinta da lógica aristotélica clássica,

fundamentada sobre três axiomas: o da identidade (A é A), o da não contradição (A não

é não-A) e o do terceiro excluído (não existe um terceiro termo, ou seja, o de que A é,

ao mesmo tempo, A e não-A). Como esclarece Nicolescu, se aceitamos esta lógica,

que ainda é dominante após mais de dois milênios, devemos concluir que os pares

contraditórios colocados em evidência pela física quântica são mutuamente exclusivos,

já que não podemos sustentar, simultaneamente, a validade de uma coisa e a do seu

contrário, ou seja, a coexistência de A e de não-A ao mesmo tempo. Segundo este autor,

representou um mérito histórico de Stéphane Lupasco (1900-1988) o de ter

demonstrado que a lógica do terceiro incluído é uma verdadeira lógica, no seu aspecto

formal e formalizável, multivalente - com relação aos aspectos A, não-A e T – e não

contraditória.

Já o grande mérito do próprio Nicolescu foi o de ter evidenciado que a

compreensão do axioma do terceiro incluído, que sustenta a existência de um terceiro

termo T que é, ao mesmo tempo, A e não-A, se esclarece plenamente com a introdução

do primeiro pilar acima referido, o conceito de níveis de Realidade. Nas suas palavras51:

“Para obter uma imagem clara do sentido do terceiro incluído, representamos os três

termos da nova lógica – A, não-A e T – e os seus dinamismos associados, por um

triângulo no qual o cimo se situa a um nível de Realidade e a sua base em outro nível

de Realidade. Se permanecermos num só nível de Realidade, toda manifestação

aparece como uma luta entre dois elementos contraditórios. O terceiro dinamismo, o de

estado T, se exerce em outro nível de Realidade, onde o que aparentemente é desunido

é, de fato, unido e o que parece contraditório é percebido como não contraditório”. Em

outras palavras, a lógica do terceiro incluído implica o postulado de uma sucessão plural

de níveis de Realidade, onde a integração dos contrários acontece num metanível

superior. Para Nicolescu, a postulação do terceiro incluído implica na perspectiva da

complexidade que é, talvez, a sua lógica privilegiada, na medida em que permite uma

travessia, de maneira coerente, nos diversos domínios do conhecimento. “A lógica do

terceiro incluído não abole a lógica do terceiro excluído: ela apenas restringe o seu

domínio de validade” 52.

No seu livro, “Qu’est-ce que la réalité ? – Réflexions autour de l’oeuvre de

Stéphane Lupasco »53, Nicolescu sustenta que o conceito de energia encontra-se no

centro da meditação filosófica de Lupasco. Assim como, na física clássica, a noção do

objeto situa-se no plano central, sendo a energia um mero epifenômeno, derivado e

secundário, a física relativista e quântica inverteu esta hierarquia: a concepção do objeto

é substituída pela do evento, da relação, da interconexão. “O verdadeiro movimento é o

da energia. O dinamismo energético rege o conjunto dos fenômenos físicos”, afirma

Nicolescu. Para este autor, o conceito do terceiro incluído é a chave central da filosofia

lupasciana, permitindo a cristalização do seu pensamento inovador e aberto, com um

51 Nicolescu B., Vers une éducation transdisciplinaire, In : Welter R (dir), Transdisciplinarité – Un chemin vers la paix, Paris, Éditions F.B.V. pour le C.N.R.S., 2003, p. 83-85. 52 Nicolescu B., La Transdisciplinarité – Manifeste, Transdisciplinarité, coll. Dirigée par Basarab Nicolescu, Paris, Éditions du Rocher, 1996, p. 48. 53 Nicolescu B., Qu’est-ce que la réalité ? Réflexions autour de l’oeuvre de Stéphane Lupasco, Montréal, Liber, 2009, p. 22-39.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

16

grande rigor e precisão. “Este rigor e esta precisão explicam a influência, aberta e

subterrânea, da obra de Lupasco na cultura francesa. Entretanto, é igualmente o terceiro

incluído que fez deslanchar toda uma infindável série de mal-entendidos e uma

hostilidade, variando do silêncio embaraçado à exclusão deliberada de Lupasco do

mundo universitário e dos dicionários.”

No seu livro sobre a abordagem transversal e a escuta sensível, René Barbier54

destaca a obra de Lupasco. Uma dialética contemporânea, segundo Barbier, refletida

por eminentes autores como Edgar Morin ou Gilbert Durant, é postulada por Stéphane

Lupasco, de acordo com outro tipo de dinamismo contraditório, a partir de uma lógica

da bipolaridade antagonista, incluindo um terceiro tempo, um estado T de atualização e

de potencialização entre os polos antagônicos. Um tipo de dialética construída sobre

uma abordagem paradoxal que, segundo o autor, é fundamental na visão clínica

transversal. Entretanto, Barbier afirma que a dialética colocada em prática na

Abordagem Transversal e na pesquisa-ação existencial não é a de um fundamento

rigoroso e trágico entre os elementos bipolarizados. “Não há separação, mas, antes,

uma articulação e complementaridade dialéticas sucessivas com um fenômeno de

atualização e de potencialização, de homogeneização e de heterogeneização, segundo

uma concepção próxima da lógica da bipolaridade antagonista de Stéphane Lupasco”.

A consideração de múltiplos níveis de Realidade como conjuntos de sistemas

invariantes à ação de um número de leis gerais – a física quântica, o ciberespaço e a

teoria de supercordas, segundo a abordagem de Nicolescu55 – já indicam o terceiro eixo

da transdisciplinaridade, o da complexidade ou a emergência de uma pluralidade

complexa. Para Nicolescu, a complexidade se nutre da ampliação acelerada da

pesquisa disciplinar e, por sua vez, a complexidade determina a aceleração vertiginosa

das disciplinas. Neste sentido, a complexidade torna-se visível em todas as ciências,

sejam exatas ou humanas, duras ou moles, a exemplo da biologia e das neurociências,

que apresentam um desenvolvimento tão rápido quanto surpreendente. “A

complexidade é criada por nossa mente ou se encontra na natureza mesma das coisas

e dos seres? O estudo dos sistemas naturais nos fornece uma resposta parcial a esta

questão: ela se encontra tanto na natureza quanto nas coisas e nos seres. A

complexidade na ciência é, inicialmente, a complexidade das equações e dos modelos.

Neste sentido, ela é produto de nossa mente, que é complexa por sua própria natureza.

Mas a complexidade é a imagem em espelho da complexidade dos dados

experimentais, que se acumulam incessantemente. Assim, ela se encontra na natureza

das coisas.”

Focalizando a questão do desafio da complexidade, Edgar Morin56 sustenta que,

num certo sentido, o pensamento complexo busca livrar-se de e superar os tipos de

pensamentos mutilantes, que ele denomina de simplificantes, num combate não contra

a incompletude, mas em oposição à mutilação. Para este filósofo da complexidade,

quando consideramos o fato de que somos seres ao mesmo tempo físicos, biológicos,

sociais, culturais, psíquicos e espirituais, torna-se evidente que a tarefa da

54 Barbier R., L’Approche Transversale, L’écoute sensible en sciences humaines, coll. Exploration Interculturelle et Science Sociale, Paris, Anthropos, Ed. Economica, 1997, p. 164-241. 55 Nicolescu B., op. cit., p. 51-59. 56 Morin E., Science avec conscience, nouvelle édition, Paris, Fayard/Seuil, p. 164-177.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

17

complexidade é a de conceber a articulação, considerando a identidade e a

diferenciação com relação à todos estes aspectos – além do pensamento simplificador,

que tudo fragmenta e desvincula ou unifica e mistura, por meio de uma redução

mutiladora. Assim, é evidente que a ambição da complexidade é a de realizar

articulações que são negadas e destruídas pela dissociação típica do enfoque

disciplinar, entre categorias cognitivas e entre tipos de conhecimento, rumo a uma

muldimensionalidade que contêm, no seu âmago, um princípio de incompletude e de

incerteza. Morin lembra-nos que a palavra complexus significa tecer, em conjunto, um

mesmo tecido composto de diferentes fios. Trata-se de um entrecruzamento unitário de

conexões com o distinto e diverso. A unidade do complexus conserva a variedade e a

diversidade dos elementos que a compõe. “O desafio da complexidade nos faz renunciar

definitivamente ao mito da elucidação total do Universo e nos encoraja a prosseguir a

aventura do conhecimento, que é o diálogo com os universos.”

Le Grand57 formulou o interessante conceito de implexidade: uma implicação

complexa ou complexidade implicante, onde observado e observador e objeto e sujeito

são ligados. “A implexidade é a dimensão complexa das implicações, complexidade

largamente opaca a uma explicação. A implexidade é relativa ao entrelaçamento de

diferentes níveis de realidades das implicações, dominantemente implícitas (recurvadas

no interior).”

Transdisciplinaridade e formação

Gaston Pineau e Patrick Paul refletiram profundamente e escreveram sobre a

visão transdisciplinar com relação à formação e à abordagem das histórias de vida. Na

introdução do livro “Transdisciplinarité et Formation”58, Patrick Paul, que introduziu um

quarto pilar à pesquisa transdisciplinar, o da hipótese paradoxal, afirma que esta

instigante abordagem busca abrir uma nova visão integrativa do ser humano e da

natureza, que transcende o paradigma atualmente vigente. Trata-se de uma abertura

das ciências, sobretudo as humanas e sociais, a uma relação diferente entre o sujeito e

o objeto, ao mesmo tempo mais vasta e refinada, através do conceito de níveis de

realidade. Reunindo pesquisadores de diversos horizontes, a transdisciplinaridade

torna-se uma fonte de diálogo entre múltiplas e respectivas competências, engendrando

um novo discurso definido menos por um território comum do que pelo esclarecimento

das margens, dos locais e das fronteiras entre os campos. Paul esclarece que esta

abordagem emergente considera a importância dos enfoques disciplinares, definidos

por seus distintos objetos e métodos, abrindo-se para a aceitação de espaços de

contornos menos nítidos, situados nas fronteiras e no além das zonas objetivas

clássicas. Há o reconhecimento da pessoa implicada no nobre processo de uma

formação e transformação constante ao longo de toda existência, inscrevendo-se num

dinamismo cognitivo complexo, que inclui tanto a razão quanto a sensação, a

experiência, a imaginação e a intuição. Para Paul, a formação transdisciplinar, neste

57 Le Grand J.-L., Implexité : implication et complexité, Paris, Université Paris 8 (en ligne) http:llwww.fp.univer-paris8.fr/recherches/JOOeGrandimplexite.html (consulté le 06/08/11). 58 Paul.P., Introduction, In: Paul P. et Pineau G (coord.), Transdisciplinarité et Formation, Paris, L’Harmattan, 2005, p. 5-7.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

18

contexto ampliado, possibilita um “ato formador por excelência, tornando, assim, o

campo da formação o de um desvelamento de si como Bildungformação”.

No seu texto, “Recherches Transdisciplinaires et Université”, Gaston Pineau59

fala de um movimento de tensa ligação entre a universalidade e a diversidade de

saberes. Para Pineau, a palavra universidade traduz bem a exigência de unidade a ser

construída pelo universo sociocognitivo, conjuntamente com a multidiversidade, além

da simples uniformidade, em função da pluralidade dos saberes que a compõe. Na sua

visão, há três degraus da transdisciplinaridade, após um ponto zero: o da uni-

disciplinaridade. O primeiro degrau de conexão é o da multi ou pluridisciplinaridade; o

segundo, o da pesquisa interdisciplinar e o terceiro, o da vinculação propriamente

transdisciplinar. Por outro lado, a pesquisa transdisciplinar em formação implica em três

prefixos: o primeiro é o trans, significando a transição paradigmática pelas transações

transversais e transformação das relações. O segundo é o auto: a necessidade de uma

autodisciplina para aprender uma atitude de discípulo diante do totalmente novo, além

de tudo. Inerente a este prefixo encontra-se o desafio da aprendizagem de que esta

transcendência se dá por meio de uma travessia e de uma interiorização, o que implica

em se autodisciplinar. O terceiro é o inter: através de uma rede de aprendizagem

recíproca, já que a conquista deste novo aprender a aprender é vinculada às transações

com a diversidade do outro. Resume Pineau: “Assim, não há transdisciplinaridade

heurística, sem autodisciplina e sem uma inter-rede da aprendizagem recíproca. Eis o

sentido da proposição deste pequeno enigma: não há trans sem auto e sem inter”.

Postulando o interessante conceito de antropoformação, etimologicamente o ser

humano em formação ou a formação do ser humano, enquanto visão, percepção,

pensamento, imaginação e intuição, Paul60 afirma que se trata de uma abordagem que

faz apelo à transdiciplinaridade, segundo Gaston Bachelard e Thomas Kuhn, colocando

em questão os cânones epistemológicos dinamizadores dos instrumentos

metodológicos que, além da concepção científica clássica, testemunha a própria

singularidade das ciências humanas. Para Paul, a metodologia das histórias de vida,

que retoma a questão da construção da identidade do individuo social, muito próximo

da anamnese médica, constitui os horizontes de novos campos a serem explorados.

Desta forma, a partir da realidade e da identidade biológica, a antropoformação evoca,

ao mesmo tempo, a maneira que o ambiente natural e o sociocultural nos influenciam e

transformam também nos remetendo à formação interior da subjetividade humana, no

vasto sentido da Bildunformação proposta pelos enfoques germânicos, respaldados

pelo Mestre Eckart, por Goethe, entre outros. No seu enfoque, Paul afirma que os

valores implicados no anthropos, a inteireza humana, devem se articular por meio da

singularidade, da sociabilidade, da idealidade e da universalidade, no processo de

formação do ser humano.

Em outro texto deste mesmo livro, Patrick Paul61 esclarece que a

transdisciplinaridade é portadora do novo, a partir de uma epistemologia e de uma

metodologia que são provenientes da própria dinâmica científica contemporânea, em

direção à atual conjuntura social. “É certo que, neste domínio como nos demais, a

59 Pineau G., Recherches Transdisciplinaires et Université, op.cit., p. 12-26. 60 Paul P., Le concept d’anthropoformation, op. cit., p. 165-166. 61 Paul P., Vers la transdisciplinarité, op. cit., p. 72-73.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

19

mesma palavra pode se referir a diferentes posturas dos seus pesquisadores.

Entretanto, além destas diferenças, um mesmo pensamento habita a abordagem

transdisciplinar: abrir as disciplinas sem as negarem, reconciliar o sujeito e o objeto,

buscar reconstituir, num todo coerente, os diversos fragmentos do conhecimento, dar

sentido à intercessão entre os campos de maneira não sincrética e não unitária, num

processo de superação pela integração, por meio de um método apto a tratar as

contradições do conceito positivista da ciência, ligando-se a um procedimento capaz de

legitimar diferentes modos de inteligibilidade e diversos graus ontológicos”.

Por outro lado, num artigo sobre histórias de vida como uma aventura intelectual

plural e singular, Pierre Dominicé62 fala da pertinência e também dos riscos da ótica

transdisciplinar, sustentando que, de maneira geral, a abordagem das histórias de vida

não pertence a nenhum campo disciplinar específico, colocando-se entre as fronteiras

das disciplinas. Progressivamente este autor deu-se conta de que eram “indisciplinados”

que, nas suas palavras, “se reconheciam na ótica ambiciosa da transdisciplinaridade,

frequentemente reivindicada por G. Pineau. Na origem de nossos trabalhos se

afirmaram as contribuições que favoreceram um alargamento pluri ou transdisciplinar,

como a da sócio-antropologia de Marie-Christine Josso e de Jean-Louis Le Grand, o da

psicologia de Martine Lani-Bayle ou a de inspiração lacaniana do psicanalista Guy de

Villers. Assim, atraímos transitoriamente muitos outros pesquisadores das ciências

humanas que, entretanto, preferiram o terreno menos instável de um pensamento

alinhado a uma fragmentação mais disciplinar, seja da psicossociologia clínica ou

mesmo, posteriormente, da análise do trabalho.” Por outro lado, Delory-Momberger -

cuja significativa contribuição Dominicé afirma ser transdisciplinar e intercultural,

abrindo um caminho teórico muito original, num contexto acadêmico normalmente

fechado - precisa que a abordagem biográfica não é uma disciplina, mas um campo de

pesquisa.

Enfim, a visão transdisciplinar é aberta, transcendendo o domínio das ciências

exatas, por meio de um diálogo inclusivo e de reconciliação com as ciências humanas,

a arte, a literatura, a poesia, o imaginal e a consciência interior. Segundo o artigo 14 da

Carta da transdisciplinaridade63: “Rigor, abertura e tolerância são as características

fundamentais da atitude e da visão transdisciplinar. O rigor da linguagem na

argumentação, que leva em conta todos os dados é a proteção com relação a todos os

desvios possíveis. A abertura comporta a aceitação do desconhecido, do inesperado e

do imprevisível. A tolerância é o reconhecimento do direito às ideias e às verdades

contrárias às nossas”.

V – Os quatro pilares de uma nova educação

62 Dominicé P., Les histoires de vie : une aventure intellectuelle plurielle et singulière, In : Barbier J.-M. ; Bourgeois E. ; Chapelle G. ; Ruano-Borbalan J., Encyclopédie de la formation, Paris, PUF, Démos, 2009, p. 114-115. 63 Nicolescu B., La Transdisciplinarité – Manifeste, Transdisciplinarité, coll. Dirigée par Basarab Nicolescu, Paris, Éditions du Rocher, 1996, p. 227.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

20

A tomada de consciência de um sistema educacional em desacordo com as

transformações do mundo contemporâneo tem produzido numerosos colóquios e

simpósios. Um dos encontros mais importantes e marcantes foi o elaborado pela

Comissão internacional sobre a educação para o século XXI, sob a presidência de

Jacques Delors e ligado à UNESCO, que faz referência aos quatro pilares de uma

educação continuada ao longo de toda a existência: aprender a conhecer, aprender a

fazer, aprender a conviver e aprender a ser.

Com este nobre objetivo, Delors64 indica as grandes tensões a serem superadas:

entre o global e o local; entre o universal e o singular; entre tradição e modernidade;

entre a longa e a curta duração; entre a competição e a igualdade de oportunidades;

entre o extraordinário desenvolvimento do conhecimento e a capacidade de sua

assimilação pelo ser humano. “Enfim, eis uma constatação eterna, a tensão entre o

espiritual e o material. O mundo, frequentemente sem o sentir ou o exprimir, tem sede

de ideal e de valores que nós denominamos de morais, para não chocar ninguém. Que

nobre tarefa da educação esta de suscitar a cada pessoa, segundo suas tradições e

convicções, no pleno respeito ao pluralismo, esta elevação do pensamento e do espírito

até o universal e a certa transcendência de si mesmo. Está em jogo – a Comissão pesa

as suas palavras – a sobrevivência da humanidade.”

Eis um resumo, a seguir, destes quatro fundamentos de uma educação

transdisciplinar:

Aprender a conhecer Trata-se da aprendizagem de métodos para compreender o mundo e capazes de

facilitar a distinção do que é real e do que ilusório, para um contato inteligente com os

saberes disponíveis, com um espírito científico fundamentado sobre uma interrogação

aberta e permanente, com a recusa de uma atitude fechada e dogmática. É importante

conciliar uma cultura geral e ampla – passaporte para uma educação permanente ao

longo de toda a vida - com a possibilidade de trabalhar, de maneira profunda e particular,

um pequeno número de matérias, afirma Delors65.

Segundo Nicolescu66, aprender a conhecer também significa a aquisição da

habilidade de estabelecer pontes entre os diferentes saberes e os seus significados para

a vida cotidiana: entre os saberes, as significações e o universo interior. Na sua visão,

a dinâmica transdisciplinar é o complemento indispensável para o próprio

desenvolvimento disciplinar, já que conduz a um “ser sem cessar re-ligado, capaz de se

adaptar às exigências mutantes da vida profissional, e dotado de uma flexibilidade,

sempre orientado para a atualização de seus potenciais intelectuais”.

Aprender a fazer Tarefa de colocar em prática os conhecimentos e de adquirir uma qualificação

profissional e uma competência que possibilite ao aprendiz fazer face às numerosas

situações práticas e a trabalhar em equipe, uma dimensão essencial na abordagem

64 Delors J. et collaborateurs, op. cit., p. 12-14. 65 Delors J. et collaborateurs, op. cit., p. 18. 66 Nicolescu B., op. cit., p. 193.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

21

transdisciplinar, que considera a diversidade de saberes na ordem da

complementaridade e da sinergia.

Trata-se de conciliar a necessidade da especialização no aprendizado de uma

profissão com uma visão mais global e com uma ação criativa, dialógica e flexível.

Conforme o relatório Delors67, esta competência e as suas qualificações frequentemente

tornam-se mais acessíveis se os estudantes tem a oportunidade de testar as suas

capacidades na participação enriquecedora em atividades profissionais e sociais,

paralelamente aos seus estudos. Neste sentido, a alternância entre a escola e o trabalho

adquire uma relevância muito criativa e importante.

Aprender a conviver Eis um desafio muito negligenciado nos métodos convencionais de educação, que

solicita uma abertura para o exercício de uma dinâmica individual e de grupo, para

facilitar o desenvolvimento das já referidas quatro funções psíquicas pesquisadas por

Carl Gustav Jung – pensamento, sentimento, sensação e intuição – e o de uma

inteligência emocional e relacional – a exemplo do projeto da Arte de Viver a Vida68 da

Formação Holística de Base da UNIPAZ, incluindo os seminários A Arte de Viver em

Paz, A Arte de Viver Consciente, A Arte de Viver em Harmonia e A Arte de Viver o

Conflito. Por outro lado, é fundamental o lidar com o mundo dos sonhos, cujas funções

- complementares às da vigília - são pesquisadas, à luz da ciência, há mais de um

século, através do desenvolvimento da inteligência onírica, o que introduz na missão

pedagógica o que tenho denominado de alfabetização psíquica69.

Este pilar refere-se a um processo que visa o aprender a viver com – consigo,

com o outro, com a comunidade, com a natureza. No plano interacional humano, trata-

se do reconhecimento e a compreensão do outro, com a percepção da interdependência

em prol da gestão das naturais tensões e conflitos e a realização de projetos comuns,

no espírito da aliança entre a competição e a cooperação, respaldada na atitude de

respeito dos valores plurais, do cuidar do outro, da compreensão mútua e da vivência

harmoniosa e pacífica.

Aqui nos deparamos com o desafio da alteridade. Na visão de Nicolescu, há um

aspecto fundamental na dinâmica da evolução transdisciplinar em educação: “se

reconhecer a si mesmo no semblante do Outro”, o que exige um processo permanente

de aprendizagem, desde a mais tenra idade, prolongando-se durante todo o itinerário

existencial. “A atitude transcultural, transreligiosa, transpolítica e transnacional permite

o melhor aprofundamento na própria cultura, a melhor defesa dos interesses nacionais,

o melhor respeito às próprias convicções religiosas e políticas. A unidade aberta e a

pluralidade complexa, como em todos os demais domínios da Natureza e do

conhecimento, não são antagônicos”, afirma Nicolescu70.

67 Delors J. Et collaborateurs, op. cit., p. 18-19. 68 Weil P., L’Art de vivre la vie, Traduit du portugais (Brésil) par Monique le Moing, Paris, Éditions du ROCHER, 2001. 69 Crema, R., Pedagogia Iniciática – Uma escola de liderança, Petrópolis, Vozes, 2009, p. 81-84. 70 Nicolescu B., op. cit., p. 197.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

22

Aprender a ser Sem dúvida, eis o desafio maior e a mais preciosa utopia realizável, na tarefa

imprescindível de uma renovação educacional. Além do aspecto cognitivo, do

pragmático e do universo da convivência, resta a dimensão mais nobre de uma

educação para a inteireza: facilitar o desenvolvimento da semente do potencial evolutivo

inerente a cada ser humano. Esta notável meta solicita o que denomino de uma

pedagogia iniciática71, que inicie o ser humano a uma dinâmica rumo a sua completude

ou plenitude possível, com o desenvolvimento dos seus talentos vocacionais

particulares, através do investimento na dimensão noética da consciência do Sujeito,

que favoreça, por meio de um itinerário interior, o desvelar de uma inteligência da

inteireza psíquica, que Jung denominava de Self.

Como sustenta Delors72, aprender a ser, “enfim e, sobretudo”, rumo ao

florescimento da personalidade, pelo desenvolvimento de um processo de descoberta,

de experimentação, de trabalho de imaginação e da criatividade, para o aprendiz ousar

atuar a partir de uma capacidade de autonomia, de discernimento e de responsabilidade

individual, seguindo um imperativo de não deixar inexplorado nenhum espaço do

tesouro dos seus próprios talentos. Trata-se de exercitar os domínios da memória, da

razão, da sensibilidade, conjugadas com a imaginação criadora, o sentido da ética e da

estética, que possibilite a expressão do carisma natural do individuo plenamente

cultivado na sua tarefa de compreender o mundo e a si mesmo.

Aprender a ser implica a necessidade de conciliar a dimensão pessoal e a

transpessoal, que são inerentes a cada individuo, conformando suas qualidades de

raízes e de asas, de profundidade e de altitude, de palavra e de silêncio. Como afirma

Basarab Nicolescu, “A construção de uma pessoa passa, inevitavelmente, pela

dimensão trans-pessoal. O não respeito a este necessário acordo explica, em grande

parte, uma das tensões fundamentais de nossa época entre o material e o espiritual”.

“Utopia, pensarão alguns, mas utopia necessária, utopia vital, para sair do ciclo

perigoso, nutrido pelo cinismo e a resignação”, sustenta Delors73.

VI – A visão holonística “Temos visto que os holons biológicos são entidades

autorreguladoras que, ao mesmo tempo, manifestam

propriedades independentes, de totalidades e

propriedades dependentes, de partes.”

Arthur Koestler74

71 Crema, R., op. cit., p. 84-98. 72 Delors J. et collaborateurs, op. cit., p. 19. 73 Delors J. et collaborateurs, op. cit., p. 18. 74 Koestler A., La quête de l’absolu, Commentaires d’Arthur Koestler traduits par Georges Fradier et Muriel Zygband, Paris, Calmann-Lévy, 1981, p. 427.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

23

Arthur Koestler (1905-1983)75, afirmando que a parte e o todo inexistem no domínio da

vida, de forma inovadora e consistente desenvolveu uma abordagem que transcende o

atomismo ou reducionismo e o holismo ou totalitarismo, integrando os aspectos válidos

destes dois métodos, por meio do seu conceito de holon – do grego holos, totalidade,

com o sufixo on, que designa a parte (como em próton ou nêutron), referindo-se a um

sistema aberto e autorregulador que apresenta, simultaneamente, as propriedades

autônomas de um todo e as dependentes de uma parcela.

Segundo esta visão, a palavra mais justa para fazer referência à abordagem

integrativa é holonística, antes que holística. Na perspectiva koestleriana, o organismo

é considerado como uma hierarquia em múltiplos níveis de subtotalidades, dotados de

autonomia relativa. Este autor reconhece que, na medida limitada onde é aplicável, o

método reducionista logrou um grande sucesso nas ciências ditas exatas, enquanto que

a sua antítese, o holismo, conceito concebido por Jan Smuts76 em 1926, que considera

que o todo é mais do que a soma de suas partes, jamais foi muito longe, apenas tendo

penetrado na ciência oficial indiretamente, pelo viés da filosofia e da Gestalt. Isto se

deve, por um lado, ao fato desta abordagem ter se chocado com o espírito da época e,

por outro, por ter representado um método mais filosófico do que empírico, não tendo

sido utilizado em experiências de laboratório, segundo Koestler.

O símbolo koestleriano para a noção do holon é o de uma divindade da mitologia

romana, Janus, que apresenta duas faces, voltadas para sentidos opostos: uma para

frente, representando o futuro e outra olhando para trás, simbolizando o passado.

Assim, cada subparte igualmente inserida numa escada e numa ordem ascendente de

complexidade, possui uma face de “todo”, voltada para os níveis subordinados e outra

face voltada para o alto, o de uma “parte” dependente. Para Koestler, nenhum ser

humano é uma ilha, mas um holon: uma entidade bifrontal que, olhando para o interior

se vê como um todo, único e completo em si, e olhando para o exterior se vê como uma

parte dependente. Há uma tendência autoafirmativa, que é a manifestação dinâmica de

sua condição autônoma de um todo único, ou seja, a sua independência como holon. A

tendência antagônica, também universal, é integrativa e exprime sua dependência com

relação a um todo superior, o que constitui a sua condição de parte.

Falando de outro modo, há duas tendências de base na natureza viva: uma de

diferenciação e outra de fusão. A primeira é autoafirmativa, uma força centrífuga

direcionada para a diferença, a singularidade, a alteridade. Enquanto a de fusão é

integrativa, uma força centrípeta que se direciona para o pertencimento, a interconexão,

a solidariedade. De acordo com Koestler77, esta polaridade ou coïncidentia oppositorum

surge em todas as manifestações da vida, sendo que a tendência à asserção é uma

expressão dinâmica da totalidade do holon, enquanto a tendência à integração é um

dinamismo expressivo da parcialidade. A tarefa da saúde é a de manter um equilíbrio

sinergético entre estas duas dinâmicas, evitando a polarização, pois o excesso de

diferenciação conduz à patologia do individualismo excluidor e a do isolamento,

75 Koestler A., O fantasma da máquina, São Paulo, Zahar, 1969. 76 Smuts J., Holism and evolution, The original source of the holistic approach to live, Michigan, Sanford Holst, 1999. 77 Koestler A., op. cit., p. 439.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

24

enquanto o excesso de fusão determina a alienação característica da simbiose e do

totalitarismo.

Como assume Nicolescu78, a abordagem transdisciplinar jamais opõe holismo e

reducionismo, considerando-os como dois aspectos de um mesmo conhecimento da

Realidade, que integra o local no global e o global no local. Holismo e reducionismo,

assim como global e local, “são dois aspectos de um só e mesmo mundo

multidimensional e multirreferencial, o mundo da pluralidade complexa e da unidade

aberta”.

Apontando na mesma direção, o filósofo Martin Buber (1878-1965)79 afirma o

duplo movimento de separação e de relação como o que define o princípio da vida

humana. Uma relação autêntica apenas tem lugar quando o outro é colocado numa

distância justa, para que seja possível o Eu-Tu. Caso contrário, estaremos condenados

a uma relação objetal e reducionista, que Buber denominava de Eu-isto.

Desta forma, visando o movimento de integração, necessitamos da sinergia

entre o método analítico – de diferenciação dual – e o método sintético – de fusão

unitária.

VII – Análise e Síntese: terra e céu “O verdadeiro poder sobre a violência consiste

numa atitude de transformação interior, a paz não se

encontrando em nenhum lugar que não seja em si mesmo,

no ponto da junção das contradições.”

Patrick Paul80

Nós, ocidentais, somos condicionados à análise, já que o método analítico encontra-se

no coração do paradigma da modernidade, nascido do pensamento iluminista, fundado

sobre a razão crítica. De fato, esta foi a grande contribuição da concepção científica do

século XVII, que introduziu a consciência de diferenciação no âmago do novo aprender

a aprender.

Eis um breve resumo deste caminho, que brota de uma pesquisa que tenho

realizado sobre este tema há mais de duas décadas, sobretudo no domínio da saúde,

mas também no da educação81: o método analítico é um produto do racionalismo

científico, que surgiu como uma saudável e lúcida resposta a um contexto decadente de

um obscurantismo indiferenciado medieval, que se cristalizou numa simbiose perversa

entre religião e ciência, sob a tirania da Inquisição. Centra-se nas partes, buscando as

unidades constitutivas, atuando como um bisturi retalhador de totalidades. Refere-se ao

conceito grego de diabolos, o que divide. Levou-nos à abordagem disciplinar que

78 Nicolescu B., op. Cit., p. 175. 79 Buber M., Je et Tu, Paris, Aubier-Montaigne, 1992. 80 Paul P., Sujet et violence, paix et transdisciplinarité, In: Welter R. (dir.), Transdisciplinarité, Un chemin vers la paix, Paris, Éditions F.B.V. pour Le C.N.R.S., 2003, p. 106. 81 Crema R., Antigos e Novos Terapeutas – abordagem transdisciplinar em terapia, Petrópolis, Editora Vozes, 2002, p. 43-74.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

25

modelou a especialização, caracterizada por sua tendência reducionista e pela

unilateralidade de visão e de ação – alguém que sabe quase tudo de quase nada.

Fundamenta-se nas funções psíquicas do pensamento e da sensação, bases do

racionalismo empírico. Apoia-se na microfísica mecânica e no realismo clássico, com

suas características de continuidade, de simplicidade, de causalidade local e de

objetividade. Destaca-se pelo aspecto quantitativo, perseguindo o ideal da codificação

matemática. Tem por base o registro pessoal da identidade egocêntrica. Parte de uma

lógica linear da causalidade local, prescrevendo a existência de leis necessárias e

gerais, que engendram o determinismo, com a sua pretensão de controle e de

previsibilidade. Reveste-se da aparência sofisticada da exatidão. Atua de forma

progressiva e acumulativa, a partir de uma atitude básica de extroversão, afirmando-se

como um excelente instrumento de investigação e de exploração do espaço exterior.

Tem como objetivo ideal a objetividade e a neutralidade, com relação aos valores,

excluindo o sujeito do campo da ciência. Sua vocação é experimental e o seu produto

específico é gerado em laboratórios sofisticados, com a manipulação impecável das

variáveis. O seu substrato metafórico neurofisiológico – levando em conta a

interconexão hemisférica cerebral – é o hemisfério dominante, geralmente o esquerdo,

da racionalidade, da lógica, da previsibilidade e da angústia humana. Caracteriza a

mentalidade típica do ocidental, centrada na tecnociência. Postula uma função

explicativa: objetiva explicar ativamente o universo. Denominamos de analista ao agente

deste método clássico.

Como já foi ressaltado, devemos ao gênio do Wilhelm Dilthey, que denunciou as

contradições do caminho reducionista científico-natural, demonstrar a necessidade de

outro método, além do analítico, fundamento das ciências do espírito, que propõe a

descrição e a compreensão da vida a partir dela mesma.

Em seguida à contribuição marcante de Dilthey, outras significativas vozes se

levantaram, indicando o universo do sujeito por meio de um caminho sintético. O já

citado Jan Smuts (1870-1950)82, na sua perspectiva evolutiva, lançou o conceito do

holismo como um princípio único, organizador de totalidades e criador de conjuntos,

num Universo que é sintético, vital e criativo. Carl G. Jung83 desenvolveu uma

interpretação de sonhos ao nível do sujeito, que denominou de sintética. Roberto

Assagioli (1888-1974)84 desenvolveu uma psicossíntese. Viktor Frankl (1905-1997)85

fundou a sua escola de Logoterapia, caracterizada por uma metodologia sintética.

Karlfried Graf Dürckheim (1896-1988)86 criou a terapia iniciática, propondo o que

denomina de exercício – uma prática meditativa de natureza sintética – para que a

essência se manifeste na existência. Ramon Soler87 fundou, na Argentina, a

Universidade de Síntese, onde o método da síntese é, igualmente, uma via de

integração humana. O sábio hindu J. Krishnamurti (1895-1986)88 que dedicou toda a

sua existência e obra absolutamente ao essencial, tendo tido uma influência destacada

82 Smuts J., Holism and evolution, The original source of the holistic approach to life, Michigan, Sanford Holst, 1999. 83 Jung C.G., A prática da psicoterapia, Petrópolis, Editora Vozes, 1981. 84 Assagioli R., Psicossíntese, São Paulo, Cultrix, 1985. 85 Frankl V., Um sentido para a vida, Aparecida, Ed. Santuário, 1989. 86 Graf-Dürckheim K., L’homme et sa double origine, Paris, Albin Michel, 1995. 87 Soler R., Universidad de Síntesis, Buenos Aires, Depalma, 1984. 88 Krishnamurti J., La première et dernière liberte, Paris, Stock, 1995.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

26

na abordagem transversal de René Barbier89, pode ser considerado como um símbolo

vivo de encarnação da síntese.

Para resumir, o método sintético surgiu no fim do século XIX, como uma resposta

à crise de fragmentação e de dissociação de uma ciência divorciada da consciência.

Focaliza a totalidade, a interconexão, a forma, o contexto, visando estabelecer um

processo de ligação e de unificação. A sua tendência é amplificadora e integrativa. Diz

respeito ao conceito grego que é oposto ao do diabolos, o de symbolos, fator que religa

e restabelece a inteireza. Valorizando a visão inclusiva e global, encontra-se na base do

ideal do generalista – alguém que sabe quase nada de tudo. Trata-se de uma via

qualitativa, que utiliza mais a linguagem mito-poética e a do imaginal ou imaginação

criativa. Fundamenta-se sobre as funções psíquicas do sentimento e da intuição. Coloca

ênfase sobre a participação e a singularidade biográfica. Produz-se na instantaneidade,

no salto abrupto, no insight: não é cumulativo. Segundo uma lógica da simultaneidade,

abre-se ao universo ampliado da sincronicidade, das coincidências significativas por

meio de um princípio de conexões acausais ou de transcausalidade, de acordo com a

pesquisa junguiana. Reveste-se de um tecido vivo, leve, impreciso e desapegado da

exatidão. Guiado por uma visão introspectiva, que investiga e edifica no espaço interior.

Abre-se ao além do ego, rumo a uma consciência transpessoal. Sustenta-se na

abordagem da microfísica e do realismo quântico, caracterizado pela descontinuidade,

o princípio da superposição, a não separatividade, a não localidade e o indeterminismo.

Assume um caráter consciencial: da subjetividade, da intersubjetividade e dos valores.

Focaliza a significação e o sentido. Sua vocação é experiencial: o seu produto específico

é o fruto do laboratório vivo da vivência humana. Seu substrato metafórico

neurofisiológico é o hemisfério cerebral não dominante, geralmente o direito, da gestalt,

da musicalidade, da poesia e da não dualidade. Caracteriza o espírito clássico do

oriental, centrado sobre a experiência interior. Não se distingue do sujeito. Exerce uma

função compreensiva e de comunhão participativa. Podemos denominar de sintetista ao

agente deste caminho qualitativo rumo à realidade.

Podemos colocar em relação, de um modo sumário e indicativo, algumas

características básicas do método analítico e do sintético, no esquema abaixo:

O Método Analítico O Método Sintético

Ênfase na parte Ênfase na totalidade

“On” Holos

Reducionismo Holismo

Texto Contexto

A serviço da decomposição A serviço da unificação

Diabolos Symbolos

89 Barbier R., L’Approche Trnasversale, L’écoute sensible en sciences humaines, coll. Exploration Interculturelle et Science Sociale, Paris, Anthropos, Ed. Economica, 1997.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

27

Funções psíquicas: Funções psíquicas:

Pensamento e sensação Sentimento e intuição

Especialista Generalista

Via quantitativa Via qualitativa

Causalidade Transcausalidade: sincronicidade

Lógica linear de sucessividade Lógica global da simultaneidade

Determinismo Indeterminismo

Geral, regularidade Singular, biográfico

Espaço exterior: objetividade Espaço interior: subjetividade

Controle Participação

Experimental Experiencial

Macrofísica Microfísica

Realismo clássico Realismo quântico

Metáfora do hemisfério esquerdo Metáfora do hemisfério direito

Ciência e tecnologia Consciência e arte

Espírito ocidental Espírito oriental

Saber Ser

Holologia Holopráxis

Explicação Compreensão, comunhão

VIII – A Arte da Integração: o Três “O Tao engendra Um. Um engendra Dois. Dois

engendra Três. Três engendra todos os seres do mundo.”

Lao-tseu XLII90

É fundamental ressaltar que o método analítico e o método sintético não se encontram

numa relação de antagonismo, mas numa sinergia de complementaridade, como dois

caminhos rumo a um só e mesmo conhecimento humano, integrando o local com o

global e o global com o local. O conceito de complementaridade é derivado da teoria

quântica, proposto por Niels Bohr, para resolver o paradoxo partícula-onda, da

90 Lao-tseu, Tapo-tö-king, Traduit du chinois par Liou Kia-hway, Paris, Gallimard, 1967, p. 64.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

28

microfísica. O mesmo pode ser aplicado na polaridade metodológica análise-síntese.

Uma ênfase unilateral na análise nos conduz a uma visão de fragmentação e

dissociação, enquanto que na síntese nos leva ao globalismo e ao totalitarismo. A

abordagem transdisciplinar e holonística ou holística não é nem analítica e nem

sintética, mas uma integração destas duas vias.

Nicolescu91 afirma que as palavras três e trans tem origem na mesma raiz

epistemológica, sendo que o três é a transgressão ou o que vai além do dois. Neste

sentido, a transdisciplinaridade é a transgressão da dualidade opositora dos pares

binários, como sujeito-objeto, matéria-consciência, simplicidade-complexidade,

reducionismo-holismo, diversidade-unidade, natural-divino. Estas dualidades são

transcendidas pela unidade aberta que engloba o Universo e o ser humano.

Necessitamos, assim, de uma aliança entre o método de diferenciação analítico e o

método de fusão sintético. Nem um, nem dois; não mesclar, não separar; não fundir,

não dividir: eis um axioma básico transdisciplinar que solicita o três. Podemos

representar o valor desta heurística sinergia metodológica com o número três – que

contêm em si o um da unidade e o dois da dualidade, com o símbolo do infinito aliando,

numa dinâmica de interações constantes e paradoxais, o método analítico e o sintético:

Fig. 4: O Três da integração

Na sua obra, Edgar Morin92 insiste muito neste pensamento de Pascal, uma

verdadeira pérola da visão holística: “Todas as coisas sendo causadas e causadoras,

ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas e todas se conectando por uma ligação

natural e insensível, que liga os mais distantes e os mais diferentes, considero

impossível conhecer as partes sem conhecer o todo ou conhecer o todo sem conhecer

particularmente as partes”.

Uma afirmação da tradição taoista sustenta que o alto descansa no profundo.

Parodiando este provérbio, podemos afirmar que a síntese descansa na análise, o todo

repousa na parte, o céu descansa na terra, as asas repousam nas raízes.

Falando da metáfora do substrato neurofisiológico, o exercício salutar e o

equilíbrio desta integração se fazem no corpo caloso – corpus callosum - que religa os

dois hemisférios cerebrais, o esquerdo da análise e o direito da síntese. O que a tradição

91 Nicolescu B., La Transdisciplinarité – Manifeste, Transdisciplinarité, Coll. dirigée par Basarab Nicolescu, Paris, Éditions Du Rocher, 1996, p. 83. 92 Morin E., La méthode 1. La Nature de La Nature, Paris, Éditions Du Seuil, 1977, p. 125.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

29

de sabedoria simboliza como o terceiro olho ou o chifre do unicórnio. Por esta razão

afirma Carl Sagan (1934-1996)93 que o futuro da educação depende do corpo caloso.

Podemos acrescentar: igualmente o futuro da paz.

IX – Normose, a patologia da normalidade “A doença do homem normal é uma doença da

imobilidade. Saber mover a mente é contribuir para

superar esta enfermidade.”

Guillaume Le Blanc94

Pierre Weil95 definiu a normose como sendo uma anomalia da normalidade, na forma

de um “conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de

agir aprovados por um consenso ou pela maioria de pessoas de uma determinada

sociedade, que levam a sofrimentos, doenças e mortes. Em outras palavras: que são

patogênicas ou letais, executadas sem que seus autores e atores tenham consciência

da natureza patológica.” Weil afirma que uma grande parte das opiniões, das atitudes e

dos comportamentos sobre os quais recai um consenso social, na realidade conformam

tipos de normoses. Este consenso constitui uma pressão social que modela um

processo de adaptação a normas mórbidas. Um exemplo é o conceito de guerra justa,

com um apoio legal, onde as pessoas envolvidas adquirem o direito de matar os que

consideram inimigos. Neste contexto, aprende-se a matar por meio do serviço militar,

às vezes obrigatório. Um consenso análogo a este existia, antigamente, em torno do

duelo, como um caminho legítimo de lavar a honra ferida. Atualmente essa prática é

considerada ilegal, inconcebível e, até mesmo, ridícula. “Quando a guerra será

considerada como um duelo coletivo?”, indaga Pierre Weil, considerando ser possível

que a humanidade chegue a esta mesma evolução, no que diz respeito à violência e

aos conflitos bélicos.

Para contextualizar esta concepção, podemos falar em três fundamentos da

normose96. O primeiro é o sistêmico: esta anomalia da normalidade surge quando o

sistema no qual vivemos encontra-se, dominantemente, desequilibrado, doente e

corrompido, quando o que predomina são as contradições ou sintomas como a falta de

escuta, de respeito, de cuidado e de fraternidade, com uma violência alarmante e

crescente contra o indivíduo, a sociedade e a natureza. Neste contexto, uma pessoa

normal, ou melhor, normótica, é a bem ajustada ao sistema mórbido, assim contribuindo

para a manutenção do status quo. Sabemos bem, pela própria carta constitutiva da

Organização Mundial de Saúde (1946), que a saúde não é ausência de sintomas, mas

93 Sagan C., Os Dragões do Éden, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1987. 94 Le Blanc G., Les maladies de l’homme normal, VRIN Matière Étrangère, Paris, Librairie Philosophique J. VRIN, 2007, p. 37-38. 95 Weil P., Uma introdução ao conceito da normose, In: Weil P.; Leloup J-Y.; Crema R., Normose, a patologia da normalidade, Campinas, Verus Editora, 2003 p. 22; Petrópolis, Vozes, 2012, p.18. 96 Crema R., Três fundamentos da normose, In: Weil P.; Leloup J-Y; Crema R., Normose, a patologia da normalidade, Petrópolis, Vozes, 2012, p. 31-49.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

30

a presença de um estado completo de bem-estar nos planos somático, psíquico e social.

O fator ambiental e o espiritual foram considerados e incluídos neste conceito, mais

tarde (1998). Em outras palavras, quando um sistema se encontra, em larga medida,

num estado patológico a pessoa realmente em boa saúde é aquela que manifesta um

estado de desajustamento consciente, de uma indignação justa – como a intensa e

lúcida convocação de Stéphane Hessel97 que fala de uma insurreição pacífica – ou,

mesmo, de um desespero sóbrio.

O segundo fundamento é o evolutivo, que parte do princípio, aqui já refletido, do

inacabamento humano. O que podemos traduzir afirmando que nós não nascemos

humanos; nós nos tornamos humanos, através de um investimento sistemático no

potencial de autodesenvolvimento, de maturidade e de uma plenitude possível ao

humano. Em outras palavras, o ser humano introduziu outra ordem de complexidade na

qualidade evolutiva do planeta, que se traduz por uma dimensão consciente e

intencional evolutiva. Além dos acasos e das necessidades, das mutações genéticas

aleatórias e dos combates entre os mais aptos, segundo a seleção natural darwiniana,

a evolução humana consiste no desenvolvimento da consciência, que solicita um

trabalho sobre si mesmo nas trilhas labirínticas evolutivas do processo de individuação

que, da superfície ilusória do ego possa nos conduzir à centralidade do Self, segundo a

concepção de Jung.

Esta nova qualidade de uma evolução consciente e intencional, característica

ímpar do ser humano, é sustentada por significativas cartografias da consciência

contemporâneas, em ressonância com as tradições iniciáticas milenares. É o que

encontramos nas pesquisas de Abraham Maslow (1908-1970)98, de Carl Rogers99, de

Stanislav Grof100 e de Ken Wilber101, citando apenas alguns poucos marcantes

representantes do movimento humanista e transpessoal da ciência psíquica. Na sua

impactante obra, “L’évolution créatrice”, Henri Bergson (1859-1941)102 postula um

processo evolutivo vital e livre, opondo-se ao finalismo e à predestinação, como também

à abordagem mecanicista do evolucionismo darwiniano, que é incapaz, segundo este

filósofo, de explicar a totalidade complexa da evolução da vida. Para Bergson, como

para Ervin Laszlo103, criador e presidente do Clube de Budapeste, a teoria de Darwin

(1809-1882) não teve sucesso em explicar a origem das espécies complexas.

Edgar Morin104, que defende um aspecto meta-natural do humano, afirma que a

hominização nos conduziu a um novo começo: o hominídeo se humaniza e assim o

conceito do humano adquire um duplo princípio, biofísico e psico-socio-cultural, ligados

dialeticamente. Para este filósofo, nós nos desenvolvemos para além da realidade física

e viva; é precisamente neste além que se localiza a plenitude humana. O conceito de

97 Hessel S., Indignez-vous!, Montpellier, Indigène editions, 2011. 98 Maslow A., Vers une psychologie de l’être, Paris, Fayard, 1972. 99 Rogers C., On Becoming a Person, A therapist’s view of Psychoterapy, Boston-New York, Houghton Miffllin Company, 1995. 100 Grof S., Pour une psychologie du future, Paris, Dervy, 2002. 101 Wilber K., O espectro da consciência, São Paulo, Cultrix, 1990. 102 Bergson H., L’évolution créatrice, Paris, QUADRIGE/PUF, 2009. 103 Laszlo E., Conexão Cósmica, Petrópolis, Vozes, 1999. 104 Morin E., Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro, São Paulo, Cortez Editora, Brasília, UNESCO, 2002, p. 51.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

31

normose encontra-se em ressonância com certas reflexões de Morin105, sobretudo

quando, analisando as cegueiras do conhecimento, ele fala da força normalizadora do

dogma, do tabu e do determinismo das convicções e das crenças, dos conformismos

cognitivos e intelectuais. Por outro lado, com relação ao tema evolutivo, Basarab

Nicolescu106 sustenta que a nossa evolução é uma autotranscendência e que ninguém

nem nada pode nos obrigar a evoluir, já que as forças naturais da natureza, que

determinaram a evolução biológica humana, não atuam mais, o que levou a evolução

biológica ao seu final. No seu lugar surgiu um novo tipo de evolução, ligado à cultura, à

ciência, à consciência e ao encontro humano. Neste sentido, a normose se caracteriza

por uma ausência de investimento no potencial psíquico, ético e noético, representando

um estado de estagnação da evolução consciente, propriamente humana.

O terceiro fundamento é o paradigmático, tal como concebido num sentido mais

vasto, por Thomas Kuhn (1922-1996)107. Neste caso, a normose surge quando o

paradigma que ainda prevalece encontra-se esgotado no seu potencial criativo e, até

certo ponto, esclerosado, sendo que o paradigma emergente é postulado por um grupo

minoritário. Como afirmava Max Planck (1858-1947), segundo Kuhn, uma nova verdade

científica não triunfa pelo convencimento dos seus oponentes, facilitando que vejam as

novas luzes, mas porque, simplesmente, eles morrem. Assim, de enterro a enterro e de

nascimento a nascimento uma nova geração se desenvolve, aberta e receptiva ao novo

aprender a aprender. Encontra-se aqui em jogo a nobreza indicada por esta paradoxal

e feliz expressão de Henry Thoreau (1817-1862)108, a maioria de um.

Falando a respeito das doenças do ser humano normal, Le Blanc109 afirma que

a normalidade é, no início, uma criança na qual o sonho de ar fresco é levado em conta

pelos julgamentos dos pais e dos adultos, sendo que os desejos e a vida psíquica da

criança são construídos neste estado de sujeição e de modelagem. Considerando que

a personalização é um processo de fornecer um sentido às nossas atividades, Le Blanc

postula que falar de um ser humano normal é precisamente encerrá-lo nas clausuras de

uma identidade definitiva, que o priva de toda a possibilidade de alteridade e de

personalização. Neste sentido, o horror da doença é o grande temor da novidade,

quando a angústia se torna o modo de ser da pessoa considerada normal. Para este

autor, a normalidade se apresenta como exemplaridade ou como uma suposta saúde

que termina na prisão a uma norma única, que expõe a pessoa a todas as enfermidades

possíveis.

Enfim, ao lado de uma estagnação do desejo evolutivo, um aspecto muito

importante da normose é o medo da individualidade ou da individuação, ou seja, um

temor da pessoa tornar-se um sujeito único, dotada de um semblante particular e capaz

de contar a sua história, assumindo-se como o autor e ator da própria existência.

105 Morin E., op. cit., p. 27-28. 106 Nicolescu B., op. cit., p. 109. 107 Kuhn T., La structure des Révolutions Scientifiques, Paris, Flammarion, 2008. 108 Thoreau H. D., Walden ou la vie dans le bois, Paris, Flammarion, 1990. 109 Le Blanc G., op. cit., p. 23-28.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

32

X – O horizonte do Sujeito: muito além da normose “Em que jogo nós estamos? Participamos de muitos jogos,

jogados, joguetes, mas, ao mesmo tempo, jogadores. Toda

existência humana é, ao mesmo tempo, jogadora e jogada; todo

indivíduo é uma marionete manipulada do anterior, do interior e

do exterior e, ao mesmo tempo, um ser que se autoafirma na sua

qualidade de sujeito.”

Edgar Morin110

A dimensão emancipadora que decorre, naturalmente, do processo de construção do

sujeito rumo a uma diferenciação e a consciência de alteridade é um tema importante

para a biografização de percurso. Entretanto, o desafio do vir-a-ser um artesão da

própria existência é uma verdadeira tarefa maior, que implica em superar certo número

de obstáculos, como o medo de caminhar rumo ao desconhecido, com a perda dos

referenciais habituais e sempre a necessidade de lutar contra as resistências do mundo

intrapsíquico e do universo relacional. Em outras palavras, é necessário transgredir a

patologia do conformismo e da estagnação evolutiva, que denominamos de normose.

Abraham Maslow111 denominou de complexo de Jonas a uma força de

resistência e de inércia que impede o processo de desenvolvimento e de autorrealização

individual. Trata-se de uma compulsiva recusa de crescer e de explorar os próprios

talentos, um tipo de temor da própria altitude, grandeza e capacidade realizadora. O

arquétipo de Jonas, um personagem do Antigo Testamento, fala de um homem que

recusa escutar e seguir a voz da sua própria consciência profunda, que lhe convoca a

abandonar o conforto da sua existência tranquila, para realizar uma missão numa

grande cidade. Jonas – um nome hebraico que significa pomba das asas cortadas – é

um homem totalmente ordinário, que prefere seguir na sua pequena e rotineira

existência, quando uma tempestade surge no seu caminho de fuga, o que o conduzirá

a um mergulho até o ventre de um grande peixe. Em síntese, Jonas simboliza o medo

do ser humano de se tornar inteiro, autêntico e verdadeiro, que o conduz à fuga do

próprio destino ou destinação. Este complexo se traduz no arraigado medo da

diferenciação, do assumir o próprio semblante original, ou seja, o temor da

autorrealização. A tempestade que atravessa o seu caminho pode significar os

sintomas, as doenças e os infortúnios que a pessoa atrai, quando foge de si mesma. É,

também, uma oportunidade de despertar para colocar-se num caminho criativo de

transformação, rumo à plenitude.

Jean-Yves Leloup112 na sua extraordinária obra, Caminhos da Realização,

realiza uma interpretação impecável e vasta do tema do complexo de Jonas, nele

desvelando um caminho em direção ao despertar transpessoal, a partir de um amplo

mapa dos medos do ego de nosso psiquismo pessoal. Leloup afirma que Jonas se

110 Morin E., La méthode, 5. L’humanité, L’identité humaine, Paris, Éditions du Seuil, 2001, p. 330. 111 Maslow A. H., Vers une psychologie de l’être, Paris, Fayard, 1972. 112 Leloup J-Y., Caminhos da Realização – Dos medos do eu ao mergulho no Ser, Petrópolis, Vozes, 1996.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

33

encontra no interior de cada ser humano, como o próprio arquétipo da normose, uma

força de resistência que atua quando recebemos o convite para despertarmos do sono

banal de uma existência sem sentido. A sua profunda leitura simbólica da trajetória de

Jonas é uma indicação e inspiração para a aventura heroica da realização vocacional,

longo processo de florescimento de nossos talentos naturais e singulares.

Por outro lado, falando do problema de Jonas com relação à tensão entre o

trágico e o trivial, Arthur Koestler113 afirma que o simples mortal passa praticamente toda

a sua existência no plano banal, exceto em algumas ocasiões excepcionais, como

durante as turbulências da puberdade ou numa aventura passional ou no confronto com

a morte, quando acontece a súbita queda no abismo do trágico. Para Koestler, a força

dos hábitos e das convenções nos aprisiona nas correntes quase imperceptíveis do fator

trivial, tal dinâmica transcorrendo no nível subconsciente. “São as normas coletivas, os

códigos de conduta, as matrizes axiomáticas que determinam as regras do jogo e nos

fazem avançar quase todos, quase sempre, nos traços do hábito, reduzindo-nos ao

estado de autômatos bem vestidos, que os behavioristas apresentam como a verdadeira

condição do ser humano”, sustenta o autor, traçando um resumo muito perspicaz da

normose.

O que nos evoca os heróis do romance de formação, centrado nas trilhas

contínuas de aprendizagem e de desenvolvimento de si, é o percurso iniciático

indispensável em direção a uma plena realização do potencial humano, que solicita a

lúcida ousadia de transgredir a enfermidade do trivial e da mediocridade, ou seja, a

normose.

Confrontar-se e ousar um voo além da normose é imprescindível e representa o

desafio árduo da aventura evolutiva, no processo heroico e imperativo do indivíduo

assumir a condição de autoria, como o sujeito da própria existência.

Enfim, pela cisão ocorrida entre a ciência moderna e a consciência, o sentido e

a complexidade do real, que ocorreu no século XVII, com o agravamento do “big bang

disciplinar” e o cientificismo do século XIX – fundado sobre a crença simplista que um

só tipo de conhecimento é detentor das vias de acesso à realidade – num momento

obscuro da modernidade o sujeito se degenerou em objeto. Esta é a grande importância

da abordagem biográfica que, por sua própria natureza, representa o retorno do sujeito

ao cerne da pesquisa científica. Por outro lado, a atitude transdisciplinar significa um

acordo e uma sinergia entre o sujeito e o objeto, a partir do pressuposto de um processo

de integração e de harmonização entre o espaço exterior da efetividade e o espaço

interior da afetividade, entre o saber e o ser.

A construção do sujeito e a conquista da paz são como dois olhares de um

mesmo semblante: o de um ser humano em marcha, rumo à utopia realizável de uma

completude sempre inacabada.

113 Koestler A., La quête de l’absolu, Commentaires d’Arthur Koestler traduits par George Fradier et Muriel Zygband, Paris, Calmann-Lévy, 1981, p. 368-370.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

34

XI – BIBLIOGRAFIA

Assagioli R., Psicossíntese, São Paulo, Cultrix, 1985.

Barbier R., L’Approche Transversale, L’écoute sensible en sciences humaines,

coll. Exploration Interculturelle et Science Sociale, Paris, Anthropos, Ed.

Economica, 1997.

Barbier J.-M.; Bourgeois E. ; Chapelle G. ; Ruano-Borbalan J., Encyclopédie

de la formation, Paris, PUF, Démos, 2009.

Bergson H, L’évolution créatrice, 11e édition, Paris, QUADRIGE / PUF, 2009.

Campbell J., Le héros aux mille et un visage, Paris, Oxus, 2010.

Castel R., Les Métamorphoses de la question sociale : une chronique du salariat,

Paris, Fayard, coll. L’espace du politique, 1995.

Crema R., Antigos e Novos Terapeutas – abordagem transdisciplinar em terapia,

Petrópolis, Editora Vozes, 2002.

Déclaration de Vancouver sur la suvie en 21e siècle, Colloque sur La science

et la culture pour le 21e siècle : un programme de survie, Vancouver, Canada,

10-15 septembre 1989.

Declaration de Venise, Colloque de Venise : La Science face aux confins de la

connaissance : le prologue de notre passé culturel, Rapport Final, UNESCO,

1986.

Delors J. et collaborateurs, L’Éducation : un trésor est caché dedans, Rapport à

l’UNESCO de la Commission internationale sur l’éducation pour le vingt et

unième siècle, L’Éducation en devenir, Paris, Éditions UNESCO, 1999.

Delory-Momberger C., La condition biographique, Essais sur le récit de soi dans

la modernité, coll. (Auto)biographie & Éducation, Paris, Téraèdre, 2009.

Delory-Momberger C., Biografia e Educação – Figuras do indivíduo-projeto,

Prefácio Pierre Dominicé, São Paulo/Natal, PAULUS/Editora da UFRN, 2008.

Delory-Momberger C., Histoire de vie et Recherche biographique en éducation,

Preface de Wulf C., Anthropos, Ed. Economica, 2005.

Delory-Momberger C., Les histoires de Vie – De l’invention de soi au projet de

formation, Preface de Fabre M., Anthropos, Ed. Economica, 2004.

Delory-Momberger C., Un autre regard : l’approche biographique en formation,

In : Barbier J.-M.; Bourgeois E. ; Chapelle G. ; Ruano-Borbalan J.,

Encyclopédie de la formation, Paris, PUF, Démos, 2009.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

35

Delory-Momberger C.; Hess R., Le sens de l’histoire – Moments d’une

biographie, Anthropos, Ed. Economica, 2001.

Delory-Momberger C. ; Niewiadomsky C. (dir.), Vivre/Suivre, Récits de

résistence, coll. «(Auto)biographie & Éducation, Paris, Téraèdre, 2009.

Dilthey W., L’édification du monde historique dans les sciences de l’esprit,

Traduit et présenté par Sylvie Mesure, Paris, Les Éditions du CERF, 1988.

Dominice P., L’Histoire de Vie comme Processus de Formation, Nouvelle

édition, revue et augmentée, Defi Formation, Paris, L’Harmattan, 2002.

Dominicé P., Les histoires de vie : une aventure intellecutelle plurielle et

singulière, In : Barbier J.-M.; Bourgeois E. ; Chapelle G. ; Ruano-Borbalan

J., Encyclopédie de la formation, Paris, PUF, Démos, 2009.

Droit R-P. (dir.), Philosophies D’Ailleurs Tome I – Les Pensées Indiennes,

Chinoises et Tibétaines, Paris, Hermann Éditeurs, 2009.

Frankl V., Um sentido para a vida, Aparecida, Ed. Santuário, 1989.

Freire P., Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975.

Gaulejac V., Entre modernité et hypermodernité : du Sujet de l’Histoire au sujet

de l’histoire de vie, In : Delory-Momberger C. ; Niewiadomsky C. (dir.),

Vivre/Suivre, Récits de résistence, coll. «(Auto)biographie& Éducation, Paris,

Téraèdre, 2009.

Goethe, Les Années d’apprentissage de Wilhelm Meister, Édition de Bernard

Lortholary, Paris, Éditions Gallimard, 1999.

Graf-Durckheim K., L’Homme et sa double origine, Paris, Albin Michel, 1995.

Grof S., Pour une psychologie du futur, Paris, Dervy, 2002.

Heidegger M., Introduction à la métaphysique, traduit de l’allemand et présenté

par Gilbert Kahn, Paris, Gallimard, 1967.

Hautin C.; Billier D., Etre compagnon, coll. Major, Paris, Presses Universitaires

de France, 2000.

Héraclite, Fragments, trad. Roussile F., Fragment 51, Suilly-la-Tour, Éditions

Findakly, 1986

Hessel S., Indignez-vous!, Montpellier, Indigène éditions, 2011.

Hobbes T., Léviathan ou Matière, forme et puissance de l’État chrétien et civil,

Paris, folio essais, Éditions Gallimara, 1964.

Huston N., L’espèce fabulatrice, Collection Un Endroit ou Aller, Arles, Actes Sud,

2008.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

36

Jaspers K., Les grands philosophes Tome 1. Socrate, Boudha, Confucius,

Jésus, Paris, Pocket, 2009.

Jullien F., La pensée fondatrice de la Chine, In Droit R-P. (dir.), Philosophies

D’Ailleurs Tome I – Les Pensées Indiennes, Chinoises et Tibétaines, Paris,

Hermann Éditeurs, 2009.

Jung C. G., L’Ame et la Vie, Textes essentiels réunis et présentés par Jolande

Jacobi, Traduit de l’allemand par le Dr Roland Cahen et Yves Le Lay, Paris,

Éditions Buchet/Chastel, 1963.

Jung C. G., Ma vie – Souvenirs, rêves et pensées, Recueillis et publiés par

Aniéla Jaffé, Nouvelle édition revue et augmentée d’un index, Paris,

Gallimard, 1973.

Jung C.G., A prática da psicoterapia, Petrópolis, Editora Vozes, 1981.

Jung C.G., Commentaire sur le Mystère de la Fleur d’Or, Collection « Spritualiités

vivantes », Paris, Éditions Albin Michel, 1994.

Jung C.G., Tipos Psicológicos, Obras Completas, Vol. VI, Petrópolis, Vozes,

1981.

Kant E., Vers la paix perpétuelle – texte intégral, Paris, Hatier, 2002.

Koestler A., La quête de l’absolu, Commentaires d’Arthur Koestler traduits par

Georges Fradier et Muriel Zygband, Paris, Calmann-Lévy, 1981.

Koestler A., O fantasma da máquina, São Paulo, Zahar, 1969.

Krihnamurti J., La première et dernière liberté, Paris, Stock, 1995.

Kuhn T., La structure des Révolutions Scientifiques, Paris, Flammarion, 2008.

Lao-tseu, Tao-tö king, Traduit du chinois par Liou Kia-hway, Paris, Gallimarad,

1967.

Laszlo E., Conexão Cósmica, Petrópolis, Editora Vozes, 1999.

Le Blanc G., Les maladies de l’homme normal, VRIN Matière Étrangère, Paris,

Librairie Philosophique J. VRIN, 2007.

Le Grand J.-L., Implexité : implication et complexité, Paris, Université Paris 8 (en

ligne) http :llwww.fp.univ-paris8.fr/recherches/JOOeGrandimplexite.html

(consulté le 06/08/11).

Lejeune P., Le pacte autobiographique, Nouvelle édition augmentée, Paris,

Éditions du Seuil, 1996.

Maslow A. H., Vers une psychologie de l’être, Paris, Fayard, 1972.

Morin E., La méthode 1. La Nature de la Nature, Paris, Éditions du Seuil, 1977.

Morin E., La méthode, 5. L’humanité de l’humanité, L’identité humaine, Paris,

Éditions du Seuil, 2001.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

37

Morin E., Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro, São Paulo,

Cortez Editora, Brasília, UNESCO, 2002.

Morin E., Science avec conscience, nouvelle édition, Paris, Fayard/Seuil, 1990.

Nicolescu B., La Transdisciplinarité – Manifeste, Transdisciplinarité, coll. dirigée

par Basarab Nicolescu, Paris, Éditions du Rocher, 1996.

Nicolescu B., Qu’est-ce que la réalité ? Réflexions autour de l’oeuvre de

Stéphane Lupasco, Montréal, Liber, 2009.

Nicolescu B., Vers une éducation transdisciplinaire, In : Welter R. (dir.),

Transdisciplinarité – Un chemin vers la paix, Paris, Éditions F.B.V. pour le

C.N.R.S., 2003.

Pacheco Amaral M.N.C., Dilthey: um conceito de vida e uma pedagogia, São

Paulo, Perspectiva e USP, 1987.

Paul P. et Pineau G (coord.), Transdisciplinarité et Formation, Paris,

L’Harmattan, 2005.

Paul P., Sujet et violence, paix et transdisciplinarité, In : Welter R. (dir.),

Transdisciplinarité, Un chemin vers la paix, Paris, Éditions F.B.V. pour le

C.N.R.S., 2003.

Pessoa F., Livro do Desassossego, Vol. II, Recolha e transcrição dos textos de

Maria Aliete Galhoz e Tereza Sobral Cunha, prefácio e organização de

Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Ática, 1982.

Pineau G.; Le Grand J-L., Les Histoires de Vie, Collection Que sais-je ?, Paris,

PUF, Presses Universitaires de France, 1993.

Ricoeur P., Parcours de la reconnaissance, Collection Folio Essais, Paris,

Gallimard, 2004.

Ricoeur P., Temps et récit 1. L’intrigue et le récit historique, Paris, Éditions de

Seuil, 1983.

Rogers C., On Becoming a Person, A therapist’s view of Psychoterapy,

Introduction by Peter D. Kramer, M.D., Boston-New York, Houghton Mifflin

Company, 1995.

Rogers C., Um jeito de ser, São Paulo, Ed. E.P.V., 1983.

Rousseau J.-J., Discours sur les sciences et les arts, Paris, folio essais, Éditions

Gallimard, 1964.

Sagan C., Os Dragões do Éden, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1987.

Serizel J. ; Roudaire A. (coord.), André de Peretti : rencontres et compagnnages

franco-marocains, Entretien avec Gaston Pineau, Préface de Mohammede

Melyani, Postface de Gaston Pineau, Paris, L’Harmattan, 2011.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

38

Smuts J., Holism and evolution, The original source of the holistic approach to

life, Michigan, Sanford Holst, 1999.

Soler R., Universidad de Síntesis, Buenos Aires, Depalma, 1984.

Thoreau H. D., Walden ou la vie dans le bois, Paris, Flammarion, 1990.

Weil P., L’art de vivre en paix – Manuel d’éducation pour une culture de la paix,

Paris, Collection Cultures de Paix, Paris, Éditions UNESCO/UNIPAIX, 2001.

Weil P., L’Art de vivre la vie, Traduit du portugais (Brésil) par Monique Le Moing,

Paris, Éditions du ROCHER, 2001.

Weil P., Nova Linguagem Holística, Rio de Janeiro, Espaço e Tempo/Cepa,

1987.

Weil P.; Leloup J.-Y.; Crema R., Normose, a patologia da normalidade,

Campinas, Verus Editora, 2003.

Welter R. (dir.), Transdisciplinarité – Un chemin vers la paix, Paris, Éditions

F.B.V. pour le C.N.R.S., 2003.

Wilber K., O espectro da consciência, São Paulo, Cultrix, 1990.

Wilhelm R., Yi King, Le Livre des transformations, Paris, Librairie de Médicis,

1986. .

.

Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015

39