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Revista Pontifex: ciência, filosofia, arte e tradições sapienciais www.revistapontifex.org.br Volume 01, Número 02 | Ano 2015
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A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO1
Roberto Crema2
“Torne-se quem você é.”
Lema do Bildungsroman, segundo Michel
Fabre3.
I - Histórias de vida Só existe uma história e toda história é única. A
existência de cada ser humano é a representação
singular de uma mesma epopeia: da humanidade
que somos, do mistério que encarnamos.4
O ser humano é inacabado. Esta concepção remonta a Confúcio (551-479 a.C.), que
falava da nobreza humana como o produto de uma tarefa educativa. “Tudo o que é
bom, belo, verdadeiro, se encarna, para Confúcio, no ideal do nobre, aquele que se
educa a si mesmo”, afirma o filósofo Karl Jaspers (1883-1969)5. Diferenciando-se dos
animais, que são o que são graça aos instintos, a missão do ser humano é a de se
tornar, real e plenamente, humano. Na visão confuciana, além da edificação de uma
comunidade e da superação dos instintos, um mesmo dever une toda a humanidade:
tornar-se humano. Eis como o mestre resumiu o seu próprio percurso de aprendizado e
de autorrealização, segundo a tradução de Fançois Jullien6:
“Aos quinze anos, apliquei-me aos estudos. Aos trinta, coloquei-
me solidamente de pé. Aos quarenta, eu superei as minhas incertezas.
1 Texto traduzido do francês pelo autor, extraído do documento final da sua pesquisa Pour une
Education à la Paix – Impact de la formation holistique de base sur la biographisation des parcours, do Master II Europeen de Recherche, pela université Paris 13, em parceria com a université Louvain-la-Neuve (Bélgica), a université de Genève (Suíça) e o Cnam (França), realizado em Paris, 2009-2012.
2 Contato: [email protected] 2 Texto traduzido do francês pelo autor, extraído do documento final da sua pesquisa Pour une
Education à la Paix – Impact de la formation holistique de base sur la biographisation des parcours, do Master II Europeen de Recherche, pela université Paris 13, em parceria com a université Louvain-la-Neuve (Bélgica), a université de Genève (Suíça) e o Cnam (França), realizado em Paris, 2009-2012.
2 Contato: [email protected] 3 In: Delory-Momberger C., Les Histoires de Vie – De l’invention de soia u projet de formation – Préface de Michel Fabre, Paris, Antrhropos, E. Economica, 2001, p. XI. 4 Crema, R., Saúde e plenitude: um caminho para o ser, São Paulo, Summus, 1995, p. 13. 5 Jaspers K., Les grands philosophes Tome I. Socrate, Boudha, Confucius, Jésus, Paris, Pocket, 2009, p. 222. 6 Jullien, F., La pensée fondatrice de la Chine, In Droit R-P. (dir.), Philosophies D’Ailleurs Tome I
– Les Pensées Indiennes, Chinoises et Tibétaines, Paris, Hermann Éditeurs, 2009, p. 200-2001.
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Aos cinquenta, eu tomei consciência dos preceitos do Céu. Aos sessenta,
eu os escutava de maneira dócil. Agora, aos setenta anos, eu sou o que
deseja o meu fórum interior, sem jamais desviar-me do caminho justo.”
O eminente educador brasileiro, Paulo Freire (1921-1997)7 – que afirmava que
ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho; nós nos educamos em comunhão,
por intermédio do mundo -, através da sua abordagem crítica e emancipadora de uma
pedagogia do oprimido, ao longo de toda a sua obra afirma o fato inelutável do
inacabamento humano. Para Freire, a razão de ser da educação reside no fato da nossa
incompletude, uma carência que solicita um processo pedagógico centrado na
comunicação e no diálogo, para que a pessoa engendre a sua própria palavra e evolua
da condição de mero objeto das circunstâncias para o estatuto de sujeito da própria
existência. Enfim, como sustentava o filósofo Kant, o ser humano se caracteriza por ser
educável e aperfeiçoável.
O ser humano é uma história potencial a ser inventada e partilhada. Entretanto,
do ponto de vista histórico, a consciência de indivíduo é bastante recente. Nos tempos
primevos os poderes cósmicos, divinos e coletivos, se expressavam através do humano,
então destituído de singularidade íntima e de mentalidade própria. No contexto europeu,
a irrupção da individualidade e a ousadia de afirmar o “eu” ocorreu apenas no final da
Idade Média, caracterizada por certa independência dos laços ritualísticos, culturais e
sociais.
Como um ser a quem falta um sujeito, resta-nos a nobre tarefa de construí-lo.
Christine Delory-Momberger8, uma referência internacional da abordagem qualitativa e
hermenêutica da pesquisa biográfica, fala na invenção do sujeito, como a emergência
de uma palavra singular, edificadora de uma identidade, irredutível a qualquer outra.
Talvez cada ser humano exista para contar uma história, seja banal, seja
grandiosa, pouco importa, mas uma história singular, que ninguém poderá contar por
ele. Caso não a conte, ela se perderá para sempre. Contando-a, nós nos tornamos
autores de um processo dinâmico de autopoiese – a capacidade do ser vivo se produzir
a si próprio, segundo Maturana e Varela9 -, sempre inacabado e em permanente
reconstrução.
Seguindo este objetivo, a abordagem biográfica, com a sua riqueza de conceitos
– história de vida, relato de vida, relato de si, relato etnográfico, relato de práticas, etc.
– representa um vasto horizonte de pesquisa e de hermenêutica, aberto ao universo
entrelaçado da sociologia, da etnologia, da história, da educação-formação, da
literatura, da religião e da filosofia. Como afirma Delory-Momberger10, trata-se de
interrogar “a maneira como os indivíduos se tornam indivíduos”, bem como a função da
7 Freire, P., Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975. 8 Delory-Momberger C., op. cit., p. 9. 9 Maturana R.H.; Varela G.F.; Acuña L.J., De máquinas e seres vivos: autopoiese: a organização do vivo, Porto Alegre, Artes Médicas, 1997. 10 Delory-Momberger C., Histoire de vie et Recherche biographique em éducation, Preface de Wulf C., Paris, Anthropos, Ed. Economica, 2005, p. 13.
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atividade biográfica no processo de aculturação, de socialização e na produção da
realidade histórica, social e cultural.
Segundo Gaston Pineau e Jean-Louis Le Grand11, a história de vida é, ao mesmo
tempo, pesquisa e construção de sentido, que implica um processo de expressão e de
experiência. Esta clara e específica definição, de acordo com os autores, estende o
território da escrita de si para além do espaço da grafia, não se circunscrevendo aos
meios escritos, a exemplo da biografia, da autobiografia, do jornal íntimo, do diário de
bordo, entre outros, buscando integrar a palavra escrita ao contexto da comunicação
oral da vida. Abre-se, também, para outras formas atuais da grande mídia, a exemplo
do teatro, do cinema, do rádio, da televisão e da internet, que ampliam enormemente as
possibilidades de comunicação e de expressão. Por outro lado, como “práticas
autopoiéticas de pesquisa e de construção de sentidos a partir de fatos temporais
pessoais”, esta abordagem remonta ao bios socrático, como uma arte de gerar
conhecimentos. Para Pineau e Le Grand, as histórias escritas de vida já existiam na
tradição grega, no V século antes de Cristo.
Na sua obra, Les Histoires de Vie – De l’invention de soi au projet de formation12,
Delory-Momberger retraça um vasto e erudito itinerário da narrativa do sujeito na história
ocidental. Esta aventura começa com a figura do cidadão da polis grega do IV século
A.C., quando a pessoa era definida por sua posição na praça pública. Nesta ocasião, a
biografia constituía o elogio de uma existência exemplar ou uma forma de registrar um
caminho rumo à sabedoria – como testemunham as célebres obras consagradas à vida
de Sócrates – segundo o princípio aristotélico de enteléquia como essência da alma, o
ato final perfeito ou a realização plena da potência. Nesta concepção, todas as coisas
portam o seu fim, desde a sua origem.
Este processo continua através dos escritos pessoais e as práticas de si de
Roma, no primeiro século A.C., com os primeiros vestígios autobiográficos
personalizados, além da cena pública, endereçada a um círculo íntimo de familiares e
de amizades, onde a forma mais utilizada era a correspondência – como as Letras à
Atticus, de Cícero, e mais tarde, A Correspondência de Plínio, o Jovem – até as
hagiografias, relatos da vida dos santos, do cristianismo, a partir do IV século D.C., onde
ocupa um lugar de destaque A Vida de Santo Antão (251-356), escrita por Atanásio; a
de São Bento (480-547), relatada por São Gregório Magno e a paradigmática obra do
Santo Agostinho (354-430), Confissões, centrada num relato de conversão, considerada
como a primeira autobiografia, que simboliza o marco de passagem entre a Antiguidade
e a Idade Média.
Considerando a diversidade de expressões da consciência de si da Idade Média,
Delory-Momberger afirma que as funções do rei, do imperador, do papa, do cavaleiro e
do santo eram as mais representativas nas pinturas e esculturas da época, numa
sociedade baseada em personagens com status quo bem definidos pelo modelo feudal.
Neste contexto, há um destaque especial para a hagiografia e a epopeia, centradas,
respectivamente, nas figuras do santo e do herói. Uma real e significativa mudança
11 Pineau G.; Le Grand J-L., Les Histoires de Vie, Collection Que sais-je ?, Paris, PUF, Presses Universitaires de France, 1993, p. 3-4. 12 Delory-Momberger C., op. cit, p. 15-31.
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ocorre com a emergência do mundo do trabalho, do dinheiro e do mercado dos
burgueses, os habitantes das vilas comerciais ou burgos, por ocasião da decadência
feudal e do crescimento urbano, que conquistam uma independência com relação aos
poderes senhoriais da igreja da época. “Coletiva e individualmente, o burguês é aquele
que se faz a si mesmo: espaço social e espaço individual se reunindo num mesmo
sentimento de apropriação de si mesmo”, afirma a autora13.
Com a Renascença e a sua explosão de mudanças, as portas se abrem para
uma dinâmica crescente do processo de individualização, com a imperativa valorização
de uma educação integral, ao mesmo tempo intelectual, moral e espiritual, em outras
palavras, holística. Na excelente síntese de Delory-Momberger14, “Todos os grandes
espíritos da Renascença – de Erasmo a Lutero, de Castiglione à Maquiavel, de Rebalais
à Montaigne – se ocuparam da educação, sinal de um tempo onde a educação não era
uma atividade de pedagogos, mas se colocava na própria definição do ser humano. O
ser humano era considerado, na realidade do seu ser, corpo e espírito ao mesmo tempo
e este ser era considerado aperfeiçoável.” Eis um aspecto muito significativo e inspirador
para os tempos atuais, deste período marcante da história europeia, de passagem da
Idade Média para a Moderna, caracterizado pela redescoberta do mundo e do humano.
Seguiu-se, então, um movimento de defesa do íntimo com relação ao homem da
corte, que predominou durante os séculos XVII e XVIII, em torno da dominante
celebração da pessoa real, o Rei Solar, quando as práticas das memórias e do jornal
íntimo abriram espaço para os relatos de si15.
No Iluminismo, Era da Razão, expandiu-se um movimento de intercâmbio
intelectual, que valorizava a capacidade do sujeito de pensar por si mesmo, como
perene aprendiz, na perspectiva de um progressivo aperfeiçoamento evolutivo a partir
da experiência: a formação de si, de acordo com Delory-Momberger16. Nesta época,
surgiu o romance de formação, uma narrativa centrada no percurso de transformação
do indivíduo na sociedade, contendo lições de vida sobre maneiras de ser e de sentir
que, progressivamente, formam uma personalidade. “Les Années d’apprentissage de
Wilhelm Meister”, de autoria de Goethe (1749-1832)17, é considerada a mais famosa e
genial obra do movimento precursor holístico do Romantismo alemão, denominado de
Bildungsroman. Trata-se de um relato, tecido de forma magistral e bem humorada, sobre
o itinerário iniciático de um jovem a procura de sua própria alma, sempre acompanhado
pela presença charmosa e inspiradora de uma mulher. O herói logra a maturidade ao
longo de um processo de desilusões, finalmente realizando-se a si mesmo e se
consagrando ao serviço à comunidade.
A concepção do romance de formação encontra grande ressonância na obra
clássica contemporânea de Joseph Campbell18 (1904-1987), sobre o herói das mil faces,
suportada no conceito do monomito, segundo o qual todos os mitos seguem os mesmos
13 Delory-Momberger C., op. cit., p. 36-45. 14 Delory-Momberger C., op. cit., p. 50-52. 15 Delory-Momberger C., op. cit., p. 64-74. 16 Delory-Momberger C., op. cit., p. 75-81. 17 Goethe, Les Années d’apprentissage de Wilhelm Meister, Éditions de Bernard Lortholary, Paris, Éditions Gallimard, 1999. 18 Campbell J., Le héros aux Mille et um visage, Paris, Oxus, 2010.
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esquemas arquetípicos: após um chamado à aventura, o herói mítico abandona o seu
ambiente familiar, confrontando-se com o guardião do portal, atravessando uma série
de provações num singular caminho inventado pelos próprios passos, até a conquista
emancipadora do objeto da sua busca. Então, apaziguado e coroado de êxito, ele
retorna ao seu local de origem, completamente transformado pelo seu percurso
iniciático.
Falando sobre o nascimento da autobiografia moderna, Delory-Momberger19
ressalta a importância da religião do íntimo, ou seja, um movimento de espiritualidade
de retorno a uma fé mais simples e mais interior, a partir de um aprofundamento da
ligação direta com Deus, a exemplo do molinismo espanhol e do quietismo francês – do
lado do catolicismo – e do pietismo alemão e do metodismo anglo-saxão – do lado do
protestantismo. Interessante constatar que uma escrita gerada pela necessidade de
uma comunicação transpessoal, sem intermediário, com a Fonte do Ser, encontra-se na
origem da narrativa biográfica.
Na tradição francesa, As Confissões, de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778),
uma defensiva e apologética resposta do seu autor a Voltaire (1694-1778), seu ardente
crítico, que o acusou de ter abandonado os seus filhos, conforma um marco no gênero
da escritura de si e de desvelamento do íntimo. Com um modelo de narrativa ao mesmo
tempo psicológico e ideológico, Rousseau “forneceu à infância o seu estatuto de
fundação do ser singular”, afirma Delory-Momberger20.
A dinâmica da construção do sujeito prossegue o seu curso, após a Revolução
Francesa e a Revolução Industrial, a partir de uma burguesia liberal que se impõe, com
os seus valores que mesclam o espaço do mundo com o familiar, no contexto de uma
ordem social patriarcal. Assim, um movimento intimista se afirma, com a
correspondência e o jornal praticado, dominantemente, pelas mulheres, neste processo
que Delory-Momberger21 denomina de invenção do sujeito.
II – Wilhelm Dilthey: hermenêutica e compreensão “Cada vida tem um sentido que lhe é próprio. Este
reside num conjunto de relações significativas, no
seio do qual cada momento presente, suscetível de
ser relembrado, possui um valor particular, mas
tem, ao mesmo tempo, quanto ao seu conteúdo,
uma relação no sentido da totalidade”.
Wilhelm Dilthey22
O movimento alemão da Bildung, com a contribuição paradigmática de Wilhelm Dilthey
(1833-1911), foi introduzido na abordagem biográfica francofônica por Delory-
19 Delory-Momberger C., op. cit., p. 82-85. 20 Delory-Momberger C., op. cit., p. 96-97. 21 Delory-Momberger C., op. cit., p. 133. 22 Dilthey W., In: Delory-Momberger C.; Hess R., Le sens de l’histoire – Moments d’une biographie, Anthropos, Ed. Economica, 2001, p. 29.
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Momberger. Como afirma Pierre Dominice, um dos pioneiros desta visão na Suíça, no
seu livro, L’Histoire de Vie comme Processus de Formation23, o enfoque significativo
desta autora, em razão do seu duplo pertencimento franco-germânico introduziu, no
mundo francofônico, a perspectiva hermenêutica da Bildung, propondo uma leitura
histórica e crítica de diferentes correntes biográficas que marcaram o pensamento
ocidental.
De acordo com Delory-Momberger, o conceito de Bildung foi desenvolvido no fim
do século XVIII, pelos filósofos do Iluminismo alemão, sobretudo Herder, Schelling,
Humbold e Goethe. Este conceito se inscreve no pensamento da totalidade, como um
movimento de formação de si, através da qual a singularidade de cada ser humano pode
se expressar, com suas características próprias e na perspectiva de um valor universal,
rumo à plena realização. Encontrando-se no coração do cosmos, ao mesmo tempo o
ser humano participa do desenvolvimento do mundo que se realiza, também, no seu
interior. “A Bildung concebe o desenvolvimento humano segundo um modelo
diretamente tomado emprestado das ciências da natureza, assimilando o humano a um
organismo vivo, mantido e alimentado por trocas com o seu meio, como um germe que
cresce e floresce segundo suas próprias forças e disposições, respondendo às
imposições e solicitações do seu meio ambiente”, sustenta Delory-Momberger24.
Na sua abordagem centrada na pessoa, Carl Rogers (1902-1987)25 desenvolveu
uma metáfora também extraída da botânica, referindo-se a uma semente de auto
realização e de auto regulação que existe no interior de cada ser humano, que necessita
apenas de um terreno fértil para desenvolver-se. Por outro lado, C. G. Jung26 afirma a
concepção da vida semelhante a uma planta, cuja vitalidade é impulsionada a partir do
próprio rizoma: propriamente dita, a vida do vegetal não é visível, pois jaz no cerne do
rizoma. O que se torna visível, acima do solo, sobrevive um só verão, para desvanecer-
se, em seguida. O que vemos é apenas a floração, que é efêmera, sendo que o rizoma
persiste, perenemente.
Inspirando-se nos trabalhos do filósofo, hermeneuta das escrituras sagradas e
inspirador do romantismo, Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834), Dilthey
participou deste movimento artístico e cultural alemão de libertação do eu e de reação
ao monopólio da razão do Iluminismo. Tendo o seu nome derivado do romance de
formação, este processo de renovação introduziu, no cenário da consciência, o
sentimento, a experiência profunda da alma, o segredo e uma motivação rumo à união
dos contrários. De forma surpreendente e visionária a sua natureza é essencialmente
holística e, mesmo, prototransdisciplinar.
Como descreve Delory-Momberger27, o romantismo foi um processo de geração
de uma consciência do mundo, que resgatou as grandes questões que apontam para o
23 Dominice P., L’Histoire de Vie comme Processus de Formation, Nouvelle édition, revue et augmentée, Defi Formation, Paris, L’Harmattan, p. 8. 24 Delory-Momberger C., Histoire de vie et Recherche biographique en éducation, Preface de Wulf C., Anthropos, Ed. Economica, 2005, p. 29-30. 25 Rogers C., Um jeito de ser, São Paulo, Ed. E.P.V., 1983. 26 Jung C.G., Ma vie – Souvenirs, rêves et pensées, Recueillis et publiés par Aniéla Jaffé, Nouvelle édition revue et augmentée d’un index, Paris, Gallimard, 1973, p. 22. 27 Delory-Momberger C., op. cit., p. 143-147.
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lugar do ser humano no universo e a questão do sentido da existência, abrindo espaço
para um processo mental de integração da reflexão com a ação, da filosofia com a
religião, da poesia com a ciência, insurgindo-se contra as representações mecanicistas
da natureza, típicas da ciência clássica, modeladas pelo Iluminismo. A autora cita
Georges Gusdorf, que demonstrou o globus intellectualis romântico, com a sua busca
ousada de um saber total, ao mesmo tempo desvelando uma teoria de conhecimento,
uma antropologia, uma cosmologia e uma visão aberta para uma consciência universal
do ser humano e do universo. A sua fonte filosófica, além das pesquisas de
Schleiermacher, também se encontram nos autores da Naturphilosophie, uma filosofia
da natureza, preconizada pelo gênio de Friedrich Wilhelm Joseph Von Schelling (1775-
1854), do idealismo alemão, nobre antecedente do movimento da ecologia profunda e
da ecopsicologia. Enfim, esta visão do humano e do mundo, destacando o valor da
experiência individual e conciliando a parte com a totalidade, representou um marco
para os modelos de compreensão das ciências históricas da Alemanha, tendo o seu
ponto culminante na obra de Dilthey.
Com a sua célebre afirmação, “A natureza, nós explicamos; a vida psíquica, nós
compreendemos”, Dilthey fundou as ciências do espírito – posteriormente denominadas
de ciências humanas – em contraposição às ciências da natureza -, considerando o ser
humano como uma unidade, muito além de um simples conglomerado de átomos. “As
ciências do espírito repousam sobre a relação da experiência vivida, da expressão e da
compreensão. (...) Vida, experiência de vida e ciências do espírito encontram-se, assim,
constantemente em relação de coesão interna e de dependência recíproca”, afirma
Dilthey, no seu livro inacabado, L’édification du monde historique dans les sciences de
la nature. Segundo a sua tradutora e apresentadora, Sylvie Mesure28, esta obra é
centrada em três aspectos: a autonomia das ciências do espírito com relação às ciências
da natureza, que representa o seu tema principal; a questão da orientação holística de
uma pesquisa que, por apreender a realidade espiritual, assume uma visão do mundo
histórico como uma totalidade composta de conjuntos interativos, tendo por fundamental
tarefa a compreensão do todo a partir dele mesmo e, finalmente, a determinação do
valor cognitivo das aquisições da ciência do espírito e em que medida ela pode
engendrar um saber científico objetivo.
O filósofo e sociólogo alemão, Jürgen Habermas29, destaca que a obra de Dilthey
desvelou que, ao lado das ciências naturais, um feixe de conhecimentos – a história, a
economia, a política, o direito, o estudo da religião, da literatura, da poesia, da
arquitetura, da música, das visões do mundo, dos sistemas filosóficos e da psicologia –
são interligados entre si por um objeto comum: a espécie humana. Desta forma,
alertando contra o risco da naturalização do espírito, Dilthey apontava para a totalidade
irredutível da vida da alma, fonte de todos os fatos humanos, a partir de um saber
imediato, livre do jugo e arbítrio do método científico natural e do positivismo,
prescrevendo dois caminhos complementares: o da descrição da vida e o da
compreensão da vida por si mesma.
28 Dilthey, W., L’édification du monde historique dans les sciences de l’esprit, Traduit et présenté par Sylvie Mesure, Paris, Les Éditions du CERF, 1988, p. 6. 29 Habermas, J., Conhecimento e interesse, Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
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Dilthey rejeitava a visão teleológica da história, como também a perspectiva
idealista e metafísica de Hegel (1770-1831) e o evolucionismo de Spencer (1820-1903),
postulando uma Crítica da Razão histórica, onde o humano é um ser historial e um
horizonte aberto de possibilidades; há uma identidade entre o explorador e quem faz a
história. A abordagem diltheyana insiste sobre a historicidade da razão e da consciência
humana: o ser humano apenas pode se compreender no processo histórico. Dilthey,
numa passagem brilhante, de acordo com Mesure30, sugere que é na consciência de si
mesmo, como vontade, que se enraíza no ser humano a necessidade de produzir um
limite entre o reino da natureza e o da história, o que solicita o desafio da elaboração de
uma epistemologia específica das ciências históricas. Percebendo, em si mesmo, a
soberania da própria vontade, o sujeito assume a responsabilidade dos seus atos, sendo
capaz de resistir às propensões e pressões da natureza no seu próprio interior. Emerge,
então, o princípio da sua liberdade, diferenciando-o de uma realidade natural submissa
aos determinismos: a sua singularidade de se cogitar como espírito e como vida. Na
visão diltheyana o campo da história é aquele no qual se opera uma fenomenologia da
liberdade. A partir do estabelecimento da fronteira entre ciências históricas e ciências
físicas, a história torna-se o lugar privilegiado de passagem entre natureza e liberdade.
Na filosofia de Dilthey a vivência é a unidade viva do mundo histórico-social: no
seu nexo encontra-se o significado, já que há de existir sentido onde houver vida. Nesta
visão, a consciência dita o valor da experiência, que é o elemento criador da atividade
psíquica superior: é do interior que o sujeito vivencia a realidade, sendo a compreensão
um ato onde experiência e teoria se entrelaça. Enquanto eventos naturais podem ser
explicados através de hipóteses nomológicas, segundo o método analítico, os
complexos simbólicos são compreendidos a partir da interioridade relacional e da
intersubjetividade, de acordo com o método hermenêutico. Enquanto a natureza se
explica a alma se implica, se assim podemos resumir um postulado básico diltheyano.
A abordagem compreensiva de Dilthey suporta-se, por um lado, numa
epistemologia do reconhecimento do humano pelo humano, segundo a experiência
vivida e, por outro, num postulado da compreensão da vida a partir dela mesma. Esta
compreensão ocorre por meio de um princípio de inteligibilidade narrativa, para a
apreensão de um sistema holístico de relações entre as partes e o todo, a partir de um
complexo de conjuntos interativos, onde os significados nascem sempre da relação
entre o fator parcial e o total. Segundo Delory-Momberger31, estes conjuntos interativos
são dinâmicos, num processo de permanente recomposição, como verdadeiros
operadores de sentidos, num exercício hermenêutico sempre inacabado.
Considerando a importância da biografia como um texto particular representativo
do texto universal e, sobretudo, como manifestação do ato de compreender a vida e o
paradigma mesmo da inteligibilidade humana, Dilthey desenvolveu um tipo de pesquisa,
iniciada por Schleiermacher, que ele denomina de círculo hermenêutico. Trata-se de um
modelo de interpretação que exprime a estrutura circular, a partir da concepção da vida
como um ritmo todo-parte, na busca da compreensão histórica: um processo de ir-e-vir
da parte ao todo e do todo à parte. René Barbier32 afirma que a explicação destrói a
30 Dilthey, W., op. cit., p. 7-12. 31 Delory-Momberger C., op. cit., p. 156. 32 Barbier R., L’Approche Transversale, L’écoute sensible en sciences humaines, coll. Exploration
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significação e que, para Dilthey, nada há abaixo nem além do que nos é imediatamente
dado, no presente. O significado encontra-se no conjunto de todos os elementos do
contexto, interligados entre si.
Como afirmo em obra anterior33, Dilthey enfatiza a conexão entre vida, expressão
e compreensão: a vivência é estruturada dentro de uma totalidade significativa por
conjuntos simbólicos, ligada às intenções e mediatizada por um ato de apreensão de
sentido. A análise é progressiva e fragmenta um todo que pode ser imediatamente
apreendido pelo saber compreensivo, como demonstra o poeta, que esse filósofo
considerava a antena vital da humanidade. Por outro lado, o filósofo afirma que todo
fragmento de recordação relaciona-se com a psique total, sendo o sentido da existência
singular e irredutível ao conhecimento algo como a mônada postulada por Leibniz. Na
sua concepção, o fundamento das ciências do espírito é o ato-de-se-partir-da-vida: o
presente está pleno do passado e prenhe do futuro, sendo o desenvolvimento de uma
biografia individual caracterizado pela vivência de continuidade e de autonomia
espontânea de um processo vivo.
Enfim, o significado das partes encontra-se na totalidade e esta é compreendida
através de suas parcelas. Vida = Todo + Vida = Partes, segundo uma pertinente fórmula
de Pacheco Amaral34, que destaca esta afirmação do próprio Dilthey: “A ideia
fundamental da minha filosofia é que, até agora, não se colocou uma única vez a
experiência plena e não mutilada como fundamento do filosofar, portanto, nem uma só
vez a realidade plena e total”.
A tradição hermenêutica de Dilthey inspirou inúmeras abordagens, notadamente
a sociologia compreensiva de Max Weber (1864-1920), a microsociologia de Georg
Simmel (1858-1918), a sociologia do conhecimento de Karl Mannheim (1893-1947), as
perspectivas da Escola de Chicago e a sua posteridade americana, através do
interacionismo simbólico e da etnometodologia, entre outras.
III – Relato de vida e biografização de percurso “Tudo que eu não invento é falso”.
Manoel de Barros35
Jamais temos acesso direto à experiência vivida - assim como nunca temos contato com
o sonho sonhado -, que não seja através de um relato, ou seja, graças à mediação da
palavra de si, segundo a lógica de uma razão narrativa, de onde emerge e se organiza
a própria existência humana. É através do ato de se relatar que o ser se torna
propriamente humano, o sujeito de uma história, no processo de reflexão sobre a sua
própria vida.
Interculturelle et Science Sociale, Paris, Anthropos, Ed. Economica, 1997, p. 155-156. 33 Crema, R., Saúde e plenitude: um caminho para o ser, São Paulo, Summus, 1995, p. 21-22. 34 Pacheco Amaral, M. N. C., Dilthey: um conceito de vida e uma pedagogia, São Paulo, Perspectiva e USP, 1987. 35 Barros, M., Memórias Inventadas: a segunda infância, São Paulo, Ed. Planeta, 2003.
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A narrativa introduz, na temporalidade própria e constitutiva da experiência
humana, segundo Delory-Momberger36, uma estrutura de organização particular, uma
sintaxe, sustentada no fator causal e final. Desta forma, o exercício do relato realiza uma
operação de trans-formação, que consiste numa passagem do estado informe do vivido
para a forma de uma história. Nesta concepção, a história e o sentido de uma existência
decorrem do processo da narrativa de si. “Nós não fazemos o relato de nossa vida
porque nós temos uma história; nós temos uma história porque nós fazemos o relato de
nossa vida”, sustenta a autora.
O filósofo da tradição reflexiva, do diálogo e da hermenêutica, Paul Ricoeur
(1913-2005), na sua obra, Temps et récit37, indica que o ato de se inscrever, por meio
do relato, é inerente à condição humana e que é por meio da narrativa que o tempo se
torna tempo humano. Para Ricoeur, é a interpretação que permite a compreensão dos
signos, dos símbolos e dos textos, como uma hermenêutica a serviço da compreensão
de si mesmo: para se compreender, o ser humano deve se interpretar de maneira
narrativa. Para responder à questão “Quem sou eu, este eu que diz eu?”, Ricoeur
desenvolveu o conceito de identidade narrativa, considerando a relação dialética e
complementar entre a identidade no sentido do termo em latim idem, ou mesmidade, e
a identidade como si próprio no sentido de ipseidade (do latim ipse: eu mesmo ou si
mesmo, o caráter singular de um ente, que o distingue de todos os outros), como um
processo dinâmico e mutante. Nesta concepção, todo individuo se constitui por meio de
uma narrativa de si, jamais definitiva, sem cessar renovada e sempre inacabada.
Os dois conceitos, considerados como germes de um grande desenvolvimento,
que Ricoeur tomou de empréstimo a Aristóteles (384 A.C.-322 A.C.) são os de “mise en
intrigue” e o da atividade mimética. Na sua derradeira obra, Parcours de la
reconnaissance38, discorrendo sobre o poder de narrar e de se narrar, Ricoeur afirma:
“Eu coloco em terceira posição, na fenomenologia do ser humano capaz, a problemática
da identidade pessoal ligada ao ato de narrar. Sob a forma reflexiva de ‘se narrar’, a
identidade pessoal se projeta como identidade narrativa. (...) Foi por ocasião da epopeia
e da tragédia, que Aristóteles elaborou a sua noção de ‘mise en intrigue’ – muthos –
visando a ‘representação’ – mimèsis – da ação”.
Com relação à intriga, Ricoeur diz que nós inventamos o meio privilegiado pelo
qual podemos reconfigurar nossa experiência temporal confusa, informe e muda. Para
este filósofo, mise en intrigue é hermenêutica em ação: a operação capaz de transformar
uma sucessão caótica de eventos em configuração dotada de organização e de
coerência. Nas suas palavras, trata-se de um exercício de síntese temporal do
heterogêneo, de modo a “fazer surgir o inteligível do acidental, o universal do singular,
o necessário ou plausível do episódico” 39. É no tecer dinâmico e integrador da intriga
36 Delory-Momberger, C., Um autre regard : l’approche biographique en formation, In : Barbier J.-M. ; Borugeois E. ; Chapelle G. ; Ruano-Borbalan J., Encyclopédie de la formation, Paris, PUF, Démos, 2009, p. 107-108. 37 Ricoeur P., Temps et récit 1. L’intrigue et le récit de la formation, Paris, Éditions de Seuil, 1983. 38 Ricoeur P., Parcours de la reconnaissance, Collection Folio Essais, Paris, Gallimard, 2004, p. 163-164. 39 Ricoeur P., op. cit., p. 85.
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que toma forma o discurso, como um texto inteligível e dotado de nexo e de sentidos,
no qual se manifesta a singularidade de uma história.
No seu livro que trata da condição biográfica, Delory-Momberger40 afirma que é
pela narrativa de si que o ser humano se torna a personagem de sua própria vida,
fornecendo-lhe uma história. Para a autora, o relato não é tão somente um sistema
simbólico, no qual a pessoa pode exprimir os seus sentimentos existenciais; além disso,
a autonarrativa é o espaço mesmo onde a existência toma forma, elaborando-se e
sendo vivenciada na forma de uma história singular. “Não há vida humana sem
narrativa; o ser humano vive a sua vida relatando-a. Para si mesmo e para o outro. (...)
Desde há muito o romance, o cinema, a psicanálise, as ciências humanas em geral e,
mais próximo de nós a biologia e a biogenética desconstruíram a imagem de um sujeito
unificado e de uma identidade biográfica que o curso da vida permitiria edificar sob
medida”, indica a autora. A biografia é um processo de construção por meio da
experiência e pela atividade de integrar, num continuum existencial, o fluxo permanente
de eventos e de situações vividas. “A esta figura de um sujeito, que apenas pode ter
lugar em si mesmo e que somente pode religar o mundo na reflexividade e na
historicidade de sua experiência é que denominamos de condição biográfica”, afirma a
autora.
Um destaque importante é o de não confundir a narrativa com a própria vida, ou
seja, de não colocar a questão da veracidade do relato de vida – o que é proposto por
Philippe Lejeune41, no seu livro clássico, que trata do pacto autobiográfico: “Por
oposição a todas as formas de ficção, a biografia e a autobiografia são textos
referenciais: exatamente como o discurso científico ou histórico, elas pretendem mostrar
uma informação sobre uma “realidade” exterior ao texto submetendo-se, assim, a um
teste de verificação. Seus objetivos não são simples aparências de verdade, mas a
similitude ao verdadeiro”. Opondo-se a esta consideração, Delory-Momberger42 postula
que a abordagem biográfica exclui toda pretensão de veracidade com relação à vida
reportada, não se referindo a vivências passadas reais que são reconhecidas como
certas e verídicas. Mesmo que, numa certa medida, alguns dados factuais de uma vida
possam ser objetivados, as relações entre os fatos narrados e as suas configurações
no relato existencial apenas dizem respeito à mensagem portadora de sentidos de um
sujeito. Há uma relação de adequação entre o vivido e a palavra atual a seu respeito,
caracterizada pela instabilidade e pela dinâmica de uma reconstrução incessante.
Enfim, o ato de rememorar implica, sempre, um processo de recriação, de reconstrução.
Para a autora43, a história de vida é, paradoxalmente, uma ficção verdadeira, ou seja,
uma invenção da verdade do sujeito, que se institui na linguagem, construindo-se na
própria narrativa.
40 Delory-Momberger C., La condition biographique – Essais sur le récit de soi dans la modernité avancée, Paris, Téraèdre, 2009, p. 28-35. 41 Lejeune P., Le pacte autobiographique, Nouvelle édition augmentée, Paris, Éditions du Seuil, 1996, p. 36. 42 Delory-Momberger C., Um autre regard : l’approche biographique en formation, In : Barbier J M. ; Bourgeois E. ; Chapelle G. ; Ruano-Borbalan J., Encyclopédie de la formation, Paris, PUF, Démos, 2009, p. 105. 43 Delory-Momberger C.; Hess R., Le sens de l’histoire – Moments d’une biographie, Anthropos, Ed. Economica, 2001, p. 8.
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No prólogo de sua autobiografia, Ma vie – Souvenirs, rêves et pensées, Jung44
- que considerava que toda teoria psicológica é uma confissão do seu autor – afirma
que o que uma pessoa é segundo a sua intuição interior, e o que o ser humano aparenta
ser sub specie aeternitatis, apenas é possível de se expressar por meio de um mito, que
é mais individual, capaz de exprimir a vida de forma mais precisa do que a ciência, que
trabalha com noções excessivamente medianas e gerais, para poder fornecer uma ideia
mais justa da riqueza diversa e subjetiva de uma existência particular. “Inicio hoje, nos
meus noventa e três anos, a contar o mito da minha vida. Mas apenas posso fazer
constatações imediatas, ‘contar histórias’. Serão elas verdadeiras? Este não é o
problema. Eis a questão: esta é a minha aventura, esta é a minha verdade?”
O fato biográfico, na sua dimensão psicológica, antropológica e social, é o objeto
da pesquisa biográfica. Biografar-se, segundo Delory-Momberger45, é dar à vida, no
sentido etimológico, a forma de uma escritura. Assim, a atividade biográfica adquire a
abrangência e importância de uma via mental e reflexiva privilegiada, por meio da qual
o ser humano pode se representar e se compreender. Na sua definição, o processo de
biografização abrange “um conjunto de operações mentais, verbais e comportamentais,
por meio do qual um indivíduo se inscreve e contribui, por sua vez, a produzir os mundos
sociais nos quais participa. A categoria do biográfico é um princípio de organização que
orienta e estrutura, sob a forma de uma linguagem partilhada e transmissível, a
experiência social cotidiana dos indivíduos, possibilitando a integração e a
interpretação, nas condições de suas inscrições sócio-históricas, das situações e dos
eventos de suas existências”.
Enfim, é através do processo da biografização, como uma hermenêutica prática,
que o sujeito se constrói e fornece um sentido ao seu percurso existencial.
IV – O desafio transdisciplinar “Na perspectiva transdisciplinar, há uma relação
direta e incontornável entre a paz e a
transdisciplinaridade. O pensamento fragmentado
é incompatível com a pesquisa da paz na Terra. A
emergência de uma cultura e de uma educação
para a paz conclama uma evolução transdisciplinar
da educação e, particularmente, da Universidade”.
Basarab Nicolescu46
O conceito de transdisciplinaridade foi introduzido, no meio acadêmico, por Jean Piaget
(1896-1980), por ocasião do I Seminário Internacional sobre Pluri e Interdisciplinaridade,
promovido pela Universidade de Nice, em 1970, referindo-se a possibilidade de um
44 Jung C. G., op. cit., p. 20. 45 Delory-Momberger C., Um autre regard : l’approche biographique en formation, In : Barbier J M ; Bourgeois E. ; Chapelle G. ; Ruano-Borbalan J., Encyclopedie de la formation, Paris, PUF, Démos, 2009, p. 107-109. 46 Nicolescu B., La Transdisciplinarité – Manifeste, Transdisciplinarité, coll. Dirigée par Basarab Nicolescu, Paris, Éditions du Rocher, 1996, p. 203.
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saber comum e mais completo, desvinculado de uma disciplina particular. Nesta mesma
década, este conceito foi trabalhado nas obras de Edgar Morin e de Eric Jantsche (1929-
1980), entre outros pesquisadores, como uma resposta à proliferação disciplinar e à
abordagem da hiperespecialização, que estilhaçam os conhecimentos, levando a um
aumento exponencial do saber, com a perda de uma visão de integração e de um olhar
global sobre a realidade da condição humana.
Basarab Nicolescu que, nas últimas décadas, destacou-se como o grande
mentor da transdisciplinaridade, afirma que, atualmente, há um crescimento
exponencial dos saberes, sem precedente na história conhecida. O acréscimo dos
conhecimentos sobre o Universo e sobre a natureza, reunidos apenas durante o século
XX, ultrapassa enormemente todo o acúmulo do conhecido em todos os séculos
anteriores, a partir de uma escala jamais antes imaginada, que abrange do ínfimo ao
imenso, do infinitamente breve ao infinitamente longo. A grande contradição
evidenciada por Nicolescu é que, na medida em que conhecemos mais a respeito do
que somos feitos, menos compreendemos quem somos. A proliferação, num ritmo
frenético e crescente das disciplinas tem sido acompanhada por um processo de
fragmentação e de esfacelamento que torna cada vez mais ilusória a apreensão de uma
gestalt cognitiva e o ideal de uma unidade do conhecimento. Na medida em que
aumenta nossos conhecimentos sobre o mundo exterior, diminui e nos escapa o
universo da interioridade e o sentido mesmo de nossas existências. “Será que a atrofia
do ser interior é o preço a pagar pelo conhecimento científico? A felicidade individual e
social, que o cientificismo nos prometia, se distancia indefinidamente, como uma
miragem”, sustenta Nicolescu.
De fato, encontramo-nos diante de um perturbador aspecto paradoxal da crise
contemporânea: a existência de uma hipertrofia de informações e de conhecimentos de
acesso amplo, imediato e sem restrições, acompanhada de uma atrofia do processo de
discernimento e de compreensão. Martin Heidegger (1889-1976) lucidamente afirmava
que nenhuma época acumulou conhecimentos tão numerosos e diversos quanto a
nossa, apresentando o saber humano sob uma forma tão pronta e facilmente acessível.
Mas também nenhuma época soube menos a respeito do que é o ser humano! Na visão
heideggeriana, perdemos a capacidade de saber questionar, que implica na arte de
saber aguardar, em função da voracidade pelo que é veloz, facilmente apreensível e
pagável. “Mas não é o número que é essencial; é o tempo oportuno, ou seja, o instante
oportuno e a perseverança oportuna”, conclui Heidegger47.
Há uma surpreendente convergência entre a transdisciplinaridade e a
abordagem da Naturphilosophie, que mencionamos com relação ao movimento do
romantismo. Segundo Nicolescu, certos cientistas, artistas e filósofos perceberam,
plenamente, o perigo mortal do pensamento racionalista e mecanicista, o que
determinou a emergência da corrente antagonista da Naturphilosophie alemã,
sobretudo centrada em torno da revista Athenaeum, com autores como Schelling,
Schlegel, Novalis, Ritter, Goethe, sob uma influência marcante da obra de Jakob
Boehme. “Vista de nossa época. a Naturphilosophie pode aparecer como uma
deformação grotesca e uma manipulação grosseira da ciência, como uma via sem
47 Heidegger M., Introduction à la métaphysique, traduit de l’allemand et présenté par Gilbert Kahn, Paris, Gallimard, 1967, p. 209.
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saída, na tentativa ridícula de um retorno ao pensamento mágico e a uma Natureza viva.
Mas como ocultar o fato de que esta Filosofia da Natureza engendrou, pelo menos, duas
descobertas científicas maiores: a teoria celular e, sobretudo, o eletromagnetismo
(Oersted, 1820)? Creio que o verdadeiro erro da Naturphilosophie foi o de ter aparecida
dois séculos demasiado cedo: lhe faltou a tríplice mutação quântica, tecnológica e
informática”, sustenta, ironicamente, Nicolescu48.
No contexto do “big bang disciplinar”, a exigência de estabelecer elos entre as
diferentes disciplinas acabou produzindo a emergência da pluri e da
interdisciplinaridade. Torna-se necessário precisar estes conceitos, com relação ao da
transdisciplinaridade. De acordo com Nicolescu, a pluridisciplinaridade é o estudo de um
objeto de uma só e mesma disciplina, ao mesmo tempo, por diversas outras disciplinas.
A interdisciplinaridade diz respeito à transferência de métodos de uma disciplina à outra,
segundo três distintos graus: de aplicação, epistemológico e de criação de novas
disciplinas. A pluri e a interdisciplinaridade transcendem as disciplinas, mas suas
finalidades se inscrevem no domínio da pesquisa disciplinar. A transdisciplinaridade diz
respeito, ao mesmo tempo, ao que se encontra entre, através e além de todas as
disciplinas. Para Nicolescu, não se trata de uma nova disciplina, nem de uma
hiperdisciplina, mas de um campo que se nutre da própria pesquisa disciplinar. “Neste
sentido, as pesquisas disciplinares e transdisciplinares não são antagônicas, mas
complementares. (...) A disciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade e
a transdisciplinaridade são as quatro flechas de um só arco: o do conhecimento”
assegura Nicolescu49.
Na abordagem de Nicolescu há três pilares da transdisciplinaridade, que
determinam a metodologia da pesquisa transdisciplinar: os níveis de Realidade, a lógica
do terceiro incluído e a complexidade. O primeiro diz respeito ao reconhecimento da
existência de diferentes níveis de Realidade, regidos por diferentes lógicas, que recusa
toda tentativa de reduzir a Realidade a um só nível, regida por uma só lógica, dado a
sua natureza multidimensional e, também, multirreferencial. A abordagem
transdisciplinar abre-se para a dinâmica criada pela ação simultânea de múltiplos níveis
de realidade e, ao mesmo tempo, implica no conhecimento disciplinar. Em que pese a
distinção radical existente entre elas, a pesquisa transdisciplinar e a disciplinar não se
encontram numa relação de antagonismo e, sim, na de complementaridade, segundo
este autor.
De forma significativa e heurística, Pierre Weil50 desenvolveu uma fórmula muito
sábia e original, para sustentar que a vivência do real pelo sujeito é uma função do
estado de consciência no qual ele se encontra: VR = f(EC). Ou seja, a Vivência da
Realidade (VR) é função (f) do Estado de Consciência (EC). Nas suas palavras, “essa
fórmula nos parece uma das chaves fundamentais para a compreensão da
epistemologia e das relações entre o conhecedor, o conhecimento e o conhecido, isto
é, entre o sujeito, o conhecimento e objeto do conhecimento.”
48 Nicolescu B., op. cit., p. 88-89. 49 Nicolescu B., op. cit., p. 68-69. 50 Weil P., Axiomática transdisciplinar para um novo paradigma holístico, In: Weil P., D’Ambrosio U., Crema, R., Rumo à nova transdisciplinaridade – sistemas abertos de conhecimento, São Paulo, Summus, 1993, p. 50-51.
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O segundo pilar indica que dois diferentes níveis de realidade são religados por
uma nova lógica do terceiro incluído, distinta da lógica aristotélica clássica,
fundamentada sobre três axiomas: o da identidade (A é A), o da não contradição (A não
é não-A) e o do terceiro excluído (não existe um terceiro termo, ou seja, o de que A é,
ao mesmo tempo, A e não-A). Como esclarece Nicolescu, se aceitamos esta lógica,
que ainda é dominante após mais de dois milênios, devemos concluir que os pares
contraditórios colocados em evidência pela física quântica são mutuamente exclusivos,
já que não podemos sustentar, simultaneamente, a validade de uma coisa e a do seu
contrário, ou seja, a coexistência de A e de não-A ao mesmo tempo. Segundo este autor,
representou um mérito histórico de Stéphane Lupasco (1900-1988) o de ter
demonstrado que a lógica do terceiro incluído é uma verdadeira lógica, no seu aspecto
formal e formalizável, multivalente - com relação aos aspectos A, não-A e T – e não
contraditória.
Já o grande mérito do próprio Nicolescu foi o de ter evidenciado que a
compreensão do axioma do terceiro incluído, que sustenta a existência de um terceiro
termo T que é, ao mesmo tempo, A e não-A, se esclarece plenamente com a introdução
do primeiro pilar acima referido, o conceito de níveis de Realidade. Nas suas palavras51:
“Para obter uma imagem clara do sentido do terceiro incluído, representamos os três
termos da nova lógica – A, não-A e T – e os seus dinamismos associados, por um
triângulo no qual o cimo se situa a um nível de Realidade e a sua base em outro nível
de Realidade. Se permanecermos num só nível de Realidade, toda manifestação
aparece como uma luta entre dois elementos contraditórios. O terceiro dinamismo, o de
estado T, se exerce em outro nível de Realidade, onde o que aparentemente é desunido
é, de fato, unido e o que parece contraditório é percebido como não contraditório”. Em
outras palavras, a lógica do terceiro incluído implica o postulado de uma sucessão plural
de níveis de Realidade, onde a integração dos contrários acontece num metanível
superior. Para Nicolescu, a postulação do terceiro incluído implica na perspectiva da
complexidade que é, talvez, a sua lógica privilegiada, na medida em que permite uma
travessia, de maneira coerente, nos diversos domínios do conhecimento. “A lógica do
terceiro incluído não abole a lógica do terceiro excluído: ela apenas restringe o seu
domínio de validade” 52.
No seu livro, “Qu’est-ce que la réalité ? – Réflexions autour de l’oeuvre de
Stéphane Lupasco »53, Nicolescu sustenta que o conceito de energia encontra-se no
centro da meditação filosófica de Lupasco. Assim como, na física clássica, a noção do
objeto situa-se no plano central, sendo a energia um mero epifenômeno, derivado e
secundário, a física relativista e quântica inverteu esta hierarquia: a concepção do objeto
é substituída pela do evento, da relação, da interconexão. “O verdadeiro movimento é o
da energia. O dinamismo energético rege o conjunto dos fenômenos físicos”, afirma
Nicolescu. Para este autor, o conceito do terceiro incluído é a chave central da filosofia
lupasciana, permitindo a cristalização do seu pensamento inovador e aberto, com um
51 Nicolescu B., Vers une éducation transdisciplinaire, In : Welter R (dir), Transdisciplinarité – Un chemin vers la paix, Paris, Éditions F.B.V. pour le C.N.R.S., 2003, p. 83-85. 52 Nicolescu B., La Transdisciplinarité – Manifeste, Transdisciplinarité, coll. Dirigée par Basarab Nicolescu, Paris, Éditions du Rocher, 1996, p. 48. 53 Nicolescu B., Qu’est-ce que la réalité ? Réflexions autour de l’oeuvre de Stéphane Lupasco, Montréal, Liber, 2009, p. 22-39.
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grande rigor e precisão. “Este rigor e esta precisão explicam a influência, aberta e
subterrânea, da obra de Lupasco na cultura francesa. Entretanto, é igualmente o terceiro
incluído que fez deslanchar toda uma infindável série de mal-entendidos e uma
hostilidade, variando do silêncio embaraçado à exclusão deliberada de Lupasco do
mundo universitário e dos dicionários.”
No seu livro sobre a abordagem transversal e a escuta sensível, René Barbier54
destaca a obra de Lupasco. Uma dialética contemporânea, segundo Barbier, refletida
por eminentes autores como Edgar Morin ou Gilbert Durant, é postulada por Stéphane
Lupasco, de acordo com outro tipo de dinamismo contraditório, a partir de uma lógica
da bipolaridade antagonista, incluindo um terceiro tempo, um estado T de atualização e
de potencialização entre os polos antagônicos. Um tipo de dialética construída sobre
uma abordagem paradoxal que, segundo o autor, é fundamental na visão clínica
transversal. Entretanto, Barbier afirma que a dialética colocada em prática na
Abordagem Transversal e na pesquisa-ação existencial não é a de um fundamento
rigoroso e trágico entre os elementos bipolarizados. “Não há separação, mas, antes,
uma articulação e complementaridade dialéticas sucessivas com um fenômeno de
atualização e de potencialização, de homogeneização e de heterogeneização, segundo
uma concepção próxima da lógica da bipolaridade antagonista de Stéphane Lupasco”.
A consideração de múltiplos níveis de Realidade como conjuntos de sistemas
invariantes à ação de um número de leis gerais – a física quântica, o ciberespaço e a
teoria de supercordas, segundo a abordagem de Nicolescu55 – já indicam o terceiro eixo
da transdisciplinaridade, o da complexidade ou a emergência de uma pluralidade
complexa. Para Nicolescu, a complexidade se nutre da ampliação acelerada da
pesquisa disciplinar e, por sua vez, a complexidade determina a aceleração vertiginosa
das disciplinas. Neste sentido, a complexidade torna-se visível em todas as ciências,
sejam exatas ou humanas, duras ou moles, a exemplo da biologia e das neurociências,
que apresentam um desenvolvimento tão rápido quanto surpreendente. “A
complexidade é criada por nossa mente ou se encontra na natureza mesma das coisas
e dos seres? O estudo dos sistemas naturais nos fornece uma resposta parcial a esta
questão: ela se encontra tanto na natureza quanto nas coisas e nos seres. A
complexidade na ciência é, inicialmente, a complexidade das equações e dos modelos.
Neste sentido, ela é produto de nossa mente, que é complexa por sua própria natureza.
Mas a complexidade é a imagem em espelho da complexidade dos dados
experimentais, que se acumulam incessantemente. Assim, ela se encontra na natureza
das coisas.”
Focalizando a questão do desafio da complexidade, Edgar Morin56 sustenta que,
num certo sentido, o pensamento complexo busca livrar-se de e superar os tipos de
pensamentos mutilantes, que ele denomina de simplificantes, num combate não contra
a incompletude, mas em oposição à mutilação. Para este filósofo da complexidade,
quando consideramos o fato de que somos seres ao mesmo tempo físicos, biológicos,
sociais, culturais, psíquicos e espirituais, torna-se evidente que a tarefa da
54 Barbier R., L’Approche Transversale, L’écoute sensible en sciences humaines, coll. Exploration Interculturelle et Science Sociale, Paris, Anthropos, Ed. Economica, 1997, p. 164-241. 55 Nicolescu B., op. cit., p. 51-59. 56 Morin E., Science avec conscience, nouvelle édition, Paris, Fayard/Seuil, p. 164-177.
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complexidade é a de conceber a articulação, considerando a identidade e a
diferenciação com relação à todos estes aspectos – além do pensamento simplificador,
que tudo fragmenta e desvincula ou unifica e mistura, por meio de uma redução
mutiladora. Assim, é evidente que a ambição da complexidade é a de realizar
articulações que são negadas e destruídas pela dissociação típica do enfoque
disciplinar, entre categorias cognitivas e entre tipos de conhecimento, rumo a uma
muldimensionalidade que contêm, no seu âmago, um princípio de incompletude e de
incerteza. Morin lembra-nos que a palavra complexus significa tecer, em conjunto, um
mesmo tecido composto de diferentes fios. Trata-se de um entrecruzamento unitário de
conexões com o distinto e diverso. A unidade do complexus conserva a variedade e a
diversidade dos elementos que a compõe. “O desafio da complexidade nos faz renunciar
definitivamente ao mito da elucidação total do Universo e nos encoraja a prosseguir a
aventura do conhecimento, que é o diálogo com os universos.”
Le Grand57 formulou o interessante conceito de implexidade: uma implicação
complexa ou complexidade implicante, onde observado e observador e objeto e sujeito
são ligados. “A implexidade é a dimensão complexa das implicações, complexidade
largamente opaca a uma explicação. A implexidade é relativa ao entrelaçamento de
diferentes níveis de realidades das implicações, dominantemente implícitas (recurvadas
no interior).”
Transdisciplinaridade e formação
Gaston Pineau e Patrick Paul refletiram profundamente e escreveram sobre a
visão transdisciplinar com relação à formação e à abordagem das histórias de vida. Na
introdução do livro “Transdisciplinarité et Formation”58, Patrick Paul, que introduziu um
quarto pilar à pesquisa transdisciplinar, o da hipótese paradoxal, afirma que esta
instigante abordagem busca abrir uma nova visão integrativa do ser humano e da
natureza, que transcende o paradigma atualmente vigente. Trata-se de uma abertura
das ciências, sobretudo as humanas e sociais, a uma relação diferente entre o sujeito e
o objeto, ao mesmo tempo mais vasta e refinada, através do conceito de níveis de
realidade. Reunindo pesquisadores de diversos horizontes, a transdisciplinaridade
torna-se uma fonte de diálogo entre múltiplas e respectivas competências, engendrando
um novo discurso definido menos por um território comum do que pelo esclarecimento
das margens, dos locais e das fronteiras entre os campos. Paul esclarece que esta
abordagem emergente considera a importância dos enfoques disciplinares, definidos
por seus distintos objetos e métodos, abrindo-se para a aceitação de espaços de
contornos menos nítidos, situados nas fronteiras e no além das zonas objetivas
clássicas. Há o reconhecimento da pessoa implicada no nobre processo de uma
formação e transformação constante ao longo de toda existência, inscrevendo-se num
dinamismo cognitivo complexo, que inclui tanto a razão quanto a sensação, a
experiência, a imaginação e a intuição. Para Paul, a formação transdisciplinar, neste
57 Le Grand J.-L., Implexité : implication et complexité, Paris, Université Paris 8 (en ligne) http:llwww.fp.univer-paris8.fr/recherches/JOOeGrandimplexite.html (consulté le 06/08/11). 58 Paul.P., Introduction, In: Paul P. et Pineau G (coord.), Transdisciplinarité et Formation, Paris, L’Harmattan, 2005, p. 5-7.
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contexto ampliado, possibilita um “ato formador por excelência, tornando, assim, o
campo da formação o de um desvelamento de si como Bildungformação”.
No seu texto, “Recherches Transdisciplinaires et Université”, Gaston Pineau59
fala de um movimento de tensa ligação entre a universalidade e a diversidade de
saberes. Para Pineau, a palavra universidade traduz bem a exigência de unidade a ser
construída pelo universo sociocognitivo, conjuntamente com a multidiversidade, além
da simples uniformidade, em função da pluralidade dos saberes que a compõe. Na sua
visão, há três degraus da transdisciplinaridade, após um ponto zero: o da uni-
disciplinaridade. O primeiro degrau de conexão é o da multi ou pluridisciplinaridade; o
segundo, o da pesquisa interdisciplinar e o terceiro, o da vinculação propriamente
transdisciplinar. Por outro lado, a pesquisa transdisciplinar em formação implica em três
prefixos: o primeiro é o trans, significando a transição paradigmática pelas transações
transversais e transformação das relações. O segundo é o auto: a necessidade de uma
autodisciplina para aprender uma atitude de discípulo diante do totalmente novo, além
de tudo. Inerente a este prefixo encontra-se o desafio da aprendizagem de que esta
transcendência se dá por meio de uma travessia e de uma interiorização, o que implica
em se autodisciplinar. O terceiro é o inter: através de uma rede de aprendizagem
recíproca, já que a conquista deste novo aprender a aprender é vinculada às transações
com a diversidade do outro. Resume Pineau: “Assim, não há transdisciplinaridade
heurística, sem autodisciplina e sem uma inter-rede da aprendizagem recíproca. Eis o
sentido da proposição deste pequeno enigma: não há trans sem auto e sem inter”.
Postulando o interessante conceito de antropoformação, etimologicamente o ser
humano em formação ou a formação do ser humano, enquanto visão, percepção,
pensamento, imaginação e intuição, Paul60 afirma que se trata de uma abordagem que
faz apelo à transdiciplinaridade, segundo Gaston Bachelard e Thomas Kuhn, colocando
em questão os cânones epistemológicos dinamizadores dos instrumentos
metodológicos que, além da concepção científica clássica, testemunha a própria
singularidade das ciências humanas. Para Paul, a metodologia das histórias de vida,
que retoma a questão da construção da identidade do individuo social, muito próximo
da anamnese médica, constitui os horizontes de novos campos a serem explorados.
Desta forma, a partir da realidade e da identidade biológica, a antropoformação evoca,
ao mesmo tempo, a maneira que o ambiente natural e o sociocultural nos influenciam e
transformam também nos remetendo à formação interior da subjetividade humana, no
vasto sentido da Bildunformação proposta pelos enfoques germânicos, respaldados
pelo Mestre Eckart, por Goethe, entre outros. No seu enfoque, Paul afirma que os
valores implicados no anthropos, a inteireza humana, devem se articular por meio da
singularidade, da sociabilidade, da idealidade e da universalidade, no processo de
formação do ser humano.
Em outro texto deste mesmo livro, Patrick Paul61 esclarece que a
transdisciplinaridade é portadora do novo, a partir de uma epistemologia e de uma
metodologia que são provenientes da própria dinâmica científica contemporânea, em
direção à atual conjuntura social. “É certo que, neste domínio como nos demais, a
59 Pineau G., Recherches Transdisciplinaires et Université, op.cit., p. 12-26. 60 Paul P., Le concept d’anthropoformation, op. cit., p. 165-166. 61 Paul P., Vers la transdisciplinarité, op. cit., p. 72-73.
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mesma palavra pode se referir a diferentes posturas dos seus pesquisadores.
Entretanto, além destas diferenças, um mesmo pensamento habita a abordagem
transdisciplinar: abrir as disciplinas sem as negarem, reconciliar o sujeito e o objeto,
buscar reconstituir, num todo coerente, os diversos fragmentos do conhecimento, dar
sentido à intercessão entre os campos de maneira não sincrética e não unitária, num
processo de superação pela integração, por meio de um método apto a tratar as
contradições do conceito positivista da ciência, ligando-se a um procedimento capaz de
legitimar diferentes modos de inteligibilidade e diversos graus ontológicos”.
Por outro lado, num artigo sobre histórias de vida como uma aventura intelectual
plural e singular, Pierre Dominicé62 fala da pertinência e também dos riscos da ótica
transdisciplinar, sustentando que, de maneira geral, a abordagem das histórias de vida
não pertence a nenhum campo disciplinar específico, colocando-se entre as fronteiras
das disciplinas. Progressivamente este autor deu-se conta de que eram “indisciplinados”
que, nas suas palavras, “se reconheciam na ótica ambiciosa da transdisciplinaridade,
frequentemente reivindicada por G. Pineau. Na origem de nossos trabalhos se
afirmaram as contribuições que favoreceram um alargamento pluri ou transdisciplinar,
como a da sócio-antropologia de Marie-Christine Josso e de Jean-Louis Le Grand, o da
psicologia de Martine Lani-Bayle ou a de inspiração lacaniana do psicanalista Guy de
Villers. Assim, atraímos transitoriamente muitos outros pesquisadores das ciências
humanas que, entretanto, preferiram o terreno menos instável de um pensamento
alinhado a uma fragmentação mais disciplinar, seja da psicossociologia clínica ou
mesmo, posteriormente, da análise do trabalho.” Por outro lado, Delory-Momberger -
cuja significativa contribuição Dominicé afirma ser transdisciplinar e intercultural,
abrindo um caminho teórico muito original, num contexto acadêmico normalmente
fechado - precisa que a abordagem biográfica não é uma disciplina, mas um campo de
pesquisa.
Enfim, a visão transdisciplinar é aberta, transcendendo o domínio das ciências
exatas, por meio de um diálogo inclusivo e de reconciliação com as ciências humanas,
a arte, a literatura, a poesia, o imaginal e a consciência interior. Segundo o artigo 14 da
Carta da transdisciplinaridade63: “Rigor, abertura e tolerância são as características
fundamentais da atitude e da visão transdisciplinar. O rigor da linguagem na
argumentação, que leva em conta todos os dados é a proteção com relação a todos os
desvios possíveis. A abertura comporta a aceitação do desconhecido, do inesperado e
do imprevisível. A tolerância é o reconhecimento do direito às ideias e às verdades
contrárias às nossas”.
V – Os quatro pilares de uma nova educação
62 Dominicé P., Les histoires de vie : une aventure intellectuelle plurielle et singulière, In : Barbier J.-M. ; Bourgeois E. ; Chapelle G. ; Ruano-Borbalan J., Encyclopédie de la formation, Paris, PUF, Démos, 2009, p. 114-115. 63 Nicolescu B., La Transdisciplinarité – Manifeste, Transdisciplinarité, coll. Dirigée par Basarab Nicolescu, Paris, Éditions du Rocher, 1996, p. 227.
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A tomada de consciência de um sistema educacional em desacordo com as
transformações do mundo contemporâneo tem produzido numerosos colóquios e
simpósios. Um dos encontros mais importantes e marcantes foi o elaborado pela
Comissão internacional sobre a educação para o século XXI, sob a presidência de
Jacques Delors e ligado à UNESCO, que faz referência aos quatro pilares de uma
educação continuada ao longo de toda a existência: aprender a conhecer, aprender a
fazer, aprender a conviver e aprender a ser.
Com este nobre objetivo, Delors64 indica as grandes tensões a serem superadas:
entre o global e o local; entre o universal e o singular; entre tradição e modernidade;
entre a longa e a curta duração; entre a competição e a igualdade de oportunidades;
entre o extraordinário desenvolvimento do conhecimento e a capacidade de sua
assimilação pelo ser humano. “Enfim, eis uma constatação eterna, a tensão entre o
espiritual e o material. O mundo, frequentemente sem o sentir ou o exprimir, tem sede
de ideal e de valores que nós denominamos de morais, para não chocar ninguém. Que
nobre tarefa da educação esta de suscitar a cada pessoa, segundo suas tradições e
convicções, no pleno respeito ao pluralismo, esta elevação do pensamento e do espírito
até o universal e a certa transcendência de si mesmo. Está em jogo – a Comissão pesa
as suas palavras – a sobrevivência da humanidade.”
Eis um resumo, a seguir, destes quatro fundamentos de uma educação
transdisciplinar:
Aprender a conhecer Trata-se da aprendizagem de métodos para compreender o mundo e capazes de
facilitar a distinção do que é real e do que ilusório, para um contato inteligente com os
saberes disponíveis, com um espírito científico fundamentado sobre uma interrogação
aberta e permanente, com a recusa de uma atitude fechada e dogmática. É importante
conciliar uma cultura geral e ampla – passaporte para uma educação permanente ao
longo de toda a vida - com a possibilidade de trabalhar, de maneira profunda e particular,
um pequeno número de matérias, afirma Delors65.
Segundo Nicolescu66, aprender a conhecer também significa a aquisição da
habilidade de estabelecer pontes entre os diferentes saberes e os seus significados para
a vida cotidiana: entre os saberes, as significações e o universo interior. Na sua visão,
a dinâmica transdisciplinar é o complemento indispensável para o próprio
desenvolvimento disciplinar, já que conduz a um “ser sem cessar re-ligado, capaz de se
adaptar às exigências mutantes da vida profissional, e dotado de uma flexibilidade,
sempre orientado para a atualização de seus potenciais intelectuais”.
Aprender a fazer Tarefa de colocar em prática os conhecimentos e de adquirir uma qualificação
profissional e uma competência que possibilite ao aprendiz fazer face às numerosas
situações práticas e a trabalhar em equipe, uma dimensão essencial na abordagem
64 Delors J. et collaborateurs, op. cit., p. 12-14. 65 Delors J. et collaborateurs, op. cit., p. 18. 66 Nicolescu B., op. cit., p. 193.
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transdisciplinar, que considera a diversidade de saberes na ordem da
complementaridade e da sinergia.
Trata-se de conciliar a necessidade da especialização no aprendizado de uma
profissão com uma visão mais global e com uma ação criativa, dialógica e flexível.
Conforme o relatório Delors67, esta competência e as suas qualificações frequentemente
tornam-se mais acessíveis se os estudantes tem a oportunidade de testar as suas
capacidades na participação enriquecedora em atividades profissionais e sociais,
paralelamente aos seus estudos. Neste sentido, a alternância entre a escola e o trabalho
adquire uma relevância muito criativa e importante.
Aprender a conviver Eis um desafio muito negligenciado nos métodos convencionais de educação, que
solicita uma abertura para o exercício de uma dinâmica individual e de grupo, para
facilitar o desenvolvimento das já referidas quatro funções psíquicas pesquisadas por
Carl Gustav Jung – pensamento, sentimento, sensação e intuição – e o de uma
inteligência emocional e relacional – a exemplo do projeto da Arte de Viver a Vida68 da
Formação Holística de Base da UNIPAZ, incluindo os seminários A Arte de Viver em
Paz, A Arte de Viver Consciente, A Arte de Viver em Harmonia e A Arte de Viver o
Conflito. Por outro lado, é fundamental o lidar com o mundo dos sonhos, cujas funções
- complementares às da vigília - são pesquisadas, à luz da ciência, há mais de um
século, através do desenvolvimento da inteligência onírica, o que introduz na missão
pedagógica o que tenho denominado de alfabetização psíquica69.
Este pilar refere-se a um processo que visa o aprender a viver com – consigo,
com o outro, com a comunidade, com a natureza. No plano interacional humano, trata-
se do reconhecimento e a compreensão do outro, com a percepção da interdependência
em prol da gestão das naturais tensões e conflitos e a realização de projetos comuns,
no espírito da aliança entre a competição e a cooperação, respaldada na atitude de
respeito dos valores plurais, do cuidar do outro, da compreensão mútua e da vivência
harmoniosa e pacífica.
Aqui nos deparamos com o desafio da alteridade. Na visão de Nicolescu, há um
aspecto fundamental na dinâmica da evolução transdisciplinar em educação: “se
reconhecer a si mesmo no semblante do Outro”, o que exige um processo permanente
de aprendizagem, desde a mais tenra idade, prolongando-se durante todo o itinerário
existencial. “A atitude transcultural, transreligiosa, transpolítica e transnacional permite
o melhor aprofundamento na própria cultura, a melhor defesa dos interesses nacionais,
o melhor respeito às próprias convicções religiosas e políticas. A unidade aberta e a
pluralidade complexa, como em todos os demais domínios da Natureza e do
conhecimento, não são antagônicos”, afirma Nicolescu70.
67 Delors J. Et collaborateurs, op. cit., p. 18-19. 68 Weil P., L’Art de vivre la vie, Traduit du portugais (Brésil) par Monique le Moing, Paris, Éditions du ROCHER, 2001. 69 Crema, R., Pedagogia Iniciática – Uma escola de liderança, Petrópolis, Vozes, 2009, p. 81-84. 70 Nicolescu B., op. cit., p. 197.
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Aprender a ser Sem dúvida, eis o desafio maior e a mais preciosa utopia realizável, na tarefa
imprescindível de uma renovação educacional. Além do aspecto cognitivo, do
pragmático e do universo da convivência, resta a dimensão mais nobre de uma
educação para a inteireza: facilitar o desenvolvimento da semente do potencial evolutivo
inerente a cada ser humano. Esta notável meta solicita o que denomino de uma
pedagogia iniciática71, que inicie o ser humano a uma dinâmica rumo a sua completude
ou plenitude possível, com o desenvolvimento dos seus talentos vocacionais
particulares, através do investimento na dimensão noética da consciência do Sujeito,
que favoreça, por meio de um itinerário interior, o desvelar de uma inteligência da
inteireza psíquica, que Jung denominava de Self.
Como sustenta Delors72, aprender a ser, “enfim e, sobretudo”, rumo ao
florescimento da personalidade, pelo desenvolvimento de um processo de descoberta,
de experimentação, de trabalho de imaginação e da criatividade, para o aprendiz ousar
atuar a partir de uma capacidade de autonomia, de discernimento e de responsabilidade
individual, seguindo um imperativo de não deixar inexplorado nenhum espaço do
tesouro dos seus próprios talentos. Trata-se de exercitar os domínios da memória, da
razão, da sensibilidade, conjugadas com a imaginação criadora, o sentido da ética e da
estética, que possibilite a expressão do carisma natural do individuo plenamente
cultivado na sua tarefa de compreender o mundo e a si mesmo.
Aprender a ser implica a necessidade de conciliar a dimensão pessoal e a
transpessoal, que são inerentes a cada individuo, conformando suas qualidades de
raízes e de asas, de profundidade e de altitude, de palavra e de silêncio. Como afirma
Basarab Nicolescu, “A construção de uma pessoa passa, inevitavelmente, pela
dimensão trans-pessoal. O não respeito a este necessário acordo explica, em grande
parte, uma das tensões fundamentais de nossa época entre o material e o espiritual”.
“Utopia, pensarão alguns, mas utopia necessária, utopia vital, para sair do ciclo
perigoso, nutrido pelo cinismo e a resignação”, sustenta Delors73.
VI – A visão holonística “Temos visto que os holons biológicos são entidades
autorreguladoras que, ao mesmo tempo, manifestam
propriedades independentes, de totalidades e
propriedades dependentes, de partes.”
Arthur Koestler74
71 Crema, R., op. cit., p. 84-98. 72 Delors J. et collaborateurs, op. cit., p. 19. 73 Delors J. et collaborateurs, op. cit., p. 18. 74 Koestler A., La quête de l’absolu, Commentaires d’Arthur Koestler traduits par Georges Fradier et Muriel Zygband, Paris, Calmann-Lévy, 1981, p. 427.
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Arthur Koestler (1905-1983)75, afirmando que a parte e o todo inexistem no domínio da
vida, de forma inovadora e consistente desenvolveu uma abordagem que transcende o
atomismo ou reducionismo e o holismo ou totalitarismo, integrando os aspectos válidos
destes dois métodos, por meio do seu conceito de holon – do grego holos, totalidade,
com o sufixo on, que designa a parte (como em próton ou nêutron), referindo-se a um
sistema aberto e autorregulador que apresenta, simultaneamente, as propriedades
autônomas de um todo e as dependentes de uma parcela.
Segundo esta visão, a palavra mais justa para fazer referência à abordagem
integrativa é holonística, antes que holística. Na perspectiva koestleriana, o organismo
é considerado como uma hierarquia em múltiplos níveis de subtotalidades, dotados de
autonomia relativa. Este autor reconhece que, na medida limitada onde é aplicável, o
método reducionista logrou um grande sucesso nas ciências ditas exatas, enquanto que
a sua antítese, o holismo, conceito concebido por Jan Smuts76 em 1926, que considera
que o todo é mais do que a soma de suas partes, jamais foi muito longe, apenas tendo
penetrado na ciência oficial indiretamente, pelo viés da filosofia e da Gestalt. Isto se
deve, por um lado, ao fato desta abordagem ter se chocado com o espírito da época e,
por outro, por ter representado um método mais filosófico do que empírico, não tendo
sido utilizado em experiências de laboratório, segundo Koestler.
O símbolo koestleriano para a noção do holon é o de uma divindade da mitologia
romana, Janus, que apresenta duas faces, voltadas para sentidos opostos: uma para
frente, representando o futuro e outra olhando para trás, simbolizando o passado.
Assim, cada subparte igualmente inserida numa escada e numa ordem ascendente de
complexidade, possui uma face de “todo”, voltada para os níveis subordinados e outra
face voltada para o alto, o de uma “parte” dependente. Para Koestler, nenhum ser
humano é uma ilha, mas um holon: uma entidade bifrontal que, olhando para o interior
se vê como um todo, único e completo em si, e olhando para o exterior se vê como uma
parte dependente. Há uma tendência autoafirmativa, que é a manifestação dinâmica de
sua condição autônoma de um todo único, ou seja, a sua independência como holon. A
tendência antagônica, também universal, é integrativa e exprime sua dependência com
relação a um todo superior, o que constitui a sua condição de parte.
Falando de outro modo, há duas tendências de base na natureza viva: uma de
diferenciação e outra de fusão. A primeira é autoafirmativa, uma força centrífuga
direcionada para a diferença, a singularidade, a alteridade. Enquanto a de fusão é
integrativa, uma força centrípeta que se direciona para o pertencimento, a interconexão,
a solidariedade. De acordo com Koestler77, esta polaridade ou coïncidentia oppositorum
surge em todas as manifestações da vida, sendo que a tendência à asserção é uma
expressão dinâmica da totalidade do holon, enquanto a tendência à integração é um
dinamismo expressivo da parcialidade. A tarefa da saúde é a de manter um equilíbrio
sinergético entre estas duas dinâmicas, evitando a polarização, pois o excesso de
diferenciação conduz à patologia do individualismo excluidor e a do isolamento,
75 Koestler A., O fantasma da máquina, São Paulo, Zahar, 1969. 76 Smuts J., Holism and evolution, The original source of the holistic approach to live, Michigan, Sanford Holst, 1999. 77 Koestler A., op. cit., p. 439.
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enquanto o excesso de fusão determina a alienação característica da simbiose e do
totalitarismo.
Como assume Nicolescu78, a abordagem transdisciplinar jamais opõe holismo e
reducionismo, considerando-os como dois aspectos de um mesmo conhecimento da
Realidade, que integra o local no global e o global no local. Holismo e reducionismo,
assim como global e local, “são dois aspectos de um só e mesmo mundo
multidimensional e multirreferencial, o mundo da pluralidade complexa e da unidade
aberta”.
Apontando na mesma direção, o filósofo Martin Buber (1878-1965)79 afirma o
duplo movimento de separação e de relação como o que define o princípio da vida
humana. Uma relação autêntica apenas tem lugar quando o outro é colocado numa
distância justa, para que seja possível o Eu-Tu. Caso contrário, estaremos condenados
a uma relação objetal e reducionista, que Buber denominava de Eu-isto.
Desta forma, visando o movimento de integração, necessitamos da sinergia
entre o método analítico – de diferenciação dual – e o método sintético – de fusão
unitária.
VII – Análise e Síntese: terra e céu “O verdadeiro poder sobre a violência consiste
numa atitude de transformação interior, a paz não se
encontrando em nenhum lugar que não seja em si mesmo,
no ponto da junção das contradições.”
Patrick Paul80
Nós, ocidentais, somos condicionados à análise, já que o método analítico encontra-se
no coração do paradigma da modernidade, nascido do pensamento iluminista, fundado
sobre a razão crítica. De fato, esta foi a grande contribuição da concepção científica do
século XVII, que introduziu a consciência de diferenciação no âmago do novo aprender
a aprender.
Eis um breve resumo deste caminho, que brota de uma pesquisa que tenho
realizado sobre este tema há mais de duas décadas, sobretudo no domínio da saúde,
mas também no da educação81: o método analítico é um produto do racionalismo
científico, que surgiu como uma saudável e lúcida resposta a um contexto decadente de
um obscurantismo indiferenciado medieval, que se cristalizou numa simbiose perversa
entre religião e ciência, sob a tirania da Inquisição. Centra-se nas partes, buscando as
unidades constitutivas, atuando como um bisturi retalhador de totalidades. Refere-se ao
conceito grego de diabolos, o que divide. Levou-nos à abordagem disciplinar que
78 Nicolescu B., op. Cit., p. 175. 79 Buber M., Je et Tu, Paris, Aubier-Montaigne, 1992. 80 Paul P., Sujet et violence, paix et transdisciplinarité, In: Welter R. (dir.), Transdisciplinarité, Un chemin vers la paix, Paris, Éditions F.B.V. pour Le C.N.R.S., 2003, p. 106. 81 Crema R., Antigos e Novos Terapeutas – abordagem transdisciplinar em terapia, Petrópolis, Editora Vozes, 2002, p. 43-74.
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modelou a especialização, caracterizada por sua tendência reducionista e pela
unilateralidade de visão e de ação – alguém que sabe quase tudo de quase nada.
Fundamenta-se nas funções psíquicas do pensamento e da sensação, bases do
racionalismo empírico. Apoia-se na microfísica mecânica e no realismo clássico, com
suas características de continuidade, de simplicidade, de causalidade local e de
objetividade. Destaca-se pelo aspecto quantitativo, perseguindo o ideal da codificação
matemática. Tem por base o registro pessoal da identidade egocêntrica. Parte de uma
lógica linear da causalidade local, prescrevendo a existência de leis necessárias e
gerais, que engendram o determinismo, com a sua pretensão de controle e de
previsibilidade. Reveste-se da aparência sofisticada da exatidão. Atua de forma
progressiva e acumulativa, a partir de uma atitude básica de extroversão, afirmando-se
como um excelente instrumento de investigação e de exploração do espaço exterior.
Tem como objetivo ideal a objetividade e a neutralidade, com relação aos valores,
excluindo o sujeito do campo da ciência. Sua vocação é experimental e o seu produto
específico é gerado em laboratórios sofisticados, com a manipulação impecável das
variáveis. O seu substrato metafórico neurofisiológico – levando em conta a
interconexão hemisférica cerebral – é o hemisfério dominante, geralmente o esquerdo,
da racionalidade, da lógica, da previsibilidade e da angústia humana. Caracteriza a
mentalidade típica do ocidental, centrada na tecnociência. Postula uma função
explicativa: objetiva explicar ativamente o universo. Denominamos de analista ao agente
deste método clássico.
Como já foi ressaltado, devemos ao gênio do Wilhelm Dilthey, que denunciou as
contradições do caminho reducionista científico-natural, demonstrar a necessidade de
outro método, além do analítico, fundamento das ciências do espírito, que propõe a
descrição e a compreensão da vida a partir dela mesma.
Em seguida à contribuição marcante de Dilthey, outras significativas vozes se
levantaram, indicando o universo do sujeito por meio de um caminho sintético. O já
citado Jan Smuts (1870-1950)82, na sua perspectiva evolutiva, lançou o conceito do
holismo como um princípio único, organizador de totalidades e criador de conjuntos,
num Universo que é sintético, vital e criativo. Carl G. Jung83 desenvolveu uma
interpretação de sonhos ao nível do sujeito, que denominou de sintética. Roberto
Assagioli (1888-1974)84 desenvolveu uma psicossíntese. Viktor Frankl (1905-1997)85
fundou a sua escola de Logoterapia, caracterizada por uma metodologia sintética.
Karlfried Graf Dürckheim (1896-1988)86 criou a terapia iniciática, propondo o que
denomina de exercício – uma prática meditativa de natureza sintética – para que a
essência se manifeste na existência. Ramon Soler87 fundou, na Argentina, a
Universidade de Síntese, onde o método da síntese é, igualmente, uma via de
integração humana. O sábio hindu J. Krishnamurti (1895-1986)88 que dedicou toda a
sua existência e obra absolutamente ao essencial, tendo tido uma influência destacada
82 Smuts J., Holism and evolution, The original source of the holistic approach to life, Michigan, Sanford Holst, 1999. 83 Jung C.G., A prática da psicoterapia, Petrópolis, Editora Vozes, 1981. 84 Assagioli R., Psicossíntese, São Paulo, Cultrix, 1985. 85 Frankl V., Um sentido para a vida, Aparecida, Ed. Santuário, 1989. 86 Graf-Dürckheim K., L’homme et sa double origine, Paris, Albin Michel, 1995. 87 Soler R., Universidad de Síntesis, Buenos Aires, Depalma, 1984. 88 Krishnamurti J., La première et dernière liberte, Paris, Stock, 1995.
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na abordagem transversal de René Barbier89, pode ser considerado como um símbolo
vivo de encarnação da síntese.
Para resumir, o método sintético surgiu no fim do século XIX, como uma resposta
à crise de fragmentação e de dissociação de uma ciência divorciada da consciência.
Focaliza a totalidade, a interconexão, a forma, o contexto, visando estabelecer um
processo de ligação e de unificação. A sua tendência é amplificadora e integrativa. Diz
respeito ao conceito grego que é oposto ao do diabolos, o de symbolos, fator que religa
e restabelece a inteireza. Valorizando a visão inclusiva e global, encontra-se na base do
ideal do generalista – alguém que sabe quase nada de tudo. Trata-se de uma via
qualitativa, que utiliza mais a linguagem mito-poética e a do imaginal ou imaginação
criativa. Fundamenta-se sobre as funções psíquicas do sentimento e da intuição. Coloca
ênfase sobre a participação e a singularidade biográfica. Produz-se na instantaneidade,
no salto abrupto, no insight: não é cumulativo. Segundo uma lógica da simultaneidade,
abre-se ao universo ampliado da sincronicidade, das coincidências significativas por
meio de um princípio de conexões acausais ou de transcausalidade, de acordo com a
pesquisa junguiana. Reveste-se de um tecido vivo, leve, impreciso e desapegado da
exatidão. Guiado por uma visão introspectiva, que investiga e edifica no espaço interior.
Abre-se ao além do ego, rumo a uma consciência transpessoal. Sustenta-se na
abordagem da microfísica e do realismo quântico, caracterizado pela descontinuidade,
o princípio da superposição, a não separatividade, a não localidade e o indeterminismo.
Assume um caráter consciencial: da subjetividade, da intersubjetividade e dos valores.
Focaliza a significação e o sentido. Sua vocação é experiencial: o seu produto específico
é o fruto do laboratório vivo da vivência humana. Seu substrato metafórico
neurofisiológico é o hemisfério cerebral não dominante, geralmente o direito, da gestalt,
da musicalidade, da poesia e da não dualidade. Caracteriza o espírito clássico do
oriental, centrado sobre a experiência interior. Não se distingue do sujeito. Exerce uma
função compreensiva e de comunhão participativa. Podemos denominar de sintetista ao
agente deste caminho qualitativo rumo à realidade.
Podemos colocar em relação, de um modo sumário e indicativo, algumas
características básicas do método analítico e do sintético, no esquema abaixo:
O Método Analítico O Método Sintético
Ênfase na parte Ênfase na totalidade
“On” Holos
Reducionismo Holismo
Texto Contexto
A serviço da decomposição A serviço da unificação
Diabolos Symbolos
89 Barbier R., L’Approche Trnasversale, L’écoute sensible en sciences humaines, coll. Exploration Interculturelle et Science Sociale, Paris, Anthropos, Ed. Economica, 1997.
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Funções psíquicas: Funções psíquicas:
Pensamento e sensação Sentimento e intuição
Especialista Generalista
Via quantitativa Via qualitativa
Causalidade Transcausalidade: sincronicidade
Lógica linear de sucessividade Lógica global da simultaneidade
Determinismo Indeterminismo
Geral, regularidade Singular, biográfico
Espaço exterior: objetividade Espaço interior: subjetividade
Controle Participação
Experimental Experiencial
Macrofísica Microfísica
Realismo clássico Realismo quântico
Metáfora do hemisfério esquerdo Metáfora do hemisfério direito
Ciência e tecnologia Consciência e arte
Espírito ocidental Espírito oriental
Saber Ser
Holologia Holopráxis
Explicação Compreensão, comunhão
VIII – A Arte da Integração: o Três “O Tao engendra Um. Um engendra Dois. Dois
engendra Três. Três engendra todos os seres do mundo.”
Lao-tseu XLII90
É fundamental ressaltar que o método analítico e o método sintético não se encontram
numa relação de antagonismo, mas numa sinergia de complementaridade, como dois
caminhos rumo a um só e mesmo conhecimento humano, integrando o local com o
global e o global com o local. O conceito de complementaridade é derivado da teoria
quântica, proposto por Niels Bohr, para resolver o paradoxo partícula-onda, da
90 Lao-tseu, Tapo-tö-king, Traduit du chinois par Liou Kia-hway, Paris, Gallimard, 1967, p. 64.
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microfísica. O mesmo pode ser aplicado na polaridade metodológica análise-síntese.
Uma ênfase unilateral na análise nos conduz a uma visão de fragmentação e
dissociação, enquanto que na síntese nos leva ao globalismo e ao totalitarismo. A
abordagem transdisciplinar e holonística ou holística não é nem analítica e nem
sintética, mas uma integração destas duas vias.
Nicolescu91 afirma que as palavras três e trans tem origem na mesma raiz
epistemológica, sendo que o três é a transgressão ou o que vai além do dois. Neste
sentido, a transdisciplinaridade é a transgressão da dualidade opositora dos pares
binários, como sujeito-objeto, matéria-consciência, simplicidade-complexidade,
reducionismo-holismo, diversidade-unidade, natural-divino. Estas dualidades são
transcendidas pela unidade aberta que engloba o Universo e o ser humano.
Necessitamos, assim, de uma aliança entre o método de diferenciação analítico e o
método de fusão sintético. Nem um, nem dois; não mesclar, não separar; não fundir,
não dividir: eis um axioma básico transdisciplinar que solicita o três. Podemos
representar o valor desta heurística sinergia metodológica com o número três – que
contêm em si o um da unidade e o dois da dualidade, com o símbolo do infinito aliando,
numa dinâmica de interações constantes e paradoxais, o método analítico e o sintético:
Fig. 4: O Três da integração
Na sua obra, Edgar Morin92 insiste muito neste pensamento de Pascal, uma
verdadeira pérola da visão holística: “Todas as coisas sendo causadas e causadoras,
ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas e todas se conectando por uma ligação
natural e insensível, que liga os mais distantes e os mais diferentes, considero
impossível conhecer as partes sem conhecer o todo ou conhecer o todo sem conhecer
particularmente as partes”.
Uma afirmação da tradição taoista sustenta que o alto descansa no profundo.
Parodiando este provérbio, podemos afirmar que a síntese descansa na análise, o todo
repousa na parte, o céu descansa na terra, as asas repousam nas raízes.
Falando da metáfora do substrato neurofisiológico, o exercício salutar e o
equilíbrio desta integração se fazem no corpo caloso – corpus callosum - que religa os
dois hemisférios cerebrais, o esquerdo da análise e o direito da síntese. O que a tradição
91 Nicolescu B., La Transdisciplinarité – Manifeste, Transdisciplinarité, Coll. dirigée par Basarab Nicolescu, Paris, Éditions Du Rocher, 1996, p. 83. 92 Morin E., La méthode 1. La Nature de La Nature, Paris, Éditions Du Seuil, 1977, p. 125.
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de sabedoria simboliza como o terceiro olho ou o chifre do unicórnio. Por esta razão
afirma Carl Sagan (1934-1996)93 que o futuro da educação depende do corpo caloso.
Podemos acrescentar: igualmente o futuro da paz.
IX – Normose, a patologia da normalidade “A doença do homem normal é uma doença da
imobilidade. Saber mover a mente é contribuir para
superar esta enfermidade.”
Guillaume Le Blanc94
Pierre Weil95 definiu a normose como sendo uma anomalia da normalidade, na forma
de um “conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de
agir aprovados por um consenso ou pela maioria de pessoas de uma determinada
sociedade, que levam a sofrimentos, doenças e mortes. Em outras palavras: que são
patogênicas ou letais, executadas sem que seus autores e atores tenham consciência
da natureza patológica.” Weil afirma que uma grande parte das opiniões, das atitudes e
dos comportamentos sobre os quais recai um consenso social, na realidade conformam
tipos de normoses. Este consenso constitui uma pressão social que modela um
processo de adaptação a normas mórbidas. Um exemplo é o conceito de guerra justa,
com um apoio legal, onde as pessoas envolvidas adquirem o direito de matar os que
consideram inimigos. Neste contexto, aprende-se a matar por meio do serviço militar,
às vezes obrigatório. Um consenso análogo a este existia, antigamente, em torno do
duelo, como um caminho legítimo de lavar a honra ferida. Atualmente essa prática é
considerada ilegal, inconcebível e, até mesmo, ridícula. “Quando a guerra será
considerada como um duelo coletivo?”, indaga Pierre Weil, considerando ser possível
que a humanidade chegue a esta mesma evolução, no que diz respeito à violência e
aos conflitos bélicos.
Para contextualizar esta concepção, podemos falar em três fundamentos da
normose96. O primeiro é o sistêmico: esta anomalia da normalidade surge quando o
sistema no qual vivemos encontra-se, dominantemente, desequilibrado, doente e
corrompido, quando o que predomina são as contradições ou sintomas como a falta de
escuta, de respeito, de cuidado e de fraternidade, com uma violência alarmante e
crescente contra o indivíduo, a sociedade e a natureza. Neste contexto, uma pessoa
normal, ou melhor, normótica, é a bem ajustada ao sistema mórbido, assim contribuindo
para a manutenção do status quo. Sabemos bem, pela própria carta constitutiva da
Organização Mundial de Saúde (1946), que a saúde não é ausência de sintomas, mas
93 Sagan C., Os Dragões do Éden, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1987. 94 Le Blanc G., Les maladies de l’homme normal, VRIN Matière Étrangère, Paris, Librairie Philosophique J. VRIN, 2007, p. 37-38. 95 Weil P., Uma introdução ao conceito da normose, In: Weil P.; Leloup J-Y.; Crema R., Normose, a patologia da normalidade, Campinas, Verus Editora, 2003 p. 22; Petrópolis, Vozes, 2012, p.18. 96 Crema R., Três fundamentos da normose, In: Weil P.; Leloup J-Y; Crema R., Normose, a patologia da normalidade, Petrópolis, Vozes, 2012, p. 31-49.
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a presença de um estado completo de bem-estar nos planos somático, psíquico e social.
O fator ambiental e o espiritual foram considerados e incluídos neste conceito, mais
tarde (1998). Em outras palavras, quando um sistema se encontra, em larga medida,
num estado patológico a pessoa realmente em boa saúde é aquela que manifesta um
estado de desajustamento consciente, de uma indignação justa – como a intensa e
lúcida convocação de Stéphane Hessel97 que fala de uma insurreição pacífica – ou,
mesmo, de um desespero sóbrio.
O segundo fundamento é o evolutivo, que parte do princípio, aqui já refletido, do
inacabamento humano. O que podemos traduzir afirmando que nós não nascemos
humanos; nós nos tornamos humanos, através de um investimento sistemático no
potencial de autodesenvolvimento, de maturidade e de uma plenitude possível ao
humano. Em outras palavras, o ser humano introduziu outra ordem de complexidade na
qualidade evolutiva do planeta, que se traduz por uma dimensão consciente e
intencional evolutiva. Além dos acasos e das necessidades, das mutações genéticas
aleatórias e dos combates entre os mais aptos, segundo a seleção natural darwiniana,
a evolução humana consiste no desenvolvimento da consciência, que solicita um
trabalho sobre si mesmo nas trilhas labirínticas evolutivas do processo de individuação
que, da superfície ilusória do ego possa nos conduzir à centralidade do Self, segundo a
concepção de Jung.
Esta nova qualidade de uma evolução consciente e intencional, característica
ímpar do ser humano, é sustentada por significativas cartografias da consciência
contemporâneas, em ressonância com as tradições iniciáticas milenares. É o que
encontramos nas pesquisas de Abraham Maslow (1908-1970)98, de Carl Rogers99, de
Stanislav Grof100 e de Ken Wilber101, citando apenas alguns poucos marcantes
representantes do movimento humanista e transpessoal da ciência psíquica. Na sua
impactante obra, “L’évolution créatrice”, Henri Bergson (1859-1941)102 postula um
processo evolutivo vital e livre, opondo-se ao finalismo e à predestinação, como também
à abordagem mecanicista do evolucionismo darwiniano, que é incapaz, segundo este
filósofo, de explicar a totalidade complexa da evolução da vida. Para Bergson, como
para Ervin Laszlo103, criador e presidente do Clube de Budapeste, a teoria de Darwin
(1809-1882) não teve sucesso em explicar a origem das espécies complexas.
Edgar Morin104, que defende um aspecto meta-natural do humano, afirma que a
hominização nos conduziu a um novo começo: o hominídeo se humaniza e assim o
conceito do humano adquire um duplo princípio, biofísico e psico-socio-cultural, ligados
dialeticamente. Para este filósofo, nós nos desenvolvemos para além da realidade física
e viva; é precisamente neste além que se localiza a plenitude humana. O conceito de
97 Hessel S., Indignez-vous!, Montpellier, Indigène editions, 2011. 98 Maslow A., Vers une psychologie de l’être, Paris, Fayard, 1972. 99 Rogers C., On Becoming a Person, A therapist’s view of Psychoterapy, Boston-New York, Houghton Miffllin Company, 1995. 100 Grof S., Pour une psychologie du future, Paris, Dervy, 2002. 101 Wilber K., O espectro da consciência, São Paulo, Cultrix, 1990. 102 Bergson H., L’évolution créatrice, Paris, QUADRIGE/PUF, 2009. 103 Laszlo E., Conexão Cósmica, Petrópolis, Vozes, 1999. 104 Morin E., Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro, São Paulo, Cortez Editora, Brasília, UNESCO, 2002, p. 51.
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normose encontra-se em ressonância com certas reflexões de Morin105, sobretudo
quando, analisando as cegueiras do conhecimento, ele fala da força normalizadora do
dogma, do tabu e do determinismo das convicções e das crenças, dos conformismos
cognitivos e intelectuais. Por outro lado, com relação ao tema evolutivo, Basarab
Nicolescu106 sustenta que a nossa evolução é uma autotranscendência e que ninguém
nem nada pode nos obrigar a evoluir, já que as forças naturais da natureza, que
determinaram a evolução biológica humana, não atuam mais, o que levou a evolução
biológica ao seu final. No seu lugar surgiu um novo tipo de evolução, ligado à cultura, à
ciência, à consciência e ao encontro humano. Neste sentido, a normose se caracteriza
por uma ausência de investimento no potencial psíquico, ético e noético, representando
um estado de estagnação da evolução consciente, propriamente humana.
O terceiro fundamento é o paradigmático, tal como concebido num sentido mais
vasto, por Thomas Kuhn (1922-1996)107. Neste caso, a normose surge quando o
paradigma que ainda prevalece encontra-se esgotado no seu potencial criativo e, até
certo ponto, esclerosado, sendo que o paradigma emergente é postulado por um grupo
minoritário. Como afirmava Max Planck (1858-1947), segundo Kuhn, uma nova verdade
científica não triunfa pelo convencimento dos seus oponentes, facilitando que vejam as
novas luzes, mas porque, simplesmente, eles morrem. Assim, de enterro a enterro e de
nascimento a nascimento uma nova geração se desenvolve, aberta e receptiva ao novo
aprender a aprender. Encontra-se aqui em jogo a nobreza indicada por esta paradoxal
e feliz expressão de Henry Thoreau (1817-1862)108, a maioria de um.
Falando a respeito das doenças do ser humano normal, Le Blanc109 afirma que
a normalidade é, no início, uma criança na qual o sonho de ar fresco é levado em conta
pelos julgamentos dos pais e dos adultos, sendo que os desejos e a vida psíquica da
criança são construídos neste estado de sujeição e de modelagem. Considerando que
a personalização é um processo de fornecer um sentido às nossas atividades, Le Blanc
postula que falar de um ser humano normal é precisamente encerrá-lo nas clausuras de
uma identidade definitiva, que o priva de toda a possibilidade de alteridade e de
personalização. Neste sentido, o horror da doença é o grande temor da novidade,
quando a angústia se torna o modo de ser da pessoa considerada normal. Para este
autor, a normalidade se apresenta como exemplaridade ou como uma suposta saúde
que termina na prisão a uma norma única, que expõe a pessoa a todas as enfermidades
possíveis.
Enfim, ao lado de uma estagnação do desejo evolutivo, um aspecto muito
importante da normose é o medo da individualidade ou da individuação, ou seja, um
temor da pessoa tornar-se um sujeito único, dotada de um semblante particular e capaz
de contar a sua história, assumindo-se como o autor e ator da própria existência.
105 Morin E., op. cit., p. 27-28. 106 Nicolescu B., op. cit., p. 109. 107 Kuhn T., La structure des Révolutions Scientifiques, Paris, Flammarion, 2008. 108 Thoreau H. D., Walden ou la vie dans le bois, Paris, Flammarion, 1990. 109 Le Blanc G., op. cit., p. 23-28.
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X – O horizonte do Sujeito: muito além da normose “Em que jogo nós estamos? Participamos de muitos jogos,
jogados, joguetes, mas, ao mesmo tempo, jogadores. Toda
existência humana é, ao mesmo tempo, jogadora e jogada; todo
indivíduo é uma marionete manipulada do anterior, do interior e
do exterior e, ao mesmo tempo, um ser que se autoafirma na sua
qualidade de sujeito.”
Edgar Morin110
A dimensão emancipadora que decorre, naturalmente, do processo de construção do
sujeito rumo a uma diferenciação e a consciência de alteridade é um tema importante
para a biografização de percurso. Entretanto, o desafio do vir-a-ser um artesão da
própria existência é uma verdadeira tarefa maior, que implica em superar certo número
de obstáculos, como o medo de caminhar rumo ao desconhecido, com a perda dos
referenciais habituais e sempre a necessidade de lutar contra as resistências do mundo
intrapsíquico e do universo relacional. Em outras palavras, é necessário transgredir a
patologia do conformismo e da estagnação evolutiva, que denominamos de normose.
Abraham Maslow111 denominou de complexo de Jonas a uma força de
resistência e de inércia que impede o processo de desenvolvimento e de autorrealização
individual. Trata-se de uma compulsiva recusa de crescer e de explorar os próprios
talentos, um tipo de temor da própria altitude, grandeza e capacidade realizadora. O
arquétipo de Jonas, um personagem do Antigo Testamento, fala de um homem que
recusa escutar e seguir a voz da sua própria consciência profunda, que lhe convoca a
abandonar o conforto da sua existência tranquila, para realizar uma missão numa
grande cidade. Jonas – um nome hebraico que significa pomba das asas cortadas – é
um homem totalmente ordinário, que prefere seguir na sua pequena e rotineira
existência, quando uma tempestade surge no seu caminho de fuga, o que o conduzirá
a um mergulho até o ventre de um grande peixe. Em síntese, Jonas simboliza o medo
do ser humano de se tornar inteiro, autêntico e verdadeiro, que o conduz à fuga do
próprio destino ou destinação. Este complexo se traduz no arraigado medo da
diferenciação, do assumir o próprio semblante original, ou seja, o temor da
autorrealização. A tempestade que atravessa o seu caminho pode significar os
sintomas, as doenças e os infortúnios que a pessoa atrai, quando foge de si mesma. É,
também, uma oportunidade de despertar para colocar-se num caminho criativo de
transformação, rumo à plenitude.
Jean-Yves Leloup112 na sua extraordinária obra, Caminhos da Realização,
realiza uma interpretação impecável e vasta do tema do complexo de Jonas, nele
desvelando um caminho em direção ao despertar transpessoal, a partir de um amplo
mapa dos medos do ego de nosso psiquismo pessoal. Leloup afirma que Jonas se
110 Morin E., La méthode, 5. L’humanité, L’identité humaine, Paris, Éditions du Seuil, 2001, p. 330. 111 Maslow A. H., Vers une psychologie de l’être, Paris, Fayard, 1972. 112 Leloup J-Y., Caminhos da Realização – Dos medos do eu ao mergulho no Ser, Petrópolis, Vozes, 1996.
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encontra no interior de cada ser humano, como o próprio arquétipo da normose, uma
força de resistência que atua quando recebemos o convite para despertarmos do sono
banal de uma existência sem sentido. A sua profunda leitura simbólica da trajetória de
Jonas é uma indicação e inspiração para a aventura heroica da realização vocacional,
longo processo de florescimento de nossos talentos naturais e singulares.
Por outro lado, falando do problema de Jonas com relação à tensão entre o
trágico e o trivial, Arthur Koestler113 afirma que o simples mortal passa praticamente toda
a sua existência no plano banal, exceto em algumas ocasiões excepcionais, como
durante as turbulências da puberdade ou numa aventura passional ou no confronto com
a morte, quando acontece a súbita queda no abismo do trágico. Para Koestler, a força
dos hábitos e das convenções nos aprisiona nas correntes quase imperceptíveis do fator
trivial, tal dinâmica transcorrendo no nível subconsciente. “São as normas coletivas, os
códigos de conduta, as matrizes axiomáticas que determinam as regras do jogo e nos
fazem avançar quase todos, quase sempre, nos traços do hábito, reduzindo-nos ao
estado de autômatos bem vestidos, que os behavioristas apresentam como a verdadeira
condição do ser humano”, sustenta o autor, traçando um resumo muito perspicaz da
normose.
O que nos evoca os heróis do romance de formação, centrado nas trilhas
contínuas de aprendizagem e de desenvolvimento de si, é o percurso iniciático
indispensável em direção a uma plena realização do potencial humano, que solicita a
lúcida ousadia de transgredir a enfermidade do trivial e da mediocridade, ou seja, a
normose.
Confrontar-se e ousar um voo além da normose é imprescindível e representa o
desafio árduo da aventura evolutiva, no processo heroico e imperativo do indivíduo
assumir a condição de autoria, como o sujeito da própria existência.
Enfim, pela cisão ocorrida entre a ciência moderna e a consciência, o sentido e
a complexidade do real, que ocorreu no século XVII, com o agravamento do “big bang
disciplinar” e o cientificismo do século XIX – fundado sobre a crença simplista que um
só tipo de conhecimento é detentor das vias de acesso à realidade – num momento
obscuro da modernidade o sujeito se degenerou em objeto. Esta é a grande importância
da abordagem biográfica que, por sua própria natureza, representa o retorno do sujeito
ao cerne da pesquisa científica. Por outro lado, a atitude transdisciplinar significa um
acordo e uma sinergia entre o sujeito e o objeto, a partir do pressuposto de um processo
de integração e de harmonização entre o espaço exterior da efetividade e o espaço
interior da afetividade, entre o saber e o ser.
A construção do sujeito e a conquista da paz são como dois olhares de um
mesmo semblante: o de um ser humano em marcha, rumo à utopia realizável de uma
completude sempre inacabada.
113 Koestler A., La quête de l’absolu, Commentaires d’Arthur Koestler traduits par George Fradier et Muriel Zygband, Paris, Calmann-Lévy, 1981, p. 368-370.
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