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211 A CONSTRUÇÃO DOGMÁTICA COMO FATOR CONDICIONANTE DA EFETIVAÇÃO DE DIREITOS * DOGMATIC CONSTRUCTION AS A CONDITIONANT ON EFFECTIVENESS OF RIGHTS João Carlos Carvalho da Silva Vinícius José Corrêa Gonçalves RESUMO O presente trabalho busca, inicialmente, diferenciar, no âmbito do direito constitucional, as noções de eficácia e efetividade, de modo a revelar como insuficientes para a promoção dos direitos fundamentais as referências doutrinárias feitas tão-somente à noção à primeira, à qual se deve adicionar o elemento da efetividade, sob pena de se produzirem teorias estéreis no tocante à prestação do direito material. Ressalta-se, nesse ponto, a importância da dogmática constitucional enquanto instância apta a limitar ou avançar na construção de direitos. Sem recusar valor a esta dogmática - reputada como construção eminentemente ideológica – sugere-se uma prática voltada à conscientização e aceitação de seu potencial antidemocrático, de modo a permitir uma atuação emancipatória do direito, pautada, aqui, na dignidade da pessoa humana. De outra parte, visando ilustrar estas premissas, apresentam-se dois recortes jurídicos. No primeiro - de caráter notadamente dogmático – apresentam-se em confronto um modelo arcaico e outro moderno de direito constitucional, representado este último pelo neoconstitucionalismo que, encampando verdadeira inovação em relação às teorias tradicionais, a elas se opõe na tentativa de maximizar a efetividade da Constituição Federal. O segundo, baseado na jurisprudência, ressalta a possibilidade judicial de criação ou obstaculização de direitos, utilizando-se como exemplo prático o instituto do mandado de injunção. PALAVRAS-CHAVES: DOGMÁTICA CONSTITUCIONAL. EFETIVIDADE. IDEOLOGIA. ABSTRACT This paper, initially, aims to differentiate in the context of constitutional law, the concepts of efficacy and effectiveness, revealing as insufficient for the promotion of fundamental rights the doctrinal references made only about the notion of efficacy, for which it must add the effectiveness’ element, avoiding produce sterile theories regarding the provision of substantive law. It is emphasized, at this point, the importance of constitutional dogmatic as limit or improvement in building rights. Without refuse value to this dogmatic - regarded as highly ideological construction - it is suggested a practice focused on awareness and acceptance of its anti-democratic potential, to allow an emancipatory role of law, based here, in the dignity of the human person. On the other hand, to illustrate these assumptions, there are two legal cutouts. In * Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

A CONSTRUÇÃO DOGMÁTICA COMO FATOR … · eficácia é pressuposto da efetividade. Em sendo assim, as construções doutrinárias relativas à eficácia das normas constitucionais

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A CONSTRUÇÃO DOGMÁTICA COMO FATOR CONDICIONANTE DA EFETIVAÇÃO DE DIREITOS *

DOGMATIC CONSTRUCTION AS A CONDITIONANT ON EFFECTIVENESS OF RIGHTS

João Carlos Carvalho da Silva Vinícius José Corrêa Gonçalves

RESUMO

O presente trabalho busca, inicialmente, diferenciar, no âmbito do direito constitucional, as noções de eficácia e efetividade, de modo a revelar como insuficientes para a promoção dos direitos fundamentais as referências doutrinárias feitas tão-somente à noção à primeira, à qual se deve adicionar o elemento da efetividade, sob pena de se produzirem teorias estéreis no tocante à prestação do direito material. Ressalta-se, nesse ponto, a importância da dogmática constitucional enquanto instância apta a limitar ou avançar na construção de direitos. Sem recusar valor a esta dogmática - reputada como construção eminentemente ideológica – sugere-se uma prática voltada à conscientização e aceitação de seu potencial antidemocrático, de modo a permitir uma atuação emancipatória do direito, pautada, aqui, na dignidade da pessoa humana. De outra parte, visando ilustrar estas premissas, apresentam-se dois recortes jurídicos. No primeiro - de caráter notadamente dogmático – apresentam-se em confronto um modelo arcaico e outro moderno de direito constitucional, representado este último pelo neoconstitucionalismo que, encampando verdadeira inovação em relação às teorias tradicionais, a elas se opõe na tentativa de maximizar a efetividade da Constituição Federal. O segundo, baseado na jurisprudência, ressalta a possibilidade judicial de criação ou obstaculização de direitos, utilizando-se como exemplo prático o instituto do mandado de injunção.

PALAVRAS-CHAVES: DOGMÁTICA CONSTITUCIONAL. EFETIVIDADE. IDEOLOGIA.

ABSTRACT

This paper, initially, aims to differentiate in the context of constitutional law, the concepts of efficacy and effectiveness, revealing as insufficient for the promotion of fundamental rights the doctrinal references made only about the notion of efficacy, for which it must add the effectiveness’ element, avoiding produce sterile theories regarding the provision of substantive law. It is emphasized, at this point, the importance of constitutional dogmatic as limit or improvement in building rights. Without refuse value to this dogmatic - regarded as highly ideological construction - it is suggested a practice focused on awareness and acceptance of its anti-democratic potential, to allow an emancipatory role of law, based here, in the dignity of the human person. On the other hand, to illustrate these assumptions, there are two legal cutouts. In

* Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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the first - especially of dogmatic nature - are in a confrontation an archaic model and other modern of constitutional law, the latter represented by neoconstitucionalism, which represents true innovation on the traditional theories and faces them to the attempt to maximize the effectiveness of Federal Constitution. The second one, based on case law, emphasizes the judicial possibility of creating or avoiding rights, using as practical example of the writ of injunction.

KEYWORDS: CONSTITUTIONAL DOGMATIC. EFFECTIVENESS. IDEOLOGY.

1 Introdução

O tema da eficácia das normas constitucionais é assunto que está sempre em pauta no debate doutrinário e acadêmico. Isso se justifica pela situação de carência experimentada por grande parcela dos cidadãos, os quais se vêem alijados de oportunidades básicas para uma vida digna. Paradoxalmente, incrementa-se cada vez mais a gama de direitos fundamentais no corpo da Constituição Federal, bem como alimenta-se paulatinamente esta inclusão através da produção teórica em torno deles. Justamente por isso, uma das nuanças do assunto que se torna particularmente relevante no presente momento histórico, diz mais diretamente com a efetividade das normas constitucionais (i. e, sua eficácia social) do que propriamente com a previsão de direitos e a construção de teorias acerca de sua eficácia jurídica e aplicabilidade (que outrora exerceram papel fundamental na “luta pelo direito” e ainda o continuam exercendo).

Em âmbito estritamente jurídico, é possível dizer que eficácia refere-se à simples possibilidade de aplicação da norma. Para deter esta potencial aplicabilidade, mister que reúna em si todos os requisitos para viger e, da mesma forma, seja legitimamente formulada. Por outro lado, efetividade relaciona-se com o que José Afonso chama de eficácia social, ou seja, refere-se à efetiva aplicação da norma no contexto social, quando esta alcança seus objetivos (SILVA, 2000, p. 60-65).

É importante observar que muito desse segundo aspecto (eficácia) tem importância decisiva no tocante ao primeiro deles (efetividade), ou seja, a teorização da eficácia das normas constitucionais tem grande influência na própria questão da efetividade da Constituição Federal e na efetiva entrega do direito material ao jurisdicionado.

Obviamente, a lei não se aplica a si mesma. Necessita, antes de tudo, de substrato humano e material para transformar a realidade circundante. Todavia, o conjunto de saberes (e fazeres) em torno da lei pode, em via oposta, obstar sua aplicação criativa e construtiva, ainda que haja aparelhamento estatal suficiente para tanto.

Nesse caso, torna-se imprescindível questionar qual deve ser o papel desempenhado pela dogmática constitucional[1] na construção dos direitos. Seria, de fato, construí-los, ou apenas analisá-los, agrupá-los e classificá-los, sob o manto do rigor científico, mesmo que isso significasse impor obstáculos à sua efetivação?

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No estudo da efetividade e da eficácia das normas constitucionais, a doutrina jurídica tem dado preferência à segunda, tratando-a como conceito eminentemente técnico-jurídico. A efetividade, por sua vez, embora também detenha contornos jurídicos, apresenta maior amplitude social, o que torna mais dificultoso seu estudo, razão pela qual tem sido relegada ao plano sociológico.

Entende-se efetividade como algo posterior à eficácia. Somente possuindo eficácia e, conseqüentemente, aplicabilidade social, é que se poderá aferir o grau de efetividade da norma, ou seja, o seu alcance social e a extensão de seus efeitos na comunidade. Logo, a eficácia é pressuposto da efetividade.

Em sendo assim, as construções doutrinárias relativas à eficácia das normas constitucionais desempenham papel determinante na prestação jurisdicional e na entrega do bem material ao cidadão, já que são pré-requisito da aplicabilidade social da norma.

Com isso, o que se quer evidenciar é que o papel do jurista torna-se tão ou mais relevante do que o do próprio legislador, sobrelevando-se a hermenêutica como ciência fundamental no contexto jurídico-social.

Dado o caráter criativo da interpretação, é lícito afirmar que o intérprete, ao buscar o sentido do texto legal, exerce um papel construtivo desse sentido e atua de maneira transformadora na realidade social.

Com efeito, o jurídico não preexiste ao conhecimento. Consectário lógico é que aquele não pode ser descrito por este, mas é construído pelo ato mesmo de conhecer. Ou seja, o jurista “cria e modifica o direito à medida que, em o conhecendo, interpreta-o” (COELHO, 2003, p. 398).

Sob esse ponto de vista, a dogmática ganha enorme relevância social, porquanto diretamente vinculada ao texto normativo, aos fatos concretos e aos valores sociais. Constitui-se, pois, numa ponte que, ao ligar estes três elementos, constrói a norma que irá incidir no caso concreto, buscando, com isso, a resolução de conflitos e a harmonia social calcada na idéia de justiça. Assim, aquele que se dispõe a estudar o fenômeno jurídico possui uma responsabilidade inafastável para com o social, pois inserido nele.

2 Crítica à dogmática constitucional: tentativas de estabelecer um parâmetro de qualidade teórica

A dogmática jurídica é severamente criticada como instância ideológica, destinada a viabilizar a manutenção da ordem social, econômica e política em favor dos interesses de grupos microssociais hegemônicos (COELHO, 2003, p. 352). Subscrevendo, a princípio, esta idéia, há que se antever que, na ocasião da constatação desse caráter ideológico da dogmática jurídica, não deve o jurista rejeitar a dogmática como objeto desde já viciado, mas operar um direito emancipatório, que almeje a eliminação do discurso dominador do direito. Para isso, é fundamental conhecer o grau de alienação que incide no discurso jurídico, de modo a nele atuar conscientemente.

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COELHO (2003, p. 175-179) refere-se à dogmática jurídica como sendo o “saber construído a partir das normas aceitas como uma realidade a ser mantida, independentemente de considerações outras que não sejam puramente normativas”. Aduz que tal conceituação, sofrendo contínua atenuação ao longo dos anos, atualmente não exclui um “posicionamento crítico de caráter axiológico, tendo em vista certos valores consagrados de lege lata, em confronto com os que o Estado legislador preconiza de lege ferenda”.

Segundo o autor, não se trata de “identificar a ideologia, descrevê-la como objeto e comentá-la de um ponto de vista exterior a ela, mas, [...] assumi-la, enfim, como algo imanente que pode modificar o social e ser por ele modificado” (COELHO, 2003, p. 137).

Entretanto, é possível reconhecer legitimidade à dogmática atualmente praticada no cenário jurídico brasileiro. Isso porque, se de um lado a positivação meramente formal e ideológica dos direitos fundamentais serve, em grande medida, tão somente para aplacar os anseios sociais (constitucionalização simbólica), é igualmente verdade que muitos destes direitos emanam de reivindicações e lutas sociais que se construíram verdadeiramente ao longo da história, possuindo, por esta razão, nítido caráter protetor e emancipatório. E mesmo se assim não fosse, deve-se reconhecer o caráter legitimamente garantístico dos direitos fundamentais, muitos dos quais apresentam plena justiciabilidade e, por conseguinte, efetiva aplicação social.

No mais, a ideologia se faz presente na dogmática através da “ideologização” dimanada dos próprios juristas. Destarte, se a construção dogmática sempre depende da atuação destes juristas, certamente ela sempre conterá um mínimo de caráter ideológico. Por esta razão, torna-se mais profícuo discutir a atuação do jurista em nível de consciência/alienação (para usar a terminologia de Coelho) do que se rebelar contra a ideologia do direito e buscar um modelo isento e inalcançável. Ou seja, mister reconhecer o caráter ideológico do direito e proceder a um exercício contra-ideológico e libertador, haja vista que toda construção doutrinária será sempre premida por concepções particulares e interessadas do mundo.

A dúplice fundamentação (de um lado, a fundamentação metafísica do jusnaturalismo e, de outro, a fundamentação científica do positivismo) que sustentou o direito ao longo dos séculos parece suficiente para possibilitar uma atuação participativa e comprometida do jurista, tendo em vista que ambos os modelos podem assentar-se, perfeitamente, no princípio da dignidade da pessoa humana, o qual se traduz no apogeu dos direitos naturais e no alicerce das modernas democracias calcadas no direito positivo.

Tal princípio é apresentado por Ana Paula de Barcellos como parâmetro hermenêutico para a resolução de conflitos normativos. Segundo a autora, as normas que promovem diretamente a dignidade devem prevalecer sobre aquelas que apenas indiretamente contribuem para esse fim, no caso de estarem em conflito. Esse é o critério utilizado pela autora em seu esquema racional de ponderação. É um critério material que simboliza uma opção valorativa inerentemente subjetiva.

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Justamente por se mostrar subjetiva é que exige uma justificação racional, sob pena de, instaurando verdadeira ditadura de valores, negar a pluralidade cultural característica à sociedade contemporânea.

Em termos substanciais, pode-se afirmar a preponderância das normas configuradoras da dignidade humana com base no consenso subjetivo que há acerca da importância e imprescindibilidade do princípio da dignidade humana para o sistema político-jurídico nacional e internacional.

Tanto no plano interno, com a Constituição Federal de 1988, quanto no plano internacional, com a criação de inúmeros tratados versando sobre direitos humanos, elegeu-se o princípio da dignidade da pessoa humana como valor fundamental a ser respeitado e concretizado por todos.

Mesmo os procedimentalistas, que não admitem a construção de consensos ou unanimidades em uma sociedade pluralista, vêem no princípio em comento uma referência indeclinável. Isto porque, na óptica deles, o respeito à dignidade é pressuposto indispensável para o funcionamento adequado dos procedimentos legitimadores do direito e da própria democracia.

Principalmente após a Segunda Guerra, diversas Constituições e, dentre elas, a brasileira, passaram a promover e proteger a dignidade da pessoa humana expressamente através de preceitos positivados nos textos constitucionais. Tal princípio tornou-se central no cenário jurídico pátrio, consistindo em fundamento do próprio Estado Democrático de Direito, vez que a própria CF/88 o enfatiza como valor guia para o restante do ordenamento.

No plano internacional, o princípio da dignidade da pessoa humana é inserido na noção de direitos humanos. Atualmente, muitos são os organismos internacionais que, integrados por diversos países do mundo, consideram a proteção aos direitos humanos um de seus objetivos principais. É o que se nota pelo grande número de tratados e acordos internacionais abordando pontos relacionados com a proteção dos direitos humanos (BARCELLOS, 2005, p. 255).

Nesse sentido, afirma Jürgen Habermas que “a legitimação do direito nas sociedades contemporâneas deve ser construída a partir do consenso obtido por meio da comunicação e diálogo públicos, e não a partir de argumentos autoritativos ou consensos materiais prévios” (apud BARCELLOS, 2005, p. 264). Todavia, a escolha do princípio da dignidade da pessoa humana não traduz apenas uma escolha apriorística e pessoal. Ao contrário, é uma constatação da realidade político-jurídica dos ordenamentos ocidentais.

Sobre esse ponto conclui Barcellos que:

seja por se tratar de uma opção material claramente perceptível na Constituição de 1988, seja por decorrer de um consenso universal, seja pela necessidade de construir um ambiente no qual procedimentos democráticos e eqüitativos possam funcionar, a prioridade das normas que diretamente promovem a dignidade – quando em conflito insuperável com outras cuja relação com o bem estar individual seja apenas indireta –

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encontra-se amplamente justificada do ponto de vista jurídico e racional (BARCELLOS, 2005, p. 270).

Sendo lícita a utilização do principio da dignidade da pessoa humana como parâmetro para a resolução de conflitos entre normas, poder-se-á aceitá-lo, também, como medida para o abalizamento de teorias jurídicas.

Diferentemente das ciências naturais, as ciências sociais (dentre elas a jurídica) são necessariamente premidas por escolhas pessoais a partir de interpretações subjetivas. Destarte, decisões pautadas em regras jurídicas serão válidas apenas quando racionalmente justificadas. E o serão quando partirem de embasamentos principiológicos aceitos pela comunidade.[2]

Algumas dificuldades, porém, instalam-se a partir desse ponto. A primeira delas refere-se à possibilidade de, com tal condicionamento axiológico único/restrito, podar-se a criação teórica pautada em paradigmas diferentes do eventualmente escolhido, o que reduziria o potencial criativo do jurista, tornando-se, mesmo, um fator de arbitrariedade.

Esta crítica, porém, padece de fundamento na medida em que remanesce a possibilidade de uma inversão de paradigmas, bastando, para tanto, aceitar a idéia da inexistência de valores absolutos. Ademais, levando-se em conta o que anteriormente foi dito acerca do conteúdo ideológico da dogmática, há que se aceitar que mais importante do que a gama de valores que emanam do ordenamento é o modo pelo qual o jurista os utiliza. Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana vale muito mais como um guia voltado à práxis do que à teoria.

Em segundo lugar, poder-se-ia argumentar que a introdução tão aberta de determinados valores no direito retiraria dele sua pureza científica, contribuindo para a insegurança jurídica e abrindo as portas para o subjetivismo decisionista. Ora, o sistema jurídico é baseado em princípios e estes apresentam grande carga axiológica. Além disso, as decisões judiciais, as opções legislativas e as técnicas científico-doutrinárias são igualmente permeadas de valorações e opções subjetivas. Negar tais fatos é fechar os olhos à realidade e agir ideologicamente. De outro lado, o controle das decisões se faz a partir da analise de sua fundamentação, decorrência de mandamento constitucional inserido no artigo 93, IX, da CF.

Por fim, a dificuldade em definir qual o princípio ou valor a ser dado como pedra-angular da construção dogmática é superada mediante o acordo comum. Certamente, esse acordo não é obtido sem o mínimo de consciência crítica.

Se é possível vincular a um direito tão individual como o de propriedade um princípio, o interesse social (função social da propriedade), é igualmente possível fazer da dogmática constitucional um instrumento de construção de direitos em vez de uma ciência objetiva das leis, utilizando-se para isso o parâmetro da dignidade da pessoa humana.

Isso não implica em determinar que esta ou aquela doutrina acerca da eficácia das normas constitucionais esteja certa ou errada. Mas permite opor a uma delas outra que seja fundada em padrões determinados e essencialmente construtivos. Para tanto,

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funcionará o princípio da dignidade da pessoa humana como verdadeiro padrão de qualidade.

Em virtude desse parâmetro – que já se encontra em prática - ocorre atualmente uma mudança significativa na dogmática constitucional, voltada a formulações hermenêuticas que priorizam a noção de constitucionalização do ordenamento jurídico. Porém, nem sempre há a preocupação em garantir a máxima eficácia aos direitos fundamentais, sendo que construções dogmáticas, por vezes, servem para obstruir a concessão de direitos, exercendo papel verdadeiramente contraproducente. De fato, teorias doutrinárias podem frustrar a efetividade de direitos, na medida em que valorizam excessivamente o formalismo e o processo como fins em si mesmos. Como reação, a doutrina moderna tem procurado superar a síndrome de inefetividade das normas constitucionais, proporcionando inclusão social e a realização das promessas constitucionais.

3 Novos paradigmas em direito constitucional

As normas constitucionais possuem, modernamente, verdadeiro status de normas jurídicas, apresentando um caráter induvidoso de imperatividade, que se traduz em eficácia e aplicabilidade. Em virtude disso, merecem observância obrigatória por parte do Poder Público e dos cidadãos.

Segundo José Afonso da Silva:

se uma constituição é um documento jurídico, um sistema normativo, e fundamentalmente jurídico, não forma sentido admitir que nesse conjunto normativo existam disposições não-jurídicas, meramente diretivas e indicativas, como se sustenta para as normas programáticas (SILVA, 2000, p. 49).

Tal imperatividade é amplificada pela idéia de supremacia que marca o texto constitucional, o qual vincula, além das condutas sociais, os demais sub-ordenamentos jurídicos infraconstitucionais (BONTEMPO, 2008, p. 156).

É possível vislumbrar no presente cenário jurídico uma nova abordagem do direito constitucional – o neoconstitucionalismo - caracterizada pela idéia de força normativa da constituição, segundo a qual as normas constitucionais dispõem de verdadeira eficácia jurídica e aplicabilidade social, não se apresentando como meros programas políticos.

Para as correntes que encampam o neoconstitucionalismo afirmar que as normas constitucionais têm força normativa é reconhecer que a Constituição não é apenas uma carta de intenções políticas, mas que está dotada de caráter jurídico imperativo. Se a Constituição vale como uma lei, as regras e os princípios constitucionais devem obter normatividade, regulando jurídica e efetivamente as condutas e dando segurança a expectativas de comportamentos (CAMBI, 2007, p. 6-7).

No mais, Silva já reconhecia força jurídica à constituição, aduzindo que

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não se nega que as normas constitucionais têm eficácia e valor jurídico diversos umas de outras, mas isso não autoriza recusar-lhes juridicidade. Não há norma constitucional de valor meramente moral ou de conselho, avisos ou lições. Todo princípio inserto numa constituição rígida adquire dimensão jurídica (SILVA, 2000, p. 80).

Aliada à noção de neoconstitucionalismo, apresenta-se também uma nova compreensão hermenêutica nominada pós-positivismo. De acordo com ele, admite-se que certos valores compartilhados pela comunidade, em dado momento histórico, adentram no campo jurídico e se materializam nos princípios constitucionais. O que há de realmente novo nessa concepção é que tais princípios, reconhecidamente, possuem força normativa (BONTEMPO, 2008, p. 172).

Registre-se que o caráter normativo e imperativo pleiteado por estes novos ideais também deve incidir sobre as chamadas normas de eficácia limitada de conteúdo programático. Na medida em que traçam programas para atuação do legislador, norteiam a implementação de importantes políticas e ações sociais, condicionando a atuação do Poder Público e de seus órgãos.

Com efeito, é possível afirmar que

o reconhecimento da força normativa da Constituição marca uma ruptura com o Direito Constitucional clássico, onde se visualizavam normas constitucionais programáticas que seriam simples declarações políticas, exortações morais ou programas futuros e, por isto, destituída de positividade ou de eficácia vinculativa (CAMBI, 2007, p. 07).

Não se ignora a crítica dirigida a tais teses, no sentido de que é inapropriado falar-se em neoconstitucionalismo se ainda o direito constitucional pátrio não alcançou as promessas do constitucionalismo e da modernidade. Entretanto, para além da nova terminologia, o que se pretende evidenciar é que tais teorias se comprometem na mesma ou em maior medida a realizar o projeto constitucional na construção de uma sociedade livre, justa e igualitária.

Assim, nota-se, pela inovação terminológica, que a doutrina tem procurado criar novos conceitos visando à superação de paradigmas ineficazes de efetivação de direitos fundamentais, almejando tornar efetivos os mais importantes direitos previstos na Constituição Federal - muitos dos quais nem saíram do papel.

Destarte, buscando diretamente a realização dos direitos fundamentais, culminam com a promoção da dignidade da pessoa humana. A partir daí, é possível entender esta nova atitude teórica como criação comprometida com a realização do valor básico da dignidade da pessoa humana, desvinculando-se da produção abstrata de conceitos pela simples técnica que isto requer.

4 Modelos tradicionais acerca da eficácia das normas constitucionais

Remonta a Rui Barbosa a classificação das normas conforme sua eficácia, o qual as subdividia, baseando-se em direito estrangeiro, em auto-executáveis e não auto-

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executáveis. A partir daí, diversas foram as classificações propostas pela doutrina acerca da eficácia das normas constitucionais.

A classificação proposta por José Afonso da Silva, consistente em enumerar as normas jurídicas como sendo de eficácia plena, contida e limitada (estas últimas em organizativas e programáticas), é uma das mais conhecidas e aceitas na doutrina pátria.

Segundo sua classificação, as normas de eficácia plena ensejariam aplicabilidade imediata, direta e integral de todos os seus efeitos, a partir de sua entrada em vigor. As normas de eficácia contida, por sua vez, possuiriam aplicabilidade direta e imediata, mas não integral, uma vez que, em determinadas ocasiões, poderiam ser restringidas pela atuação discricionária posterior do Poder Publico.

Quanto às normas de eficácia limitada, elas deteriam aplicabilidade indireta e reduzida, necessitando de normatividade ulterior (infraconstitucional) para sua completa implementação. Dividem-se em normas programáticas (traçam diretrizes e programas a serem cumpridos visando aos fins sociais do Estado) e normas organizatórias (estabelecem esquemas para a organização e estruturação dos órgãos estatais).

Quanto aos dois primeiros grupos (eficácia plena e contida), existe razoável consenso no tocante à aplicabilidade das normas e, por conseguinte, à implementação dos direitos por elas assegurados, já que elas possuem normatividade suficiente para serem imediatamente aplicadas. Todavia, a situação difere quando se fala em normas de eficácia limitada de conteúdo programático.

As normas de caráter programático têm como denominador comum a baixa densidade normativa ou, ainda, uma normatividade “insuficiente para alcançarem plena eficácia, porquanto se trata de normas que estabelecem programas, finalidades e tarefas a serem implementados pelo Estado” (SARLET, 1998, p. 265).

Tais normas são identificadas, por vezes, com as normas de cunho prestacional, notadamente as consagradoras de direitos sociais, uma vez que estas dependem da atuação do legislador ordinário e do Poder Público para sua efetiva concretização no seio social.

Assim, é possível se falar em (a) direitos de defesa, oponíveis pelo particular em face do Estado, integrados principalmente pelos direitos individuais (liberdade, igualdade, etc.), positivados em normas de eficácia plena; e (b) direitos a prestações. Estes são formados, principalmente, a partir dos direitos sociais, positivados através de normas de cunho programático.

Os direitos individuais, por um lado, dificilmente reclamam a criação de uma lei que os complemente em sua eficácia, já que se referem, na maioria das vezes, a limitações impostas ao Estado (dever de abstenção). Além disso, o legislador conferiu a esta gama de direitos grande densidade normativa, o que permite sua aplicação imediata e eficácia plena.

Com relação aos direitos sociais, a questão torna-se intrincada à medida que sua implementação depende de uma atuação positiva por parte do Estado, seja para criar

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condições materiais próprias à concretização do direito, seja no sentido de produzir uma legislação ordinária que regule a matéria constitucional, tornando-a exeqüível.

Quer parecer, portanto, que a eficácia dos direitos sociais estará sempre condicionada a uma atuação futura, seja do legislador, seja do administrador, propiciando-se condições efetivas para a concretização dos objetivos estampados na norma constitucional positivada através de fórmulas programáticas.

Não é a simples classificação (direitos prestacionais) ou o a técnica pela qual são positivadas (normas programáticas) que determina o seu grau de eficácia e aplicabilidade das normas. De fato, há um processo racional de análise do direito constitucional que permite agrupar suas normas segundo um gênero semelhante e distingui-las através de uma diferença específica.

Logo, os direitos prestacionais não o são em virtude de serem classificados como tais. Ao contrário, tal nomenclatura lhes é atribuída em virtude de suas características em comum. Na hipótese, porque demandam prestações por parte do Estado.

Todavia, a classificação das normas e a técnica pela qual são positivadas acabam, muitas vezes, numa verdadeira inversão de posições, por definir o conteúdo dos princípios constitucionais no imaginário doutrinário e jurisprudencial.

Tanto é que Silva, citando Recaséns Siches, aduz que o mister de julgar está premido por valorações ou estimativas, as quais não seriam, todavia, mera projeção dos critérios axiológicos pessoais do juiz. Ao contrário, empregaria o juiz, “como critérios valoradores, precisamente as pautas axiológicas consagradas na ordem jurídica positiva”, interpretando esses cânones previamente estabelecidos de modo a adequá-los às situações concretas (SILVA, 2000, p. 157).

Assim, a repetição incessante destas “verdades”, a saber, que determinadas normas possuem caráter programático-prestacional, acaba por inculcar na dogmática constitucional a ideia (falsa e ideológica) de uma natureza ontológica da norma constitucional, roubando destas normas, de antemão, toda a potencial eficácia que lhe poderia ser destinada pelo jurista. Assim, resta fragilizado o trabalho interpretativo do operador do direito enquanto construtor do sentido do texto e criador da norma, a qual há de variar perante o caso prático e a análise concreta. De fato, um dos efeitos mais danosos da produção da verdade é a conseqüente incapacitação de o jurista desenvolver um pensamento crítico por si mesmo, o que se nota claramente no universo acadêmico das faculdades de direito, mais parecidas com cursos pré-concurso.

Além disso, a tese da reduzida eficácia das normas programáticas pode ensejar a classificação de programática de toda norma constitucional incômoda. No dizer de José Afonso, “seria fácil, assim, descartar-se da incidência de uma regra, bastando tachá-la de programática e, com isso, nos termos de tal doutrina, o princípio seria posto de lado” (SILVA, 2000, p. 153).

5 A dogmática constitucional e a busca pela efetivação de direitos

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Nota-se que a classificação das normas constitucionais quanto à sua eficácia acaba se constituindo num fenômeno restritivo ao alcance dos direitos nelas previstos. Isto, para além dos obstáculos materiais que representa, consiste verdadeiro empecilho ideológico.

Em sentido semelhante, considera Sarlet ideológica a postura daqueles que tentam “desqualificar os direitos sociais como direitos fundamentais, incluindo aqueles que outorgam às dificuldades efetivamente existentes o cunho de barreiras intransponíveis” (SARLET, 1998, p. 318).

E continua: “negar que apenas se pode buscar algo onde este algo existe e desconsiderar que o Direito não tem o condão de [...] gerar os recursos materiais para sua realização fática, significa, de certa forma, fechar os olhos para os limites do real”. Admite, pois, referido autor, uma clara tendência em negar-se, pura e simplesmente, aos direitos sociais sua eficácia e efetividade.

Muito se fala em “norma de direito fundamental de eficácia limitada”. Mas seriam as normas de direitos sociais ontologicamente limitadas? Ou tal resulta de mera teorização? A própria locução “norma de direito fundamental de eficácia limitada” encerra uma contradição aberrante, porquanto reúne em si a idéia de imprescindibilidade e a idéia de limitação do algo imprescindível.

Nesse sentido, afirma Bobbio que:

o campo dos direitos do homem – ou, mais precisamente, das normas que declaram, reconhecem, definem, atribuem direitos ao homem – aparece, certamente, como aquele onde é maior a defasagem entre a posição da norma e sua efetiva aplicação. E essa defasagem é ainda mais intensa precisamente no campo dos direitos sociais. Tanto é assim que, na Constituição italiana, as normas que se referem a direitos sociais foram chamadas pudicamente de “programáticas”. Será que já nos perguntamos alguma vez que gênero de normas são essas que não ordenam, proíbem ou permitem hit et nunc, mas ordenam, proíbem e permitem num futuro indefinido e sem um prazo de carência claramente delimitado? E, sobretudo, já nos perguntamos alguma vez que gênero de direitos são esses que tais normas definem? Um direito cujo reconhecimento e cuja efetiva proteção são adiados sine die, além de confinados à vontade de sujeitos cuja obrigação de executar o ‘programa’ é apenas uma obrigação moral ou, no máximo, política, pode ainda ser chamado corretamente de “direito” (BOBBIO, 1992, p. 77)?

Não se nega, em absoluto, a inesgotável importância do pensamento dogmático e, tampouco, da criação e aprimoramento das teorias e conceitos acerca do direito como um todo. Tais são imprescindíveis para o próprio desenvolvimento do direito enquanto ciência, resultando na criação de melhores técnicas e meios de solução de conflitos. Todavia, há que se atentar para que o produto do pensamento não seja, em si mesmo, obstáculo aos atores jurídicos.

Aduz Queiroz que “não infreqüentemente, os técnicos do direito (a doutrina em especial) se põem a criar e sofisticar conceitos e institutos com absoluta independência da realidade, sem nenhuma relevância prática ou mesmo teórica ou acadêmica” (QUEIROZ, 2008). Segundo o autor, nem sempre a doutrina se interessa por questões de relevo, pondo-se a trabalhar segundo um esquema ars gratia artis.

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Ainda que assim não seja, a produção cientifica não pode mais fechar os olhos ao impacto que o conhecimento provoca na sociedade e sua relação com as demais ciências. São o bastante os conflitos armados que tomam o mundo e a ameaçadora degradação ambiental para mostrar que é necessário o comprometimento não só com a pureza científica, mas com o seu resultado para a evolução humana.

Com efeito, a consciência científica está

a exigir novas posturas a partir do momento em que se verificou ser muito mais importante construir uma sociedade justa e compatível com a dignidade humana, do que descrever neutralmente como se processam as relações sociais, assim, o saber social passou a exigir a solução dos problemas que são objeto de seus estudos, em vez de simplesmente as descrever ou mesmo compreendê-los em sua dialeticidade (COELHO, 2003, p. 59).

Continua Queiroz afirmando que a técnica, que deveria ser um meio a serviço da justiça, “converte-se em um fim em si mesmo por meio de um diálogo (às vezes um monólogo) entre diletantes do direito, os quais elegem os temas considerados importantes e lançam, por assim dizer, a moda no direito” (QUEIROZ, 2008).

Através das construções doutrinárias é possível estabelecer uma verdade sobre a interpretação da norma jurídica. Basta citar o uso corriqueiro de expressões como “melhor doutrina” e “corrente majoritária” para observar como se identifica o consenso acerca de determinado tema. Ademais, o uso de tais locuções possui o efeito reflexo de legitimar os próprios argumentos que delas se utilizam. Assim, o argumento passa a ser válido por integrar a “posição dominante”, e não por sua própria pertinência.

No caso, o conhecimento sobre as normas constitucionais e sua eficácia, exposto e aceito por grande gama de juristas, acaba por valorizar em demasia uma técnica e um formalismo insuficientemente comprometidos com os direitos fundamentais, servindo, em última análise, para relativizar a urgência na sua implementação.

José Afonso da Silva, talvez se apercebendo do risco em se atrelar a eficácia dos programas políticos da Constituição a uma teoria da eficácia das normas constitucionais, apresentou a idéia segundo a qual existem certos princípios políticos constitucionais conformadores da ordem social e econômica (justiça social, propriedade privada, redução de desigualdades) que, abarcando e sustentando as disposições constitucionais programáticas (i.e., normas programáticas), com elas não se confundem, haja vista que, eles sim, possuem aplicabilidade direta. Segundo o autor, tais princípios “hão de reputar-se plenamente eficazes e diretamente aplicáveis, embora nem a doutrina nem a jurisprudência tenham percebido o seu alcance, nem lhes têm dado aplicação adequada, como princípio-condição da justiça social” (SILVA, 2000, 143).

Luiz Fernando Coelho vai além – não erroneamente – para dizer que a doutrina construiu ao longo dos séculos um conjunto de mitos jurídicos, apresentados sob estrutura normativa e aceitos pelo senso comum como se espelhassem a sociedade e o homem, o que proporcionou o desenvolvimento da ideologia no direito. Assim, os conceitos jurídicos seriam, na verdade, manifestações da ideologia criada no bojo da dogmática jurídica, responsáveis por identificar o fenômeno jurídico com um conjunto de abstrações doutrinárias, como se fossem a mesma coisa (COELHO, 2003, p. 351).

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Além do quanto foi afirmado, a dogmática jurídica em geral e a constitucional especificamente, além de constituírem verdadeiros monopólios do saber, têm o condão de embasar as decisões da justiça e conferir a elas o aspecto de justas e científicas.

Ainda que tais decisões deneguem a concessão de direitos arvoradas na “inaplicabilidade imediata da norma”, na sua “eficácia limitada”, na necessidade de “interpositio legislatoris” ou no princípio da separação de poderes, estarão fundamentadas e amplamente embasadas na doutrina. Assim, muitos são os argumentos para se negar a prestação do direito que, aos leigos, soam como impropérios.

Ora, o que se busca é o Direito, e tais decisões acabam esquecendo, em nome da técnica jurídica e da “ciência” (e quiçá, em benefício de interesses dos grupos hegemônicos), que por detrás do processo há um cidadão a reclamar um bem que a Constituição Federal lhe promete.

Não se quer aqui ignorar a “natureza das coisas”, imaginando que a classificação atribuída à norma tem o condão de, por si, concretizar ou não concretizar direitos. Mas há que se chamar atenção para determinados fatores que transitam por entre o discurso jurídico de maneira ideológica de modo a barrar a implementação da justiça social.

6 O princípio da aplicabilidade imediata

A questão da efetividade das normas constitucionais (bem como a relativa à importância da doutrina na entrega do direito ao jurisdicionado) polemiza-se quando se traz à baila a regra insculpida no artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal, que diz que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Tal regra confere aos direitos fundamentais um regime jurídico diferenciado, responsável por lhes conferir um alto grau de eficácia, abrangente tanto dos direitos individuais quanto os coletivos, sociais e políticos.

É difícil, porém, traçar um consenso sobre o alcance do referido dispositivo, já que em torno dele gravitam diversas teses. Dentre elas, ocupando pólos opostos, há quem considera que a norma do artigo 5º não tem o condão de conferir, juridicamente, aplicabilidade imediata a todos os direitos fundamentais estampados na Constituição, tendo em vista a existência de limitações materiais e naturais à concretização das necessidades humanas, bem como a existência de normas que se restringem a apresentar meros programas de atuação. Neste caso, as normas constitucionais estariam sempre condicionadas à criação de uma lei ordinária que complementasse a sua eficácia jurídica, bem como dependentes da atuação positiva por parte do Estado.

Para esta corrente, os direitos fundamentais têm aplicação obrigatória até o limite das possibilidades das instituições competentes para efetivá-los. Uma vez deparando-se com óbices intransponíveis de natureza econômica ou estrutural, haveria que se ponderar sobre a viabilidade da aplicação da norma.

É o que se denomina reserva do possível, expressão que se refere a limitações de ordem econômica relativa ao esgotamento dos meios para a implementação dos direitos, uma

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vez que estes demandam gastos por parte do governo para serem concretizados (CAMBI, 2007, p. 13).

Encontrar-se-á, pois, em face de grande dificuldade, imposta pelo binômio “direitos fundamentais/reserva do possível”, elementos que exigem um sopesamento no sentido de avaliar a possibilidade de efetivação prática do direito constitucionalmente previsto, caso este venha a ser concedido ao cidadão.

Não obstante, é imprescindível que se atente à necessidade de concretização das condições mínimas que garantam a dignidade da pessoa humana, como própria exigência constitucional e meta do Estado Democrático de Direito.

Assim, em sentido oposto a essa primeira corrente, há quem adote o posicionamento de que, em face do disposto na regra do artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal, até mesmo as normas fundamentais de eficácia limitada de conteúdo programático gozariam de aplicabilidade imediata, independentemente de futura concretização legislativa.

Afirma Ingo Sarlet que

mesmo os diretos fundamentais a prestações são inequivocamente autênticos direitos fundamentais, constituindo (justamente em razão disto) direito imediatamente aplicável, nos termos do disposto no art. 5º, § 1º, de nossa Constituição. A exemplo das demais normas constitucionais e independentemente de sua forma de positivação, os direitos fundamentais prestacionais, por menor que seja sua densidade normativa ao nível da Constituição, sempre estarão aptos a gerar um mínimo de efeitos jurídicos, sendo, na medida desta aptidão, diretamente aplicáveis... (SARLET, 1998, p. 255).

Para além de estabelecer aos órgãos estatais a tarefa de reconhecerem a maior eficácia possível aos direitos fundamentais, funcionando como uma cláusula maximizadora, implica em deles extrair uma resposta positiva sempre que acionados.

Nesse sentido, aduz Silva:

se elas [normas programáticas] impõem certos limites à autonomia de determinados sujeitos, privados ou públicos, se ditam comportamentos públicos em razão dos interesses a serem regulados, nisso claramente se encontra seu caráter imperativo – imperatividade que se afere nos limites de sua eficácia, mas sempre imperatividade. Por outro lado, esses comportamento e comando, delas resultantes, criam uma situação não apenas de expectativa, mas de vantagem efetiva, ainda que diminuta, em favor de todos aqueles sujeitos que se acham em condições de se beneficiar com a vantagem de sua aplicação e observância. Decorre disso um vínculo jurídico inequívoco, que constitui o enlace entre os sujeitos da relação nelas fadada, caracterizando a bilateralidade atributiva essencial a toda regra de direito (SILVA, 2000, p. 154).

Obviamente, é preciso não romantizar a idéia de que a positivação de norma como a do artigo 5º, § 1º, permitiria a implementação imediata de todos os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. Destarte, a idéia de que todos os direitos fundamentais adquirem, por força do disposto no art. 5º, §1º, da CF/88, eficácia plena e aplicabilidade imediata, independentemente de qualquer ato concretizador, deve ser avaliada com certa cautela. Mas tal cuidado não deve servir de óbice à atividade

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jurisdicional na concretização de direitos, porquanto a mora do legislador em regulamentar normas programáticas mostra-se extremamente perniciosa à população, notadamente às classes carentes de recursos financeiros. É preciso não fazer do texto constitucional letra morta, e o entendimento pela aplicabilidade imediata das normas fundamentais programáticas potencializa a idéia de eficácia normativa da própria Constituição, conferindo maior proteção e efetividade aos direitos fundamentais sociais, promovendo maior inclusão e justiça social.

De qualquer modo, diante da norma que não estabelece critérios mínimos para sua aplicabilidade (artigo 218 da Constituição Federal, por exemplo) e, por isso, não cria direitos subjetivos, há sempre a possibilidade de interferência do judiciário em questões administrativas e legislativas como forma de completar-se “forçadamente” a lei. É o que aduz Sarlet, quando afirma que “ao menos na esfera das condições existenciais mínimas encontramos um claro limite à liberdade de conformação do legislador” (SARLET, 1998, p. 319).

O neoconstitucionalismo, ao fazer prevalecer o texto constitucional, homenageia a promoção do direito materialmente considerado, minimizando a importância de construções teóricas extremamente técnicas, formalistas e distantes da realidade social.

Por esta razão, pode ser considerada uma doutrina mais apta à consecução dos fins almejados pelo Estado Democrático de Direito.

Afinal, esta é a posição que melhor se coaduna com o “parâmetro” da dignidade humana, eleito como fator preponderante na resolução de conflitos e, por que não, na construção teórico-dogmática.

Pela exposição até aqui realizada, percebe-se facilmente uma evolução na doutrina constitucional em direção ao fortalecimento da Constituição, a par da qual se apõem e se estabelecem novos paradigmas.

Embora não contraditórios, tais modelos doutrinários (clássico e atual) são particularmente divergentes quanto à questão da efetividade dos direitos constitucionais, porquanto a nova doutrina se pauta fortemente pela máxima efetividade da Constituição Federal, enquanto a anterior apresentava-se mais retraída nesse ponto. Dessa maneira, o que outrora parecia definitivo (a não aplicabilidade de certos direitos), se desvanece aos poucos no cenário jurídico atual em virtude do paulatino reconhecimento de direitos subjetivos decorrentes de normas constitucionais ditas programáticas.

A tarefa de dizer qual das teorias é melhor e se sobrepõe à outra é difícil, tendo em vista a impossibilidade de se fornecerem padrões absolutos unanimemente aceitos. Contudo, a partir do elemento de coesão (dignidade da pessoa humana), tal missão ganha contornos mais nítidos e pode ser mais facilmente resolvida.

7 Interpretação jurisprudencial e construção de direitos

Apesar da norma do 5º, §1º, da CF/88, é de se observar a existência de posicionamentos contrários à eficácia plena de todos os direitos fundamentais. Todavia, ao lado destas,

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encampando postura progressista, há os defensores da tese da aplicabilidade imediata a todas as normas de direitos fundamentais. Para eles, a necessidade de futura complementação normativa ou atuação positiva estatal seria sanada através de mecanismos criados pela própria Constituição. Exemplos destes mecanismos seriam a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, o mandado de injunção e a ação civil pública.

Por meio de tais figuras, a cláusula da aplicabilidade imediata acabaria, pois, dirigindo-se não apenas ao legislador e ao Poder Público, mas também ao Judiciário quando, conforme o caso, este estivesse diante de ação visando suprir deficiências legislativas, como na hipótese do mandado de injunção.

Prevê a Constituição Federal, em seu artigo quinto, inciso LXXI, que o mandado de injunção será concedido sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.

Nota-se que o legislador constitucional procurou, com referido instituto, combater a inércia do Poder Público na regulamentação das normas que prevêem direitos fundamentais, já que ele se volta, principalmente, para a defesa de direito que, embora previsto na Constituição, depende de norma regulamentadora para sua concretização.

Trata-se, pois, de verdadeiro remédio jurídico voltado à tutela dos direitos fundamentais, previsto para suprir omissões legislativas e, com isso, afastar eventuais teses de “inaplicabilidade de direitos por falta de norma regulamentadora”.

Vê-se, portanto, que a despeito da existência de uma dogmática tímida no que tange à eficácia das normas, o legislador previu instrumento jurídico capaz de sanar as deficiências normativas dos direitos fundamentais e, bem assim, dificuldades teóricas a respeito do tema da eficácia.

Assim, à primeira vista, o mandado de injunção parece resolver o problema da existência de direitos constitucionais que, trazendo em seu conteúdo prestações de cunho social, valem-se de normas de caráter programático para sua positivação.

De certo modo, porém, quer parecer que a jurisprudência, apoiada nos conhecimentos teóricos tradicionais, aproximou, indevidamente, o instituto do mandado de injunção da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, concebida como meio de controle abstrato das normas constitucionais.

Dessa maneira, o Supremo Tribunal Federal, até há pouco tempo, guiava-se por entendimento segundo o qual as decisões em sede de mandado de injunção estavam aptas a tão-somente declarar a mora do Poder Público para que este tomasse as providências cabíveis.

Afirma Barroso que

sem nutrir simpatia pela inovação representada pelo mandado de injunção e rejeitando o ônus político de uma competência normativa que não desejava, a Corte esvaziou as potencialidades do novo remédio. Invocando, assim, uma visão clássica e rígida do

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princípio da separação dos Poderes, promoveu a equiparação do mandado de injunção à ação direta de inconstitucionalidade por omissão (BARROSO, 2006, p. 257).

Com efeito, o entendimento jurisprudencial repeliu a utilização do mandado de injunção como instrumento político, preservando-se, com isso, da delicada tarefa de imiscuir-se em searas não judiciárias. Nota-se que os juízes dispõem de semelhante ou maior força em relação à dogmática no estabelecimento de verdades, porquanto mostra a capacidade da jurisprudência em aniquilar instrumento idôneo à tutela de bens jurídicos.

Assim, em que pese a obviedade da afirmação, é de se dizer que, igualmente relevante para a concretização de direitos fundamentais é a jurisprudência, a qual, por vezes, acaba decidindo, ela mesma, os rumos teórico-hermenêuticos de certos institutos jurídicos.

Mas, numa relação dialética, a nova dogmática tem a virtude de trazer uma nova jurisprudência. Desse modo, nova orientação surgiu acerca do tema, a partir dos MI 283-5 e 284-3, quando admitiu o Supremo a possibilidade de utilizar o mandado de injunção para conferir aplicabilidade imediata a normas de eficácia limitada, concedendo direitos previstos na Constituição Federal não devidamente regulamentados.

Assim, é possível concordar que

afigura-se melhor a orientação que identifica no provimento judicial na espécie uma natureza constitutiva, devendo o juiz criar a norma regulamentadora para o caso concreto, com eficácia inter partes, e aplicá-la, atendendo, quando seja o caso, à pretensão veiculada (CLÈVE, 2000, p. 254).

Nesses casos, o órgão jurisdicional acaba por substituir o órgão responsável pela elaboração da lei, criando o juiz a norma necessária para solução do caso concreto.

Em que pese as críticas dirigidas a tese da aplicabilidade imediata, aduzindo a impossibilidade de se mudar “a natureza das coisas” (não cabendo ao juiz determinar a concretização de algo irrealizável), é salutar compreender-la como sendo algo além de um simples mandamento de otimização da eficácia dos direitos fundamentais.

Conforme assinala Castanheira Neves, uma boa interpretação “não é aquela que, numa perspectiva hermenêutico-exegética, determina corretamente o sentido textual da norma; é antes aquela que numa perspectiva prático-normativa utiliza bem a norma como critério da justa decisão do problema concreto” (apud QUEIROZ, 2008).

Nesse sentido, a finalidade do conhecimento jurídico praticado pelo jurista não é “definir o que está contido nas leis, no costume, na jurisprudência, na doutrina e nos princípios gerais do direito, mas realizar os seus valores, tornar efetiva a justiça, de preferência com a lei, mas se necessário contra a lei” (COELHO, 2003, p. 170).

É possível, pois, imaginar o mandado de injunção como instrumento efetivo de concreção de direitos não regulamentados, sempre que o caso particular o permitir, concedendo-se eficácia plena e aplicabilidade imediata até mesmo à norma eminentemente programática. Nesse sentido, a reserva do possível deve ser analisada

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caso a caso, para se avaliar a real dificuldade em concretizar o direito, evitando seu emprego banal e falacioso.

Nota-se, portanto, que através desta ação constitucional é possível fazer valer, de maneira eficaz e abrangente, a norma do artigo 5º, § 1º da Constituição Federal, o que certamente contribui para a necessária efetivação de direitos fundamentais.

O avançar do Judiciário no campo do direito administrativo mostra que, de fato, alterou-se o entendimento acerca do mandado de injunção. Afinal, as normas já não são tão programáticas assim.

E para comprová-lo, mostra-se válido transcrever trechos do voto do ministro Marco Aurélio no MI 721, proferido no final do ano de 2007:

Iniludivelmente, buscou-se, com a inserção do mandado de injunção, no cenário jurídico constitucional, tornar concreta, tornar viva a Lei Maior, presentes direitos, liberdades e prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Não se há de confundir a atuação no julgamento do mandado de injunção com atividade do Legislativo. Em síntese, ao agir, o Judiciário não lança, na ordem jurídica, preceito abstrato. Não, o que se tem, em termos de prestação jurisdicional, é a viabilização, no caso concreto, de exercício de direito, do exercício da liberdade constitucional, das prerrogativas ligadas à nacionalidade, soberania e cidadania.

Depreende-se do voto do ministro do STF a conotação positiva que tem o mandado de injunção no contexto constitucional brasileiro, apto a dar vida ao texto da Constituição, tornado muitas vezes letra morta por posições doutrinárias e jurisprudenciais.

Extrai-se dessa “doutrina” a exata noção de que, em diversas ocasiões, almejando-se resguardar princípios e teorias, acaba-se por negligenciar a própria prestação jurisdicional:

É tempo de se refletir sobre a timidez inicial do Supremo quanto ao alcance do mandado de injunção, ao excesso de zelo, tendo em vista a separação e harmonia entre os Poderes. É tempo de se perceber a frustração gerada pela postura inicial, transformando o mandado de injunção em ação simplesmente declaratória do ato omissivo, resultando em algo que não interessa, em si, no tocante à prestação jurisdicional, tal como consta do inciso LXXI do artigo 5º da Constituição Federal, ao cidadão. Impetra-se este mandado de injunção não para lograr-se simples certidão da omissão do Poder incumbido de regulamentar o direito a liberdades constitucionais, a prerrogativas inerentes a nacionalidade, à soberania e à cidadania. Busca-se o Judiciário na crença de lograr a supremacia da Lei fundamental, a prestação jurisdicional que afaste as nefastas conseqüências da inércia do legislador. Conclamo, por isso, o Supremo, na composição atual, a rever a óptica inicialmente formalizada (grifo nosso).

Certamente, “enclausurar o processo no formalismo dogmático significa, conforme já salientado, negar a justiça substancial, propalada pelo Estado de Bem Estar Social, contemplado na Constituição Federal de 1998” (CAMBI, 2001, p. 119).

Tanto é assim que mudança de entendimento do STF teve repercussão direta no cotidiano forense relativamente ao mandado de injunção. Nos anos de 2005 e 2006, sob

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a égide da teoria não-concretista, foram impetrados trinta e sete mandados de injunção junto ao STF, dezessete em cada ano. Em 2007 foram ajuizadas quarenta e nove ações, sendo que, destas, vinte foram propostas no mês de dezembro, logo após a alteração de entendimento no tribunal. No ano de 2008 esse número subiu para 140, chegando, no primeiro semestre de 2009, a 662 mandados impetrados.

Portanto, o mandado de injunção começa a ser resgatado como importante instrumento de acesso à justiça. E o que está base desse movimento é a própria superação de concepções estéreis acerca de teorias seculares, como, no caso, o princípio da divisão dos poderes.

Não se pretende com isso tão-somente dizer que a evolução do mandado de injunção constitui ilustração insofismável de como a doutrina e a jurisprudência podem influenciar na interpretação da norma e, com isso, abalar ou fomentar a própria concessão de direitos.

O que é necessário antever é que a doutrina, ao realizar seu mister interpretativo, estabelece apenas uma das verdades possíveis, condicionando, assim, mais do que formulações teórico-processuais, mas também o próprio direito material.

Vive-se hoje uma efervescência de direitos fundamentais e a doutrina volta-se para a noção de máxima eficácia da Constituição Federal. Futuramente, outros serão os ideais defendidos e pleiteados, razão pela qual é necessário compreender o sentido de cada momento histórico numa relação dialética, retirando dele tudo que possa oferecer no tocante à harmonia social, o que contribuirá para a evolução do homem na construção de uma sociedade justa.

Necessária, portanto, é a consciência da função social subjacente à dogmática constitucional e à jurisprudência que, no caso do mandado de injunção, mostram uma nítida evolução na direção dos direitos fundamentais, de todo comprometida com sua realização.

8 Considerações finais

O estudo do direito no presente momento histórico vem privilegiando cada vez mais a ciência hermenêutica, o que tem fortalecido sobremodo o papel do judiciário na sociedade brasileira. Neste processo, resulta claro que ao jurista e ao juiz é dado deliberar sobre a norma constitucional e seu sentido, quase que independentemente do texto escrito da lei.

Obviamente, isto possibilita que os operadores do direito exerçam um papel construtivo do saber jurídico e não apenas reprodutor da realidade posta. É possível aduzir-se, assim, que a dogmática constitucional, bem como a jurisprudência, exercem papel decisivo na implementação dos direitos previstos aos cidadãos.

Essa atuação, por vezes, se dá de modo contraproducente, a dificultar a concretização dos direitos, haja vista a existência de posicionamentos injustificadamente conservadores no âmbito judiciário.

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Reconhecer o caráter subjetivista e ideológico da práxis jurídica é um primeiro passo para avançar na construção de uma sociedade justa, o que não se faz negando a importância da doutrina e jurisprudência, senão buscando conhecer suas limitações a fim de superá-las.

Uma “dogmática insuficiente” pode ser combatida com uma “dogmática arraigada” e comprometida com valores sociais, a qual possibilita a abertura de novos caminhos na jurisprudência e melhor serve à construção de uma sociedade livre e solidária.

Obviamente, parâmetros hermenêuticos e teorias constitucionais continuarão a sofrer alterações e evoluir, tornando sempre provisório o conhecimento que se tem no presente. Essa relatividade do conhecimento jurídico, bem como a possibilidade sempre presente de mudança de paradigmas, servem para pôr à prova o exagero de posturas formalistas que enfatizam o “processo” em detrimento do material, haja vista a possibilidade de se negar hoje algo que amanhã deverá ser dado.

O mandado de injunção constitui um dos exemplos mais eloqüentes desse fato, pois, como se observa, o direito estava lá o tempo todo, mas só foi buscado a partir do momento em que alterou-se a interpretação jurisprudencial acerca do instituto.

Um parâmetro importante para a perquirição de teorias jurídicas há de ser encontrado no princípio da dignidade humana, o qual representa toda a gama de direitos básicos e fundamentais para uma existência plena e digna.

Tal princípio constitui pedra angular do ordenamento jurídico brasileiro e um dos fundamentos da democracia, possuindo inegável reconhecimento por parte da comunidade jurídica.

Lembre-se que, ao privilegiar a dignidade humana, não se está investindo em uma ditadura de valores, porquanto tal princípio encontra respaldo tanto no direito constitucional pátrio quanto no direito internacional, valendo-se do consenso de centenas de países para alcançar o centro das construções teóricas modernas.

De fato, a um só tempo, a dignidade humana lastreia a produção normativa brasileira, guia o intérprete do direito a extrair o sentido da norma, fomenta a promoção dos direitos fundamentais, mobiliza a opinião internacional pela proteção aos direitos humanos e põe o Homem no cerne das preocupações sociais, constituindo, assim, importante parâmetro a modular o pensamento jurídico na consecução dos fins colimados pelo Estado Democrático de Direito.

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[1] Entende-se por dogmática constitucional o conjunto de construções teóricas elaboradas em torno da norma constitucional.

[2] Cf. PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002.