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Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 113-134, 2006. 113 A CONSTRUÇÃO DA BRASILIDADENA ÓPERA LO SCHIAVO (O ESCRAVO), DE CARLOS GOMES Ciro Flamarion Cardoso* Resumo: empregando como método a Semiótica Textual em sua vertente narratológica, o artigo procura esclarecer por que meios, sendo a música operática de Carlos Gomes essencialmente italiana, o autor brasileiro mesmo assim constrói em sua ópera Lo schiavo, cujo libreto é de Rodolfo Paravicini, uma forte noção de brasilidade. O exame seletivo dos elementos de significação abordará a descrição dos cenários tal como aparece na partitura da ópera, a atorialização e a música. Abstract: this text, which employs methods created by textual semiotics (narratology), aims at explaining by which means, the operatic music written by Carlos Gomes being undoubtedly mostly Italian in character, the composer, born in Brazil, was successful even so in constructing in his opera Lo schiavo (libretto by Rodolfo Paravicini) a strong notion of it being “Brazilian”. A selective analysis of pertinent elements of signification includes the description of the sets as it appears in the published opera, actorialization and music. 1. O tema 1. O tema 1. O tema 1. O tema 1. O tema Este artigo procederá a uma análise da ópera Lo schiavo, de Carlos Gomes, com uma única finalidade: procurar esclarecer, semioticamente, por meio da aplicação de dois métodos específicos “ a análise atorial e a leitura isotópica “ às diferentes matérias significantes intervenientes no gênero operístico (visuais e auditivas), de que modo se tentou construir determina- * Ciro Flamarion Cardoso é professor Doutor Titular de História na Universidade Federal Fluminense e Coordenador do Centro de Estudos Interdisciplinares da Antigüidade. (CEIA)

A CONSTRUÇÃO DA L S (O ), C G · Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 113-134, 2006. 113 A CONSTRUÇÃO DA “BRASILIDADE” NA ÓPERA LO SCHIAVO (O ESCRAVO), DE CARLOS

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Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 113-134, 2006. 113

A CONSTRUÇÃO DA “BRASILIDADE” NA ÓPERA LO SCHIAVO (O ESCRAVO),DE CARLOS GOMES

Ciro Flamarion Cardoso*

Resumo: empregando como método a Semiótica Textual em suavertente narratológica, o artigo procura esclarecer por que meios,sendo a música operática de Carlos Gomes essencialmente italiana, oautor brasileiro mesmo assim constrói em sua ópera Lo schiavo, cujolibreto é de Rodolfo Paravicini, uma forte noção de brasilidade. Oexame seletivo dos elementos de significação abordará a descriçãodos cenários tal como aparece na partitura da ópera, a atorialização ea música.Abstract: this text, which employs methods created by textualsemiotics (narratology), aims at explaining by which means, theoperatic music written by Carlos Gomes being undoubtedly mostlyItalian in character, the composer, born in Brazil, was successfuleven so in constructing in his opera Lo schiavo (libretto by RodolfoParavicini) a strong notion of it being “Brazilian”. A selective analysisof pertinent elements of signification includes the description of thesets as it appears in the published opera, actorialization and music.

1. O tema1. O tema1. O tema1. O tema1. O tema

Este artigo procederá a uma análise da ópera Lo schiavo, de CarlosGomes, com uma única finalidade: procurar esclarecer, semioticamente, pormeio da aplicação de dois métodos específicos “ a análise atorial e a leitura

isotópica “ às diferentes matérias significantes intervenientes no gênerooperístico (visuais e auditivas), de que modo se tentou construir determina-

* Ciro Flamarion Cardoso é professor Doutor Titular de História naUniversidade Federal Fluminense e Coordenador do Centro de Estudos Interdisciplinaresda Antigüidade. (CEIA)

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da concepção de “brasilidade” na obra em questão. Outrossim, tratar-se-áde enfoque parcial, mediante exemplos, não de uma leitura exaustiva. A aná-lise será mais completa, porém, no relativo a um aspecto da narratologia: aatorialização.

2. Questões de método2. Questões de método2. Questões de método2. Questões de método2. Questões de método

A possibilidade de uma semiótica narrativa depende da noção deque existem estruturas narrativas. O ponto de partida é a distinção, nessaárea de estudos, entre um nível aparente das narrações ou relatos, em que assignificações dão a impressão de dependerem da linguagem específica em-pregada (línguas naturais faladas ou escritas, cinema, pintura figurativa,história em quadrinhos etc.), e um nível imanente, tronco estrutural maisprofundo, cuja consideração faria perceber uma “narratividade” comum emais geral que, ao ser especificada, consistiria exatamente nas tais estrutu-ras narrativas. Em outras palavras, as estruturas narrativas são logicamenteanteriores às suas manifestações específicas nos relatos concretos. A signi-ficação das narrativas deve ser buscada num nível profundo que é prévioaos modos concretos de sua manifestação. Isto permitiu a constituição deuma gramática narrativa, ou teoria da narratividade, como parte da teoriasemiótica geral.

O termo relato (ou narrativa) se aplica a uma forma específica dediscurso, caracterizado por ser ao mesmo tempo figurativo (ou seja, porcomportar personagens que levam a cabo ações) e inscrito em coordenadasespaciais e temporais (predominando na realidade a dimensão temporal). A“narratividade” - o que há de comum a todas as narrativas consideradassuperficialmente - seria uma organização discursiva imanente a cada narrati-va (CARDOSO, 1997: passim).

Em narratologia, isto é, a parte da Semiótica textual que trata dasnarrativas, história é o significado, o conteúdo narrativo, aquilo que é con-tado, o argumento em suas linhas mais gerais. A diegese é algo maisenglobante do que a história: trata-se desta mais o seu entorno, a históriamais todo o universo ficcional sem o qual ela não se desenvolveria. Prefere-se falar de diegese e, não, de história ou enredo; em especial, o adjetivodiegético é empregado com freqüência (tempo diegético, espaço diegético,música diegética ou extradiegética, etc.). A diegese concerne a parte do rela-to que não é específica em relação ao meio: no caso do cinema, por exemplo,aquilo que a sinopse, o roteiro e o filme têm em comum, ou seja, um conteúdo

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independente do meio que o expressa. Se a diegese, no contexto de umrelato, é o conteúdo, existe por outro lado a forma de expressão, esta total-mente dependente do meio em que a obra se expressa.

No relato, conteúdo e expressão se encontram e se associam.Relato é o enunciado visto em sua materialidade, o texto narrativo que seencarrega daquilo que vai ser narrado. No fundo, a história é algo abstrato:uma história, ao ser contada, torna-se relato – que pode ser romance, filme,história em quadrinhos, etc. Assim, uma “mesma” história ou conteúdodiegético resultará em relatos diferentes entre si conforme seja narrada emromance, filmada, composta como ópera ou balé, etc.

A narração é o ato narrativo produtor e, também, o conjunto dasituação real ou fictícia em que ele ocorre. Vincula-se à relação entre enunci-ado e enunciação tal como o relato permite que estes sejam percebidos oureconstituídos em função dos vestígios, no texto, das configuraçõesenunciativas. Semioticamente falando, é no interior do próprio texto que seacham os índices de sua enunciação: a narratologia não tem a ver, em formadireta, com a noção de autor ou com outro agente enunciador ou narradorantropomórfico qualquer que fosse hipoteticamente responsável pela pro-dução do texto (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1992: 39-41).

Um termo que merece explicação especial é atorialização. Desig-na o processo que institui os atores numa narrativa “pela reunião dos dife-rentes elementos dos componentes semântico e sintáxico”, que podem seranalisados separadamente. Neste artigo, o interesse maior recairá no percur-so temático semanticamente considerado, mais do que no exame da sintaxe(GREIMAS; COURTÉS, s.d.: 34-35).

Na terminologia semiótica de Algirdas Greimas e Joseph Courtésdistinguem-se três níveis semânticos do discurso: o figurativo, o temático eo axiológico.

Comecemos por examinar a oposição complementar entre /figura-tivo/ e /temático/. O figurativo é um significado passível de ser correlacionadoem forma direta a um dos cinco sentidos (visão, audição, tato, olfato e pala-dar): ou seja, que pareça ligar-se à percepção do mundo real, do mundoexterior ao texto. Assim, por exemplo, o /amor/ é temático; mas os gestosconcretos através dos quais o amor se expressa (por exemplo: carícias, bei-jos, abraços, escrever missivas amorosas, etc.) são figurativos.

O figurativo pode ser icônico ou abstrato. O figurativo icônico secaracteriza por uma ilusão referencial, isto é, por dar a impressão de remeterao mundo real (quando, no texto, o que temos de fato são somente palavras,não o mundo real). O figurativo abstrato retém unicamente um número míni-mo de traços que pareçam ter como referência a “realidade”. Se quisermos

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uma analogia no campo das representações visuais, a foto de um político édo domínio do icônico; sua caricatura, do domínio do abstrato. A oposiçãofigurativo icônico/figurativo abstrato é gradual, e não, categorial: admiteposições intermediárias. Tenho notado, nas pesquisas concretas, que emmuitos casos o historiador pode trabalhar com a oposição figurativo/temáticodeixando totalmente de lado a oposição figurativo icônico/figurativo abstrato.

Falta enfocar o nível semântico axiológico, que tem a ver comalgum sistema de valores – éticos, estéticos, religiosos ou outros quaisquerque os conteúdos dos textos manifestem. Em relatos populares, por exem-plo, trata-se amiúde de valores éticos em oposição: bem/mal, bom/malvado.Euforiza-se, então, a dupla bom comportamento/bom tratamento,disforizando-se mau comportamento/mau tratamento: é assim que, nos con-tos de fadas, os bons são finalmente recompensados e os maus, castigados.Num sistema axiológico religioso como o cristão, euforizar-se-ia a “santida-de” e se disforizaria o “pecado”. Num sistema estético, o “belo” é que seriaeuforizado, o “feio”, disforizado – e assim por diante (COURTÉS, 1991: 193-198). Em Lo schiavo, ópera com libreto de Rodolfo Paravicini e música deAntônio Carlos Gomes, o sistema de valores é nacionalista: aquilo que seconstrói como “brasileiro” é euforizado, o que aparece como “estrangeiro”se disforiza.

Passando à questão da isotopia, começarei por reproduzir a defi-nição desta categoria semiótica por Algirdas Greimas:

Por isotopia, entendemos um conjunto redundante de categoriassemânticas que torna possível a leitura uniforme do relato, tal comoresulta das leituras parciais dos enunciados e da resolução de suasambigüidades, guiada pela busca de uma leitura única. (GREIMAS, 1970:

188).

É possível, com apoio nas categorias semânticas isotópicas, apassagem da micro-semântica (entendida como a significação presente emcada frase ou enunciado que se tomar isoladamente) à macro-semântica (asignificação do discurso completo, considerado no nível transfrasal). Seriamcategorias semânticas isotópicas aqueles elementos de significação recor-rentes, redundantes, repetitivos: os quais, por tais características, sãosubjacentes à coerência textual.

O método de leitura isotópica, para conseguir aquela transição damicro para a macro-semântica, consta de três etapas: 1) num primeiro mo-mento, o exame comparativo das partes componentes de um texto – frases,

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enunciados – descobre suas categorias sêmicas (de significação)subjacentes; 2) em seguida, isolam-se dentre elas aquelas categorias sêmicasque se repetem, que são recorrentes no texto: são estas, precisamente, ascategorias isotópicas; 3) por fim, tais categorias isotópicas são distribuídaspelos três níveis semânticos de que falei anteriormente (figurativo, temáticoe axiológico).

Umberto Eco mostrou, com razão, que seria preciso distinguir aisotopia discursiva da isotopia semântica, além de outras distinções nointerior de cada tipo de isotopia (ECO, 1979: 92-101). Mas do que estoufalando agora é, unica e exclusivamente, a isotopia semântica. Aceitandocríticas como as de Eco ao menos parcialmente, Greimas e Courtés preferiramdistinguir a isotopia gramatical (ou sintáxica, no sentido semiótico dotermo) da isotopia semântica: de novo, só a segunda me interessa aqui; e elanão passa de um crivo de leitura, do ponto de vista do enunciatário(COURTÉS, 1991: 193-198).

***Como em todas as semióticas incipientes – e ainda é este o caso

da semiótica do espetáculo –, o progresso da análise só pode ocorrer medi-ante o avanço da descrição dos elementos significantes intervenientes. Umatentativa neste sentido foi a de Tadeusz Kowzan, em artigo pioneiro. Repro-duzimos adiante, em forma de quadro, a sua tentativa de descrição das maté-rias significantes que interessam às artes do espetáculo, quando pensadasem análises de tipo semântico ou semiótico.

A totalidade dos elementos do quadro baseado em Kowzan éaplicável à ópera. A descrição a seguir, que tenta realizar tal aplicação, é deminha feitura. Nela, faz sentido, analiticamente, separar o espaço da concep-

ção daquele da execução:

ConcepçãoConcepçãoConcepçãoConcepçãoConcepção

- Libreto da ópera: trata-se de seu enredo ou história, divididoem atos e cenas, como no caso do balé já prevendo às vezes os númerosmusicais. O libreto de uma ópera se parece a uma peça de teatro em versos(ou parcialmente em prosa – os recitativos por exemplo – e parcialmente emverso). O libretista é habitualmente um homem de Letras com experiência nogênero operístico, mas às vezes o compositor atua como libretista (como fezRichard Wagner sistematicamente), havendo também ocasiões em que com-põe à base de um texto já existente (seja um libreto usado no passado por

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outro compositor, como quando Mozart escreveu a música de La clemenza

di Tito à base de um antigo libreto do italiano Metastasio, em 1791, seja deobra de outro tipo, como ao compor Strauss a sua Salome usando umatradução da peça de Oscar Wilde para alemão).

- Música: elaborada por um compositor de música erudita, o qualpor vezes trabalha em estreita colaboração com o libretista (como ocorriacom Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal), outras vezes impondo-lheo que deseja (como costumavam fazer Giuseppe Verdi e Giacomo Puccini).

- Direção de cena: esta função às vezes é assumida por um dire-tor teatral ou, em tempos recentes, por diretores de cinema (assim, Ken Russelldirigiu uma estranha versão do Fausto de Gounod para a Ópera de Viena eAndrei Tarkovsky, uma impressionante versão de Boris Godunov, ópera deModest Mussorgsky).

- Cenário(s) e guarda-roupa: como no caso do balé, o artista ouos artistas que concebe(m) estes elementos plásticos da ópera pode(m) (ounão) trabalhar em estreita colaboração com o diretor de cena e o produtor(quando este último não coincide com o primeiro).

- Elementos adicionais na concepção do espetáculo: ilumina-ção, maquiagem, penteado, adereços, etc. Na atualidade, a iluminação costu-ma ser controlada por computador. Neste ponto, a ópera tem exigênciassemelhantes às de uma peça de teatro das mais sofisticadas, ou às do balénarrativo.

- Coreografia: muitas óperas incluem um ou mais balés, o queimplica a presença de um coreógrafo na concepção do espetáculo a sermontado.

ExExExExExecuçãoecuçãoecuçãoecuçãoecução

Por mais que vários dos elementos acima exijam execução (porexemplo, quem concebe um cenário e quem o pinta podem ser pessoas dife-rentes, o mesmo quanto a roupas e adereços, etc.), estaremos falando agorada execução em seu âmago músical e dramático:

- Maestro: decide a interpretação musical a ser dada à partitura daópera, cortes eventuais nos números musicais da mesma, etc. No passado,como hoje é mais comum nos balés, introduzia enxertos tomados de outrasobras do mesmo compositor ou até mesmo de compositores diferentes; nasapresentações, dirige a orquestra, com atenção às necessidades e movimen-tos dos cantores-atores, bem como à concepção do diretor de cena, que àsvezes interfere até certo ponto na parte musical.

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- Orquestra: os músicos tocam a partitura da ópera, dirigidos pelomaestro.

- Cantores-atores: hierarquicamente organizados (a prima donna eo protagonista masculino são os mais importantes, outros atuam como solistas,a maioria compõe o coro), executam tanto a partitura no relativo ao canto (mú-sica e palavras do libreto) quanto os movimentos decididos pelo diretor de cena.

- Bailarinos: como já foi dito, muitas óperas contêm balés, o queimplica a presença de dançarinos que interpretem a coreografia correspondente.

Elementos da linguagem das formas artísticas teatraisElementos da linguagem das formas artísticas teatraisElementos da linguagem das formas artísticas teatraisElementos da linguagem das formas artísticas teatraisElementos da linguagem das formas artísticas teatrais

OBS.: O quadro baseia-se no artiggo de Kowzan mas tem forma diferente da que o artigoem questão apresenta. VER.: KOWZAN, Tadeusz. “Hacia una semiología del arte delespectáculo.” In: RODRIGUEZ, María Elia e LOPEZ, María Luisa. Signos, lenguajes y

discursos sociales. San José (Costa Rica): Editorial Nueva Década, 1991, pp. 116-139.

Matérias

significantes:

Tipos de signos

envolvidos:

Elementos

concernidos:

Suportes das

semioses:

Dimensões:

1. Palavra auditivos ator

(representação)

textos

pronunciados

tempo

2. Tom auditivos ator

(representação)

textos

pronunciados

tempo

3. Mímica visuais ator

(representação)

expressão

corporal

espaço e tempo

4. Gesto visuais ator

(representação)

expressão

corporal

espaço e tempo

5. Movimento visuais ator

(representação)

expressão

corporal

espaço e tempo

6. Maquiagem visuais ator (figura) aparência

humana

espaço

7. Penteado visuais ator (figura) aparência

humana

espaço

8. Traje visuais ator (figura) aparência

humana

espaço

9. Acessórios visuais espaço cênico aparência das

coisas

espaço e tempo

10. Cenários visuais espaço cênico aparência das

coisas

espaço (e

tempo, havendo

mais de um

cenário)

11. Iluminação visuais espaço cênico aparência das

coisas

espaço e tempo

12. Música auditivos efeitos sonoros sons em forma

musical

tempo

13. Ruídos auditivos efeitos sonoros sons sem

articulação

tempo

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CARDOSO, C. F. A construção da “brasilidade” na ópera...

Nota-se a complexidade de um espetáculo operístico pela simplesenumeração dos elementos nele implicados, bem como as múltiplas possibi-lidades de choque de personalidades, em diversos níveis que vão da con-cepção à execução, neste tipo de arte que exige ações e decisões envolven-do muitas pessoas de diferentes ramos e especialidades. Habitualmente, omaestro – às vezes o diretor de cena – considera-se o elemento mais impor-tante na execução, mas terá de negociar muitos detalhes com os cantores, emespecial no caso dos protagonistas: o ego e os humores de uma prima

donna famosa são pelo menos tão assustadores quanto os de um danseur

noble ou de uma prima ballerina!

3. O objeto textual e os recortes escolhidos para a análise3. O objeto textual e os recortes escolhidos para a análise3. O objeto textual e os recortes escolhidos para a análise3. O objeto textual e os recortes escolhidos para a análise3. O objeto textual e os recortes escolhidos para a análise

Antônio Carlos Gomes (1836-1896), nascido em Campinas, em suafase de estudos – com Lauro Rossi, em Milão – e composições na Itália,onde chegou em dezembro de 1863, tornou-se um expoente brasileiro daópera romântica italiana. Seu amadurecimento musical foi rápido e notável.Se a entrada de Cecília, “Gentile di cuore”, em Il Guarany (1870), com coro,recorda de perto a polacca que serve de entrada a Elvira, “Son verginvezzosa”, na ópera muito anterior I puritani (estreada em 1835), de VincenzoBellini – o que certamente não coloca o Gomes de então na vanguarda dacena operística italiana, por mais sucesso que tenha tido a sua ópera (afinal,se pensarmos na obra de Verdi, de tamanha influência sobre a de CarlosGomes nos anos seguintes, Don Carlo, na versão de Paris, é de 1867, Aida,de 1870) –, bem como a orquestração e a própria construção musical daópera de 1870 apresentam defeitos muito visíveis, Lo schiavo, que estreouem 1889 mas vinha sendo composta desde 1883, mostra afinidades com oVerdi maduro e uma grande segurança na orquestração e no contraponto, sea compararmos com a obra estreada pelo compositor brasileiro em 1870.

Lo Schiavo (“O escravo”) estreou no Rio de Janeiro em 27 desetembro de 1889 – menos de dois meses antes da proclamação da Repúbli-ca, portanto –, no Teatro Imperial D. Pedro II. No tocante ao gênero queintegra, trata-se de um drama lírico (ópera séria). Seu libretista foi RodolfoParavicini, que se baseou “ muito frouxamente “ numa peça teatral do Vis-conde de Taunay. Mesmo tendo sido estreada no Brasil, a ópera sem dúvidaalguma visava, em primeiro lugar, ao público italiano. O compositor dedicou-a à Princesa Isabel.

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Em minha opinião, o caráter “brasileiro” que o compositor CarlosGomes pretendeu dar a esta sua obra, cuja linguagem musical é italiana noessencial, valeu-se dos elementos principais seguintes: 1) escolha de temaspseudo-históricos brasileiros, à base de uma obra literária também brasileira:os assuntos centrais são, nesta ordem de idéias, a escravidão indígena, aConfederação dos Tamoios (1567) posteriormente à eliminação da FrançaAntártica e a expedição naval portuguesa contra tal insurreição; 2) evocaçãode um Brasil tropical exótico, estilizado e idealizado, presente nas descriçõesverbais dos cenários contidas na obra, bem como na própria música; 3)construção teatral do libreto, em especial no tocante à atorialização

(estruturação dos atores-cantores e das inter-relações entre eles, conside-rando-se tanto as personagens propriamente ditas quanto o coro, ator cole-tivo); 4) recursos musicais.

O primeiro ponto da lista recém-enunciada não se presta às moda-lidades de análises de tipo semiótico que quero empreender. Analisarei, pelaaplicação da leitura isotópica, os pontos 2 a 4, já que são os que se referemaos conteúdos textuais da ópera (visuais “ no caso, os cenários “, verbais emusicais). O ponto 3 será abordado segundo as concepções da narratologiasemiótica sobre a atorialização.

4. Os cenários4. Os cenários4. Os cenários4. Os cenários4. Os cenários

Interessa-me como aparecem descritos ou comentados os cenári-os na partitura de Lo schiavo, sem levar em conta realizações concretas emrécitas da ópera.

4.1. Textos em italiano seguidos de minha tradução

Ato I: “Vasto cortile d’una fattoria del Conte Rodrigo presso ilfiume Parahyba. A destra del proscenio l’abitazione del fattore Gianfèra,rustica e coperta di paglia. Accanto a questa la scuderia. A sinistra l’Oratorio,rozzo, col tetto acuminato a guisa di cupola. Presso l’Oratorio una grossacampana appesa a due travi di legno greggio. Su d’una altura, nel fondo, lacasa padronale, di un solo pianterreno, con molte finestre di facciata ed unasola porta d’ingresso nell’estremo fianco, col tetto di paglia. Alberi di cocco,banane, palmizi sparsi per la scena e pittorescamente distribuiti pei campi.Nel vastissimo sfondo, le plantagioni di canne di zucchero. Più in là le foreste

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CARDOSO, C. F. A construção da “brasilidade” na ópera...

vergini. Fanno poi corona al grandioso paesaggio le altissime montagne indistanza. Nel mezzo, alquanto in fondo, alcuni carri di forma primitiva, tiratida buoi, stanno fermi ricevendo il carico di canne da zucchero” (GOMES;PARAVICINI, 1985: 5).

“Vasto pátio de um engenho do conde Rodrigo, perto do rio Paraíba[do Sul]. À direita do proscênio está a casa do feitor João Fera, rústica ecoberta de palha. Perto dela, a casa de armas. À esquerda, a capela, tosca,com o alto do teto à maneira de uma cúpula. Junto à capela está um grandesino, pendendo de duas toras de madeira em estado bruto. Num ponto alto,ao fundo, está a casa grande, composta somente de um andar térreo, commuitas janelas na fachada e uma única porta de entrada num dos extremosdesta; seu teto é de palha. Coqueiros, bananeiras e palmeiras estão espalha-dos pela cena e pitorescamente distribuídos pelos campos. No fundovastíssimo estão as plantações de cana-de-açúcar e, além, as florestas vir-gens. Montanhas altíssimas, distantes, coroam a paisagem grandiosa. Nomeio, um tanto para o fundo, estão parados alguns carros de boi, cuja formaé primitiva, recebendo um carregamento de cana de açúcar”.

Ato II: “L’interno d’un elegantissimo chiosco ottangulare, neigiardini della Contessa di Boissy a Nitheroy. Il chiosco à sostenuto dacolonnette di bambù. Il tetto, che si parte a guisa di raggi, è coperto di rami dipalme. Lunghe tende di paglia indigena e transparenti chiudono all’ingirol’intiero chiosco, ma dalla transparenza delle tende si scorge il sontuosogiardino che lo attornia. Dall’ampio ingresso del fondale si vede il mare.Dovunque, fiori, parassite, orchidee, rampicanti appesi in eleganti canestri.A sinistra uno specchio grande che scende a terra. A destra, appeso a duegrossi tronchi di bambù un elegante hamak indigeno. Un canapè. Pochesedie” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 106).

“Interior de um elegantíssimo quiosque octangular nos jardinsda condessa de Boissy, em Niterói. O quiosque sustenta-se em colunasdelgadas de bambu. O teto descendente abre-se em pontas cobertas defolhas de palmeira. Longas tapeçarias de palha trançada à maneira indígena,transparentes, fecham todos os lados do quiosque. A transparência dascortinas permite perceber em torno o suntuoso jardim. Pela ampla porta deentrada, ao fundo, vê-se o mar. Por toda parte há flores, parasitas, orquídeas,trepadeiras presas a caramanchões elegantes. À esquerda está um grandeespelho que se estende até o chão. À direita, pendurada em dois troncosgrossos de bambu, vê-se uma elegante rede indígena. Um canapé, algumascadeiras”.

Ato III: “L’immensa foresta alle falde dei monti Giacarèpaguà. Indistanza il lago Comorin. Accanto a folti e svariati gruppi di palme le rustiche

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abitazioni di Ilàra ed Iberè. Sul proscenio, a destra e sinistra, tronchi di alberigiganteschi abbandonati al suolo. Cespi di fiori e parassite sparse dovunquesenza coltura” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 197).

“A imensa floresta nas encostas dos montes de Jararepaguá. Àdistância, vê-se o lago Comorim. As residências rústicas de Ilara e Iberêestão perto de grupos de palmeiras frondosos e variados. No proscênio, àdireita e à esquerda, vêem-se troncos de árvores gigantescas, abandonadosno chão. Moitas de flores e parasitas estão espalhadas por toda parte semterem sido cultivadas”.

Ato IV: Neste caso, no início do ato se vê unicamente parte docenário, sendo noite escura; posteriormente, com o nascer do Sol, o panora-ma se amplia. É preciso então, aqui, incluir também a descrição em palavrasque acompanha o curto poema sinfônico ou interlúdio, a “Alvorada”.

a) “Altipiano d’uno scoglio a Guanabàra sporgente sul mare efortificato con lungo steccato di freccie e di grosse tronchi di bambù aguzzati.Tra i macigni e lo steccato del fondo s’intravedde un antro oscuro e segretoche discende a picco verso il mare. Accanto a quest’antro la tenda d’Iberè, diforma conica e coperta di fogliami di palme. Sul terreno a destra, irto e scosceso,vedonsi viali tortuosi e praticabili che confinano colla scena discendentiquasi a precipizio. Altri scogli costeggianti il mare si sperdono in distanza.Diversi antri oscuri fra i dumi e fra i sassi giganteschi spacatti. Scena orridae selvaggia. Notte profonda” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 284).

“Área plana no alto de um rochedo, na Guanabara, que dá para omar e está fortificado com longa paliçada de flechas e grossos troncos agu-çados de bambu. Entre as rochas e a paliçada, no fundo, se entrevê umagrota escura e secreta que desce, íngreme, para o mar. Perto desta grota estáa tenda de Iberê, cônica e coberta de folhas de palmeira. No terreno dadireita, que é empinado e pedregoso, vêem-se veredas tortuosas mas prati-cáveis que, no extremo da cena, descem quase a pique. Outros rochedos,que costeiam o mar, perdem-se na distância. Diversos grotões escuros entre-meiam as dunas e os gigantescos penedos. Cena horripilante e selvagem.Noite profunda”.

b) “Nel profondo silenzio della notte s’ode il cupo mormorio delmare che percuote le roccie più vicine alla tenda d’Iberè. L’orchestra, prelu-diando, descrive lo spuntare dell’aurora brasiliana e va crescendo sempre invariati suoni. Ad intervalli s’ode lontano il rauco suono dell’Inûbia guerrieranel campo Tamoio. Sul mare, in distanzia, si vede schierata la flotta Lusitanain assetto di guerra. Dalla nave ammiraglia si sentono gli squilli delle trombeche suonano la diana. Stormi di piccoli uccelli, svolazzando in ogni direzione,rallegrano con i loro svariati canti la novella aurora. Da lontano il Cûcco

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monotono ripete il consueto lamento. Fra i gruppi di palmizi della vicinasponda si nasconde e gorgheggia il gentile sabià. Ai primi raggi del solel’immenso panorama si manifesta in tutto il suo splendore. Al di là delvastissimo golfo si vede l’imponente catena di montagne degli Organi. Dallanave ammiraglia stessa parte un colpo di cannone salutando l’aurora, ed alfrastuono di esso i Tamoios, dalla riva sclamano all’unisono: All’erta! Ullàa!”(GOMES; PARAVICINI, 1985: 308-315).

“No silêncio profundo da noite, ouve-se o murmúrio sombrio domar que bate nas rochas mais próximas da tenda de Iberê. Um prelúdio or-questral descreve o despontar da aurora brasileira e vai sempre crescendoem sons variados. Ouve-se ao longe, intermitentemente, o som cavo dainúbia guerreira no acampamento tamoio. No mar, à distância, vê-se a frotalusitana, enfileirada em formação de guerra. Da nau capitânia ouvem-se ossons das trombetas no toque da alvorada. Nuvens de passarinhos, esvoa-çando em todas as direções, alegram com seus cantos variados a nova auro-ra. Ao longe, o monótono cuco repete seu lamento costumeiro. Entre osgrupos de palmeiras do litoral próximo, oculta-se e gorjeia docemente o sabiágentil. Aos primeiros raios do sol, o imenso panorama se manifesta em todoo seu esplendor. Do outro lado do golfo vastíssimo se percebe a imponenteserra dos Órgãos. Da própria nau capitânia parte um tiro de canhão saudan-do a aurora; ouvindo o som tonante, os tamoios, da margem, exclamam emuníssono: “ ‘Alerta! Ulá!’ ”.

4.2. Análise

A leitura isotópica revela, na construção das descrições dos ce-nários, a onipresença da /flora tropical brasileira/, único elemento presentenessas descrições em todos os atos, mas em modalidades diversas que apon-tam para uma segunda rede temática: /Europa: artificial versus Brasil: natural/.Esta aparece indicada, no cenário do primeiro ato, pelo contraste entre: asconcepções alienígenas (“engenho”, ou seja, uma fábrica de açúcar comfinalidades mercantis), as construções primitivas mas estranhas à terra (ca-pela, casa grande, casa de armas), as plantações e o transporte da cana-de-açúcar (cana e bois não pertencem a espécies nativas), de um lado; e, dooutro: as “florestas virgens”; os “coqueiros, bananeiras e palmeiras”esparsos pela própria fazenda; e as montanhas distantes. No relativo àaxiologia, os elementos brasileiros da paisagem são euforizados: os coquei-ros, bananeiras e palmeiras são “pitorescos” em sua distribuição; mas é ahipérbole a principal forma de euforização: o panorama que se abre para

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florestas e montanhas é “vastíssimo” e “grandioso”, as montanhas são“altíssimas” (o que, aliás, não corresponde à realidade). O conjunto (flores-tas “virgens”, panorama muito amplo, elementos grosseiros das constru-ções e dos veículos “ caracterizados por adjetivos como “tosco” e “primiti-vo” –, tetos de palha) dá uma impressão de rusticidade exótica, evoca ummundo pouco sofisticado no tocante às realizações humanas, grandioso,desmesurado mesmo, talvez um tanto assustador, no relativo à natureza: ummundo, em suma, muito diferente do europeu. Estava na moda, naquelasegunda metade do século XIX, na Europa, o dépaysement na literaturapopular (Pierre Loti) e na ópera (Lakmé, de Léo Delibes, Les pêcheurs de

perles, de Georges Bizet, Aida, de Giuseppe Verdi, entre muitas outras);moda que persistiu até Pietro Mascagni “ Iris “ e Giacomo Puccini (Madama

Butterfly, La fanciulla del West, Turandot).No segundo ato, o contraste apontado entre elementos forâneos

(artificiais) e brasileiros (naturais) é ainda mais marcado, chegando ao auge:o cúmulo da artificialidade é o quiosque “octogonal” dando para jardins“suntuosos”, evidentemente cultivados e planejados, além do “grande es-pelho”, do “canapé” e das “cadeiras”. O adjetivo “elegante” aparece trêsvezes. A flora da terra, neste caso domesticada, está no entanto “por todaparte”, as matérias-primas são locais (com insistência no bambu, que reapa-recerá, num contexto “indígena”, no cenário do quarto ato), como também osão as tapeçarias e a rede. O que é brasileiro e natural, não modificado peloseuropeus, fica, desta feita, por conta do /mar/: este, que obviamente nãopoderia aparecer no vale do Paraíba do primeiro ato, torna-se muito presenteno segundo e no quarto atos. Neste segundo ato, não por acaso, são oselementos marítimos aqueles valorizados na evocação do panorama por umcoro “ habitualmente eliminado nas encenações da ópera “ situado entre aprimeira dança e as seguintes, na festa da condessa de Boissy (quinta cenado ato). Note-se que a elegância dos domínios da condessa européia não éaxiologicamente euforizada: a música e as palavras que acompanham toda aprimeira parte da atuação da francesa (primeira e segunda cenas do segundoato) a mostram como fútil, insistentemente importuna e sarcástica: ver ocomentário a respeito feito por Américo, no recitativo que precede sua áriada terceira cena: “L’importuna insistenza e insiem lo scherno” (GOMES;PARAVICINI, 1985: 125), ou seja, “A insistência importuna em conjunto como sarcasmo”); o mesmo ocorre no final do ato. A condessa só será euforizada,na parte central do mesmo, como anfitriã generosa e em sua qualidade deheroína da libertação dos escravos, ao comprar vários deles especificamentepara alforriá-los em massa. Na maior parte do ato, entretanto, o caráter anti-

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pático e pretensioso da condessa de Boissy se reflete também no cenárioque representa seus domínios.

O cenário do terceiro ato é dominado pela flora brasileira natural,não cultivada, fazendo, portanto, significativo contraste com o do ato prece-dente. A euforização por hipérbole da paisagem do Brasil tropical continuaaqui (floresta “imensa”, árvores “gigantescas”, mas tudo suavizado pelamultiplicidade e onipresença das flores).

O último ato é o mais complexo no tocante ao cenário. Este éúnico, mas revelado em duas etapas. Aparece como ambiente tétrico, domi-nado por um mar soturno e por rochas costeiras escarpadas, na parte inicial,noturna, do ato, quando é disforizado (“horripilante”, “selvagem”, “escu-ro”, sendo “sombrio” o ruído do mar): un cenário bem de acordo com asruminações de Iberê sobre sua infelicidade amorosa e as tramas dos índioscontra ele e Ilara. A seguir, alegrado por pássaros (e pelo reaparecimento davegetação tropical, agora iluminada, representada pelas palmeiras onde osabiá “gentil” se esconde e canta), transfigura-se em panorama euforizado“em todo o seu esplendor”; como sempre, hiperbólico, mostrando a baía deGuanabara (“golfo vastíssimo”), além dela a serra dos Órgãos, “imponente”.Ao mesmo tempo, a aurora repõe os contrastes /Europa-Brasil/, /artificial-natural/, pela visão da frota lusitana preparada para a guerra. No entanto, talfrota, elemento forâneo, não é axiologicamente disforizada. Talvez porque o“mocinho” da história – embora não seja o protagonista dela, como veremos–, Américo, lá esteja; e porque os índios rebeldes, de elemento positivo queeram, se transformaram em ameaça para o protagonista, o cacique Iberê, bemcomo para o casal de namorados. Seja como for, os sons afirmativos dotoque de alvorada ajudam a desanuviar o ambiente; e, no recitativo da áriaque sucede imediatamente à peça orquestral que descreve o amanhecer (quintacena do quarto ato), Ilara, a heroína da ópera, tem a dizer o seguinte: “Comesplendido e bello il sol fiammeggia su quelle navi! Sembra che ogni prorarifulga d’oro e di gemme...” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 317-318); ou, tra-duzindo: “Como o Sol flameja, esplêndido e belo, sobre aquelas naus! Cadaproa parece refulgir de ouro e de pedras preciosas...”.

Note-se que, embora só na descrição verbal da “Alvorada” apare-ça a menção a pássaros, este elemento da paisagem brasileira está muitopresente na ópera, construído, porém, com meios principalmente sonoros(musicais).

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5. Atorialização5. Atorialização5. Atorialização5. Atorialização5. Atorialização

Vou exemplificar a construção de uma noção de “brasilidade”, nolibreto da ópera, com a questão da estrutura de atores intervenientes (perso-nagens, coro).

Tal estrutura é simples: as personagens brasileiras, nativas, e seucontexto, são axiologicamente positivas; as estrangeiras são, em princípio,axiologicamente negativas, bem como o é o seu contexto específico. Emsuma, há um lado brasileiro valorizado e um lado estrangeiro desvalorizado.Mas a situação da condessa de Boissy é complexa, como também ocorrecom a dos índios vistos como personagem coletiva. A leitura isotópica con-firma estas afirmações. Vejamos, em primeiro lugar, a oposição brasileiro(nativo)/estrangeiro.

No primeiro ato (sexta cena), em duas falas suas, Américo se diri-ge a Iberê, dizendo “Libero fosti in questo suolo al par di me” (GOMES;PARAVICINI, 1985: 28-29), isto é: “como eu, foste livre neste lugar” e cha-mando a si mesmo em relação a Iberê, pouco depois, “fratel di patria” (GO-MES; PARAVICINI, 1985: 30), ou seja, “irmão de pátria”, mais tarde desig-nando o índio como “Nobile stirpe del Brasilio suolo” (GOMES; PARAVICINI,1985: 38), traduzindo: “estirpe nobre do solo brasílico”. Na mesma cena,numa narrativa acerca de seu passado, Iberê chama o Brasil de “mia terra”(GOMES; PARAVICINI, 1985: 30), “minha terra” e – anacronicamente – de“patria” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 31), “pátria”, associando o país tam-bém ao seu pai e à sua mãe, e à sua condição de guerreiro tamoio. QuandoAmérico confraterniza com Iberê, os índios e camaradas presentes (brasilei-ros) comentam que, com aquele gesto, o primeiro “che siam fratelli tutti eidimostrò” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 40-41), “demonstrou que somostodos irmãos” “ sentimento que contrasta com o que é expressado na mesmaocasião pelo feitor e pelos capangas (sujeitos delegados do amo portugu-ês), para os quais, com aquele gesto, Américo “un covo di ribelli (...) per noicreò” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 40-41): “criou para nós um covil de re-beldes”.

Iberê jurou fidelidade eterna a Américo, que o salvou do castigodesonroso do chicote (primeiro ato, cena sexta). Ele revelar-se-á, nos atostrês e quatro, como “brasileiro” e “nacionalista”, em sua qualidade de líderdos tamoios amotinados, mas ao mesmo tempo leal ao juramento a ponto de,amando Ilara, com a qual fora casado à força por ordem do conde Rodrigo,viver ao lado dela sem tocá-la e, no final, trocar sua vida pela do casal. Trata-se de uma figura romântica, mais parecida à de um cavaleiro medieval idea-lizado pelo Romantismo do que à de um líder indígena do século XVI brasileiro.

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Quanto ao pai de Américo, o conde Rodrigo, em fala de Iberê(primeiro ato, quinta cena) é qualificado de “usurpator di questo suolo”(GOMES; PARAVICINI, 1985: 26), “usurpador deste solo”; ele mesmo, nasétima cena do ato, associa a luta que ordena a Américo empreender comooficial da frota lusitana à idéia de “pátria” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 76):ao contrário do filho, nascido no Brasil, ele é um português, um estrangeiro.Isto se comprova a seguir no comentário (para si mesmo) de Américo arespeito da ordem que acaba de receber do pai: “Vestir l’insegna dello stranier...Pugnar domani in sua difesa forse contro i miei fratelli?” (GOMES;PARAVICINI, 1985: 75-76): “Vestir o uniforme do estrangeiro... E, talvez, lutaramanhã, defendendo-o, contra meus irmãos?”. Tal conde estrangeiro é cruel,ardiloso, traiçoeiro; por exemplo, ao forçar no fim do primeiro ato, comoplanejara com antecedência, o casamento de Iberê com Ilara, logo que seufilho parte para a guerra, e ao impedir, no final do segundo ato, que Iberêconte a verdade ao enfurecido Américo acerca de tal casamento feito pelaviolência. O mesmo quanto a seus sujeitos delegados, os capangas e o feitorJoão, apodado “Fera”: este último é descrito pelos camaradas da fazenda(que são brasileiros) com as palavras seguintes, na primeira cena do primeiroato: “Più zelante dei padroni il fattore diventò! Ei fu sempre un rinegato. (...)Rinegato! Mascalzon!” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 10-12): “O feitor tor-nou-se mais zeloso do que os patrões! Ele sempre foi um renegado. (...)Renegado! Bandido!”. Renegado, por ter nascido no Brasil e, no entanto,agir em favor do amo estrangeiro (português).

Ilara de início, na ópera (como desde criança), aparece como “es-crava de dentro de casa” (isto fica claro em seu dueto com Américo noprimeiro ato, nona cena). Trata-se de personagem complexa, contraditória,tal como Iberê – que se vê dividido entre a liderança que exerce como caci-que maior dos tamoios, cheio de ânsia de vingança, e a lealdade a Américo,contra o qual não deseja guerrear. Como ele, Ilara é indubitavelmente brasi-leira. No início do terceiro ato (primeira cena), começa seu recitativo, prece-dendo uma famosa ária, saudando a aurora com as palavras: “Alba adoratadel natio mio suol” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 198): “Adorada aurora demeu país natal”. Após a ária mencionada, canta, no entanto, como se arecordasse, uma “velha” balada de estilo europeu – conhecimento assazestranho, convenhamos, para uma escrava índia, mesmo doméstica... (GO-MES; PARAVICINI, 1985: 205-206) A balada em questão tem a mesma melo-dia do início e do final do prelúdio da ópera: o qual, portanto, remete a Ilaraem primeiro lugar (na parte central do mesmo, há uma seção que remetetematicamente a Iberê e à revolta dos tamoios). Ela e Iberê é que são osprotagonistas da ópera, mesmo se o casal romântico é formado por ela e

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Américo, sobrando Iberê, que a ama sem ser correspondido. A estruturamusical deixa claríssima a hierarquia que privilegia os protagonistas índiossobre Américo. Ela adere de início, no terceiro ato, à revolta dos tamoios(quinta cena), cantando, junto com outros: “In quell’acento mesto e dolenteudir mi sembra triste un lamento... Ed il materno pianto ramento dell’infeliceche schiava fu!” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 269-271): “Nestas palavrasacabrunhadas e doridas parece-me ouvir um triste lamento; e lembro-me dopranto de minha infeliz mãe, que foi escrava!”. No entanto, em passagemeliminada da versão revista da ópera, quando os índios amotinados decidematacar a fazenda do conde Rodrigo, ela se prepara para ir avisar do ataque;ocasião em que, falando de si mesma, afirma (sexta cena): “La donna brasilianailluminata dai raggi d’amor sfidar saprà dell’imensa foresta il tenebror!”;1 emtradução: “A mulher brasileira, iluminada pela luz do amor, saberá desafiar aescuridão da floresta imensa!” – só não partindo ao dar-se conta de que osíndios rebeldes, tendo ouvido o canhão da frota portuguesa na Guanabara,decidem dirigir-se para lá e dar-lhe combate, em lugar de irem em direção aovale do Paraíba. Seja como for, o caráter positivo da figura de Ilara é afirmadoem numerosas passagens do texto, bem como, repetidamente, pela música.

Na condessa de Boissy temos, para começar, a personagem maisabsurda de uma ópera já bem carregada de absurdos, como quase todas asdo século XIX se levarmos a sério seus detalhes de enredo cheios de ana-cronismos. Trata-se de uma francesa cercada, como se vê em sua festa, deoficiais franceses, hostis, supõe-se, ao Brasil português, já que aliados aostamoios amotinados; mas, ao mesmo tempo, a condessa tem relações cordi-ais com um português patriota como o conde Rodrigo, que gostaria de vê-lacasada com seu filho e, ao que parece, está legalmente instalada em Niterói,na época (1567) inequivocamente sob controle dos portugueses, onde avisitam aqueles militares franceses! Ela só aparece no segundo ato, ondesua figura é contraditória; mas a contradição funciona de acordo com alógica do esquema geral. Ou seja, ela é negativa, antagonista, em sua quali-dade de pretendente ao amor de Américo e também como estrangeira; mas,ao comprar e libertar escravos, está do lado dos brasileiros, dos índios e, emparticular, dos protagonistas Iberê e Ilara, que figuram entre os alforriados.Transforma-se por algum tempo, assim, de fútil beldade, desagradável esarcástica em sua infelicidade amorosa, em eloqüente arauto dos ideais da

1 Neste caso, cito segundo o libreto original de Rodolfo Paravicini,reproduzido em folheto que acompanha a edição em CD de Lo schiavo, récita realizadano Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 26 de junho de 1959, p. 5. Esta edição daópera em CD é da Sonopress, Manaus, 1997, discos MC006-1 e MC006-2.

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libertação dos escravos (segundo ato, sexta cena): “Un astro splendido nelcielo appar, ravviva, illumina foresta e mar! Sotto quel raggio dell’astros’innalza un grido che in ogni lido echeggierà! È l’inno eterno che non morrà,il grido unanime di libertà!” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 155-156): “Umastro esplêndido aparece no céu, reanima, ilumina a floresta e o mar!... E sobo raio do astro, ergue-se um grito, que ecoará em todos os rincões! É o hinoeterno, imorredouro: o grito unânime de liberdade!”.

Por fim, os índios, personagem coletiva. No primeiro ato, são índi-os escravizados: com os camaradas da fazenda, integram o grupo dos brasi-leiros. São, portanto, positivos: desejam a liberdade, odeiam o feitor, interce-dem por Iberê e vêem em Américo – que se enxerga igualmente como brasilei-ro – seu amigo e protetor (primeiro ato, nona cena). Os índios do terceiro equarto atos são diferentes: índios “bravos” que preparam e depois realizamuma revolta contra os portugueses escravizadores e usurpadores, os“emboabas”, os “estrangeiros”; como dizem em coro (terceiro ato, quartacena): “L’Emboâba, armato, la nostra terra ha già varcato” (GOMES;PARAVICINI, 1985: 240-241): “O emboaba, armado, já invadiu a nossa terra”.Ou, ainda (quarto ato, terceira cena): “Guerra feroce! Dalla riviera farem barrieraall’invasor! Al grido nostro in terra l’eco risponda in mare. Schiavi non più,l’altare alziam di libertà!” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 304-305): “Guerraferoz! Do litoral formaremos uma barreira ao invasor! Que o eco responda, nomar, ao nosso grido proferido na terra: ‘Não mais escravos, ergamos o altarda liberdade!’ ”. Toda a construção do libreto da ópera volta-se para a valo-rização axiológica desses ideais de alforria, de liberdade. No entanto, osmesmos índios se transformam em antagonistas e seu aspecto muda ? bemcomo, no quarto ato, o texto e a música acentuam seu “primitivismo” feroz(coisa que Ilara constata no final do terceiro ato, na porção eliminada daversão revista da ópera, sem que, então, tal sentimento seja seguido porIberê, que a ele se associará só no último ato) – quando se voltam contra osprotagonistas e, a seguir, contra Américo. Uma das formas mais insistentesem que o texto “constrói” os índios é por meio da multiplicação de termostupis (às vezes adaptados à língua italiana): “inúbia” (no primeiro, terceiro equarto atos); “Tupã”, “emboaba”, “Tupiberaba” (no terceiro ato); além dediversos topônimos de mesma origem. Musicalmente, nesta ópera como emIl Guarany, Carlos Gomes inventa – pois não há autenticidade ou pesquisano que faz – uma “música que designa os índios”, caracterizada, entre outrascoisas, por ritmos repetitivos e insistentes: designa-os, isto é, “para europeuver”, como figuras exóticas. É interessante notar uma inversão em relação àópera anterior: em Il Guarany (de 1870), o índio “bom” é o guarani que apóiaos portugueses, os índios “maus” são os aimorés anti-lusitanos; em Lo

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Schiavo, os índios em princípio mais positivos são exatamente aqueles re-beldes aos portugueses.

6. Construção musical: o e6. Construção musical: o e6. Construção musical: o e6. Construção musical: o e6. Construção musical: o exxxxxemplo da “Alvemplo da “Alvemplo da “Alvemplo da “Alvemplo da “Alvorada”orada”orada”orada”orada”

Lo Schiavo foi composto para o Teatro Municipal de Bolonha,mesmo se, por uma série de circunstâncias, terminou por estrear no Rio deJaneiro. Sua música, como outros elementos (cenários, índios), busca umavisão pitoresca do Brasil tropical, visando a um público europeu. Vamosexplicar como funciona a isotopia no nível da música tomando um exemplo:a página orquestral conhecida como “Alvorada” (quarto ato, quarta cena).Do ponto de vista isotópico, este interlúdio, espécie de pequeno poemasinfônico que descreve o nascer do Sol, aponta para os elementos musicaisprincipais seguintes, anteriormente ouvidos na ópera, para o contexto emque apareceram então e, eventualmente, para as palavras na ocasião pro-nunciadas em conjunto com a música:

1) uma espécie de “hino” à liberdade dos escravos, que antessurgira duas vezes: no primeiro ato, sexta cena, na voz de Américo e depoisdo coro - quando fica explícita a metáfora da “aurora” para significar a liber-tação dos escravos, nas palavras “Coraggio ancora! lontan non è la desiataaurora per voi/noi di libertà!” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 67-68, 73): “Co-ragem ainda! Não está distante, para vós/nós, a aurora desejada da liberda-de!”; e no segundo ato, sétima cena, em variante mais curta, na voz dacondessa de Boissy, em seguida no coro, dirigindo aos escravos recém-alforriados as palavras: “In voi ritorna il dritto umano: che il cielo vi benedica”(GOMES; PARAVICINI, 1985: 162-163): “Volta para vós o direito humano:que o céu vos bendiga”. Pouco antes (segundo ato, sexta cena), o Brasilhavia sido aclamado pelo coro como “terra civile di libertà” (GOMES;PARAVICINI, 1985: 157): “terra cortês da liberdade”;

2) a primeira frase musical (mais exatamente, um membro dessafrase) da ária de Iberê (quarto ato, terceira cena), “Sogni d’amore” (GOMES;PARAVICINI, 1985: 300): “Sonhos de amor”, cujo texto comenta seu amorinfeliz por Ilara, miséria que contrasta com seu esplendor de cacique (chama-do no texto, diversas vezes e inadequadamente, de “rei”);

3) uma ocasião anterior (segundo ato, terceira cena) em que, naária de Américo, “Quando nascesti tu” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 127-129): “Quando tu nasceste”, a linha melódica, na voz do tenor, dialogava emcontraponto com um canto de pássaro (madeiras).

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Ao tratarmos dos cenários, reproduzimos o texto que, na própriapartitura da ópera, descreve a “Alvorada”. Ele corresponde bastante bem àestrutura musical da peça, que parece feita sob medida para um desempenhobrilhante dos responsáveis pela iluminação. No Teatro Municipal do Rio deJaneiro, enquanto a ópera esteve no repertório habitual daquela casa deespetáculos, até o início da década de 1960, sua realização, com justiça, eramuito famosa.

Eis aqui a estrutura musical básica da “Alvorada”, cuja duraçãototal é de aproximadamente sete minutos e meio: 2

1) Após uma longa nota ré (trompa), anunciadora da que será atonalidade principal da página musical que comentamos, ouve-se, no regis-tro grave das cordas e depois também das madeiras, uma sucessão de acor-des - passagem lenta, cromática, modulante e sombria que representa o marondulante e seu embate nas pedras costeiras. Firma-se a tonalidade principalda “Alvorada” (Ré Maior) e aparece, lírica e suavemente exposto no agudodas madeiras, depois nas cordas em pianíssimo, um tema baseado na fraseinicial da ária de Iberê (“Sogni d’amore”), ancorando assim a peça sinfônicano universo diegético da ópera e, ao mesmo tempo, reafirmando o caciquecomo protagonista da mesma. Um efeito sonoro grave e bizarro de instru-mentos de metal se ouve quatro vezes, sugerindo a inúbia indígena, e ocorrea introdução de temas vinculados aos pássaros (canto e revoada). Umatransição (começada pela harpa) prepara a parte seguinte (GOMES;PARAVICINI, 1985: 308-309).

2) Primeira execução do toque de despertar (ou de alvorada): trom-beta interna (fora de cena), efeito de eco. Nova intervenção da harpa leva aoreaparecimento de cantos variados e revoadas de pássaros, depois aconte-ce a segunda apresentação do toque de trombeta, agora com acompanha-mento dos passarinhos. O mar é evocado outra vez no registro grave, emsons que sugerem também a luz incerta da madrugada, antes da aurora plena,sempre com cantos de pássaros. Isto se transforma numa transição (GO-MES; PARAVICINI, 1985: 309-311).

3) Parte lírica baseada na primeira frase da ária de Iberê (cordas),com o canto do sabiá como contraponto (madeiras), seguida pelo retorno dotoque de alvorada, sem que cessem os pássaros. Ao continuar em coda

2 A execução com que trabalhei ao elaborar este artigo foi a faixa 7 (cujaduração é de 7 minutos e 39 segundos) do CD: Carlos Gomes. Aberturas e prelúdios.

Orquestra Sinfônica Brasileira. Regente: Yeruham Scharovsky. Edição da Sonopress,Manaus, patrocinada pelo Programa de Apoio às Orquestras do Ministério da Cultura,1998. OSBCD0001/98.

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veemente, o próprio toque de corneta faz a transição à parte seguinte(GOMES; PARAVICINI, 1985: 311-313).

4) Voltam, subindo de tom em modulações sucessivas, as duasprimeiras notas da ária de Iberê. Alvoroço da passarada e aceleração doandamento: a tensão e a expectativa crescem, preparando o clímax da peça,ao cantarem agora os pássaros em uníssono, pois a luz aumenta (GOMES;PARAVICINI, 1985: 314).

5) Surge, imponente, o “hino de liberdade” - que é ao mesmotempo o tema da aurora - nos metais, conduzindo ao final grandioso: umafanfarra, desta vez acompanhada pela orquestra em peso, saúda o Sol nas-cente, cujos raios, iluminando por fim as montanhas da Guanabara, são re-presentados pelos pratos ou címbalos (GOMES; PARAVICINI, 1958: 314-315).

A associação “hino de liberdade”/alvorada metaforiza o ato deabolição da escravidão - habitualmente, na época e também com freqüênciaem ocasiões posteriores, por exemplo em livros didáticos, atribuído à inicia-tiva de quem o assinou, a princesa Isabel (a quem a ópera foi dedicada pelocompositor) - como uma nova aurora para o Brasil. Esta noção é tambémpreparada em palavras pelo coro interno dos índios que precede imediata-mente a “Alvorada” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 303-307). Em suma, umtema abolicionista pretensa e absurdamente situado no século XVI quis, naverdade, exaltar a abolição recente ocorrida em 1888 de modo a sublinhar emtom favorável o papel, nela, do regime imperial. O irônico - mas Carlos Gomesnão o podia saber - foi que a metáfora da aurora/abolição soasse, num teatrodo Rio de Janeiro, no crepúsculo do Império...

Conc lusãoConc lusãoConc lusãoConc lusãoConc lusão

Na polêmica entre os que defendem um caráter essencialmentebrasileiro para a música de Carlos Gomes e aqueles que acham que, pelomenos em sua fase européia, o compositor utilizou uma linguagem musicalitaliana (alguns preferem dizer “italianizada”, embora eu não veja muito bema utilidade de uma distinção deste tipo) - o que não exclui, claro está, apresença eventual de elementos brasileiros -, pendo para a segunda posi-ção. Mas é evidente que, ao chegar a Milão aos 27 anos de idade, CarlosGomes não era nem podia ser, ideologicamente, uma tabula rasa. A análiseseletiva de Lo schiavo empreendida neste artigo mostra que o músico parti-cipava da preocupação do Império com a construção da nacionalidade bra-sileira, um projeto que, entre outros elementos, passou pela invenção literá-

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ria de um índio heróico e cavalheiresco e daquilo que se chamou nos manu-ais escolares, desde então, de “movimentos nativistas”: nesta ópera, o mo-vimento tamoio é construído como movimento nativista e seu chefe, Iberê,parece concentrar em si as virtudes de um cavaleiro medieval tal como oRomantismo o recriava. Deste ponto de vista, se não daquele de sua lingua-gem musical, mesmo enquanto trabalhava na Europa em suas óperas canta-das em italiano mas que desenvolviam temas brasileiros inspirados na litera-tura nacional - Il Guarany e Lo schiavo -, o compositor permanecia semdúvida alguma brasileiro. Recordava, emocionado, a natureza do seu país econtinuava bem próximo aos interesses do regime imperial, arrimo principalde sua carreira, o que lhe valeria alguns dissabores nos últimos anos de suavida, após 1889.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

CARDOSO, Ciro Flamarion. Narrativa, sentido, História. Campinas: Papirus, 1997.

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GOMES, Carlos (música); PARAVICINI, Rodolfo (libreto). Lo Schiavo. Redução paracanto e piano de G. Loscar. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1985.

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GREIMAS, Algirdas; COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. Trad. Alceu DiasLima et alii. São Paulo: Cultrix, s.d.

VANOYE, François e GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Précis d’analyse filmique. Paris: Nathan,1992.