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Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum. 2007;17(3):84-94 PESQUISA ORIGINALRESEARCH ORIGINAL

+ Os dados analisados no presente artigo foram derivados do projeto de pesquisa “A relação médico-paciente noPrograma Saúde da Família: uma pesquisa-ação com as equipes de saúde da família do Ceará e da Bahia”,desenvolvido sob financiamento do CNPq – Processo 521229/98.

* Juíza de Direito, Doutora em Saúde Pública (ISC-UFBA), Docente da Faculdade de Direito e do Mestrado em Famíliana Sociedade Contemporânea (UCSAL). Endereço para correspondência: Rua Carmem Miranda 326 Ap 902 PitubaCEP 41.810-670 Salvador-Bahia - E-mail: [email protected]

* * Psicóloga, Doutoranda em Saúde Pública (ISC-UFBA), Professora Substituta do Departamento de Saúde Coletiva(ISC-UFBA) - E-mail: [email protected]

*** Psicóloga, Doutora em Saúde Pública (ISC-UFBA), Docente do Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea(UCSAL) - E-mail: [email protected]

A CONSULTA MÉDICA NO CONTEXTO DO PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA EO DIREITO DA CRIANÇA +

MEDICAL VISITS IN THE CONTEXT OF THE FAMIL Y HEALTH PROGRAMAND CHILDREN’S RIGHT

Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima*

Vânia Sampaio Alves**

Anamélia Lins e Silva Franco***

Resumo: Objetivo: Analisar a compreensão do médico de saúde da família em relação ao direito àsaúde da criança. Método: Observaram-se 50 consultas médicas com crianças menores de seisanos de idade, conduzidas por dez médicos de saúde da família com atuação em três municípiosbaianos. As consultas foram registradas em áudio e, posteriormente, transcritas na íntegra, medianteconsentimento informado dos médicos e dos responsáveis pelas crianças. A análise das consultasobedeceu a duas etapas consecutivas e complementares em relação aos objetivos pretendidos: adescrição da condução das consultas e a análise interpretativa do processo interacional ecomunicacional entre os médicos e as famílias das crianças assistidas. Resultados: A investigaçãoaponta ser a consulta médica orientada pelas linhas de cuidado de atenção integral à saúde dacriança. Contudo, entre os médicos predomina uma concepção restrita de saúde. Esta, aocircunscrever a queixa aos sintomas e à atenção estritamente medicamentosa, compromete aapreensão de seus determinantes, desvinculando-a da realidade das famílias e da comunidade. Aconsulta deixa de constituir uma oportunidade de afirmação do direito à saúde da criança.Conclusões: A investigação conclui que, na perspectiva do direito da criança, a atenção médicaprecisa ser orientada pelo princípio do seu “melhor interesse” nos termos da Convenção dasNações Unidas sobre o Direito da Criança. Esta constatação remete para a necessária afirmaçãodo paradigma da proteção integral da criança e do adolescente na formação dos profissionais desaúde.

Palavras-chave: Política de Saúde. Programa Saúde da Família. Direito à saúde da criança.

INTRODUÇÃO

Os serviços públicos de saúde no Brasilsão freqüentemente relacionados a conteúdos

negativos, sendo acentuados, especialmente pe-los veículos de comunicação de massa, aspectostais como a restrição quanto ao acesso, à insa-tisfação dos usuários, a ineficiência e a ineficá-

Lima IMSO, Alves VS, Franco ALS. A Consulta médica no contexto do programa saúde dafamília e direito da criança. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum. 2007; 17(3):84-94.

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cia das ações produzidas. Em contrapartida, aproposição do Sistema Único de Saúde (SUS),cujos princípios e diretrizes preconizam a univer-salidade, a integralidade e a eqüidade, constituiuuma conquista do povo brasileiro pela democra-cia da atenção à saúde.

O reconhecimento da saúde como um di-reito humano repercute tanto na formulação depolíticas públicas quanto na prática profissional.A garantia dos direitos humanos, assim como ado direito à saúde da população e, em especial,da população infanto-juvenil, exige mais do quea afirmação normativa. Para efetivação do di-reito à saúde faz-se necessária a definição depolíticas públicas específicas capazes tanto desuperar um discurso retórico quanto de promo-ver uma atuação articulada de diferentes atoressociais.1-6 A garantia do direito à saúde do grupopopulacional infanto-juvenil é resultante de múl-tiplos fatores de ordem política, socioeconômica,jurídica, cultural, ambiental e não exclusivamen-te de natureza física.7-9

A saúde, em sua acepção ampla, é con-cebida como expressão da qualidade de vida eestá, portanto, estreitamente relacionada às con-dições de existência social, econômica e cultu-ral. Nesta perspectiva, a atenção à saúde nãodeve ser restrita ao âmbito da clínica, cujo enfo-que recai sobre o indivíduo, a doença e a assis-tência curativa. Em conformidade com esta con-cepção têm sido propostas ações extramuros.Estas ações se caracterizam pela construção deparcerias entre profissionais de saúde e usuáriospara o enfrentamento de problemas vivenciadospelas comunidades.

O Programa Saúde da Família (PSF) que,na conjuntura contemporânea da política de saú-de nacional, tem sido estratégico no processo deconstrução e de fortalecimento do SUS, vemconferindo aos profissionais de saúde um novocontexto de prática e incitado à reformulação desaberes. A estratégia do PSF pretende ofereceruma atenção centrada nos princípios da vigilân-cia da saúde. 11,12 Assim sendo, a assistênciaprestada deve ser integral, abrangendo todos osmomentos ou dimensões do processo saúde-do-ença. 13,14 A abordagem da vigilância da saúdereconhece profissionais e usuários enquanto agen-

tes da produção da saúde. Nesta direção, espe-ra-se uma transformação da relação entre estesatores, particularmente da relação entre médicoe paciente.

O objetivo do presente estudo é analisar acompreensão do médico de saúde da família emrelação ao direito da criança. A superação doreducionismo biomédico e a assimilação da abor-dagem da vigilância da saúde são condições ne-cessárias para a construção de uma relaçãomédico-paciente sustentada no compromisso ena co-responsabilidade para enfrentamento dosproblemas de saúde individuais e coletivos. 15

Assim, a doença pode ser remetida aos seusmacro-determinantes e a saúde, por sua vez, podevir a ser reconhecida como um direito de cida-dania. Entretanto, neste momento, estas formu-lações ainda são de natureza contra-hegemôni-ca. Mesmo no contexto do PSF e a despeito dealgumas experiências inovadoras, a concepçãorestrita de saúde ainda é predominante, sendo arelação médico-paciente orientada para a aten-ção curativa e a prevenção de agravos e redu-ção de riscos à saúde individuais. 15,16

Em conformidade com a abordagem da vi-gilância da saúde, a relação médico-paciente podeser compreendida como uma instância de opera-cionalização dos direitos humanos. 17 A compre-ensão dos problemas de saúde individuais e cole-tivos pode ser remetida a uma contextualidadesocial, política, cultural e econômica que implicaos profissionais de saúde, indivíduos, comunidadee Estado na definição de estratégias de enfrenta-mento. As ações de saúde desenvolvidas, seja naclínica ou nos espaços comunitários, precisamcontemplar a dinâmica do adoecimento individuale seus determinantes, podendo, nesta direção,apreender as dimensões do direito.

A natureza jurídica do direito à saúde é decaráter subordinante: o Estado é obrigado cons-titucionalmente a garanti-lo mediante políticaspúblicas. O direito da criança e do adolescentetambém constitui uma relação subordinante emface de outros atores: família, comunidade e Es-tado. Desde a Declaração de Genebra de 1924,primeiro documento internacional público relati-vo aos direitos da criança, encontra-se preconi-zado o seu direito a crescer e a se desenvolver

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em ambiente saudável. Somente com o avançodo processo de afirmação do paradigma de pro-teção integral, consubstanciado na Convençãodas Nações Unidas sobre o Direito da Criança(CNUDC), em 1989, ficaram os Estados-partesobrigados a implementar os princípios desta nor-ma. Em relação ao direito à saúde, especifica-mente o art. 24 da CNUDC afirma que a crian-ça deverá gozar do mais alto nível possível desaúde, vinculando, ao longo deste dispositivo,medidas necessárias para redução da mortalida-de infantil, para o desenvolvimento da atençãosanitária preventiva, para atenção médica pré-natal e pós-natal às mães, para assegurar pres-tação de assistência médica mediante atençãoprimária, entre outros.

A relação do paradigma de proteção inte-gral à infância-adolescência com o eixo da ga-rantia do direito à saúde em face dos direitoshumanos vem sendo amplamente discutida. 17,18

A garantia do direito à saúde como afirmaçãodas obrigações do Estado não é tema da circuns-crição exclusiva de operadores jurídicos. Envol-ve, sobretudo, a atuação dos profissionais de saú-de. Estes, uma vez atentos à sua condição deatores políticos, superando uma postura prescri-tiva, podem escutar a queixa da criança, enunci-ada diretamente ou pela mãe em uma consulta,articulando-a na perspectiva do direito.

O princípio do “melhor interesse da cri-ança”, reconhecido hoje como princípio consti-tucional por força do § 2o do art. 5o da Constitui-ção Federal, ratificado pelo Brasil através dodecreto 99.710/90, deve ser também um nortea-dor da prática de todos os profissionais que atu-am junto à população infantil. Profissionais desaúde capazes de estabelecer conexões reais comaspectos do direito – sem que para tanto preci-sem fazer curso jurídico – enriquecem a tessitu-ra de uma esteira onde se trançam interessesque têm como foco a dignidade da pessoa hu-mana. Tamanha a força deste princípio que opróprio texto constitucional pátrio a ele faz explí-cita referência mediante a expressão “priorida-de absoluta” no art. 227.

Justifica-se o presente estudo pela rele-vância de plasmar os princípios organizativosdo PSF e os princípios estruturadores da

CNUDC. Os primeiros são relativos à reorien-tação das práticas de saúde em coerência coma abordagem da vigilância da saúde, conferin-do integralidade à atenção. Os segundos, con-siderando o compromisso ontogenético com aprópria espécie humana, articulam o interessesuperior da população infanto-juvenil, a impor-tância da não discriminação e a efetividade dodireito. Em que pese cada um destes aspectos,seja em relação às práticas de saúde no PSF,seja em relação à afirmação do direito da in-fância, constituir objeto de estudos contempo-râneos 15, 17, ainda é restrita a produção teóri-co-empírica que contemple estas vertentes.Afinal, estas tendências guardam, de per si, umtrilho fundante com o princípio da integralida-de. O vagão que transporta a concepção desaúde na perspectiva deste princípio interessaaos profissionais do PSF, em especial ao médi-co. O vagão que transporta a concepção de di-reito da criança na perspectiva do princípio daintegralidade interessa à família, à comunidadee ao Estado. Assim, os princípios que estrutu-ram o atendimento do médico de saúde da fa-mília, quando na consulta à criança, estão arti-culados, sobretudo, na substância da integrali-dade. Incide nesta instância de atendimento oprincípio da prioridade absoluta.

Através do cuidado com a saúde do paci-ente, o médico atua como tradutor de uma con-cepção de saúde. A formação do médico se pro-jetará sobre a relação médico-paciente na medi-da em que o profissional imprime, no seu labor,uma matriz conceitual capaz de assimilar a pers-pectiva da integralidade da pessoa. O médicointerpreta, mediante a relação com o paciente,aquilo que este lhe traz e pode, consoante a ma-triz que adote, remeter sintoma e queixa, resul-tado laboratorial ou dado clínico para uma esfe-ra mais restrita ou mais ampla. É nesta dinâmicaexegética que o profissional de saúde poderá sairda circunscrição formal da prática de saúde:ampliando o horizonte da práxis, densificando arelação com o paciente, articulando, através des-te, a sua própria condição de cidadão. Ao fazê-lo estará, quando do atendimento à criança e asua família, operando o paradigma de proteçãointegral.

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MÉTODO

O dados analisados no presente estudoderivam da pesquisa “A relação médico-pacien-te no Programa Saúde da Família: uma pesqui-sa-ação com as equipes de saúde da família doCeará e da Bahia” desenvolvida sob financia-mento do CNPq. Com o objetivo de caracterizara relação médico-paciente no contexto de práti-cas das equipes de saúde da família, observa-ram-se, no Estado da Bahia, 408 consultas am-bulatoriais realizadas por vinte médicos do PSFde três municípios selecionados segundo critériogeográfico: regiões metropolitana, litorânea esemi-árido.

A gravação das consultas realizou-se sobconsentimento dos sujeitos participantes. Osmédicos assinaram termo de consentimento in-formado. Os pacientes eram informados quantoao trabalho do observador que estaria concen-trado na atuação do médico. Evitando-se o cons-trangimento de apresentar um documento paraser lido e assinado por uma população com bai-xo nível de escolaridade, decidiu-se pelo consen-timento verbal do paciente, registrado em áudio.

O projeto para análise das consultas no pre-sente estudo foi submetido ao Comitê de Éticaem Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA), recebendo deste um parecer favorável.

O corpus de análise desta investigação foiconstituído pela transcrição literal de 50 consultasde crianças menores de seis anos conduzidas pordez médicos assim distribuídos: cinco na regiãolitorânea, três na metropolitana e dois no semi-árido, respectivamente. Os médicos foram sele-cionados a partir do critério de atendimento depelo menos quatro crianças no conjunto das con-sultas observadas. A definição quanto ao númerode consultas a ser analisado por profissional con-siderou o objetivo de aproximação com a rotinado médico na atenção à saúde da criança.

A constituição do corpus foi seguida porduas etapas de análise consecutivas e comple-mentares em relação aos objetivos pretendidos:a descrição da condução das consultas e a aná-lise interpretativa do processo interacional e co-municacional entre os médicos e as famílias dascrianças assistidas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Atenção à saúde e ao direito da criança: aconsulta médica

Neste estudo a análise da atenção médi-ca à saúde da criança privilegia a dimensão darelação médico-paciente, assumindo como dire-trizes norteadoras da compreensão da práticamédica as linhas de cuidado para uma atençãointegral às crianças, definidas pelo Ministério daSaúde 19: a) ações da saúde da mulher; b) aten-ção à gestante e ao recém-nascido; c) promo-ção do aleitamento materno e alimentação sau-dável, com prevenção do sobrepeso e obesidadeinfantil, e combate à desnutrição e anemias ca-renciais; d) acompanhamento do crescimento edesenvolvimento; e) imunização; f) atenção àsdoenças prevalentes na infância; g) atenção àsaúde bucal; h) atenção à saúde mental; i) pre-venção de acidentes, maus-tratos/violência e tra-balho infantil; j) atenção à criança portadora denecessidades especiais. Em relação às linhas decuidado, salienta-se que, em todos os níveis econtextos de assistência, o encontro de profissi-onais de saúde com a criança e sua família deveser potencializado para uma atenção privilegia-da e integral à criança.

A maioria das crianças assistidas nas con-sultas analisadas era do sexo feminino (56%) etinha a mãe como acompanhante (86%). Entre-tanto, outros cuidadores podiam apresentar-se aoatendimento, como o pai, a tia, a avó ou outrapessoa da rede social e comunitária. Deste modo,nestas consultas tem-se caracterizada uma rela-ção médico-família.

Para 60% das crianças atendidas, reali-zava-se uma consulta ou procedimento de acom-panhamento na unidade de saúde. As consultasforam motivadas por problemas de saúde diver-sos, principalmente doenças respiratórias e der-matites, como também pelo agendamento do pró-prio serviço para o acompanhamento do cresci-mento e desenvolvimento, sem que, necessaria-mente, houvesse a apresentação de uma queixarelativa à saúde da criança.

Em relação ao agendamento das con-sultas, prática que corresponde a uma dinâmi-

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ca vinculante das equipes do PSF com as fa-mílias, identifica-se o princípio da co-respon-sabilidade previsto no art. 227 da ConstituiçãoFederal e dos artigos 7º. a 14 do Estatuto daCriança e do Adolescente (ECA). Configura-se, mediante o agendamento, a continuidadeexigida às políticas sociais previstas no art. 87do ECA. Estas políticas correspondem às deatendimento dos direitos humanos na catego-ria dos direitos sociais: saúde e educação.Deverão, como tal, observar a três condições:universalidade, gratuidade e continuidade. En-quanto política de atendimento dos direitos dacriança, segundo previsto no art. 86 do ECA,é implementada através de um conjunto arti-culado de ações governamentais e não gover-namentais da União, dos Estados, do DistritoFederal e dos Municípios.

O comparecimento da criança cuja famí-lia observa o agendamento, independentementede queixa, se reveste de oportunidade excepcio-nal para que o médico de saúde da família pro-mova uma relação diferenciada na pauta da agen-da de direito. Uma vez que o médico, atendendoà criança, compreenda que esta se constitui umapessoa em fase peculiar de crescimento e de-senvolvimento, deverá agir, independentementeda queixa apresentada pela família, na perspec-tiva da sua integralidade, com características enecessidades diferentes a cada momento da faseinfanto-juvenil. Entende-se que a integralidadecompreende crianças numa perspectiva ontoge-nética, na dinâmica da sua condição humana,social, biopsíquica, plasmando-se na concepçãode sujeito de direito, com existência completa,histórica e temporalmente definidas, sob as in-fluência de seu meio e sob a proteção da família,da sociedade e do Estado. 17

O médico de saúde da família represen-ta o Estado perante o usuário e a comunidade.É através da relação estabelecida pelo profis-sional que alguns fatores determinantes noêxito dos resultados quanto à saúde da crian-ça podem ser implementados: aqueles fatoresque dependem do comportamento individual(da mãe ou de outro cuidador) relativamenteaos níveis atitudinais, cognitivos e comporta-mentais. 17, 20

O encontro entre o médico, a criança e suafamília: a condução da consulta

A consulta de crianças apresenta particu-laridades importantes. A primeira delas diz res-peito à presença da família que inquestionavel-mente desempenha o papel de agente de cuida-do e atenção à sua saúde. Uma segunda parti-cularidade refere-se ao acentuado enfoque àpreservação da saúde e integridade da criança,de maneira que, mesmo em situações de adoeci-mento, o discurso de famílias e profissionais temcomo ponto de convergência a saúde e sua pro-moção.

A condução das consultas analisadas as-sume duas tendências principais. A primeira, tí-pica da atuação de dois profissionais, consistenuma abordagem centrada na queixa motivado-ra da procura pelo serviço. Assim sendo, o exa-me físico é orientado pela queixa e outros pro-blemas ou necessidades de saúde da criança nãosão investigados. Esta tendência de condução dasconsultas caracteriza-se, ainda, pela não com-preensão da família como unidade de atenção,com a abordagem médica destacando a criançade seu contexto familiar e comunitário, contrari-ando, portanto, o teor do art. 4º do ECA.

A segunda tendência identificada carac-teriza-se como predominante na condução daconsulta de crianças entre os demais profissio-nais. Esta tendência evidencia uma abordagemque, sem desconsiderar os problemas de saúdemanifestos, amplia a investigação de outras ne-cessidades de saúde da criança e, eventualmen-te, de sua família. Segundo esta tendência, a con-sulta não inicia necessariamente pela apresenta-ção da queixa e descrição de sintomas, podendoser priorizada a abordagem de outras temáticas,como a atualização das vacinas, o peso da crian-ça, a sua amamentação ou alimentação.

A anamnese clínica e o exame físico nes-tas consultas caracterizam-se pela sua amplitude:além do esclarecimento diagnóstico possibilitam ainvestigação de outros problemas e necessidadesde saúde, não se restringindo, assim, à mera quei-xa. Em uma consulta de uma criança de 10 me-ses com infecção na pele, o médico indaga a mãe:“Fora a pele, você acha a saúde dela boa?”.

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A anamnese parece orientada para o di-agnóstico de doenças prevalentes na infância,com os profissionais atentando especialmentepara sintomas como: febre, chiado no peito, con-dição da urina e das fezes, diarréia, perda deapetite, secreção do ouvido, vômito, vermelhidãoda garganta, tosse, gripe, obstrução e secreçãonasal. Além da observação da criança, a anam-nese pode ser estendida a outros membros dafamília, com o médico indagando se há mais al-guém doente em casa. A saúde da mãe, particu-larmente a questão do planejamento familiar, tam-bém pode ser abordada pelo médico. Um profis-sional, atendendo uma criança de 6 meses, cujamãe é adolescente inscrita no programa de pla-nejamento familiar, questiona sobre o métodocontraceptivo usado pela jovem para evitar umasegunda gestação.

Assim como a anamnese, a atenção clíni-ca pode ser estendida a outros membros da fa-mília. Em uma consulta na qual se constata adesnutrição de uma criança de um ano, a mãe,gestante de 8 meses, é encaminhada pelo médi-co para acompanhamento com a enfermagem:“Eu vou passar a senhora pra enfermeira queela vai fazer o acompanhamento da desnu-trição do neném, viu?”.

A avaliação do peso e atualização dasvacinas, mediante apreciação do Cartão da Cri-ança, é um procedimento realizado sistematica-mente na grande maioria das consultas. A atua-lização das vacinas, assim como a importânciada apresentação do cartão em todas as consul-tas infantis e nos procedimentos na unidade desaúde, é ressaltada pelos profissionais. O Car-tão da Criança configura um direito conquista-do na perspectiva da redução de doenças imu-nopreveníveis, que, ao ser incorporado às açõescotidianas do PSF, pode constituir, de forma indi-reta, um instrumento de avaliação da qualidadeda atenção prestada pela equipe de saúde dafamília à comunidade adscrita, bem como deobservância de garantia do direito à saúde dacriança.

Com relação ao peso da criança, a aten-ção médica é orientada para o diagnóstico dedesnutrição. O tema da alimentação acompanhafreqüentemente a abordagem quanto ao peso da

criança. A amamentação é incentivada. O des-mame e a qualidade nutricional da alimentaçãodas crianças são temas centrais nas orientaçõesmédicas de atenção e cuidado à sua saúde. Comrelação à vacinação, ao peso e à alimentaçãodas crianças, verifica-se uma preocupação en-tre os profissionais em garantir a promoção deum cuidado às crianças por suas famílias. Estecuidado legitimado como ideal por vezes não as-simila as particularidades contextuais do cuida-do que é real, alicerçando-se no discurso médicode prevenção de agravos e de redução de riscosà saúde.

O exame físico complementa a anamne-se médica, consistindo, freqüentemente, de umaavaliação da condição geral da criança e de seucrescimento e desenvolvimento. A mãe ou outroacompanhante da criança na consulta podem serconvocados a participar da realização do exa-me, observando a criança conjuntamente com omédico. Mediante o exame físico, os profissio-nais podem estimular a família a observar outrasnecessidades de atenção e de cuidado para even-tuais problemas de saúde da criança. Nesta di-reção, ao examinar uma criança de 4 anos, cujaqueixa é de dor de garganta e febre, o médicointerroga a mãe sobre cuidados com a saúdebucal: “Por que não tá levando pro dentista,mãe? Olhe o dentinho aqui...”. O médico ori-enta a mãe a agendar uma consulta com o den-tista da unidade imediatamente à conclusão doatendimento, explicitando a relação da saúdebucal com outros problemas: “Não pode ficarcom esse problema do dente não, viu mãe?Isso aí já dá problema de garganta, viu?”.

A atenção do médico a situações de vulne-rabilidade nas famílias e investigação de sinais esintomas sugestivos de violência ou maus-tratoscontra a criança também pode ser efetuada du-rante o exame físico. Esta condução estaria coe-rente com o preconizado no art. 245 do ECA:“Deixar o médico, professor ou responsávelpor estabelecimento de atenção à saúde e deensino fundamental, pré-escola ou creche, decomunicar à autoridade competente os casosde que tenha conhecimento, envolvendo sus-peita ou confirmação de maus-tratos contracriança ou adolescente”. 21

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Apenas em uma das consultas observa-das foi verificado que um profissional, no atendi-mento a uma criança de dois anos, então acom-panhada por uma senhora da comunidade, mos-trou-se atento a um possível indício de violênciaintrafamiliar. A queixa era de febre, vômito, tos-se e diarréia. Durante o exame físico, uma cica-triz de queimadura chama atenção do médico,que indaga sobre a condição familiar e a circuns-tância da queimadura. Informado que a mãe dacriança teria se descuidado com uma panela nofogão, que a criança vive com o pai, que ele con-fiou a esta senhora, ora acompanhante da crian-ça, os cuidados com a filha, o médico nada maisindaga. O silêncio do profissional não repercuteconcretamente na proteção integral da criança.A condução desta consulta permite problemati-zar a abordagem médica quanto àquelas dimen-sões do cuidado e atenção à saúde da criançaque não são da esfera biomédica.

Nesta perspectiva, uma consulta conduzi-da por outro profissional aponta a limitação daatuação do médico de saúde da família na pro-moção do direito da criança e do adolescente.Trata-se da consulta de uma criança de um anoe meio de idade acompanhada da sua jovem mãe:uma adolescente de 16 anos. A criança já vemsendo acompanhada pelo médico, que a encami-nhou, em consulta precedente, para uma avalia-ção com neurologista e fisioterapeuta, em razãoda constatação de uma deficiência motora e atra-so no desenvolvimento e crescimento. Na con-sulta analisada, agendada para acompanhamen-to, a criança apresenta febre e tosse. Verifica-se, durante o seu exame, que esta perdeu cercade um quilo desde a última consulta. A avaliaçãosolicitada com outros profissionais de saúde ain-da não fora realizada, tendo a mãe argumentadoque estaria aguardando o encerramento do perí-odo de festas populares para levar a criança aohospital. Diante de tal justificativa, o médico cen-sura a jovem: “Minha filha, deixa eu te falar,as festas não vão passar tão cedo!”.

O médico imprimiu nesta consulta um ca-ráter repreensivo à mãe adolescente. Na opor-tunidade não se identificou uma atenção com-preensiva e assimiladora da condição familiar,porquanto, ainda que não fosse objeto imediato

da consulta, ali se vislumbrava uma situação com-plexa passível de atenção médica. A adolescen-te se refere ao companheiro como “o homemque eu moro” , comentando estar grávida, esti-mando dois meses de gestação. A jovem estavainscrita no programa de planejamento familiar,mas, segundo informa, deixou de usar o anticon-cepcional oral e o companheiro não usava cami-sinha: “porque eu parei de tomar o remédio eeu não peguei camisinha, porque o homemque eu moro disse que não queria camisinha,que ele não gosta de camisinha não”. A abor-dagem médica, todavia, culpabiliza a adolescen-te pela sua condição. A atenção à saúde da cri-ança, diante desta condição, restringe-se à uni-dade de saúde, sendo o bebê medicado no âmbi-to do serviço, sem outro encaminhamento. Afir -ma-se, neste procedimento, a incapacidade damãe em exercer o cuidado da criança, mas, emcontrapartida, uma possível rede de apoio famili-ar e/ou comunitário não é acionada, reiterando-se a culpabilização da mãe adolescente. Destaforma, a co-responsabilidade da família, da co-munidade e do Estado, conquistada no caput doart 227 da Constituição Federal, se depara coma atuação estritamente biomédica. O espaço darelação médico-família se restringe uma vez quemedidas de proteção à criança, nos termos doart. 98, inciso II, assim como aquelas previstasnos incisos IV e V do art. 101 ambos do ECA,deixam de ser promovidas. Tampouco o conse-lho tutelar, nos termos do art. 136 deste estatuto,é acionado pelo serviço de saúde.

A condução das consultas analisadas sedesenvolve coerentemente com as linhas de cui-dado para uma atenção integral à saúde da cri-ança. 19 Nesta perspectiva, as consultas das cri-anças menores de seis anos contemplam a in-vestigação de temáticas como: imunização, acom-panhamento do crescimento e desenvolvimento,alimentação e prevenção de desnutrição e ane-mias carenciais, atenção às doenças prevalen-tes na infância. Outras temáticas, ainda que ob-servadas em consultas isoladas, também sãoabordadas: a saúde da mulher (planejamento fa-miliar), a saúde bucal e os maus-tratos contracriança. Entretanto, a integralidade desta aten-ção mostra-se comprometida pela descontextu-

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alização do processo saúde-doença-cuidado. Ascondições concretas de vida das famílias não sãoassimiladas na compreensão dos problemas desaúde, o que obscurece um reconhecimentoquanto à possibilidade de exercício de um cuida-do das famílias afetivo e efetivo com a saúde desuas crianças. Depreende-se, portanto, que aatenção à saúde da criança não tem sido desen-volvida segundo a abordagem da vigilância dasaúde. Identifica-se, ademais, que mesmo sendorelevante a observância das linhas de cuidadointegral 19, múltiplas são as circunstâncias queensejam, durante a consulta médica, uma atua-ção eficaz na perspectiva do direito.

Na atenção às crianças, depreende-seuma concepção de saúde equivalente à ausên-cia de doença. Assim, a preservação de suasaúde implica na adoção de medidas que seantecipem à manifestação da doença ou doagravo à saúde, repercutindo, assim, na impor-tância do controle da vacina e do peso, bemcomo da qualidade da alimentação. Às famíli-as, delega-se a tarefa da constante vigilância,sendo esta exercida conjunta e complementar-mente com os profissionais de saúde.

A atenção conferida às famílias se realizadentro de uma perspectiva biomédica. Nesta di-reção, o cuidado de outros membros da famíliapode ser referido em caso de adoecimento ou deprevenção de agravos, como é o caso do plane-jamento familiar. Todavia, a dinâmica familiar nãotem sido constituída como objeto de atenção ecuidado necessário e imprescindível à integrali-dade da assistência às crianças. Afinal, constituia família primeiro círculo estruturante do desen-volvimento infanto-juvenil 22 e tratá-la sem con-siderar a sua natureza essencial é fragmentar odireito à saúde da criança. A integralidade daatenção à saúde da criança plasma o conteúdoprecípuo do seu interesse superior, afirmado naCNUDC, e, portanto, não poderá prescindir daperspectiva fundante do direito à saúde enquan-to direito humano.

A concepção restrita de saúde entre os médi-cos de saúde da família

As narrativas das famílias se caracterizam

pela sua brevidade e expressão monossilábica. Namaioria das consultas, estas são limitadas à apre-sentação da queixa e descrição de sintomas, po-dendo ser estimuladas pelos médicos nesta dire-ção, de modo a oferecer informações mais deta-lhadas para o esclarecimento do problema. Assimsendo, segue-se à queixa de gripe indagações tais:“Como é a gripe dela? Aonde é?”.

Em contraste com a brevidade dos rela-tos das famílias, a narrativa dos médicos é cons-truída tendo como alicerce o exame físico e osexames laboratoriais, que ditam o diagnóstico eorientam a definição do projeto terapêutico. Acausalidade dos problemas de saúde é investiga-da enquanto mera disfunção orgânica, desconec-tada da esfera familiar e comunitária. Mesmo asqueixas cujos determinantes possam ser rapida-mente remetidos às condições de vida, tais comoverminoses, dermatites, diarréia e anemia, iden-tifica-se um padrão da relação do médico de saú-de da família com o binômio criança-cuidador denatureza eminentemente pontual.

A forma como são compreendidas as in-fecções de pele, por exemplo, enquanto agravocomum às crianças atendidas, passa a revelaruma concepção restrita de saúde. Um caso ilus-trativo é observado entre as consultas de um pro-fissional no atendimento a uma criança com 10meses de idade, cuja família é residente em as-sentamento do Movimento dos Sem-Terra(MST). A criança, acompanhada pelo médico naunidade de saúde, tinha uma prescrição anteriorpara o “pr oblema de pele” – segundo enuncia-do médico. Na consulta atual, a mãe fez consi-derações quanto à terapia adotada, observandoque, mesmo seguindo as orientações do médico,as melhoras foram muito discretas. A investiga-ção do problema é aprofundada, com o médicointerrogando sobre os alimentos oferecidos à cri-ança, a condição do ambiente doméstico e oscuidados de higiene. Indagada sobre o início damanifestação dos sintomas, a mãe, com preci-são, relaciona esta ao comportamento de engati-nhar da criança: “Ué, quando ela começou...logo, logo quando ela começou arrastar, as-sim seis meses, que ela começou arrastar, aícomeçou sair isso na pele assim, começou asair os caroços. Aí quando pensou que não

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apareceu isso na pele dela...”. A condição devida da família, entretanto, não é assimilada àcompreensão do problema pelo médico, cuja sus-peita diagnóstica é de alergia: “Então, esse pro-blema da pele dela é um tipo de alergia”. Oprojeto terapêutico consiste em cuidados de hi-giene e com a alimentação da criança e a pres-crição de um creme para o problema. Enfatizan-do a importância das orientações de cuidado se-rem observadas pela genitora, agendando o mé-dico uma consulta subseqüente com a ressalvade que “a gente tem que descobrir a que essaalergia, se alergia somente, né?, a poeira,contato com chão...”.

A repercussão da medicalização dos “pro-blemas de pele”, isenta da abordagem sobre ascondições dos ambientes domésticos e comuni-tários, pode ser dimensionada nas consultas emque a narrativa da família explicita a ineficáciadas muitas pomadas prescritas. A narrativa damãe de uma criança de seis meses, que apre-senta o mesmo “problema de pele” há quatromeses, tendo feito uso de algumas pomadas, rei-tera a problemática: “Aí cheio de carocinho,aí quando passa o creme aí some e depoisaparece”.

Quanto às queixas de verminose e ane-mia, verifica-se uma lógica semelhante de con-dução da consulta: as condições de vida das fa-mílias e seu contexto comunitário não são assi-miladas à abordagem do problema. Assim comoo “problema de pele”, a verminose figura comouma queixa recorrente nas consultas. Para o seuenfrentamento, alguns profissionais adotam comoprática a periodicidade de realização de examese da prescrição de vermífugo. Desta forma, ummédico compreende os exames como estratégiapreventiva, uma vez que identifica muita “con-taminação” na comunidade adstrita: “Olha, nãopassa muito tempo sem fazer os exames não,viu? Porque essa área tem muita contamina-ção, então é bom está sempre fazendo exa-mes”. Outro profissional, coerente com estamesma racionalidade, dispensa, às vezes, a rea-lização do exame laboratorial: “Então eu voupassando para ele um remédio de verme, játem seis meses que ele tomou o remédio deverme... então eu tô repetindo agora”.

Embora assim não seja reconhecida pe-los médicos, a família pode ser mais do que umamera reprodutora de cuidados prescritos, cons-tituindo-se sujeito do processo de cuidar das cri-anças. A autonomia das famílias no exercíciode cuidado com a saúde das crianças pode nãoestar explícita nas consultas. A condução daconsulta e a narrativa médica certamente nãoconferem um lugar para a expressão destasfamílias proativas. Fora da clínica médica e pa-ralelamente às práticas de cuidado recomen-dadas, há outras formas de cuidado exercidas,estejam os profissionais de saúde atentos ou nãoa este fato. Contudo, talvez a repercussão maisprofunda e de caráter intangível desta práticamédica, de natureza estritamente biomédica,seja a oportunidade perdida de conferir às fa-mílias uma compreensão mais abrangente so-bre a saúde, a doença e os cuidados de seusfilhos. Enquanto infecções de pele, verminoses,anemias e diarréias são medicalizadas, restrin-ge-se a capacidade de problematização e re-flexão sobre as condições de vida e sobre osdeterminantes sociais dos processos saúde-do-ença. Em conseqüência, limita-se o alcance dasintervenções destas famílias sobre a sua reali-dade para a promoção da qualidade de vida edo direito à saúde.

CONCLUSÃO

A atuação da equipe de saúde da família,quando efetivamente comprometida com o di-reito da população infanto-juvenil, pode estarimplicada na promoção do direito à saúde da cri-ança em cada procedimento. Entretanto, enquan-to a abordagem clínica do médico de saúde dafamília circunscrever a queixa ao fenômeno físi-co, o encontro entre o médico, a criança e suafamília dar-se-á, meramente, dentro do paradig-ma formal do cumprimento de um papel delinea-do: a prescrição de medicamentos visando a re-missão de sintomas. Se a queixa, juntamente comoutros elementos, possibilitar a apropriação, pelomédico, das condições de vida das crianças as-sistidas, o papel do profissional poderá superar amoldura da consulta. É nesta circunstância quese espera construir a perspectiva emancipatória

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junto à família da criança: uma vez que o médicoproporcione meios de ir além da pontualidade daqueixa, sua interlocução com a mãe ou respon-sável pela criança autorizará trazer para a con-sulta o espaço doméstico e comunitário, seus li-mites reais e suas potencialidades. Somente nestadimensão agregadora é que se realiza o direito àsaúde.

A assimilação da abordagem da vigilânciada saúde à atenção à saúde da criança na aten-ção médica possibilita uma problematização doprocesso saúde-doença-cuidado que a concep-ção restrita de saúde, predominante nas consul-tas analisadas neste estudo, não estimula. Aodescolar os problemas e necessidades de saúde

da criança do contexto de vida familiar e comu-nitário, o profissional de saúde limita, expressi-vamente, a sua atuação no sentido da promoçãodo direito da criança à saúde.

Na perspectiva do direito da criança, aatenção à saúde pelo médico do PSF precisa serorientada, ainda, pelo o princípio do “melhor in-teresse da criança”. Para tanto, a formação dosprofissionais de saúde e, em especial, daquelesque integram a equipe do PSF, necessita con-templar o paradigma da proteção integral da cri-ança e do adolescente, sob pena do Programarepetir uma formatação análoga à do paradigmaque não reconhecia crianças e adolescentes en-quanto sujeitos de direitos.

Abstract: Objective: To analyze the family health doctor’s understanding of children’s right tohealth. Methodology: Fifty medical visits with children under the age of six were observed. Theywere conducted by ten different family health doctors, in three different cities within the state ofBahia. With the express consent of the doctors and the children’s guardians/parents, the visitswere audio taped and, later, entirely transcribed. The visits’ analysis consisted of two consecutiveand complementary stages regarding the study’s goals: a description of how the doctor conductedthe visit, and an interpretative analysis of the interaction and communication between doctorsand the children’s families. Results: The investigation indicates that medical visits are guided byintegral care concerning children’s health; however, a restricted concept of health prevails amongstdoctors. By limiting patient’s complaint to symptoms and focusing on the medical treatment,medical visits jeopardize the understanding of its determinants, deviating from the reality offamilies and communities. Medical visits fail to be the grounds for the ratification of the children’sright. Conclusions: The investigation concludes, from a perspective of the children’s right, thatmedical care has to be guided by the “best interest of the children” principle according to theUnited Nations’ Convention on the Rights of the Child. This evidence demonstrates the importanceof incorporating the “integral protection of the child” paradigm into the education of health careproviders.

Keywords: Health policies. Family health program. Children’s right to health.

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Recebido em: 20/07/2007Aprovado em: 24/10/2007