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A cor da devoção: Africanidade e religiosidade na cultura romeira no cariri contemporâneo a problemática da identidade racial MARIA TELVIRA DA CONCEIÇÃO 1 INGRID SÂMARA FÉLIX DOS SANTOS 2 JADE LUIZA ANDRADE FERRAZ 3 1. Os contextos e cenários da tradição romeira em Juazeiro do Norte contemporâneo 4 A riqueza do campo religioso no Cariri cearense compõe-se de uma diversidade significativa de expressões e práticas, entre as quais, as irmandades de penitentes (Carvalho, 2011), as renovações (Souza, 2000), as festas em homenagem aos santos católicos, os terreiros de candomblé (Domingos, 2011), a devoção ao Pe. Cícero (Ramos, 1996, 2012), dentre outras. Nesse cenário, a cidade de Juazeiro do Norte se constituiu ao longo do século XIX e XX como o principal centro desse amalgama religioso. Atualmente, estima-se que Juazeiro do Norte recebe, por ano, mais de dois milhões de peregrinos. O ciclo das peregrinações que Juazeiro vivencia é composto de várias romarias: a Romaria de Nossa senhora das Dores, padroeira da Cidade de Juazeiro do Norte, que tem seu auge entre os dias 12 e 15 de setembro; a Romaria de Finados ou da Esperança, nos dias 1 e 2 de novembro; e fechando o ciclo das grandes romarias, a de Nossa Senhora das Candeias, cujo auge é nos dias 1 e 2 de fevereiro. Além dessas grandes romarias que atraem (cada uma) cerca de 300 mil romeiros a Juazeiro do Norte, pode-se destacar também outros momentos que atraem milhares de peregrinos: Natal e Festa de Reis (24 de dezembro a 06 de janeiro); São Sebastião (20 de janeiro); Nascimento do Padre Cícero (24 de março); Morte / Passagem do Padre Cícero (20 de julho) e São Francisco (04 de outubro). 1 Universidade Regional do Cariri/URCA. Doutora em História Social. Apoio PBI/Funcap 2 Universidade Regional do Cariri/URCA. Graduanda em Pedagogia. Bolsista; 3 Universidade Regional do Cariri/URCA. Graduanda em História. Bolsista; 4 Texto parcial do projeto A cor da Devoção: Africanidade e religiosidade na cultura romeira no Cariri contemporâneo, aprovado pelo Edital Funcap 09/2015- BPI.

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A cor da devoção: Africanidade e religiosidade na cultura romeira no cariri

contemporâneo – a problemática da identidade racial

MARIA TELVIRA DA CONCEIÇÃO1

INGRID SÂMARA FÉLIX DOS SANTOS2

JADE LUIZA ANDRADE FERRAZ3

1. Os contextos e cenários da tradição romeira em Juazeiro do Norte contemporâneo4

A riqueza do campo religioso no Cariri cearense compõe-se de uma diversidade significativa

de expressões e práticas, entre as quais, as irmandades de penitentes (Carvalho, 2011), as renovações

(Souza, 2000), as festas em homenagem aos santos católicos, os terreiros de candomblé (Domingos,

2011), a devoção ao Pe. Cícero (Ramos, 1996, 2012), dentre outras. Nesse cenário, a cidade de

Juazeiro do Norte se constituiu ao longo do século XIX e XX como o principal centro desse amalgama

religioso.

Atualmente, estima-se que Juazeiro do Norte recebe, por ano, mais de dois milhões de

peregrinos. O ciclo das peregrinações que Juazeiro vivencia é composto de várias romarias: a Romaria

de Nossa senhora das Dores, padroeira da Cidade de Juazeiro do Norte, que tem seu auge entre os

dias 12 e 15 de setembro; a Romaria de Finados ou da Esperança, nos dias 1 e 2 de novembro; e

fechando o ciclo das grandes romarias, a de Nossa Senhora das Candeias, cujo auge é nos dias 1 e 2

de fevereiro.

Além dessas grandes romarias que atraem (cada uma) cerca de 300 mil romeiros a Juazeiro

do Norte, pode-se destacar também outros momentos que atraem milhares de peregrinos: Natal e

Festa de Reis (24 de dezembro a 06 de janeiro); São Sebastião (20 de janeiro); Nascimento do Padre

Cícero (24 de março); Morte / Passagem do Padre Cícero (20 de julho) e São Francisco (04 de

outubro).

1 Universidade Regional do Cariri/URCA. Doutora em História Social. Apoio PBI/Funcap

2 Universidade Regional do Cariri/URCA. Graduanda em Pedagogia. Bolsista;

3 Universidade Regional do Cariri/URCA. Graduanda em História. Bolsista;

4 Texto parcial do projeto A cor da Devoção: Africanidade e religiosidade na cultura romeira no Cariri contemporâneo,

aprovado pelo Edital Funcap 09/2015- BPI.

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A tradição que se reinventa e consolida o que o historiador Regis Lopes (2012) denomina de

“território do sagrado” em Juazeiro do Norte no presente, é fruto de um processo de construção

histórico-social que remonta ao século XIX. Ou seja, a matriz dessa tradição romeira emergente no

final do referido século, em torno da figura do Padre Cícero Romão Baptista5, constitui sem dúvida

uma das maiores tradições religiosas de base católica no Brasil contemporâneo, por sua vez no

nordeste brasileiro.

A atuação política e religiosa do Padre Cícero no povoado de Juazeiro no contexto em questão

também encontra-se na base de um processo de crescimento material inquestionável6. O carisma do

religioso, sua atenção e dedicação aos alijados dos cuidados do Estado e sua atuação enquanto

conselheiro atraiam para o povoado do Joaseiro, pessoas das cidades e vilarejos vizinhos. Como

postula Luitigarde Oliveira Cavalcanti Barros (2008), “o Padre Cícero foi o padrinho de milhares de

sertanejos, ‘meu padrinho’ para milhões de nordestinos. Antes de tudo ele foi o sertanejo que viveu

os códigos de sua cultura, encarnou o protótipo, o modelo de padrinho protetor, reivindicando até a

interferência divina para sê-lo.” (Barros, 2008, p. 187).

No entanto, esse afluxo de pessoas seja na condição de migrante para os que vieram e ficaram

na cidade de Juazeiro ou no entorno, seja na condição de romeiro, mais do que dobrou a partir da

divulgação do milagre da hóstia7. Este talvez seja o ponto de corte mais polêmico em se tratando da

complexidade desta tradição romeira em Juazeiro do Norte.

5 Nesse contexto e sob a égide do Padre Cícero Romão Batista, o município de Juazeiro do Norte, completou, em 2011,

seu primeiro centenário de emancipação política. Antes de receber o nome de Juazeiro, o povoado, que pertencia ao

município de Crato, era chamado de Tabuleiro Grande. Seu marco inicial é o ano de 1827, quando foi iniciada a construção

da Capela de Nossa Senhora das Dores, padroeira do lugar. Em 1872, o povoado de Tabuleiro Grande, possuía cerca de

20 casas de taipa e servia como rancho para os viajantes e transportadores de gado. Em 11 de abril desse ano, o Padre

Cícero, que visitara o lugarejo no natal do ano anterior, fixou residência no povoado, acompanhado de sua mãe, suas duas

irmãs e uma criada. A motivação para essa decisão, segundo o próprio Padre Cícero, foi um sonho no qual Jesus

encontrava-se reunido com os doze apóstolos. Enquanto Jesus conversava com seus apóstolos, uma multidão de pessoas,

pobres, famintas e esfarrapadas, adentra ao local. Jesus então se vira para o jovem padre e diz: “E você, Padre Cícero,

tome conta deles”.

6 Ao longo desses 104 anos de existência autônoma Juazeiro do Norte cresceu de forma vertiginosa contando, atualmente,

com cerca de 250 mil habitantes, sendo a maior cidade do interior cearense. Sua economia é pujante e tem cada vez mais

se diversificado, destacando-se o comércio, atacado e varejista, e a indústria (calçados, refrigerantes, alumínio, alimentos,

confecções, moveis, joias e folheados). Juazeiro é reconhecido também como um grande polo de ensino superior: são

cerca de 40 cursos ofertados em diversas instituições acadêmicas e distribuídos nas diversas áreas do conhecimento.

Possui ainda uma ativa vida cultural, com cinemas, teatros, centros culturais e, sobretudo, uma rica cultura popular

tradicional com grupos de reisados, bandas cabaçais e folguedos diversos.

7 Sobre o processo e suas tensões com a Igreja local e de Roma em torno do milagre da hóstia, ver a tese de Edianne dos

Santos Nobre, Incêndios da alma: A beata Maria de Araújo e a experiência mística no Brasil dos oitocentos. Programa

de História Social-UFRJ, 2014.

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Em primeiro de março de 1889, um fato incomum transformou a rotina da pacata povoação,

bem como a trajetória da vida do Padre Cícero Romão Batista e da Beata Maria de Araújo. Naquela

data, ao participar de uma comunhão geral, oficiada pelo Padre Cícero, na capela de Nossa Senhora

das Dores, a Beata, ao receber a hóstia consagrada, não pôde degluti-la, pois a mesma transformara-

se em sangue. Embora, o Padre Cícero tenha procurado evitar a divulgação do fato, a notícia logo se

espalhou pelos demais municípios do Cariri e dos estados vizinhos de Pernambuco, Piauí e Paraíba.

Todos queriam conhecer o Padre Cícero8 e o suposto milagre da hóstia.

O fenômeno, que se repetiu outras vezes, marcou profundamente a religiosidade popular não

só na vila do Joaseiro, mas em todo o Nordeste brasileiro. O fato, no entanto, foi condenado pela

autoridade maior da Igreja Católica no Ceará, o bispo Dom Joaquim José Vieira.

A fé do povo no que se convencionou chamar de “milagre da hóstia”9 e sua tenaz resistência

às sucessivas condenações da hierarquia da Igreja Católica, se alastrou pelo nordeste inteiro,

transformando a cidade de Juazeiro do Norte num dos maiores centros de romarias do país e, portanto,

um grande centro de religiosidade popular, para onde convergem, anualmente, cerca de dois milhões

de romeiros. São devotos que vêm renovar sua fé e esperança em dias melhores e buscar conforto

junto ao Padrinho Cícero e à Mãe das Dores.10

Dentro desse cenário, profundamente marcado pela dimensão religiosa, sob a alcunha do

catolicismo popular, onde se entrelaçam, dialogam e se produz confluências, geográficas, históricas

e culturais, certamente confluem performances identitárias e percepções sociais. Entre as quais,

aquelas que carregam e se configuram a partir de substratos étnico-raciais. Neste sentido, a cultura

romeira tão expressiva e efervescente neste espaço geopolítico que é o Juazeiro do Norte, capaz que

8 Embora perseguidos pela Igreja, Padre Cícero e o povoado continuaram atraindo milhares de devotos e romeiros. Muitos

desses começaram a fixar moradia no lugar, que no início do século passado, já contava com quase cinquenta mil

habitantes, rivalizando com a sede do município de Crato. Essa situação incomodava os habitantes de Juazeiro que viam

suas riquezas sendo drenadas para o Crato sem receber nada em troca. Tem início então o movimento pela autonomia do

povoado. Em 1909, é fundado pelo Padre Alencar Peixoto o jornal “O Rebate”, que passa a ser o porta voz do movimento

emancipacionista. Com o apoio do Padre Cícero e do médico Floro Bartolomeu, o movimento ganha corpo e em 22 de

julho de 1911 é assinada a Lei de nº 1028, elevando o povoado à categoria de Vila e sede do novo município, denominado

então de Joaseiro. Em 4 de outubro do mesmo ano, a Vila de Joaseiro foi instalada oficialmente e o Padre Cícero

empossado como seu primeiro prefeito, à época Intendente.

9 Dom Joaquim realizara estudos sobre o fenômeno. A primeira comissão chegou à conclusão de que não havia explicação

natural para o fato. Insatisfeito, o bispo formou nova comissão tendo esta chegado à conclusão de que a transformação da

hóstia em sangue era uma farsa. Pensava-se, com este veredicto, dar por encerrada toda a questão referente aos “factos

extraordinários do Joaseiro”. O que ocorreu, entretanto, foi exatamente o contrário: Juazeiro passou a atrair, cada vez

mais, fiéis e devotos de todo o nordeste brasileiro que buscavam conselhos e consolo junto ao Padre Cícero. 10 Autores consultados: Ralph Della Cava. Milagre em Joaseiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. Daniel Walker. Padre

Cícero e Juazeiro do Norte. Juazeiro do Norte: PMJN, 2009.

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tem sido de reunir um contingente de sujeitos e camadas sociais tão diversificadas em um só território

simbólico, se apresenta para esta proposta de pesquisa como um campo privilegiado de indagações e

reflexões sobre a problemática afro-brasileira contemporânea.

Como terreno de inquietações, diríamos que no intrincado topo dessas confluências, que é a

cultura romeira no Cariri Cearense, certamente se movimenta performances cujo substrato é étnico-

racial. Mas em que medida essa performance se dá? Qual é a dimensão do substrato afro-brasileiro

imiscuído nessa tradição? Em que medida há uma percepção social acerca da presença dos afro-

brasileiros e de elementos das suas pertenças identitárias e culturais nas configurações contemporânea

da cultura romeira em questão? Em que medida esses elementos permeiam essa tradição religioso-

cultural inegavelmente tão marcante nesta região?

Com base nestas preocupações é que nasceu a proposta desta pesquisa, cujo principal pleito

é adentrar nessa tradição histórica, que são as romarias devocionais ao Pe. Cícero em Juazeiro do

Norte.

As atividades de campo da pesquisa A cor da devoção: africanidade e Religiosidade na

cultura romeira contemporânea, tiveram início no mês de junho de 2016. Os primeiros passos,

conforme cronograma previamente aprovado juntamente com o projeto, voltaram-se para a seleção e

preparação técnica dos bolsistas, leitura e discussão do projeto. Concretizada essa etapa, começou-se

as reuniões de formação teórica dos bolsistas, levando em conta os propósitos do estudo, e demandas

que foram pautadas nas discussões de textos, artigos e livros. Nesta etapa também foram realizadas

várias reuniões de formação com a participação dos colaboradores da pesquisa11.

O reconhecimento do campo da pesquisa. A interação com qualquer campo de investigação

exige, no contexto de uma pesquisa científica, a identificação prévia da dimensão deste campo, e a

proposição de procedimentos metodológicos. Esta por assim dizer, constituiu uma das principais

etapas da investigação, a qual se seguiu as etapas já mencionadas.

Tendo em vista a natureza da pesquisa, levamos em conta a importância de uma metodologia

que transite entre a pesquisa social e histórica, com enfoques e acento no aspecto cultural e étnico.

Isto implica respeitar as orientações da pesquisa com procedimentos orais (Amado, 1998), guardando

as devidas peculiaridades da pesquisa com oralidades e/ou dentro desta perspectiva (Connerton,

1993), Lopes (2004), da História oral como metodologia. Neste caso, situamos nosso estudo dentro

11 Os colaboradores dessa pesquisa, são os professores doutores: Cícera Nunes/DE Urca, Darlan Reis Junior/DH Urca e

Nirlene Nepomuceno/CECAFRO/Puc/SP

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da perspectiva da oralidade, posto que a imersão no universo das romarias tem como interlocutores

pessoas em sua maioria portadoras de um grande legado oral, olhando e falando das suas próprias

vivencias e percepções, do ponto de vista da devoção, seja do universo de pertencimento étnico.

Nesse sentido, os principais interlocutores do estudo são romeiros ou nesta condição auto-

identificados, em práticas de romarias em devoção ao Pe. Cícero, por ocasião das principais

festividades anuais ocorridas na cidade de Juazeiro do Norte.

No que respeita o trabalho com as fontes escritas, também importantes no conjunto da

investigação, o trabalho de coleta está sendo realizado nos seguintes arquivos: Departamento

Histórico Pe. Antônio Gomes, no Crato, e nos arquivos Pe. Cícero, dos Padres Salesianos, no Centro

de Psicologia da Religião, arquivos da Sala de informação dos romeiros; acervo digital da basílica de

nossa senhora das dores e do acervo digital da TV Verdes Mares.

Com relação os principais procedimentos metodológicos propostos no projeto e que estão

sendo utilizados na execução do estudo, foram até a presente etapa da pesquisa: Realização de

entrevista com os romeiros, por ocasião das festividades anuais; Coleta de depoimentos e relatos

autorizados pelos interlocutores; Captação de imagens visuais de atividades da romaria no cenário da

cidade de Juazeiro do Norte, bem como do acervo imagético que compõe a vida cotidiana local,

alusivo a estas práticas de romarias; Consulta de arquivos para coleta de fontes escritas alusivas as

atividades de romaria no recorte temporal do estudo; Transcrição dos registros orais; Organização de

um banco de imagens relacionadas às atividades de devoção, no período recortado para este estudo;

Sistematização do conjunto dos dados em diferentes modalidades: estatísticos, sobretudo no que

respeita o propósito de traçar um panorama acerca das percepções identitárias de cunho étnico-racial

dos romeiros; imagéticos, sobretudo através do trabalho com iconografias dessas práticas de devoção;

orais, através dos relatos de vivencias do sagrado conectados ou não com suas identidades étnico-

raciais; e escritos. E por último a construção de uma exposição audiovisual e a organização de um

acervo digital, a partir do material coletado e produzido pela pesquisa.

2. A problemática racial no âmbito da cultura romeira no Cariri cearense

O debate epistemológico sobre cultura pleiteado pelas ciências sociais constitui sem dúvida,

um universo dimensionado e complexo de problemáticas no tratamento da cultura como diversidade.

Conforme nos lembra Muniz Sodré (2005) acerca do levantamento de Kroeber. Este antropológico

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catalogou mais de 150 definições do conceito de cultura. E isto, segundo Sodré, “só faz atestar a

natureza, ao mesmo tempo, movediça e tática, do conceito.

Cultura é uma dessas palavras metafóricas (como, por exemplo, liberdade) que

deslizam de um contexto para outro, com significações diversas. É justamente esse

‘passe livre’ conceitual que universaliza discursivamente o termo, fazendo de sua

significação social a classe de todos os significados. A partir dessa operação, cultura

passa a demarcar fronteiras, estabelecer categorias de pensamento, a justificar as

mais diversas ações e atitudes, a instaurar doutrinariamente e a se substancializar,

ocultando arbitrariedade histórica da sua invenção. É preciso não esquecer, assim,

que os instáveis significados de cultura atuam concretamente como instrumentos de

modernas relações de poder imbricadas na ordem tecno-econômica e nos regimes

políticos, e de tal maneira que o domínio dito ‘cultural’ pode ser hoje

sociologicamente avaliado como o mais dinâmico da civilização ocidental (Sodré,

2005 p. 8).

Como podemos observar, não são poucas nem simples de resolver e até de conduzir um debate

sobre o assunto. Portanto, as questões que o tema da diversidade cultural brasileira nos coloca, se

configuram com a mesma complexidade. Nesse sentido, a opção de trabalhar com a noção de cultura

nesta investigação, focará três recortes centrais: a diversidade cultural com viés na diversidade étnica,

especificamente trazendo o exemplo da experiência dos afro-brasileiros, as implicações epistêmicas

desse paradigma, e a dimensão da significação social que atravessa uma perspectiva étnica dentro do

universo cultural.

Mas, o que é o pensamento ocidental como matriz de interpretação e conhecimento na

produção desse olhar sócio-cultural? No primeiro momento creio que seja importante retomar aqui a

definição de Anibal Quijano (2005) sobre o eurocentrismo como elemento fundamental na

constituição do pensamento colonial:

eurocentrismo é, aqui, o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboração

sistemática começou na Europa Ocidental antes de meados do século XVII e que nos

séculos seguintes se tornou mundialmente hegemônica, percorrendo o mesmo fluxo

do domínio da Europa burguesa. (Quijano, 2005, p. 247).

Portanto, há um alcance geográfico além de um domínio epistemológico no eurocentrismo,

como perspectiva de conhecimento, representativo de um movimento histórico. E é este movimento

que se encontra na base da elaboração de um pensamento e de um saber que também se pretende

histórico e assim se define.

Neste sentido, afirma Ramón Grosfoguel (2005), “a epistemologia eurocêntrica e hegemônica

assume um ponto de vista auniversalista, natural e objetivo”. E, portanto compreender essa dimensão

epistemológica, no que diz respeito a elaboração das ciências sociais e de seus correlatos saberes,

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torna-se uma condição imprescindível para pensarmos como se processou e materializou as

percepções acerca da cultura e das relações étnicas no âmbito desses saberes. E, é por sua vez, uma

chave de leitura fundamental para sua problematização. Mas qual é a contribuição que essa

perspectiva traz para pensarmos as questões em torno da diversidade étnica, como experiência

histórica?

Ora, entre outras questões que não podemos perder de vista no enfrentamento dessa discussão,

está sem dúvida a questão da dominação. A dominação está na base de uma trágica experiência que

moldou um conjunto de percepções sobre esses sujeitos nas Américas, no Brasil. E talvez o mais

trágico dessa experiência seja o seu princípio, a unicidade.

A unicidade, segundo Glissant “está no princípio das dominações” (Glissant, 2005, p. 127).

Essa é condição histórica na qual se construíram as percepções sobre a cultura do negro, naquilo que

o autor denomina de culturas atávicas, conforme afirma,

Esse é um dos fundamentos da expansão colonial que surge estreitamente atada à

idéia de universal, ou seja, associada antes de tudo à legitimação generalizada de um

absoluto que, primeiramente, fundamentava-se sobre um particular eleito. Assim,

compreendemos por que é importante que o mito fundador se fundamente em uma

Gênese e contenha dois motores, a filiação e a legitimidade, que garantem a força e

supõem o objetivo do mito: a legitimação universal da presença da comunidade.

(Glissant, 2005, p. 75).

Além desse aspecto, é preciso recuperar nesse processo, a perspectiva do estado de natureza,

constitutiva desse pensamento ocidental. Pois como afirma Quijano, esse “mito fundacional da versão

eurocêntrica da modernidade como estado de natureza como ponto de partida do curso civilizatório

da Europa” (p.248) associado a “classificação racial da população do mundo”, demarcam uma

condição histórica para o tratamento, e para o estabelecimento das relações e das percepções sobre a

alteridade.

Como podemos observar, não são poucas nem simples de resolver e até de conduzir um debate

sobre o assunto. Portanto, as questões que o tema da diversidade cultural brasileira nos coloca, se

configuram com a mesma complexidade. Nesse sentido, a opção de trabalhar com a noção de cultura

nesta investigação, focará três recortes centrais: a diversidade cultural com viés na diversidade étnica,

especificamente trazendo o exemplo da experiência dos afro-brasileiros, as implicações epistêmicas

desse paradigma, e a dimensão da significação social que atravessa uma perspectiva étnica dentro do

universo cultural.

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Somente nessa perspectiva é que podemos entender a concepção de cultura de Muniz Sodré

ao problematizar sobre a cultura negra no Brasil nesse processo de construção das relações étnicas.

Lendo na contramão, o autor vai afirmar que, “cultura designará o modo de relacionamento como o

real, com a possibilidade de esvaziar paradigmas de estabilidade do sentido, de abolir a

universalização das verdades, de indeterminar, insinuando novas regras para o jogo humano” (Sodré,

2005 p. 10).

Outro conceito central para o entendimento da problemática postulada por esta investigação é

o de identidade. No contexto brasileiro, a questão da identidade, em particular no aspecto étnico,

demarca um campo atravessado por ambiguidades e ideologias. Sobretudo em razão da sua

associação com o processo de instauração do Estado-Nação, e de um processo ideológico de

construção da mestiçagem como mecanismo de apagamento da identidade afro-brasileira e da

exaltação do discurso do branqueamento, conforme defende Munanga, (1999).

A mestiçagem tanto biológica quanto cultural teria entre outras conseqüências a

destruição da identidade racial étnica dos grupos dominados, ou seja, o etnocídio.

Por isso, a mestiçagem como etapa transitória no processo de branqueamento,

constitui peça central da ideologia racial brasileira (Munanga, 1999, p. 110).

O campo identitário, como denomina Sodré (2000), culminante da alteridade cultural em

termos de Nação, etnia ou religião, tem concorrido no Brasil, segundo o autor, para um complexo

processo de construção da alteridade. Dentro desse processo que fomentou as alteridades, me parece

que pautar o reconhecimento das identidades afro-brasileiras, suas percepções e demarcações, requer

compreender também a diversidade desses territórios e de suas dimensões: epistêmicas, simbólicas,

materiais.

O território da religiosidade é certamente um deles. Mesmo quando se trata de um território

ambivalente, como é o caso da religiosidade de matriz católica, pois, como sabemos, historicamente

foi um campo de disputas e resistência por parte dos seguidores da religiosidade afro-brasileira, bem

como um instrumento de construção de alteridades. Nesse sentido, o território da religiosidade

também se apresenta como um lugar de desconstrução, ou como chama atenção Sodré (2005) “de

esvaziamento de paradigmas”, por isto mesmo, de múltiplas perspectivas para adentrar na

problemática afro-brasileira contemporânea.

Porém, transitar por este “território sagrado” (Ramos, 2012) e ao mesmo tempo amalgamado,

certamente não será da mesma forma e nem sob as mesmas performances. Como pensar esse trânsito

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em se tratando das africanidades, se entendermos o termo como na definição de Petronilha Gonçalves

(2011),

a expressão africanidades brasileiras refere-se às raízes da cultura brasileira que têm

origem africana. Dizendo de outra forma, queremos nos reportar ao modo de ser, de

viver, de organizar suas lutas, próprio dos negros brasileiros e, de outro lado, às marcas da cultura africana que, independentemente da origem étnica de cada

brasileiro, fazem parte do seu dia-a-dia (Gonçalves e Silva, 2003, p. 26).

Deste ponto de vista, entendo que um dos principais aspectos para problematizar a questão

racial na sociedade brasileira é a performance do reconhecimento e do pertencimento racial que no

primeiro plano seria individual, porém, nunca individualizado, sobretudo porque este reconhecimento

será sempre o resultado de artifícios e de processos sociais, culturais, políticos, cognitivos e

epistêmicos, que reverberam no coletivo. E um coletivo racial no Brasil, tem a soma de 56,3% de

brasileiros que se auto-declaram pardos e pretos, segundo o último PNAD/2015. Já com um ligeiro

aumento em relação a contagem do último censo do IBGE realizado em 2010, que era de 50.7%.

Portanto, trata-se numericamente de um coletivo significativamente expressivo. Porém em se tratando

desse contingente na tradição romeira no Juazeiro do Norte, como se configura esse grupo racial?

2.1. A questão da auto-identificação racial: romeiros, devotos e também negros

O contingente de romeiros em Juazeiro do Norte, como já mencionado anteriormente, é tão

impressionante como tem sido o silencio em torno da cor/pertencimento racial desses protagonistas

nos meandros dessa tradição. Mesmo como tema e objeto de pesquisa no tocante as romarias12.

Como os dados são parciais, tomarei como base a amostra que realizamos na romaria de

setembro/2016, a partir dos dados produzidos pela sala de informação do Romeiro. De acordo com o

referido levantamento do ano de 2015, referência base para as amostras estatísticas que estamos

tomando como base, conforme gráfico subsequente:

12 A pesquisa a A cor da devoção, será a primeira tratando da problemática racial no contexto das práticas de romaria no

Cariri cearense, em particular no Juazeiro do Norte. Ainda que haja um conjunto de pesquisas significativas, incluindo

teses e dissertações sobre esse campo de devoção romeira no Cariri, assim como algumas pesquisas sobre temáticas que

perpassam o universo afro-brasileiro no Cariri, em particular tratando de aspectos educacionais, culturais e históricos.

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Gráfico 01: Contingente de romeiros na Romaria de N. S. das Dores – Juazeiro do Norte - 2015

Fonte: Dados da pesquisa A cor da devoção – setembro de 2016

Para este texto tomaremos como base apenas os dados levantados na Romaria de Nossa

Senhora das Dores, em 2016. Por ocasião da referida romaria tivemos a oportunidade de abordar 473

(quatrocentos e setenta e três) romeiros de um total de interlocutores 692 (seiscentos e noventa e dois)

entrevistados na nossa pesquisa até a presente etapa.

Podemos observar pelas informações coletadas através dos questionários e entrevistas, que o

perfil dos afro-brasileiros que se inserem na tradição da cultura romeira no Cariri cearense tem o

seguinte perfil: majoritariamente tem uma média de idade em torno de 40 a 69 anos, representando

um contingente de 52%, residentes em sua maioria na zona urbana, totalizando 60%, e 26% na zona

rural do nordeste. Assim como trata-se de uma tradição de feições marcadamente feminina já que

55% são mulheres.

Romariade NossaSenhora

das Dores(12 a 15

deSetembro

)

Romariade

Finadosou de

Esperança(1 e 2 deNovembr

o)

Romariade NossaSenhora

dasCandeias(1 e 2 de

Fevereiro)

SãoSebastião

(20 deJaneiro)

Nascimento do Pe.

Cícero (24de Março)

Morte/Passagemdo Pe.

Cícero (20de Julho)

SãoFrancisco

(04 deOutubro)

Contingente de romeiros 39.487 30.024 28.152 41.816 1.371 7.052 21.024

0

5.000

10.000

15.000

20.000

25.000

30.000

35.000

40.000

45.000

TOTA

L: 2

1.0

24

Contingente de Romeiros em Juazeiro do Norte segundo dados da Sala de Informação do Romeiro -

Paróquia de N.S. das Dores (Ano de 2015)

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Outro dado importante do perfil sócio-cultural dos romeiros e sujeitos dessa tradição no Cariri,

é quanto o lugar que ocupa no universo escolar e profissional. Neste sentido, apesar de 81% dos

entrevistados terem afirmado possuir algum nível de escolarização, é significativo a porcentagem dos

que concluíram apenas os dois primeiros anos de estudo do antigo 1º grau atualmente denominado de

Ensino Fundamental 1, são 43% dos ouvidos na pesquisa até aqui. O lugar da profissão da mesma

forma, se configura majoritariamente de aposentados, 25%, e de agricultores,13%, com renda familiar

de até um salário mínimo para 52% e de até 2 salários mínimos, para 24% dos entrevistados.

De acordo com os dados coletados até agora, 50% afirma proceder de uma família ligada ao

catolicismo, contra 48% que reconhece no entanto, que sua família já foi e/ou ligada a outros credos

e expressões religiosas. No entanto, nesse universo praticamente equivalente quanto os vínculos com

outras religiões fora do catolicismo, e em que 20% afirma já ter recorrido a outras religiões, apenas

2% afirma ser e ou ter vínculos com religiões de matriz africana, sendo a umbanda e o candomblé as

religiões citadas.

No entanto, trabalhamos com a perspectiva que esse trânsito religioso no que se refere as

religiões de matriz africana em contextos majoritariamente cristão, como é o caso da tradição

devocional ao Pe. Cícero no Juazeiro do Norte, constitui um recanto oculto.

A presença física dos afro-brasileiros nas romarias de juazeiro, conforme os dados já coletados

até agora, é majoritária, já que 55% dos entrevistados se auto-reconhecem como pardos/morenos e

20% como pretos. Um universo que totaliza 75% e ultrapassa os dados oficiais do IBGE tanto para o

Brasil quanto para o Ceará. Esse recorte racial em se tratando da presença física dos afro-brasileiros

nessa tradição romeira, além de significativa como dado numérico para pensar esse grupo racial,

representa, a partir dos deslocamentos de procedência geográfica que majoritariamente são de todos

os estados nordestinos, sobremaneira dos Estados de Alagoas, Pernambuco e Bahia, um nicho de

atuação desse grupo racial.

Gráfico 02 – Identificação racial dos romeiros – Romaria de N.S das Dores

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Fonte: Dados da Pesquisa A cor da devoção - Setembro de 2016.

Esse contingente de 75% de romeiros que se auto-declaram pardos e pretos, não são nativos

do Cariri. Isto significa pensar que esse caleidoscópio de culturas étnico-religiosas que se encontra

em Juazeiro do Norte, em particular no tocante as religiões de matriz africanas, constitui um universo

a ser rigorosamente explorado. O pleito dessa pesquisa tem caminhado nessa direção.

Neste sentido, poderíamos sem dúvida afirmar que a cor da devoção em Juazeiro do Norte é

preta. No entanto, pensar a cor enquanto elemento racial (Guimaraes, 1999), seja na sociedade

brasileira como um todo, seja no contexto da tradição das romarias em particular, constitui uma seara

atravessada de ambiguidades. A primeira delas é sem dúvida de natureza histórica ou da singularidade

do nosso processo histórico no que diz respeito ao que o historiador José de Assunção Barros (2009)

denomina de “construção social da cor”.

Se a cor “não se presta à duvidas” como adverte Carlos Moore (2012), na sua história de

construção no Brasil, sem sombra de dúvida tem capitaneado a história da principal exclusão do maior

grupo racial que compõe o Brasil de ontem e de hoje: somos segundo o último PNAD/IBGE realizado

em 2015, 53,6%, sendo a Região Nordeste a que concentra o maior contingente de pretos e pardos.

Gráfico 03 – Distribuição da população brasileira por cor segundo as Regiões

77

97

261

16

20

4

475

16%

20%

55%

3%

4%

1%

100%

100% 100% 100%

BRANCO

PRETO

MORENO / PARDO

AMARELO

OUTRAS RESPOSTAS

NÃO RESPONDEU

TOTAL

Identificação Racial dos Romeiros

Série1 Série2

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A questão desse formato de auto-identificação racial na sociedade brasileira ao longo da

história da nossa sociedade tem se mantido como uma dimensão bastante tensa e problemática tanto

para esse grupo racial, quanto para os demais que não se enquadram nesse grupo. Porém, ao mesmo

tempo em que construir estratégias de enfretamento a uma sociedade que apostou esforços

incalculáveis na engrenagem de um Estado-Nação hegemônico em termos cultural e racial, também

coloca em situação de tensão os sujeitos desse grupo racial que se encontram bifurcados entre se

considerar pardos ou pretos. Nesse sentido, a tarefa de construir uma identidade negra no Brasil tem

revelado as estranhas das ambuiguidades que atravessaram o processo de engendramento ideológico

e histórico em torno de uma suposta identidade nacional. Por tal razão tem exigido uma verdadeira

depuração para pensá-la enquanto tarefa individual, social e política, como afirma Nilma Lino

Gomes,

assim, como em outros processos identitários, a identidade negra se constrói

gradativamente, num movimento que envolve inúmeras variáveis, causas e

efeitos, desde as primeiras relações estabelecidas no grupo social mais íntimo,

no qual os contatos pessoais se estabelecem permeados de sanções e

afetividades e onde se elaboram os primeiros ensaios de uma futura visão de

mundo. Geralmente este processo se inicia na família e vai criando

ramificações” (Gomes, 2005, p. 43).

Dessa forma, será sempre inviável pleitear uma análise da problemática racial na sociedade

brasileira sem levar em conta que “a realidade das raças limita-se ao mundo social” (Guimarães,

1999), e no caso da nossa história em particular, a cor continua um demarcador racial. Nesta

perspectiva, nossa inteira concordância com o argumento de Nilma Lino que as “raças são, na

realidade, construções sociais, políticas e culturais produzidas nas relações sociais e de poder ao longo

do processo histórico” (Gomes, 2005, p.49).

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Considerações finais

A tradição romeira motivada pela devoção ao Pe. Cícero em Juazeiro do Norte, cujo berço

temporal de emergência nos remete ao século XIX, constitui no século em andamento, um

significativo espaço geo-cultural e étnico-racial. Contudo, pensar essas interseções, melhor dizendo,

compreender como tem comparecido cada uma dessas dimensões nas interlocuções nesse universo,

constitui para esta pesquisa uma interpelação.

A cultura romeira e devocional ao Pe. Cícero tem cores. Sim. Mas quando ousamos

transcender o nível meramente cromático desses devotos, nos deparamos com o primeiro dado: a

presença física dos afro-brasileiros na referida tradição de 75% conforme o pressuposto da auto-

declaração, é majoritária. Desse ponto de vista, entendemos que o recorte racial dimensiona um dos

elementos centrais dessa tradição – ainda que silenciado. O desafio de abordar tal problemática,

portanto, tira do conforto uma quase obrigação moral de olhar a tradição romeira que acontece em

torno do Pe. Cícero em suas feições e configurações apenas sócio-religiosa.

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