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A criação do Acervo Imagético e Sonoro do Laboratório de Antropologia Arthur
Napoleão Figueiredo/UFPA1
Alessandro Ricardo Pinto Campos – UFPA/PA
Resumo
O acervo da Reserva Técnica do Laboratório de Antropologia Arthur Napoleão
Figueiredo - LAANF/UFPA - é uma coleção formada por objetos que foram coletados
durante pesquisas realizadas por antropólogos desta instituição, a partir da década de
1960. A formação deste acervo se confunde com a formação da própria Antropologia na
Universidade Federal do Pará. Estas peças compõem três coleções etnográficas
distintas: Etnologia Indígena, com 721 peças; Populações Interioranas com 152 peças e
População Urbana/Cultos Afro-Brasileiros com 629 peças. Soma-se a este vasto acervo,
ainda, diários de pesquisa de campo, material audiovisual, negativos, tapes e cassetes de
gravação, além de lentes, tripés e da câmera fotográfica Rolleiflex usados por Arthur
Napoleão Figueiredo em suas pesquisas, sendo considerado um dos pioneiros no uso da
fotografia no campo da Antropologia na região. Durante décadas depositadas na referida
reserva e com acesso restrito, tais peças de incalculável valor simbólico e cultural
necessitam de tratamento e de preocupação com um acesso mais amplo, tanto para
pesquisadores, público em geral como para os grupos que produziram, utilizaram e
deram (dão) significado a elas. Para tanto, acredito que a produção de um acervo
imagético e sonoro da Reserva Técnica do LAANF seja a ferramenta necessária. Este
artigo trata das pesquisas, coleta e formação desta reserva técnica na década de 1960,
bem como das discussões metodológicas, éticas e políticas para a formação deste em um
acervo imagético e sonoro e sua disponibilização em um museu virtual.
Palavras-chave: Arthur Napoleão Figueiredo; Coleções Etnográficas; Acervo
Imagético e sonoro.
Arthur Napoleão Figueiredo, Antropologia e formação das coleções
etnográficas na UFPA
A formação da reserva técnica está ligada diretamente à memória institucional
da Antropologia na Universidade Federal do Pará. Seu grande incentivador e criador,
Arthur Napoleão Figueiredo, ainda nos anos de 1960, é quem coleta as primeiras peças,
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN.
2
do que se tornaria, anos depois, um importante acervo da cultura material Indígena,
Afro-Religiosa e Ribeirinha.
Falar da Reserva Técnica do Laboratório de Antropologia Arthur Napoleão
Figueiredo, do Laboratório e da própria formação da Antropologia na Universidade do
Pará, é falar de Arthur Napoleão Figueiredo. Por isso acredito que uma historia deve ser
contada a da aproximação deste pesquisador com a Antropologia, pois contando isso, a
história da reserva também estará sendo contada.
Arthur Napoleão Figueiredo deixa o Exército como Capitão, abandonando a
carreira militar para concluir em 1946 o Curso de Bacharelado em Ciências Jurídicas e
Sociais pela Faculdade de Direito do Pará. Em 1948, Napoleão se aproximaria da
Antropologia e nunca mais se afastaria dela. Quando conhece os intelectuais locais
como Machado Coelho (diretor do Museu Goeldi) e Eurico Fernandes (etnologista e
chefe da SPI) e Expedito Arnaud.
Influenciado por eles, em 1952, Napoleão já está fazendo parte de uma
comissão para tentar pacificar conflitos entre indígenas e brancos invasores de suas
terras. Nesta comissão, ele é relator e representante do Estado do Pará. Junto com ele
está Darcy Ribeiro, no final da investida a comissão elabora o plano de “Pacificação das
Tribos Hostis do Estado do Pará”.
Aos 34 anos decide ingressar na Antropologia, quando se torna estagiário na
Divisão de Antropologia do Museu Goeldi. Em 1958 assume a cadeira de Sociologia da
Educação da então jovem Faculdade de Filosofia (FAFI) e, mais tarde, também como
diretor do Instituto de Pesquisas Educacionais e coordenador do Seminário de Pesquisas
Sociais da UFPA.
Em 1960 Napoleão assume a cadeira (criada em 1959) de Etnologia e
Etnografia do Brasil. Com Protássio Frikel, em 1962, faz uma inserção a campo entre os
Aramagoto. Neste período, Napoleão coordena na FAFI alguns cursos de extensão com
temática verdadeiramente antropológica (um curso sobre Linguística em 1961 e outro
sobre Arqueologia e Etnologia na Amazônia em 1962), e no Museu Emílio Goeldi é
professor de Estágio Básico em Antropologia. Em 1962 assume na UFPA o cargo de
vice-diretor da FAFI, onde fica até 1970. Em 1963 vai para Rio Grande do Norte como
professor visitante ministrar o curso de Extensão Universitária sobre “Arqueologia e
3
Etnologia da Amazônia”. Em 1964 Anaíza Vergolino-Henry torna-se sua aluna, era o
início de uma longa parceria de muita produção acadêmica e contribuições para a
Antropologia.
Como vice-diretor, Napoleão se preocupa em desenvolver atividades
acadêmicas num ambiente de circulação de ideias e de pesquisa científica, inclusive
com condições físicas adequadas. Ele Incentiva debates, troca de experiências e
seminários para despertar o interesse pela pesquisa, exigindo que se produzisse e
publicasse para que a FAFI criasse “uma geração e uma escola”2. Além disso,
acostumado ao ritmo do Museu Emilio Goeldi, Napoleão valoriza e incentiva para que a
pesquisa de campo fosse feita por seus alunos da UFPA.
Em 1965 a Antropologia na UFPA era apenas um projeto. Napoleão à frente da
cadeira de Etnologia e Etnografia consegue que a divisão de Antropologia do Museu
Goeldi doasse para o acervo da Universidade duas coleções etnológicas que são
resultados de pesquisas que Protássio Frikel teria feito entre grupos indígenas: “Coleção
Aramagoto” (Tiryó) com 18 peças e “Coleção Xikrin” com 203 peças. Inicialmente
essas peças foram alojadas na sala da direção da FAFI. Napoleão sabia da importância
de tais peças para a pesquisa antropológica, por isso em 1966 a Universidade recebe
outra doação de mais duas coleções do Museu Emílio Goeldi, são artefatos recolhidos
por Eduardo Galvão e Protássio Frikel em pesquisas feitas com índios da área do
Tocantins-Xingu e Alto Xingu. O acervo da UFPA possui agora 885 peças.
Começa, ainda em 1966, a ser formada pela UFPA sua própria coleção
etnográfica. Ela se inicia com a coleta de peças oriundas de pesquisas realizadas a partir
da criação de uma nova linha de pesquisa voltada para o estudo dos cultos afro-
brasileiros de Belém. Esta nova linha surge a partir do interesse de Anaíza Vergolino-
Henry sobre esta temática, quando ainda era bolsista desta instituição. Neste mesmo ano
acontece em Belém a VI Reunião Brasileira de Antropologia, nesta ocasião a recém-
criada linha de pesquisa da UFPA foi apresentada e legitimada pela comunidade
científica com a exposição do trabalho “Alguns elementos novos para o estudo dos
batuques de Belém” elaborado por Anaíza Vergolino-Henry juntamente com seu
orientador Arthur Napoleão Figueiredo.
2 Segundo Anaíza Vergolino-Henry em uma entrevista, em 2013.
4
Em 1968 e 1969 o acervo aumenta ainda mais. São peças recolhidas após uma
pesquisa de campo entre os índios do alto rio Cairari que criaria a “Coleção Anambé”,
composta por 93 peças e mais 85 peças sobre a cultura material da vida cabocla da
Amazônia, nunca antes coletada na cidade. A Cadeira de Etnologia e Etnografia já
estava consolidada em 1971, com os acervos catalogados e com um funcionário para
ajudar nas atividades.
Mas tudo muda em 1972 quando começa uma fase bem difícil para a
Antropologia na UFPA por conta da Reforma Universitária. Com esta reforma, a
Faculdade de Filosofia é desativada e todo o acervo e os recursos humanos são
transferidos para o Núcleo Pioneiro do Guamá. Napoleão é agora apenas um membro do
novo Departamento de História e Antropologia. Neste Núcleo Pioneiro ainda não havia
instalações próprias, e o “Laboratório de Etnologia” acaba mudando várias vezes de
lugar, procurando alojamento para as peças (esteve nas dependências da Prefeitura do
Núcleo, nos altos do prédio do atual IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas),
foram para um prédio que hoje é o Centro de Ciências Naturais e Exatas onde
permanece até 1989).
Ao passar por estes transtornos, Napoleão decide lutar pela construção de um
prédio para o Laboratório de Etnologia e as peças das coleções que já tinha. Consegue a
elaboração do projeto do prédio pelo arquiteto Alcyr Meira, mas por enquanto era tudo
o que ele tinha, apesar da simpatia dos sucessivos reitores da UFPA.
Napoleão, enquanto esperava aprovação para a construção do novo
Laboratório, investia na formação se seu grupo, incentivava a busca de pós-graduação
pelos professores ou admissão de novos membros interessados em Antropologia.
Por conta de um enfarte que sofre em 1972, Napoleão não faz mais pesquisas
de campo como sempre gostou, com longas viagens e sempre acompanhado de sua
câmera Rolleiflex. Se volta então para a Antropologia Urbana pesquisando o folclore (a
medicina folk), sem nunca deixar de dar aula para a graduação. Finalmente se aposenta,
em 1983.
Um espaço próprio se torna urgente quando, em 1986, o Centro de Ciências
Naturais e Exatas precisa de espaço e quer “se livrar” do Laboratório de Etnologia e das
coleções etnográficas que estavam depositadas por lá. Napoleão e o Grupo de
5
Antropologia se mobiliza, apoiado pelo então diretor do antigo CFCH (Centro de
Filosofia e Ciências Humanas), Alex Fiúza de Melo, buscam de toda forma conseguir os
recursos para a construção do prédio. A boa notícia chega em 1987: o Reitor na época
José Seixas Lourenço anuncia que o presidente José Sarney havia liberado os recursos
para a obra, que se iniciaria em julho do ano seguinte.
Napoleão Figueiredo costumava visitar as tão aguardadas obras, mas não chega
a ver seu grande projeto ficar pronto. Acaba morrendo em março de 1989. Meses mais
tarde é inaugurado o Laboratório de Antropologia Arthur Napoleão Figueiredo
(LAANF), em novembro de 1990. Já em 1991, em seu prédio próprio, é anunciado o
desmembramento do Departamento de História e que o Grupo de Atividades de
Antropologia é agora o Departamento de Antropologia (DEAN).
O antigo grupo que Napoleão ajudou a criar só se expandiu, tanto no quadro
docente como em atividades. Atualmente na UFPA, existem dois programas de pós-
graduação em Antropologia, um é o PPGSA (Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia) e o PPGA (Programa de Pós-Graduação em Antropologia).
A Antropologia e as coleções etnográficas
Os museus antecedem a antropologia como área de conhecimento e campo
reflexivo. Na Grécia antiga eram considerados lugar de contemplação e inspiração
poética, os chamados “templos das musas”. Muitos séculos depois, no Ocidente os
museus eram lugares onde as pessoas ligadas às cortes europeias, na Renascença,
guardavam suas relíquias. Nos séculos XVIII e XIX foram constituídos os chamados
museus de ciência ou museus enciclopédicos voltados para a produção científica. A
Revolução Francesa, o movimento Iluminista e Universalista inspiraram o modelo de
museu que perdura até hoje: “esta modalidade de museu pode ser definida como uma
instituição com pesquisadores que produzem conhecimento, praticam o colecionamento,
divulgam o que é produzido e exibem suas coleções para o público amplo. Sua função é
também pedagógica.” (ABREU, 2007, p.9).
Camilo de Mello Vasconcellos (2011), afirma que, na segunda metade do século
XIX, os museus estavam fortemente associados à formação da antropologia, antes desta
6
ingressar como ciência no mundo acadêmico os museus eram os centros de formação de
conhecimento antropológico,
De certo modo, é possível dizer que a antropologia nasceu nos
museus, ou mais precisamente, que ela se estruturou na medida em
que se formavam as grandes coleções etnográficas que vieram a
enriquecer os acervos dos museus ocidentais. E até mesmo forneceram
uma das bases para a produção das teorias antropológicas da época,
notadamente o evolucionismo e o difusionismo (VASCONCELLOS,
2011, p. 13).
A antropologia surge numa época em que predominavam as ciências naturais e
uma visão positivista da ciência, por isso, consistia em trabalhar com provas,
testemunhos e evidências empíricas. Daí a importância em formar coleções a partir dos
artefatos dos “povos exóticos” com os quais o antropólogo trabalhava. Mas o olhar do
pesquisador era o olhar dominante,
O “outro” era visto como apenas como objeto de pesquisa, um
“outro” construído, um objeto de conhecimento. Neste contexto, e
legitimados por uma vertente teórica evolucionista, nas primeiras
pesquisas antropológicas geradas nos museus, não encontramos vozes
dos povos estudados, estes configuravam-se “outros passivos” de um
discurso cientifico (ABREU, 2007, p. 25).
No século XIX no Brasil, é fundado o Museu Paraense Emilio Goeldi em 1866,
em 1876 é criada a seção de Antropologia, Zoologia Geral e Aplicada no Museu
Nacional (RJ) e em 1894 é fundado o Museu Paulista. Todos estes tinham como modelo
a pesquisa enciclopédica influenciada pelas ciências naturais e pautadas,
principalmente, por questões de Antropologia Física3 e de Craniometria
4. Este período é
marcado por grandes expedições estrangeiras que vinham ao Brasil para pesquisar os
povos indígenas, que estariam, para eles, condenados a desaparecer e por isso a
necessidade de coletar a maior quantidade possível de artefatos. Como bem fala
Albuquerque (2011):
A autenticidade é um valor moderno, e o tradicionalismo é uma de
suas vertentes. A noção de que o passado está “se perdendo” e deve
ser, de alguma forma, “preservado” é o sintoma de uma mudança
histórica e social pela qual a modernidade tem uma de suas
características, onde o colonialismo aparece como “mal necessário” e
3 Também chamada de "antropologia biológica" ou “bioantropologia”, tem como finalidade o estudo dos
mecanismos de evolução biológica, herança genética, adaptabilidade e variabilidade humana,
primatologia e o registro fóssil da evolução humana, bem como a interação entre a biologia e a
cultura. 4 A Craniometria é geralmente definida como sendo uma técnica, ou sistema convencional, que determina
a mediação do crânio de maneira sistematizada universalmente.
7
a positividade do poder na produção de registros administrativos,
etnográficos, museológicos e outros. (p.117).
Neste mesmo período, também são coletadas artefatos dos sertanejos -
considerados nossos ancestrais - e da cultura afro-brasileira, em exposições que
enalteciam a fábula das três raças. Nos meados do século XX, com a institucionalização
das Ciências Sociais nas universidades e também com o surgimento de novos modelos
de museus, as pesquisas antropológicas e os museus seguem rumos diferentes. Novos
paradigmas conduzem agora aos estudos da cultura e para as construções de alteridade,
aspectos imateriais e simbólicos.
Autores como Alice Duarte (1997) também afirmam que a antropologia ao longo
de seu desenvolvimento, ora se aproxima ora se distancia da museologia e que a partir
dos anos de 1980, surge uma nova concepção de museu. Neste período vários
pesquisadores contribuem para alargar o tema com concepções diferentes das
tradicionais. Uma dessas visões, que eu acho particularmente interessante, é a
“revitalização antropológica das coisas” (APPADURAI, 2008), que vem substituindo os
estudos dos artefatos em termos estéticos e formais por outras concepções diferentes e
inovadoras, reconstituindo sua biografia cultural. Também há trabalhos centrados na
análise da produção e utilização de tais objetos como identidade ética e cultural de uma
classe ou segmento social (TREVOR-ROPER, 1997; HANDLER, 1985), mostrando
como os museus se transformam de depósitos de artefatos dos povos “estranhos” e
“primitivos” para lugares onde se encontra concepções diferentes e relativizadoras de
ver o outro, novas abordagens e leituras.
A Reserva Técnica do LAANF: tesouros guardados (ou escondidos?) sob a guarda
da UFPA.
O acervo da Reserva Técnica do Laboratório Arthur Napoleão Figueiredo da
UFPA, é uma imensa coleção formada por objetos que foram coletados por
pesquisadores desta instituição, a partir da década de 1960. Além destas peças, frutos de
pesquisa, a reserva conta ainda com equipamentos que pertenceram a Arthur Napoleão
8
Figueiredo como sua antiga câmera fotográfica Rolleiflex e todo seu equipamento
fotográfico, suas armas, sua bússola entre outros. As peças que integram a Reserva
Técnica do LAANF compõem três coleções distintas5: Etnologia Indígena, Populações
Interioranas e População Urbana/Cultos Afro-Brasileiros.
A coleção denominada Etnologia indígena é composta por 721 peças que já
pertenceram e foram utilizadas por 12 diferentes grupos indígenas. Elas foram
recolhidas por quatro pesquisadores, são eles: Günter Protássio Frikel, Eduardo Enéas
Gustavo Galvão, Arthur Napoleão Figueiredo e Anaíza Vergolino-Henry.
O conjunto de peças denominado População Interiorana é formado por peças
oriundas de diversos municípios do interior do estado do Pará, das beiras dos rios, de
estradas e de colônias agrícolas. Foram trazidas por Arthur Napoleão Figueiredo,
Anaíza Vergolino-Henry e Camillo Martins Vianna, totalizando 152 peças.
O conjunto referente à População Urbana/Cultos Afro-Brasileiros é composto
por peças que foram recolhidas em Belém, a partir de 18 casas de cultos das religiões
afro-brasileiras e 08 estabelecimentos comerciais, compondo um expressivo conjunto de
629 peças, coletadas pelos antropólogos Arthur Napoleão Figueiredo e Anaíza
Vergolino-Henry (DOMINGUES-LOPES, 2003), constituindo os chamados “tesouros
afro-brasileiros” da UFPA. Estas peças juntas formam três coleções que levam o nome
de seus coletores: Coleção Arthur Napoleão Figueiredo & Anaíza Vergolino e Silva,
que foi formada em 1967; Coleção Anaíza Vergolino e Silva & Arthur Napoleão
Figueiredo, formada em 1970 e 1975 e Arthur Napoleão Figueiredo, formada entre os
anos de 1973 e 1974.
Para Arthur Napoleão Figueiredo (1981), os artefatos produzidos por seres
humanos fazem parte de sistemas que revelam a relação Homem x Meio, a relação
Homem x Homem e a relação Homem x Ideias. É como os grupos fazem e criam seus
corpos de crenças, ordens de valores, como explicam e justificam seu modo de conduta
e de vida. O valor do objeto recolhido depende diretamente da qualidade e quantidade
de informações que se tenha sobre ele, relacionando-os com as outras partes dos
sistemas. Foi com base nessas experiências que a coleção foi formada. Essas peças não
foram simplesmente recolhidas, junto com elas vinham informes de campo, e todo um
documentário complementar da pesquisa realizada.
5 Essas denominações foram conferidas pelo próprio Arthur Napoleão Figueiredo (FIGUEIREDO. As
coleções etnográficas da Universidade Federal do Pará. Belém, DEAN/UFPA, 1981).
9
O entrosamento interinstitucional entre a UFPA e o museu Paraense Emílio
Goeldi, intermediada por Napoleão Figueiredo, favoreceu muito as pesquisas nessa
área. Várias foram as parcerias firmadas em pesquisas de campo e de ensino entre essas
duas grandes instituições paraenses. Inclusive, o sistema adotado para o trabalho de
laboratório, descrição, codificação e tombamento seguem os mesmos critérios nas duas
instituições. O tombamento é feito por ordem numérico-cronológica, registrando-se o
tipo de artefato, grupo social, localização geográfica (área cultural para as peças
indígenas e região cultural para os demais grupos), nome do coletor e data da coleta.
Das coleções indígenas fazem parte cestos dos mais diversos tipos de
trançados, arcos, bordunas, pentes, adornos cerimoniais e de uso cotidiano, arpões de
pesca e utensílios. Das coleções “População Interiorana” existem matapis, armadilhas,
redes e utensílios em geral. As coleções sobre a religiosidade afro-brasileira de Belém,
as coleções “População Urbana” são compostas pelos mais diversos objetos como
instrumentos musicais, indumentárias, objetos cerimoniais, guias, espadas entre outros
objetos utilizados nos cerimoniais da complexa religiosidade afro-religiosa amazônica.
Abaixo, apresento as coleções etnográficas que estão na reserva técnica do
LAANF, por ordem alfabética do nome do coletor, discriminando os diversos grupos
humanos, a data da coleta e os números de tombamento:
FIGEIREDO, NAPOLEÃO
Índios Xaruma 1972 1196-1258
População Urbana 1973 1259-1268
População Urbana 1974 1269-1276
População Urbana 1976 1323-1324
População Urbana 1977 1325-1416
População Urbana 1981 1453-1512
FIGUEIREDO, NAPOLEÃO & VERGOLINO E SILVA, ANAÍZA
População Urbana 1967 330-700
População Urbana 1967 947-981
População Interiorana 1968 982-1066
Índios Anambé 1969 1067-1159
10
FRIKEL, PROTÁSSIO
Índios Aramagoto 1965 1-185
Índios Xikrin 1965 186-329
GALVÃO, EDUARDO & FRIKEL, PROTÁSSIO
Índios Juruna 1966 701-708
Índios Juruna 1966 885
Índios Kamayurá 1966 806-876
Índios Kayabí 1966 709-937
Índios Kayabí 1966 886-914
Índios Kuikuro 1966 880-884
Índios Suyá 1966 764-805
Índios Suyá 1966 915-946
Índios Trumai 1966 738-743
Índios Txukahamãe 1966 744-763
Índios Ywalapiti 1966 877-879
VERGOLINO E SILVA, ANAÍZA & FIGUEIREDO, NAPOLEÃO
População Urbana 1970 1160-1195
População Urbana 1975 1307-1322
VIANA, CAMILO M.
População Interiorana 1974 1277-1307
População Interiorana 1978 1417-1444
População Interiorana 1980 1445-1452
11
Criação do Acervo Imagético e Sonoro do LAANF: Destrancando a porta
e acessando as coleções (mesmo que virtualmente!)
Ainda não posso afirmar que na UFPA, a motivação das coleções seriam o
equivalente ao “espírito dos pesquisadores modernistas paulistas com forte tendência
nacionalista” (ALBUQUERQUE, 2011) que coletavam a cultura material como forma
de “resguardar e preservar” o patrimônio brasileiro, onde a história é vista como um
processo de destruição. Acontece que esses “tesouros etnográficos” já estão coletados e
catalogados, devem ser expostos, devolvidos, repatriados de alguma forma, aos seus e a
toda comunidade acadêmica e grande público, mesmo que virtualmente.
Podemos e devemos utilizar as novas tecnologias disponíveis para estreitar e
aproximar o que está distante e sem acesso, pois “realidade, interatividade e
telepresença tornam-se, pois, modos possíveis de ver, olhar e interagir com as imagens
do tempo que nos permitem, hoje, as novas tecnologias digitais e eletrônicas”
(ECKERT, 2002, p. 13).
De dentro de aldeias, de barracões e terreiros afro-religiosos da cidade, das casas
nas beiras dos rios, posteriormente de salões de exposições e salas de aula de outrora,
para a porta atualmente trancada da reserva técnica do LAANF, as peças precisam
mostradas novamente, alcançando novos ambientes e oportunidades, no Brasil ainda
“[...] são poucas as instituições que tiram proveito efetivamente do poder da web para
desenvolver atividades educacionais, onde a comunicação e o acesso a essas coleções
poderiam criar novos relacionamentos com o público que se pretende atingir” (GEYSA
E BERNARDES, 2009, p. 5)
Populações ribeirinhas, afro-religiosas e indígenas, muitas delas possuem
acesso à rede mundial de computadores de certa forma, é a mais imediata de acesso.
Nesse aspecto, as novas possibilidades de museologização, advindas
da memória eletrônica e digital e mediada pela conformação da tela do
computador, conforme muitos autores já apontaram, nasce e se
alimenta de velhas e antigas formas de registro documental das
imagens do tempo, segundo seus diferentes suportes físicos.
(ECKERT, 2002, p. 9).
Com a elaboração de um WEB site, também criaria outras oportunidades de
interesses e pesquisas acadêmicas, expandindo a comunicação museal, isto é, fazer uma
divulgação das peças que compõe os acervos e reservas técnicas, repassando
12
informações qualificadas e contextualizadas de seus acervos etnográficos. Para Rita
Domingues-Lopes (2002), podemos pensar como formas de comunicação, o trabalho
acadêmico e o trabalho de campo do antropólogo, onde
O primeiro, estaria relacionado aos seus pares, outros
profissionais que compartilham, aos menos teoricamente, dos mesmos
princípios éticos, onde a divulgação dos resultados deve seguir um
padrão considerado pelo grupo apropriado; o segundo, no trabalho de
campo, o antropólogo deve manter diálogos com seus informantes,
considerando-os interlocutores em suas condições sociais, sem que
com isso haja uma postura senhorial ou serviçal do antropólogo
(DOMINGUES-LOPES, 2002, p.27).
:
Metodologia e noções preliminares
O acervo da Reserva Técnica do LAANF está confinado em uma sala (a
própria condição, importância e idade das peças, de certa forma, pedem esse cuidado),
sem contextualização e sem acesso. Acredito que a forma mais imediata e segura de
acesso a todas essas peças, seja a organização e produção de um acervo imagético e
sonoro e posteriormente sua exposição permanente em um WEB site, um Museu
Virtual, para transformar de forma dramática essa realidade de quase anonimato.
Atualmente, o LANNF está em análise de projeto e provavelmente entrará em
reforma e a Reserva Técnica, talvez, será ampliada. Por se tratarem de peças com quase
cinco décadas e com pouca manutenção, antes de qualquer coisa há necessidade de se
verificar o real estado das peças, fazer a higienização, conferência e reacomodação de
cada peça segundo as informações do Inventário das Coleções6. Para esta fase será
importante a parceria com o departamento de Museologia da UFPA.
Depois disso, será feita a digitalização de cada uma das peças por meio de
fotografias e de scaneamento de desenhos e fotografias, além da captação de áudio dos
tapes e revelação dos negativos que se encontram na reserva.
Na fase de fabricação do WEB site, deve-se ter a preocupação com a
organização da informação, a disposição das falas e dados, em suma com a linguagem,
pois ela é um código simbólico e as palavras são usadas para transmitir um determinado
6 (BELTRÃO et al. COLEÇÕES ETNOGRÁFICAS: INVENTÁRIO. UFPA, 2003)
13
significado. Este cuidado, segundo Geysa e Bernardo (2009), foi tomado quando feito o
WEB site do museu virtual da Coleção Carlos Estevão de Oliveira:
Tanto o autor como o mediador estão carregados de subjetividade (a
palavra atua sem que tenhamos consciência do seu papel), por isso
devem-se evitar desvios na tradução de conteúdos, no contexto em
que os sujeitos trazem em sua construção e interpretação uma carga de
cultura e valores. Toda linguagem, independente da cultura tem sua
legitimidade posta no valor da comunicação. Uma mesma linguagem
pressupõe linguagens, pois quando damos signo a um objeto estamos
dando valor a este. (GALVÃO E BERNARDES, 2009, p. 8).
Uma pesquisa referente à contextualização das peças será necessária para
enriquecer as informações, para que não contenha apenas a descrição formal do objeto
como matéria-prima, tipo de trançado e dimensões, por exemplo, mas também os usos,
os significados, a importância e simbologia para o grupo de origem7. Um artefato
catalogado em um acervo é muito mais que um número de tombo ou uma vaga em uma
estante ou em uma gaveta. Por trás daquela peça confeccionada com todo cuidado por
um determinado grupo, com uma determinada forma, cor, símbolos, matéria-prima e
tamanho específico, há uma complexa rede de informação e significado que está muito
além do próprio objeto, conferindo-lhe uma estética peculiar (BERNARDO, 1990).
Depois de pronto o site, será a fase de inserção das digitalizações e dos dados
acerca das peças. Sem dúvida, um projeto bem mais elaborado e detalhado ainda será
necessário para buscar apoio e financiamento junto às instituições fomentadoras deste
tipo de projeto.
7 Minha dissertação de mestrado, em andamento, trata justamente da contextualização dos instrumentos
musicais utilizados nas religiões afro-brasileiras (tambores, agogôs e xeque-xeques) depositados na
referida reserva técnica.
14
Apresentando a Reserva Técnica do LAANF: uma Fototnografia
15
16
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18
19
Referências
ABREU, Regina. O diálogo entre intelectuais franceses e brasileiros e a fundação
de museus etnográficos no Brasil: uma contribuição aos estudos sobre circulação
internacional e formação de escolas de pensamento no campo da memória social, dos
museus e do patrimônio cultural. ANPOCS. ST 06 – Coleções, museus e patrimônios,
São Paulo:2007.disponível em:
<http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=
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ALBUQUERQUE, Marcos Alexandre dos Santos. O regime imagético Pankararu
(tradução intercultural nacidade de São Paulo) [tese] / Marcos Alexandre dos Santos
Albuquerque ; orientadora, Antonella Maria Imperatriz Tassinari. - Florianópolis, SC,
2011.
APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva
cultural. trad. Agatha Bacelar. Niterói, Editora da Universidade Federal Fluminense,
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