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Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 5, n. 1, p. 69-101, jan./jun. 2011. A CULINÁRIA INDÍGENA COMO ELO DE PASSAGEM DA A CULINÁRIA INDÍGENA COMO ELO DE PASSAGEM DA A CULINÁRIA INDÍGENA COMO ELO DE PASSAGEM DA A CULINÁRIA INDÍGENA COMO ELO DE PASSAGEM DA “CULTURA” PARA A “NATUREZA”: INVERTENDO LÉVI “CULTURA” PARA A “NATUREZA”: INVERTENDO LÉVI “CULTURA” PARA A “NATUREZA”: INVERTENDO LÉVI “CULTURA” PARA A “NATUREZA”: INVERTENDO LÉVI- STRAUSS STRAUSS STRAUSS STRAUSS MÁRTIN CÉSAR TEMPASS 1 UFRGS RESUMO: Segundo Claude Lévi-Strauss, a culinária constitui um elo de passagem da etapa da natureza para o estágio da cultura. A partir da pesquisa etnográfica realizada entre os Mbyá-Guarani, o presente artigo analisa esta afirmação sob a luz da cosmologia ameríndia. No entanto, a dicotomia entre natureza e cultura não se aplica aos grupos indígenas, pois, para estes, as categorias natureza e cultura constituem um híbrido. E a este hibridismo podemos acrescentar também o domínio da sobrenatureza. E, em termos de análise, essa configuração hibrida não possibilita haver qualquer tipo de passagem entre um domínio e outro. Mas a passagem é possível entre as três possíveis condições de vida no cosmos: animalidade, humanidade e divindade. Os humanos podem fazer tanto a passagem para a animalidade quanto para a divindade, mas independente da direção da passagem, embora com condições diferentes no cosmos, da humanidade sempre se chegará à animalidade. Ou, nos termos de Lévi-Strauss, da cultura sempre se irá para natureza. Porém, em uma direção os ex-humanos controlarão os seres da natureza, na outra direção eles serão controlados na natureza. E isso não se trata apenas de uma peculiaridade dos grupos indígenas, podendo ser encontrada também nas sociedades ditas “modernas”, embora sob outras roupagens. PALAVRAS-CHAVE: Grupos indígenas; Cosmologia; Culinária; Mbyá-Guarani. ABSTRACT: According to Claude Lévi-Strauss, the cuisine constitutes a passing link from stage of nature to stage of culture. Based on ethnographic research among the Mbyá-Guarani, this article analyzes this assertion under the light of the Amerindian cosmology. However, the dichotomy between nature and culture does not apply to indigenous groups, since for these nature and culture constitute a hybrid. To this hybridism might also be added the domain of supernatural. In terms of analysis this hybrid configuration does not allow any kind of transition from one domain to another. Yet the transition is possible among the three possible conditions of life in cosmos – animality, humanity and divinity. Human beings may perform the transition to animality as well as the transition to divinity. But no matter the course of the transition, although in different conditions in cosmos, from humanity one will always achieve animality. As conceptualized by Lévi-Strauss, from culture always occurs the trasition to nature. However, in one direction ex-humans will control nature beings, in another one, they will be controlled by nature. This isn’t just about a peculiarity of indigenous groups, it may also be found in societies so-called “modern”, however under others shapes. KEYWORDS: Indigenous groups; Cosmology; Cuisine, Mbyá-Guarani. 1 Mestre e Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected] .

A CULINÁRIA INDÍGENA COMO ELO DE PASSAGEM DA “CULTURA” PARA A “NATUREZA”: INVERTENDO LÉVISTRAUSS

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A CULINÁRIA INDÍGENA COMO ELO DE PASSAGEM DA“CULTURA” PARA A “NATUREZA”: INVERTENDO LÉVISTRAUSS

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  • Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 5, n. 1, p. 69-101, jan./jun. 2011.

    A CULINRIA INDGENA COMO ELO DE PASSAGEM DA A CULINRIA INDGENA COMO ELO DE PASSAGEM DA A CULINRIA INDGENA COMO ELO DE PASSAGEM DA A CULINRIA INDGENA COMO ELO DE PASSAGEM DA CULTURA PARA A NATUREZA: INVERTENDO LVICULTURA PARA A NATUREZA: INVERTENDO LVICULTURA PARA A NATUREZA: INVERTENDO LVICULTURA PARA A NATUREZA: INVERTENDO LVI----STRAUSSSTRAUSSSTRAUSSSTRAUSS

    MRTIN CSAR TEMPASS1 UFRGS

    RESUMO: Segundo Claude Lvi-Strauss, a culinria constitui um elo de passagem da etapa da natureza para o estgio da cultura. A partir da pesquisa etnogrfica realizada entre os Mby-Guarani, o presente artigo analisa esta afirmao sob a luz da cosmologia amerndia. No entanto, a dicotomia entre natureza e cultura no se aplica aos grupos indgenas, pois, para estes, as categorias natureza e cultura constituem um hbrido. E a este hibridismo podemos acrescentar tambm o domnio da sobrenatureza. E, em termos de anlise, essa configurao hibrida no possibilita haver qualquer tipo de passagem entre um domnio e outro. Mas a passagem possvel entre as trs possveis condies de vida no cosmos: animalidade, humanidade e divindade. Os humanos podem fazer tanto a passagem para a animalidade quanto para a divindade, mas independente da direo da passagem, embora com condies diferentes no cosmos, da humanidade sempre se chegar animalidade. Ou, nos termos de Lvi-Strauss, da cultura sempre se ir para natureza. Porm, em uma direo os ex-humanos controlaro os seres da natureza, na outra direo eles sero controlados na natureza. E isso no se trata apenas de uma peculiaridade dos grupos indgenas, podendo ser encontrada tambm nas sociedades ditas modernas, embora sob outras roupagens.

    PALAVRAS-CHAVE: Grupos indgenas; Cosmologia; Culinria; Mby-Guarani.

    ABSTRACT: According to Claude Lvi-Strauss, the cuisine constitutes a passing link from stage of nature to stage of culture. Based on ethnographic research among the Mby-Guarani, this article analyzes this assertion under the light of the Amerindian cosmology. However, the dichotomy between nature and culture does not apply to indigenous groups, since for these nature and culture constitute a hybrid. To this hybridism might also be added the domain of supernatural. In terms of analysis this hybrid configuration does not allow any kind of transition from one domain to another. Yet the transition is possible among the three possible conditions of life in cosmos animality, humanity and divinity. Human beings may perform the transition to animality as well as the transition to divinity. But no matter the course of the transition, although in different conditions in cosmos, from humanity one will always achieve animality. As conceptualized by Lvi-Strauss, from culture always occurs the trasition to nature. However, in one direction ex-humans will control nature beings, in another one, they will be controlled by nature. This isnt just about a peculiarity of indigenous groups, it may also be found in societies so-called modern, however under others shapes.

    KEYWORDS: Indigenous groups; Cosmology; Cuisine, Mby-Guarani.

    1 Mestre e Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail:

    [email protected] .

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    Claude Lvi-Strauss, fundador da Antropologia Estrutural e

    tambm o maior expoente desta corrente antropolgica, iniciou as suas

    pesquisas no Brasil em 1935, enquanto professor da Universidade de

    So Paulo (USP), e at 1938 realizou vrias incurses etnogrficas entre

    grupos indgenas do Brasil Central, como os Kadiweu, Nambikwara,

    Tupi-Karrahib, Bororo, entre outros (LVI-STRAUSS, 1957). Inspirado

    pelos avanos cientficos da lingustica, principalmente pelos trabalhos

    de Ferdinand Saussure, Lvi-Strauss percebeu que o conjunto de leis

    elementares e universais das culturas permanecem latentes, no

    podendo ser apreendidas atravs do estudo dos fenmenos conscientes,

    mas sim atravs dos fenmenos inconscientes (LVI-STRAUSS, 1975a)2.

    Ou seja, as variaes culturais so regidas por leis inconscientes3. Para

    saber as razes que levam um grupo primitivo a praticar um costume ou

    partilhar uma crena preciso pesquisar o inconsciente, pois estas

    razes esto muito afastadas das razes que so invocadas para

    justific-las.

    Em Tristes Trpicos (1957, p. 84), Lvi-Strauss advoga que para

    alcanar o real, preciso primeiro repudiar o vivido. Isso porque

    quanto mais forte a presena da estrutura aparente, mais difcil de se

    alcanar a estrutura profunda, pois a primeira um obstculo para a

    segunda. Esta estrutura profunda composta por um conjunto de

    propriedades fundamentais nas quais subjazem todas as culturas. Na

    2 A linguagem um fato universal, enquanto que a lngua uma elaborao cultural particular. Saussure

    assinala que todos os sons emitidos pelo homem correspondem a leis da fsica, portanto, naturais. Mas cada sociedade particular atribui valores semnticos prprios a estes sons, criando smbolos, culturais (BERNARDI, 1982). Lvi-Strauss, muito influenciado por Saussure, adaptou o estruturalismo da lingustica para a Antropologia. As sociedades passaram a serem vistas como sistemas, preenchidos com relaes de oposio, de correlao ou de analogia. Conforme a lingustica, a estrutura social no consiste em um conjunto de elementos, ela apenas um sistema de relaes. Os elementos devem ser analisados dentro da sua relao com os outros elementos, num recorte sincrnico. interessante destacar que, na estrutura, pode ocorrer uma variao nos elementos, mas as relaes sempre permanecem constantes. Esta nfase nas relaes entre os termos implica que a cultura seja vista como um todo, pois todos os elementos se relacionam, no possibilitando a sua apreenso de forma parcelada. Assim, o todo pode explicar as partes, mas as partes no servem para explicar o todo. Em suma: a anlise estrutural no descreve elementos, descreve relaes. 3 Segundo Lvi-Strauss (1975a), foi Franz Boas o primeiro a definir a natureza inconsciente dos

    fenmenos culturais, mas este autor nunca conseguiu atingir o inconsciente cultural em suas pesquisas, ficando apenas no pensamento consciente dos indivduos, em funo do seu excessivo rigor metodolgico.

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    superfcie, a estrutura evidencia a variao cultural, a diferena entre os

    agrupamentos humanos. Mas, sob a estrutura aparente, existem

    elementos, logicamente encadeados que so comuns a todas as

    culturas. A busca destes elementos profundos o objetivo central da

    obra de Lvi-Strauss, e da sua Antropologia Estrutural. Seu foco a

    infraestrutura inconsciente, no se limitando ao simples mapeamento

    dos fenmenos conscientes. E nessa infraestrutura profunda residem os

    elementos que Lvi-Strauss considera como universais4.

    A estrutura profunda da cultura humana uso no singular porque,

    como j apontado, as variaes culturais se encontram no mbito da

    estrutura superficial caracterizada por oposies binrias. Para Lvi-

    Strauss (1986b), os antnimos organizam tudo nas sociedades e nas

    culturas. Tudo tem o seu oposto, no esquema tese, anttese e sntese. A

    cultura um processo dialtico. A oposio entre o cru e o cozido,

    categorias que podem ser consideradas universais, so um exemplo

    desse processo. Isso porque o cru e o cozido so categorias que

    encontram-se na base elementar que, para o autor, explica a imensa

    diferenciao entre as culturas.

    De forma resumida, Lvi-Strauss (1979) classifica o cru e o cozido

    em extremos opostos. O primeiro o alimento em estado natural, sem

    nenhuma elaborao, enquanto que o segundo representa a elaborao

    cultural do alimento. Como observa o autor (1979 e 1986a), o ser

    humano o nico animal que elabora seus alimentos, no existindo

    sequer uma nica sociedade que no apresente alguma forma de

    preparao dos seus alimentos. Porm, cada sociedade prepara seus

    alimentos segundo suas regras alimentares. Assim, temos a culinria

    como universal para toda a espcie humana e, ao mesmo tempo,

    portadora de regras socialmente construdas. Ela congrega

    4 Para Lvi-Strauss, estes elementos universais se aproximam, ou compem, dos aspectos naturais que os

    seres humanos apresentam. Mas, como afirma Lvi-Strauss (1982), a dicotomia do que natural e do que cultural no ser humano, em determinados casos, muito difcil de ser estabelecida. Em outros termos, no ser humano muito difcil se estabelecer onde acaba a natureza e onde comea a cultura. Segundo Lvi-Strauss (1982), existem dois princpios que podem ser utilizados, de maneira segura, para isolar os elementos naturais dos elementos culturais: a universalidade e a regra. Os aspectos naturais so pontuados pela universalidade, enquanto que os aspectos culturais so manifestados pela presena de regras. Em toda parte onde se manifesta uma regra podemos ter certeza de estar numa etapa da cultura. Simetricamente, fcil reconhecer no universal o critrio da natureza (LVI-STRAUSS, 1982, p. 47). Contudo, a constncia e a regularidade, que tambm se encontram presentes no mundo natural, no podem ser confundidas com regras, pois no passam de simples heranas biolgicas.

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    simultaneamente o natural e o cultural, o universal e o particular. Ento,

    como afirma Lvi-Strauss (1979 e 1986a), a culinria pode ser

    considerada como um elo de passagem entre e natural e o cultural.

    Atravs da culinria, a natureza transformada em cultura. De maneira

    inversa, o apodrecimento dos alimentos significa um retorno ao estado

    de natureza (LVI-STRAUSS, 1986a).

    Com base nestas percepes, Lvi-Strauss formula o seu famoso

    tringulo culinrio, um modelo lgico de oposies binrias

    triangulares, em que o cru, o cozido e o podre ocupam os trs

    vrtices do tringulo5. O cru o alimento sem transformao, o cozido

    o alimento que sofreu alguma forma de transformao cultural

    (modificado pela ao/concepo humana), e o podre o alimento

    atingido por uma transformao natural6. Em todas as sociedades

    humanas todos os alimentos se encontram classificados em um destes

    estgios, ou est em um processo que o direciona para um destes

    estgios. Mas, talqualmente as variaes culinrias, cada um dos povos

    do mundo possui sua prpria verso do tringulo culinrio. Cada

    sociedade entende o cru, o cozido e o podre de forma particular. O

    que para uns visto como cru, para outros pode estar podre, por

    exemplo (LVI-STRAUSS, 1979).

    Lvi-Strauss chegou a estas concluses a partir da sua vivncia

    com grupos indgenas do Brasil Central, na dcada de 1930. Mais tarde,

    na dcada de 1960, o autor publicou, em francs, o primeiro dos quatro

    volumes da srie Mitolgicas, com o ttulo O cru e o cozido (LVI-

    STRAUSS, 2004), onde apresenta e analisa, luz da sua Antropologia

    Estrutural, 187 mitos recolhidos entre os grupos indgenas sul-

    americanos. A temtica do livro gira em torno das oposies binrias

    cru e cozido, que ele j havia trabalhado anteriormente, opondo com

    5 Lvi-Strauss, mais uma vez influenciado pela lingustica, esquematizou o seu tringulo culinrio a partir

    de adaptaes feitas do tringulo voclico e do tringulo das consoantes de Jakobson (LVI-STRAUSS, 1979). 6 Lvi-Strauss (1979) trabalha com as dicotomias da modernidade, utilizando a natureza e a cultura

    como categorias estanques, o que lhe rendeu muitas crticas. No entanto, mesmo analisando natureza e cultura de forma isolada, Lvi-Strauss chama ateno para o fato de que nada neste mundo existe de forma pura. No h nada que seja pura natureza ou pura cultura. O cru no existe em estado puro, os alimentos sempre trazem alguma construo cultural. Por exemplo, em determinadas sociedades, mesmo os alimentos das saladas, no cozidas, tem que ser lavadas, cortadas e temperadas. Tambm a prpria escolha dos alimentos que sero comidos passa pela esfera cultural. O recorte do que ou no alimento cultural.

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    isso as categorias de natureza e cultura. Os mitos analisados narram a

    inveno ou conquista do fogo entre os indgenas e, no seu conjunto,

    apresentam a mesma base estrutural. E, em conjuno com isso, os

    mitos apresentam o surgimento da cozinha, ou da culinria, nestas

    etnias. O que, aplicando a teoria que Lvi-Strauss j havia desenvolvido,

    leva ao ponto da passagem da cultura para a natureza.

    Mas ocorre que o contedo dos mitos analisados expe que os

    heris mticos dos grupos indgenas roubaram o fogo de algum

    animal. Apresentarei na sequncia como os Mby-Guarani narram o seu

    mito que para eles no tem nada de mito, a histria mais pura e

    verdadeira, que aconteceu de verdade (SEU TURBIO, entrevista 16 jun.

    2007) - , mas, por ora, basta assinalar que este roubo do fogo que se

    encontrava em posse dos animais percorre o caminho inverso ao

    traado por Lvi-Strauss. A culinria, no caso amerndio, foi o elo de

    passagem da cultura para a natureza. Explico melhor esse ponto na

    sequncia. No momento, basta observar que Lvi-Strauss percebeu tal

    incongruncia bvio e argumentou que os mitos dizem que houve

    um tempo em que a passagem da natureza para a cultura esteve

    invertida, mas que, com o roubo do fogo, os homens transformaram-se

    em caadores e os animais em caa. Ou seja, para ele o ponto crucial

    no a inveno da culinria, ou a descoberta do fogo, mas o uso que

    os humanos atuais fazem dele.

    Mas, para a os objetivos do presente artigo, como procurarei

    expor de agora em diante, a culinria amerndia no faz simplesmente a

    passagem de uma direo para outra. Indo para alm disso, os sistemas

    culinrios indgenas controlam essa passagem, que pode ocorrer em

    direes opostas, mas que sempre leva para o domnio da natureza. E,

    no final das contas, essa funo controladora da culinria para a

    passagem de domnios tambm se encontra na base estrutural de outras

    sociedades, talvez em todas elas. Essa anlise o objetivo do presente

    artigo. Para tanto me valho, principalmente, dos dados que recolhi entre

    os Mby-Guarani, durante os sete anos em que realizei pesquisas

    etnogrficas entre eles.

    Do que foi exposto acima, chamo ateno para os termos

    estgio e etapa, empregados por Lvi-Strauss (1979 e 2004) na

    definio da passagem da natureza para a cultura. Os humanos esto

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    no estgio da cultura, depois de superarem a etapa da natureza. A

    passagem ocorre somente em uma direo, como as antigas concepes

    do evolucionismo social, baseadas na noo de progresso. Em outras

    palavras poderamos falar em progresso da natureza para a cultura.

    Isso um pouco complicado, pois o progresso sempre ocorre na

    direo do mais evoludo alis, isso um dos diferenciais entre o

    evolucionismo social e o evolucionismo biolgico, sendo que neste

    ltimo as modificaes/evolues podem ocorrer em direes variadas.

    Mas a cultura realmente a etapa final? O estgio mais avanado

    ou evoludo? Dificilmente, na sociedade ocidental, ou sociedade

    envolvente, algum indivduo acharia possvel que, de uma hora para

    outra, um gato, por exemplo, passasse a assar os ratos que captura.

    Chamaramos de louco um indivduo que nos contasse ter visto uma

    vaca fazendo uma feijoada. Ou uma galinha observando regras de

    etiqueta mesa. Ou ainda um porco recusando este ou aquele alimento

    porque ele possui casco fendido7. Excluindo alguns roteiristas de

    desenhos animados, dificilmente outros indivduos da modernidade

    conseguem cogitar tais hipteses.

    Os membros dessa sociedade, tambm, dificilmente conseguiriam

    se imaginar comendo carnes cruas ou putrefatas, realizando as suas

    refeies sem nenhuma forma de coco. Sem nenhuma transformao

    no alimento. Para estas pessoas possvel pensar que um dia a

    humanidade poder perder a capacidade de obter/produzir o fogo? Em

    outras palavras, seria plausvel um ser humano involuir para a

    animalidade? Excluindo os fumantes que iro virar bicho se no

    tiverem mais fogo. Se, no mundo moderno, as hipteses acima no

    so concebveis, entre os pr-modernos, como os povos indgenas, a

    inverso de posies entre homens e animais perfeitamente possvel.

    Ocorre que eles possuem concepes de natureza e cultura

    diferentes dos ocidentais. O no reconhecimento dessas diferenas

    tornou a Antropologia assimtrica.

    Segundo Bruno Latour (1994), a Antropologia foi constituda pelos

    7 Observem que usei como exemplo apenas animais amplamente difundidos no mundo ocidental, e a

    razo para tal escolha ficar evidente na sequncia do texto. A culinria, fenmeno inscrito no mbito da cultura, no se resume aos atributos dos alimentos, mas tambm s formas de consumo e demais regras que, diretamente ou indiretamente, esto relacionadas com outros elementos componentes da cultura. Isso porque a culinria um sistema.

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    modernos para estudar os outros povos que no eram considerados

    modernos. Ns, os modernos, estudamos (ou estudvamos) eles,

    no modernos, munidos de uma inveno nossa chamada de

    cincia. Contudo, no estudo dos diferentes povos acreditava-se em

    uma natureza universal, igual para todos, enquanto que a cultura seria o

    diferenciador. Isto levou e a Antropologia nasceu disso a uma

    dicotomizao entre a natureza e a cultura, que desembocou na diviso

    entre humanos e no humanos. Como observa o autor, para os

    modernos a natureza a-humana, por vezes inumana e sempre extra-

    humana. Estando todos sobre uma mesma base natural, a Antropologia,

    at bem recentemente, evitou estudar os objetos da natureza,

    dedicando-se apenas a pesquisar as culturas. E, nestas pesquisas, se

    estendia aos outros povos (todos os no modernos) a nossa

    dicotomizao entre natureza e cultura. Segundo Bruno Latour, esta

    dicotomizao tornou a anlise antropolgica assimtrica (LATOUR,

    1994).

    No dualismo vivido pela modernidade, os humanos [esto] de um

    lado, os no humanos de outro, os signos de um lado e as coisas de

    outro (LATOUR, 1994, p. 100). Mas isso impensvel e impraticvel

    entre os grupos indgenas, os grupos no modernos, pois, Apenas ns diferenciamos de forma absoluta entre a natureza e a cultura, entre a cincia e a sociedade, enquanto que todos os outros, sejam eles chineses ou amerndios, zands ou barouyas, no podem separar de fato aquilo que conhecimento do que sociedade, o que signo do que coisa, o que vem da natureza como ela realmente daquilo que suas culturas requerem. [...] Nas culturas Deles, a natureza e a sociedade, os signos e as coisas so quase coextensivos. Em Nossa cultura, ningum mais deve poder misturar as preocupaes sociais e o acesso s coisas em si (LATOUR, 1994, p. 99).

    A noo de natureza uma construo cultural. Isso para todas as

    sociedades, inclusive a nossa. Cada sociedade tem uma ideia

    especfica sobre o que natureza (GIANNINI, 1994). A cultura d o

    recorte da natureza. por isso que a anlise antropolgica para que a

    Antropologia deixe de ser assimtrica deve(ria) trabalhar com o

    coletivo natureza-cultura, ou com os hbridos de natureza e cultura.

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    Como afirma Latour: no existem nem culturas diferentes ou

    universais nem uma natureza universal. Existem apenas naturezas-

    culturas, as quais constituem a nica base possvel para comparaes

    (LATOUR, 1994, p. 102). E todas as naturezas-culturas, cada uma a

    seu modo, construram - e constroem os seus seres humanos, no

    humanos e divinos (sobrenaturais). Com isso, Latour (1994) joga por

    terra as antigas noes de que a humanidade estava relacionada com a

    esfera autnoma da cultura, enquanto que a animalidade estava atrelada

    ao domnio da natureza. Como advoga o autor, humanos e animais so

    hbridos de natureza e cultura (LATOUR, 1994).

    Philippe Descola (1998), dialogando com Latour, no v limites

    rgidos entre a natureza e a sociedade, sendo ambas significativas na

    construo cosmolgica das sociedades indgenas. Ambas esto em

    constante interao inclusive nas sociedades ditas modernas (afinal,

    como defende Bruno Latour (1994), jamais fomos modernos). Segundo

    Descola (1998), os ocidentais e os pr-modernos (como as

    sociedades indgenas) mantm relaes totalmente diferenciadas com as

    suas naturezas. Para os pr-modernos, a natureza no existe fechada

    em uma esfera autnoma, como concebido entre os ocidentais. Os

    pr-modernos no separam o universo da cultura do universo da

    natureza, posto que consideram tambm os animais e plantas como

    sujeitos sociais, mantendo com estes relaes sociais. Diferentemente do dualismo moderno que distribui humanos e no-humanos em dois domnios ontolgicos mais ou menos estanques, as cosmologias amaznicas estabelecem uma diferena de grau, no de natureza, entre os homens, as plantas e os animais (DESCOLA, 1998, p. 25).

    Ento, recapitulando, a modernidade est alicerada na

    concepo da unicidade da natureza e da multiplicidade da cultura. J

    na concepo dos amerndios, a cultura universal e a natureza

    particular. Os primeiros operam no multiculturalismo, enquanto que os

    segundos, no multinaturalismo. E estas diferenciaes atingem (e

    acarretam) diferentes concepes das relaes entre corpos e espritos.

    Para os amerndios, humanos e no humanos tm os mesmos espritos,

    mas locados em corpos diferentes no o corpo biolgico, mas o que

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    constitui um habitus8. O corpo diferente faz com que cada um veja de

    forma diferente, de um ponto de vista diferente, sob uma diferente

    perspectiva. baseado nesta observao que Viveiros de Castro afirma

    que o perspectivismo um maneirismo corporal (VIVEIROS DE

    CASTRO, 2002, p. 380).

    Viveiros de Castro explica que

    Perspectivismo foi um rtulo que tomei emprestado ao vocabulrio filosfico moderno para qualificar um aspecto muito caracterstico de vrias, seno todas, as cosmologias amerndias. Trata-se da noo de que, em primeiro lugar, o mundo povoado de muitas espcies de seres (alm dos humanos propriamente ditos) dotados de conscincia e de cultura e, em segundo lugar, de que cada uma dessas espcies v a si mesma e s demais espcies de modo bastante singular: cada uma se v como humana, vendo todas as demais como no-humanas, isto , como espcies de animais ou de espritos.

    Assim, por exemplo, as onas se vem como gente, vendo ainda vrios elementos de seu universo como se consistissem de objetos culturais: o sangue dos animais que matam visto pelas onas como cerveja de mandioca etc. Em contrapartida, as onas no nos vem, a ns humanos (que naturalmente nos vemos como humanos), como humanos, mas sim como animais de presa: porcos selvagens, por exemplo. por isso que as onas nos atacam e devoram. Quanto aos porcos selvagens (isto , aqueles seres que vemos como porcos selvagens), estes se tambm se vem como humanos, vendo, por exemplo, as frutas silvestres que comem como se fossem plantas cultivadas -mas vem a ns humanos como se fssemos espritos canibais (pois os caamos e comemos) (VIVEIROS DE CASTRO apud MOURA, sem data, p. 1 grifos meus).

    Se o etnocentrismo europeu consiste em negar que outros corpos

    tenham a mesma alma; o amerndio, em duvidar que outras almas

    8 Alis, Lvi-Strauss (1957), em Tristes Trpicos, j se debruava sobre esta questo observando que,

    quando dos primeiros contatos entre europeus e indgenas, os primeiros se perguntavam se os indgenas tambm eram humanos e possuam alma, e os segundos investigavam se os europeus tinham o mesmo corpo que eles.

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    tenham o mesmo corpo (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 381). Em

    outras palavras, a modernidade supe uma continuidade fsica e uma

    descontinuidade metafsica, sendo o esprito o distinguidor entre

    homens e animais; enquanto, para os amerndios, existe uma

    continuidade metafsica e uma descontinuidade fsica, sendo o corpo o

    elemento diferenciador entre homens e animais. Como observou

    Manuela Carneiro da Cunha (apud VIVEIROS DE CASTRO, 2002), entre os

    amerndios tambm o corpo e no o esprito que distingue os vivos

    dos mortos.

    Com a no dicotomizao dos amerndios entre natureza e

    sociedade, entre humanos e no humanos, a atividade de caa adquire

    as formas do canibalismo. Como observou Carlos Fausto, nas ontologias amerndias, a intencionalidade e a conscincia reflexiva no so atributos exclusivos da humanidade, mas, potencialmente, de todos os seres do cosmos. Em outras palavras, animais, vegetais, deuses e monstros podem tambm ser pessoas e ocupar a posio de sujeito na relao com os seres humanos. [...]. Se predar animais equivale a matar pessoas, a caa resvala imediatamente na guerra; se ambos os fenmenos inscrevem-se no campo das relaes sociais entre sujeitos dotados de inteno, o consumo alimentar resvala imediatamente no canibalismo. Pode-se, pois, perguntar, parafraseando Clastres, se o horizonte da caa no o canibalismo generalizado, se a caa no de fato uma guerra aos animais? (FAUSTO, 2002, p. 9).

    Ou, nas palavras de Eduardo Viveiros de Castro, na Amaznia indgena, as relaes entre humanos e no-humanos, sociedade e natureza, no so concebidas como relaes naturais, mas como relaes elas mesmas sociais. Guerra e caa so, literalmente, um mesmo combate: um combate entre seres sociais, isto , entre sujeitos (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 286 grifos do autor).

    Tnia Stolze Lima (2005) observou que entre os Yudj os animais

    tm uma vida social bastante intensa, sendo que as vrias espcies se

    relacionam entre si. Estes relacionamentos so bastante complexos,

    envolvendo tambm cultura material. Os animais tambm fazem cauim

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    e o usam em suas relaes sociais (LIMA, 2005).

    J para Maurcio Soares Leite, na viso de mundo Wari a posio do sujeito que define sua perspectiva. [...]. H, em sua cosmologia, animais dotados de humanidade e capazes de pred-los [aos Wari]. Ao atuarem como predadores afirmam a sua posio humana, enquanto os Wari passam a ser Karawa [animais] (LEITE, 2007, p. 91 grifos meus).

    Das informaes apresentadas nas pginas acima, destaco

    (inclusive grifei algumas palavras nas citaes) que, no perspectivismo

    amerndio, no h a separao estanque entre os domnios da natureza

    e da cultura, sendo que os animais tambm se configuram em sujeitos

    sociais e mantm relaes de tipo social com os humanos. Alm disso,

    os animais, na sua perspectiva, tambm se vem como humanos, ao

    passo que percebem os humanos como animais. Mais do que isso,

    dentre as caractersticas da animalidade, possvel afirmar que estes

    seres so dotados de cultura, que se valem de objetos culturais,

    produzindo inclusive cultura material. Quanto cultura material, em

    campo, vrias vezes ouvi os Mby-Guarani contarem histrias de

    animais usando panelas, instrumentos musicais, arco e flecha, etc. E,

    como observou Tnia Stolze Lima (2005), entre os Yudj, os animais da

    cosmologia indgena, inclusive, produzem o seu cauim, bebida ritual

    formadora da humanidade.

    Mas, no passado mtico, essa produo cultural dos demais seres

    do cosmos nem era uma questo de perspectivismo. Ocorre que, no

    pensamento amerndio, como apontado por autores como Viveiros de

    Castro (2002), inicialmente homens e animais no se distinguiam. Os

    animais de hoje eram, no passado mtico, homens. Todos os animais

    so ex-humanos. Ou, como afirma Viveiros de Castro, a condio

    original comum aos humanos e animais no a animalidade, mas a

    humanidade (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 355).

    Baseado nas consideraes acima, advogo que, ao menos entre os

    grupos indgenas, no se pode usar o advento da culinria como

    separador entre os campos da natureza e da cultura. Em primeiro lugar

    porque estes domnios no se encontram isolados um do outro, em

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    segundo lugar porque os seres da natureza tambm so dotados de

    humanidade e cultura e, na sua perspectiva, tambm apresentam

    elaboraes culinrias. Mas isso no to simples assim. Ocorre que

    embora a culinria, entre os indgenas, no possa ser usada como

    separador de natureza e cultura, ela muito til para o estabelecimento

    e a manuteno da condio humana. Dentro do hibridismo de natureza

    e cultura (natureza-cultura), para lembrar de Bruno Latour (1994), os

    humanos se valem da culinria para assegurar a sua condio de

    humanos, evitar a condio de animais, e almejar uma condio divina

    (seres da sobrenatureza). Isso na perspectiva dos humanos. Para a

    minha linha de argumentao, esse ponto muito importante para a

    sequncia do texto. Mas, pelo exposto, retiro o foco da srie natureza-

    cultura, para concentrar esforos na srie animalidade-humanidade-

    divindade. Julgo que no devemos nos questionar se um ser pertence

    natureza ou cultura, posto o constatado hibridismo. A questo

    principal qual a posio deste ser no cosmos? Ele humano, animal ou

    divino? Ou melhor, devemos nos perguntar se determinado ser est

    humano, animal ou deus, j que estas condies podem ser modificadas

    pelas aes destes seres, sobretudo pela observncia das regras

    culinrias. Para tal argumentao, me valho das minhas pesquisas entre

    os Mby-Guarani, e inicio a argumentao pela conquista do fogo.

    Os Mby-Guarani so uma das parcialidades tnicas dos Guarani9.

    Para este grupo o fogo (tat) tem alma. Ele o prprio anderu,

    principal divindade do grupo. Porm, anderu no qualquer tipo de

    9 Os grupos indgenas brasileiros so primeiramente classificados em quatro troncos lingusticos: Tupi,

    Macro-J, Karib e Aruak. Fora destas categorias existem vrias famlias lingusticas menores, com um nmero menor de lnguas, vivendo em reas mais restritas com populaes menores. H tambm as chamadas lnguas isoladas, que no apresentam parentesco lingustico com as outras lnguas indgenas (MONTSERRAT, 1994). Em uma segunda linha de categorizao, os troncos lingusticos so divididos em famlias lingusticas. O tronco Tupi composto por sete famlias lingusticas. Destas, a mais expressiva a famlia Tupi-Guarani. As famlias lingusticas, por sua vez, so agrupamentos de vrias lnguas aparentadas. A lngua guarani pertence famlia lingustica Tupi-Guarani. Mas, a lngua guarani ainda subdividida em dialetos (MONTSSERRAT, 1994; BASINI RODRIGUEZ, 1999; LADEIRA e MATTA, 2004). No Brasil habitam trs grupos falantes da lngua guarani: Kayov, Mby-Guarani e Nandev. Os Kayov tambm so conhecidos, principalmente no Paraguai, por Pa Tavyter. E os Nandev tambm so chamados de Xirip ou Av-Xirip (LADEIRA e MATTA, 2004). Os Kayov habitam o estado brasileiro do Mato Grosso do Sul e a poro leste do Paraguai. Os Nandev tm as suas aldeias no Paraguai e nos estados brasileiros do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paran, So Paulo e Mato Grosso do Sul (LADEIRA e MATTA, 2004). J os Mby-Guarani habitam os estados litorneos brasileiros, desde o Esprito Santo at o Rio Grande do Sul. Suas aldeias tambm so encontradas nos territrios argentino, paraguaio e uruguaio. Algumas famlias mby-guarani tambm estabeleceram aldeamentos nos estados do Par e do Tocantins (LADEIRA e MATTA, 2004).

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    fogo. um fogo especial, somente obtido de forma tradicional pelos

    Mby-Guarani. A origem do fogo bem pontuada na cosmologia mby-

    guarani, sendo um dos relatos mticos mais conhecidos e repetidos

    entre os membros do grupo. Aps a destruio da Yvy Tenond

    (Primeira Terra)10, o fogo ficou sendo posse exclusiva dos corvos. Os

    deuses, ento, tiveram que roubar o fogo dos corvos para dar aos

    Guarani. Para tanto, foram auxiliados pelo sapo (kururu), um dos heris

    mticos. Como narrou Pierre Clastres, um dos deuses Finge-se de morto e os corvos chegam para cozinh-lo e com-lo. O falso morto chacoalha-se e espalha as brasas, e o sapo consegue engolir uma pequena quantidade delas que, uma vez vomitada, colocada no interior de algumas madeiras determinadas11 (P. CLASTRES, 1990, p. 103).

    Este fogo roubado dos corvos o fogo tradicional dos Mby-

    Guarani, o prprio anderu. O interessante que os Mby-Guarani

    no fazem esse fogo, eles extraem esse fogo. Ocorre que, aps ser

    roubado dos corvos, o fogo foi guardado dentro de uma madeira

    chamada xip. com esta madeira que os Mby-Guarani confeccionam

    o seu aparelho gneo, utilizado pelo grupo desde tempos imemoriais. O

    aparelho se resume a dois pedaos de xip, um mais curto e mais

    grosso serve de base (cerca de trinta centmetros de comprimento por

    dez centmetros quadrados de seco transversal). O outro pedao, mais

    delgado e comprido (entre cinquenta e sessenta centmetros de

    comprimento, com seco transversal de dois ou trs centmetros

    quadrados), encaixado no pedao maior. A base possui um orifcio

    com ranhuras adjacentes. neste orifcio que se encaixa a vara,

    devendo ser fortemente friccionada com movimentos circulares e

    rpidos. A frico extrai o fogo. A vara segurada entre as palmas

    10 Segundo os Mby-Guarani, antes da Terra atual (Yvy Pyau) existiu uma outra, um primeiro mundo,

    chamado de Yvy Tenond, que foi destrudo pelo dilvio universal (iporum). A Yvy Tenond era perfeita e habitada pelos deuses. Mas um incesto entre dois dos principais personagens cosmolgicos dos Mby-Guarani despertou a ira das demais divindades, que acabaram destruindo a Primeira Terra. Os Mby-Guarani j existiam quando ocorreu o iporum. Com a destruio da Yvy Tenond foi criada a Terra atual, Yvy Pyau, para os Mby-Guarani viverem, e, junto com a nova Terra, foram criadas todas as condies necessrias para a sobrevivncia dos Mby-Guarani, inclusive os alimentos que hoje eles consideram tradicionais. Cf. Tempass (2010). 11

    Segundo os Mby-Guarani, os sapos, ainda hoje em dia, possuem a faculdade de entrar em contato com o fogo sem se queimar.

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    das duas mos espalmadas, e empurrando uma das mos para frente ao

    mesmo tempo que a outra empurrada para trs obtm-se o

    movimento necessrio para acionar o aparelho12.

    Imagem 1: Aparelho gneo usado pelos Mby-Guarani.

    Contudo, atualmente o aparelho gneo no muito utilizado.

    Ocorre que o fogo obtido, por ser sagrado, deve ser preservado, sendo

    constantemente alimentado. anderu no pode ser apagado. Quando

    os Mby-Guarani no possuem condies de alimentar tal fogo, eles

    geralmente o do para vizinhos, transportando algumas brasas at

    outra fogueira. Ou, em outras ocasies, como nos deslocamentos pelo

    seu territrio, os Mby-Guarani fazem questo de transportar com eles

    o seu fogo sagrado ento, troncos em brasa so carregados durante

    dias de caminhada. Diante da exigncia de manter o fogo vivo, os

    Mby-Guarani optam, atualmente, por acender as suas fogueiras com

    palitos de fsforo ou isqueiros, deixando o uso do aparelho gneo

    12 Os Mby-Guarani sempre afirmaram que a planta do xip abundande nas matas prximas a algumas

    aldeias onde realizei o trabalho de campo. Por diversas vezes, nas caminhadas pela mata, solicitei aos Mby-Guarani para que me mostrassem a planta do xip, mas eles nunca me mostraram a planta, sempre dando alguma desculpa ou mudando de assunto. Depois descobri que essa planta muito importante e sagrada para os Mby-Guarani, devendo ser preservada do alcance dos juru (brancos).

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    apenas para os fogos de uso ritual.

    Destaco que, quando ocorreu o roubo do fogo, os corvos e o

    sapo, e tambm os outros animais, estavam humanos. Todos eram

    humanos. E j naquele tempo os Mby-Guarani contaram com a

    cooperao dos demais seres que povoam o seu cosmos, me refiro s

    divindades e aos, agora, animais. Em outras palavras, se observarmos

    que parte dos humanos de outrora agora so animais, temos que

    animais e deuses cooperaram para que os Mby-Guarani conquistassem

    a exclusividade na posse do fogo. E essa cooperao ainda hoje opera

    na cosmologia Mby-Guarani, possibilitando a sua alimentao. E isso

    pode ser explicado pela sua condio ambivalente.

    Os vrios povos da famlia lingustica Tupi-Guarani apresentam

    uma mnima diferenciao lingustica entre si e possuem uma ampla

    disperso geogrfica. Comum a todos eles so os fortes preceitos

    cosmolgicos, enquanto que os sociolgicos podem ser considerados

    fracos. Segundo Viveiros de Castro (1986), dentre outros autores13, os

    povos Tupi-Guarani so marcados pela ambivalncia. A sociedade ela mesma uma margem ou fronteira, um espao precrio entre Natureza (animalidade) e Sobrenatureza (divindade). por esta mesma razo, sugiro, que a morfologia social e o cdigo sociolgico so plsticos e fludos, entre os Tupi-Guarani (VIVEIROS DE CASTRO, 1986, p. 115, grifos do autor).

    Desta forma, a cosmologia Tupi-Guarani opera em triadismo,

    pois possui uma srie animal, uma srie humana e uma srie divina. Os

    Tupi-Guarani, embora enraizados na srie humana, direcionam as suas

    aes com vistas s outras duas sries, objetivando a divina e evitando a

    animal. Posto que estes trs domnios, de fronteiras tnues, podem ser

    transpostos. Assim, para os Tupi-Guarani, o foco no o termo

    central, a sociedade, mas os dois outros o animal e o deus (VIVEIROS

    DE CASTRO, 1986, p. 116). Em outras palavras, o foco no est no

    presente humano, mas no futuro animal ou divino. Ou, nas palavras de

    Viveiros de Castro (1986, p. 120 grifos do autor), a questo no de

    Ser, mas de Devir.

    13 Cf. tambm Pierre Clastres (1990) e Hlne Clastres (1978), autores com quem Viveiros de Castro

    (1986) dialogou.

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    Muito desta noo que Viveiros de Castro aprofundou e ampliou

    para os Tupi-Guarani em geral foi inspirado nos trabalhos de Hlne

    Clastres (1978) entre os grupos Guarani. Para esta autora, diante dos

    trs diferentes domnios, os Guarani seriam um entre. Pois a sociedade

    estaria entre os domnios da animalidade e da divindade

    simetricamente disposta entre os dois. Para adentrar os outros

    domnios, os Guarani teriam que renunciar vida social14. Contudo,

    minha etnografia aponta algumas incongruncias com as informaes

    acima.

    Os Mby-Guarani, talqualmente o que foi apontado acima,

    operam cosmologicamente em trs domnios: a sobrenatureza

    (divindades), a sociedade (mby-guarani) e a natureza (animais e

    plantas). No domnio da natureza, as plantas so muito mais passivas

    que os animais, por isso, muitas vezes, este domnio simplesmente

    designado como animalidade.

    Mas, alm dos Mby-Guarani na posio central, os seres que

    ocupam as extremidades tambm so marcados pela ambivalncia. E se

    falamos em hbridos de natureza e cultura, ao menos para os povos

    tupi, precisamos acrescentar a sobrenatureza neste hibridismo. Comeo

    explicando essa ambivalncia e hibridismo pela composio dos corpos

    e almas dos Mby-Guarani.

    Em suma, e de forma bem obtusa15, os Mby-Guarani possuem

    duas pores de almas: uma sagrada16 e outra telrica. E estas almas

    habitam duas partes distintas do corpo Mby-Guarani. A alma sagrada

    circula pelo esqueleto, j a alma telrica se desenvolve na carne e no

    sangue dos Mby-Guarani. O objetivo de todo Mby-Guarani atingir a

    14 Nas palavras da autora, a via da Terra Sem Mal a renncia vida social (CLASTRES, 1978, p. 93).

    Neste caso leia-se Terra Sem Mal como o domnio sobrenatural, a morada das divindades. Mas, como veremos a seguir, tambm o ingresso para a animalidade consiste, de alguma forma, em agir de forma antissocial. 15

    Uma discusso mais detalhada sobre este ponto pode ser acessada em Tempass (2010). 16

    A alma sagrada chamada de e, e significa, literalmente, alma-palavra. Na linguagem mby-guarani , os termos alma e palavra tm o mesmo significado, o mesmo valor semntico (VILA, 2005). O e a alma e a palavra, a fala dos Mby-Guarani a expresso de sua alma. Os pais das almas-palavras, divindades chamadas de eeng Ru E te, enviam uma nova e para este mundo quando cada nova criana mby-guarani concebida. Do nascimento de uma criana os Mby-Guarani dizem que uma alma-palavra tomou assento (JECUP, 2001). Quando a criana, com cerca de um ano, comear a falar (expresso da alma-palavra) e andar (manter erguido o fluir de seu dizer) ela ser batizada no ritual do nimongara. Neste momento o nome da criana ser revelado pelo kara (xam) que coordena o ritual. O nome da criana est relacionado com o eeng Ru E te que enviou a e dela.

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    condio divina, igualando-se aos seus deuses. Os Mby-Guarani se

    diferenciam dos outros grupos indgenas porque eles so os escolhidos

    dos deuses. Eles esto neste mundo apenas passando por um perodo

    de provas. E se durarem neste mundo (PISSOLATO, 2007), se vencerem

    as dificuldades impostas pela vida terrena mediante aquisio de

    sabedoria ( preciso sabedoria para viver), eles tambm se tornaro

    deuses. E o alcance da condio divina pode ocorrer ainda neste mundo,

    na condio de vivos, sem precisar passar pela experincia da morte.

    Mas, para isso, preciso atingir o aguyje, que a perfeio do ser, um

    estado de totalidade acabada, a maturidade, o pleno desenvolvimento

    (CADOGAN, 1997).

    O aguyje consiste em ampliar a poro sagrada do conjunto corpo

    e alma e, com isso, diminuir a poro telrica. Segundo Hlne Clastres

    (1978), o aguyje a aniquilao da m natureza, restando apenas o

    esqueleto e a palavra nele contida. O aguyje alcanado quando o

    conjunto sagrado aumentar a ponto de eliminar o telrico. A alma

    sagrada deve alcanar cem por cento da alma dos Mby-Guarani. A

    poro sagrada do corpo tambm, por associao, precisa atingir a

    completude do corpo. J na direo contrria, se o conjunto corpo-alma

    telrico crescer a ponto de sufocar a parcela sagrada, os Mby-Guarani

    sero transformados em animais.

    Assim, a ambivalncia caracterstica dos Mby-Guarani. Eles, no

    conjunto corpo-alma, que os constitui na condio de humanos17, esto

    na natureza, mas seu objetivo a sobrenatureza. Uma parte dos seus

    seres sagrada, foi enviada por uma divindade, a outra parte telrica,

    em p de igualdade com os animais e vegetais. Desta forma, os Mby-

    Guarani seriam, de fato, um entre, como observou Hlne Clastres

    (1978). Entre a natureza e a sobrenatureza, entre a animalidade e a

    divindade. Mas os seres da natureza e da sobrenatureza tambm gozam

    desta condio ambivalente. Eles tambm so um entre. Os animais

    17 Pelo exposto acima, advogo que a anlise da condio mby-guarani precisa focar o conjunto corpo-

    alma, posto que de forma nenhuma se pode compreender a construo dos corpos mby-guarani dissociada do processo de desenvolvimento/aperfeioamento de suas almas, e vice-versa. Corpo e alma (ou corpos e almas, pois cada uma dessas categorias formada por duas pores de origens e finalidades distintas) no so categorias opostas, excludentes, entre os Mby-Guarani; muito pelo contrrio, elas so complementares, uma no existe sem a outra. No h corpo sem alma e nem alma sem corpo, e o desenvolvimento de um em uma direo (animalidade ou divindade) necessita que o outro tambm acompanhe a mesma direo. Cf. Tempass (2010).

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    esto entre os humanos e as divindades. Os deuses esto entre os

    seres da natureza e os homens.

    Os animais, os vegetais e tudo o que tem vida no cosmos mby-

    guarani18 possui alma. Estes seres, com suas almas, possuem uma

    posio precisa no cosmos mby-guarani. Ocorre que os Mby-Guarani

    possuem um grande nmero de divindades, e h uma forte hierarquia

    entre estas divindades. ander, por exemplo, est no topo da

    hierarquia. O nmero de divindades vai aumentando na proporo que

    os nveis das camadas vo baixando. E, como resultado dessa

    hierarquia, existem vrios grupos (kury) de seres sobrenaturais, cada

    um com a sua chefia hierrquica. Nestes termos, por exemplo, temos o

    Tup Kury, grupo de divindades subordinadas a Tup. Ou o Jakara

    Kury, grupo de seres sobrenaturais de Jakara. No cosmos mby-

    guarani existem muitos destes kury, cada divindade que tem

    subordinados detm o seu kury19. E so estas as divindades que

    enviam as pores sagradas das almas para o plano telrico. As almas

    dos Mby-Guarani so enviadas pelas divindades que esto mais no

    topo da hierarquia. J as almas dos animais e plantas podem ser

    enviadas tanto por divindades superiores quanto por divindades que

    compem a base da hierarquia. Isso depende de quo sagrado

    considerado o animal ou planta. Por exemplo, o koxi (porco do mato) e

    a pind (palmeira jeriv) so muitos sagrados para os Mby-Guarani,

    sendo considerados o prprio ander.

    Os Mby-Guarani no tm simplesmente um nome, eles so o

    prprio nome (VILA, 2005). Por exemplo, um Mby-Guarani no se

    chama Wer, ele Wer. Ocorre que o nome a prpria alma, a alma

    sagrada, tambm conhecida como alma palavra (e). Nesta lgica,

    nominar o mesmo que criar, que dar vida. Mais do que isso dotar

    essa criao de uma alma. E esse nome/vida/alma sempre estar

    subordinado a alguma divindade, mesmo que ele tambm venha a se

    tornar um deus.

    18 Para os Mby-Guarani, tambm possuem vida a terra, a gua, as rochas, etc. E, desta forma, estes

    elementos tambm so dotados de alma e participam do sistema de trocas recprocas que envolve todos os seres dos cosmos. 19

    O interessante que os Mby-Guarani, mesmo na condio humana, tambm pertencem a estes kury sobrenaturais. Os Mby-Guarani, que se consideram os escolhidos dos deuses, e que tm o potencial para tambm se tornarem deuses, pertencem aos kury das divindades que lhes enviaram a sua alma sagrada. E esse pertencimento grupal est refletido no prprio nome dos Mby-Guarani.

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    Assim, tudo que existe neste mundo, tudo o que foi criado,

    nominado, dotado de alma, tambm est inserido no esquema

    hierrquico sobrenatural. Mas, alm disso, a atividade das divindades

    no se resume a simples criao dos seres naturais, eles tambm

    mantm um forte controle sobre estes seres. Eles so os donos destes

    seres. E cada animal ou planta tem o seu dono, chamado de j. E a

    ao destes donos visa sobrevivncia dos Mby-Guarani neste

    mundo. Ou seja, os animais e plantas foram criados e so mantidos

    neste mundo com a finalidade de servirem aos Mby-Guarani, seja

    como alimento, habitao, vestimenta, etc. Com isso temos que os

    animais e plantas tambm so um entre. Eles so seres do domnio da

    natureza, mas so criados e controlados por seres da sobrenatureza e

    se destinam ao uso da humanidade.

    Mas os Mby-Guarani no recebem de mo beijada estes

    animais e plantas dos deuses. Para ter acesso aos recursos naturais, os

    Mby-Guarani precisam cumprir uma srie de regras sociais, e realizar

    uma srie de rituais. Nestes rituais, eles vo encomendar os animais e

    plantas que necessitam junto s divindades. Nesta lgica, tambm as

    divindades esto entre a humanidade e animalidade. A demanda

    humana encaminhada aos deuses que, por via dos animais e plantas,

    atendero esta demanda20. E as divindades so constitudas por Mby-

    Guarani que atingiram o aguyje.

    Em suma, temos trs condies de seres na cosmologia mby-

    guarani: os seres humanos, os seres naturais e os seres sobrenaturais.

    Mas cada uma destas possibilidades formada pela juno das duas

    outras. Mas, voltando aos hbridos de natureza-cultura defendidos por

    Bruno Latour (1994), julgo que o mais correto acrescentar a

    sobrenatureza a este hibridismo, posto que tanto a natureza quanto a

    cultura so compostas e mediadas pelo domnio sobrenatural. Os trs

    termos, muito misturados e interdependentes, formam um nico

    conjunto. No podemos determinar se este ou aquele ser pertence a

    este ou quele domnio isso coisa ocidental , pois todos os seres

    ocupam os trs diferentes domnios ao mesmo tempo. Em outras

    20 No vou me deter neste ponto porque creio que na sequncia isso ficar mais claro, quando a culinria

    mby-guarani ser analisada enquanto mediadora entre as trs posies possveis nos cosmos mby-guarani.

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    palavras, para os indgenas, natureza, sobrenatureza e cultura no so

    um local, um espao determinado, um reduto estanque no cosmos.

    Voltando aos objetivos deste texto, mais uma vez no faz sentido

    considerar a culinria como elo de passagem de uma etapa para usar

    o termo de Lvi-Strauss , porque elas no esto espacial nem

    temporalmente separadas.

    O que existe, sim, a separao entre humanos, divindades e

    animais e plantas. Apesar de que cada um dos itens est no meio e

    junto dos dois outros. So iguais e ao mesmo tempo diferentes. E,

    dentre estes seres, os humanos que, mediante a observncia de regras

    sociais lembrando que as regras permitem identificar a existncia da

    cultura , podem mudar a sua condio e se tornarem deuses. Ou, no

    caso da no observncia das regras, podem se transformar em animais.

    Dentre estas regras, as mais elementares so as regras culinrias que

    sero analisadas a seguir. Diante do exposto, buscando esquematizar as

    relaes entre todos os termos, possibilitando que todos eles estejam

    entre os outros, esbocei o diagrama abaixo.

    Divindade

    Humanidade Animalidade

    Imagem 2: Tringulo com as possveis condies de passagem.

    Da ideia do tringulo culinrio de Lvi-Straus (1979), onde a

    culinria faz a passagem da natureza para a cultura, substitu os termos

    pelos que, para mim, representam as condies possveis que podem

    ser, de fato, alteradas pela culinria. Substitu pelos termos entre os

    quais possvel alguma passagem. A seguir irei expor as condies

    para que ocorram as passagens, tanto no sentido horrio como no

    anti-horrio do tringulo, em carter cclico. Mas, antes disso, julgo

    interessante retomar o fato de que, na concepo de Viveiros de Castro

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    (1986 e 2002), Carlos Fausto (2002), Philippe Descola (1998), entre

    outros, homens e animais mantm entre si relaes de tipo social.

    Acrescento que, na cosmologia amerndia, estas relaes sociais

    tambm envolvem as divindades. Homens, deuses e animais formam um

    nico circuito de reciprocidade, em um sistema de trocas generalizadas.

    Para ilustrar estas regras, e a reciprocidade, apresento, a seguir, quatro

    exemplos.

    Alguns seres sobrenaturais do cosmos mby-guarani, mas

    alocados nos corpos de alguns animais, agem de forma a punir qualquer

    desvio social dos indivduos. Estes, apesar de serem vrios, so

    corriqueiramente designados pelos Mby-Guarani simplesmente como

    tupixua (ou pixua), que o esprito da carne crua, ou o esprito do

    jaguar, ou ainda o esprito dos animais.

    O tupixua pode fazer mal aos Mby-Guarani de diversas formas,

    resultando sempre na transformao deles em animais (jepot). Quando

    ele adentra o corpo dos Mby-Guarani, estes comeam a agir como

    animais, sendo que um dos primeiros sintomas da ao do tupixua

    sobre uma pessoa a sua perda da capacidade de andar ereto21,

    andando ento como os animais. Outro sintoma o indivduo passar a

    se comportar como um animal, no dividindo a sua comida, interagindo

    com raiva com os demais, consumindo a carne sem o devido cozimento,

    comer unicamente carnes, etc.

    Para evitar o contgio pelo tupixua, no que diz respeito

    alimentao, preciso cozer muito bem as carnes de caa as carnes

    no caadas no possuem o tupixua. Para os Mby-Guarani, o fogo

    mata tudo, como costumam dizer. E, alm disso, o fogo o prprio

    anderu, principal divindade mby-guarani. O fogo (tat) tem alma. O

    fogo, para os Mby-Guarani, no mata o tupixua das carnes por suas

    propriedades fsicas, como ns, ocidentais, o empregamos para matar

    as bactrias, por exemplo. O fogo mata o tupixua pelas suas

    propriedades simblicas, pois um ser hierarquicamente superior

    agindo sobre um outro inferior, numa batalha espiritual. E anderu, a

    divindade mais forte, sempre vence.

    21 Andar ereto condio fundamental para a humanidade mby-guarani. Ocorre que, como j

    comentado, a alma sagrada circula pelo esqueleto dos Mby-Guarani. A vida mby-guarani depende da sua capacidade de se manter ereto, por isso os Mby-Guarani se preocupam muito em ensinar os seus filhos a andar o mais breve possvel.

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    O tupixua tambm ataca aqueles que comem a carne de caa,

    mesmo assada ou cozida, no mato. O problema nesse caso no

    simplesmente o comer a carne, mas sim o fato de no levar a carne de

    caa para a aldeia, para dividir com os demais membros da comunidade.

    Os Mby-Guarani, obrigatoriamente, precisam dividir os seus alimentos

    com os seus prximos, principalmente a carne de caa. Todo o ato

    alimentar dos Mby-Guarani feito e deve ser feito de forma

    pblica, para que os outros possam observar o que cada um consome, a

    fim de prevenir possveis consumos no partilhados. Assim, sempre que

    possvel, os Mby-Guarani preparam os seus alimentos em fogueiras do

    lado de fora das casas.

    A conduta de no partilhar os alimentos tambm faz com que os

    donos (j) destes alimentos se vinguem dos Mby-Guarani. Os donos

    no permitiro mais o acesso aos alimentos que controlam em caso da

    no observncia da regra da distribuio geral. Assim, mesmo o caador

    mais habilidoso pode passar dias no mato sem capturar nenhuma presa,

    pois, tanto quanto a ao humana, sem a ao dos donos dos animais

    no existe qualquer caada. A regra da distribuio , assim, uma

    exigncia dos seres sobrenaturais que estabelece a reciprocidade entre

    os humanos. Entretanto, tambm existe uma reciprocidade entre os

    diversos donos dos animais. Alm da sua organizao hierrquica,

    onde cada um coopera com o seu kuery, os seres donos dos animais e

    dos vegetais e at dos minerais - tambm cooperam entre si para

    punir os Mby-Guarani que agem de forma antissocial. Por exemplo, o

    dono de um tipo de tatu vai proibir o acesso esconder os seus

    controlados do caador que no distribuiu um tatu que caou. Mas os

    outros donos tambm escondero os seus controlados deste caador.

    Logo, ele no conseguir caar mais nada.

    Essa vingana dos donos tambm pode acontecer no caso de um

    Mby-Guarani caar/coletar/plantar mais do que necessita. Em outras

    palavras, matar toa um ser que no lhe pertence. E tambm no caso de

    maltratar, sem necessidade, uma planta ou animal. Ocorre que,

    maltratando algum animal, por exemplo, os Mby-Guarani esto

    maltratando a prpria divindade que os controla. E, desperdiando

    alimentos, matando mais do que o necessrio, os Mby-Guarani esto

    desperdiando o trabalho das divindades que criaram e mantiveram

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    estes animais na natureza. E esse trabalho, mais uma vez, reflete a

    reciprocidade entre as diversas espcies disponveis para a alimentao

    mby-guarani. Mais do que isso, indica tambm a reciprocidade entre

    os diversos seres sobrenaturais que controlam estas espcies.

    Sabemos que, na natureza - mesmo na concepo ocidental de

    natureza , uma espcie depende do seu habitat para sobreviver. E esse

    habitat formado por uma variedade muito grande de outras espcies.

    Ou seja, um ser depende dos outros para sobreviver. O exemplo

    clssico desse fato a cadeia alimentar. Essa noo de interdependncia

    entre os vrios seres muito forte entre os Mby-Guarani, sendo que

    eles primam por modificar o mnimo possvel a casa dos animais, por

    exemplo, o mato. Assim, eles evitam interferir desnecessariamente na

    natureza em sua volta no domnio da natureza, que tambm domnio

    da humanidade e da divindade, que a casa dos animais e tambm

    dos homens e deuses. Essa conscincia ecolgica que, sobretudo,

    uma conscincia cosmolgica - tambm est relacionada com o

    respeito aos seres sobrenaturais. Se os animais e plantas precisam uns

    dos outros para viver e tambm de terra, gua, luz e ar -, os deuses

    tambm precisam uns dos outros para criar e manter estes seres. Por

    exemplo, no adianta um dono criar um tatu e o colocar na natureza

    para o Mby-Guarani usar de alimento. Esse dono tambm precisa que

    os outros donos criem e mantenham seus seres, para que sirvam de

    alimento para o tatu do outro dono. E com isso podemos afirmar que

    existe uma cooperao recproca entre os diversos donos.

    Alm disso, tem a questo da felicidade. Os Mby-Guarani, para

    alcanarem o aguyje, precisam se sentir felizes no local onde vivem.

    Precisam viver com alegria. Caso contrrio a sua alma sagrada tender a

    voltar para junto das suas divindades, para o seu kury sobrenatural22.

    A felicidade de um Mby-Guarani s possvel se todos os que esto

    sua volta tambm se sentirem alegres. E, por isso, cada Mby-Guarani

    deve agir de forma a no desagradar ningum, para deixar feliz tambm

    22 As crianas so mais propensas a este afastamento da alma sagrada, que leva morte. Ocorre que, nas

    crianas, a alma sagrada precisa de um tempo para se acostumar com a situao humana. Durante este tempo, os adultos fazem de tudo para deixar a criana o mais alegre possvel. E isso inclui vrias concesses alimentares para bem alimentar as pores sagradas do conjunto corpo-alma das crianas. A alegria da criana a prpria alegria da alma sagrada, que tender a se acostumar entre os Mby-Guarani. Cf. Tempass (2010).

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    a alma sagrada dos outros. Nesse sentido, os Mby-Guarani buscam ser

    o mais agradveis possvel em suas relaes sociais. Isso uma forma

    de reciprocidade. A regra do partilhar obrigatrio dos alimentos coopera

    para essa felicidade geral. Na lgica Mby-Guarani, deixar um prximo

    com algum desejo alimentar ou fome faz mal para todo o grupo23, pois,

    como j dito, a felicidade de um depende da felicidade tambm do

    outro. Outro exemplo so as constantes visitaes que os Mby-Guarani

    mantm com seus amigos e parentes, mesmo entre os que habitam em

    outras aldeias, s vezes muito distantes. Visitar buscar e ao mesmo

    tempo ofertar alegrias. Os Mby-Guarani fazem de tudo para no criar

    animosidades com os seus prximos e, para tanto, possuem cuidados

    extremos com o seu modo de falar. A fala deve conter palavras doces,

    expressas de modo tambm doce (Cf. TEMPASS, 2010). Deve-se

    procurar ouvir tudo o que o outro tem a dizer, de forma respeitosa, e

    falar com moderao. Ouvir mais do que falar um sinal de respeito

    com o interlocutor.

    A raiva considerada pelos Mby-Guarani como um sentimento

    fortemente antissocial. Saber controlar a raiva uma das expresses do

    viver com sabedoria, fundamental para o alcance do aguyje. Na

    mitologia mby-guarani (e tambm dos outros grupos Guarani), o heri

    mtico Kuaray e sua me caminham pelo mundo procurando o pai de

    Kuaray, que ainda se encontra no ventre de sua me. Mas, mesmo

    dentro do ventre, Kuaray que vai indicando o caminho para a sua me.

    Durante o percurso, por vrias vezes, Kuaray pede para que a sua me

    colha algumas flores para ele. Mas, numa destas flores, havia uma

    abelha que acabou picando a me de Kuaray. Esta ficou com muita raiva

    e acabou xingando (ou batendo) em Kuaray, que, tambm zangado,

    parou de indicar o caminho para sua me. Eles buscavam a morada do

    23 Isso est sendo muito problemtico atualmente para os Mby-Guarani. Ocorre que, na maioria das

    aldeias em que realizei a minha etnografia, os Mby-Guarani passam por um quadro de extrema carncia alimentar (TEMPASS, 2010). No h alimentos para partilhar, e os poucos alimentos que eles conseguem so contraindicados para atingir o aguyje, pois so adquiridos entre a sociedade envolvente. Os Mby-Guarani perderam as suas terras tradicionais e, hoje, em sua maioria, habitam em aldeias sem as dimenses e condies ecolgicas para por em prtica o seu modo de vida tradicional. A caa, a pesca, a coleta e a horticultura formas de obteno dos alimentos tradicionais , por sua impossibilidade, perderam espao para atividades como a produo de artesanato para o comrcio. Essa a forma mais comum dos Mby-Guarani obterem recursos monetrios para comprar os seus alimentos. E isso de certa forma afeta, ou afrouxa, a forte reciprocidade do grupo, porque o alimento comprado no tem um lugar preciso no cosmos mby-guarani, no tem um dono.

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    pai de Kuaray, uma das principais divindades mby-guarani. Ou seja,

    buscavam a divindade. Mas, sem a indicao do caminho por Kuaray, a

    me dele acabou se perdendo nas bifurcaes do percurso e os dois

    foram parar na morada dos jaguares. A moral da histria, apontada

    pelos Mby-Guarani, que a raiva os levou para a animalidade.

    A felicidade, importante para os Mby-Guarani, tambm

    importante para os animais, vegetais, minerais e seres sobrenaturais

    que interagem uns com os outros. Como j exposto, os donos

    cooperam para desenvolver o seu trabalho. Mas essa cooperao

    tambm visa deixar todos satisfeitos, felizes. Assim, as relaes entre

    os seres sobrenaturais tambm deve ocorrer com docilidade. O mesmo

    vale para os animais e plantas. Os Mby-Guarani se preocupam muito

    com a felicidade destes. E, na medida do possvel, tentam interferir, ou

    no interferir, para deixar alegres os animais e vegetais. Por exemplo,

    eles tentam no modificar um determinado habitat para preservar a

    felicidade de um determinado bichinho que nele habita. Outro

    exemplo o plantio consorciado das suas plantas tradicionais. O

    consorciamento visa, entre outros efeitos, a deixar a planta crescer feliz.

    E o contato com as outras espcies com certa lgica de atrao gera

    essa felicidade. Se os Mby-Guarani se visitam visando alegria, as

    plantas, que no podem se locomover, tm que ser plantas prximas

    umas das outras. E agradando as plantas os Mby-Guarani tambm

    esto satisfazendo os donos delas. Enfim, tudo no cosmos Mby-

    Guarani muito bem pensado visando felicidade de todos os seres

    que o compem.

    Em suma, os Mby-Guarani proporcionam alegrias s plantas e

    animais, e em troca recebem alimentos. O mesmo vale na relao deles

    com os deuses, pois os deuses enviam estes alimentos. As relaes

    sociais, desta forma, no se resumem relao direta entre homens e

    animais, como afirmaram autores como Viveiros de Castro (1986 e

    2002), Carlos Fausto (2002) e Philippe Descola (1998), elas tambm

    ocorrem entre todos personagens da cosmologia mby-guarani.

    As divindades, alm de criarem e manterem os alimentos para os

    Mby-Guarani, tambm ensinaram como os alimentos tradicionais

    devem ser obtidos, armazenados, preparados, servidos e consumidos.

    Estas etapas, que integram o sistema culinrio mby-guarani, tambm

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    so muito importantes para a passagem da condio humana para a

    divina. No vou me ater a cada um destes pontos24. Uso apenas a etapa

    da preparao culinria para ilustrar, rapidamente, esse processo.

    Os Mby-Guarani cozinham os seus alimentos para atingir

    fundamentalmente quatro pontos: 1) no desperdiar nenhum alimento,

    pois alimentos cozidos so melhor conservados; 2) aumentar o

    potencial sagrado dos ingredientes utilizados visando a alimentar mais

    as pores sagradas do conjunto corpo-alma do que a parte telrica 3)

    aumentar o teor de doura dos alimentos; e 4) eliminar o tupixua, no

    caso das carnes de caa. Julgo que o primeiro e o quarto ponto no

    necessitam de maiores comentrios, posto que j foram trabalhados

    acima. O segundo e o terceiro ponto esto relacionados, j que um leva

    ao outro. Os alimentos tradicionais, todos eles, possuem um carter

    sagrado. Mesmo assim, alguns deles so mais indicados para alcanar o

    aguyje do que outros. Mas os Mby-Guarani, no quadro de

    reciprocidade com os donos dos alimentos, precisam consumir uma

    grande variedade de alimentos. No se pode ficar comendo s kumand

    (feijo tradicional), por exemplo. Comer s um tipo de alimento causa

    vermes, e estes incham os ventres dos Mby-Guarani, favorecendo a

    poro de carne e sangue dos seus corpos, onde circula a poro

    telrica da alma. Alm disso, consumir cotidianamente somente um ou

    outro tipo de alimento ir sobrecarregar os donos destes alimentos,

    que ficaro zangados. E isso acaba com a alegria recproca. Assim, os

    Mby-Guarani precisam comer de tudo um pouco, inclusive os

    alimentos tradicionais menos eficientes para o aguyje25.

    E, para potencializar os atributos sagrados dos alimentos, as

    mulheres Mby-Guarani elas que detm o poder culinrio combinam

    diferentes ingredientes e diferentes tcnicas de coco. A ao das

    mulheres que vai possibilitar ao grupo a possibilidade de se tornarem

    deuses. a culinria pensada, projetada e direcionada para a condio

    divina. E no praticar essa culinria vai afastar os comensais em longo

    prazo da divindade e aproxim-los da animalidade. Atualmente os

    Mby-Guarani tm dificuldades de obter os seus alimentos tradicionais.

    24 Trabalhei detalhadamente cada uma destas etapas em um trabalho anterior. Cf. Tempass (2010).

    25 Embora todos os alimentos tradicionais sejam mais eficientes para o aguyje do que os alimentos no

    tradicionais, como os oriundos da sociedade envolvente.

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    Mesmo com os alimentos que no tm a origem divina, que no so

    oriundos da reciprocidade dos trs tipos de seres, as mulheres, atravs

    do seu poder culinrio, conseguem transform-los em prol do aguyje.

    Os alimentos no tradicionais so prejudiciais para o aguyje, pois eles

    alimentam as partes telricas dos Mby-Guarani. Com as preparaes

    culinrias, os efeitos prejudiciais dos ingredientes exgenos so

    bastante atenuados. o jeito mby-guarani de cozinhar agindo sobre

    estes ingredientes.

    Para que a preparao culinria seja eficiente para os objetivos

    dos Mby-Guarani, fundamental que as mulheres que cozinham o

    estejam fazendo com alegria e felicidade. que elas transferem os seus

    sentimentos, atravs das comidas, para os comensais. Para isso, as

    mulheres evitam cozinhar sozinhas. A solido a tristeza. Sempre h

    vrias mulheres cooperando nas atividades culinrias, e os homens e

    crianas tambm esto sempre em volta. A sociabilidade gira ao redor

    da atividade culinria. No se pode cozinhar com raiva. Ao contrrio,

    deve-se cozinhar mediante sentimentos doces, amveis.

    O interessante que tudo no sistema de relaes entre os

    diversos seres do cosmos, inclusive os Mby-Guarani entre si, pautado

    pela docilidade. Esta docilidade que faz com que cada um dos agentes

    cumpra o seu papel, fornecendo os alimentos aos Mby-Guarani. E estes

    alimentos tm acentuado sabor doce, e com as preparaes culinrias

    eles ficam ainda mais doces. O doce leva ao doce (Cf. TEMPASS, 2010).

    Os Mby-Guarani so o que comem.

    Como j apontado, os Mby-Guarani precisam realizar uma srie

    de ritos para que os deuses lhes proporcionem os alimentos (isso uma

    das contraprestaes do sistema). Nestes ritos, os Mby-Guarani se

    valem de uma linguagem especial, sagrada, denominada de Belas

    Palavras (P. CLASTRES, 1990). Essa linguagem mais agradvel aos

    ouvidos dos deuses, posto que ela composta por palavras doces. Ou

    seja, na cosmologia mby-guarani, quem fornece doura tambm

    recebe doura em troca, mesmo que alternada entre os planos material

    e imaterial.

    Voltando ao tringulo de relaes proposto acima, embora as

    relaes entre os termos sejam recprocas, as prestaes sendo

    direcionadas num sentido e as contraprestaes voltando em sentido

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    contrrio, so os Mby-Guarani que, atravs de suas aes e

    preparaes culinrias, determinam em que sentido podem ocorrer as

    passagens das trs condies de seres possveis no cosmos mby-

    guarani. Todos do e recebem, mas os Mby-Guarani tm a

    possibilidade de, no futuro, dar e receber de forma diferente. O que

    hoje eles do como humanos, eles podem receber como deuses ou

    animais no futuro. Em outras palavras, os Mby-Guarani podem girar

    dentro do tringulo, em conformidade com as suas aes. Giram no

    sentido horrio se respeitarem a reciprocidade, as regras sociais que, na

    sua parte mais importante, esto relacionadas com as prticas

    culinrias. E, ao contrrio, giram no sentido anti-horrio, se no

    observarem as regras sociais e culinrias.

    Logo, entre os Mby-Guarani, a condio da divindade no a

    renncia da vida social, como insinuou Hlne Clastres (1978). Ao

    contrrio, somente o comprometimento com os demais entes sociais,

    sejam eles humanos, divinos ou animais, pode levar divindade.

    No incio deste artigo expus as razes pelas quais a culinria no

    pode fazer a passagem da natureza para a cultura, dado o carter

    hbrido das duas categorias. Segui a argumentao inserindo a

    sobrenatureza neste hibridismo. Depois defendi que a culinria serve,

    ao menos entre os indgenas, como elo de passagem entre as condies

    da humanidade, animalidade e divindade. Mas, essa passagem, para a

    humanidade, pode ocorrer nos dois sentidos, no caracterizando como

    uma sendo uma etapa anterior outra. Contudo, de forma um tanto

    irresponsvel, quero voltar em carter alegrico s categorias de Lvi-

    Strauss (1979) de natureza e cultura inclusive para dar um sentido ao

    ttulo escolhido para este artigo. Se adotarmos as categorias de Lvi-

    Strauss o que acho equivocado , podemos afirmar que, entre os

    amerndios, a passagem no ocorre da natureza para a cultura, mas sim

    da cultura para a natureza. Os homens (cultura), sem a culinria,

    passam a ser animais (natureza). Mas, mesmo com a culinria, a

    passagem tambm ocorre da cultura para a natureza. Explico: os

    homens, respeitando as regras, se tornaro deuses, que so os seres

    que controlam e, de certa forma, compem os seres da natureza. A

    natureza sempre o destino final, mas numa condio est-se

    controlando a natureza, como dono, na outra condio est-se na

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    natureza na condio de controlado. Logo, a culinria indgena o elo

    de passagem, sempre, da cultura para a natureza. Voltando minha

    proposta, tambm tudo sempre se direciona para os animais, vegetais e

    minerais, independente do sentido no qual os humanos girem no

    tringulo das relaes mediadas pela culinria. Mas quem gira no

    sentido horrio controla os seres da natureza, e quem gira no sentido

    anti-horrio ser controlado na natureza.

    Por fim, advogo que as noes que desenvolvi neste artigo, de

    uma forma ou de outra, em umas mais e em outras menos, tambm

    podem ser aplicadas/estendidas para outras sociedades. No apenas

    para as outras sociedades indgenas, mas tambm para as sociedades

    modernas. Sugiro que, como uma base comum a todas as culturas,

    como um trao universal, a culinria no opera a transposio dos

    domnios, mas sim modifica as categorias de vida.

    O hibridismo constatado entre os indgenas, embora com outras

    roupagens, tambm se percebe na modernidade, mesmo que de forma

    menos explcita. Afinal, o ser humano no apenas um ser biolgico,

    tambm, ao mesmo tempo, um ser social. Desta forma ele integra

    aspectos naturais e aspectos culturais. E, neste hibridismo, tambm

    para as sociedades tidas como modernas, podemos incluir a

    sobrenatureza. No dizem por a que somos todos filhos de Deus? E,

    ao contemplar uma paisagem, as pessoas no se admiram da maravilha

    da criao divina? Ou em um ambiente bonito e tranquilo no afirmam

    sentir a presena de Deus? Tambm na modernidade, a divindade

    criadora, mantenedora, controladora e, de alguma forma, se faz

    presente na natureza. Logo, o hibridismo natureza-cultura-

    sobrenatureza no se resume aos primitivos. E, desta forma, nem nas

    sociedades tidas como modernas a culinria pode fazer a passagem

    para um destes termos, posto que eles se misturam, se completam. Em

    suma, os animais no saram da natureza para virar humanos; mesmo

    cozinheiros, eles continuam na natureza.

    A culinria pode, sim, fazer a passagem de uma para outra forma

    de vida, mesmo que, na cosmologia ocidental vigente, essa passagem

    tenha ocorrido no passado, sem a possibilidade de ocorrer novamente.

    Nesse sentido, os animais hoje humanos no faro uma nova passagem

    para a animalidade. Apesar disso, ainda podemos perceber uma

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    interdependncia entre as trs condies possveis de vida:

    humanidade, animalidade e divindade. Mesmo que as relaes entre

    estes termos no fiquem to explcitas na modernidade quanto o so

    entre os primitivos, elas existem e precisam ser consideradas. Em

    quantas sociedades os homens rogam a Deus que lhes providencie o

    alimento? Isso fica explcito na frase o po nosso de cada dia nos dai

    hoje, de conhecida orao. Quantas so as preces para evitar as

    catstrofes naturais? Quantas sociedades executam ritos para agradecer

    a Deus pelos alimentos recebidos? como o Dia de Ao de Graas. Pois

    bem, estas mesmas sociedades cumprem regras alimentares com

    funes religiosas. Uns no comem durante o dia por um certo perodo

    do ano, outros no comem carne de porco, outros sem abstm da carne

    de vaca. Uns no misturam carne com leite, outros evitam carne

    vermelha em determinados dias santos. No toa que a maior parte

    das pesquisas da Antropologia da Alimentao tem relao com as

    especificidades religiosas. Forma-se, tambm aqui, o tringulo que

    propus: nos vrtices temos os humanos, os alimentos e quem lhes

    fornecem os alimentos. E entre eles existem relaes/obrigaes para

    ambos os lados. Mesmo com outra roupagem, o foco da cultura para

    voltar alegoria de Lvi-Strauss (1979) sempre est apontado para a

    natureza, por meio da culinria. Por meio da divindade que se tem

    acesso natureza.

    Ento, concluindo, me atrevo a sugerir que, se existe uma regra

    culinria comum a todas as culturas, uma base universal, esta no deve

    se resumir s relaes entre os domnios, mas sim considerar as

    relaes existentes entre as formas de vida, ou os agentes, que ocupam

    com ambivalncia estes domnios.

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