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INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 6 Edição número 26, Outubro/2017 a Março/2018 - p 1 A DANÇA DA RAÇA: LITERATURA E RACISMO CIENTÍFICO NO BRASIL. Raul Azevedo de Andrade Ferreira* RESUMO: O presente trabalho analisa um topos literário surgido nas narrativas e nas representações poéticas da literatura pós-1870: a descrição de danças e cantos populares. Utilizando uma linha de reflexão fundamentada em pressupostos da análise do discurso francesa, a pesquisa assume a presença desse lugar comum como um fenômeno discursivo indicativo de transformações significativas do interdiscurso literário. As passagens descritivas que aparecem em romances como os de Aluízio de Azevedo e de Graça Aranha, assim como em um poema de Cruz e Sousa, atestam a interferência de um discurso cientificista no campo literário daquele contexto. Este discurso, que postulava teses racistas para o entendimento do caráter nacional brasileiro, passa a ser representado pelos elementos da linguagem literária que, desse modo, participa de um amplo debate referente à questão nacional e ao destino da civilização brasileira. ABSTRACT: This paper analyzes a literary topos emerged in the narratives and in the poetic representations of the post-1870 literature: the description of popular dances and songs. Using a train of thought based on assumptions of the French discourse analysis, the research assumes the presence of this common place as a discursive phenomenon that indicates significant transformations of the literary interdiscourse. The descriptive passages that appear in novels written by Aluízio de Azevedo and Graça Aranha, as well as in a poem by Cruz and Sousa, attest the interference of a scientific discourse in the literary field of that context. The Statements of this discourse, which postulated racist theses for the understanding of Brazilian national character, are represented by the procedures of literary language. In doing so, the literature becomes a fundamental discursive device in the debate concerning the national question and the destiny of the Brazilian civilization. KEYWORDS: naturalist novel; scientific racism; literary discourse PALAVRAS-CHAVE: romance naturalista; racismo científico; discurso literário INTRODUÇÃO: LITERATURA E DISCURSO LITERÁRIO Uma das possibilidades geradas pela consideração dos pressupostos da análise do discurso na historiografia literária diz respeito à recuperação dos efeitos de sentido produzidos pelos textos em diferentes conjunturas históricas, inclusive aquelas que produziram os textos em questão. Se a produção de sentido depende de relações metafóricas e parafrásticas que se estabelecem entre as unidades linguísticas dentro de discursividades historicamente caracterizáveis (cf. POSSENTI, 2004, p.372), então a abordagem discursiva da literatura deve ser capaz de situar as formulações de sentido dos textos literários no interdiscurso responsável pela estruturação do campo que abriga o discurso literário de uma determinada época. Fazendo assim, torna-se possível recompor o regime de literatura que preside a produção literária de um período. Esta operação

A DANÇA DA RAÇA: LITERATURA E RACISMO CIENTÍFICO … · podem ser encontrados na relação do dolce stil novo com o discurso filosófico corrente, ... com o discurso que ... opera

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INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 6 Edição número 26, Outubro/2017 a Março/2018 - p

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A DANÇA DA RAÇA: LITERATURA E RACISMO CIENTÍFICO NO BRASIL.

Raul Azevedo de Andrade Ferreira*

RESUMO: O presente trabalho analisa um topos literário surgido nas narrativas e nas representações

poéticas da literatura pós-1870: a descrição de danças e cantos populares. Utilizando uma linha de

reflexão fundamentada em pressupostos da análise do discurso francesa, a pesquisa assume a presença

desse lugar comum como um fenômeno discursivo indicativo de transformações significativas do

interdiscurso literário. As passagens descritivas que aparecem em romances como os de Aluízio de Azevedo

e de Graça Aranha, assim como em um poema de Cruz e Sousa, atestam a interferência de um discurso

cientificista no campo literário daquele contexto. Este discurso, que postulava teses racistas para o

entendimento do caráter nacional brasileiro, passa a ser representado pelos elementos da linguagem

literária que, desse modo, participa de um amplo debate referente à questão nacional e ao destino da

civilização brasileira.

ABSTRACT: This paper analyzes a literary topos emerged in the narratives and in the poetic

representations of the post-1870 literature: the description of popular dances and songs. Using a train of

thought based on assumptions of the French discourse analysis, the research assumes the presence of this

common place as a discursive phenomenon that indicates significant transformations of the literary

interdiscourse. The descriptive passages that appear in novels written by Aluízio de Azevedo and Graça

Aranha, as well as in a poem by Cruz and Sousa, attest the interference of a scientific discourse in the

literary field of that context. The Statements of this discourse, which postulated racist theses for the

understanding of Brazilian national character, are represented by the procedures of literary language. In

doing so, the literature becomes a fundamental discursive device in the debate concerning the national

question and the destiny of the Brazilian civilization.

KEYWORDS: naturalist novel; scientific racism; literary discourse

PALAVRAS-CHAVE: romance naturalista; racismo científico; discurso literário

INTRODUÇÃO: LITERATURA E DISCURSO LITERÁRIO

Uma das possibilidades geradas pela consideração dos pressupostos da análise do

discurso na historiografia literária diz respeito à recuperação dos efeitos de sentido

produzidos pelos textos em diferentes conjunturas históricas, inclusive aquelas que

produziram os textos em questão. Se a produção de sentido depende de relações

metafóricas e parafrásticas que se estabelecem entre as unidades linguísticas dentro de

discursividades historicamente caracterizáveis (cf. POSSENTI, 2004, p.372), então a

abordagem discursiva da literatura deve ser capaz de situar as formulações de sentido dos

textos literários no interdiscurso responsável pela estruturação do campo que abriga o

discurso literário de uma determinada época. Fazendo assim, torna-se possível recompor

o regime de literatura que preside a produção literária de um período. Esta operação

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elimina a ambiguidade do termo discurso literário e permite que ele seja considerado

uma noção útil aos estudos literários (cf. MAINGUENEAU, 2016, p.09). Por meio dela,

pode-se falar em discurso literário unicamente quando ele estiver relacionado a uma

conjuntura interdiscursiva específica. No caso do presente estudo, falaremos em discurso

literário tendo em mente o interdiscurso atuante no campo literário brasileiro entre os

anos de 1870 e 1920i.

Quando se parte do princípio de que os textos literários compõem uma formação

discursiva própria, que a literatura constitui um discurso, deve-se ter em mente que o

discurso literário possui suas singularidades. Uma das mais salientes é que suas fronteiras

são extremamente porosas, o que torna a dependência com o interdiscurso a primeira

propriedade do discurso literário que deve ser observada pelo analista. A história da

literatura revela que os textos dotados de propriedades estéticas são elaborados a partir de

uma relação de intimidade fundamental com outras instâncias discursivas. Exemplos

podem ser encontrados na relação do dolce stil novo com o discurso filosófico corrente,

do barroco com o cristianismo católico, do neoclassicismo com o pensamento ilustrado,

do romantismo com os discursos nacionalistas etc. Os exemplos são apenas

generalizações simplificadoras, pois a relação que se dá entre o discurso literário nunca é

apenas com uma outra instância discursiva, mas com uma série de formações discursivas

que são agenciadas pela dominância do interdiscurso, i.e.: com o discurso que exerce mais

poder dentro de uma conjuntura.

Por conta disso, não é incomum que em determinados contextos a literatura seja

instrumentalizada por determinados grupos sociais de modo que ela sirva como uma arma

de propaganda ideológica, efeito normalmente mascarado pela atribuição de um caráter

pedagógico, denunciativo ou de crítica social aos textos literários. Os discursos

dominantes cooptam outras formações discursivas alinhadas ao posicionamento que eles

pressupõem e as agencia na elaboração de uma linguagem capaz de conferir uma feição

estética a uma matriz de sentido. A literatura, neste caso, reforça os sentidos presentes

nas formações discursivas que lhe servem de "bateria", i.e.: que lhe alimentam de sentidos

que passam a receber uma formulação artística a partir dos procedimentos disponíveis à

linguagem literária naquele momento.

A modalidade instrumentalizada, porém, não é o único modo de inserção da literatura no

interdiscurso de um contexto social. Esta seria a maneira correspondente ao do bom

sujeito de que nos fala Pêcheux (2009, p.199). Há também exemplos de autores que

assumiriam a postura contrária, de maus sujeitos, responsáveis pela atribuição de uma

função subversiva à literatura. Neste caso, os textos literários atuariam como

desarticuladores das redes de sentido inerentes aos discursos dominantes. Este é um

fenômeno que começa a se tornar comum com a literatura produzida pós-Baudelaire e

agravada ao longo da modernidade artísticaii.

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A contaminação do discurso literário com sentidos estruturantes de outros discursos pode

ser observada a partir da análise da regularidade de certos efeitos de sentido veiculados

pelos procedimentos literários. A noção de regularidade de enunciados, de repetição de

sentidos, é fundamental para o conceito de formação discursiva, uma vez que já Foucault

a definia como uma regularidade entre enunciados (FOUCAULT, 2010, p.42)

responsáveis pelo aparecimento dos objetos. Pêcheux desenvolverá esta ideia ao afirmar

que a estabilização do sentido das palavras decorre da ativação de implícitos presentes

em uma memória discursiva (PÊCHEUX, 2009)iii. A memória “prende” os termos

linguísticos a certos implícitos e desse modo os enunciados podem se articular dentro de

um padrão regular.

Podemos considerar, portanto, que as imagens, metáforas, a retórica, a composição das

personagens, os topoi literários, enredos e demais procedimentos da linguagem artística

que se encontram dispersos nos vários gêneros literários ativam certos implícitos

presentes no interdiscurso. Isto, por um lado, confere uma condição de legibilidade aos

textos literários, por outro faz com que os textos se configurem como vetores naquilo que

Pêcheux denominou de "jogo de força na memória" (PÊCHEUX, 2007 p.53), de maneira

que os textos literários ora podem atuar corroborando a regularidade semântica inerente

às discursividades hegemônicas, ora podem desregulá-las, atuando como um

"acontecimento discursivo novo" (PÊCHEUX, 2007 p.52). Este pode ser um critério para

se definir um autor como inovador ou reacionário.

As considerações acima podem ser utilizadas para se compreender um aspecto da

literatura brasileira: a sua dificuldade em se desvincular dos discursos que promoviam

uma representação institucionalizada da realidade nacional. Este aspecto foi mais

proeminente sobretudo na literatura produzida durante os oitocentos e ele já foi

apresentado por alguns historiadores das letras brasileiras. Luiz Costa Lima (1989, p.146)

associa a precária reflexividade do nosso romantismo ao cunho institucional da literatura

produzida sob sua égide. Antônio Candido (1981, p.26) identifica um caráter

programático que tolheu a liberdade criativa dos escritores. João Alexandre Barbosa, por

sua vez, parece perceber um fenômeno semelhante quando indica que a crítica literária

nacional sempre buscou “interpretar os produtos culturais em função de uma ideia geral

do país” (BARBOSA, 1990, p.63). Este caráter institucionalizado da literatura brasileira

revela um fenômeno discursivo recorrente: a subordinação da literatura a determinadas

representações do país que, por sua vez, se ligam aos projetos políticos das classes sociais

que conseguiam assumir postos na administração pública.

A fim de testar a validade das hipóteses levantadas, a investigação que aqui é empreendida

opera um recorte na literatura produzida nos 50 anos que preenchem o último quartel do

século XIX e o primeiro do século XX. O objeto do recorte em questão será um topos

literário da época: a descrição da música e da dança realizada pelos personagens em

alguns momentos do enredo de suas narrativas ou representada pela poesia lírica. Mais

especificamente, a dança que se realiza assim que algum personagem começa a tocar o

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chorado. A análise deste topos permitirá reconhecer a subordinação dos procedimentos

literários a uma matriz de sentido responsável pela elaboração de uma representação

racial e racista da brasilidade.

1. PASSOS FURIOSOS, MENTES TRANSTORNADAS

O episódio no qual uma personagem começa a dançar de maneira extravagante passa a

ser recorrente na literatura produzida nas últimas décadas do século XIX. Este fenômeno

liga-se à transformação ocorrida nas condições discursivas nas quais o discurso literário

se elabora e a uma memória discursiva referente ao estado do campo literário daquela

conjuntura. Tal ligação vincula o texto literário a determinantes que se fazem presentes

no plano histórico, social e ideológico. Exemplos podem ser colhidos em romances de

Aluízio de Azevedo, Graça Aranha, assim como na poesia de Cruz e Sousa. Um primeiro

exemplo pode ser retirado de O Cortiço, de Aluízio de Azevedo, na antológica cena da

dança realizada por Rita Baiana:

Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e

bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa

sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante;

já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer

toda, como se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se

não toma pé e nunca se encontra fundo. Depois, como se voltasse à vida soltava

um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas,

descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava,

miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que

dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra

por fibra, tilitando. (AZEVEDO, 1997, p.72)

A passagem descreve, em sua maior parte, os movimentos empregados pela personagem.

São movimentos exagerados, enérgicos, frenéticos e estranhos. Rita salta, rebola,

bamboleia, treme, desce e sobe. Balança os quadris, empina a barriga, recua os braços e

estala os dedos. A descrição, contudo, não se resume aos movimentos realizados durante

a performance, mas também incide sobre certos efeitos fisiológicos e psicológicos que a

dança acaba por manifestar. O narrador parece descrever tanto um transe, no qual Rita

ora desfalece, ora ressuscita, como uma doença, na qual a dançarina ofega, geme e tem

febre. Seu estado mental parece ser tão estranho quanto os movimentos que emprega na

dança, uma vez que ela tanto sofre quanto goza. O componente erótico também é um

elemento importante na caracterização da dança realizada por Rita. Sua condição contagia

aqueles que a assistem e que escutam a mesma música, todos então entram em uma

espécie de transe coletivo: "E as palmas insistiam, cadentes, certas, num ritmo nervoso,

numa persistência de loucura" (AZEVEDO, 1997, p.72) e outros iniciam uma dança

igualmente maluca:

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E, arrastado por ela, pulou à arena o Firmo, ágil, de borracha, a fazer coisas

fantásticas com as pernas, a derreter-se todo, a sumir-se no chão, a ressurgir

por inteiro com um pulo, os pés no espaço, batendo os calcanhares, os braços

a querer fugirem-lhe dos ombros, a cabeça a querer saltar-lhe." (AZEVEDO,

1997, p.73).

Na descrição dos passos realizados por Firmo, o narrador caracteriza os movimentos que

compõem sua dança como não naturais, pois vão contra as leis da física e da anatomia do

corpo humano. No caso de Rita, ainda que os movimentos não sejam tão fantásticos, é

também indicado que sua performance desafia a fisiologia habitual do organismo

humano, haja vista a condição emocional que lhe acomete enquanto dança ser indicada

como patológica e irracional. Este caráter não natural, doentio e exótico dos movimentos

e dos estados emocionais são também indicados pelas ideias de loucura e de embriaguez

que acompanham as descrições das coreografias. Por meio delas, a dança aparece como

uma expressão espontânea de um estado psicológico anormal no qual entram as

personagens assim que começam a ouvir a música crioula. A dança exótica não seria,

portanto, fruto do ensaio, do domínio de uma técnica ou arte, ela é apresentada como o

efeito colateral da música tocada pelo cavaquinho do Porfiro e pelo violão do Firmo que,

para usar um termo empregado pelo próprio narrador, possui um efeito despótico sobre

as pessoas. A música provoca o transe e leva todos aqueles que a escutam a uma espécie

de transtorno mental: "e aquela música de fogo doidejava no ar como um aroma quente

de plantas brasileiras, em torno das quais se nutrem, girando, moscardos sensuais e

desouros venenosos, freneticamente, bêbedos do delicioso perfume que os mata de

volúpia" (AZEVEDO, 1997, p.71).

Não é em O cortiço que a cena da dança exótica aparece pela primeira vez na obra de

Aluízio de Azevedo. Uma cena semelhante ocorre em O Mulato durante uma festa de São

João realizada no sítio de uma das personagens, Dona Bárbara. Os convidados iniciam

dançando a polca, que não recebe nenhuma descrição detalhada, até que alguns dos

convidados, aos gritos e batendo palmas, pediam que tocassem o chorado. Neste

momento o narrador passa a descrever os passos dos dançarinos:

E a música, sem se fazer de rogada, gemeu a lânguida e sensual dança

brasileira.

De pronto, Casusa e Sebastião pularam no meio da sala e puseram-se a sapatear

agilmente, com barulho, estalando os dedos e requebrando todo o corpo. Em

breve arrastaram o Serra, o Faísca e o Freitas: e as moças, chamadas por

aqueles, entraram na irresistível brincadeira. Elas rodavam na pontinha dos

pés, o passo miudinho e ligeiro, os braços dobrados e a cabeça inclinada, ora

para um lado, ora para outro, estalando a língua contra o céu da boca, numa

volúpia original e graciosa.

Os velhos babavam-se.

Quebra! Berrava o Casusa entusiasmado. Quebra, meu bem! E regamboleava

furiosamente a perna.

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O Chorado atingira afinal a sua fase de loucura. Os que não podiam dançar

espectavam, acompanhando a música com movimentos de corpo inteiro e

palmas cadenciadas e espontâneas. (AZEVEDO, p. 67, 2003)

Apesar de um tanto mais tímida que a cena da dança de Rita Baiana, esta descrição já

contém muitos elementos que aparecem na cena presente no romance publicado em 1890.

Nos dois casos, as personagens executam movimentos rápidos, frenéticos e exagerados.

A ideia de fúria chega a ser associada aos movimentos das pernas. Todos estalam os

dedos, rebolam, dobram os braços, pulam, saltam, mexem a cabeça para vários lados. Em

ambas danças, um dos elementos que mais chamam atenção é o seu componente erótico.

A dança executada na festa de Dona Bárbara é sensual e seus dançarinos, ao realizarem

os movimentos, são acometidos por uma "volúpia graciosa". No caso da dança realizada

por Rita, este componente aparece de forma ainda mais intensa e exagerada, pois ao

dançar a personagem parece entrar num transe orgástico. Assim como a luxúria e a fúria

dos movimentos, a loucura momentânea dos dançarinos é mais um denominador comum

das duas descrições.

As duas descrições são bastante parecidas, mas não exatamente iguais. A que aparece em

O Mulato é mais tímida se comparada à presente em O Cortiço. Nesta, há a presença da

ideia de sofrimento, de uma dor que acompanha o prazer erótico presente na dança. Há

também maiores ousadias vocabulares e uma maior carga metafórica nas imagens

utilizadas. O prazer de Rita é como um azeite grosso; os membros de Firmo quase se

descolam de seu corpo; a música doideja no ar "como um aroma quente de plantas

brasileiras". A presença do calor, indicado por uma sinestesia com o aroma das plantas

que, por sua vez, metaforiza a qualidade da música tocada, também aparece na febre que

acomete Rita enquanto ela dança. Tais diferenças, porém, não impedem que as duas

caracterizações das danças estejam alinhadas em uma mesma rede parafrástica, uma vez

que uma quantidade considerável componentes semânticos aparecem nas duas descrições.

A recorrência deste topos não diz respeito apenas à obra de Aluízio de Azevedo, não é

um traço que singulariza um estilo individual, ela se relaciona com um fenômeno

discursivo mais amplo que impõe certas regularidades semânticas ao discurso literário.

Mais um exemplo pode ser encontrado em uma descrição presente no romance Canaã.

Em um episódio muito parecido com o que pode ser verificada em O Mulato, um dos

brasileiros presentes em uma festa promovida pelos alemães, o agrimensor Felicíssimo,

insiste para que a banda interrompa as músicas alemãs e toque o chorado. O brasileiro,

por estar muito bêbado, realiza passos ridículos e não conclui a dança. É neste momento

que aparece Joca, que inicia uma dança tão esdrúxula quanto as realizadas pelas

personagens de Aluízio de Azevedo:

Mas, de repente, como um fauno antigo, Joca pulou na sala e principiou a

dançar. A sua alma nativa esquecia por um momento essa dolorosa expatriação

na própria terra, entre gente de outros mundos. Arrebatado pela música que lhe

falava às mais remotas e imorredouras essências da vida, o mulato

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transportava-se para longe de si mesmo e transfigurava-se numa altiva e

extraordinária alegria. Todo o seu corpo se agitava num só ritmo; a cabeça

erguida tomava uma expressão de prazer ilimitado, a boca entreaberta, com os

dentes em serra, sorria; os cabelos animavam-se livremente, ou empinados e

eriçados, ou moles caindo sobre a fronte; os pés voavam no assoalho e, às

vezes, paravam, sacudindo-se os membros numa dança desenfrada; as mãos,

ora baixas, estalando castanholas, ora unidas, saindo dos braços retesados, era

espalmadas no ar, e nesse gesto, ébrio de música, perfilado na ponta dos pés,

ele parecia, com os braços abertos, querer voar. Umas vezes, corria pela sala

saracoteando o corpo, com os pés juntos num passo miúdo e repinicado; outras,

obedecendo ao compasso da música, vinha lânguido, requebrando, de cabeça

inclinada e olhos compridos, e achegava-se a alguma mulher, quase de rastos,

suspenso, querendo arrebatá-la numa volúpia contida, mas que se adivinhava

febril, vertiginosa. Depois, erguia-se num salto de tigre, retomava a sua

doidice, como num grande ataque satânico, agitava-se todo, convulso, trêmulo,

quase pairando no ar, numa vibração de todos os nervos, rápido, imperceptível,

que dava a ilusão de um instantâneo repouso em pleno espaço, como a dança

de um beija-flor. Nesse momento a orquestra podia parar, fazer um silêncio

que desequilibrasse tudo, Joca não perceberia a falta de instrumentos, pois todo

ele, no seu corpo triunfal, na sua alegria rara, no impulso da sua alma, vivendo,

espraiando-se na velha dança da raça, todo ele era movimento, era vibração,

era música. (ARANHA, 2013, p.128)

Nas três passagens consideradas, o narrador evita a descrição de cantos e danças de outras

nacionalidades para se demorar na descrição de danças brasileiras. Ao proceder deste

modo, ele faz da representação da dança um elemento do discurso nacionalista importante

para a caracterização da brasilidade. Além disso, há, na descrição acima, a repetição dos

mesmos clichês presentes na prosa do autor de O Cortiço. Os movimentos exagerados da

cabeça, dos braços e das pernas; os saltos, os dedos em castanholas, os passos frenéticos

etc. Repete-se também a associação da dança a uma anomalia psicológica repentina e

temporária, a uma espécie de embriaguez e de loucura. Reincide também a componente

erótica da dança, assim como os efeitos fisiológicos, uma vez que Joca arrepia os cabelos,

sente febre, convulsão e treme ao ponto de o narrador compará-lo a um beija flor. A

análise das três descrições indica que o episódio da dança sempre aparece representado

por traços semânticos que indicam quatro aspectos deste topos: a) aspecto performático,

que diz respeito aos passos, saltos e movimentos exagerados executados pelos dançarinos;

b) aspecto fisiológico, que diz respeito às alterações físicas nos organismos das

personagens, como febre, convulsão, dor, gemido etc.; c) aspecto psicológico, que diz

respeito às alterações no humor das personagens, às sensações de loucura, de embriaguez,

gozo erótico; d) aspecto racial-nacional, que serve para associar os aspectos anteriores a

uma condição racial e nacional, uma vez que as danças são apresentadas enquanto

brasileiras e crioulas. Todos esses quatro aspectos possuem um denominador comum, um

traço semântico que atravessa todos eles: a ideia de anomalia, de estranheza. Anormais

são os passos, os efeitos, os estados emocionais envolvidos na dança, de maneira que a

associação de tais danças à identidade nacional acaba por representar a brasilidade

enquanto extravagante.

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Ao que tudo indica, a combinação de tais elementos produziu a ritualização de

procedimentos descritivos que adquiriram valor estético dentro do estado do campo

literário daquele período. Tanto é que a representação da dança transcende o gênero

romanesco ou as agremiações de autores que nos anos finais do século XIX reuniam-se

em torno de ideais específicos de literatura e de poesia. Prova disso pode ser encontrada

no poema dança do ventre, presente no livro Broquéis, do escritor simbolista Cruz e

Sousa.iv Nele predominam elementos descritivos, ficando reservado ao eu-lírico apenas a

admiração espantada que pode ser verificada no segundo quarteto e as caracterizações da

dança no último terceto. Os principais elementos presentes nas descrições romanescas

antes comentados também se apresentam aqui, exceto o aspecto racial-nacional. Há a

febre, os movimentos esdrúxulos, não naturais, a dor casada ao prazer, o sensualismo

associado a um frenesi furioso. A indicação da qualidade da dança e da música, no

entanto, não é a mesma. Não é mais o chorado que se dança, e sim uma dança do ventre.

A diferença na indicação do estilo de dança seria relevante apenas se a descrição presente

no poema apresentasse elementos diferentes daqueles que se podem constatados nos

romances, mas não é isso o que acontece. Há aqui os mesmos movimentos estranhos e

anômalos, as mesmas febres e convulsões, o mesmo aspecto erótico e patológico que pode

ser constatado nas danças tanto de Rita como de Joca. Há, também, a mesma associação

da dança e de seu erotismo às ideias de maldade, de veneno de serpente que também é

utilizada na caracterização da dança realizada por Rita Baiana: "Mas, ninguém como a

Rita; só ela, só aquele demônio, tinha o mágico segredo daqueles movimentos de cobra

amaldiçoada;" (AZEVEDO, 1997 p.73).

2. LITERATURA E DSICURSO CIENTÍFICO

Encarado como um fenômeno discursivo, um topos literário pode ser analisado como um

indicador do estado do interdiscurso literário de um contexto histórico. No caso em

questão, as descrições do chorado e das danças relacionam-se a um processo de

cientificização da linguagem literária. Por meio dele, as teses de um nacionalismo de

cunho racista foram metaforizadas pelos procedimentos inerentes à linguagem literária

(personagens, enredos, imagens, descrições etc...). A descrição das danças reitera uma

matriz de sentido que se estrutura a partir do momento em que o discurso científico passa

adquirir dominância no interdiscurso referente ao campo semântico onde o discurso

literário encontra-se alocado. Considerando que a promoção deste discurso se deu em

consonância com a abertura das “possibilidades de mobilização política” (ALONSO,

2002, p.97) ocorrida nas últimas décadas do século XIX, o que permitiu que grupos

sociais antes marginalizados pela tradição imperial adquirissem condições de

manifestação pública de opiniões e de atuação dentro de instituições públicas, deve-se

reconhecer que a literatura passava a servir à promoção da visão de mundo de novos

atores sociais que utilizavam a ideia de ciência como instrumento do debate público.

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A dominância do discurso científico, no entanto, não explica, sozinha, o estado do

discurso literário nas últimas décadas do século XIX. Há que se considerar também um

efeito de memória discursiva presente no campo literário. Parte considerável desta

memória foi elaborada em torno do debate sobre a questão do caráter nacional, iniciado

pelos românticos e continuado pelos intelectuais ligados à literatura, seja sob a condição

de artistas, seja desempenhado sua atividade no terreno da crítica ou da historiografia

literária. Assim, a partir da década de 1870, devido às novas condições de produção que

se apresentam, surgidas em função da conjuntura de crise do Segundo Império, uma

memória discursiva romântica combina-se com o discurso científico, resultando numa

dinamização do interdiscurso literário.

A questão do caráter nacional não se desenvolve exclusivamente na literatura, encontra-

se dispersa nos discursos mais variados. Ela surge dentro do campo político no contexto

de legitimação da independência política do país. A fim de fazer valer a tese de que o

Brasil deveria emancipar-se de Portugal, cria-se a ideia de que o termo Brasil refere-se

não apenas a uma unidade territorial (que poderia ser considerada parte de uma unidade

política maior, como o Império Português), mas também a uma unidade nacional. Os

primeiros ideólogos nacionalistas argumentaram que esta unidade estava fundamentada

na singularidade de um sentimento íntimo inerente a todos os brasileiros. O brasileiro,

desse modo, possuiria uma formatação psicológica específica, e este fato garantiria a

existência da ideia de brasilidade, neste momento entendida como um sentimento e como

uma disposição psicológica. A literatura, no contexto desta questão, é colocada de

maneira um tanto ambígua: ora ela é assumida como uma consequência direta da

psicologia nacional, ora ela é normatizada de modo que sirva à reiteração da

caracterização da identidade nacional.

O primeiro proponente da tese do caráter nacional foi Ferdinand Denis. Em seu Resumé

de l'histoire litteráire du Brésil, espécie de manifesto literário romântico, o francês exorta

os brasileiros a conferirem uma feição nacional à literatura produzida por eles. Dentre os

vários argumentos que são utilizados, como as impressões que a natureza provoca no

homem ou o aspecto fantástico das tradições primitivas, há um que discorre sobre as

predisposições naturais do brasileiro para a música e para o canto:

Qu'il descende de l'Européen, qu'il se soit allié au noir ou à l'habitant primitif

de l'Amérique, le Brésilien est naturellement disposé à recevoir des

impressions profondes; et pour se livrer à la poésie, il n'est pas nécessaire qu'il

ait reçu l'éducation des villes; il semble que le génie particulier de tant de races

différentes se montre chez lui: tour à tour ardent comme l'African,

chevaleresque comme le guerrier des bords du Tage, rêveur comme

l'Américain, soit qu'il cultive les terres les plues fertiles du monde, soit qu'il

garde ses troupeaux dans d'immenses pâturages, il est poète.v (DENIS, 1826,

p.520-521)

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Para Denis, a habilidade do brasileiro no canto, na poesia, está relacionada a disposições

naturais consequentes de sua condição mestiça. Sua tese fundamenta-se na ideia de que

cada raça possuiria características particulares. A poesia, sendo produto das disposições

anímicas dos indivíduos, não precisaria de educação ou aprendizado, pois entende-se que

ela seria a expressão espontânea da psicologia do indivíduo. Por conta disso, ela

carregaria traços referentes à condição racial de seu autor e esta condição, por sua vez, é

assumida enquanto determinante da condição nacional de cada povo. O brasileiro, desse

modo, condicionado pelo aspecto imaginativo do negro, sonhador do índio e nobre do

branco, não só teria um caráter nacional próprio e singular, produzido pela combinação

da diversidade dos traços psicológicos das diferentes raças que compõem sua população,

mas também uma produção cultural profícua e estuante. Cria-se, assim, uma rede de

implicações diretas e laterais entre as ideias de raça, psicologia, caráter nacional e

expressão artística. É no contexto destas implicações que a condição nacional é

caracterizada, desta vez a partir de encaixes verticais:

Raça → Psicologia → Caráter Nacional → Expressão Artística

Ardente Brasileira

Cavalheiresco

Sonhador

Preencheu-se, no esquema acima, apenas as posições que levarão ao desdobramento do

argumento que aqui se desenvolve. Longe ele está de apresentar todos os efeitos de

discurso-transverso e de pré-construídos presentes no nacionalismo literário romântico.

Faltam, por exemplo, os encaixes caracterizadores da psicologia de cada raça, assim como

os elementos definidores da condição brasileira da expressão artística. Ainda assim, o

esquema já serve para apresentar os fundamentos de um discurso que se inicia com Denis

e que terá vida longa dentro da tradição intelectual brasileira. Por meio dele, a ideia de

caráter nacional encontra-se vinculada à ideia de psicologia e esta, por sua vez, é definida

em termos raciais. Tais implicações estabelecem uma reflexão que se desenvolve a partir

de um determinismo racial. Ela pode ser encontrada nas teses que Gonçalves de

Magalhães apresenta em seu Ensaio sobre a história da literatura no Brasil, publicado

na revista Nitheroy em 1836: "Mas existe no homem um instinto oculto, que, em despeito

dos cálculos da educação, o dirige; e de tal modo este instinto aguilhoa o homem, que em

seus atos imprime um certo caráter de necessidade, a que nós chamamos ordem, ou

natureza das coisas." (MAGALHÃES, 1836, p.148).

A partir de uma argumentação racial e racista, a ideologia nacionalista mobilizou

elementos de uma certa psicologia para produzir avaliações de ordem estética, uma vez

que a produção cultural é vista como um ato que ocorre dentro das necessidades ditadas

pela condição nacional. Conclui-se, assim, que as artes, como a literatura e a música,

seriam uma expressão direta e espontânea da brasilidade. A rede de implicações e

encaixes que sustenta este raciocínio ainda se encontra sólida em 1888. Este é o ano no

qual Sílvio Romero publica a sua História da Literatura Brasileira, livro no qual se

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defende a ideia de uma literatura nacional caracterizada pela condição mestiça da

população brasileira. É o ano também no qual Araripe Júnior publica artigos sobre a obra

de Aluízio de Azevedo. Nele, o crítico cearense vincula a avaliação das obras à índole de

seu autor: “(...) creio poder considerar o dia da publicação do Mulato no Maranhão, como

um dia propício às letras nacionais, não tanto pelo valor do livro, que saiu da forja cheio

de grandes defeitos, mas pela espontaneidade do talento que o produziu” (ARARIPE,

1978, p.118). Mais adiante, ele argumenta que Aluísio de Azevedo seria um “observador

de raça” e que isso faria com que O Cortiço se consolidasse como “um romance nacional,

na verdadeira acepção da palavra” (cf. ARARIPE, 1978 p. 119). Raça, psicologia,

nacionalidade e literatura são termos que ainda são assumidos e trabalhados dentro da

rede parafrástica estabelecida pelo nacionalismo determinista apresentado por Denis.

A partir desses encaixes fundamentais, novos elementos semânticos podem se acumular

e expandir a área de cobertura desta formação discursiva. Isto normalmente era feito de

modo que a literatura possuísse implicações políticas. Já em Denis pode-se observar a

articulação entre os termos literatura e governo, operada pela ideia de liberdade. Assim,

fomentava-se a ideia de que um governo livre – entendido aqui como um governo

emancipado de Portugal – deveria possuir uma literatura livre, i.e.: produzida sem a

importação de modelos literários portugueses. Realiza-se, assim, um processo de

legitimação recíproca, onde uma forma de governo legitima um modelo de literatura

nacional e vice-versa.:

"dans ces belles contrées si favorisées de la nature, la pensée doit s'agrandir

comme le spectacle qui lui est offert; majesteuse, grâce aux anciens chefs-

d'oeuvre, elle doit rester indépendante, et ne chercher son guide que dans

l'observation. L'Amérique enfin doit être libre dans sa poésie comme dans son

gouvernement”vi (DENIS, 1823, p.516).

O discurso literário cientificista praticado pelos críticos finisseculares continua a reflexão

iniciada na primeira metade daquele século, mas isto não significa que ele mantenha o

discurso romântico cristalizado. Uma primeira diferença sensível diz respeito à

substituição do termo operadorvii liberdade pelo termo progresso, que se encontrava

articulado com as ideias de evolução e modernidade, oriundos da orientação cientificista

que o discurso literário passa a assumir. Deste modo, vincula-se uma renovação estética

nas letras nacionais à necessidade de modificações estruturais do estado brasileiro.

Consolidado o projeto de independência nacional, a preocupação dos intelectuais passa a

ser dirigida à equiparação do país aos padrões civilizatórios das metrópoles europeias.

Realiza-se, assim, uma reformulação do nacionalismo mediante a postulação do atraso

do país na marcha evolutiva das nações. Isso destitui o nacionalismo de seu caráter

sublimador, entendido pelos enunciadores cientificistas como decorrentes das ilusões e

fantasias do discurso romântico, e o substitui por uma caracterização pessimista.

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Um dos elementos mais significativos da reformulação do nacionalismo oitocentista

realizada pelo movimento de 1870 foi a consolidação da definição do caráter nacional e

da cultura brasileira pela ideia de mestiçagem. Deve-se ter em mente que a primeira

definição do Brasil nestes termos realizada por Denis é desvirtuada pelos românticos, que

ignoraram os elementos negro e branco na composição da psicologia nacional. O primeiro

devido ao estigma da escravidão, o segundo por conta do sentimento antilusitano

decorrente do contexto das guerras da independência. O cientificismo finissecular, por

sua vez, procurou fazer valer a tese da mistura racial, e ao fazê-lo produziu um

nacionalismo desencantado, pois ao mesmo tempo em que a mestiçagem servia para

explicar a psicologia nacional, serviu também para explicar o atraso da sociedade

brasileira.

Esta reconfiguração diz respeito a um discurso que continua a ideologia nacionalista, mas

agora dentro de novas condições de produção. Alguns elementos dessas novas condições

podem ser enumerados rapidamente, como a decadência do modelo colonial e o

deslocamento dos centros produtores de cultura e pensamento para as cidades, o

desenvolvimento da economia interna devido à abolição do tráfico negreiro, o surgimento

de novas bandeiras políticas (abolicionismo e republicanismo) e de novas instituições de

ensino e ciência. O segundo Império, em seus momentos de crise, permitiu, como já foi

apontado mais acima, o surgimento de uma nova estrutura de oportunidades políticas por

meio da qual novos agentes políticos puderam contestar a ordem estabelecida pela

tradição imperial (c.f. ALONSO, 2002). A postulação de uma brasilidade mestiça deve

ser vista como um elemento estratégico deste contexto de contestação, e a ciência foi

utilizada como uma arma para deslegitimar os discursos dos setores mais tradicionais da

sociedade brasileira, pois a caracterização de um argumento enquanto científico foi o

principal meio para fazer valer as teses da nova geração.

Com o argumento de que o espírito nacional deveria ser considerado de maneira objetiva,

imparcial e científica, Sílvio Romero, um dos principais críticos literários da época, inclui

o negro no esquema que ele elabora para explicar o caráter nacional. Ele entende o sangue

africano como o fator diferenciador da composição racial da população brasileira.

Segundo sua leitura, o espírito nacional seria o resultado da transformação do elemento

branco - colocado como a matriz de onde deriva o espírito nacional - em um tipo novo

mediante o cruzamento com outras raças, dentre as quais a negra se apresentaria como o

principal agente. Desse modo, a brasilidade deixa de ser projetada em um tipo racial em

detrimento de outros. Ao invés disso, o caráter nacional é visto a partir da miscigenação

que ocorreu em condições geográficas específicas. Neste processo, o negro teria tido um

papel mais importante que o índio, pois ele teria promovido a aclimatação do branco ao

calor dos trópicos, ao passo que o aborígene americano seguiria desaparecendo por não

ter condições de se adaptar à vida civilizada. Desse modo, a brasilidade genuína - que

desde os românticos era assumida como composta pelas propriedades que nos

singularizaria frente aos estrangeiros - somente poderia ser encontrada no produto deste

processo, no mestiço. É dentro desta lógica que Romero produz sua clássica declaração:

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"Todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas ideias" (ROMERO, 1882,

p.07).

O mestiço, porém, não seria o tipo racial brasileiro acabado, algo que dependeria de um

processo evolutivo composto por uma série de cruzamentos que progressivamente

eliminaria as raças tidas como inferiores, mas naquele momento o mestiço seria o

principal fator racial da brasilidade.

O mestiço é o produto fisiológico, étnico e histórico do Brasil. É a forma nova

de nossa diferenciação nacional.

Nossa psicologia popular é um produto desse estado inicial. Não quer dizer

que formaremos uma nação de mulatos; pois que a forma branca prevalecerá;

quer dizer apenas que o europeu aliou-se aqui a outras raças, e desta união saiu

o genuíno brasileiro, aquele que não se confunde mais com o português e sobre

quem repousa o nosso futuro. (ROMERO, 1882 p.45)

O mestiço seria o brasileiro genuíno porque ele é um tipo racial distinto, único e típico

das condições nacionais. Esta lógica, que remete às teses racistas lançadas por Arthur de

Gobineau (1967), produz um nacionalismo pessimista em relação ao presente e otimista

em relação ao futuro, pois a mistura racial era vista de maneira um tanto ambígua, já que

ao mesmo tempo em que a miscigenação melhoraria as raças inferiores, ela também

degeneraria as superiores. O maior problema do mestiço, porém, seria o fato dele ser um

desequilibrado. No cientificismo racista praticado àquela época, a condição racial era

interpretada a partir de duas balizas conceituais dicotômicas, a primeira em torno das

noções de superioridade/inferioridade e a segunda em torno das noções de

estabilidade/instabilidade. As raças matrizes, ainda que se encontrassem em estágios

evolutivos distintos, correspondentes a formas hierarquicamente distintas de sociedade,

seriam estáveis, possibilitando uma configuração psicológica adequada a um padrão

civilizatório correspondente ao estágio em que cada uma se encontrava na escala

evolutiva. Os mestiços, por outro lado, ainda que possam apresentar um ganho de

inteligência em relação às raças inferiores, degradam-se moralmente devido ao conflito

de disposições psíquicas distintas. Esta interpretação encontrou sua mais acabada

formulação na obra do médico e sanitarista baiano Raimundo Nina Rodrigues:

O que os mestiços ganham em inteligência perdem em energia e em

moralidade. O desequilíbrio entre as faculdades intelectuais e as afetivas dos

degenerados, o desenvolvimento exagerado de umas em detrimento das outras

tem perfeito símile nesta melhoria da inteligência dos mestiços com uma

imperfeição tão sensível das qualidades morais, afetivas, que deles exigia a

civilização que lhes foi imposta. E esta observação estreita ainda mais as

analogias que descubro entre o estado mental dos degenerados superiores e

certas manifestações espirituais dos mestiços. Nestes casos como que se revela

em toda a sua plenitude, em toda a sua brutalidade, o conflito que se trava entre

qualidades psíquicas, entre condições físicas e psicológicas muito desiguais de

duas raças tão dessemelhates, e que a transmissão hereditária fundiu em

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produto mestiço resultante da união ou cruzamento delas. (RODRIGUES,

1984, p.153)

O mestiço é colocado como degenerado, desequilibrado, equivalente a um portador de

um transtorno mental. Ele então passa a ser representado mediante uma série de

caracterizações negativas: híbrido, estéril, imoral, imprevidente, fraco, degenerado,

anormal, incapaz de adaptar-se a qualquer padrão de vida civilizada: "A julgar por certos

fatos, a mistura entre raças de homens muito dessemelhantes parece produzir um tipo

mental sem valor, que não serve para o modo de viver da raça superior, nem para o da

raça inferior, que não presta para gênero algum de vida" (RODRIGUES, 1984, p.133).

Este discurso fará com que qualquer comportamento que fuja ao padrão, ao que é

considerado normal e aceitável, como o crime e a loucura, seja considerado como uma

anomalia causada por uma configuração racial instável. A obra criminalista de Nina

Rodrigues é dedicada a defender a tese de que os crimes cometidos por mestiços deveriam

ter sua pena atenuada, pois seu desequilíbrio mental deveria ser encarado como um

atenuante de sua responsabilidade penal.

A nacionalidade mestiça adquiriu valor de verdade devido à sua caracterização enquanto

científica. Tal caracterização permitia que vários outros elementos semânticos

legitimadores fossem acumulados verticalmente sobre os enunciados (uma enunciação

científica é exprime algo objetivo, factual, verdadeiro, imparcial etc.), mas ela também,

por um efeito de implicação lateral, destruía o otimismo romântico, levando ao

reconhecimento de que nosso caráter nacional seria doente, degenerado, anormal... O

sistema de encaixes e articulações parafrásticas dessa matriz de sentido pode ser

parcialmente indicado pelo seguinte esquema:

(encaixe caracterizador) CIENTÍFICO ← NACIONALIDADE MESTIÇA → PESSIMISMO

↓ objetivo Atraso

Atribui um valor a uma factual Degeneração

matriz de sentido verdadeiro Doença

imparcial Desvio

Anormalidade

Diante de uma avaliação tão negativa do caráter nacional, os intelectuais reagiram de

maneiras diversas. Nina Rodrigues foi partidário de um pessimismo irremediável,

afirmando que a degeneração da nação seria um fenômeno insuperável. Romero projetou

no futuro essa superação mediante a tese de que a população brasileira embranqueceria

ao longo dos anos, sobretudo depois do influxo de imigrantes europeus que substituíam

o trabalho escravo. Mas a saída mais pragmática talvez tenha sido a de Araripe Júnior,

que resolveu não lamentar nossa condição, e ao invés disso celebrar a condição mestiça

das nações tropicais. Segundo seu modo de pensar, a incorreção, a anormalidade, o desvio

da norma, derivada de nossa condição racial e de nosso clima, deveriam, nas condições

nacionais, ser consideradas qualidades (cf. ARARIPE JÚNIOR 1978b, p.124). Porém,

ainda que celebrada, nossa condição nacional será referida pelo crítico cearense a partir

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de termos negativos, como embriaguez, envenenamento, delírio, insensatez etc., o que

faz com que ele não escape ao tom pessimista do discurso cientificista finissecular.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos anos finais do século XIX, o entusiasmo com o desenvolvimento das teorias

científicas foi um importante acontecimento discursivo capaz de interferir nos discursos

empregados em diferentes planos semânticos. A literatura não atravessou incólume esta

conjuntura. Ao invés disso, passou-se a entender que ela deveria subordinar seus

procedimentos aos sentidos rotulados como verdades científicas. Realiza-se, assim, uma

tentativa de equiparação das narrativas literárias com as narrativas científicas. O principal

articulador desta tese foi Émile Zola, idealizador da escola naturalista. Em seu ensaio O

romance experimental (1982), ele entende que a ascensão da ciência deveria fazer com

que a literatura assumisse os seus métodos.

No caso brasileiro, tão forte quanto foi o cientificismo nas décadas finais do século XIX

foi o nacionalismo. A combinação dessas duas orientações ideológicas e discursivas

resultou numa literatura que procurou dar conta da questão nacional dentro dos padrões

de objetividade científica da época. Desse modo, a literatura converteu-se numa forma de

conferir qualidade estética às verdades científicas que buscavam reformar a interpretação

do país que vinha sendo elaborada desde o período romântico. Como se pode verificar na

exposição acima, a questão da identidade nacional era debatida a partir de categorias

oriundas de uma psicologia determinista que recorria a argumentos raciais e geográficos.

A onda cientificista acrescentou argumentos oriundos do evolucionismo social e assim

quis construir teses que simultaneamente explicassem tanto o caráter nacional como o

atraso do país em relação à Europa.

Este nacionalismo científico substitui o índio pelo mestiço na posição de tipo racial-

psicológico característico da identidade nacional. Ao mesmo tempo em que essa reforma

representa um ganho na medida em permitiu que as atenções dos estudiosos da época

fossem dirigidas às contribuições da cultura negra e popular na formação cultural do

Brasil, ela também atuou na legitimação de valores eurocêntricos e de preconceitos

arraigados na sociedade brasileira. No plano literário, esta modificação fará com que

surjam novos procedimentos literários que tinham a função de representar esteticamente

os sentidos formulados no discurso do nacionalismo científico. As narrativas literárias

então se voltam para a representação do atraso do país e da condição mestiça da

brasilidade. Exemplo de tratamento estético das verdades científicas pode ser verificado

na forma como Euclides da Cunha representa o sertanejo. Ao afirmá-lo enquanto um

“Hércules-Quasímodo” (CUNHA, 1998, p.113), ele reitera a compreensão do mestiço

enquanto um ser desequilibrado devido à convivência de orientações psíquicas díspares,

antagônicas. Todo e qualquer ato dos mestiços são lidos como índices de um desequilíbrio

mental, de uma instabilidade psicológica que o torna um ser degenerado e exótico. Assim,

o seu caminhar “não traça trajetória retilínea e firme”, o seu repouso é dotado de um

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“equilíbrio instável”. (CUNHA, 1998, p.113), a sua religiosidade é composta por um

“misticismo extravagante” (CUNHA, 1998, p.124) e etc..

As representações das danças e do chorado devem ser lidas dentro deste contexto

ideológico e discursivo. Elas servem para conferir uma forma sensível à ideia de

degeneração do mestiço que foi formulada teoricamente pelos intelectuais que

participaram do movimento da Geração de 1870. As danças são uma expressão direta de

uma psicologia desequilibrada devido a uma condição racial primitiva e instável. Isso é

dito expressamente na passagem presente no romance de Graça Aranha. Quando Joca

começa a dançar, o narrador indica que o faz a partir dos impulsos que lhe vem de sua

“alma nativa”, e que a dança que ele realiza é a “velha dança da raça” (cf. ARANHA,

2013, p.128). Descrever as danças populares enquanto extravagantes, exageradas e

anormais era uma forma de representar a psicologia mestiça e esta representação, por sua

vez, implicava uma caracterização da brasilidade, que então era definida em termos de

um conflito racial que impedia a efetiva modernização do país, sua ordem e seu progresso.

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i O recorte cronológico visa compreender um contexto literário marcado sobretudo pela ascenção de uma

produção literária bastante heterogênea, mas que tinha no sentimento antirromântico seu denominador

comum. É o mesmo recorte já utilizado por Lúcia Miguel Pereira (1988) e Antonio Candido, que refere-se

ao período como sendo “o primeiro, em nossa literatura, que apresenta um panorama completo da vida

literária” (1997, p.281). ii A dissonância da lírica moderna identificada por Hugo Friedrich (1991) ou a reconfiguração da mímesis

literária durante a modernidade (LIMA 2003) devem ser assumidas como fenômenos discursivos referentes

a esta nova função social que as representações literárias adquirem durante a passagem do século XIX para

o século XX. Desobrigadas de reiterar valores ou ideias estabelecidas em outras instâncias discursivas, a

linguagem literária envereda por uma vertente experimentalista que tende a subverter as tradicionais

formulações linguísticas pelas quais o homem entende o mundo. iii Não se deve confundir estabilização com cristalização. A estabilização de sentido é uma operação

desenvolvida dentro da matriz de sentido de uma discursividade, mas ela encontra-se constantemente

ameaçada pelos efeitos da divisão social no plano semântico da língua. A noção de regularidade, acima

referida, também não deve ser confundida com a noção de univocidade. Toda regularidade estabelecida

entre sentidos ocorre dentro da heterogeneidade constitutiva dos discursos (cf. MAINGUENEAU, 2008,

p.31). iv DANÇA DO VENTRE: Torva, febril, torcicolosamente,/ Numa espiral de elétricos volteios,/ Na cabeça,

nos olhos e nos seios/ Fluíam-lhe os venenos da serpente.// Ah! Que agonia tenebrosa e ardente!/ Que

convulsões, que lúbricos anseios,/ Quanta volúpia e quantos bamboleios,/ Que brusco e horrível

sensualismo quente.// O ventre, em pinchos, empinava todo/ Como reptil abjecto sobre o lodo,/

Espolinhando e retorcido em fúria./// Era a dança macabra e multiforme/ De um verme estranho, colossal,

enorme,/ Do demônio sangrento da luxúria. (CRUZ E SOUSA, 1995, p.81) v Quer descenda do europeu, quer esteja ligado ao negro ou ao primitivo habitante da América, o brasileiro

tem disposições naturais para receber impressões profundas; e para se abandonar à poesia não precisa da

educação citadina; afigura-se que o gênio peculiar de tantas raças diversas nele se patenteia: sucessivamente

arrebatado, como o africano; cavalheiresco, como o guerreiro das margens do Tejo; sonhador, como o

americano, quer percorra as florestas primitivas, quer cultive as terras mais férteis do mundo, quer apascente

seus rebanhos nas vastas pastagens, é poeta. vi Nessas belas paragens, tão favorecidas pela natureza, o pensamento deve alargar-se como o espetáculo

que se lhe oferece; majestoso, graças às obras primas do passado, tal pensamento deve permanecer

independente, não procurando outro guia que a observação. Enfim, a América deve ser livre tanto na sua

poesia como no seu governo. vii Entendo, aqui, por termo operador um signo que, a pretexto de informar algo novo sobre a realidade

recoberta pelo discurso no qual ele é empregado, realiza uma articulação entre dois outros signos,

normalmente oriundos de campos semânticos distintos, de modo que entre eles se produza o efeito de

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discurso transverso descrito por Pêcheux. Tal processo discursivo geralmente ocorre quando se busca a

legitimação de um argumento mediante a incorporação de uma discursividade heterogênea. No caso em

questão, o termo liberdade, assim como seus derivados, estabelece um plano semântico comum no qual

dois outros termos passam a se ligar por meio de uma articulação lateral. Com a modificação das condições

de produção, ditadas agora pela conjuntura de crise do segundo império, o termo operador se modifica de

modo a manter a coerência das relações parafrásticas do discurso literário nacionalista.

* Universidade Regional do Cariri - URCA