A DÉCADA DOS MITOSDados Internacionais de Catalogação na Publicação
(CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil: Neoliberalismo e
emprego : Economia 330.981 2. Brasil: Neoliberalismo e trabalho :
Economia 330.981
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2001
Pochmann, Marcio, 1962- A década dos mitos / Marcio Pochmann – São
Paulo: Contexto, 2001.
Bilbliografia. ISBN 85-7244-174-3
1. Brasil – Condições econômicas 2. Brasil – Condições sociais 3.
Emprego (Teoria econômica) 4. Liberalismo – Brasil. 5. Trabalho e
classes trabalhadoras I. Título.
01-1928 CDD-330.981
Sumário
Apresentação
.....................................................................................7
A ocupação a partir da reformulação do papel do Estado
.........11
Abertura comercial, internacionalização da economia e ocupação
.......................................................................................39
As possibilidades da ‘‘nova economia’’ e seus efeitos no trabalho
no Brasil
............................................................................51
A redivisão regional do emprego
..................................................79
Mudanças na distribuição da renda
...............................................93
Alterações recentes no custo do trabalho no Brasil
................... 107
As políticas salarial e do salário mínimo
..................................... 127
Novas e velhas políticas do trabalho no Brasil
........................... 147
Referências bibliográficas
.............................................................
173
7
Apresentação
Este livro constitui um contraponto às teses que se transforma- ram
hegemônicas nos anos 1990 no Brasil, a partir de uma constante
propaganda pelos diferentes governos e da recorrente reprodução,
sem grande contestação, pelos meios de comunicação de massa e até
por certos setores mais progressistas. Mais precisamente, as teses
go- vernamentais liberalizantes são analisadas como mitos, já que
demons- traram ser idéias falsas, sem correspondência na realidade
nacional.
Uma verdadeira fantasia neoliberal ganhou o país, capaz de criar um
enorme fosso entre o que dizia ser e o que se revelou após a sua
implantação. No passado que todos desejam esquecer, o então
ministro da propaganda do nazismo dizia que a repetição de uma
mentira por muitas vezes tornava-a uma verdade aceita por muitos.
Agora, percebe-se que esse perverso método de pro- paganda não foi
totalmente abandonado.
No Brasil, que também viveu a hegemonia do pensamento único durante
a década de 1990, verificou-se a sempre presente tentativa de
marginalização daqueles que ousavam pensar o con- trário do que as
teses neoliberais apontavam como verdades abso- lutas, fossem eles
movimentos políticos e sociais organizados ou mesmo intelectuais
que, isoladamente, se negavam a enxergar a realidade através de uma
lente só. Uma vez implementado o pro- grama liberalizante no país,
alcançam-se as condições necessárias e suficientes para uma
reflexão profunda e não convencional so- bre a produção de uma
década dos mitos.
Sob o prisma temático do trabalho, procura-se espetar o alvo de
oito mitos produzidos pelo neoliberalismo no Brasil durante a déca-
da de 1990. O primeiro mito surge da constatação de que o esvazi-
amento do papel do Estado levaria o país ao crescimento econômi- co
sustentado, com elevação no nível de ocupação. Por meio da
privatização seria possível reduzir o endividamento público e
am-
8
pliar o gasto social, deixando ao setor privado o comando da expan-
são econômica. Não apenas foi registrado o pior desempenho eco-
nômico, com taxas de variação do produto praticamente equivalen-
tes às da população, indicando a estagnação da renda per capita,
como o endividamento cresceu, ao contrário do gasto social. O de-
semprego, por conseqüência, teve no esvaziamento do Estado uma
fonte importante de expansão.
O segundo mito encontra-se incrustado no pressuposto de que a
abertura comercial e a internacionalização da economia permiti-
riam a modernização do parque produtivo, assim como a redução do
desemprego. A queda das barreiras tarifárias e não tarifárias num
ambiente macroeconômico não isonômico (altas taxas de ju- ros,
moeda valorizada, ausência de políticas comerciais defensivas e
industriais ativas) resultou no rompimento de cadeias produtivas
diante da presença de maior quantidade de produtos importados. Sem
condições satisfatórias para melhor colocar a sua produção no
exterior, o país assumiu a posição de “exportador” de empregos,
pois parte dos que aqui existiam no setor industrial foram trocados
pela importação. Não apenas o desemprego aumentou, como pio- rou a
participação do Brasil no comércio internacional, indicando o
atraso a que o país foi submetido.
O terceiro mito vincula-se à hipótese heróica de que o avanço da
chamada “nova economia” seria favorecida no Brasil diante da
aceitação passível do tecnoglobalismo. Ou seja, a crença oficial de
que o abandono das políticas nacionais de ciência e tecnologia pela
possível compra de tecnologia de fora no mercado internacional
possibilitaria ao país reduzir o atraso técnico em relação às
economi- as avançadas, ao mesmo tempo que o capacitaria tanto para
receber novos investimentos quanto para gerar uma elevada
quantidade de novas ocupações com maior qualidade. Como o atraso
tecnológico não foi reduzido, pelo contrário, o Brasil
transformou-se num país mais dependente do exterior e responsável
pela expansão da ocu- pação doméstica, diante da redução do emprego
e do tamanho da chamada “nova economia” durante os últimos dez
anos.
O quarto mito advém da análise do pressuposto de que o rompimento
com as políticas de desenvolvimento regional no Bra- sil
possibilitaria a conformação de um país menos desigual, com
acentuada expansão das regiões menos desenvolvidas, especial-
9
mente no que diz respeito ao nível de emprego. Os esforços
subnacionais para atração de investimentos privados, num quadro de
desinvestimento público, redundaram na guerra fiscal e na per- da
de sinergia entre os estados e municípios. Nesse quadro, não causa
espanto o ressurgimento da questão regional, indicando o
agravamento das desigualdades entre as grandes regiões, com o
desemprego aberto deixando de ser um fenômeno sul-sudeste para se
tornar importante nas pequenas cidades e nas áreas mais
depauperadas do país. O esvaziamento dos pólos industriais em
várias regiões menos desenvolvidas são expressão direta
disso.
O quinto mito localiza-se na defesa da desconcentração da renda a
partir do estabelecimento da estabilização monetária. Uma vez
consagrado o fim das altas taxas de inflação, o país tenderia a
conhecer uma fase de melhor distribuição da renda nacional, pos- to
que a carestia do custo de vida era identificada com o principal
imposto sobre os pobres. Sem mexer nos problemas estruturais do
país, como a reforma agrária, a tributária e a social e o
crescimento econômico sustentado, a questão distributiva não foi
alterada. Pelo contrário, terminou sendo ainda mais potencializada
diante da cri- se do emprego que tem afastado os brasileiros do
acesso à carteira assinada. As ocupações geradas, além de
insuficientes, na maioria das vezes são muito precárias e têm baixa
remuneração.
O sexto mito retrata a tese de que o custo do trabalho no Brasil é
muito elevado, ocasionando a perda de competitividade empresa- rial
e gerando desemprego e ocupações informais. Apesar da imple-
mentação de medidas direcionadas à flexibilização dos contratos de
trabalho e à desregulamentação do mercado de trabalho, o emprego
formal não aumentou, pelo contrário, acumulou déficit estimado em
3,2 milhões de postos de trabalho, assim como o desemprego alcan-
çou índices nacionais sem paralelo desde a década de 1930. O Plano
Real, imposto a ferro e fogo, produziu artificialmente o aumento em
dólar do custo do trabalho, somente reduzido sensivelmente com a
mudança do regime cambial, em 1999.
O sétimo mito surge de toda a argumentação favorável à
desresponsabilização do Estado para com o rendimento dos traba-
lhadores de salário de base, como forma de levar à redução da
desigualdade dos rendimentos do trabalho e à elevação dos salá-
rios de acordo com os ganhos de produtividade. Entretanto, o
10
Brasil, que já era conhecido internacionalmente como uma econo- mia
de baixos salários, reforçou ainda mais essa posição, quando
abandonou a política salarial, a partir do Plano Real, e manteve
estacionado o valor real do salário mínimo num dos mais baixos
patamares dos últimos sessenta anos. Para um país com oferta
abundante de mão-de-obra, a ausência do Estado estimula uma maior
concorrência entre os trabalhadores, gerando o rebaixamen- to
salarial e a precarização generalizada da ocupação.
No oitavo mito chega-se à idéia – força de todo o projeto
neoliberal dos anos 1990: acabar com a Era Vargas. Em vez de
indicar o rompi- mento de acordos políticos com segmentos atrasados
– conforme realizados pelo pacto de dominação varguista e que foram
responsá- veis pela não realização, até hoje, de programas
civilizatórios do “ca- pitalismo tupiniquim”, como a reforma
agrária para desconcentrar a propriedade rural, a reforma
tributária para fazer com que o rico pa- gue imposto e a reforma
social para universalizar o direito à cidadania –, assistiu-se, nos
anos 1990, à imposição de políticas neoliberais que retiraram
direitos sociais e trabalhistas de uma ampla parcela dos bra-
sileiros. Talvez por isso é que o fim da Era Vargas pode ser
entendido, também, por meio da desvalorização do trabalho.
Com a violência dos programas neoliberais adotados recente- mente
no Brasil foi consolidada a lógica da desconstrução de uma nação,
que um dia sonhou ser soberana, justa e democrática. Em vez disso,
ampliaram-se os sinais de passagem da construção de um país para a
de uma situação próxima a de acampamento, em que a ausên- cia do
Estado dá lugar à crescente violência, corrupção, desemprego;
enfim, ao atraso socioeconômico e à degradação do trabalho.
Ao longo das próximas páginas o leitor terá acesso a uma espécie de
inventário nacional sobre a ressaca neoliberal que se manifestou na
forma de mitos durante os anos 1990. Procura-se fazer um balanço
dos principais mitos que atuaram sobre a realida- de socioeconômica
nacional, considerando as diferentes dimen- sões da estratégia que
buscou colocar fim ao que a Era Vargas tinha de melhor: a
valorização do trabalho. Por conter referenciais empíricos
especiais que concedem à publicação certa singularida- de na
análise, optou-se pela ampla apresentação de gráficos e tabelas,
que dão maior consistência e clareza ao desvendamento dos mitos
neoliberais na década de 1990.
1 1
A ocupação a partir da reformulação do papel do Estado
Em dez anos de aplicação de políticas neoliberais foi possível
consolidar o mito de que o esvaziamento do papel do Estado no
Brasil levaria tanto ao crescimento econômico sustentado quanto à
expansão do nível de emprego. Isso não ocorreu, muito pelo con-
trário. Justamente após cinco décadas de ampla manifestação de um
padrão de intervenção do Estado favorável ao crescimento econômico
e ao emprego, observou-se, a partir de 1990, a adoção de um novo
modelo econômico que resultou pouco positivo para a economia e para
o trabalho no Brasil. Não apenas o desemprego assumiu volume sem
paralelo histórico nacional, como o rendi- mento do trabalho
alcançou uma das mais baixas participações na renda nacional. Ao
mesmo tempo, o novo modelo econômico ter- minou por não recolocar a
economia nacional no curso do desen- volvimento sustentado, tendo,
por isso mesmo, levado o país a registrar a pior década quanto à
variação do Produto Interno Bruto de todo o século XX. A crença de
que o esvaziamento do Estado possibilitaria o reforço do setor
privado, a ponto de conduzir ao crescimento econômico desejado e
duradouro, não se confirmou nos anos 1990.
Após dez anos de iniciado o processo de privatização no Bra- sil,
pode-se encontrar uma literatura que se propõe a avaliar vários
aspectos da revisão do papel do Estado. Há, entretanto, uma es-
cassez de estudos sobre o que ocorreu com o emprego nas empre- sas
públicas. Não se pretende aqui esgotar a discussão sobre o fenômeno
de desestatização ocorrido ao longo da década de 1990
12
no país. A preocupação é fundamentalmente oferecer elementos que
permitam analisar os principais efeitos quantitativos e qualita-
tivos decorrentes do processo de revisão do papel do Estado e da
privatização no emprego dos trabalhadores com contrato regular de
trabalho. Dessa forma, coloca-se em evidência o primeiro mito do
projeto neoliberal que apontava para o enxugamento do Estado como
condição para a expansão econômica e, por conse- qüência, do
emprego no país1.
Cinco partes constituem esse estudo, que se inicia com a dis-
cussão acerca dos diferentes padrões de intervenção do Estado no
capitalismo; já a segunda parte trata da relação entre Estado e
desenvolvimento econômico no Brasil. A seguir busca-se analisar as
principais mudanças ocorridas no padrão de intervenção do Estado
brasileiro a partir de 1990, com a introdução de um novo modelo
econômico. A quarta parte enfoca o efeito emprego decor- rente da
revisão do papel do Estado e da década das privatizações. Por fim,
apresenta-se uma breve avaliação da estratégia brasileira de
promover mudanças significativas no curso do Estado no Brasil
durante os anos 1990.
PADRÕES DE INTERVENÇÃO DO ESTADO NO CAPITALISMO
O Estado não representa um corpo estranho na evolução do
capitalismo. Pelo contrário, pode-se constatar, do ponto de vista
histórico, a manifestação de diferentes padrões de intervenção,
cujo objetivo é o de nortear a presença do Estado nas economias de
mercado, constituída, em maior ou menor medida, por um con- junto
ou frações de interesses públicos e privados.
Paralelamente, o papel econômico do Estado também toma forma
distinta ao longo do tempo, refletindo geralmente a nature- za e a
intensidade das modificações ocorridas no interior do pro- cesso de
acumulação de capital. Dessa forma, a atuação do Estado tende a
organizar, consagrar e reproduzir o processo de domina- ção
política, impondo compromissos entre múltiplos blocos no poder e de
certas frações sociais não dominantes, a partir da cons- trução de
consensos ideológicos majoritários (Poulantzas, 1978; Habermas,
1975).
13
Nos últimos dois séculos, o padrão de intervenção do Estado sofreu
pelo menos duas alterações substanciais, associadas princi-
palmente às transformações mais gerais do capitalismo. O primei- ro
padrão de intervenção do Estado esteve condicionado pelo com-
portamento da economia capitalista verificado até o final do século
XIX, quando predominou uma fase mais concorrencial nos merca- do,
influenciada pela presença absoluta de pequenos negócios, o que
impedia o estabelecimento de oferta e preço por poucos em-
presários.
A estrutura material do Estado era contida, essencialmente vol-
tada para ações menos complexas, como o exercício de três tipos
diferentes de monopólio: o da violência (justiça e segurança públi-
ca); o da moeda (base monetária e arrecadação tributária) e o da
regulação (de contratos, da propriedade e do comércio externo). Em
conformidade com a ideologia liberal, a existência do Estado
(mínimo) seria assegurada somente como um instrumento de estí- mulo
à concorrência, jamais como interventor sobre os agentes
econômicos.
Aliás, convém ressaltar que durante o século XIX, a livre concor-
rência era identificada como uma forma constante de promoção do
“equilíbrio” econômico, capaz de permitir que o processo de acu-
mulação de capital ocorresse de forma auto-regulada, isto é, que as
crises econômicas pudessem ser resolvidas pelo próprio funciona-
mento do mercado, através da presença absoluta de pequenos ne-
gócios e de pequenos compradores. Assim, a crença na existência de
estruturas mais simplificadas de mercado, sem a existência de
poucos e grandes produtores e compradores, era fortalecida pelo
estágio ainda inferior do desenvolvimento capitalista.
Somente no final do século XIX, com o acirramento da concor- rência
entre os capitais, proporcionado pelo avanço de uma gran- de onda
de inovação tecnológica, que exigiu a concentração e centralização
do capital através do surgimento de grandes empre- sas, as
estruturas do mercado se modificaram intensamente. O apa- recimento
de grandes oligopólios e oligopsônios, controlando cres- centemente
tanto a produção quanto a venda de bens e serviços, tornou ineficaz
o espaço do mercado como mecanismo de equalização das taxas de
lucros.
14
O curso do processo de monopolização do capital assumiu a forma de
uma tendência ainda não percebida até então nas econo- mias de
mercado. Dessa forma, a mobilidade intersetorial do capital,
presente no século XIX, terminou sendo constrangida pelo aumento no
grau de concentração dos mercados e pelo crescente poder
monopolístico das grandes empresas nos mais diversos setores.
Apesar disso, somente com a Grande Depressão de 1929 ficou mais
evidente para a sociedade a incapacidade das forças de mer- cado de
produzirem a auto-regulação. O funcionamento das eco- nomias de
mercado requereria a ampliação do grau de intervenção do Estado,
como forma de evitar o aprofundamento da crise e impulsionar a
expansão capitalista em novas bases.
Não foi por outro motivo que a natureza e o papel do Estado
assumiram proporções inimagináveis até então, com capacidade de
direcionar e impulsionar a acumulação de capital através da
redistribuição de parte do excedente econômico e do exercício da
função nobre de procurar regular o sistema econômico em geral. Tudo
isso seria imprescindível, considerando que na fase recente de
monopolização do capitalismo não havia mais condições de reproduzir
as mesmas formas de auto-regulação que não fossem aquelas exercidas
pelo próprio Estado, diante da enorme capaci- dade de produção das
grandes empresas oligopolistas, bem acima do ritmo de expansão
econômica (obtenção de capacidade produ- tiva ociosa não
planejada).
Por conseqüência, as condições de produção e reprodução da
concorrência intercapitalista e das relações entre capital e
trabalho passaram a depender, cada vez mais, do Estado, que se
constituiu fonte de politização constante da economia. Não
significa dizer que o exercício da política passasse a ser
necessário e exclusiva- mente reflexo da situação econômica, embora
a luta política fosse crescentemente associada ao objetivo de
alcançar o poder e o apa- relho de Estado2.
Observa-se que nos últimos oitenta anos, o conteúdo intrínse- co da
regulação no capitalismo decorreu de uma profunda reprogramação na
natureza do Estado, que alterou significativa- mente o
comportamento do mercado. A remodelação das regras de mercado por
uma nova relação entre Estado e economia possi-
15
bilitou, por exemplo, avançar na definição de novas formas de
rendas diretas para o consumo coletivo, sem mais estar relaciona-
do às formas pretéritas de financiamento do consumo dos traba-
lhadores, cujo salário era isoladamente a única forma de acesso ao
consumo.
Com o avanço do planejamento e da capacidade provisional exercida
pelo Estado, bem como o estímulo às áreas sociais (edu- cação,
saúde, lazer, transporte), à ciência e pesquisa e à produção
(investimento produtivo e financiamento) houve singularidade no
funcionamento das economias de mercado no século XX3. O con- sumo
do trabalhador, por exemplo, passou a ser valorizado através da
ampliação das formas de rendimento, tendo o salário direto
acompanhado a produtividade, os encargos sociais financiado as
despesas com aposentadoria e qualificação e o salário indireto
aten- dido aos gastos de saúde, educação, transporte e
habitação.
Nas três décadas após o encerramento da Segunda Guerra Mundial, as
economias avançadas registraram espetacular desen- volvimento, com
crescente participação estatal. Desde a década de
Gráfico 1 – Gasto total do setor público como proporção do PIB em
países
selecionados, 1913-1999 (em %)
0
10
20
30
40
50
60
70
16
1970, no entanto, ampliaram-se os sinais de crise no padrão de
intervenção do Estado fundado na crise da ordem liberal na De-
pressão de 1929. Além de outras modificações nas economias de
mercado, assiste-se à transição do processo de monopolização ca-
pitalista de base praticamente nacional – caracterizado pela expan-
são do pós-guerra – para o de âmbito mundial.
A intensificação da concorrência intercapitalista acirrou ain- da
mais o processo de centralização e concentração do capital, com o
fortalecimento de fusões, incorporações, aquisições entre as
grandes empresas produtivas e financeiras. A constituição de
estruturas oligopolizadas e oligopsônicas de mercado no plano
mundial rompeu com o formato original da regulação estatal es-
tabelecida a partir dos anos 1930 no plano nacional, sem a
redefinição, até o momento, de um novo e bem-sucedido formato
regulatório supranacional.
O aprofundamento da crise do padrão de intervenção estatal voltado
para o espaço nacional fortalece o florescimento do ata- que
ideológico liberal-conservador, que imputa ao Estado as ra- zões
gerais pelos principais males vigentes nas economias de merca- do5.
Com isso, a ação estatal terminou passando por transformações
importantes nos anos 1980, embalado pelo conceito de Estado Mínimo
e pela retórica da busca de elevação da competitividade e de maior
participação de novos grupos organizados da sociedade no processo
de tomada de decisão governamental.
A reavaliação do papel do Estado e a aprovação das refor- mas no
setor público nas economias avançadas ocorreram nas mais variadas
formas, diferentemente do que propunham os de- fensores do Estado
Mínimo e sem levar, necessariamente, ao desmantelamento do aparato
estatal. Podem ser destacadas, por exemplo, novas ações
convergentes para o aumento da descen- tralização nas atribuições
de competências operacionais do Es- tado, com a introdução de
mecanismos de mercado e competi- ção administrada, através da
privatização de segmentos estatais em setores produtivos.
De todo modo, não houve, em geral, perda do controle estatal no
direcionamento estratégico da política industrial, nas áreas de
pesquisa e na área social, nem tampouco redução de
17
participação do gasto público no produto. Prevaleceu a busca pelo
aperfeiçoamento da capacidade de intervenção estatal, com ampliação
do papel da gestão regulatória estratégica e elevação contida das
receitas públicas em relação ao PIB. (OCDE, 1997; Number,
1995).
Gráfico 2 – Composição do gasto público nos países do G-7 em
anos
selecionados (em %)
Fonte: OCDE, vários anos.
Deve-se destacar, entretanto, que a mudança na composição do gasto
público, refletiu, em parte para alguns países, a força do
pensamento neoliberal. Em outras palavras, houve a contenção
relativa de gastos comprometidos com esferas sociais, de investi-
mento e de consumo, em contrapartida à expansão das esferas de
gastos direcionadas ao pagamento do serviços financeiros e de
transferências e subsídios.
Na maior parte dos países do G-7 nota-se a expansão tanto dos
gastos com a seguridade social quanto com os juros. Em con-
trapartida, as esferas de consumo geral e de investimento foram
comprimidas.
A ausência de referências generalizadas acerca da decrescente
participação do emprego do setor público indica ainda a
importân-
18
cia das instâncias do aparato estatal na economia. Países como
Holanda e Reino Unido constituem, até agora, experiências relati-
vamente isoladas no que se refere ao movimento de contenção do
emprego público, pois a maior parte das economias avançadas segue
mantendo a participação crescente de funcionários públicos em
relação ao total da ocupação.
Dessa forma, o setor público permanece exercendo também papel
importante na absorção de força de trabalho, contrapondo- se à
ocupação do setor privado. Em países como a Suécia, por exemplo, o
peso do emprego público atinge diretamente um terço do total da
ocupação, enquanto na Holanda encontra-se um pouco abaixo dos
15%.
Gráfico 3 – Participação do emprego público na ocupação total em
países
selecionados (em %)
* Estimativa. Fonte: OCDE, vários anos.
A busca de maior avanço na capacidade de arrecadação e de
distribuição adequada de recursos constitui parte integrante do
programa de reformulação do papel do Estado realizado recente-
mente nos países avançados. Somente o exercício dessas funções
continuam a depender da presença de funcionários públicos, a
despeito da modernização funcional, administrativa e de infor-
mática naquele setor.
10
15
20
25
30
35
Alemanha EUA França Holanda Itália Noruega Reino Unido Suécia
19
ESTADO E CAPITALISMO NO BRASIL
Uma breve comparação entre a evolução do papel do Estado no Brasil
e a em outros países permite observar diferenças impor- tantes. Em
geral, a presença do Estado nos países desenvolvidos é bem mais
significativa nas áreas sociais (previdência e alocações diversas),
enquanto nas economias não desenvolvidas prevaleceu a intervenção
no setor produtivo, de infra-estrutura e de energia, por
exemplo.
Em parte, essa diferença diz respeito tanto à defasagem exis- tente
entre o grau de desenvolvimento econômico alcançado nas economias
ricas e nas economias pobres quanto à forma de inser- ção de cada
país na economia mundial. Na tentativa de diminuir as diferenças em
relação às economias ricas, os países não desenvol- vidos, sem
condição de depender exclusivamente do setor priva- do, terminam
por utilizar o aparato estatal no esforço de expansão do sistema
produtivo.
No Brasil, o setor público compreende duas divisões impor- tantes.
A primeira diz respeito às funções de governo, tais como a
administração direta em todos os níveis, adicionada às autarquias e
demais atividades que dependem exclusivamente do orçamento
público.
A segunda refere-se às empresa públicas, que possuem, por sua vez,
dois segmentos: setor produtivo estatal, constituído pelas grandes
empresas e subsidiárias pertencentes à base econômica; e empresas e
organismos desvinculados das atividades produtivas, especialmente
nas áreas de serviços e transportes6.
Do ponto de vista da evolução temporal no papel do Estado no
Brasil, pode-se identificar a presença de três fases bem distin-
tas. A primeira refere-se até a década de 1920, quando o liberalis-
mo econômico era hegemônico.
Por conta disso, a participação do Estado no domínio econô- mico
era ínfima, limitando-se às funções de regulação, controle
monetário e arrecadatório. Apesar disso, cabia ao Estado o desem-
penho de funções marginais na economia, especialmente por meio de
empresas públicas, como o Serviço Postal e a Casa da Moeda, que
foram constituídas no século XVII.
20
Ao mesmo tempo, pelo menos durante o século XIX, o governo buscou
garantir taxa de retorno aos investimentos privados realiza- dos no
Brasil, principalmente aqueles provenientes de aplicações inglesas
nas ferrovias. Com isso, as despesas governamentais com subsídios
para companhias de navegação e de ferrovias chegaram a garantir uma
taxa de até 6% do total das importações (Villela e Suzigan,
1973).
De outra parte, também era função do Estado a realização de
concessões de serviços de utilidade pública ao setor privado na-
cional e estrangeiro. Nos segmentos identificados com o monopó- lio
natural, como eletricidade e transportes (bondes), era grande a
presença de empresas privadas que atuavam por concessão do Estado
(Singer, 1975).
Antes da República, o Brasil havia criado algumas poucas empresas
públicas, como o Banco do Brasil, a Imprensa Régia e a Real Fábrica
de Ferro de São João de Ipanema. Com a instalação da República,
cerca de dois terços das ferrovias foram estatizadas, assim como
ganhou importância a atuação do Estado, por intermé- dio das Caixas
Econômicas, o que garantiu a presença de 25 em- presas públicas no
Brasil até 19307.
Com a Revolução de Trinta houve uma profunda modificação no padrão
de intervenção estatal no Brasil. O abandono do libera- lismo abriu
novas perspectivas para uma importante atuação esta- tal que vai
durar quase seis décadas.
Mas isso ocorreu influenciado sobretudo pela intenção das forças
sociais no Estado, com vistas a promover o desenvolvi- mento
econômico, através da industrialização. Dessa forma, bus- cou-se
garantir a ocupação de “espaços vazios”, ainda não aten- didos pelo
setor privado ou que apresentavam insuficiência na escala de
produção, de financiamento e de tecnologia. Entre 1930 e 1989, três
períodos são relevantes para analisar sinteticamente a evolução do
padrão intervencionista do Estado na economia brasileira.
O primeiro período transcorre entre 1930 a 1955, quando o conjunto
das ações do Estado na economia visou não apenas a constituição de
um novo aparelho de Estado (administração e for- mação de quadros),
com a regulação de vários setores de ativida-
21
des econômicas e sociais, mas principalmente a atuação direta no
processo de acumulação capitalista. Teve elevada importância a
constituição de empresas públicas como a Companhia Siderúrgica
Nacional (1941), a Companhia Vale do Rio Doce (1942), a Compa- nhia
Nacional Álcalis (1943), a Fábrica Nacional de Motores (1943), a
Companhia Hidrelétrica de São Francisco (1945), o BNDES (1952) e a
Petrobrás (1954).
Isso tudo ocorreu estimulado fortemente pela visão naciona- lista,
que exigia uma condução bipartite entre a atuação do Estado e o
desenvolvimento do setor privado nacional. Nos setores que já
possuíam a presença de capitais estrangeiros, como na navegação e
na eletricidade, a instalação de conselhos e a definição de códi-
gos regulatórios cumpriram as funções de controle da acumulação de
capital, conduzidas pelos recursos internacionais (Draibe, 1985;
Dain, 1979; Lessa, 1978; Prado, 1990).
O segundo período na evolução do padrão de intervenção do Estado no
Brasil desenvolve-se entre 1955 e 1964, com a imple- mentação do
Plano de Metas durante o governo JK. A partir desse momento, o
nacionalismo perdeu alguma importância, dando lu- gar a uma nova
articulação entre Estado, capital privado nacional e capital
privado internacional.
Gráfico 4 – Brasil: Participação do Estado no total do investimento
(em %)
Fonte: Bacen, FGV, FIBGE, vários anos.
0
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40
50
47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68
69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90
91 92 93 94 95 96 97 98 99
22
A constituição de uma articulação trilateral de interesses, en-
volvendo a presença de ampla participação de recursos externos,
possibilitou tanto ao setor privado quanto ao Estado o avanço na
internalização do padrão de industrialização, conforme anterior-
mente verificado nos países desenvolvidos. O salto industrializante
foi comandado pelo Estado, perseguindo o princípio original de
ocupar os “espaços vazios” deixados pelo setor privado (Benevides,
1976; Martins, 1977; Ianni, 1971; Lafer, 1975; Resende,
1980).
Por fim, o terceiro período na evolução do padrão de inter- venção
estatal se deu entre 1964 e 1989, quando o papel econômi- co do
Estado buscou não apenas assegurar o desenvolvimento de “espaços
vazios”, mas garantir a aplicação da ideologia de “segu- rança
nacional”. Durante o governo militar, a expansão das empre- sas
estatais foi expressão direta de uma ideologia, em que o Estado
avançou muito, alterando o quadro de desnacionalização inicial-
mente estimulado pelo governo de JK, ao proteger parcela signifi-
cativa do setor privado nacional (Tavares e Serra, 1970; Evans,
1980; Leff, 1975; Diniz, 1978).
A base de financiamento do Estado dentro do processo de acumulação
de capital dependia dos recursos orçamentários, dos reinvestimentos
das empresas estatais e de formas indiretas de tri- butação e
emissão monetária. O fortalecimento do Estado através do
autoritarismo e a ampliação da sua capacidade de captação do
excedente econômico favoreceu a constituição de uma nova arti-
culação entre a burocracia estatal e as grandes empresas públicas,
o que trouxe, por conseqüência, o descolamento de parte dos
interesses do setor privado nacional.
Por conta disso, na segunda metade dos anos 1970, surgiram as
primeiras críticas ao fortalecimento estatal. Não havia ainda a
manifestação direta de interesses favoráveis à privatização, mas
sim à associação crescente entre o autoritarismo e a estatização
econômica, ao passo que a manifestação dos primeiros sinais de
crise no padrão de intervenção do Estado instituído a partir de
1930, abriu uma primeira lacuna para o engrandecimento dos prin-
cípios neoliberais (Castro, 1984; Pessanha, 1981).
Nos anos 1980, com a crise da dívida externa, combinada à opção de
política econômica adotada na época (estatização da
23
dívida externa e transformação das empresas estatais em mecanis-
mos de ajuste, com a desvalorização dos preços e tarifas públicas e
estímulo ao endividamento, como forma de atrair recursos exter- nos
em quantias necessárias para o fechamento das contas exter- nas), o
setor produtivo passou a perder eficiência e eficácia. Com isso,
cresceu também a relação realizada entre a presença do Esta- do na
economia e o regime autoritário.
Dentro dessa perspectiva, o ano de 1990 marcou uma drástica ruptura
no padrão de intervenção do Estado na economia brasilei- ra. Com a
vitória de Collor nas eleições de 1989, não apenas as medidas
estabelecidas pelo “Consenso de Washington” passaram a ser
implementadas no Brasil, como foi constituído um novo mode- lo
econômico. A ênfase na revisão do papel do Estado teve, além da
realização das reformas administrativa, tributária e previdenciá-
ria, a preocupação com a promoção de um intenso programa de
privatização.
Em função disso, o desmonte do Estado transcorreu ao longo dos anos
1990, fortalecido pelas idéias de transferência de ativos públicos
para o setor privado, como forma de estabelecer um novo condutor do
desenvolvimento econômico e social. Ao Estado coube um espaço
regulador, voltado ao estímulo da competição e da eficiência dos
mercados, bem como variável importante adotada no ajuste fiscal
(Giambiagi e Moreira, 1999; Velasco Jr., 1997; Pinheiro e Fukasaku,
2000; Pinheiro e Landau, 1995).
NOVO MODELO ECONÔMICO E IMPLICAÇÕES NO PAPEL DO ESTADO
BRASILEIRO DESDE 1990
O Brasil possui, desde 1990, um modelo econômico que se diferencia
profundamente do verificado entre as décadas de 1930 e de 1970. Em
vez da defesa da produção e do emprego nacional, privilegia-se a
promoção da integração do sistema produtivo na- cional à economia
mundial.
Dessa forma, o padrão de intervenção estatal perdeu grande parte de
sua funcionalidade. Em nome da competitividade, seg- mentos do
setor público desapareceram, outros foram privatizados, concedidos,
terceirizados e reformulados.
24
Pode-se constatar que o atual modelo econômico representa a
experiência mais exitosa de interrupção do projeto de desenvolvi-
mento após 1930. Até então, duas tentativas realizadas
anteriormente visando a modificação no papel do Estado tinham sido
introduzidas, porém sem o sucesso verificado atualmente8.
Entre 1946 e 1947, durante o governo de Eurico Gaspar Dutra,
ocorreu, por exemplo, uma primeira tentativa de rompimento do
padrão de intervenção estatal constituído ainda na década de 1930.
Nesse período, foi criticado, por um lado, a presença do Estado na
economia, associando-a ao Estado Novo (regime autoritário vigen- te
nos anos 1937-1945); e, por outro lado, foi defendido o liberalis-
mo econômico, através do abandono da Coordenação de Mobilização
Econômica e do controle de preços verificados entre 1942 e 1945. Ao
mesmo tempo, o Conselho Nacional de Petróleo tomou a iniciativa de
abrir concorrência para a construção de refi- narias por companhias
privadas, enquanto a liberalização comer- cial ganhou grande
dimensão, comprometendo significativamente as reservas
internacionais acumuladas durante o período da Se- gunda Guerra
Mundial.
Quando se elegeu a inflação como problema a ser enfrentado, o
ingresso de oferta de produtos do exterior assumiu maior rele-
vância. Mas antes de dois anos, a ilusão das reservas
internacionais foi constatada, com o rápido esvaziamento dos
recursos acumula- dos, o que criou uma falsa visão do liberalismo.
No período restan- te, o governo Dutra tratou de recompor o modelo
de desenvolvimentismo anterior com apoio social.
A segunda tentativa de rompimento com o padrão de inter- venção de
Estado ocorreu entre 1964 e 1966, durante o primeiro governo
autoritário do regime militar, quando ganhou expansão a retórica
favorável ao desenvolvimento econômico com ênfase no liberalismo e
internacionalismo. Duas empresas foram privatizadas, como no caso
da FNM (Fábrica Nacional de Motores), vendida para Alfa Romeu, e da
Cosigua, que teve parte de suas ações adquiridas pela Thissen
Steel, bem como o setor petroquímico foi transforma- do em espaço
para investimentos de empresas privadas.
Durante o mesmo período de tempo, a política de combate à inflação
reuniu o realismo tarifário com a promoção do arrocho
25
salarial, através da manutenção de baixas taxas de expansão eco-
nômica. Os resultados promovidos pelo impulso liberal foi pífio,
tornando-se desacreditado pelos governos militares que sucede- ram
o general Humberto Castello Branco, levando-os a optarem pela
retomada do padrão estatal de intervenção econômica de maneira
redobrada.
Somente 24 anos depois, uma revisão profunda do papel do Estado foi
realizada. Através da desregulamentação da concorrên- cia e da
realização das reformas administrativa, previdenciária e fiscal,
aliada ao processo de descentralização e privatização ao longo da
década de 1990, foi rompido o padrão de intervenção estatal no
Brasil. Assim, o desmonte do aparato estatal terminou sendo
implementado.
Quatro novos segmentos do setor público foram constituídos, através
do núcleo estratégico (definição de leis e políticas públi- cas),
das atividades exclusivas (forças armadas, arrecadação e agên- cias
de regulação, fomento e controle), dos serviços não exclusi- vos
(educação, saúde, seguridade e pesquisa) e do setor de produção de
bens e serviços (empresas estatais). O novo formato do aparato
estatal foi exigido dentro do objetivo governamental de enfrentar a
crise fiscal, concedendo um novo papel ao Estado menos
intervencionista e muito mais regulatório (Pereira, 1997).
Em grande medida, a ênfase na reforma do Estado foi provocada pelo
recente avanço hegemônico da ideologia neoliberal, a partir da
difusão da concepção de que o aparato estatal impunha obstá- culos
à inovação tecnológica, sendo ineficiente na alocação dos recursos
na economia e na promoção da redução do déficit fiscal. Em síntese,
constitui-se uma interpretação equivocada de que o padrão de
intervenção estatal anterior evitava a modernização e a eficiência
econômica9.
REVISÃO DO PAPEL DO ESTADO, PRIVATIZAÇÃO E EMPREGO NO
BRASIL
O processo de desestatização não se constitui uma novidade. Na
Alemanha Ocidental, com a vitória eleitoral de Konrad Adenauer, em
1957, foi lançado o primeiro programa de desestatização do
26
segundo pós-guerra, visando liberalizar a atuação de grandes em-
presas que possuíam presença do Estado, como no caso da Volkswagen
que, em 1961, deixou de ter a participação no Estado alemão
(Megginson, 1994).
Depois da experiência alemã, somente no início dos anos 1980,
através de Margareth Thatcher, na Inglaterra, é que voltou a
ocorrer um amplo processo de privatização do antigo setor estatal e
de fornecimentos de serviços públicos. A experiência inglesa
transformou-se no ícone dos programas liberais, pas- sando a ser
adotada em maior ou menor medida em vários paí- ses
capitalistas10.
Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o automático processo de
transição das economias planejadas (socialistas) para a economia de
mercado, notou-se não apenas a privatização do setor produtivo
estatal, mas a adoção do princípio de generalizada desestatização
das economias, com a ampla venda de empresas públicas, conforme a
situação nacional.
O caso da Alemanha Oriental foi emblemático, pois chegou a
transferir para o setor privado em formação mais de 10 mil empre-
sas públicas. Noutras economias como Polônia, Hungria e Rússia, o
desmonte estatal também ocorreu, ainda que em ritmo e ampli- tude
diferenciados11.
Nos países capitalistas não desenvolvidos, a ênfase da revisão no
papel do Estado também ocorreu. Entretanto, os processos de
privatização não foram os mesmos.
Na América Latina, por exemplo, alguns poucos países já re-
gistravam desde 1980 algumas experiências de desestatização, como
no caso do Chile e México. Mas foi a partir do Consenso de
Washington, ao final dos anos 1980, quando as teses liberais torna-
ram-se hegemônicas na região, que o programa ampliado de pri-
vatização do setor produtivo estatal e dos serviços públicos ga-
nhou grande importância. A transferência de parte significativa dos
ativos do setor público para a iniciativa privada seguiu, em alguma
medida, três objetivos básicos12.
O primeiro objetivo esteve associado à constituição de um novo
modelo econômico, em que o Estado tivesse um papel resi- dual na
atividade econômica. Dessa forma, caberia ao setor priva-
27
do exercer plenamente suas funções, sendo o carro-chefe da dinâ-
mica econômica, conduzindo o investimento ao estágio
superior.
O segundo objetivo ganhou importância com o desenvolvi- mento do
papel do Estado na função de regulação da concorrência privada,
tendo ainda participação focalizada e reforçada nas áreas sociais,
como educação e saúde. Assim, a redução do tamanho do Estado na
economia ocorreu com a realização de reformas admi- nistrativa,
previdenciária e tributária, além de representar uma reconfiguração
do setor público.
Por fim, o terceiro objetivo representou parte de uma estraté- gia
mais geral de combate à inflação. Como o modelo de estabili- zação
monetária perseguido esteve vinculado à constituição de uma âncora
cambial, houve a imposição de taxas de juros elevadas para atrair o
ingresso e a manutenção, por tempo necessário, de reservas em
moedas fortes, geralmente em dólar norte-americano.
Mas isso terminou gerando não apenas o crescimento do en-
dividamento externo, como também a expansão das dívidas do setor
público. Por isso foi realizada em profusão a desmobilização do
setor produtivo estatal e dos serviços públicos, como forma de
gerar receitas necessárias para servir de abatimento de parcela do
endividamento público.
No Brasil, depois de um ciclo importante de expansão do setor
produtivo estatal, assistiu-se, com o esgotamento do modelo de in-
dustrialização nacional, à adoção de medidas de desestatização.
Durante os anos 1980, embora a desestatização não tivesse relevân-
cia na agenda pública, algumas empresas estatais foram
privatizadas, com a eliminação de postos de trabalho localizados,
paralelamente ao aumento do nível de emprego no conjunto do setor
público estatal. Entre 1979 e 1989, o volume de emprego estatal
aumentou, com a abertura de 229 mil novos postos de trabalho.
Nos anos 1980, o processo de privatização tratou, na maior parte,
de uma reprivatização de empresas que anteriormente já pertenciam
ao setor privado, mas que por estarem em situação de insolvência,
tinham sido previamente estatizadas com o objetivo de saneá-las e
devolvê-las a normalidade empresarial. Na realidade, cabia ao
BNDESPAR
a realização de operação-hospital no setor privado ineficiente,
garan- tindo recurso público para seu saneamento.
28
Dessa forma, ao longo da década de 1980, um conjunto de empresas
ex-privadas foi reprivatizado. Durante o governo Figueiredo, vinte
empresas estatais foram transferidas ao setor pri- vado, como
aquelas vinculadas à Riocell Celulose e Fiação e Tece- lagem
Lutfala. Na segunda metade da década de 1980, no governo Sarney,
mais dezoito empresas estatais passaram ao setor privado. Entre as
empresas privatizadas, destacaram-se os casos da Aracruz Celulose,
Caraibas Metais, Usibra, Siderurgia Cinetal e Sibra13.
O processo de privatização no Brasil somente sofreu uma mudança
substancial a partir da aprovação do Programa Nacional de
Desestatização em 1990, com o governo Collor. A partir de então, a
desmobilização do setor público assume papel central na agenda
governamental, sendo instrumento-chave do processo de ajuste
fiscal.
1979/84 20 274 16 146.980 1985/89 18 549 620 82.125 Anos 80 38 823
636 229.105
1990/92 44 15.128 2.664 –198.136 1993/94 35 17.320 3.752 – 47.732
1995/99 84 42.008 11.660 – 300.120 Anos 90 166 74.456 18.076 –
545.988
Tabela 1 – Brasil: evolução das empresas privatizadas e do ajuste
do
emprego no setor estatal entre 1979 e 1999
Período
Fonte: SEST, BNDES e MTE. Elaboração própria. * Refere-se ao saldo
líquido de empregos destruídos e criados no setor estatal
resultante do efeito do conjunto das empresas privatizadas,
fechadas e incorporadas.
Empresas privatizadas
Empregados formais
envolvidos*
Com isso, o Estado deixou de ser responsável direto pelo de-
senvolvimento socioeconômico, afastando-se rapidamente da fun- ção
de produção de bens e serviços. Em contrapartida, o setor privado
passou a ser o principal centro promotor da dinâmica eco- nômica
nacional.
Em outras palavras, a privatização transformou-se em impera- tivo
do modelo econômico adotado em 1990, quando a geração de
29
receitas públicas adicionais tornou-se necessária para abater parte
do endividamento produzido por juros expressivos, como susten-
táculo da estabilidade monetária. Ao mesmo tempo, a aposta go-
vernamental na tese do tecnoglobalismo influenciou a decisão de
atrair empresas transnacionais com o objetivo de elevar o investi-
mento, sendo a privatização de importantes empresas estatais um
passo fundamental no curso do processo de desnacionalização eco-
nômica da década de 1990.
Acompanhando a evolução do processo de desestatização eco- nômica
pode-se observar uma divisão temporal importante no que diz
respeito ao perfil da privatização. Entre 1990 e 1994, a
privatização realizada concentrou-se no setor produtivo estatal,
basicamente na indústria de transformação (petroquímica,
siderurgia, mineração e fer- tilizantes), ocasionando a perda
líquida de 246 mil postos de trabalho.
A partir de 1995, a privatização voltou-se mais para os serviços
públicos, como telecomunicações, energia, transportes, bancos,
entre outros. Os efeitos sobre o volume de emprego no setor público
foram negativos, com a geração de um saldo líquido de 300 mil
postos de trabalho destruídos entre 1995 e 1999.
Em síntese, os últimos dez anos voltados para a adoção de programas
de reformulação do papel do Estado no Brasil repercu- tiram
negativamente no volume de emprego referente ao conjunto das
atividades sob intervenção do setor público estatal, uma vez que
houve a diminuição de quase 546 mil postos diretos de traba- lho.
Como se pode observar, o processo de privatização, fecha- mento,
incorporação e ajuste das empresas estatais concentrou-se
fortemente sobre o nível de emprego.
Do saldo total negativo de 3,2 milhões de empregos assalaria- dos
formais destruídos na economia brasileira durante a década de 1990,
17,1% foi de responsabilidade direta da reformulação do setor
produtivo estatal. Ou seja, de cada cinco empregos perdidos, nos
anos 1990, um pertencia ao setor estatal.
Perfil das modificações no emprego a partir da privatização
Ao longo da década de 1990, a intensa modificação no interior do
setor estatal brasileiro implicou não apenas a acentuada
redu-
30
ção do nível do emprego, mas também a alteração do perfil ocupa-
cional. Considerando-se o conjunto das empresas que conformam o
setor estatal, nota-se que em 1999 o volume de emprego encon-
trava-se abaixo do de 1979 em cerca de 300 mil postos de trabalho e
de 546 mil vagas em relação ao ano de 1989.
Através da revisão do papel do Estado e da privatização, vá- rios
setores estatais perderam sensivelmente empregos, ainda que o setor
privado tenha mantido uma parcela com vínculos formais. A
privatização não permitiu, após dez anos de revisão no papel do
Estado, compensar o esvaziamento das ocupações anteriormente
existentes no setor estatal.
Em síntese, a implementação de um novo modelo econômico, sustentado
no imperativo do enxugamento do papel do Estado e na transferência
de atividades produtivas estatais para o setor pri- vado, implicou
significativo ajuste do nível de emprego. Os traba- lhadores do
setor público foram transformados na principal variá- vel de ajuste
do Estado no Brasil nos anos 1990.
Gráfico 5 – Brasil: evolução do volume de emprego direto
assalariado com
contrato formal nas atividades estatizadas e após a
privatização,
1979-1999 (em mil)
Fonte: SEST; MTE (vários anos). Elaboração própria.
Não apenas o instrumento da demissão de empregados foi intensamente
utilizado no antigo setor produtivo estatal, mas tam- bém
destacou-se a adoção de medidas orientadas para a maior
1 002 1 045
1 1 49
1 202 1 1 88 1 205 1 21 8 1 231
1 1 55
1 1 49
1 202 1 1 88 1 205 1 21 8 1 231
1 1 39
1 95 1 85
1200 1300
79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98
99
Emprego total Emprego estatal Emprego privado
31
intensificação do trabalho, através da implementação de novos
programas de gestão de mão-de-obra. A terceirização, a
subcontratação e a rotatividade constituíram os novos mecanismos
adotados para a redução salarial e a subordinação dos empregados
que restaram, com o objetivo de gerar lucros a qualquer custo tanto
no setor estatal como nas novas empresas privatizadas. So- mente a
taxa de rotatividade passou de 7,3%, em 1989, para 24,8%, em
1999.
A redução de 43,9% no total do emprego do setor estatal du- rante a
década de 1990 não ocorreu de forma homogênea. Os empregos
masculinos foram os mais atingidos, quando compara- dos com o
emprego feminino. Por conseqüência, a queda na mas- sa de
rendimento do setor público, estimada em 34,5%, foi mais estimulada
pela diminuição nos rendimentos dos empregados mas- culinos do que
dos femininos.
Em relação à evolução do emprego por faixa etária, nota-se que as
demissões concentraram-se mais em determinados segmentos
ocupacionais. Os empregados mais jovens foram os mais atingidos
pelas medidas de enxugamento de pessoal, especialmente pelo
processo de privatização.
Entre 1989 e 1999, o emprego de jovem no setor estatal foi reduzido
em 73,4%. O segmento etário de 25 a 49 anos foi atingido de maneira
menos intensa, ainda que quase 39% dos empregados tenham perdido
emprego no setor estatal. Para os empregados com mais de 49 anos, a
queda no volume de postos de trabalho foi de quase 46%.
Também em relação ao grau de instrução, prevaleceu o ajuste do
emprego estatal, com base na contenção dos empregados com baixa
escolaridade. Para aqueles com até o primeiro grau, o em- prego foi
diminuído em 72,3%, enquanto, para os empregados com nível
universitário, a perda na quantidade de postos de traba- lho ficou
abaixo de 10%.
Em outras palavras, a educação transformou-se no novo crité- rio de
exclusão do acesso ao emprego anteriormente pertencente ao antigo
setor estatal, ainda que a maior escolaridade não seja o imperativo
decorrente de modificações substanciais no conteúdo do trabalho. A
maior concorrência no interior do mercado de tra-
32
balho termina estimulando, muitas vezes, tanto a elevação dos re-
quisitos de contratação por parte dos empregadores quanto a ado-
ção do critério de corte de empregos.
Uma outra característica recentemente introduzida no padrão de
emprego do setor estatal após a sua privatização foi a incorpo-
ração dos mecanismos de grande instabilidade nos contratos de
trabalho. Conforme apresentado anteriormente, o uso da rotatividade
tornou-se uma constante.
Com isso, o princípio da demissão atingiu, em maior escala, parte
dos trabalhadores com maior tempo de serviço na mesma empresa.
Enquanto os empregados com até um ano na mesma empresa foram
reduzidos em quase 46%, os emprega- dos com três a dez anos de casa
tiveram cerca de 66% dos postos de trabalho destruídos. Somente os
empregados com mais de dez anos de tempo de serviço na mesma
empresa foram os menos atingidos pelo fenômeno da demissão.
Os empregados situados nas maiores faixas salariais sofreram menos
com a revisão do papel do Estado. Entre 1989 e 1999, quase um terço
dos empregados com mais de vinte salários mínimos de remuneração
perderam seus postos de trabalho, enquanto quase a metade dos
trabalhadores que recebiam até três salários mínimos foi demitida.
O segmento ocupacional mais atingido foi aquele em que os
empregados recebiam entre três a sete salários mínimos mensais, com
dois terços das ocupações perdidas.
Cabe ressaltar ainda o peso das grandes empresas no movi- mento de
contenção do total do emprego estatal. Entre 1989 e 1999, quase 51%
das ocupações das empresas com mais de 499 empregados foram
eliminadas. As micro e pequenas empresas foram as que menos
demitiram. Para os anos 1990, as empresas com 50 a 249 empregados
eliminaram quase 30% do total dos empregos.
Por fim, em relação à evolução dos ocupações profissionais,
observa-se a importância de algumas quando compara-se o saldo
líquido verificado entre a destruição e a criação de novas vagas.
Ao se considerar as dez principais ocupações profissionais
destruídas nos anos 1990 no setor estatal, encontra-se, em primeiro
lugar, a de auxiliar de escritório, seguida da de auxiliar de
contabilidade,
33
de mestre na produção e serviços, de ferroviários e de instaladores
e reparadores de telecomunicações.
Quando o critério de sistematização dos empregos for as ocu- pações
profissionais que mais postos de trabalho criaram, nota-se a
importância de setores que não foram privatizados. A principal
ocupação profissional em evidência foi a de mensageiro e carteiro,
que teve, entre 1989 e 1999, o acréscimo de quase 7 mil novas
vagas.
Em seguida, ganharam maior importância as ocupações pro- fissionais
de agentes administrativos, de gerentes financeiros e co- merciais,
gerentes administrativos e agentes de vendas. Como não poderia
deixar de ser, as empresas privatizadas procuraram valori- zar as
ocupações voltadas para o controle de custos, planejamento
tributário, administração financeira e vendas.
Tabela 2 – Brasil: evolução das dez principais ocupações
profissionais
destruídas e criadas no setor estatal entre 1989 e 1999
Ocupações destruídas Número Ocupações criadas Número
Auxiliar de escritório – 61.777 Carteiros e mensageiros 6.693
Auxiliar de contabilidade – 17.981 Agentes administrativos 5.095
Mestres na produção e Gerentes financeiros e serviços – 16.132
comerciais 4.442 Ferroviários e maquinistas – 15.604 Gerentes
Instaladores e reparadores administrativos 2.013 de
telecomunicações – 15.155 Agentes de vendas 1.398 Condutores de
caminhões Analistas de ocupações 754 e ônibus – 12.573 Técnicos em
tributação 541 Guarda de segurança – 10.692 Supervisores de vendas
Engenheiro elétrico – 7.528 Vendedores de atacado 405 Operadores de
produção e varejo 255 de energia elétrica – 7.404 Técnicos de
controle da Torneiro – 6.478 produção 125
Subtotal –171.324 Subtotal 21.721
34
PONTOS FRACOS DE UMA ESTRATÉGIA
Ao longo de todo o século XX, a década de 1990 ficou marcada no
Brasil como aquela que produziu o pior desempenho econômi- co. Por
registrar uma variação média anual de apenas 1,9% no Produto
Interno Bruto, inferior à registrada nos anos 1980, o país deixou
de ter o que comemorar. A estabilização monetária, embo- ra muito
significativa para uma economia que conviveu por 15 anos contínuos
com um processo hiperinflacionário, não se mos- trou suficiente,
nem mesmo para compensar a medíocre situação econômica mais geral,
quanto mais o agravamento do quadro so- cial, em que o desemprego e
a violência urbana emergem como fenômenos de difícil enfrentamento.
Conforme será possível ob- servar adiante, nem mesmo o processo de
concentração de renda foi revertido.
A mudança no modelo econômico a partir de 1990 foi o grande
imperativo do processo de revisão do papel do Estado, especial-
mente com a adoção da privatização. O desmonte do setor estatal foi
alardeado como um dos principais passos para que o país pudes- se
alcançar uma situação superior à verificada na década de
1980.
Decorridos dez anos de revisão do papel do Estado, o Brasil
permanece prisioneiro do processo de financeirização da riqueza,
amargando a ausência de crescimento econômico sustentado. Por conta
disso, a dimensão dos problemas sociais cresce, empurran- do o
país, cada vez mais, para uma situação de esgarçamento do tecido
social sem expressão histórica anterior.
Até agora, o setor privado, diante da retirada do Estado do setor
produtivo, segue incapaz de promover o desenvolvimento
socioeconômico necessário e urgente. Mesmo com o ingresso de
grandes somas de recursos internacionais, responsáveis, em parte,
pela própria desnacionalização do setor produtivo estatal, não
houve a fundamentação de uma sólida base de produção.
Em 1999, cerca de 32,8% da totalidade dos serviços públicos estavam
concentrados no Estado, enquanto em 1989 eram 100%. A participação
do setor privado aumentou significativamente, tendo especial
atenção as empresas privadas estrangeiras, com 42% do total das
vendas realizadas nos serviços públicos.
35
No setor financeiro, a participação do Estado caiu de 58,9% para
35,6%. A participação relativa do setor privado estrangeiro
aumentou, em contrapartida, de 6% para 29,6%.
A ampliação da presença do setor privado no comando da economia
brasileira durante os anos 1990 veio acompanhada da explosão do
desemprego. Em grande medida, o processo de revi- são do papel do
Estado, estimulado pela privatização do setor estatal, contribuiu
para a explosão das demissões nas empresas públicas, sem a
necessária contrapartida da geração de novas va- gas no setor
privado.
O déficit no emprego ocorrido nas atividades econômicas ocu- padas
anteriormente pelo Estado foi de mais de meio milhão de postos de
trabalho nos anos 1990. Assim, quase 20% dos 3,2 mi- lhões de
empregos assalariados com contrato de trabalho destruídos nos
últimos dez anos foram de responsabilidade do processo de revisão
do papel do Estado no Brasil.
Em conformidade com as informações do BNDES, o processo de
privatização realizado no Brasil durante os anos 1990 foi responsá-
vel pela geração de receita pública adicional próxima de 74,5 bi-
lhões de dólares e de transferência de 18,1 bilhões de reais
de
Gráfico 6 – Brasil: participação relativa do Estado em setores de
atividade
econômica selecionados antes e depois da privatização, 1989 e
1999
(em % das vendas)
36
dívida que era do setor público para o setor privado14. Adicionan-
do-se ainda a elevação na carga tributária bruta ocorrida na década
de 1990, encontram-se evidências de maior receita ao Estado, sem
contrapartida na elevação no gasto social.
Aliás, deve-se destacar que um dos principais argumentos uti-
lizados pelos defensores da revisão do papel do Estado, com trans-
ferência do patrimônio estatal para o setor privado, era a
centrali- zação e o adicional dos gastos nas áreas sociais.
Contudo, sem a comprovação dos argumentos favoráveis à privatização
inicialmente utilizados, nota-se agora que foi a transferência de
receita pública para o setor financeiro, em atendimento do
pagamento dos servi- ços do endividamento, o real motivo da
privatização. Até agora, os procedimentos adotados para a
privatização do setor público per- seguem o ajuste fiscal, que se
mostra de caráter permanente, en- quanto a sustentação da
estabilidade monetária continuar depen- dendo de altas taxas de
juros e, com isso, do endividamento do setor público.
Fonte: SEST, MTE, Bacen. Elaboração própria.
Gráfico 7 – Brasil: evolução dos índices de endividamento público,
do
emprego no setor estatal e da carga tributária nacional,
1980-1999
(1989=100,0)
50
70
90
110
130
1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999
Carga Tributária Emprego no setor estatal Endividamento público
Investimento
37
Por fim, não se pode esquecer que para um país de graves
desigualdades regionais e sociais, o predomínio do acesso aos ser-
viços básicos a partir da iniciativa privada termina por
potencializar ainda mais as diferenças. Como norma de funcionamento
do setor privado, bens e serviços são fornecidos toda vez que
houver capa- cidade aquisitiva suficiente para cobrir custos e
margens de lucros. Em outras palavras, regiões geográficas menos
desenvolvidas e parcelas mais pobres da população correm o sério
risco de ficar desprestigiadas em investimentos e fornecimento de
bens e servi- ços toda vez que não apresentarem suficiente
capacidade aquisiti- va. Com isso, a desigualdade regional, social
e econômica tende a aumentar ainda mais. A respeito da evolução da
questão regional no Brasil ver o seu aprofundamento adiante.
NOTAS:
1 Para avaliar a situação do emprego organizou-se um grande
conjunto de informações sobre o setor público, a partir das
seguintes fontes de dados: a) Cadastro das Empresas Estatais do
Ministério do Planejamento, através da Secretaria de Controle de
Empresas Estatais (SEST); b) Relação de Informações Sociais e
Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, ambos do Minis- tério
do Trabalho e Emprego; c) Banco Nacional de Desenvolvimento Econô-
mico e Social (BNDES). Ao todo foram 490 empresas e autarquias
analisadas pelo estudo, divididas em três ramos de atividades
econômicas: setor produ- tivo estatal, setor financeiro e
atividades fins de governo na administração indireta. Deve-se
agradecer especialmente a disponibilização de dados por parte do
Ministério do Trabalho e Emprego e a sistematização das informa-
ções realizada pela Datamec. Ao mesmo tempo, Thiago Ribeiro
contribui favoravelmente na produção de uma síntese indispensável
do conjunto dos dados, enquanto a professora Sônia Tomazine
estimulou a discussão e a pes- quisa sobre o emprego estatal.
2 A literatura que trata do papel do Estado no capitalismo
monopolista pode ser encontrada em: Poulantzas, 1978; Mello,
1977.
3 Sobre a ação estatal, ver: Myrdall, 1962; Aglietta, 1979;
Shonfield, 1968; Galbraith, 1968.
4 Sobre as transformações do Estado nacional, ver: Altvater, 1995;
Kurz, 1995; Fiori, 1999; O’Connor, 1977.
5 Ver especialmente: Hayek, 1983; Friedman, 1982; Crozier, 1987. 6
Sobre a experiência estatal brasileira, ver: Salama e Mathias,
1983; Reichstul e
Coutinho, 1983; Braga, 1983.
38
7 Sobre a presença do Estado através da empresas públicas, ver:
Martone, 1984; Palatnik, 1979.
8 Pode-se constatar que a partir da segunda metade dos anos 1970
houve uma campanha contra a estatização promovida durante o governo
militar. Inicial- mente, ocorreu, em 1974, a eleição, pela revista
Visão, de Eugênio Gudim – o pai do atual neoliberalismo, – como
Homem do Ano, enquanto, em 1975, o jornal O Estado de S. Paulo
publicou uma série de reportagens sobre os caminhos da estatização.
Depois disso, desencadeia-se uma campanha conti- da contra a
estatização movida por empresários. Mais tarde, estudiosos cons-
tataram que não se tratava da defesa de uma economia com menos
interven- ção, mas a pressão por participação nas decisões
econômicas governamen- tais, especialmente no caso do Conselho de
Desenvolvimento Econômico, que era somente formado pelo Presidente
da República e ministros. Ver: Ressanha, 1981.
9 Sobre as críticas ao Estado, ver: World Bank, 1997; Pollitt,
1996; Williamson, 1990.
10 A respeito do processo de privatização nas economias avançadas
ver: Kikeri et alli, 1992; Boubakri e Cosset, 1998; Megginson et
alli, 1994; World Bank, 1996; Nestor e Mahboobi, 2000.
11 Sobre o processo de privatização nas economias em transição,
ver: Nivet, 1997; Bolton e Roland, 1992; Dlouhu e Mládek, 1994;
World Bank, 1996; Borish e Noël, 1997.
12 Na América Latina, a literatura especializada pode ser
encontrada em: Carnei- ro e Rocha, 2000; Stiglitz, 1998; World
Bank, 1993; Baer, 1994; Pinheiro e Schneider, 1995.
13 Para melhor análise do processo de privatização brasileiro nos
anos 1980, ver: Pinheiro e Landau, 1995; World Bank, 1989; Werneck,
1987; Resende, 1980; BNDES, 1992.
14 Esses valores não levam em consideração os gastos realizados no
processo de privatização, nem tampouco referem-se à receita
recebida, pois uma grande parte das empresas privatizadas foi
financiada, enquanto outras receberam como pagamento moedas podres,
ou seja, sem valor de mercado. De acordo com Biondi, um valor
superior à receita gerada pela privatização foi gasto com a
preparação das empresas para a privatização, perdas de lucros e de
imposto de renda, subsídios de juros aos empréstimos para a
privatização, entre outros. Sobre isso ver mais em: Biondi, 1999 e
2000.
3 9
Abertura comercial, internacionalização da economia e
ocupação
Um segundo mito foi constituído através da adoção das políti- cas
neoliberais no Brasil, quando grande parte da população foi levada
a acreditar que a abertura comercial e a internacionalização da
economia seriam capazes de modernizar o parque produtivo, bem como
gerar mais e melhores postos de trabalho. Percebe-se que durante a
última década do século XX, a economia brasileira foi fortemente
atingida pelo movimento de internacionalização do seu parque
produtivo. Em grande medida, constituiu-se um novo modelo
econômico, fundado numa estratégia distinta de inserção na economia
mundial, a partir da atração de parte da liquidez internacional,
com ingresso de recursos estrangeiros responsáveis pela ainda maior
desnacionalização do parque produtivo no país.
Ao ter adotado o programa de liberalização produtiva, finan- ceira,
comercial e tecnológica, o país terminou expondo à compe- tição
internacional quase todo o sistema produtivo, sem paralelo desde
1930. Os resultados foram, na maior parte das vezes, nega- tivos
para o conjunto do país, o que permitiu expor mais um mito do
neoliberalismo no Brasil.
De um lado, o país ampliou ainda mais o seu grau de vulnerabilidade
externa, diante da crescente dependência financei- ra, produtiva,
comercial e tecnológica, sem conseguir instalar um novo estágio de
desenvolvimento econômico sustentado. Depois da década perdida,
evidenciada nos anos 1980, assistiu-se, na década de 1990, à
consagração de um desempenho econômico ainda pior.
De outro lado, a liberalização econômica, financeira, produtiva e
tecnológica frustrou as expectativas quanto à evolução
ocupacio-
4 0
nal. Decorridos dez anos de predomínio das medidas voltadas para a
liberalização comercial observa-se um saldo negativo no conjunto
das ocupações, considerando-se o decréscimo no nível de emprego nos
setores econômicos em que houve a ampliação da presença tanto do
capital externo quanto de produtos e serviços importados.
Na maior parte das vezes, os recursos provenientes do exterior
concentraram-se nas oportunidades especulativas oferecidas pela
própria condução da política macroeconômica, através da prática de
elevadas taxas de juros. Além disso, uma outra parte do capital
estrangeiro foi constituída de investimentos diretos.
Os investimentos diretos do exterior participaram tanto do pro-
cesso de privatização do setor produtivo estatal e dos serviços
públicos quanto da aquisição de patrimônio privado nacional. Ao
mesmo tempo, novas empresas financeiras e não financeiras se
instalaram no país, reforçando o caminho das transferências de
recursos ao exterior, especialmente nos setores de serviços, inca-
pacitados de gerar excedentes comerciais.
Por conta disso, o novo ciclo de internacionalização da econo- mia
trouxe, ao seu modo, implicações não desprezíveis para os
trabalhadores. Aqui, no entanto, procura-se analisar tão-somente a
situação do emprego industrial, uma vez que os dados existentes são
mais efetivos nesse segmento ocupacional. Inicialmente, trata- se
de apresentar as principais atualidades do contexto do comér- cio
mundial, para, em seguida, discutir a nova inserção econômica
brasileira. Por fim, analisa-se o quadro ocupacional que restou no
setor industrial decorrente, em parte, do processo de internacio-
nalização da economia brasileira.
ATUALIDADES DO SISTEMA MUNDIAL DE COMÉRCIO
Nas duas últimas décadas do século XX, o comércio internacional
registrou alterações significativas. Dois foram os principais
vetores responsáveis pelas modificações no sistema mundial de
comércio.
O primeiro vetor encontra-se associado à constituição de novas
instituições mais presentes na dinâmica do comércio internacional.
O surgimento da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1993,
como resultado da realização das rodadas de discussões
promovidas
41
desde 1986, no âmbito do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio
(GATT), proporcionou novidades ainda não constatadas desde as pri-
meiras tentativas de regulação do comércio internacional, ao final
da Segunda Guerra Mundial (Gonçalves, 2000; Rêgo, 1996).
Embora a OMC não deva ser confundida com uma instituição livre-
cambista, ela apresenta sinais, cada vez maiores, direcionados a
pro- mover a concorrência aberta num mundo marcado por elevadas
desi- gualdades produtivas, tecnológicas, trabalhistas e
financeiras. Não causa espanto, portanto, reconhecer que os países
pobres tornam-se quase irrelevantes no conjunto dos processos de
negociações multilaterais, ao passo que a OMC terminou
aproximando-se mais dos interesses das economias desenvolvidas e
das grandes empresas estrangeiras.
Além da novidade no campo multilateral, com a criação da OMC,
também ganharam maior importância os acordos plurilaterais, como no
caso da União Européia, Nafta e Mercosul. Mais recente- mente, as
idéias voltadas para a constituição da Área de Livre Co- mércio das
Américas (Alca) no continente americano passaram a ter maior
centralidade nas agendas dos governos.
O exemplo mais avançado de acordo plurilateral tem sido, até o
momento, o da União Européia, que além da constituição de políti-
cas supranacionais consensadas, vem implementando um sistema
monetário regional. No que diz respeito ao Mercosul e ao Nafta, que
são experiências bem mais recentes que a União Européia, observa-
se, fundamentalmente, que o fluxo de comércio supranacional assu-
me o principal sustentáculo dos acordos plurilaterais.
Dessa forma, a queda das barreiras comerciais entre países esti-
mula o comércio supranacional, sem levar, entretanto, ao desenca-
deamento de um novo padrão de desenvolvimento econômico, espe-
cialmente em relação ao Mercosul. A proposta de criação da Alca
parece avançar no mesmo sentido, o que facilita ainda mais as
nações desenvolvidas.
O segundo vetor responsável pelas principais modificações re-
centes no sistema de comércio mundial refere-se à introdução de uma
nova agenda temática na dinâmica das negociações entre países. Di-
ante do predomínio do receituário neoliberal, houve grande conver-
gência na retórica diplomática favorável à liberalização dos
mercados, especialmente no âmbito comercial, financeiro, produtivo
e tecnológico.
42
Nos mais diversos fóruns internacionais em que atuam as agên- cias
multilaterais como Banco Mundial, Fundo Monetário Interna- cional e
Organização Mundial do Comércio, a defesa da liberdade dos mercados
foi defendida não apenas nos discursos, mas pelos programas de
ajuda financeira e de cooperação técnica e comer- cial. As posições
pró-mercado somente não foram uníssonas no plano internacional
devido à posição da Organização Internacio- nal do Trabalho, que se
manteve, apesar das pressões em contrá- rio, chamando a aten