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A (DES)INFORMAçãO NA DIANtEIRA DO PROFANO: O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA — UMA REFLEXãO INEVItÁVEL ThE (DIs)INfORMATION IN fRONT Of ThE PROfANE: INsIDER TRADINg — AN INEVITAbLE REfLECTION Pelos Mestres Ricardo Alexandre Cardoso Rodrigues( 1 ) e João André de Almeida da Luz Soares( 2 ) sUMáRIO: Introdução (A Crise que abalou o Mundo). Capítulo I: 1. A infor- mação enquanto problema jurídico-criminal. 2. Crime de informação privilegiada; 2.1. Natureza supra-individual do bem jurídico tutelado; 2.2. Uma realidade complexa, multifacetada, poliédrica e heterógena. ( 1 ) Doutorando em Ciências Jurídico-Económicas na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC). Mestre em Direito. Investigador na Associação Portu- guesa de Direito de Consumo (apDC), no Instituto Jurídico Portucalense (IJP), no Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos da Universidade do Minho (DH- -CII-EDUM), no Centro de Investigação, Desenvolvimento e Inovação da Academia Mili- tar (CINAMIL) e no Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF). Relator pro bono do Observatório dos Direitos Humanos. Jurista pro bono da Amnistia Internacio- nal — Portugal. ( 2 ) Mestre em Direito e Advogado — RSA — Raposo Subtil e Associados, RL. Pós-graduado em Direito do trabalho (Instituto do Direito do trabalho e das Empresas — FDUC) e em Direito da Banca, Bolsa e Seguros (Instituto da Banca, Bolsa e Seguros — FDUC). Estudante de Pós-graduação em Corporate Governance (Centro de Investigação Privado — FDL).

A (DES)INFORMAçãO NA DIANtEIRA DO PROFANO: O CRIME … · financeiros; e, por último, uma terceira ideia de remoção progressiva da regulamentação financeira e o movimento acelerado

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A (DES)INFORMAçãO NA DIANtEIRA DOPROFANO: O CRIME DE ABUSO DE

INFORMAçãO PRIVILEGIADA — UMAREFLEXãO INEVItÁVEL

ThE (DIs)INfORMATION IN fRONT Of ThE PROfANE:INsIDER TRADINg — AN INEVITAbLE REfLECTION

Pelos Mestres Ricardo Alexandre Cardoso Rodrigues(1)e João André de Almeida da Luz Soares(2)

sUMáRIO:

Introdução (A Crise que abalou o Mundo). Capítulo I: 1. A infor-mação enquanto problema jurídico-criminal. 2. Crime de informaçãoprivilegiada; 2.1. Natureza supra-individual do bem jurídico tutelado;2.2. Uma realidade complexa, multifacetada, poliédrica e heterógena.

(1) Doutorando em Ciências Jurídico-Económicas na Faculdade de Direito daUniversidade de Coimbra (FDUC). Mestre em Direito. Investigador na Associação Portu-guesa de Direito de Consumo (apDC), no Instituto Jurídico Portucalense (IJP), no Centrode Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos da Universidade do Minho (DH- -CII-EDUM), no Centro de Investigação, Desenvolvimento e Inovação da Academia Mili-tar (CINAMIL) e no Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF). Relatorpro bono do Observatório dos Direitos Humanos. Jurista pro bono da Amnistia Internacio-nal — Portugal.

(2) Mestre em Direito e Advogado — RSA — Raposo Subtil e Associados, RL.Pós-graduado em Direito do trabalho (Instituto do Direito do trabalho e das Empresas —FDUC) e em Direito da Banca, Bolsa e Seguros (Instituto da Banca, Bolsa e Seguros —FDUC). Estudante de Pós-graduação em Corporate Governance (Centro de InvestigaçãoPrivado — FDL).

3. A tutela Sancionatória do Mercado de Valores Mobiliários: umaexigência constitucional. Capítulo II (O crime de Abuso de Infor-

mação). 1. O art. 378.º do Código de Valores Mobiliários. 2. Estruturatípica das Incriminações. 3. Conceito de “Informação Privilegiada”;3.1. O carácter não público da informação; 3.2. O carácter preciso dainformação; 3.3. Ligação a entidades emitentes de valores mobiliáriosou a valores mobiliários (a market information e o front-running);3.4. Price-sensitive: a idoneidade para influenciar de maneira sensívelo preço dos valores mobiliários. 4. O relevo jurídico criminal das con-dutas de uso de informação privilegiada própria. Capítulo III. Con-

clusões. Referências.

Resumo

O Insider Trading é uma figura imensamente rica, quer em termos dou-trinais, quer, e sobretudo, em análise de propostas e políticas de efetivação.

Situada no âmbito da tutela sancionatória do mercado de valores mobi-liários, a verdade é que esta temática estabeleceu pontes de interação lógicacom outros profícuos mundos do direito.

Só nesse universo pluri referenciado é que se afigura possível com-preender os diferentes matizes e planos cognoscíveis do crime de abuso deinformação privilegiada.

Palavras-chave

Crime de Abuso de Informação Privilegiada; Mercado; Banca; Bolsa;Seguros; Mundialização; Globalização

Abstract

The Insider Trading is a full figure of meaning, in doctrinal terms, and,above all, in the analysis of proposals and policies of execution.

Located within the sanctionary protection of the securities market, thetruth is that this theme has established logical interaction bridges with otherworlds of law.

Only in this multi referenced universe is that it seems possible tounderstand the different nuances and cognizable plans of insider tradingactivity.

Keywords

Insider Trading; Market; banking; stock Market; Insurance; “Mon-dialisation”; globalization

780 RICARDO A. CARDOSO RODRIGUES/JOãO LUz SOARES

Introdução (A Crise que abalou o Mundo)

Vivemos um momento histórico de profunda análise da orga-nização e estruturação de diversas áreas — banca, bolsa e seguros(entre outras (co) relacionadas) — ligadas aos sistemas económicoe financeiro, em que um esforço de definição orgânica e de compe-tências se revela imperioso. De facto, a crise financeira de 2007, ea catadupa de efeitos diretos e indiretos, impeliram a reflexãosobre o papel dos sujeitos concretos e instituições no quadro dogrande teatro financeiro global.

A aproximação, espacial, temporal e cultural, dos indivíduos,a fluidificação das relações sociais, frutos da mundialização, bemcomo, a intensificação da especialização e integração económicas,por efeito da globalização (CARDOSO RODRIGUES, 2012, pp. 54-56),potenciaram, irresistivelmente, o reflorescimento, expansão e cres-cimento do sistema económico e financeiro. Hoje, alucinante-mente, diferente, na sua essência e modus operandi.

O convite à reflexão e mudança de paradigma advém de umasólida convicção de que esta é uma crise sem paralelo, uma criseconjuntural, quer pela sua génese, expansão e efeito de contamina-ção(3), mas, sublinhe-se, pela forma única como os standards decontrolo não a conseguiram, antever, conter ou subverter.

Parafraseando GEORGE SOROS:

Estamos no meio de uma crise financeira como não se via desde agrande Depressão da década de 30. Não é, certamente, o prelúdiopara outra grande Depressão; a história não se repete (…) Ao mesmotempo, a actual crise não se pode comparar às crises periódicas queatingiram segmentos particulares do sistema financeiro desde adécada de 80 (…). Esta crise não se limita a uma empresa ou segmentoparticular do sistema financeiro. Colocou todo o sistema à beira de umcolapso e está a ser contida com grande dificuldade. Isto terá conse-quências extensas.

SOROS, 2009, p. 141

(3) Sobre a origem e desenvolvimento, causas e explicações vide (MENEzES, 2014,pp. 131-152).

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 781

Nas palavras do autor, a crise de 2007 “[n]ão é uma crisecomo as outras, mas o fim de uma era” (SOROS, 2009, p. 141). Estaideia de fim de ciclo é, a nosso ver, fundamental. Convenhamosque a análise efetuada por SOROS(4), baseada na teoria da reflexivi-dade(5) e reportada ao modelo económico de expansão-contração,foi deduzida quando ainda era impossível discernir com precisão areal extensão e disseminação da supracita crise. tem, todavia, agrande mais-valia de percecionar que nos encontrávamos nummomento fractal de paradigm shift.

Assumimos que a referida crise se assemelhou, num determi-nado aspeto a uma autêntica e verdadeira tempestade perfeita. Defacto, fenómenos como o surgimento e implementação desreguladade conglomerados financeiros(6), o aparecimento e utilização des-

(4) Interessante será descobrir que o autor relaciona a ideia de fim de ciclo com asespecificidades da crise de 2007. Ao fazê-lo mobiliza a existência, não de uma, mas deduas bolhas: a bolha imobiliária dos EUA, diversa de todas pela amplitude e importânciapara a economia global e para o sistema financeiro internacional, e a hipótese da superbo-lha. Esta expandiu-se de forma mais complexa e sobreposta à bolha imobiliária tradicional.Embora se caracterize pela mesma tendência predominante de criação de métodos cadavez mais sofisticados de criação de crédito, o autor acredita que o erro fundamental é dia-metralmente diferente. Consiste, portanto, numa “confiança excessiva no mecanismo demercado. O Presidente Ronald Reagan chamou-lhe a magia do mercado. Eu chamo-lhefundamentalismo de mercado” (SOROS, G., ob. cit., p. 153). A ideia transversal baseia-se naconceção que os mercados, de facto, e ao contrário do que a teoria da concorrência perfeitaestipulava, não tenderiam necessariamente para o equilíbrio. A super bolha combinaria,assim, três tendências fundamentais: uma tendência a longo prazo, para uma expansão decrédito cada vez maior; uma segunda linha que se reflete na globalização dos mercadosfinanceiros; e, por último, uma terceira ideia de remoção progressiva da regulamentaçãofinanceira e o movimento acelerado das inovações financeiras. Neste sentido, e visandoum crescente aprofundamento vide SOROS, G., ob. cit., pp. 152 e ss.

(5) A realidade económica, financeira, social e cultural é auto e hetero condicio-nada. Neste sentido vide SOROS, G., ob. cit., pp. 101 e ss.

(6) Os conglomerados financeiros surgem num movimento de evolução e de com-plexificação das relações entre os diversos sectores da Banca, Bolsa e Seguros. De facto, asuperação dos tradicionais core business (com a bancassurance e a assurbanque), atesta oaparecimento da tão badalada allfinanz. No entanto, a implementação desregulamentadadestes conglomerados financeiros, pluri-funcionais, e pluri-sectoriais, acarreta riscos depermeabilidade e potencial destabilização do sistema, assim como aumento do risco decontágio e efeito dominó. Além do que permite a utilização duvidosa do mesmo capital(pluri-capital), proporcionando operações fictícias entre empresas do mesmo grupo, con-signando autênticas «terras de ninguém”.

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controlada dos hedge funds(7), do fair value(8) enquanto critériovalorimétrico, e da titularização de créditos enquanto fator multipli-cador e disseminador da crise, foram fundamentais para a explica-ção dos seus contornos. Com os bancos a não disporem de capitaispróprios e permanentes suficientes, com os ratios de solvabilidade anão serem respeitados, o efeito dominó de contaminação foi asso-berbante.

(7) Os hegde funds constituem uma combinação diferenciada das diversas regras,técnicas e limites dos Fundos de Investimento Mobiliário. São também designados de“Fundos de Cobertura de Risco” ou de “Fundos de Retorno Absoluto”. São fundos degrande liberdade de estratégia e instrumentos financeiros complexos, logo, e por issomesmo, mais especulativos e de álea elevada do investimento. Constituem-se como fundosaltamente agressivos e especulativos com muita alavancagem financeira, especialmentedirigidos ou mesmo reservados a grandes e sofisticados investidores. Acabam por ser,assim, autênticos “fundos privados”, fundos não registados e offshores, com sponsorsfinanceiros. A crise de 2007 fez surgir muitos ódios contra esta figura, porque isentos dasregras e disclousures dos Fundos de Investimento Mobiliário, e geridos por “Oráculos deDelfos”, utilizavam uma grande variedade de estratégias sofisticadas e agressivas, nomea-damente através do short-selling, passando também por empréstimos monetários ou porposições sobre derivados, e por estratégias de “equity edge”. Com a crescente descon-fiança nos mercados, os hedge funds são obrigados a liquidar posições, numa busca inces-sante pela liquidez, alimentado uma espiral viciosa de venda de valores e baixa de preços,acabando por se tornar uma das principais causas do tsunami financeiro, da volatilidadedos mercados de capitais, elevando, consequentemente, o risco macro-prudencial e sisté-mico, uma vez que, mais do que ninguém, os bancos estavam expostos a este tipos defundo (muito por culpa dos empréstimos concedidos). Com esta abrupta liquidação deposições relevantes e alavancadas, os hedge funds tiveram um efeito pró-cíclico nos mer-cados financeiros, pondo em causa a sua liquidez. Fala-se, a este propósito, de um verda-deiro efeito cascata, não havendo possibilidade de cobertura dos fundos de capital de risco,perante a massa de pedidos de reembolso. Esta ambiência, assim como os mediatizadoscasos de escândalos financeiros, com o caso Madoff à cabeça, sublinharam a necessidadede uma correta regulação e supervisão, suficiente, pelo menos, para garantir a idoneidadee, claro, distinguir os bons dos maus gestores.

(8) O fair-Value (ideia de verdadeira transparência de mercado) é um critériovalorimétrico de consignação e cotação dos instrumentos e produtos financeiros. Nasce deuma necessidade de harmonização mínima entre as diferentes legislações nacionais e aslegislações internacionais. Esta ideia contabilística do market-to-market, com a crisede 2007, passou a constituir um grave problema: porque contabilizou ativos ao justo valorde mercado, não existindo correlativo preço nacional para muitos desses produtos, impli-cando, com a sua aplicação, sucessivos write-downs. Obviamente que este processo levouao aumento da desconfiança do mercado, acentuando a natureza pró-cíclica do fair value,evidenciando que o mesmo foi pensado para um mercado sacrossanto que tendesse semprepara o equilíbrio.

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 783

A referência a esta crise não é, a todos os títulos, inocente.É necessário sim ressalvar que os sujeitos, instituições e, no fundo,os atores no grande palco financeiro internacional passaram porum momento de tomada de consciência, em que o tão badaladoequilíbrio de mercados, propugnado pelas teorias da concorrênciaperfeita, é posto em causa. De facto, esta confiança excessiva nomecanismo de mercado, à qual RONALD REAGAN chamou “a magiado mercado”, e que GEORGE SOROS apelidou de “fundamentalismode mercado”, serviu, até certo ponto, como pano de fundo e com-bustível para o aparecimento da crise. Como tal urge agilizar, numaótica de eficácia procedimental, os processos de governo e supervi-são nos setores da Banca, Bolsa e Seguros(9).

De salientar, entre nós, nesta conjuntura, o elevado grau deafetação de um dos mais importantes bens jurídico do sistema eco-nómico e financeiro, a fides (nas suas particularidades genéticas), abase e capital de confiança (conceito inter-relacional) indispensá-veis para uma saudável relação entre as instituições financeiras e asua clientela. Por outro lado, os efeitos diretos e indiretos na eco-nomia dos Estados e no bolso dos Representados.

Os inúmeros escândalos, mais ou menos mediatizados, assimcomo os inúmeros processos de contornos duvidosos que assola-ram a nossa aldeia global, transformaram a forma como as pessoasencararam as instituições financeiras e os seus produtos(10). Parale-lamente, a forma quase despudorada como alguns agentes finan-ceiros multiplicavam exponencialmente os seus lucros(11), por

(9) Neste sentido deixamos, aqui, as certeiras palavras de ANtóNIO PEDRO FER-REIRA: “[a]s pessoas deram-se conta, de repente, que certos processos utilizados por algu-mas instituições financeiras, no exercício da sua atividade, não se pautavam pelos critériosexigíveis de legitimidade, profissionalismo, isenção, rigor técnico e respeito escrupulosopelos direitos dos clientes. Como se tal não bastasse, foi ainda sentida, em pleno culminarda crise, a impossibilidade — se não mesmo a incapacidade — das autoridades de regula-ção e supervisão tomarem plena consciência dos problemas e encontrar-lhes as soluçõesnecessárias com a celeridade que a sua gravidade demandava” (FERREIRA, 2009, p. 5).

(10) Entre nós o caso BPN e os seus contornos (FERNANDES, 2011).(11) “Os executivos e os directores de uma empresa conhecem o seu negócio

melhor do que qualquer analista em wall Street. Sabem quando é que um produto está avender bem, quando é que os inventários estão a acumular, sabem se as margens de lucrosestão a expandir-se ou se os custos de produção estão a subir… Sempre ouvimos falar em

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caminhos sinuosos(12), fez com que a idade da inocência fossesuperada, exigindo-se um esforço proativo na reparação da con-fiança dos investidores.

A densificação da figura do crime de abuso de informação pri-vilegiada, enquanto propugnador do princípio transversal de trans-parência e segurança do mercado, parece-nos verdadeiramenteproveitosa. Até, mesmo, numa ótica de estruturação e restabeleci-mento das relações financeiras.

De facto, e não obstante ter sido “muito desafiada por algumascorrentes ligadas à análise económica do direito, a interdição da utili-zação e comunicação de informação assimétrica concita hoje largoconsenso”, considerando-se, deste modo, superadas as construçõesdoutrinárias opositoras (CâMARA, 2011, p. 814).Expomos, de seguida,e resumidamente, duas perspetivas ou vertentes principais que podemservir de base ou fundamento à proibição (CâMARA, 2011, p. 814).

Seguindo uma visão micro jurídica podemos afirmar que a ili-citude destes comportamentos servirá como mecanismo de tutelada confiança dos acionistas, relativamente aos dirigentes societá-rios, representando, com relação a estes, uma verdadeira extensãodo dever “fiduciário” de lealdade (cf. art. 64.º, n.º 1, al. b). Ade-mais, “protege os acionistas de celebrarem inadvertidamente negó-cios sobre valores mobiliários a preços desajustados”.

Já segundo uma perspetiva macro jurídica, “a proscrição doinsider trading evita custos de transacção advenientes dos merca-dos mais opacos, em que os instrumentos financeiros são tenden-cialmente negociados a desconto”. Por efeito potencia a eficiênciados mercados, através da redução dos custos de capital. Final-mente, e acolhendo o entendimento de que a informação constitui,de facto, um bem público(13) ou pelo menos coletivo (societá-

dinheiro fácil. Geralmente, isto é dinheiro fácil” (cf. “Individual Investor” (Fev. 1998,p. 54) apud (CARVALHO; DUQUE, 2007, p. 1).

(12) “Some of America’s best and brightest were devoting their talents to gettingaround standards and regulations designed to ensure the efficiency of the economy and thesafety of the banking system. Unfortunately, they were far too successful, and we are all —homeowners, workers, investors, taxpayers — paying the price” (StIGLItz, 2008).

(13) Sobre os Bens Públicos (AzEVEDO; LOPES; LOPES; CAtARINO, 2009, pp. 12-13).

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 785

rio)(14), a intervenção no sentido de prevenir o seu aproveitamentoobstaculiza a sua apropriação para finalidades privadas, favore-cendo, o respetivo acesso “em condições de paridade por parte dosaccionistas”.

Capítulo I

1. A informação enquanto problema jurídico-crimi-nal

A informação enquanto instrumento catalisador de vantagemou prejuízo desde sempre foi observado, mas nem sempre, com osmesmos olhos. Dum patamar de completa desconsideração docomportamento a sancionar, passamos por diferenciados cami-nhos, que hoje são característicos e específicos de cada ordem jurí-dica, mas que tendem, sublinhemos, a convergir na “valoração deque o abuso de informação privilegiada é ilícito e merecedor dereacções ou sanções” (FARIA COStA, 2006, p. 25). Mas com estapanóplia de diferentes soluções para o problema do abuso da infor-mação(15), surge também um intricado problema.

(14) Da importância lapidar da informação no âmbito do mercado de valores mobi-liários (BORBA, 2010, p. 88), (PINtO, 1998, p. 98), (BRAzIER, 1996, p. 80). A propósito daeficiência institucional dos mercados, a importância duma informação adequada comogarantia dos interesses dos investidores (OSóRIO DE CAStRO, 1997, p. 336). Finalmente, noconcernente aos deveres gerais e específicos de informação, bem como, ao modus confor-mador de preços no mercado (CâMARA, 1998).

(15) De entre as diversas soluções, próprias de ordenamentos jurídicos diferencia-dos (ibidem), destacamos, dada a sua riqueza, a experiência e os fundamentos da proibiçãodo Insider Trading no Direito Norte-Americano. Historicamente a prática do Insider Tra-ding começou por ser proibida por violar as regras de composição e de formação do negó-cio. A parte detentora da vantagem informativa deveria informar a outra, respeitando, assim,a doutrina dos special facts. Entre nós, tal doutrina “pode fornecer um enquadramento parao problema da análise jurídica do negócio e do seu processo de formação, mas não um bomfundamento para legitimar a incriminação dessas práticas” (PINtO, 2000, p. 48). tal enten-dimento foi superado pela doutrina da abstain or disclose theory, iniciada com a perspetivacontratualista do abuso de informação e acolhida expressamente pela intervenção regula-mentar da SEC, em 1942. Estipulava que quem detivesse essa informação privilegiada a

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Por efeito da mundialização e globalização a figura do InsiderTrading assume, também, dimensões internacionais(16). Reve-lando-se imperiosa uma análise ao esforço de harmonização e atéde uniformização das legislações.

Em termos regionais, no espaço comunitário mencionamos aDiretiva n.º 89/592/CE(17), relativa à coordenação das regulamen-tações respeitantes às operações de iniciados. A Diretiva assume-secomo mecanismo de aproximação entre as díspares legislaçõescomunitárias existentes. São dados, também, os primeiros passosem direção ao reconhecimento alargado da informação enquantoproblema jurídico-criminal. A Diretiva parte do pressuposto de que“(…) o mercado secundário de valores mobiliários desempenhaum papel fundamental no financiamento dos agentes económicos”,e que “para que esse mercado possa desempenhar o seu papel deforma eficaz, devem ser tomadas todas as medidas com vista a

divulgasse ao mercado ou, em caso contrário, se abstivesse de a utilizar. No entanto,depressa se reconheceu que esta teoria apresentava algumas lacunas. “A regra disclose orabstain continha na verdade uma falsa alternativa, pois na generalidade dos casos a infor-mação relevante dizia respeito a entidades emitentes e, por isso, o possuidor dessa infor-mação não a podia legitimamente divulgar (…) Por outro lado a ideia não era facilmenteaplicável às operações a prazo (…) Acrescia, ainda, o facto da jurisprudência norte-ameri-cana ter sido confrontada com inúmeros casos em que o possuidor da informação nãoestava ligado à entidade emitente” (cf. PINtO, 2000, p. 47). tais reconhecidos limites leva-ram a que a doutrina Norte-Americana rumasse em direção a dois caminhos diferentes: umdeles consistiu em manter a base da teoria dos deveres, alargando-a sucessivamente a rela-ções de quase-confiança; outro em direção à chamada teoria da apropriação ilegítima,misappropriation theory, de acordo com a qual aquele que usa uma informação privile-giada cometeria um ato de ilegítima apropriação. “Esta concepção, que foi acolhida hápouco tempo pelo supreme Court, deslocou a perspectiva sobre o lesado do crime de abusode informação da contra-parte do negócio para o proprietário da informação relevante”(cf. PINtO, 2000, p. 47). No entanto, e na doutrina propugnada por COStA PINtO, estas teo-rias são insuficientes como base de fundamentação material do crime de abuso de informa-ção. Para mais desenvolvimentos, nomeadamente no aprofundamento das críticas às teo-rias supra referida (PINtO, 2000, pp. 48 e ss).

(16) Fatores propulsores de convergência nas soluções jurídicas regimentadoras dafigura do insider trading. Neste sentido (LANGEVOORt, 1991, p. 14; 01; ss.); (FERRARINI,2004, p. 36).

(17) Segundo esta, a incriminação do crime de abuso de informação visa tutelar aspe-tos diversos: confiança dos investidores no mercado de valores mobiliários, igualdade dosinvestidores, o seu património, os pressupostos essenciais de um mercado eficiente ou a fun-ção negocial da informação e a justa distribuição do risco dos negócios (PINtO, 2000, p. 64).

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 787

assegurar o seu bom funcionamento”. Mais interessante é a consi-deração de que “o bom funcionamento do mercado em questãodepende em grande medida da confiança que inspire aos investido-res” e que “essa confiança assenta, nomeadamente, na garantia dadaaos investidores de que estão colocados num plano de igualdade eque serão protegidos contra a utilização ilícita da informação privi-legiada”(18/19). Para esse desiderato considera basilar a adoçãoduma “regulamentação coordenada a nível comunitário”(20).

Este esforço comunitário encontrou transposição para aordem jurídica nacional através do Decreto-Lei n.º 142-A/91,de 10 de Abril.

No ordenamento jurídico nacional, até então, vigoravamoutros normativos que, por sua vez, visavam a regulamentação dafigura do crime de abuso de informação privilegiada(21). Assim, oCódigo das Sociedades Comerciais (CSC) já estipulava, nos seusarts. 449.º e 450.º, a natureza ilícita da informação(22). Destes arti-gos resultavam autênticas sanções não penais, que passavam pelaobrigação de indemnizar os lesados, pela destituição judicial dosagentes responsáveis e pelo inquérito judicial(23).

(18) Preâmbulo.(19) Nas palavras de FARIA COStA, a Diretiva “evidencia a ligação intrínseca

entre o bom funcionamento dos mercados e a confiança dos investidores — assenta estaúltima na garantia de que os investidores estão colocados num plano de igualdade e queserão protegidos contra a utilização ilícita da informação privilegiada” (FARIA COStA,2006, p. 27).

(20) A respeito do grau de convergência legislativo, e não obstante os progressosnos últimos anos, até meados de 2008 a manipulação de mercado não teria quaisquer comi-nações de natureza criminal, isto em quatro Estados-Membros. Cf. CESR, Report on admi-nistrative measures and sanctions as well as the criminal sanctions available in Memberstates under the Market Abuse Directive (2008). O mesmo se passa no tocante às práticasde supervisão do abuso de mercado. EUROPEAN SECURItIES MARkEtS EXPERtS (ESME),Market Abuse EU legal framework and its implementation by Member states: a first eva-luation, 6 de junho de 2007.

(21) Como alerta FARIA COStA, “(…) desde os anos oitenta que a ordem jurídicanacional proibia o abuso de informações privilegiadas” (FARIA COStA, 2006, p. 27).

(22) Para mais desenvolvimentos (BROCHADO, 2010).(23) “As soluções actualmente contidas nos arts. 449.º do CSC e 378.º do CVM são

separadas por duas décadas quanto à data da sua aprovação, e por plúrimas diferenças,quanto ao seu conteúdo, cujo conhecimento é importante para uma interpretação correctade ambos os regimes. O âmbito subjetivo do regime penal do insider trading é mais amplo

788 RICARDO A. CARDOSO RODRIGUES/JOãO LUz SOARES

Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 184/87, de 21 de Abril acres-centa ao CSC o seu título VII, relativo às “disposições penais e demera ordenação social”. O correspetivo art. 524.º do CSC veio tipifi-car o crime de abuso de informações, constituindo uma evoluçãoconsiderável à luz da tipificação pretendida. De acordo com o men-cionado no preâmbulo do referido Decreto-Lei a novidade desta dis-posição teve como escopo efetivar “uma ligação global à estruturadas incriminações clássicas, de modo a que o labor da jurisprudênciaencontre ainda orientação e suporte bastantes no sistema dos concei-tos e princípios do direito penal comum”. A conduta proibida por estetipo de crime consistia em revelar ilicitamente a outrem, factos rela-tivos à sociedade aos quais não tenha sido previamente concedidapublicidade, e que fossem suscetíveis de influir no valor dos títulosdas sociedades anónimas ou das sociedades participantes da fusão.

O CódMVM(24) também inseria o crime de abuso de informa-ção no âmbito dos mercados de valores mobiliários, através do seuart. 666.º, mudança de inserção sistemática que, na opinião deFARIA COStA, “não deixa de ser relevante e significativa por-quanto, sob o ponto de vista do sistema, expressa a ligação entre ocrime de abuso de informação e o mercado dos valores mobiliá-rios” (FARIA COStA, 2006, p. 28).

do que o regime civil, na medida em que aquele abrange a informação respeitante a qual-quer sociedade anónima (ainda que de estrutura acionista fechada) e, além disso, a respei-tante a qualquer tipo de emitente de instrumento financeiro. todos os valores mobiliários,instrumentos de mercado monetário e derivados são por isso tidos em consideração noregime penal, ao passo que o código das sociedades se refere apenas a sociedades anóni-mas e às acções e obrigações por elas emitidas. Além disso, a lei societária apenas qualificacomo insiders primários os membros de órgãos de administração e de fiscalização, ao passoque o CVM inclui, além destes, os que detenham informação privilegiada devido à titulari-dade de uma participação no capital ou os que obtenham por qualquer facto ilícito ou quesuponha a prática de factos ilícitos. A acrescentar, o conceito de informação privilegiadaapresenta-se mais densificado no Código dos Valores Mobiliários do que o conceito homó-logo na lei societária. O regime criminal, por último é rodeado de mecanismos preventivosmais robustos (cf. arts. 12.º-C, n.º 4, 248.º e 309.º D do CVM) do que os encontrados na leisocietária (art. 449.º, n.º 5). A cláusula de exclusão de ilicitude comunitária. As operaçõesde aquisição de acções próprias e de estabilização estão excluídas da proibição do abuso deinformação privilegiada desde que cumpram os requisitos enunciados no Regulamento(CE) n.º 273/2003, de 22 de Dezembro” (CORDEIRO, 2014, pp. 1162-1163).

(24) Decreto-Lei n.º 142-A/91 de 10 de Abril.

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 789

Não poderíamos deixar, claro, de referir que o Código deValores Mobiliários (CVM), consignou o referido crime de abusode informação privilegiada sob o art. 378.º(25). Deixamos aqui otipo de ilícito principal:

Artigo 378.º

Abuso de informação

1 — Quem disponha de informação privilegiada:a) Devido à sua qualidade de titular de um órgão de adminis-

tração ou de fiscalização de um emitente ou de titular de uma partici-pação no respetivo capital; ou

b) Em razão do trabalho ou do serviço que preste, com carácterpermanente ou ocasional, a um emitente ou a outra entidade; ou

c) Em virtude de profissão ou função pública que exerça; oud) Que, por qualquer forma, tenha sido obtida através de um

facto ilícito ou que suponha a prática de um facto ilícito;E a transmita a alguém fora do âmbito normal das suas funções

ou, com base nessa informação, negoceie ou aconselhe alguém a nego-ciar em valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros ouordene a sua subscrição, aquisição, venda ou troca, direta ou indireta-mente, para si ou para outrem, é punido com pena de prisão até 5 anosou com pena de multa.

No entanto, como iremos ver, de seguida, mesmo o art. 378.ºfoi alvo de consideráveis transformações mercê de alguns movi-mentos legislativos comunitários. Desde logo a Lei n.º 55/2005 queveio autorizar o Governo a regular sobre os crimes de abuso deinformação (e de manipulação de mercado) no âmbito do mercadode valores mobiliários. Nesta Lei “surpreende-se uma linha deexpansão das margens de punibilidade” (FARIA COStA, 2006, p. 30).De facto, o conceito de informação privilegiada é alargado demodo a nele incluir informação que diga indiretamente respeito aum emitente ou a valores mobiliários ou outros instrumentos finan-ceiros. É também introduzido o conceito de informação privile-giada em relação a instrumentos derivados sobre mercadorias(26).

(25) Em articulação com os arts. 174.º e 311.º.(26) Cf. art. 378.º, n.º 4 do CVM.

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Na esteira de FARIA COStA “a referida expansão também se mani-festa quando se autoriza que no tipo do 378.º, n.º 1, do CVM passema ser previstas situações em que a “informação privilegiada tenhasido obtida, por qualquer forma, através de um fato ilícito ou quesuponha prática de um facto ilícito” (FARIA COStA, 2006, p. 30).

De acrescentar que a Lei transformou e reformulou o art. 378.º,n.º 3, do CVM, que passa, ora, a estipular, como exigência mínima,“o conhecimento de uma informação privilegiada”, com uma efe-tiva desconsideração do canal informativo. todas estas transforma-ções estão em sintonia com uma ideia geral de repressão do crimede abuso de informação, propugnando, também, por uma ideiaativa de transparência e segurança no mercado. De seguida, já noquadro comunitário, enquanto fonte de primeira ordem ou nível, aDiretiva n.º 2003/6/CE, sobre o abuso de mercado, aprovada noâmbito do sistema LAMFALUSSy(27).

Nas palavras de HELENA BOLINA o escopo assumido pela Dire-tiva é o de “fornecer definições de manipulação de mercado e deabuso de informação privilegiada que sejam suficientemente preci-sas para orientarem o comportamento dos agentes do mercado masque contenham um nível de flexibilidade que permita que novaspráticas abusivas possam ser abrangidas. Atingir este equilíbrionão deixa de representar uma tarefa difícil, uma vez que estamosperante normas de natureza infraccional, pelo que se revelaessencial a existência de certeza jurídica, a que acresce o facto deo excesso de flexibilidade poder conduzir a diferenças relevantesna transposição pelos vários estados membros, pondo em risco aharmonização que é o principal objectivo do diploma” (BOLINA,2000, p. 2.). Aliás, em comparação com a Directiva 89/592/

(27) O processo LAMFALUSSy prevê uma distinção, por níveis, dos diplomas nor-mativos. Nos de primeiro nível — Diretiva n.º 2003/6/CE — são estabelecidos os princí-pios gerais de um determinado regime legal. Nos de segundo nível — Directiva n.º 2003//124/CE, de 22 de dezembro, Directiva n.º 2003/125/CE, de 2 de dezembro, Diretivan.º 2004/72/CE, de 29 de abril e Regulamento CE n.º 273/2003, de 22 de dezembrode 2003 — são estabelecidas as regras de concretização desses princípios adotadas deacordo com os procedimentos comitológicos da Comissão Europeia. Finalmente, e de nãosubvalorizar, com natureza de softlaw, as recomendações e outros instrumentos interpreta-tivos e/ou informativos emanados pela ESMA, que, por sua vez, ocupam o terceiro nível.

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 791

/CE(28), “[a] definição de abuso de informação privilegiada cons-tante da directiva 2003/6/CE vem alargar o âmbito da anteriorprevisão (…). A proibição abrange mais categorias de pessoas eincide sobre um conjunto mais alargado de instrumentos financei-ros. Este alargamento visa propiciar a inclusão de situações queficavam de fora do âmbito de aplicação das proibições e que serevelava necessário enquadrar, por forma a assegurar a manuten-ção da confiança dos investidores na integridade do mercado”.A Diretiva foi transposta pelo Decreto-Lei n.º 52/2006(29), queoperou um alargamento notório dos sujeitos típicos, conferindonova redação ao art. 378.º, n.º 1 através da sua al. d). No número 2do referido artigo, o tipo prescinde da fonte por intermédio da qualo agente tomou conhecimento, estipulando um autêntico conceitode “neutralidade da fonte” (FARIA COStA, 2006, p. 31), sendo,também, consignados os casos de informação privilegiada relati-vos a instrumentos derivados sobre mercadorias, no número 4.

A Diretiva n.º 2014/57/UE do Parlamento Europeu e do Con-selho de 16 de Abril de 2014 relativa a sanções penais aplicáveis,genericamente, ao abuso de mercado, a ser transposta até Julhode 2016, e o Regulamento UE n.º 596/2014 do Parlamento Euro-peu e do Conselho de 16 de Abril de 2014 relativo ao abuso demercado, que revoga as anteriores diretivas reguladoras do mesmoconteúdo, cuja eficácia das disposições (na sua generalidade) nasordens jurídicas do Estados Membros coincide com a data limitede transposição da diretiva.

Novos produtos financeiros, múltiplas plataformas de negocia-ção e multifacetadas técnicas de negociação exigem novas regras

(28) Sobre as diferenças entre a Directiva n.º 2003/6/CE e as anteriores, nas pala-vras de HELENA BOLINA “[a] principal diferença entre esta directiva e a anterior sobreabuso de informação é que, na atual diretiva, o conceito de informação privilegiada é oponto de partida não apenas das proibições de abuso de informação mas também dos deve-res de divulgação de factos relevantes a cargo dos emitentes, anteriormente regulados nosarts. 68.º e 81.º da directiva n.º 2001/34/CE. O facto de a definição de informação privile-giada ser o conceito que está na base de ambos os institutos coloca alguns problemas inter-pretativos relativamente à questão do que seja informação tornada pública” (BOLINA, 2000,p. 2). Vide também (BOLINA, 2004).

(29) Com a declaração de retificação n.º 21/2006, de 30 de março.

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orientadas para intensificação da prevenção das condutas abusivas,bem como o aumento da proteção dos investidores (garante da con-fiança).

Em cumprimento desse desiderato relevantes modificações aoregime do abuso do mercado foram introduzidas(30), entre as quaisse destacam, pelas potencialidades de impacto, em abono da trans-parência e fluidez leal das operações:

Um âmbito de aplicação mais abrangente, passando a aplicar--se (cf. art. 2.º):

a) a instrumentos financeiros admitidos à negociação, oupara os quais tenha sido efetuado um pedido de admissão,não apenas em mercado regulamentado, mas também nossistemas multilateral de negociação (MtF)(31) e nos siste-mas de negociação organizada (OtF)(32);

b) a outros instrumentos financeiros, como a derivados, cujopreço ou valor dependa ou faça repercutir efeitos em ins-trumentos negociados na respetiva plataforma de negocia-ção;

c) a condutas ou transações que possam produzir efeitos nes-ses instrumentos financeiros, incluindo licitações relati-vas à venda em leilão de licenças de emissão.

A respeito das sondagens de mercado, que incluem a comuni-cação de informação, antes do anúncio de uma dada operação, apotenciais investidores no sentido de avaliar o seu concreto inte-resse, balizado pelas respetivas condições, como a dimensão e opreço, passam a ser objeto de regulação, exigindo-se, a montante da

(30) Não obstante a sua concretização prática encontrar-se, ainda, em modulação.Nomeadamente, a questão da prevenção, deteção e comunicação de ordens, operações outransações de natureza considerada duvidosa, os pressupostos e requisitos dos programasde recompra de ações e as operações de estabilização, bem como, os pressupostos e requi-sitos das operações de sondagens de mercado, sem descurar, claro está, o tipo de transa-ções que deverão estar abrangidas pelo dever de divulgação de operações por dirigentes, odeferimento da divulgação de informação privilegiada e as listas de iniciados.

(31) Cf. n.º 7, art. 3.º.(32) Cf. n.º 8, art. 3.º.

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 793

transmissão da informação, a observância de alguns procedimentos,v. g. a necessidade da elaboração de um registo (em suporte escrito)sobre a natureza privilegiada da informação a transmitir e dos moti-vos que conduziram a essa qualificação (cf. art. 11.º).

No concernente à divulgação ao público de informação privi-legiada e dos desvios ao respetivo deferimento, o legislador orientano seguinte sentido: o emitente que decida diferir a sua divulgaçãodeverá informar os Reguladores e apresentar por escrito — sempre,ou, alternativamente, a pedido — uma justificação do diferimento(do cumprimento dos pressupostos e requisitos). tratando-se deuma instituição financeira (de crédito ou outra), a instabilidadefinanceira da instituição ou do sistema financeiro, como um todo,constitui motivo adicional (especial) para a protelação da divulga-ção imediata de informação (cf. art. 17.º).

A propósito das operações levadas a cabo por dirigentes, etendo em linha de conta o revigorado universo jurídico-fáctico deaplicação do regime do abuso de mercado aos emitentes de instru-mentos financeiros negociados, em mercado regulamentado e emsistemas de negociação multilateral e organizada, de salientar oconsequente aumento, em qualidade, das comunicações relativasàs operações. Ademais, o prazo de comunicação é encurtado paratrês dias úteis, passando a abarcar diversas outras situações e factosjurídicos v. g. o penhor ou o empréstimo de instrumentos financei-ros, as operações realizadas por qualquer pessoa que, a título pro-fissional, prepare ou execute as operações por outrem atuando porconta de um dado dirigente ou pessoa relacionada, inclusive noâmbito da gestão discricionária, bem como as operações efetuadasao abrigo de uma apólice de seguro de vida (cf. art. 19.º).

Particularizando no domínio da transparência temos a destacara Diretiva n.º 2013/50/UE do Parlamento Europeu e do Conselhode 22 de Outubro de 2013, que vem alterar a Diretiva n.º 2004/109//CE relativa à harmonização dos requisitos de transparência da infor-mação a divulgar pelos emitentes de valores mobiliários negociadosem mercado regulamentado, apresentando como data limite paratransposição, novembro de 2015.

A nova disciplina envolve múltiplas alterações ao regime jurí-dico vigente até então, nomeadamente:

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a) A propósito da publicação de informação financeira: aosEstados-Membros é obliterada a possibilidade de exigirema publicação de informação financeira periódica commaior frequência do que os relatórios financeiros anuais esemestrais, salvo tratando-se de instituições financeiras,visando o alívio sobretudo, das pequenas e médias empre-sas com encargos financeiros que não constituam elemen-tos essenciais à proteção da posição jurídica dos investido-res e para a formação da decisão de investir (inciso n.º 5).Para proporcionar maior flexibilidade e reduzir os encar-gos com burocracia, é prorrogado o prazo de publicação dainformação financeira (relatórios) semestral, de 2 mesespara até 3 meses após o termo do período abrangido.Antevê-se que, a partir de 1 de Janeiro de 2020, os relató-rios financeiros anuais sejam elaborados num formato ele-trónico harmonizado de comunicação de informações(inciso n.os 6 e 26).

b) No concernente à notificação de participações qualificadas:Os Estados Membros encontram-se impedidos de adotaremregras mais rigorosas do que as previstas na Diretiva emmatéria de cálculo dos limiares das participações, de agrega-ção da detenção de direitos de voto associados a ações com adetenção de direitos de voto associados a instrumentos finan-ceiros, e de isenção de requisitos de notificação. todavia, égarantida certa flexibilidade aos Estados Membros paraimporem requisitos mais rigorosos, relativamente aos limia-res, ao conteúdo (como a divulgação das intenções dos acio-nistas), e ao processo e prazos das notificações assim como apossibilidade de exigirem informações adicionais sobre par-ticipações qualificadas (inciso n.º 12). Ademais, atente-se aamplitude nocional de instrumento financeiro para efeitos decomunicação de participação que, ora, abrange todos os ins-trumentos com efeito económico similar à detenção de açõese a direitos de aquisição de ações (inciso 9.º).

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 795

2. Crime de informação privilegiada

2.1. Natureza supra-individual do bem jurídico tutelado

Antes de tudo realçamos que “o tipo legal de crime não deveconfundir-se com o seu substratum” (FARIA COStA, 2006, p. 33).Devemos remeter, na consideração do bem jurídico, não a umadeterminada situação específica do tipo legal de crime, mas sim àrelação da pessoa com o próprio objeto de valoração.

Não devemos olvidar, no entanto, que “a relatividade pressu-posta está, não nos valores em si, mas na forma de os descobrir,sentir ou por eles sermos iluminados” (FARIA COStA, 2006, p. 33).E esta relação não se encontra, naturalmente, isolada do devir his-tórico, ou, nas palavras de FARIA COStA “[é] justamente, aqui quepodemos detectar o fluir da historicidade com que os bens jurídi-cos-penais são apreendidos e se reflectem matricialmente nosordenamentos jurídicos-penais. A vida, a integridade física, a dig-nidade, a honra ou o património, enquanto bens jurídico-penais,expressam-se na relação do “eu” com o objecto da valoração que,como se acaba de demonstrar, não é o próprio valor mas o valordo bem ou da coisa” (FARIA COStA, 2006, p. 33). Esta nota demutabilidade é deveras fundamental. De facto, a perceção que ossujeitos têm da realidade envolvente não é amorfa e descontextua-lizada, antes é influenciada por todo um conjunto diferenciado defatores que, em último caso, conformam, também, o seu processode valoração. Daí que “os bens jurídicos historicamente protegidospelo direito penal são o resultado da decisão e valoração do legis-lador (FARIA COStA, 2006, p. 34).

Partindo destas considerações de base entendemos, porquefundamental, descortinar qual o bem jurídico protegido pela incri-minação do abuso de informação privilegiada. Impondo-se, prelimi-narmente, cindir a caracterização geral efetuada pelo direito crimi-nal clássico da operada no direito penal económico, direito penalsecundário, ou direito penal da globalização. O primeiro desenvolvea sua atividade em estreita relação com o indivíduo, com o seuâmbito de ordenação dominial, e com o gozo resultante dessa rela-

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ção. O direito penal secundário(33) tem como escopo proteger bensjurídicos com uma dimensão, ou, a um nível supra-individual(34/35).

Ora sabemos que o mundo financeiro tem, realmente, umfator de realização íntimo com uma vertente patrimonial. Noentanto, será extremamente redutor analisar a riqueza dessas rela-ções apenas por esse prisma(36). Sabemos que a proteção jurídico--criminal não pode ficar apena reduzida aos clássicos crimes defurto, abuso de confiança, burla, etc. A complexidade dos instru-mentos de realização económica faz com que surjam diferentescomportamentos que acabam por prejudicar e ofender, de formaindiscriminada todos os membros da comunidade económica(37).

(33) “(…) No âmbito de Direito penal do mercado, seria, pois, uma espécie de“anestesia geral” que procura manter níveis — que pretendem ser — rigorosos, de equilí-brio, os quais são exigíveis à sobrevivência e manutenção da própria economia de mercadocapitalista “tardia” que se caracteriza pela convivência natural entre ciclos de (in)eficiên-cia. Problema que poderá estar ligado ao endividamento artificial das pessoas e aos “ con-selhos financeiros cegos” (BANDEIRA, 2015, p. 140).

(34) “(…), ou seja, uma categoria do pensamento jurídico-penal que tem como fina-lidade proposicional acolher no seu seio de uma rede de valorações complexas cujo suportenão pode ser o imediato e concreto sujeito individual” (cf. FARIA COStA, 2006, p. 35).

(35) “(…) tanto o crime de abuso de informação e/ou insider trading como ocrime de manipulação de mercado contêm descrições de possíveis condutas que podemcolocar em perigo ou danificar os alicerces de actividades do MVM e, por conseguinte,afectar o próprio sistema financeiro em si mesmo. Ora, o sistema financeiro é a “energia”do sistema económico capitalista, nomeadamente, aquele que tem um cariz financeiro.Parece existir, aliás, um conflito de interesses, face aos ciclos bolsistas de (in)eficiência,entre sociedades emitentes e/ou cotadas e os investidores em geral. Os efeitos negativosem uma perspetiva social poderiam, porventura e contudo, ser atenuados das seguintes for-mas, entre outras, a título enunciativo: a) informação completada com avisos específicossobre a situação cíclica; b) informação integra sem maquilhagens de modo a conter não sóas possibilidades de sucesso como as hipóteses de frustração de expectativas; c) utilizaçãode analistas independentes e favorecimento da simetria informativa (…)” (BANDEIRA,2015, pp. 140-141).

(36) “(…) para lá da tutela penal patrimonial, a economia, vista como jogo e fun-ção de ordenação dominial que visa o aumento dos bens e pressupõe, qualquer que ela seja,uma regra de distribuição daqueles precisos bens, não pode ser olhada exclusivamente apartir do étimo da proteção patrimonial dos bens” (FARIA COStA, 2006, p. 35).

(37) Nas palavras de COStA PINtO: “[a]través do abuso de informação coloca-seem perigo ou lesa-se um pressuposto do funcionamento de um mercado eficiente: a funçãopública da informação, enquanto critério de justa distribuição do risco negocial (…). Poroutro lado, quem manipula o mercado controla ilicitamente o regular funcionamento domercado (assente na transparência e eficiência) e o próprio mecanismo de livre formação

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 797

O grau de afetação dos bens jurídicos implicados transcende, porforma particular, os seus mediadores relacionais, os sujeitos con-cretos (pessoas físicas ou coletivas) através dos quais se vislum-brou a ação geradora da violação.

Neste segundo grupo de comportamentos surge o crime deabuso de informação privilegiada, que a par dos outros com natu-reza idêntica constituem o objeto do direito penal secundário. Nãoobstante, tal característica não lhe retira uma vertente marcada-mente individual, que se revela através do prejuízo da contrapartedo insider ou da sociedade emitente das ações transacionadas. Ospróprios investidores poderão sair prejudicados uma vez que nãotiveram acesso às informações privilegiadas do insider, durante oseu processo de tomada de decisão. Por outro lado, a sociedadeemitente pode ver o seu prestígio posto em causa, num autênticoreputational harm, repercussões essas que se poderão estender, até,ao seu património. No entanto, este patamar de reflexão e conexãoindividual do crime de abuso de informação não abarca a especifi-cidade da figura. De facto, o palco dos instrumentos económicos efinanceiros do Insider Trading é o dos mercados onde predominamas transações sem face (faceless transactions) e onde, como tal, émuito difícil a identificação tempestiva da contraparte do insider.Mesmo a medida e a efetiva caracterização do reputational harm(38)se torna difícil de provar, quantificar e qualificar. É certo que essanatureza individual existe. Constitui um ponto de partida inegávele inalienável. Mas o crime de abuso de informação não visa (ounão visa apenas) proteger essas posições individualizantes. O queacaba por estar aqui em causa é a viabilidade e transparência do

das cotações, neutralizando desse modo o risco do seu investimento (ou daqueles embenefício de quem actue) e pondo em risco o investimento dos demais investidores.”(PINtO, 2000, p. 97). Em particular sobre o crime de manipulação do mercado vide(VEIGA, 2001).

(38) Neste sentido FARIA COStA refere que a falta de confiança dos investidorespode conduzir à depreciação do valor de mercado das sociedades emitentes. Mais se refiraque não é de afastar completamente que a entidade emitente possa sofrer prejuízos porqueos seus administradores ficam motivados para capturar os ganhos próprios do Insider Tra-ding, em vez de se empenharem de forma briosa e diligente na gestão da sociedade (FARIA

COStA, 2006, p. 36).

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próprio mercado. E esse é o fim último da incriminação do InsiderTrading. No fundo “[o] que está em causa é, justamente, a existên-cia do próprio mercado de valores mobiliários enquanto “connec-ted system” e não o mercado enquanto justaposição de posiçõesindividuais” (FARIA COStA, 2006, p. 37)(39).

2.2. Uma realidade complexa, multifacetada, poliédrica eheterógena(40)

Como resulta do já exposto, o tipo incriminador a que fazemosreferência existe não para proteger diretamente, ou especifica-mente, qualquer tipo de direito individual. tem, antes, como obje-tivo proteger “todo o universo de investidores, efectivo e potencial,que procura o mercado de valores mobiliários” (FARIA COStA,2006, p. 36), pretendendo, como vimos, “proteger o bem jurídicosupra-individual expresso no valor que a livre concorrência demercado representa” (FARIA COStA, 2006, p. 36). Daqui resulta queao carácter supra-individual é necessário acrescentar uma nota visí-vel que realce o bem jurídico em questão como uma realidade poli-facetada ou poliédrica, que permita “a ductibilidade ou flexibili-dade capaz de nos permitir legítimas inflexões compreensivas (…)como também uma límpida adequação à realidade” (FARIA COStA,2006, p. 31).

A proteção e implementação destas notas passa por um pro-cesso de tutela da confiança dos investidores no correto e regula-mentado funcionamento do mercado, e numa proteção da decisãode economia individual, tomada como igualdade de informação

(39) Como refere COStA PINtO: “Na exacta medida em que os crimes descritoslesam aspectos essenciais do funcionamento dum sector do sistema financeiro, estamosperante agressões a uma vertente da economia nacional e, por essa razão, os crimes deabuso de informação e de manipulação do mercado são crimes económicos e não crimespatrimoniais” (PINtO, F., 2000, p. 97).

(40) Neste sentido (FARIA COStA) sob o ponto 2.2 “[o] crime de abuso de informa-ção protege um bem jurídico complexo e poliédrico que não se esgota na igualdade dosinvestidores” (FARIA COStA, 2006, p. 36).

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 799

para todos os investidores(41). Daqui resulta que além de poliédricoo bem jurídico se assume como fundamentalmente heterogéneo, nosentido em que engloba uma autêntica diversidade de proteção derealidades diversas: proteção da confiança e da igualdade dosinvestidores.

Interessante é, neste prisma, considerar a posição de COStA

PINtO. O autor elabora uma construção proposta nos conceitos dafunção da informação e do risco do negócio para definir o bemjurídico. De facto, pugna que “quem usa negocialmente informa-ção privilegiada não agride apenas a igualdade entre os investido-res, antes subverte as condições de regular funcionamento do mer-cado e coloca em perigo os seus níveis de eficiência” (PINtO,2000, p. 67). Em consonância, portanto, com o exposto anterior-mente. O desenho de COStA PINtO detém, ainda, outra originali-dade. O autor estende o bem jurídico a proteger, referindo que asnormas do crime previsto tendem a punir situações de distorção dalivre concorrência. Partindo da paridade informativa básica (fulldisclosure), o autor considera que subvertido o acesso à informa-ção, a intervenção negocial é desequilibrada a favor do insider, nãocorrendo este os mesmos riscos inerentes ao funcionamento domercado que os restantes. Existe assim uma subversão das condi-ções de distribuição do risco negocial pondo em risco, máxime, aeficiência económica dos mercados. E é claro que estes movimen-

(41) Aqui importa realçar que a heterogeneidade do bem jurídico protegido passapela apreensão que aquele não se esgota na igualdade dos investidores. De facto, o crimede abuso de informação não se cinge, apenas, no equal footing. A disparidade de informa-ção entre os diferentes agentes num mercado de valores mobiliários concorrenciais é umacaracterística definidora, intrínseca e, como tal, ineliminável. Uma posição sancionatóriaque hiperbolize a igualdade entre os investidores irá, certamente, eliminar a eficácia daadequação da incriminação do abuso de informação, e, por outro lado, vai inibir ou desen-corajar processos de procura legítimos da mesma. Como tal, necessita-se de salutar equilí-brio e cuidado premente na abordagem desta questão. A informação será abusiva se existiruma ligação com a entidade emitente. Como defende FARIA COStA: “(…) o que é reprová-vel não é o plus de informação detida, mas antes o facto de tal superioridade ser conse-guida à custa de uma ligação directa com a entidade emitente (…) Perspectivar o crime deabuso de informação a partir da igualdade de informação entre investidores, em vez depromover um mercado eficiente e atractivo, levaria a que se inibisse indiscriminadamenteo uso de qualquer assimetria informativa” (FARIA COStA, 2006, p. 39).

800 RICARDO A. CARDOSO RODRIGUES/JOãO LUz SOARES

tos de dispersão e desnorteamento do mercado num sistema liberalsó são aceites enquanto expressão de um mérito próprio, “mas sãointoleráveis quando resultam da conversão abusiva de informaçãoprivilegiada que se destina a ser conhecida de todo o mercado enão apenas de alguns agentes próximos da fonte de informação”(PINtO, 2000, p. 68).

No fundo, e em conclusão o núcleo duro do bem jurídico atutelar “prende-se, de modo inescapável, com a ideia de que aproibição do insider Trading visa garantir que o mercado de valo-res mobiliários se paute pelas regras de mercado” (FARIA COStA,2006, p. 38), funcionando como um instrumento de transparência esegurança no e do mundo financeiro(42).

3. A Tutela Sancionatória do Mercado de ValoresMobiliários: uma exigência constitucional

O CVM, no seu título VIII, dedicado aos crimes e ilícitos demera ordenação social, não pode ser analisado de forma isolada ecompartimentada. De facto, a compreensão deste regime passapela apreensão das conexões materiais que estabelece e pela orien-tação político-criminal seguida. Antes de mais, o regime remete,quer em termos de descrição dos preceitos penais e contra-ordena-cionais, quer em termos de interpretação de conceitos, para outrossectores do ordenamento jurídico e para outras partes do Código,propugnando uma proveitosa e próxima conexão material. Fá-lo“para garantir, através da ameaça sancionatória e da perseguiçãodas infracções, os valores e bens regulamentados pelo diploma”

(42) “Em suma, a situação de paridade informativa, o princípio da eficiência dosmercados e a função pública da informação são, enquanto condições da justa distribuiçãodo risco negocial, aspectos essenciais do funcionamento dos mercados de valores mobiliá-rios. A incriminação do abuso de informação visa proteger um bem económico de naturezasupra individual que corresponde a essas condições essenciais: a função pública da infor-mação enquanto justo critério de distribuição do risco do negócio no mercado de valoresmobiliários” (PINtO, 2000, p. 68).

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 801

(PINtO, 2000, p. 17). Esta conexão existe ainda com outros váriosramos do Direito, que acabam por desempenhar um papel importanteno processo de orientação, estruturação, apoio e delimitação doregime jurídico acolhido e defendido no CVM. Nas palavras deCOStA PINtO, “[a] intervenção de diversas entidades com poderes deDireito Público nesta área e nesta matéria não é, pois, um bem em si,mas antes uma forma de tutelar bens e valores que merecem essaprotecção” (PINtO, 2000, p. 17). Falamos, obviamente, dos seguintesâmbitos regulatórios: direito criminal; direito processual criminal;regime geral do direito de mera ordenação social; e, claro, do direitoconstitucional.

De acordo com o preceituado no art. 2.º da nossa Lei Funda-mental:

[a] República Portuguesa é um Estado de direito democrático,baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organiza-ção política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dosdireitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependênciade poderes, visando a realização da democracia económica, social ecultural e o aprofundamento da democracia participativa.

Em articulação com o disposto no art. 3.º, n.º 2 e n.º 3:

O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidadedemocrática.

A validade das leis e dos demais actos do Estado, das regiõesautónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicasdepende da sua conformidade com a Constituição.

Parametrizado, nestes termos, pela Constituição da RepublicaPortuguesa, o Estado encontra-se adstrito a todo um conjunto deimposições legiferantes, por um lado, a concretização de todo umarticulado de normas que permitam uma proteção efetiva dos direi-tos e liberdades dos indivíduos e, por outro lado, a elaboração deuma malha de defesa e de garantia desses mesmos direitos(43).

Na esteira de VIEIRA DE ANDRADE:

(43) Neste sentido (CANOtILHO; MOREIRA, 2007, p. 208).

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[h]á um conjunto de direitos fundamentais, do qual decorremtodos os outros: o conjunto de direitos que estão mais intimamenteligados à dignidade e ao valor da pessoa humana e sem os quais osindivíduos perdem a sua qualidade de homens. E esses direitos (pelomenos esses), devem ser considerados ‘património espiritual comumda humanidade’ e não admitem, hoje, nem mais uma leitura, nem pre-textos económicos ou políticos para a violação do seu conteúdo essen-cial (ANDRADE, 2007, p. 34)(44).

Antes de mais, é necessário ter presente que a nossa Constitui-ção consignou um sistema completo de direitos, liberdade e garan-tias fundamentais. Este catálogo ocupa um lugar de destaque, aParte I da CRP. A forma como estes se encontram enunciados nãotem paralelo nas constituições dos outros países. A maioria dosautores concorda que, em termos de direito comparado, a nossaConstituição tem alguns vetores de inovação. A forma de organiza-ção encontrada foi a de elaborar uma lista extensa de PrincípiosGerais (arts. 12.º a 23.º), de Direitos, Liberdades e Garantias(arts. 24.º a 57.º), estipulando também, em paralelo, um conjuntode Direitos Económicos, Sociais e Culturais (DESC). A parte II daCRP estipula preceitos em relação à organização económica quenos interessa analisar.

Nestes preceitos constitucionais relativos à organização eco-nómica teremos que forçosamente destacar algumas ideias. Assim,desde logo, o art. 101.º da CRP consigna que “[o] sistema finan-ceiro é estruturado por lei, de modo a garantir a formação, a cap-tação e a segurança das poupanças, bem como a aplicação dosmeios financeiros necessários ao desenvolvimento económico esocial”. Obviamente que a prossecução e realização deste princí-pio densificador só será possível através dum mercado de valoresmobiliários que, em condições de transparência, consiga assegurara confiança dos investidores e a própria regularidade do mercado,proporcionando uma plataforma de encontro entre a procura defontes de financiamento e a poupança dos investidores, permitindo

(44) A dignidade da pessoa humana enquanto valor-fonte e princípio limite.(CANOtILHO; MOREIRA, 2007, pp. 198-200).

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 803

“estratégias de recomposição das estruturas accionistas dassociedades cotadas e funções relevantes na gestão económica dorisco de certas actividades” (PINtO, 2000, 18). E essa realizaçãopassará também por um aparelho de tutela sancionatória que vise,mais uma vez, o bom funcionamento dos mercados, do setor finan-ceiro, como um patamar inalienável de eficiência da economianacional.

Em articulação, sentimos como obrigatório, mobilizar o con-teúdo do art. 81.º, al. e) da CRP, que dispõe do seguinte modo“[i]ncumbe prioritariamente ao Estado no âmbito económico esocial (…) assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, demodo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, acontrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir osabusos de posição dominante e outras práticas lesivas do inte-resse geral”. Sublinhamos que este funcionamento sustentáveldos mercados é, então, uma incumbência prioritária do Estado.Nasce aqui uma autêntica preocupação constitucional que visaproteger os interesses económicos dos particulares, assim comoprosseguir fins específicos afetos à política económica de desen-volvimento Estadual. Mais uma vez, tal meta só será possível atra-vés de uma via de legitimação de uma tutela sancionatória que(acolhido e defendido por COStA PINtO) zele pela proteção de benssupra-individuais.

Uma última nota para esclarecer o seguinte.A enunciação dos arts. 81.º, al. e), e 101.º da CRP, e a assun-

ção dos objetivos aí propostos, através de uma tutela sancionatória,devem ser temperados com duas ideias fundamentais: o conteúdodo título VII do CVM deve cumprir “seriamente o princípio daintervenção mínima” (PINtO, 2000, 20) (isto é, em consonânciacom outros mecanismos de cariz e espírito preventivo)(45); a inter-venção do aparelho de tutela sancionatória deve, obviamente, res-peitar o princípio da necessidade, presente no art. 18.º, n.º 2 da

(45) Neste sentido COStA PINtO refere que: a “[i]ntervenção mínima, mas com umaprocura redobrada de eficiência que se manifesta quer na redacção dos tipos de ilícito, querem algumas soluções processuais, de forma a conseguir respostas adequadas à prática deinfracções cometidas (…)” (PINtO, 2000, p. 21).

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CRP, “que se projecta nas exigências de adequação, necessidade eproporcionalidade das medidas restritivas de direitos, liberdades egarantias” (PINtO, 2000, p. 20).

Capítulo IIO crime de Abuso de Informação

1. O artigo 378.º do Código de Valores Mobiliários

Como vimos o crime de abuso de informação foi introduzidopelo CSC, nos seus arts. 499.º, 450.º e 524.º (este último já revo-gado), estando também presente no CódMVM, muito por influên-cia da Diretiva n.º 89/592/CEE, no art. 666.º. No CVM de 1999, olegislador inseriu-o no art. 378.º, estipulando uma série de compor-tamentos padronizados que são, após acertada valoração, proibidosnos mercados de valores mobiliários. Após leitura do preceito,delineamos que o crime em apreço consiste num ato de disposiçãode uma informação privilegiada por certas pessoas por referênciaaos comportamentos que figuram no tipo de ilícito criminal: trans-mitir negociar a informação; aconselhar alguém a negociar; eordenar a subscrição, venda ou troca de ativos com base numainformação privilegiada(46).

A inserção deste preceito não foi, no entanto, isenta de críti-cas. De facto, e nas palavras de COStA PINtO, que sublinhamos, atécnica utilizada pelo legislador “não foi particularmente feliz”(47).Realmente o preceito acabou por ser uma simples transposição,limitando-se a transformar as normas jurídicas da Diretiva, criandoum conjunto de tipos penais que, tradicionalmente, eram estranhos

(46) O que implica que a simples posse não tem relevância para o preenchimentodo tipo deste preceito (pode apenas ter relevância, como refere COStA PINtO, por referênciaaos crimes previstos nos arts. 194.º a 197.º do Código Penal). Do mesmo modo, não serãopuníveis os casos de non trading, isto é, os casos em que alguém recebe uma informaçãoprivilegiada e decide não a usar efetivamente.

(47) Neste sentido (PINtO, 2000, p. 42).

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 805

aos instrumentos e à técnica jurídica nacional(48). O estipuladoacaba por ser complexo e denso, o que não deixa de causar algumaestranheza uma vez que, em alguns aspetos, dá azo a algumas lacu-nas de difícil integração. Existe um outro espeto relevante referidopelo autor que, pela sua importância na perceção da articulaçãoprática de eficiência da inserção, é merecedor de reflexão. Defacto, o legislador recorre, “de forma exagerada” (PINtO, 2000,p. 42), a elementos subjetivos especiais no desenho dos tipos incri-minadores, utilizando técnicas de transposição de crimes patrimo-niais em crimes que são, essencialmente, de demarcada naturezaeconómica(49).

tendo em linha de conta o exposto podemos, ora, partir parao núcleo essencial do tipo de ilícito criminal em estudo. Em ter-mos abstratos, este abarca as “situações em que alguém usa nomercado de valores mobiliários uma informação economicamenterelevante a que teve acesso de uma forma especial, antes de ageneralidade dos investidores a poder conhecer” (PINtO, 2000,p. 42). tal prende-se, sem dúvida, com o facto de quem utilizainformação privilegiada se encontrar numa situação de vantagemilegítima, em relação aos restantes investidores, que, em casoúltimo, lhes permite fazer juízos de prognose mais rigorosos eobjetivos ou, nas palavras de COStA PINtO, “podendo com maissegurança evitar prejuízos ou obter lucros. Numa das perspectivaspossíveis, o que o detentor de informação privilegiada faz, na rea-lidade, é antecipar-se ilegitimamente à generalidade do mercadoque só mais tarde terá acesso à informação que aquele possui eusa” (PINtO, 2000, pp. 42-43).

Deixando de lado as críticas à inserção no CVM existe umapanóplia de características que constituem, também, as suas espe-

(48) Neste sentido (PINtO, 2000, p. 42).(49) De facto, o autor refere que a assimilação supra referida é incorreta: «Esta

assimilação é, em minha opinião, incorreta, pois nos crimes de apropriação patrimonial sãoaceitáveis os elementos subjetivos especiais dirigidos à obtenção de proveitos económicosporque isso está em harmonia com o bem jurídico protegido por esses tipos incriminadores(a propriedade ou o património). Diversamente, nos crimes económicos os bens jurídicostutelados não possuem esta natureza, surgindo antes como bens supra individuais que sóreflexa e indiretamente protegem bens pessoais” (PINtO, 2000, p. 42).

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cificidades(50): o seu desvalor intrínseco não é imediatamenteapreensível, porque pressupõe valorações específicas e regras defuncionamento do mercado que, normalmente, são estranhas àsregras comuns da experiência ou senso; a sua danosidade real nãoé imediatamente visível (ao contrário dos outros crimes económi-cos); além do que, todo o esquema de insider trading tem lugar nomercado de valores mobiliários, um teatro lícito (ao contrário,mais uma vez, dos outros crimes económicos que tem lugar numcontexto primordialmente ilícito).

2. Estrutura Típica das Incriminações

O crime de abuso de informação tem, no Código de ValoresMobiliários, uma estrutura que, de forma sintética, é mister anali-sar. O art. 378.º combina e enuncia as qualidades típicas dos agen-tes (art. 378.º, n.os 1 e 2), relacionando-as com a prática de um dosfactos descritos, consignando um nexo de causalidade entre aposse da informação e a conduta proibida, exigindo como ele-mento subjetivo geral, o dolo, nos termos dos arts. 13.º e 14.º doCódigo Penal.

Como bem refere COStA PINtO (PINtO, 2000, p. 69) existemalgumas visíveis diferenças em relação às legislações anteriores.O requisito de «procurar tirar proveito» que se encontrava noart. 666.º do CódMVM foi retirado. Foi do mesmo modo suprimidoo regime de atenuação de pena previsto no art. 666.º, n.º 2 doCódMVM(51).

O crime de abuso de informação estrutura-se tipicamente àvolta de certas relações especiais que um grupo de agentes temcom a fonte de informação privilegiada (casos do art. 378.º, n.os 1e 2 do CVM) ou que qualquer pessoa tem com aqueles agentes que

(50) Neste sentido (PINtO, 2000, p. 41).(51) No primeiro caso, a cláusula constituía um elemento denso e complexo, de

difícil harmonização prática. No segundo caso a norma constituía-se como autenticamente“assistemática e desnecessária” (PINtO, 2000, p. 70).

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 807

possuem essa relação especial (art. 378.º, n.º 3). Podemos entãoantever, nesta descrição, vários tipos de insiders: os corporate insi-ders, previstos no art. 378.º, n.º 1, que são titulares de órgãos deadministração ou fiscalização de uma entidade emitente ou possui-dores de participações no respetivo capital; os insiders não institu-cionalizados ou temporários, previstos no art. 378.º, n.º 2, consti-tuídos por pessoas que tem um vínculo profissional a um emitente,a título temporário ou permanente; e os outsiders ou tippies, quenão sendo reconduzidos a nenhum dos grupos, recebem de umagente com essas qualidades definidoras típicas uma qualquerinformação privilegiada que depois irão ilicitamente utilizar. Rapi-damente é percetível que existe uma opção clara por um regimeamplo(52) quanto à delimitação dos possíveis agentes. O legisladorportuguês ao adotar estas soluções revela ter acolhido “o sistemasugerido pela Directiva Comunitária de 1989, criando um regimeaparentemente amplo quanto à delimitação dos agentes possíveis(…)” (PINtO, 2000, p. 71). Da estrutura emanam, assim, diversosníveis ou espécimes de figurinos: os insiders primários, qualifica-dos ou intranei, que detêm, como vimos, um conjunto referencialde qualidades ou uma relação especial com a fonte de informaçãoprivilegiada, constituídos pelas situações dos n.os 1 e 2 do art. 378.ºdo CVM; e os insiders secundários ou extranei, que acabam porreceber a informação dos primeiros, constituídos pela situação pre-vista no n.º 3 do art. 378.º do CVM. Existe aqui uma noção demaior gravidade aposta às situações dos insiders primários(CâMARA, 2011, p. 816), completamente compreensível numaquestão de análise de política criminal, e claro, “pelo maior perigode lesão do bem jurídico decorrente de uma relação especial como mesmo” (PINtO, 2000, p. 71). A diferença entre estes dois pata-

(52) A verdade é que a amplitude deste regime, quanto ao círculo de agentes idó-neos, tem sido sobejamente discutida e controvertida. É, nas palavras de COStA PINtO, umaamplitude «mais aparente do que real». E esta discussão visa saber, sobretudo, se existeaplicabilidade do regime da Diretiva e da legislação portuguesa aos titulares de participa-ções sociais. Este teatro de sombras e fumos e esta aparente amplitude do regime temvindo a ser limitada por problemas de produção de prova. Reportamo-nos, obviamente, auma necessidade exigência de conexão entre a qualidade do agente e o fluxo de informa-ção. Para mais desenvolvimentos (PINtO, 2000, p. 72).

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mares remete até a um nexo de causalidade entre a conduta proi-bida e a informação privilegiada(53). Os crimes previstos nos n.os 1e 2 são crimes específicos próprios, “delimitados em função de cír-culos de agentes que têm uma especial relação com as fontes deinformação privilegiada” (PINtO, 2000, p. 73), e o crime consig-nado no n.º 3 trata-se dum crime comum. Os n.os 1, 2 e 3 doart. 378.º do CVM distinguem-se, ainda, quanto à estrutura dogmá-tica dos tipos incriminadores (PINtO, 2000, p. 81): revelando-secomo crimes de perigo abstrato os tipos de ilícito que preveem atransmissão ilegítima da informação privilegiada como uma verda-deira conduta típica; constituem crimes de perigo abstrato-con-creto os atos que configurem formas de aconselhamento, bemcomo, a emissão de ordens de compra, venda ou troca: trata-sedum crime material o tipo de crime quando tenha ocorrido umdado ato de negociação que dê origem a uma compra efetiva,venda ou troca (a formação do negócio constitui, assim, o resultadolesivo do bem jurídico protegido). O ato pelo qual estes agentes sepropõem a dispor da informação merece também a nossa atenção.Como vimos no Capítulo II, ponto 1, art. 378.º do Código de Valo-res Mobiliários, esse ato consiste na transmissão a outrem fora doâmbito normal de funções do agente de uma informação privile-giada, podendo, também, consistir num verdadeiro e autêntico atonegocial como “negociar, aconselhar alguém a negociar ou orde-nar a subscrição, venda ou troca de activos com base na informa-ção privilegiada” (PINtO, 2000, p. 72). Cada um destes comporta-mentos é relevante por si só, ou seja, cada um dos factos leva àrealização do tipo de ilícito independentemente da realização dosoutros. Isto leva a que possa ter lugar a realização de vários tiposde comportamentos relevantes, levando, consequentemente, a con-

(53) “Da atual redação do preceito resulta de modo especialmente claro algo que jávínhamos sustentando anteriormente e que é o facto de a lei portuguesa, à semelhança deoutras legislações, não ter optado por uma aceção ampla dos insiders primários, que sebastasse com a circunstância de estes possuírem informações reservadas, mas ter exigidoque tais informações se devessem a uma particular relação com a entidade emissora dostítulos mobiliários (…) Na lógica do preceito do Código de Valores Mobiliários, exige-secomo que uma relação de causalidade adequada entre a qualidade do agente e o acesso àinformação, relação que se funda num pressuposto de confiança” (FERREIRA, 2001,p. 154).

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curso efetivo ou aparente de crimes ou de comportamentos intra-típicos.

Entendemos pertinente operar, ora, a subtração de um plusfundamental, que o mesmo é dizer, através de uma delimitaçãonegativa, identificar alguns dos casos não subsumíveis nos tiposincriminadores. Assim(54):

a) a simples posse de informação privilegiada não é sufi-ciente para preencher o tipo de incriminação do crime deabuso de informação. Este estipula que o agente tenha quetransmitir, negociar, aconselhar ou emitir ordens para quehaja uma conduta efetiva de disposição dessa informação.

b) os casos de non trading, ou seja, os casos em que alguémtem essa informação mas não efetiva um desses atos deconduta que preenchem o tipo, não integram o crime deabuso de informação. Percebe-se que a prova seria diabó-lica, de difícil execução, além do que não existe materiali-dade suficiente para desencadear o aparelho de tutela san-cionatória. Por outro lado, a punição do non trading seria apunição de uma conduta de omissão de negociar, comorelembra COStA PINtO. Isto significaria que existiria, nestasuposição, um correlativo dever de negociar. “No caso emapreço, isto equivaleria a dizer que seria exigível ao desti-natário da norma que praticasse um acto economicamentenão racional que implicaria um auto-prejuízo consciente”(PINtO, 2000, p. 74). Obviamente que isto se acabaria portraduzir numa possível ineficácia, ab initio, da figura.

c) tem que existir dolo em relação a todos os elementos dofacto típico para que o comportamento seja punível. Se talnão acontecer o comportamento não poderá adquirir rele-vância criminal;

d) tem que existir um nexo de causalidade entre a informa-ção privilegiada e a realização da conduta proibida. Se talnão se verificar existe uma clara atipicidade do comporta-

(54) Para mais desenvolvimentos (PINtO, 2000, p. 73).

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mento e, mais uma vez, não haverá possibilidade de puni-ção através do crime de abuso de informação(55).

e) estarão excluídas do domínio de informação privilegiada asfiguras de estudos, previsões e estatísticas que, “ainda queelaboradas com dados conhecidos do público, são suscep-tíveis, pelo facto de aumentarem a informação do mercado,de determinarem correcções pontuais nos preços dasacções” (FERREIRA, 2001, p. 155). Como refere EDUARDO

FERREIRA “tem sido entendimento unânime sobretudo nadoutrina italiana, o de que tais estudos estão afastados doconceito de informação privilegiada, tal como sucede nocaso de estudos financeiros elaborados com base em ele-mentos não publicados e destinados a entidades específi-cas que podem ser mantidos em reserva por um período denoventa dias” (FERREIRA, 2001, p. 155). Por outro lado aprópria Diretiva n.º 2003/6/CE esclarece no seu ponto 31que “[o]s estudos e as estimativas elaboradas com base emdados do domínio público não deverão ser consideradosinformações privilegiadas e, por conseguinte, as opera-ções efetuadas com base nesse tipo de estudos ou estimati-vas não deverão ser consideras por si só, na aceção da pre-sente diretiva, um abuso de informação privilegiada”.

f) um terreno movediço será constituído pelos casos dúbiosem que a informação privilegiada chega ao conhecimentode alguém sem que tenha existido um esforço sério e pes-soal nesse sentido. Estes casos fortuitos não constituirão,em princípio, comportamentos densificadores de umcrime de abuso de informação (falamos de casos de reve-lações esporádicas em lugares públicos ou por meio decomunicação, de forma indireta, por exemplo). Mas aten-ção. COStA PINtO faz uma ressalva que pretendemosdesenvolver. De facto, uma análise de uma determinada

(55) Como refere o autor, este item revela especial importância nos casos de inves-timento baseado em investigação pessoal de informação. Pelo exposto, não são criminal-mente relevantes.

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 811

situação, para efeitos de preenchimento do crime consig-nado no art. 378.º do CVM, tem que ter em conta não só avalidade do objeto, nem só, tão pouco a forma de recepçãodessa informação, mas, preferencialmente, os atos de dis-posição posterior, a utilização, no fundo, que foi feitadessa mesma informação. Uma informação recebida demodo fortuito, por mero acaso, não preencherá o tipo pre-visto nos n.os 1 e 2 do art. 378.º do CVM. No entanto, ecomo vimos, o tipo previsto no n.º 3 do referido artigoalarga consideravelmente a figura. Se o agente recebe essainformação, mesmo por mero acaso, e faz uso ulteriordessa informação realizando um ato típico previsto nessemesmo n.º 3, não poderá constituir um ato de insider tra-ding? Como refere o autor “[n]ão é, por isso mesmo,exacto afirmar face à lei portuguesa que a obtençãocasual de uma informação privilegiada faz com que a suaposterior utilização seja sempre atípica” (PINtO, 2000,p. 75). A questão do conhecimento de informações atravésde meios fortuitos tem sido objeto de muita discussão edebate pleno de controvérsias. trata-se de uma questãomuito apelativa que, tendo em conta a sua especificidade ecomplexidade, mereceria tratamento autónomo.

3. Conceito de “Informação Privilegiada”

A ambiência de uma sociedade globalizada assente em meca-nismos de transmissão e publicitação da informação veio potenciarenormemente a importância do tema. Verdadeiramente, “[n]umasociedade em que a comunicação é cada vez mais rápida e em que,progressivamente, a informação e a transparência se tornam valo-res reclamados pelo direito nos mais variados aspectos, não sepode deixar de salientar o papel de vanguarda do direito de valoresmobiliários, que é seguramente uma das áreas onde encontramosuma maior exigência nesse domínio” (FERREIRA, 2001, p. 137). Defacto, o mercado de valores mobiliários, muito por culpa dos prin-

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cípios densificadores que diametralmente o conformam, semprepropugnou uma política de efetivação e implementação da infor-mação e transparência do mercado. A tal movimento não foramestranhas, certamente, as inúmeras Diretivas comunitárias já carac-terizadas: Certo é que “esta influência resulta, em larga medida, datransposição de directivas comunitárias e é, assim, uma influênciaindirecta, mas nem por isso menos evidente” (FERREIRA, 2001,p. 138). No entanto, a concretização do valor da transparênciaaliado a um conceito articulado de informação só sobrevive em fun-ção de um bem maior. E é igualmente verdade que a organização econsequente subsistência das próprias sociedades e grupos terá quepassar pela forma de captação e tratamento dessa informação. Numquadro densificador do mercado de valores mobiliários, essa preo-cupação aumenta exponencialmente uma vez que vai constituir umabase inteligível de possível e futura tomada de decisões. A verdadeé que esta consideração parte de um pressuposto perspetivado.A informação acaba por ser uma categoria facilmente materializá-vel, consequentemente, objeto idóneo de atos de disposição.

Segundo o entendimento de FARIA COStA: “[D]amo-nos, assim,conta de que a informação, de uma certa forma, é uma categoriasubstantível. Por outras palavras: pode-se apreender e, neste sen-tido, também armazenar informação” (FARIA COStA, 2006, p. 40).E estes atos de disposição terão que ser devidamente classificadose regulamentados. A especificidade do mercado de valores mobi-liários aumenta o âmbito de debate desta questão(56). Porque a ver-dadeira transparência passa, não só pelo armazenamento da infor-mação, mas também pelo tratamento da informação que não émantida em segredo. todavia, não é, certamente, “a informaçãomantida em segredo (…) que satisfaz o mercado de valores mobi-liários. bem pelo contrário” (FARIA COStA, 2006, p. 40). Como tal,e mercê do exposto, o conceito de informação, além da necessárianota de transparência, relaciona-se intimamente com o modo como

(56) O mercado de valores mobiliários, constitui, de facto, uma zona particular-mente sensível e importante para a economia de mercado, atente-se os processos atuais deintegração económica e financeira (globalização), potenciando o valor da informaçãotransparente a um nível efetivamente elevado.

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o acesso a essa informação é realizado. Os investidores desempe-nham a sua função num ambiente perpassado por múltiplos ris-cos(57). Numa óptica de proteção dos seus interesses é necessário,também, um critério de informação adequada (FARIA COStA, 2006,p. 41), como plataforma igualitária de motivação de decisões e,claro, de gestão controlada dos riscos inerentes ao investimento nomercado de valores mobiliários. Como bem refere FARIA COStA, talperceção passará sobretudo pela implementação de um conceitoarticulado de publicidade que tem como escopo final a proteção domercado per se (o bem maior referenciado).

De facto, a preocupação do direito societário, bem como, a dodireito dos valores mobiliários com a informação refletem, nofundo, “uma atitude que começou por ter expressão no direitopúblico, com a consagração da ideia de que as sociedades sãotanto mais democráticas quanto dispuserem de um sistema efi-ciente de divulgação das notícias e de circulação da informação,que vai garantir um controlo de poder” (FERREIRA, 2001, pp. 138--139). A democratização deste sistema de informação revela capa-cidades imensas de transmutação da própria conceção evolutivados mercados de valores mobiliários. Na verdade, “o mercado nãopode ser definido apenas como um ponto de encontro destinado apermitir a troca de bens e produtos, mas tem de ser visto, sobre-tudo, como uma instituição dotada de regras próprias em que aspessoas que nele actuam reclamam um conjunto de garantias deigualdade” (FERREIRA, 2001, p. 140). Só por um esforço conjuntode perspetivação da informação enquanto transparência, enquantocritério adequado, enquanto perpassado por um critério de publici-dade, é que se torna exequível a proteção dos investidores, numcenário muti riscos, e a proteção e dinamização do próprio mer-cado.

O art. 378.º, n.º 3 do CVM vem estipular um critério legal deinformação privilegiada “[e]ntende-se por informação privilegiadatoda a informação não tornada pública que, sendo precisa e

(57) “Os investidores, em busca de maiores rendibilidades, fazem investimentos nomercado de valores mobiliários (e dos instrumentos financeiros) que, por natureza, acarre-tam risco, assumindo a responsabilidade pelas decisões que tomam” (SANtOS, 2011, p. 23).

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dizendo respeito, direta ou indiretamente, a qualquer emitente ou avalores mobiliários ou outros instrumentos financeiros, seria idó-nea, se lhe fosse dada publicidade, para influenciar de maneira sen-sível o seu preço no mercado”. O n.º 4 do referido artigo estende oconceito de informação privilegiada relativamente aos instrumen-tos derivados sobre mercadorias: “[e]ntende-se por informaçãoprivilegiada toda a informação com carácter preciso que não tenhasido tornada pública e respeite, direta ou indiretamente, a um oumais desses instrumentos derivados e que os utilizados dos merca-dos em que aqueles são negociados esperariam receber ou teriamdireito a receber em conformidade, prospectivamente, com as prá-ticas de mercado aceites ou com o regime de divulgação de infor-mação nesses mercados”. A definição legal deste conceito é facil-mente percetível. Num ramo em que existe, ainda, algummovimento de indefinição concetual é um esforço digno em dire-ção a uma futura estabilização e segurança. No entanto, nãopoderá dispensar um ulterior esforço dogmático de análise dosrequisitos existentes, lidando com a porosidade e consequenteabertura deixadas pelo legislador. Assim, o art. 378.º do CVM esti-pula um conjunto de requisitos para que uma determinada infor-mação possa integrar o tipo de ilícito em causa: carácter nãopúblico; carácter preciso; respeitar a entidades emitentes de valo-res mobiliários ou a valores mobiliários; ser price-sensitive, ouseja, ter uma influência sensível sobre o preço. Iremos analisarbrevemente cada um deles.

— O carácter não público da informação(58)

Para que a informação seja considerada adequada a preenchero tipo de ilícito consignado no crime de abuso de informação temque possuir um carácter não público, qualificada por alguns auto-res como informação secreta. Isto significa que não é acessível aocômputo total e à generalidade dos intervenientes no mercado(VERDELHO, 2009, pp. 345-346). Ou, nas palavras de COStA PINtO,

(58) Neste sentido, Acórdão tribunal da Relação de lisboa, 5.ª Secção, recurson.º 7799/06.9 tFLSBL1.

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“é informação reservada a um círculo restrito, naquele momento.O insider trading diz assim, em parte, respeito a informação que sedestina a ser divulgada e a infracção traduz-se no seu uso anteci-pado em relação à data da divulgação” (PINtO, 2000, p. 76). Porsua vez, FARIA COStA define que “numa primeira aproximação,podemos começar por dizer que é pública uma informação que,interessando a todos, fica disponível para todos — é susceptível deser conhecida por todos” (FARIA COStA, 2006, p. 43).

Da análise do art. 378.º, n.º 3 do CVM, resulta que não assu-mirá a categoria de informação privilegiada a resultante de dadosque foram tornados públicos e que, como tal, estão à disposição doconhecimento das pessoas, totalmente acessíveis(59).

— O carácter preciso da informação(60)

A doutrina tradicionalmente faz uma delimitação negativadeste conceito. A lei não refere em que é que consiste este carácterpreciso da informação. No entanto, num esforço de análise, alinha-mos com COStA PINtO que defende que “[e]xiste, pois, uma pri-meira delimitação negativa a fazer em relação ao conceito de“informação precisa”: deve excluir-se do conceito as referênciasvagas, rumores, notícias difusas e, por outro lado, não se deve che-gar a exigir que a informação corresponda a uma certeza. Não temde ser informação completa e exaustiva, nem pode ser uma mera

(59) Caso sensível tem sido a da selective disclosure. Nesta o emitente revela ainformação privilegiada a um grupo de pessoas seletas (normalmente peritos, consultores,analistas). Embora tenha havido uma partilha de informações, não parece haver um movi-mento de publicitação ou de divulgação que faça com que um dado mercado tome decisõesnesse sentido. Caso diferente será se um determinado consultor ou analista receber a infor-mação de uma das categorias estipuladas no art. 378.º, n.º 1 do CVM, e, com base nelas,começar a aconselhar, recomendar específica negociação de títulos. Bem anda FARIA

COStA ao defender que «Em situações deste tipo, a “selective disclosure” não é de molde afazer cessar o carácter não público da informação que o analista recebeu. Incorre na puni-ção pela prática do crime de abuso de informação o analista que, em contacto com osmembros do órgão de gestão de um emitente, obtém informação reservada e sensível eopta por a incorporar em recomendações que fornece aos seus clientes» (FARIA COStA,2006, p. 47).

(60) Neste sentido, Acórdão tribunal da Relação de lisboa, 5.ª Secção, recurson.º 7799/06.9 tFLSBL1.

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suspeita sobre um certo facto”(PINtO, 2000, p. 77). FARIA COStA

corrobora esta posição consignando que “[n]uma delimitaçãonegativa, dir-se-á que é não precisa — e deste modo o seu uso nãoreleva para os efeitos do crime em análise — a informação queresulta de referências vagas, rumores, notícias difusas” (FARIA

COStA, 2006, p. 43) que este conceito se reporta à descrição de“uma realidade minimamente identificada” (PINtO, 2000, p. 76).Isto faz com que em termos de significado este carácter preciso dainformação andará entre um «rumor» e um «juízo de certeza». Emconclusão o autor refere que “[a] exigência legal da informação serprecisa significa, na minha opinião, que a informação deve ter emrelação à realidade que descreve um mínimo de materialidade ouobjectividade ou, noutros termos, a consistência mínima para per-mitir a sua utilização por um investidor médio” (PINtO, 2000, p. 77).

Este requisito de precisão de informação acarreta, comovemos, alguns problemas de implementação e aplicabilidade prá-tica. Numa atividade negocial repleta de riscos, considerações,autênticas suspeitas sobre eventos futuros, é necessário descortinaro momento preciso em que, no decurso de todo um processo nego-cial, a informação atinge um ponto ótimo de precisão e, conse-quentemente, preenche plenamente o requisito explanado. talescopo torna-se difícil e complexo se considerarmos que os pro-cessos negociais são diametralmente diferentes tendo em conta osagentes e objetos envolvidos, dependendo, como tal, de uma panó-plia caracterizadora de fatores de imputação e modelação. Não épossível “ignorar que a prática negocial tanto conhece negóciosem que são ausentes quaisquer contactos preliminares, como semultiplicam processos negociais mergulhados em uma extremacomplexidade que exigem um longo, demorado e intenso períododedicado a contactos preliminares” (FARIA COStA, 2006, p. 48).tendo em conta esta ambiência necessitamos de um critério desinalização do momento essencial em que a informação atinge osupra referido ponto ótimo de referenciação. Prima facie, esse graude consolidação e de “cristalização” (FARIA COStA, 2006, p. 49)deverá acontecer aquando da realização de acordo entre as partes.Podemos, sem qualquer temor, afirmar que aí, e perante o conheci-mento de determinado acordo, estaremos perante informação pre-

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 817

cisa. FARIA COStA supera esta consideração, analisando num planode intencionalidade, referindo que “no decurso de um processonegocial, a informação atinge o grau de consolidação ou cristali-zação tipicamente relevante para efeitos do crime de abuso deinformação quando a probabilidade de o acordo não se fechar forínfima ou irrisória (…) Este critério encontra-se bem fundado jurí-dico-penalmente, porquanto, por um lado, permite o desenvolvi-mento do mercado de valores mobiliários, como, por outro lado,pune as condutas dos agentes que estão numa situação de efectivavantagem porque podem efectuar ‘operações sem risco’” (FARIA

COStA, 2006, p. 50). A referência deste carácter preciso, e destaforma de consolidação, cristalização e, também, de sinalizaçãovisa, mais uma vez, regular e tutelar o correto funcionamento domercado.

— Ligação a entidades emitentes de valores mobiliários ou avalores mobiliários (a market information e o front-run-ning)(61/62)

O terceiro requisito do art. 378.º, n.º 3 do CVM diz respeitoà referência a entidades emitentes de valores mobiliários ou avalores mobiliários. Num certo sentido pode-se falar aqui numcritério de especificidade: a lei exige que exista uma ligação entrea informação privilegiada e um determinado emitente ou valormobiliários. Neste segmento a análise da especificidade passarápela consideração das situações de market information e de front--running.

Quando falamos em market information referimos um con-junto de notícias ligadas às condições do mercado ou versandosobre os mercados stricto sensu, que estabelecem apenas uma liga-ção dita indireta com o emitente. A questão aqui passará por saberse estas informações podem ou não configurar informação privile-giada. À luz da legislação nacional, e tendo em conta o referido

(61) Neste sentido, Acórdão tribunal da Relação de lisboa, 5.ª Secção, recurson.º 7799/06.9 tFLSBL1.

(62) Para mais desenvolvimentos (FARIA COStA, 2006, p. 51).

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alargamento funcional do n.º 3 do art. 378.º do CVM, estipulandoque as informações podem dizer respeito “directa ou indirecta-mente a qualquer emitente ou a valores mobiliários ou outros ins-trumentos financeiros” parece-nos que, em certas situações, cum-pridos pontualmente os demais requisitos, também os casos demarket information podem constituir crime de abuso de informa-ção privilegiada.

Quanto ao front-running reporta-se a situações em que umagente, o front-runner, aproveitando uma informação elaborada eexecutada por terceiros, irá, também ele, realizar negócios, préviosou paralelos, “designadamente àquelas que sejam susceptíveis deter impacto no mercado” (FARIA COStA, 2006, p. 51). Parece-nosque todos os requisitos expostos above estão cumpridos. A questãoaqui será desvendar se as margens de punibilidade serão flexíveis osuficiente para abarcar esta situação na figura do crime de abuso deinformação. Não nos parece que, mesmo existindo uma ligaçãoindireta, o necessário nexo de causalidade e a importante ligaçãoao emitente esteja, por qualquer forma, comprometida. Como tal,estão preenchidos os demais requisitos, também esta conduta será,nas situações corretas, punida.

— Price-sensitive: a idoneidade para influenciar de maneirasensível o preço dos valores mobiliários(63)

O último requisito exigido é o da “idoneidade para influen-ciar de maneira sensível o preço dos valores mobiliários”(64).A aplicação destes requisitos é, talvez, o que levanta maiores difi-culdades. E os problemas de interpretação põem-se, desde logo,em dois momentos. Senão vejamos. tal advém, em primeiro lugar,das características dos próprios mercados. Estes são extremamentedinâmicos e evolutivos. E é esta “volatilidade” que implica diver-sas consequências, repercussões e ramificações na evolução dacotação dos próprios valores mobiliários. Numa ambiência histó-

(63) Neste sentido. Acórdão tribunal da Relação de lisboa, 5.ª Secção, recurson.º 7799/06.9 tFLSBL1.

(64) Cf. art. 378.º, n.º 3 do Código dos Valores Mobiliários.

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 819

rica, por exemplo, como a atual, em que os mercados estão a passarpor períodos de levantamento de dúvidas e questões, por hiatos deindefinição, como é possível aferir esse critério de idoneidade? Incasu, como é que um determinado comportamento poderá afetar demaneira sensível o preço de um determinado valor mobiliário?FARIA COStA defende que “[t]em sido salientado que a valoração daidoneidade deverá ser feita por intermédio de um juízo ex ante, ouseja, deve tal juízo reportar-se a momento anterior ao da publicaçãoda informação privilegiada” (FARIA COStA, 2006, p. 53). COStA

PINtO corrobora esta posição(65) referindo que “[s]e tal informaçãoquando publicitada fosse, num juízo de previsibilidade reportado aomomento ex ante da operação, susceptível de gerar apetência pelacompra ou venda de activos, tal informação revela idoneidade parainfluenciar a evolução da cotação” (PINtO, 2000, p. 78).

Em segundo lugar, existem vincadas dificuldades em analisaro requisito de “influência sensível sobre o preço do mercado”.Qual o critério a utilizar nesta situação? Discute-se se a adoção deum critério quantitativo, através, por exemplo de fixação de per-centagem que, em caso de ser ultrapassada, pudesse dar comopreenchido aquele critério. Este tipo de critérios quantitativos apre-senta variadas fragilidades. Desde logo relacionadas com as carac-terísticas do próprio mercado. Mas sobretudo, e como bem realçaCOStA PINtO, “[D]eve frisar-se, ainda, que qualquer quantificaçãosobre o impacte do conhecimento da informação na evolução dascotações é, nesta matéria, incompatível com a letra e o sentidoteleológico da infracção se, através dessa quantificação, se pre-tender condicionar a aplicação do tipo de crime” (PINtO, 2000,p. 79). A lei sugere uma alteração qualitativa e não quantitativa.Além de que o escopo da norma é sancionar assimetrias qualitati-vas, em violação de um princípio de igualdade entre os investido-

(65) De salientar, como o próprio autor faz, de resto, que existe uma parte da dou-trina que na determinação da idoneidade negocial da informação privilegiada, adota o con-ceito de facto relevante descrito no art. 248.º do CVM. Apesar de possível, tal entendi-mento não pode ser valorado devido ao princípio da fragmentariedade em Direito Penal“que veda o recurso a ilações sistemáticas que desrespeitem a singularidade de cada tipo deilícito” (PINtO, 2000, p. 79).

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res. Daí que se procurem critérios com maior ductilidade que ela-bore um juízo de prognose onde no fundo se executa “um juízo decomparação entre o uso da informação reservada e os efeitos pre-visíveis da reacção do mercado à publicidade conferida a tal infor-mação” (FARIA COStA, 2006, p. 54), de carácter qualitativo(66).

Para finalizar, e na concretização deste requisito da idonei-dade da informação, e após a adoção de um critério qualitativo,acreditamos que existe um papel fundamental a desempenhar emtermos de supervisão. A efetivação prática passará por aqui. Comorefere COStA PINtO “[N]a concretização deste conceito de idonei-dade da informação assume particular relevo a actividade daautoridade de supervisão que, pelos seus conhecimentos técnicossobre o funcionamento dos mercados e sobre as circunstâncias,pode fornecer elementos decisivos para a subsunção típica doscomportamentos e posterior avaliação das autoridades judiciáriascompetentes” (PINtO, 2000, p. 80). Coadjuvante neste processoserá, também, a possível adoção de um sistema de indícios: “a dou-trina aceita que certos factos concomitantes ou posteriores à con-duta proibida podem funcionar como prova indirecta ou indícios expost relativamente à idoneidade da informação para alterar deforma sensível a evolução das cotações” (PINtO, 2000, p. 80).

4. O relevo jurídico criminal das condutas de uso deinformação privilegiada própria

Serve a introdução desta conduta proibida para agilizar a aná-lise da figura, saindo, do sintomático âmbito e da tradicional zonade conforto.

Sabemos, ora, que um determinado agente, a título de exem-plo, um órgão de administração ou de fiscalização que, devido à

(66) No sistema jurídico Norte-Americano, por exemplo, uma das modalidades uti-lizadas para comprovar esta idoneidade da informação é através da análise do efeito real quea divulgação dessa informação teve no mercado (actual market impact), na negociação efe-tiva do insider e no nível de secretismo com que o agente utilizou essa informação em causa.

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 821

sua qualidade profissional, obtém uma determinada informaçãoprivilegiada sobre o emitente ou sobre valores mobiliários, encon-tra-se inibido, sob cominação jurídico-criminal, de levar a caboqualquer ato de disposição, de uso, no fundo, dessa informação.Como refere FARIA COStA: “[É] manifestamente típica a conduta domembro do conselho de administração que, sabendo que a socie-dade que administra vai lançar uma oferta pública de aquisição dasações da sociedade y, se apressa a adquirir tais títulos que, maistarde, venderá na operação pública de aquisição” (FARIA COStA,2006, p. 111).

Situação diferente é aquela em que uma determinada socie-dade, como preemptive movement, realiza um acervo de estudos deinvestimento e decide seguir os objetivos e conclusões, por aque-les, alcançados. Se o administrador seguir essa via, e ordenar aaquisição de tais títulos para a sociedade, o seu comportamentopoderá ser subsumível à categoria de abuso de informação privile-giada? Pensamos que não. Embora a informação que resulte dessesestudos possa ter algumas das características, já mencionadas, nãoparece, contudo, enquadrar-se no ratio de proteção do crime deabuso de informação.

Por outro lado, e primordialmente, cumpre também questio-nar se a utilização de informação precisa, não pública, price-sensi-tive, de factos relativos à própria sociedade constitui insider tra-ding. E, também, se a utilização dessa informação se repercutiráem lucro(67). É a ratio essendi deste ponto. Como exemplo destasituação refere FARIA COStA: “[p]ense-se (…) no ingresso de umadministrador de prestígio ou num importante projecto de jointventure em que a sociedade emitente participa” (FARIA COStA,2006, p. 112). De facto, esta utilização de informação própria vairevelar-se numa posição competitiva privilegiada. Obviamente que

(67) Como referem PEDRO CARVALHO e JOãO DUQUE «A literatura sobre “insidertrading” procura responder à seguinte questão: será que os “insiders” utilizam informaçãonão pública para obterem um lucro acima daqueles que poderiam obter se negociassemsomente com base em informação pública? Se os “insiders” negoceiam com base em infor-mação não pública ou informação privilegiada, então é expectável que estes compremacções da própria empresa antes de uma subida no valor das acções e vendam nos dias queantecedem uma desvalorização dos títulos” (CARVALHO; DUQUE, 2007, p. 1).

822 RICARDO A. CARDOSO RODRIGUES/JOãO LUz SOARES

se nos remetermos a uma lógica de paridade de condições de todosos investidores não será difícil considerar como um autêntico insi-der “a pessoa que beneficia do conhecimento de eventos própriosou de propósitos próprios” (FARIA COStA, 2006, p. 112). Assim aconceção e resolução deste problema também se relacionará com aconceção que temos do tipo legal de crime de abuso de informa-ção. O art. 378.º, n.º 2, estipulou uma espécie de consideração oucritério de neutralidade da fonte. Isto é, para que haja o preenchi-mento do tipo não existe uma consideração ou uma exigência queo conhecimento tenha vindo e sido obtido de uma determinadafonte. Existe aqui um movimento translativo que concede força aomomento de conhecimento de informação privilegiada em detri-mento da fonte da qual emana. Como consigna o n.º 2 do art. 378.ºdo CVM:

Qualquer pessoa não abrangida pelo número anterior que, tendoconhecimento de uma informação privilegiada, a transmita a outremou, com base nessa informação, negoceie ou aconselhe alguém a nego-ciar em valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros ouordene a sua subscrição, aquisição, venda ou troca, direta ou indireta-mente, para si ou para outrem é punida com pena de prisão até 4 anosou com pena de multa até 240 dias.

Como tal este critério de neutralidade da fonte, parece, nanossa opinião, e através de uma interpretação extensiva, conferir,também, a possibilidade de punição do uso de informação própria,desde que cumpridos os restantes requisitos.

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 823

Capítulo IIIConclusões

Aqui chegados faremos por cumprir o esforço de sinteti-

zar os aspetos nevrálgicos do estudo levado a cabo. Fá-lo-

emos do seguinte modo:

a) A análise da figura do Insider Trading requer um esforçode compreensão que tenha em conta a ambiência emomento histórico atual que se repercute pelo entendi-mento organizacional, funcional e estrutural das áreas dabanca, bolsa e seguros.

b) Tal esforço passará por sublinhar as necessárias transfor-mações ao nível de competências impulsionadas e estrutu-radas numa ótica de transformação geopolítica inerente.

c) A crise financeira de 2007, assim como a panóplia decomportamentos que estiveram na sua base, acarretarama necessidade de reflexão e equacionamento ao nível dacoordenação diferentes comportamentos dos sujeitos einstituições do grande teatro financeiro internacional.

d) Os sujeitos, instituições e atores do grande palco finan-ceiro internacional passam por um momento de tomadaautêntica de consciência, em que a ideia de uma goldenage ininterrupta, de expansão e crescimento desmedido eutópico do sistema financeiro foi superada pelo conceitode “fim de ciclo”, “fim de era”.

e) A principal vítima de toda esta ambiência foi o conceitorelacional da fides, base e capital de confiança indispen-sável em que assentava a relação entre as instituiçõesfinanceiras e a sua clientela, havendo um claro paradigmshift em relação à forma como o palco financeiro, e osseus intervenientes, são comumente percecionados.

f) A densificação da figura do crime de abuso de informaçãoprivilegiada, enquanto propugnador do princípio trans-versal de transparência e segurança do mercado, e até

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numa ótica de estruturação e restabelecimento das rela-ções financeiras, é, no quadro relatado, fundamental.

g) O Insider Trading percorreu um longo caminho desde aconsideração da natureza censurável e ilícita do abuso deinformação até à sua ascensão à dignidade de condutajurídico-criminalmente relevante.

h) A intervenção penal nesta figura é considerada necessá-ria e imprescindível , sublinhando que a via da criminali-zação do abuso de informação se assume como a via maiseficaz e correta de tratamento do problema.

i) O crime de abuso de informação privilegiada tem que serelacionar com a sensibilidade e reatividade à informa-ção, própria dos mercados financeiros. E é esta nota de«sensibilidade e reatividade» que nos leva facilmente aconcluir que a utilização dessa informação é um pro-blema jurídico-penal, sendo basilar uma rede de preceitosde proteção e tutela dos bens jurídicos protegidos peloabuso de informação privilegiada.

j) O crime de abuso de informação não visa proteger posi-ções individualizantes. Protege um bem demarcadamentesupra-individual: a viabilidade e transparência do pró-prio mercado.

k) Na base da incriminação do crime de abuso de informa-ção está um escopo de garante de qualidade, segurança etransparência do próprio mercado.

l) Propósito que está muito para além das fronteiras clássi-cas do direito penal e que será sancionado pelo direitopenal secundário.

m) Desaguar lógico :ao carácter supra-individual do bemjurídico protegido é necessário acrescentar uma nota visí-vel que realce o bem jurídico em questão como uma reali-dade polifacetada ou poliédrica.

n) A proteção e implementação dessa nota passa por umprocesso de tutela da confiança dos investidores no cor-

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 825

reto e regulamentado funcionamento do mercado e poruma proteção da decisão da economia individual, tomadacomo igualdade de informação para todos os investido-res.

o) Além de poliédrico o bem jurídico assume-se como funda-mentalmente heterogéneo, uma vez que engloba uma autên-tica diversidade de proteção de realidades diferentes: pro-teção da confiança e da igualdade dos investidores.

p) A tutela sancionatória do insider trading passa por umaexigência constitucional: a Constituição da RepúblicaPortuguesa estipulou um articulado de artigos que temcomo escopo garantir uma salutar organização finan-ceira. Os arts. 101.º e 81.º, al. e) são, a este passo, fun-damentais. Nasce aqui uma autêntica preocupaçãoconstitucional que visa proteger os interesses económi-cos dos particulares, assim como prosseguir itens consa-gradores de uma política económica de desenvolvimentoestadual.

q) A figura do crime de abuso de informação foi introduzidapelo Código das sociedades Comerciais, nos seus arts. 499.º,450.º e 524.º (este último já revogado), estando também pre-sente no CódMVM no art. 666.º. No CVM de 1999, o legisla-dor inseriu-o no art. 378.º, estipulando uma série de compor-tamentos padronizados que são proibidos nos mercados devalores mobiliários.

r) O art. 378.º do Código de Valores Mobiliários consignouo crime de abuso de informação privilegiada através deatos de disposição de uma informação privilegiada porcertas pessoas por referência aos comportamentos proibi-dos pela incriminação: transmitir, negociar a informa-ção, aconselhar alguém a negociar, e ordenar a subscri-ção, venda ou troca de ativos com base numa informaçãoprivilegiada.

s) O crime de abuso de informação estrutura-se tipicamenteà volta de certas relações especiais que um grupo de

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agentes tem com a fonte de informação privilegiada(casos do art. 378.º, n.os 1 e 2 do CVM) ou que qualquerpessoa tem com aqueles agentes que possuem essa rela-ção especial (art. 378.º, n.º 3).

t) Existem, como tal, vários tipos de insiders: os corporate insi-ders — são titulares de órgãos de administração ou fiscaliza-ção de uma entidade emitente ou possuidores de participa-ções no respetivo capital; os insiders não institucionalizadosou temporários — pessoas que tem um vínculo profissional aum emitente, a título temporário ou permanente; e os outsi-ders ou tippies — recebem de um agente com essas qualida-des definidoras típicas uma qualquer informação privile-giada que depois irão ilicitamente utilizar.

u) Existem, consequentemente, diversos patamares de orga-nização de delimitação dos agentes possíveis: os insidersprimários, qualificados ou intranei, que detêm, comovimos, um conjunto referencial de qualidades ou umarelação especial com a fonte de informação privilegiada;e os insiders secundários ou extranei, que acabam porreceber a informação dos primeiros.

v) Delimitação negativa de comportamentos que não preen-chem os tipos incriminadores: a simples posse de infor-mação, os casos de non trading, casos em que não existedolo em relação a todos os elementos do facto típico,casos em que não existe nexo de causalidade em relação atodos os elementos do facto típico, e as figuras de estudos,previsões e estatísticas.

w) A implementação de uma sociedade globalizada assenteem mecanismos de transmissão e publicitação da infor-mação veio potenciar enormemente a importância doconceito de “informação privilegiada”.

x) O mercado de valores mobiliários, mercê dos princípiosdensificadores que diametralmente o conformam, semprepropugnou uma política de efetivação e implementaçãoda informação e transparência do mercado.

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 827

y) O art. 378.º do CVM estipula um conjunto de requisitospara que uma determinada informação possa integrar otipo de ilícito em causa: carácter não público; carácterpreciso; respeitar a entidades emitentes de valores mobi-liários ou a valores mobiliários; ser price-sensitive, ouseja, ter uma influência sensível sobre o preço.

z) A abordagem ao relevo penal da utilização de informaçãoprópria foi feita com o escopo de agilizar a análise dafigura, saindo assim da tradicional zona de conforto.

Fechamos o presente capítulo com uma última refle-xão conclusiva:

A crise financeira que atravessamos foi e é um acontecimentosem paralelo. As consequências nefastas repercutem-se pelosdiversos setores de estruturação e organização económica e todasas chinese walls e procedimentos standards de contenção tendem anão alcançar os efeitos desejados.

Nas palavras de ANTÓNIO fERREIRA “A situação que se viveactualmente coloca, entre muitas outras, a questão de saber seterá sido a crise do sistema financeiro a potenciar a crise econó-mica geral a que também se assiste, ou se, ao invés, terá sido oprogressivo colapso da economia feral que potenciou as conse-quências desastrosas agora sentidas no sistema financeiro» (FER-REIRA, 2009, p. 188). Todavia vivenciamos um momento históricoimpar. sendo-nos dada a possibilidade de, tendo por base os dadosda realidade, bem como os empíricos advenientes, operar, de raiz,uma verdadeira análise e reflexão pro-mudança da configuraçãoda estrutura, modus operandi e papéis dos agentes, instituições econsequentes do palco financeiro. Essa oportunidade deve serestritamente aproveitada.

Como referimos, se existem, de facto, vítimas e reféns destacrise a principal será a maneira como os cidadãos comuns, moto-

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res atómicos das alianças geopolíticas e económicas, percecionamo cenário financeiro, em geral.

Realmente “[o] crédito da confiança que o sistema financeirogranjeou, ao longo dos tempos, junto de accionistas, credores,depositantes e clientes, em geral, tem sofrido nos últimos temposchoques apreciáveis que tendem a minar os respectivos fundamen-tos essenciais. Um dos maiores perigos derivados da subsistênciada actual crise radica, precisamente, na possibilidade de a dete-rioração desse clima de confiança atingir níveis que ponham emcausa a própria subsistência da actividade financeira” (FERREIRA,2009, p. 188).

é fundamental pro-agir com coragem, encontrar instrumen-tos e vias de atuação que se repercutam na manutenção de níveisde confiança adequados e é precisamente aqui que se encontra apedra de toque do presente estudo. O crime de abuso de informa-ção pode e deve constituir uma resposta clara e eficiente, comomecanismo de resposta técnica e rigorosa, de consignação datransparência dos mercados. E ao fazê-lo, claro, assumir-se comoelemento recuperador da fides dos intervenientes. Obviamente queeste esforço de aplicabilidade do insider trading como elemento deestabilização futura tem que ser conciliado, como de resto é funda-mental, com mecanismos próprios de supervisão financeira (FER-REIRA, 2001, p. 189).

Consideramos, por fim, que uma abordagem multifacetada àfigura, bem como à maioria das realidades emergentes da dinâ-mica do setor económico e financeiro, é fundamental para a suacompreensão (mormente, ambiência ou cenário global) e umaadequada modelação. Tratam-se, no fundo, de fenómenos pluraisúnicos in progress, cuja análise, avaliação, reflexão e intervençãodeverão sempre ser o mais abrangentes ou amplos possíveis, nãoperdendo de vista todos os pontos de conexão, bem como os respe-tivos focos, a fim de, descodificando o seu cerne, inverter ou rever-ter, na fonte, os impulsos nocivos.

It was all done in the name of innovation, and any regulatory initiativewas fought away with claims that it would suppress that innovation.They were innovating, all right, but not in ways that made the economy

O CRIME DE ABUSO DE INFORMAçãO PRIVILEGIADA 829

stronger. some of America's best and brightest were devoting theirtalents to getting around standards and regulations designed to ensurethe efficiency of the economy and the safety of the banking system.Unfortunately, they were far too successful, and we are all — homeow-ners, workers, investors, taxpayers — paying the price.

JOSEPH StIGLItz(68)

(68) StIGLItz, JOSEPH, The fruit of hipocrisy, the Guardian, Economics, Opinion,16 de setembro de 2008.

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