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Texto vencedor do Concurso Literário Ben Gurion
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A Despedida – um relato de amor entre espécies
Clarissa Feder
“Baleia ficou doente. Seus pelos caíram, as costelas
apareciam na pele rósea, onde manchas escuras
convertiam-se em pus e sangravam. [...] A cachorra saiu
de pernas tortas, arrastando-se em três delas para detrás
de uma moita de espinhos. Sua consciência sumia-lhe.
Era tarde. Precisava descansar. [...] Ela queria dormir ali
entre a cozinha e o alpendre, na pedra quente do fogão.
Amanhecendo, acordaria feliz, lambendo a mão de um
Fabiano enorme, as crianças rolariam com ela em um
pátio imenso, o mundo ficaria cheio de preás, gordos,
grandes, o nordeste seria um campo verdejante, cheio de
árvores e bichos. Tudo seria diferente.”
(“Vidas Secas”, Graciliano Ramos)
Um relâmpago eclode no céu e, nesse microssegundo que ilumina o
firmamento, seus danos já são irreparáveis. Dizima o alvo e todo o diâmetro
que o circunscreve. Era um dia como outro qualquer, quando foi atingida por
uma dessas fagulhas da morte. Era o último dia do verão. Em breve, adentraria
o nostálgico ar outonal sem que ele estivesse para senti-lo.
Conheceram-se quando crianças. Ela tinha sede de entender o mundo,
amar os seres e o ambiente, e sua ansiedade a tornava verborrágica. Ele
sensibilizava com o silêncio, com o olhar cúmplice e a sabedoria de quem
entendia esse desespero, sem se contaminar por ele. Os dois cheiravam leite
quando se viram interligados de forma visceral.
Ela andava ereta, mas incontáveis vezes se via de joelhos no tapete,
para brincar de igual para igual. Ele andava normalmente com suas quatro
patas, mas a recepcionava com duas, saltitando, para animá-la, quando
chegava em casa. O aprendizado era mútuo. Ela era a humana com alma
animal. Ele, o animal com a alma humana.
Só que o tempo era infinitamente mais voraz à espécie dele. Ela
comemorava o auge da juventude, quando ele apresentou os primeiros sinais
de senilidade. Ela tinha espinhas no rosto e ele começou a esbarrar nos
objetos da casa, os primeiros sinais da catarata.
Em respeito, fez regime quando veio a diabetes no cãozinho. Nada de
sanduíches para os dois, nem salgadinhos ou chocolate, que tanto adoravam.
Ela estudou com afinco o que acontecia ao funcionamento do pâncreas dele e
aprendeu a dar injeção de insulina entre os pelos. Mas era ela quem dependia
intrinsecamente dele, não o contrário. Amor estranhamente doentio.
A falta de ar era comum – a dele, sinal do coração fraco; a dela, asma
crônica. Ambos já não corriam felizes pela casa como era possível
antigamente.
2
Tão assustadoramente cruel fora o tempo. Cerrou os olhos e pensou na
primeira vez que o vira. Inocente, jamais conheceria a miséria humana. Foi feliz
à sua maneira e contaminou as pessoas ao seu redor com aquela
descompromissada alegria.
Em um momento, ela gargalhava e rolava com uma bolinha de pelos.
Ele, à maneira que lhe era possível, correspondia a essa euforia. Assim foram
durante os catorze anos em que viveram juntos. E foi como se houvesse um
salto na dimensão tempo-espaço e os anos foram engolidos pelo universo.
Ela sabia que tinha um longo caminho pela frente. Sozinha. A separação
era questão de tempo e via a piora do companheiro a cada dia.
A jovem ninava o cãozinho idoso feito um filho e, diversas vezes, achou
que estaria preparada para o momento da partida e da despedida. Enganava-
se.
Em sua última noite juntos, o pequeno lambeu-a duas vezes, com sua
devota obediência. Recebeu esse carinho de olhos fechados, como se
congelasse aquele momento na memória, e retribuiu. Ela soluçava baixinho,
com as lagrimas jorrando no rosto. Ele gania.
O cão ainda abanava o rabo fracamente, sua forma de sorrir em tom de
súplica e fazer crer que sua vida não deveria ser abreviada.
Mas, aquele dia ensolarado trouxe a dor agonizante da iminente perda e
não havia mais o que fazer. Os órgãos internos não respondiam, e a
sobrevivência era questão minutos, horas, ou, com milagre, dias. Precisava
descansar.
Ele poderia então correr novamente pelo campo, comer doces,
hambúrgueres, roer ossos gigantescos e latir para os gatos que ousassem
cruzar a janela. Ela o encontraria um dia, talvez, em outra existência, ou no
mundo vindouro. Faria visitas diárias ao “Céu dos cãezinhos” e renderia eterna
homenagem ao “Anjo de quatro patas” que cruzara sua vida.
E o coração parou e quase que o dela também. Aquela menina sentiu
sua dor mais autêntica. Rasgou o peito com uma força hercúlea, esbravejou,
questionou o Criador por precisar levá-lo. Inundou o corpo e a alma com suas
lágrimas e se entregou à dor.
Hoje, quando anda pela casa, ainda desvia dos locais em que ficavam
os brinquedos, os ossinhos, os pratinhos de comida, mesmo que não estão
mais lá, nem nunca mais estarão. Vê um igual a ele de coleira na rua e,
estarrecida, não resiste à tentação de acarinhá-lo, como se, de certa forma,
tentasse encontrá-lo, em vão, em outro ser.
De vez em quando encontra um pelo escondido atrás de um cômodo, ou
aguça sua memória com sensações táteis e pega na caixinha escondida no
fundo do armário alguns dos rastros que ficaram pela casa. Insuportável
incredulidade de encarar o eterno vazio.