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45 ARTIGO ARTICLE A dimensão cuidadora do trabalho de equipe em saúde e sua contribuição para a odontologia The health team work care dimension and its contribution for dentistry 1 Programa de Graduação em Odontologia, Faculdade de Odontologia, Universidade Salgado de Oliveira. Rua Marechal Deodoro 21, Centro, 24030-060, Niterói RJ. [email protected] Michelle Cecille Bandeira Teixeira 1 Abstract This article presents a qualitative study, which analyzes the health work process of a multiprofessional team under the care perspective and its contribution to the daily dentist’s activi- ties. The participative observation technique was used with registration in field diary, besides inter- views and record of patients. The data interpreta- tion was carried on the approach named “produc- tion of sense in the everyday life”. The analysis shows a logical way of the teamwork towards care, filling up the dentist’s development on the link with the patient and responsibility, influencing aspects of dentistry practices. Key words Multiprofessional team, Dentist, Humanization Resumo Este artigo apresenta um estudo quali- tativo que analisa o processo de trabalho em saú- de de uma equipe multiprofissional na perspecti- va do cuidado e sua contribuição ao cotidiano do trabalho odontológico. Utilizou-se a técnica de observação participante, com registros em diário de campo, além de entrevistas e análise de pron- tuários. A abordagem adotada para a interpreta- ção dos dados foi “produção de sentidos no coti- diano”. A análise revela uma lógica de trabalho da equipe direcionada para o cuidado, impreg- nando o desempenho do dentista na produção de vínculo e responsabilização, de modo a influen- ciar os aspectos da prática odontológica. Palavras-chave Equipe multiprofissional, Ci- rurgião-dentista, Humanização

A Dimensão Cuidadora Do Trabalho Em Saúde e Sua Contribuição

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A dimensão cuidadora do trabalho de equipe em saúde e sua contribuição para a odontologia

The health team work care dimension and its contribution for dentistry

1 Programa de Graduaçãoem Odontologia,Faculdade de Odontologia,Universidade Salgado de Oliveira.Rua Marechal Deodoro 21,Centro, 24030-060,Niterói [email protected]

Michelle Cecille Bandeira Teixeira 1

Abstract This article presents a qualitativestudy, which analyzes the health work process of amultiprofessional team under the care perspectiveand its contribution to the daily dentist’s activi-ties. The participative observation technique wasused with registration in field diary, besides inter-views and record of patients. The data interpreta-tion was carried on the approach named “produc-tion of sense in the everyday life”. The analysisshows a logical way of the teamwork towards care,filling up the dentist’s development on the linkwith the patient and responsibility, influencingaspects of dentistry practices.Key words Multiprofessional team, Dentist,Humanization

Resumo Este artigo apresenta um estudo quali-tativo que analisa o processo de trabalho em saú-de de uma equipe multiprofissional na perspecti-va do cuidado e sua contribuição ao cotidiano dotrabalho odontológico. Utilizou-se a técnica deobservação participante, com registros em diáriode campo, além de entrevistas e análise de pron-tuários. A abordagem adotada para a interpreta-ção dos dados foi “produção de sentidos no coti-diano”. A análise revela uma lógica de trabalhoda equipe direcionada para o cuidado, impreg-nando o desempenho do dentista na produção devínculo e responsabilização, de modo a influen-ciar os aspectos da prática odontológica.Palavras-chave Equipe multiprofissional, Ci-rurgião-dentista, Humanização

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Introdução

No percurso do SUS, são muitos os avanços etambém os desafios a enfrentar para garantir odireito à saúde. O acesso do usuário aos bens desaúde e a responsabilização dos profissionaispor sua clientela permanecem com graves lacu-nas. A esse quadro acrescentam-se uma desva-lorização dos trabalhadores de saúde, poucaparticipação na gestão dos serviços e frágil vín-culo com os usuários. Chama a atenção o des-preparo dos profissionais para lidar com a di-mensão subjetiva inerente à prática de saúde.Em correlação a isto, configura-se a existênciade modelos de gestão centralizados e verticais,desapropriando o trabalhador de seu próprioprocesso de trabalho (Brasil1).

Para assegurar o cumprimento do objetivofundamental de cada organização – produzirsaúde, educar e, ao mesmo tempo, estimular ostrabalhadores a ampliar sua capacidade de re-flexão, co-gestão e, conseqüentemente, de reali-zação profissional e pessoal –, Campos2 propõea busca de um modelo tecnoassistencial com-prometido e vinculado com os usuários, queatue em equipes multiprofissionais, operandoconhecimentos multidisciplinares.

Werneck & Ferreira3 destacam a necessida-de de reformulações no processo de trabalhoem saúde bucal, o que ainda representa um de-safio para a profissão odontológica. Assim, sus-tentam que, para as transformações ocorreremde forma harmônica e sistemática com os inte-resses dos usuários e dos serviços, faz-se neces-sária uma adequada conformação das tecnolo-gias dura, leve-dura e leve. De acordo comMerhy & Onocko4, a tecnologia leve compreen-de as relações do tipo de produção de vínculo,autonomização e acolhimento. Já a leve-dura secaracteriza pelos saberes bem estruturados queoperam no processo de trabalho em saúde. E atecnologia dura refere-se não somente aos equi-pamentos tecnológicos, tais como máquinas,mas também a normas e estruturas organiza-cionais. Portanto, Werneck & Ferreira3 enfati-zam que, para haver uma mudança efetiva, aodontologia precisa integrar-se com outrasáreas do desenvolvimento humano.

É nesse sentido que se justifica o estudo emquestão, que tem como objetivo analisar a di-mensão do cuidado em uma equipe multipro-fissional e sua contribuição para o processo detrabalho odontológico.

Escolhas metodológicas

Este estudo é parte de uma pesquisa realizadaem uma maternidade pública do município doRio de Janeiro, no período de março a novem-bro de 2002, em um serviço de atenção interdis-ciplinar aos recém-nascidos com risco de de-senvolvimento. A equipe multiprofissional des-se serviço é composta de três pediatras, umanutricionista, uma enfermeira, duas auxiliaresde enfermagem, três terapeutas ocupacionais,três fonoaudiólogas e uma cirurgiã-dentista.

Ao imergir em uma investigação que buscainterpretar percepções de trabalhadores emsaúde sobre suas ações no campo do seu pro-cesso de trabalho, este estudo inscreve-se na li-nha de pesquisa qualitativa que, de acordo comMinayo5, implica levar em conta os sujeitos en-volvidos no estudo, sua condição social, suascrenças, valores e significados. Considera aindaque o objeto das ciências da saúde, tal como odas ciências sociais, é complexo, contraditório,inacabado e em permanente transformação.

A técnica de observação participante foi aescolhida para a realização do trabalho de cam-po. Esta técnica permitiu captar uma variedadede situações ou fenômenos que não poderiamter sido obtidos por meio de perguntas, umavez que, observados diretamente na própriarealidade, transmitem o que se encontra na tes-situra do real, como ressalta Minayo5. O olhardo pesquisador não exclui a sua própria práticacomo participante da equipe. Em vez disso, assuas interpretações e inferências recaem sobre opróprio processo de trabalho odontológico,transformando e sendo transformado pelas in-terfaces no interior do trabalho da equipe,quando esta é problematizada na perspectiva dainterdisciplinaridade estrutural proposta porJapiassu6, em que as trocas no interior do gru-po são recíprocas e o enriquecimento é mútuo.

É neste foco que a dimensão “cuidadora” éanalisada como uma importante interface dessaequipe, que a todo o momento influencia o co-tidiano da prática do dentista. Portanto, todasas observações expressas foram investigadas, re-conhecendo-se a subjetividade e o inter-relacio-namento entre os sujeitos como parte do fenô-meno em estudo.

Através de um diário de campo foram regis-tradas informações sobre conversas, comporta-mento interprofissional e situações ocorridas nodia-a-dia do trabalho em equipe e em reuniões.

Foram realizadas também entrevistas aber-tas gravadas em fitas cassete, com profissionais

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e mães de pacientes. Ao todo foram 13 entrevis-tas – 8 com profissionais (P1, P2, P3, P4, P5, P6,P7, P8), sendo no mínimo um de cada profis-são, e 5 com mães (M1, M2, M3, M4, M5), quetinham seus filhos acompanhados há pelo me-nos três anos. Minayo5 assinala que, em umaabordagem qualitativa, o critério de amostra-gem não é numérico. Preocupa-se menos com ageneralização e mais com o aprofundamento ea abrangência da compreensão, seja de um gru-po social, de uma organização, de uma institui-ção, de uma política ou de uma representação.

Utilizaram-se também registros de pron-tuários e do livro de atas das reuniões, que con-tinham anotações desde a primeira reunião daequipe, em outubro de 2002, até o período finaldeste estudo.

A análise dos dados foi feita durante todosos momentos da pesquisa. Para a análise daspráticas discursivas, adotou-se a abordagemteórico-metodológica de Spink7, denominada“produção de sentidos no cotidiano”. Este mé-todo privilegia as práticas discursivas e remete-se aos momentos de ressignificações, de ruptu-ras, de produção de sentidos, considerando asmaneiras pelas quais as pessoas se posicionamnas relações sociais cotidianas.

O trabalho em saúde no cotidiano da equipe

A equipe multiprofissional escolheu iniciar otrabalho atendendo cada paciente em uma mes-ma sala. A gente começou assim: uma equipeinexperiente [...] a gente fez um trabalho de uniãomesmo, atendíamos junto, na mesma sala, médi-co, terapeuta, fono... [...] todos os profissionaiscom cada criança. [...] (P8)

Essa foi uma experiência de aprendizado, naqual os profissionais tiveram a oportunidade deconhecer as potencialidades do trabalho dassuas diferentes áreas. Isto garantiu uma primei-ra forma de articulação dos saberes, para apren-der e perceber o que interessava mais em cadaárea, qual a intercessão entre as ações específi-cas e, então, promover uma interação e cons-truir um trabalho em equipe.

Nesse primeiro momento, os profissionaisbuscaram maneiras diferentes de atuação emsaúde.Havia uma autonomia garantida poruma organização horizontal do serviço, quetrouxe a possibilidade de revelar trabalhadoresda saúde com iniciativa, comprometidos com aprodução de suas ações.

Consoante com a conquista do grupo enfo-cado, Campos8 propõe reaproximar os profis-sionais do resultado de seu trabalho, por inter-médio do envolvimento de todos os participan-tes de uma equipe com o funcionamento de umprograma dentro da sua instituição. Desta for-ma, o profissional ganha estímulo e responsabi-lidade pelo objeto final de sua intervenção.

Ao participarem na formulação de progra-mas nos quais estão inseridos, os trabalhadoresda saúde deixam de ser meros operadores deações verticalmente estabelecidas. A vantagemmaior disso é a possibilidade de os profissionaisdiagnosticarem e discutirem problemas que se-riam indetectáveis por uma visão externa. Mui-tas questões que surgem no cotidiano do traba-lho não aparecem nas estatísticas, mas são per-cebidas e problematizadas pelos próprios pro-fissionais que estão atuando.

[depois] a gente optou por atender separadoporque ficava uma bagunça na consulta, um fa-lava, o outro falava […]É interessante, só que asorientações dadas pra mãe eram dadas junto, fi-cava muita coisa de uma vez só. (P2)

Trabalhar todos juntos na mesma sala podeser perfeito para a interação da equipe, mas criaobstáculos na interação com o paciente, de-monstrando que a maior dificuldade dessa for-ma de trabalho ocorria provavelmente na di-mensão da relação profissional/paciente. En-quanto o profissional precisa estabelecer umarelação de diálogo e proximidade, o pacienteprecisa se sentir à vontade e tranqüilo para bus-car cumplicidade e confiança no profissional.

É nesse sentido que Merhy et al.4 usam a ex-pressão “trabalho vivo em ato” [grifo nosso],que é quando ocorre o encontro com o usuáriofinal, momento em que se revelam alguns com-ponentes vitais da tecnologia leve no trabalhoem saúde.

[...] por isso uma integração que eles [pacien-tes] têm com os profissionais. Eu acho que têmuma boa interação. [...] Porque eles sabem quevão chegar lá dentro e vão ser bem atendidos.Não vai ser aquele profissional que está à distân-cia. É um profissional que escuta. Eu acho que omais importante é aquele profissional que escuta,não escuta só a queixa, escuta o geral do paciente.[...] quando você tem interação com as pessoas,você consegue compreendê-las e deixá-las à von-tade. [...] Porque se a gente respeitar os pacientes,automaticamente eles vão nos respeitar. Então, atroca de valores é muito importante. (P5)

Toda a prática em saúde está permeada poruma dimensão “cuidadora”, que visa produzir

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processos de falas e escutas, relações intercessorascom o mundo subjetivo do usuário – como eleconstrói suas necessidades de saúde –, relações deacolhimento e vínculo, posicionamento ético, ar-ticulação de saberes para compor projetos tera-pêuticos, etc. (Merhy9).

A dimensão “cuidadora” dessa equipe é cons-tante no seu cotidiano, e a formação do vínculocom os pacientes é uma manifestação presentedisso. O vínculo entre trabalhador (ou equipeou instituição) e usuário é interpretado ou ex-presso de diferentes formas, tanto pelo traba-lhador quanto pelo usuário em saúde.

O atendimento pelo mesmo profissional éum fator que alimenta o vínculo, pois o pacien-te vai ao encontro de um profissional que ele jáconhece. Se você tiver um bom tempo dentro domesmo setor, ela [mãe] vai acabar se acostuman-do com você, até mesmo se abrindo mais. (P3)Esta constância é importante por produzir noprofissional a responsabilização pelo cuidadodo seu paciente. Entretanto, a criação do víncu-lo depende ainda mais da forma como o profis-sional conduz o encontro, como enfoca a rela-ção com o paciente.

Eu acho que o vínculo a gente faz, a gente quedá [...] faz o paciente ter vínculo com a gente. É oprofissional que faz isso. À medida que você dáapoio para aquela família, você está lá pra aten-dê-lo [o paciente] com respeito. Você ouve o queele fala. Então você faz com que o paciente tenhavínculo. (P2)

A base está no olhar de responsabilizaçãodo profissional pelo cuidado do usuário, o queexige mais que um interrogatório de anamnesecentrado no procedimento. Exige um diálogoque produz momentos de fala e escuta, em queo paciente passa a se sentir confiante e reconhe-ce aquele profissional como uma referência decuidado. Tal conduta ainda é pouco perceptívelna prática odontológica. Destacamos o estudode Aquino et al.10: ao avaliar a prática do diálo-go entre o paciente e o profissional de odonto-logia em formação, esse trabalho concluiu queela é pouco valorizada, restringindo-se princi-palmente a dados anamnésicos.

Tal constatação torna-se ainda mais rele-vante na medida em que Moraes & Ongaro11

afirmam que o resultado de um processo terapêu-tico é decididamente influenciado pela qualidadeda interação profissional-paciente, mesmo quan-do se dispõe de diagnóstico e prescrição de trata-mento competente, confirmando que o trabalhoem saúde torna-se vazio quando isento de suasdimensões social e humana.

É enfatizada a importância de se estabele-cer um vínculo com a criança. Recebê-la comcarinho e com respeito – Trata todo mundoigual, né, porque às vezes é difícil de encontrarum lugar que trata todo mundo igual (M4) – éessencial para a relação com a família destacriança. […] o vínculo da gente com a criançatambém é importante. O carinho que a gente tempelas crianças é importante. Porque a mãe vê is-so. (P4)

A interação da equipe, criando mecanismosde acolhimento, é uma possibilidade de buscara melhor forma de não deixar o paciente se sen-tir “um estranho no ninho”:

Existe um vínculo afetivo. Eles gostam da gen-te, a gente procura ser sempre o mesmo profissio-nal a atender [...] mesmo que seja outro profis-sional atendendo, a coisa é feita de tal forma quea pessoa não se sinta um “estranho no ninho”[…]. (P1)

O profissional de saúde compromissadocom o usuário passa a ter um olhar para alémdo corpo que está à sua frente, palpável, visívelou diagnosticável através do estetoscópio, doexame clínico. O olhar deve se dirigir para aprodução de cuidado daquele sujeito. Portanto,o profissional que tece o ato de cuidar no seucotidiano está sempre ampliando suas ações.

Hoje eu atendi uma mãe que estava com duasbolas de pus na garganta. Numa “situação co-mum”, o que teria acontecido? Primeiro, ela nãoiria nem ter abertura de dizer o que estava sen-tindo. Pra começar, ela não ia nem ser besta defalar dela na consulta do filho. Então ela sentou efalou do filho e tal. Aí eu comentei: “Você está umpouquinho rouca.” Ela falou: “É, eu estou comuma dor de garganta!” [...] e quando acabei aconsulta do filho eu disse: “Agora deixa eu exami-nar essa garganta.” (P1)

Essa “situação comum” refere-se ao que, emgeral, acontece em um serviço de saúde que nãoopera em um foco de discussão que privilegiaessa dimensão “cuidadora”, a ponto de influen-ciar todo o planejamento do serviço. Quandohá uma sinalização para isso, não existe umaênfase na criação de mecanismos para colocaresse foco de discussão na prática do cotidianodo trabalho.

Segundo Merhy9, quando não ocorre a di-mensão do cuidado nos serviços de saúde, osusuários reclamam da falta de interesse e de res-ponsabilização dos diferentes serviços em tornode si e do seu problema. Os usuários sentem-seinseguros, desinformados, desamparados e des-respeitados.

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Deslandes12, ao ressaltar a humanização emoposição à violência, enfatiza a “violência sim-bólica”, que se apresenta como a “dor de não tera compreensão de suas demandas e suas expec-tativas”, o “não reconhecimento das necessida-des emocionais e culturais dos usuários”.

Bom. Ótimo [o serviço]. Tem médico que agente vai, nem fala, não olha nem pra cara dagente, não olha nem pra criança direito. Eu sinto[diferente]. [Aqui] parece que eu estou em casa.(M5)

A confiança que o paciente tem no profis-sional e no serviço gera uma satisfação e umaresposta melhor daquele paciente diante dasorientações profissionais, pois ele passa a parti-cipar da consulta. Isto pode ser um mecanismopara enfrentar o desafio da educação em saúdebucal, uma vez que, como destacam Valença13 ePauleto et al.14, ela é pouco desenvolvida e,quando realizada, está fortemente apoiada empráticas de transmissão de conhecimento, semespaço para as práticas dialógicas.

Em uma relação profissional/paciente ver-tical, autoritária e impessoal, não há espaço pa-ra uma educação problematizadora, segundo aconcepção de Paulo Freire15. Por outro lado,uma relação que privilegia o respeito, a escuta ea responsabilização facilita essa concepçãotransformadora da realidade, como propostopor Valença13, sendo instrumento de um pro-cesso de crescimento e tomada de consciência.

Segundo Biato16, o aprendizado dos ensina-mentos do dentista depende da qualidade dacomunicação com o paciente. Deve-se buscaruma escuta atenta e a percepção constante doque o paciente expressa, estabelecendo-se umaconversa de “mão dupla”, em que cada um de-sempenha sua função social.

De acordo com Moraes & Ongaro11, no en-contro entre o profissional de saúde e o pacienteprevalece, geralmente, a representação de papéissociais estereotipados, no qual o profissionalexibe pouca ou nenhuma emoção, procurandomanter a neutralidade em sua postura profissio-nal. Já o paciente desempenha um papel passivoe colaborador em relação às intervenções e reco-mendações do profissional. Entretanto, trata-sede um pensamento reducionista caracterizar arelação que produz cuidado em saúde comouma mera representação desses papéis sociais.Não há dúvida que mesmo um procedimentotécnico pode ser fortemente afetado pela quali-dade da relação paciente/profissional.

A equipe percebe que os pacientes se sentemvalorizados, confiam e têm uma boa relação

com os profissionais. Eu acho maravilha, eu gos-to muito desse hospital aqui. Se eu tivesse um ou-tro filho, eu gostaria de ter aqui, porque eu fuimuito bem atendida. (M3)

Através do contato direto com as famílias,P5 se preocupa intuitivamente com o aspectopsicossocial e valoriza a história dos pacientes.[...] Eu acho que tem que ficar muito atento aopsicológico, a esse estresse todo. Quem tem res-ponsabilidade com o trabalho.

Para P5, o profissional de saúde da equipeque tem responsabilidade com o trabalho éaquele que valoriza a necessidade de ficar aten-to ao emocional do paciente. Tal conscientiza-ção faz parte do campo de competência e respon-sabilidade em que se inserem todos os profissio-nais da equipe, enquanto que a especificidadede cada área profissional é o núcleo de compe-tência e responsabilidade.

Os profissionais da equipe relatam sentirfalta de um especialista para tratar do aspectoemocional dos pacientes. [...] psicólogo, com cer-teza, psicólogo só pro ambulatório, inclusive sen-do encaminhados para psicólogo normalmente,porque todos precisam. (P7)

Talvez isso seja, até certo ponto, uma formade minimizar a capacidade que eles têm de seinserir neste campo de competência e responsabi-lidade, que inclui o esforço para lidar de umaforma favorável com o psicossocial do usuário.

Nesse contexto, Caprara & Rodrigues17 en-

fatizam que o médico não é estimulado a pen-sar o paciente como um ser psicossocial, em es-pecial no que se refere a algumas dificuldades,tais como a limitação em lidar com a dinâmicafamiliar (e suas relações) e com os medos e an-siedades acerca da doença e seus sintomas.Além do suporte técnico-diagnóstico, os médi-cos necessitam de sensibilidade para conhecer arealidade do paciente, ouvir suas queixas e en-contrar, junto com ele, estratégias que facilitemo enfrentamento da doença.

A prática de trabalho de P1, por exemplo,estabelece uma relação usuário/profissional es-tendida para o aspecto psicossocial do paciente;e, a partir desta concepção, ela percebe que exis-tem determinados casos de maior complexida-de, que necessitam uma atenção especializada.Eu sinto falta de psicólogo, porque nós temoscrianças muito problemáticas e a gente acaba nãoconseguindo dar esse suporte de uma forma ade-quada [...]. (P1)

Trazendo essa discussão para a saúde bucal,destaca-se um estudo de Drumond18, que bus-cou aprofundar a compreensão de todos os fa-

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tores relacionados ao surgimento da cárie emcrianças, para que o enfrentamento deste pro-blema não fique restrito a ações periféricas. Adimensão sociofamiliar demonstrou que a com-plexidade dos problemas de relação entre mãese filhos é um fator fundamental para a discus-são dos cuidados de saúde bucal com as crian-ças. Entretanto, o dentista não teria capacidadepara trabalhar esse problema por ter uma for-mação superficial em questões dessa natureza.

Baseando-se nas observações da prática deP5 e de outros profissionais da equipe, bem co-mo nas transformações no processo de traba-lho da dentista dessa equipe, é possível se con-trapor às conclusões de Drumond18 com al-guns questionamentos e reflexões. Até queponto o dentista não tem capacidade para agir,de alguma forma, em relação a esses proble-mas? A dimensão do cuidado que envolve to-dos os profissionais de saúde deve trazer umareflexão sobre como o dentista, enquanto tal,pode agir diante desse quadro. Não seria atra-vés da busca constante do vínculo, do acolhi-mento, da escuta? Não se pretende que o den-tista vire psicólogo ou assistente social, até por-que estas áreas têm seus próprios núcleos decompetência. Entretanto, todos esses profissio-nais de saúde compartilham o mesmo campode responsabilidades, que abrange o territóriodas tecnologias leves. Somente imbuído dessadimensão “viva” do trabalho em saúde é que odentista irá, de fato, conseguir efetivar uma tro-ca verdadeiramente interdisciplinar com os ou-tros profissionais de saúde (cada qual em seunúcleo específico), para que juntos possam tra-balhar as verdadeiras causas dos problemas, enão apenas os seus efeitos.

Moraes & Ongaro11 relatam que após umperíodo de ênfase no desenvolvimento tecnoló-gico da odontologia e de uma busca pelo conhe-cimento biológico para a promoção da saúdebucal, surge um terceiro momento da educaçãoodontológica, denominado fase psicossocial. Es-ta pressupõe que os profissionais da odontologia

precisam ser tecnicamente capazes, biologica-mente orientados e psicologicamente sensíveispara, desse modo, analisar os fatores psicosso-ciais presentes na relação profissional-paciente.

Considerações finais

O modo de trabalho do cirurgião-dentista rara-mente tem se inserido em práticas partilhadascom profissionais de outras áreas, revelandouma escassa familiaridade com o trabalho emequipe. Assim, suas ações ainda permanecemisoladas. Além do mais, são perceptíveis os in-dícios dessa prática isolada em contextos comoo da estrutura dos serviços de saúde – que re-força a divisão do trabalho através de especiali-dades estanques que pouco interagem – ou nasinstituições de ensino e formação do CD, queainda priorizam o tecnicismo e o biologismo,em detrimento de qualquer possibilidade de in-tegração das disciplinas.

É no trabalho em equipe que existe a possi-bilidade da troca e do projeto em comum dasdiversas áreas profissionais envolvidas. A espe-cificidade da odontologia é muito importante enecessária, desde que inserida em um campocomum às várias profissões. Este é o acordo quepossibilita o trabalho em equipe em um dadocontexto e cotidiano, desde que o dentista nãoreproduza uma prática isolada, mas passe aatuar em uma perspectiva interdisciplinar, quepressupõe um fator de transformação e de mu-dança social, como proposto por Fazenda19.

Desse modo, existe a possibilidade de in-serção nesse campo, no qual entra a produçãode vínculo, escuta, acolhimento e responsabili-zação. Com isso, o trabalho em equipe passa aser uma forma de multiplicar essa lógica docuidado nas diferentes áreas profissionais, re-constituindo e alimentando cotidianamente oolhar que cada profissional tem sobre sua prá-tica, o que vale inclusive para as práticas desaúde bucal.

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Artigo apresentado em 13/05/2005Aprovado em 30/08/2005Versão final apresentada em 17/11/2005

Agradecimento

À professora doutora Eliana Miriam Serfaty Gabbay, daUniversidade Federal Fluminense, que orientou a minhadissertação de mestrado, parte da qual originou este arti-go. Ao professor doutor Marcos Senna, da UniversidadeSalgado de Oliveira, pela revisão e sugestões.

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