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A dinâmica do sagrado

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A dinâmica do sagrado

32 A dinâmicA do sAgrAdo

A dinâmica do sagrado Rituais, sociabilidade e santidade num convento do Rio de Janeiro

renAtA de cAstro menezes

Rio de Janeiro2004

Núcleo de Antropologiada Política

NuA PQuinta da Boa Vista s/nº – São Cristóvão – Rio de Janeiro – RJ – CEP 20940-040Tel.: (21) 2568 9642 Fax: (21) 2254 6695 – E-mail: [email protected]

Publicação realizada com recursos doPRONEX/CNPq; Ministério da Ciência e Tecnologia; Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico; Programa de Apoio a Núcleos de Excelência

A coleção Antropologia da Política é coordenada por Moacir G. S. Palmeira, Mariza G. S. Peirano, César Barreira e José Sergio Leite Lopes e apresenta as seguintes publicações:1 - A HONRA DA POLÍTICA – Decoro parlamentar e cassação de mandato no Congresso Nacional (1949-1994), de Carla Teixeira2 - CHUVA DE PAPÉIS – Ritos e símbolos de campanhas eleitorais no Brasil, de Irlys Barreira3 - CRIMES POR ENCOMENDA – Violência e pistolagem no cenário brasileiro, de César Barreira4 - EM NOME DAS “BASES” – Política, favor e dependência pessoal, de Marcos Otávio Bezerra5 - FAZENDO A LUTA – Sociabilidade, falas e rituais na construção de organizações camponesas, de John Cunha Comerford6 - CARISMA, SOCIEDADE E POLÍTICA – Novas linguagens do religioso e do político, de Julia Miranda7 - ALGUMA ANTROPOLOGIA, de Marcio Goldman8 - ELEIÇÕES E REPRESENTAÇÃO NO RIO DE JANEIRO, de Karina Kuschnir9 - A MARCHA NACIONAL DOS SEM-TERRA – Um estudo sobre a fabricação do social, de Christine de Alencar Chaves10 - MULHERES QUE MATAM – Universo imaginário do crime no feminino, de Rosemary de Oliveira Almeida11 - EM NOME DE QUEM? – Recursos sociais no recrutamento de elites políticas, de Odaci Luiz Coradini12 - O DITO E O FEITO – Ensaios de antropologia dos rituais, de Mariza Peirano13 - NO BICO DA CEGONHA – Histórias de adoção e da adoção internacional no Brasil, de Domingos Abreu14 - DIREITO LEGAL E INSULTO MORAL – Dilemas da cidadania no Brasil, Quebec e EUA, de Luís R. Cardoso de Oliveira15 - OS FILHOS DO ESTADO – Auto-imagem e disciplina na formação dos oficiais da Polícia Militar do Ceará, de Leonardo Damasceno de Sá16 - OLIVEIRA VIANNA – De Saquarema à Alameda São Boaventura, 41 - Niterói. O autor, os livros, a obra, de Luiz de Castro Faria17 - INTRIGAS E QUESTÕES – Vingança de família e tramas sociais no sertão de Pernambuco, de Ana Claudia Marques18 - GESTAR E GERIR – Estudos para uma antropologia da administração pública no Brasil, de Antonio Carlos de Souza Lima19 - FESTAS DA POLÍTICA – Uma etnografia da modernidade no sertão (Buritis/MG), de Christine de Alencar Chaves20 - ECOS DA VIOLêNCIA – Narrativas e relação de poder no Nordeste canavieiro, de Geovani Jacó de Freitas21 - TEMPO DE BRASÍLIA – Etnografando lugares-eventos da política, de Antonádia Borges22 - COMO UMA FAMÍLIA – Sociabilidade, territórios de parentesco e sindicalismo rural, de John Cunha Comer-ford23 - O CLUBE DAS NAÇÕES – A missão do Brasil na ONU e o mundo da diplomacia parlamentar, de Paulo de Góes Filho24 - POLÍTICA NO BRASIL – Visões de antropólogos, de Moacir Palmeira e César Barreira25 - AS (DIFUSAS) FRONTEIRAS ENTRE A POLÍTICA E O MERCADO – Um estudo antropológico sobre marketing político, seus agentes, práticas e representações, de Gabriela Scotto26 - ESPAÇOS E TEMPOS DA POLÍTICA, de Carla Costa Teixeira e Christine de Alencar Chaves27 - A POBREZA NO PARAÍSO TROPICAL – Interpretações e discursos sobre o Brasil, de Marcia Anita Sprandel28 - O POVO EM ARMAS – Violência e política no sertão de Pernambuco, de Jorge Mattar Villela29 - A AMBIENTALIZAÇÃO DOS CONFLITOS SOCIAIS – Participação e controle público da poluição industrial, de José Sergio Leite Lopes30 - QUESTÃO DE SEGURANÇA – Políticas governamentais e práticas policiais, de César Barreira31 - A DINâMICA DO SAGRADO – Rituais, sociabilidade e santidade num convento do Rio de Janeiro, de Renata de Castro Menezes

54 A dinâmicA do sAgrAdo© Copyright 2004, Renata de Castro Menezes

Direitos cedidos para esta edição àDumará DistribuiDora De Publicações ltDa.

Rua Nova Jerusalém, 345 – BonsucessoCEP 21042-235 – Rio de Janeiro, RJ

Tel. (21)2564-6869 (PABX) – Fax (21)2560-1183E-mail: [email protected]

RevisãoArgemiro de Figueiredo

EditoraçãoDilmo Milheiros

CapaSimone Villas-Boas

Apoio

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Menezes, Renata de CastroA dinâmica do sagrado : rituais, sociabilidade e santidade num conven-

to do Rio de Janeiro / Renata de Castro Menezes. – Rio de Janeiro : Relume Dumará : Núcleo de Antropologia da Política/UFRJ, 2004

. – (Coleção Antropologia da política ; 31)

AnexoInclui bibliografiaISBN 85-7316-381-X

1. Antônio de Pádua, Santo, 1195-1231 – Culto. 2. Convento de Santo Antônio (Rio de Janeiro, RJ) 3. O Sagrado. I. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Núcleo de Antropologia da Política. II. Título. III. Série.

CDD 306.6CDU 316.7:264.931

Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui

violação da Lei nº 5.988.

M513d

04-3028

A Sérgio, Marina e Thomaz, que ajudaram a carregar papéis, malas, “pianos” e

tensões durante toda a elaboração deste livro.

A Dionysia e Delyra, que primeiro me falaram dos santos.

76 A dinâmicA do sAgrAdosumário

aPresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

introDução

Do santuário ideal ao caso concreto, a construção do objeto . . . . . . . . . . . . . . 15

Parte I – o Processo De Pesquisa

caPítulo 1Características gerais da pesquisa e do trabalho de campo . . . . . . . . . . . . . . . 35

Parte II – rituais e formas De sociabiliDaDe

caPítulo 2O Convento de Santo Antônio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

caPítulo 3Etnografia das celebrações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83

caPítulo 4As pessoas do convento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

caPítulo 5Formas de articulação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127

Parte III – revisitanDo a relação santo-Devoto

caPítulo 6Santo Antônio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147

caPítulo 7Santo Antônio no Convento do Rio de Janeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167

98 A dinâmicA do sAgrAdoApresentAção

Este livro é uma versão modificada da tese de doutorado que defendi no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2004. Tanto o livro como a tese foram baseados em uma pesquisa mais ampla sobre o cotidiano e as formas de socia-bilidade em um santuário católico, focalizada no Convento de Santo Antônio, na cidade do Rio de Janeiro.

A pesquisa, que se estendeu pelos anos 2000 a 2003, compreendeu um traba-lho de campo realizado no primeiro semestre de 2001, no qual foram feitas visitas sistemáticas ao convento, a fim de entrar em contato com os freqüentadores e participar com eles das celebrações e demais atividades desenvolvidas. Foi em torno das notas e do material coletado nessas visitas que se construiu o trabalho.

O convento está situado no Largo da Carioca, no centro do Rio, entre a Rua da Carioca e a Avenida República do Chile. Trata-se de uma casa de religiosos mascu-linos, pertencente à Ordem dos Frades Menores Franciscanos, datada do início do século XVII, cuja igreja, também dedicada a Santo Antônio, é aberta diariamente ao atendimento do público. Uma vez por semana, às terças-feiras, a presença dos visitantes aumenta, e cerca de cinco mil pessoas aí comparecem, principalmente para tomar a bênção de Santo Antônio.

A perspectiva adotada foi a de estudar o convento a partir da interação entre os diferentes agentes que nele se cruzam. Assumir a interação como foco implicou o desafio de analisar o convento não pela ótica dos sacerdotes que nele moram e trabalham, ou dos fiéis que o visitam regularmente, há muitos anos, nem dos pas-santes que nele entram por curiosidade, mas sim a partir do encontro entre todos eles, nas situações concretas em que se articulam, tentando ainda depreender os princípios presentes nessas situações.

Do acúmulo de reflexões ao longo da pesquisa, foi possível inferir conjuntos de relações de grande importância no local – entre os próprios agentes, e destes com os santos. Essas relações articulam-se a partir de dois tipos de movimento. De um lado, a relação com os santos, com os frades, com o convento – isto é, as

caPítulo 8Outros santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191

caPítulo 9A relação com os santos no convento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207

caPítulo 10A relação de devoção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 233

conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251 bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 257

anexo Fotos e imagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277

1110 A dinâmicA do sAgrAdo

socialmente classificadas de “religiosas” servem de suporte para a construção e a ativação de relações entre as pessoas. São, portanto, capazes de estimular a instauração de formas de sociabilidade, que às vezes se prolongam para fora do convento. Mas também, num sentido inverso e complementar, as relações entre as pessoas – de parentesco, de vizinhança, de amizade, de trabalho – levam à busca dos santos, dos frades, do convento e de seus serviços. Suas vidas são trazidas ao local, os problemas, aflições e alegrias são partilhados através de pedidos, agrade-cimentos, confissões, conversas informais. Há, assim, uma “dinâmica do sagrado e em torno do sagrado” em operação neste lugar, uma dinâmica que liga pessoas, coisas e santos, a qual o trabalho procurou recuperar.

O esforço analítico seria, entretanto, inviável, sem a colaboração daqueles aos quais é preciso agradecer. A pesquisa contou com recursos da Capes, do CNPq e da Finep. Houve ainda o suporte de instalações e equipamentos do Núcleo de An-tropologia da Política (NuAP), financiado com recursos do Programa de Apoio aos Núcleos de Excelência (Pronex), do Ministério de Ciência e Tecnologia. Cabe ao NuAP e a seus membros mais um agradecimento, pela viabilização desta publicação.

O trabalho beneficiou-se também das discussões com a banca examinadora da tese, que foi composta pelos professores Mariza Peirano (Unb), Regina Novaes (IFCS/UFRJ), Otávio Velho (PPGAS/MN/UFRJ), José Sérgio Leite Lopes (PPGAS/MN/UFRJ) e Moacir Palmeira (PPGAS/MN/UFRJ, orientador). Agradeço-lhes pela leitura atenta e pelas interpretações instigantes, com os votos de que os debates se multipliquem no futuro.

Moacir Palmeira ofereceu-me o privilégio de sua interlocução durante um longo percurso, mesmo antes do mestrado. Os momentos de partilha sobre o fazer antropológico que estabelecemos em várias oportunidades foram fundamentais em minha formação. Algumas “ousadias” nesta pesquisa só se tornaram possíveis graças ao seu apoio constante e à liberdade de pensamento que ele sempre me estimulou a desenvolver.

Certas idéias importantes no trabalho começaram a ser formuladas em um curso a repeito do “Ensaio sobre a Dádiva”, ministrado pela professora Lygia Sigaud, no PPGAS. Também as professoras Beatriz Heredia (IFCS/UFRJ) e Leo-nilde Medeiros (CPDA/UFRRJ), além de Regina Novaes em diversos momentos, forneceram-me sugestões preciosas no encaminhamento da pesquisa. Já a colega Rosângela Cintrão ajudou a encontrar soluções para problemas de tabulação de dados, com sua habitual competência e dedicação.

No Museu Nacional, pude desfrutar da companhia dos colegas Gabriela Scotto e John Comerford, cujas relações remontam aos tempos do mestrado, de Elisa Guaraná, Virgínia Vecchioli, Wilma Leitão, Sônia Acioly, Gustavo Pacheco, Eloísa Martin, Flávia Pires. Emerson Giumbelli forneceu informações importantes para viabilizar o estágio na França. Vários funcionários do PPGAS prestaram-me seu

auxílio, como Tânia Ferreira, chefe da secretaria; Isabel Moreira, Cristina Coimbra e Carla Freitas, biliotecárias, e ainda Diva Azevedo de Faria e Emília Wien, do NuAP.

Parte considerável da estrutura do trabalho foi organizada durante o período de “doutorado-sanduíche” na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Agradeço a acolhida do Centre d’Etudes Interdisciplinaires des Faits Reli-gieux (CEIFR), na figura de sua diretora e minha orientadora na França, Danièle Hervieu-Léger. Na mesma escola, gostaria de agradecer também aos professores Marion Aubrée e Afrânio Garcia, do Centre de Recherches sur le Brésil Contem-porain (CRBC), pela hospitalidade intelectual, expressa nas várias oportunidades abertas à discussão de meus trabalhos. A estadia na EHESS possibilitou ampliar as referências bibliográficas e os horizontes do trabalho.

Os (e as) colegas do ISER/ASSESSORIA apoiaram-me de inúmeras formas. Com carinho, agradeço a Clodovis Boff, Faustino Teixeira, Francisco Orofino, Ivo Lesbaupin, Lúcia Ribeiro de Souza, Névio Fiorin, Paulo Fernando C. de Andrade, Solange Rodrigues, Verônica Melander, Janete Ribeiro da Mota, Miriam Epifânio e Aline Ferreira. De forma mais específica, agradeço a Névio pela elaboração e tabulação do questionário e pela escuta dos problemas cotidianos da pequisa; a Solange, pela leitura minuciosa e solícita de certos capítulos; a Verônica e Janete, pela maneira discreta e constante de oferecerem seu apoio; a Faustino, pelas várias injeções de ânimo ministradas por sua confiança em meu trabalho; e a Orofino, que foi uma espécie de oráculo, tirando dúvidas e fornecendo pistas em várias encruzilhadas.

Os colegas da Rede Conesul – Oikosnet América Latina também se multipli-caram para me liberar das tarefas de coordenação durante o doutorado. Agradeço a Amalia Ballerio, Germán Zijlstra, Raúl Rosales e Cristina Vila a “parceria” que efetivamente temos desenvolvido nos últimos anos.

Pude contar ainda com a colaboração do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, na seleção de pessoal para aplicação de um questionário. Agradeço ao departamento através das professoras Sarah da Silva Telles e Sônia Giacomini, e também aos alunos que participaram da pesquisa: Claudia Diamantino Pinheiro de Castro, Mariana Pereira Lima Couto Rosa, Afranio de Oliveira Silva, Christian de Souza Dantas.

Alcina Quintela trabalhou como assistente da pesquisa, com a difícil missão de manter os vínculos com o campo durante minha estadia na França. Sua dedicação ao trabalho e ao tema, entretanto, ultrapassou em muito qualquer expectativa contratual.

O Instituto Nacional de Pastoral da CNBB forneceu-me material sobre o tema dos santuários, e a este órgão agradeço. No Convento de Santo Antônio, contei com a solidariedade de fr. José Ulisses. Agradeço ainda a Marcos, Jaírson, Djalmo, Paulo, Alex, Miguel pelas demonstrações concretas de fraternidade. A companhia agradável de Marisa Rodrigues foi uma constante nas terças-feiras de

ApresentAção

1312 A dinâmicA do sAgrAdo

campo. Aos demais “informantes” (interlocutores?), que as regras de pesquisa me levam a manter anônimos, o agradecimento na certeza de que sem sua generosa contribuição o trabalho não existiria.

A Hermelinda Leitão de Almeida, Maria Elizabethe Rodrigues Freire e Maria Cristina Batalha, agradeço o zelo profissional. E a Josmar Braga, uma primeira revisão desse trabalho.

Há pessoas difíceis de enquadrar em uma categoria determinada, pois se fize-ram presentes em muitos momentos, tornando-se essenciais ao cederem o ouvido, o colo, o estímulo e os conselhos, das mais diversas formas – Sérgio, Érica, Ivanete, Guto, Lili, Lígia, Gabi, Ana Carla, Lúcia Maria, Luciano, André, Susi, Marina, Thomaz. Já a experiência parisiense foi facilitada sobremaneira pelo carinho de Bénédicte, Olivier, Javier, Alejandra, Étienne, Susana, Marcos e Vilma.

Por fim, agradeço à família Leite a cumplicidade e a paciência, que acabaram por dar à tese um certo caráter de aventura coletiva. Certamente os mais prejudi-cados pela aridez do trabalho de pesquisa, eles mantiveram entretanto a disposição de fornecer o apoio necessário nos (vários!) momentos críticos, e a eles dedico minha maior gratidão e afeição.

Siglas

Celam – Conferência Episcopal Latino-AmericanaCeris – Centro de Estatística Religiosa e Investigações SociaisCNBB – Conferência Nacional dos Bispos do BrasilCRB – Conferência dos Religiosos do BrasilINP – Instituto Nacional de PastoralOFM – Ordem dos Frades MenoresVOT – Venerável Ordem Terceira da Penitência

Algumas indicações sobre a composição do texto podem facilitar sua leitura: Os nomes de pessoas foram susbtituídos por nomes fictícios, salvo o de uma

informante, que me pediu para manter seu nome real. A identidade do local da pesquisa, entretanto, pelas implicações que tem na análise, foi mantida.

As palavras entre aspas indicam citações que foram extraídas ou da fala de outras pessoas, ou de textos escritos. Também com aspas são colocados meus comentários de caráter mais metafórico. As palavras em itálico no corpo do texto são palavras em língua estrangeira, ou título de livros. Aquelas em itálico e negrito são categorias significativas ao universo pesquisado.

Nas transcrições de entrevistas, aquilo que aparece dentro de colchetes são observações minhas, feitas seja para completar idéias deixadas subentendidas pelos

entrevistados, seja para introduzir referências explícitas anteriormente.

ApresentAção

1514 A dinâmicA do sAgrAdointrodução

Do santuário ideal ao caso concreto, a construção

do objeto

Um locus interessante

O dia 13 de junho é marcado no calendário católico pela festa de Santo Antônio de Pádua. Neste dia, no Brasil, quermesses, procissões, missas e bênçãos são realiza-das em arraiais e igrejas de todo o país, em homenagem ao santo. No convento de Santo Antônio do Largo da Carioca, no Rio de Janeiro, a festa para comemorar o padroeiro também é celebrada anualmente e congrega um volume considerável de pessoas. Embora as referências não coincidam, as diversas fontes assinalam que entre 50 mil a 180 mil freqüentadores devem passar pela igreja neste dia.1

Nesta igreja conventual, pertencente à Ordem dos Frades Menores Francis-canos (OFM), um esquema especial, característico das festas de santo, é montado para atender os visitantes. O espaço é reordenado para comportar a massa humana, um destacamento de policiais se faz presente, convites são distribuídos, frades e padres vindo de outras casas e paróquias são chamados a colaborar, os horários de atendimento são ampliados. Para a acolhida, montam-se barraquinhas de comi-das, bebidas e jogos; a música, as orações e os avisos brotam constantemente dos alto-falantes; há fogos, venda de lembranças, rifas, doações de pão bento etc. A movimentação intensa é registrada nos meios de comunicação, pois jornais, rádios e TVs dão cobertura à festa do santo casamenteiro.

Interessada no estudo do catolicismo, minha primeira visita ao convento de Santo Antônio se deu em 13 de junho de 2000. Naquela ocasião, a festa do santo impressionou-me tanto pelas recorrências que apresentava com a Festa da Penha, o “caso” que estudara anteriormente em meu mestrado (Menezes, 1996),2 como pelos elementos que permitiam justamente distinguí-la desse caso.3 Chamou-me a atenção particularmente a heterogeneidade da composição do público. Este in-cluía velhinhas com seus terços e medalhas, famílias inteiras, mães com crianças de colo, casais de namorados, até – diferentemente da Penha, que se configurava como uma festa “suburbana” de finais de semana – gente que, saindo dos locais de trabalho, vinha à igreja saudar o santo, muitas vezes aproveitando o horário de

1716 A dinâmicA do sAgrAdo

almoço, ou um curto intervalo, para voltar em seguida ao escritório – homens de terno e gravata, mulheres em tailleurs. Achei curioso também o fato de tudo isso acontecer em um espaço – “a cidade”, como os cariocas nos referimos ao centro do Rio de Janeiro – que é quase automaticamente associado a escritórios, bancos, comércio em geral, mas jamais a uma festa de santo.

Entretanto, o que mais me interessou foi descobrir que nesse mesmo convento Santo Antônio era cultuado em todas as terças-feiras do ano, dia da semana a ele associado. Embora o culto não aconteça apenas nesse templo, mas em diversas igrejas em que o santo é o padroeiro, ou mesmo em outras que possuem sua ima-gem, no convento a freqüência atinge um número expressivo de cerca de cinco mil pessoas, que a ele comparecem para receber a benção do santo. Essa movimentação passa despercebida tanto do noticiário, quanto daqueles que não estejam de alguma forma relacionados ao convento e/ou ao culto de Santo Antônio, pois a circulação frenética no Largo da Carioca, onde desemboca a mais concorrida estação de metrô do Rio de Janeiro e onde se cruzam pessoas provenientes ou destinadas às mais diversas regiões da cidade, permite que o fluxo aconteça sem ser registrado.

Tendo em mente a intenção de estudar no doutorado o cotidiano e as formas de sociabilidade em um santuário católico, buscava acompanhar uma devoção em seus “períodos de normalidade”, e não no período de exuberância e exterioridade que é uma festa. Meu interesse não estava mais, como esteve no mestrado, na possibili-dade de explorar o grande momento de abertura, o apogeu de um calendário ritual que é uma “festa de santo”, uma “festa popular” na qual entram em jogo o poder de convocação e agregação do santo padroeiro e dos organizadores dos festejos, bem como as redes de apoio externas ao espaço ritual acionadas para sustentar a celebração. Nesta pesquisa, tratava-se de privilegiar a permanência: os grupos que se articulam em torno de um culto, ou de um espaço ritual, as redes de apoio internas que garantem a continuidade de seu funcionamento ao longo de todo o ano.

A proposta inicial era a de tomar um santuário católico como um locus de ob-servação para a análise de relações sociais em cruzamento num espaço socialmente classificado e reconhecido como “religioso”, isto é, destinado ao desenvolvimento de rituais religiosos (católicos).

O interesse que me levou a buscar um santuário católico para a realização da pesquisa era basicamente estratégico. Ele dizia respeito ao fato de que nesse “tipo” de edifício religioso, que seria considerado um canal eficaz de contato com o sagrado por seus freqüentadores, haveria um certo adensamento de práticas devocionais que buscava analisar mais detidamente, tais como pagamento de promessas, culto aos santos, bênçãos, peregrinações ou romarias.

A partir das informações que trazia da pesquisa anterior, e das leituras que fiz ou refiz para a atual (Turner & Turner, 1978; Eade & Sallnow, 1991; Steil, 1996; Fernandes, 1982; Stirrat, 1992), considerei, numa espécie de definição

preliminar, que um santuário católico seria um lugar especial de devoção para os membros dessa religião, ao qual se atribui um acesso privilegiado ao sagrado, seja por sua relação com um episódio da história dessa religião; seja por sua localização geográfica, reinterpretada religiosamente; seja pela ação de um ou vários santos no local (por nele terem vivido, ou nele terem aparecido, ou por nele repousarem seus restos mortais, ou porque aí está sua imagem milagrosa). Por ser considerado especial, esse local torna-se foco de atração de “peregrinos” que vêm de longe visitá-lo, num movimento que assume alguma regularidade. Portanto, há um processo social de atribuição de sacralidade e excepcionalidade a determinados locais, que leva os membros de uma religião a tratá-los como santuários – espaços de acesso privilegiado ao sagrado – e a eles peregrinarem.4

Assim, tratava-se de realizar um estudo em um santuário, na medida em que este fosse um espaço ritual estratégico para observar e acompanhar determinadas práticas religiosas em operação. O acompanhamento e a participação em suas ce-lebrações e em outras formas de interação menos formalizadas permitiriam uma aproximação da religião como “vivida concretamente” por pessoas e grupos, na articulação dialética entre crenças e práticas. Permitiriam também compreender e registrar a amplitude das relações sociais subsumidas na rubrica de “religiosas”.

A adoção deste viés para a pesquisa implicava assumir que a proposta de “observar o cotidiano de um espaço ritual” não continha em si nenhuma contradi-ção de fundo, mesmo sabendo que em muitas definições de ritual ele se constrói justamente por uma oposição a esse cotidiano (ver, por exemplo, Da Matta, 1977; Asad, 1993). Como nos lembra Claude Rivière, muitos pesquisadores já ressaltaram a importância do rito na vida cotidiana, tais como Goffman, ao falar de “interações”, ou Certeau, ao tratar das “artes de fazer” (Rivière, 1996: 229). Mas na pesquisa, a proposta seria a de inverter essa formulação e de tentar observar como, em um espaço considerado como destinado a rituais católicos extra-ordinários, por oposição à regularidade da paróquia, é capaz de se configurar uma certa cotidianidade, de serem engendradas formas de sociabilidade.

A observação e análise do dia-a-dia de um espaço ritual permitiriam recuperar o sistema de relações que sustentaria esse espaço, ou que nele se articularia, bem como perceber a manifestação de hierarquias sociais. Esse viés de análise justificar--se-ia porque, de novo citando Rivière (1996: 231), a observação da cotidianidade permite perceber a expressão de conflitos, tensões, estratégias e manipulações, bem como de modelos culturais que orientam comportamentos dos membros de um grupo. Tratar-se-ia enfim de recompor uma certa “gramática” de relações sociais em operação no convento.

Assim, minha atenção foi atraída para o convento de Santo Antônio por al-gumas características suas, que pareciam favorecer sua escolha. Primeiro, ele era um lugar que concentrava um volume considerável de gente, que a ele comparecia

introdução

1918 A dinâmicA do sAgrAdo

com uma certa regularidade. Segundo, tratava-se de uma devoção que envolvia uma freqüência hebdoma-

dária, por oposição a outras formas de culto restritas a visitas anuais ao templo do santo, ou a uma ou outra romaria eventual a uma região longínqua. Essa periodicidade mais estreita, além de singularizar o fenômeno, permitiria um acompanhamento em maior detalhe das práticas de culto, viabilizando um campo mais prolongado.

Terceiro, pelo fato de ser um fenômeno devocional inserido em uma região metropolitana, por oposição às análises existentes na literatura antropológica de devoções em pequenas comunidades, santuários rurais ou cidades-santuários. Se uma das características que Turner (1985: 192 e segs.) atribuiu aos santuários, ou centros de peregrinação, é a “periferalidade” (peripherality), isto é, sua localização fora dos principais centros administrativos de Igrejas ou Estados (id.: 195), essa característica parecia ser posta em questão pelo fato de encontrarmos um santuário no centro financeiro e comercial do Rio de Janeiro.5

Quarto, pela relativa invisibilidade do fenômeno. Embora ele atraia semanal-mente centenas de pessoas, esse deslocamento jamais havia sido objeto de uma análise sistemática e detalhada pela literatura especializada.

Havia ainda uma certa proximidade com o ramo franciscano responsável pelo convento, pelo fato de dar palestras em seu seminário de Petrópolis, na disciplina de Sociologia da Religião. Mas mesmo apostando que a proximidade poderia ajudar o trabalho, não tenho clareza até agora em que medida isso realmente aconteceu, isto é, se os contatos com Petrópolis contaram a meu favor ou contra mim, já que, como descobri durante a pesquisa, as casas franciscanas têm relativa autonomia entre si, e as facções dentro da ordem são muitas, fazendo com que os acessos que são facilitados por uns sejam propositalmente fechados por outros. E embora não houvesse nenhum interesse maior por Santo Antônio de Pádua, até então uma in-cógnita para mim, havia uma simpatia difusa pela Ordem Franciscana, bem como pelo franciscanismo, por ambos terem como referência fundamental a figura de S. Francisco de Assis, um santo da Igreja Católica cuja biografia sempre me pareceu interessante.

Gradualmente, meu interesse voltou-se para as terças-feiras do convento, as práticas e grupos que lá poderia encontrar e cuja convivência embasaria uma etno-grafia do cotidiano e das formas de sociabilidade em um espaço ritual. Entretanto, dizer “gradualmente” significa assumir que certas escolhas fundamentais para a elaboração da tese, tanto quanto ao tema dos santuários, como pelo convento de Santo Antônio como o lugar de realização do campo, se deram de forma relativa-mente tardia dentro do curso de doutorado.

Meu projeto inicial de tese versava sobre “religião e formas de sociabilidade em assentamentos rurais”, pois havia a possibilidade de integrar dois grupos de pesquisa sobre os assentamentos, de caráter interdisciplinar e interinstitucional,

o que viabilizaria tanto o financiamento de um campo mais longo fora do Rio de Janeiro, como a inserção do trabalho num amplo esforço coletivo de levantamento de dados e de discussão teórica. Mas, já no fim do primeiro ano de doutorado, essas possibilidades não se concretizaram e decidi redefinir o projeto de tese, a fim de atender minha preocupação principal, que era a de realizar um trabalho de campo com as condições necessárias para exercitar o “olhar antropológico” (no sentido em que Cardoso de Oliveira, 2000, aplica ao termo). Embora o interesse pelo tema “religião e formas de sociabilidade” estivesse posto desde sempre, a redefinição implicou um processo um tanto custoso e lento de opções pessoais, e a retomada solitária de algumas questões teóricas que havia começado a abordar no mestrado. Assim, as formas de sociabilidade em um santuário católico e o convento, como o locus da pesquisa, foram sendo escolhidos pouco a pouco, o que pode ter con-tribuído para determinar certas configurações do trabalho (retomo essa discussão no capítulo 1 a seguir).

Faltava, entretanto, esclarecer em que medida o Convento de Santo Antônio, que não é oficialmente um santuário católico, poderia ser considerado como um deles. No Código de Direito Canônico em vigor, “santuário” aparece assim definido, implicando as seguintes características e formas de controle:

Cân. 1230 – Sob a denominação de santuário, entende-se a igreja ou outro lugar sagrado, aonde os fiéis em grande número, por algum motivo especial de piedade, fazem peregrinações com a aprovação do Ordinário local.Cân. 1231 – Para que um santuário possa dizer-se nacional, deve ter a apro-vação da Conferência dos Bispos; para que possa dizer-se internacional, requer-se a aprovação da Santa Sé.Cân. 1232 – § 1. Para aprovar os estatutos de um santuário diocesano, é competente o Ordinário local; para os estatutos de um santuário nacional, a Conferência dos Bispos, para os estatutos de um santuário internacional, so-mente a Santa Sé. § 2. Nos estatutos, devem ser determinados principalmente a finalidade, a autoridade do reitor, o domínio e a administração dos bens.Cân. 1223 – Poderão ser concedidos determinados privilégios aos santuários, sempre que as circunstâncias locais, o afluxo de peregrinos e principalmente o bem dos fiéis parecem aconselhá-los Cân. 1234 – § 1. Nos santuários, ofereçam-se aos fiéis meios de salvação mais abundantes, anunciando com diligência a palavra de Deus, incentivando adequadamente a vida litúrgica, principalmente com a Eucaristia e a cele-bração da penitência, e cultivando as formas aprovadas de piedade popular. § 2. Os documentos votivos da arte popular e da piedade sejam conservados em lugar visível nos santuários ou em locais adjacentes, e sejam guardados com segurança (CNBB, 1983: 535).

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Ora, o convento, embora recebendo “fiéis em grande número”, presentes “por uma piedade especial” a Santo Antônio, e garantindo a “oferta de meios de salvação abundantes”, pela grande quantidade de missas, homilias e bênçãos programadas, não possuía um título oficial de santuário concedido pelo Ordinário local (no caso, o cardeal da Arquidiocese do Rio de Janeiro).

Porém, durante o campo, na fala dos frades, o tratamento do convento como “santuário” apareceu algumas vezes. Por exemplo, na festa do santo, o seu funcio-namento foi-me explicado pelos frades estudantes de Petrópolis que encontrei no local: “O Santo Antônio é só santuário, não faz casamento nem batizados, não é paróquia”. Em uma missa celebrada pelo guardião da casa, ele se referiu ao local e ao grupo de pessoas nele reunidas como “a fraternidade do santuário do convento de Santo Antônio”. Na página da internet da Província Franciscana da Imaculada Conceição, a qual pertence o convento, ele aparece como um dos santuários.

A ambigüidade classificatória do convento apareceu com mais clareza em uma entrevista que fiz com fr. Marcílio, apontado por muitos freqüentadores como o reitor (o responsável) da Igreja do convento:

Trata-se de um convento com características de santuário, pois devoção popular como essa no Rio de Janeiro hoje não há, talvez só S. Sebastião, e mesmo assim só no dia da festa dele. Vem gente de todo o Rio, é uma confluência de muitos pontos geográficos. Não se forma uma comunidade homogênea, mas bem heterogênea, vinda não pela disciplina, mas pela alegria de chegar. As pessoas não vêm por obrigação. Então um santuário deve ser um lugar menos ordeiro, mais festivo, marcado pela preocupação de acolher as demandas do povo (...).Não estamos querendo competir com paróquias. A previsão da reza do terço, das horas santas e vias sacras foi para criar chances de rezar em comunidade e fazer coisas que as paróquias não fazem (entrevista, 16/8/2000, durante pesquisa exploratória para escolha do lugar da pesquisa).

Durante o levantamento bibliográfico, consultando a literatura sobre Santo Antônio, encontro de novo o mesmo tema em um livro escrito por um ex-frade do convento:

Há manifestações próprias de todos os santuários e outras manifestações próprias da vida de comunidade eclesial, como a paróquia.São próprios da vida cristã na paróquia os sacramentos da iniciação cristã: o Batismo, a Crisma, a Primeira Eucaristia; a vida eucarística normal, a Pe-nitência comunitária, a Unção dos enfermos, a celebração do Matrimônio, a promoção da caridade, a participação nas diversas pastorais.Constituem expressões próprias de todos os santuários a experiência da

Igreja peregrina, da Igreja Universal, que ultrapassa o âmbito da paróquia ou mesmo da diocese. (...).Tomemos como exemplo a igreja do Convento de Santo Antônio do Largo da Carioca, no Rio de Janeiro. Ela não é oficializada como santuário. De fato o é. (...). A igreja de Santo Antônio não é paróquia, mas a ela acorrem fiéis de todas as paróquias da cidade do Rio de Janeiro, de toda a arquidiocese e de outras cidades da Baixada Fluminense. Os devotos de Santo Antônio são incentivados a participarem ativamente da vida e da ação pastoral de suas comunidades paroquiais.Realmente aos poucos está-se verificando uma integração entre a pastoral orgânica das Igrejas particulares, posta em prática pelas paróquias, e a Pas-toral dos Santuários. Uma não exclui a outra. Deve haver, sim, uma mútua fecundação. A Pastoral paroquial, respeitando e incentivando o fenômeno religioso das peregrinações e dos Santuários e a Pastoral dos santuários, sempre a serviço das comunidades eclesiais. (Beckhäuser, 1995: 121-124).

Portanto, mesmo sem um título oficial, o convento parecia ser compreendido e configurado por seus próprios frades como um santuário. Apesar da existência de uma norma canônica, a Igreja Católica, em outras circunstâncias bastante rigorosa, é capaz de lidar com uma relativa flexibilidade quanto à identificação de um santuário.

A mistura de santuários com e sem título oficial surgiu ainda em entrevistas realizadas com padres em posição de destaque na Arquidiocese do Rio de Janeiro, nas quais o tema eram os santuários, e onde eles falaram indistintamente de san-tuários com e sem título oficial.6

Ou seja, a titulação oficial, que obviamente deve ser operativa em algum ní-vel da hierarquia da Igreja, pois há santuários preocupados em oficializar-se, não era no universo pesquisado o que definia um santuário. Na verdade, o que pude perceber na pesquisa, ao analisar material teológico e pastoral sobre santuários e sobre pastoral dos santuários, é que a definição canônica foi estabelecida pelo atual papado, ao promulgar o Código de Direito Canônico em vigor desde os anos 1980. Trata-se de uma tentativa de “afunilar”, ou melhor, de circunscrever um conjunto fluido e indeterminado, concentrando nas mãos da hierarquia religiosa o poder de discriminar os elementos que devem fazer parte desse conjunto. Isto é, de trans-formar em um conceito preciso, ou em um objeto de legislação um termo de uso mais amplo pelo senso comum religioso. Mas essa normatização não parece estar efetivamente operando, isso é, o sentido amplo ainda funciona.7

Assim, ao tratarem o convento como um santuário, os frades estão usando não a titulação como seu critério definidor, e sim outros elementos. Se voltarmos aos trechos extraídos da entrevista de fr. Marcílio, ou do livro de fr. Beckhäuser, vemos que aquilo que aparece como caraterístico de um santuário é o tipo de público que ele recebe – no caso do convento, gente de diversos pontos da cidade e mesmo do

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2322 A dinâmicA do sAgrAdo

Estado do Rio de Janeiro, vinda por uma “devoção popular” ao santo. Por outro lado, esse público demanda um tipo de atendimento específico, diferente do pa-roquial, e a acolhida dos visitantes torna-se a lógica subjacente à programação, configurada nos moldes de uma “pastoral dos santuários”. O Convento de Santo Antônio seria um santuário por ter uma determinada vocação para isso, que com-binaria sua localização no centro do Rio (que o torna um lugar favorável a receber “peregrinos”, isto é, pessoas de passagem que vêm visitá-lo), ao poder de atração de seu padroeiro, considerado um santo poderoso.

Por outro lado, do ponto de vista dos freqüentadores, a questão da titulação ou não do convento como um santuário é totalmente irrelevante. Na verdade, o próprio termo “santuário” não parece ser significativo, pois a forma de tratamento para o prédio é o Convento, ou o Santo Antônio. Porém, se o termo estava ausente da fala das pessoas em campo, todas pareciam compartilhar da idéia de uma certa excepcionalidade do prédio, de que ele se trata de um lugar importante de devoção, de que ele ofereceria um acesso privilegiado ao sagrado, ou ainda que ele mesmo seria sagrado. Nele, Santo Antônio se manifestaria de forma privilegiada, como se fosse sua casa, aonde as pessoas iriam “visitá-lo” (a expressão “visita” apareceu várias vezes na pesquisa para definir o comparecimento ao local). Muitos ainda afirmavam combinar a freqüência ao convento à ida à “sua igreja”, que, no caso, significava a paróquia perto de casa.

Nesse sentido, se o convento não se enquadra totalmente na definição canô-nica de santuário, nem possui um título oficial enquanto tal, ele é completamente compatível com a definição preliminar que estabeleci no início deste capítulo, um lugar socialmente qualificado como sagrado, ou oferecendo acesso ao sagrado, um lugar especial de devoção.

Preocupações teóricas

Entretanto, a pesquisa que deu origem à tese não foi construída apenas como uma tentativa de conciliar determinados interesses e simpatias pessoais a perspec-tivas metodológicas. Houve a preocupação em buscar desnaturalizar determinado senso comum das ciências sociais sobre o catolicismo no Brasil e também um es-forço para estabelecer um diálogo, ou ao menos para seguir os estímulos oferecidos pelos trabalhos de outros pesquisadores e grupos de pesquisa.

Nas interpretações consolidadas pelas Ciências Sociais a respeito do catoli-cismo no país, fenômenos como as festas de santo, as bênçãos, as promessas, as rezas, as novenas, as romarias, bem como as representações que os acompanham e dão sentido, têm sido tratados como constitutivos de um “catolicismo popular tradicional” característico da sociedade e da cultura brasileiras. Parafraseando Roberto da Matta, poderíamos dizer que a interpretação consolidada seria a de

que o catolicismo tradicional seria uma das coisas que faz o brasil, Brasil.8 Por vezes também chamado de “catolicismo tradicional luso-brasileiro”, ele seria visto como uma das heranças da colonização portuguesa, tendo sido gestado ainda no período colonial.

Este tipo de catolicismo teria sido subtraído à Reforma Católica estabelecida pelo Concílio de Trento no século XVII (Burke, 1989), graças à especificidade histórica do regime de padroado, que regulava as relações entre o Estado e a Igreja em Portugal e suas colônias e que garantia ao monarca a autonomia na gestão do aparelho religioso. Além do padroado, o catolicismo tradicional no Brasil seria caracterizado pela forte presença dos leigos na condução da religião – até mesmo pela insuficiência de quadros clericais que atendessem às necessidades do país –, por seu peso na vida familiar e social e pela manutenção de uma certa capacidade de incorporação sincrética.9 Portanto, este seria um catolicismo de “pouco padre e muito santo, pouca missa e muita reza”, de caráter lúdico e festivo, que man-teria um certo padrão “carnavalesco” nas celebrações, sem excluir, entretanto, as dimensões da dor e da paixão.10

O catolicismo popular tradicional, ou luso-brasileiro, teria passado, notada-mente a partir do século XIX, por uma série de transformações, provocadas tanto por mudanças internas à própria Igreja Católica, como por mudanças mais amplas na sociedade brasileira.

As transformações provocadas por mudanças na instituição religiosa, isto é, na Igreja, estão vinculadas basicamente a dois macroprocessos ocorridos em seu interior nos séculos XIX-XX. O primeiro seria aquele que Oliveira (1985) chamou de “romanização”, isto é, um processo de centralização em torno de Roma. Este processo ganhou fôlego a partir de meados do século XIX, graças à restauração da Igreja Católica na Europa, após o período napoleônico.

No Brasil, a romanização assumiu maior firmeza com a proclamação da Re-pública, que, ao separar Igreja e Estado e garantir àquela o direito de organizar-se da forma que considerasse mais adequada, lhe permitiu seguir de perto as diretri-zes romanas. Oliveira (1985) assinala que a romanização, com a clericalização e a centralização, foi um processo que expropriou leigos das associações cultuais, como as irmandades e confrarias; que transferiu o controle dos centros tradicionais de devoção e romaria a ordens religiosas européias recém-chegadas ao país, que procurou substituir o culto a santos de tradicional apelo popular por devoções mais recentes, de caráter mais clerical (Oliveira, 1976, 1985; Fernandes, 1982: 51-55). Azzi (1977) analisa ainda o papel do episcopado nessa transformação, condenan-do e proibindo práticas do catolicismo popular tradicional como “superstições”, “atraso”, “ignorância” ou “indecência”.

O segundo processo de transformação se daria a partir dos anos 1960, com o conjunto de reformas propostas pelo Concílio Vaticano II e pela renovação pastoral

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2524 A dinâmicA do sAgrAdo

e litúrgica defendida tanto pelo Concílio como, mais tarde, pelos teólogos e mili-tantes da Igreja Popular, que pretendiam promover as práticas de um catolicismo de caráter “libertador” (Lesbaupin, 1996; Fernandes, 1984: 10; Hoornaert, 1976). Sob essa perspectiva, o catolicismo popular tradicional, justamente por estar tão imbricado nas ancestrais estruturas de dominação da sociedade brasileira, deveria ser “renovado”, tendo suas práticas expurgadas de conteúdos opressores, alienantes ou supersticiosos.

Há ainda as transformações, ao nível da sociedade brasileira, provocadas pelo processo histórico de “modernização”, ligado à “industrialização”, à “urbanização” e à “migração”, que se aceleram a partir dos anos 1950-60. A série de mudanças provocadas pela modernização teria produzido uma espécie de mutação radical, tanto na organização da sociedade como na cultura nacional, causando a ruptura de formas tradicionais de sociabilidade e uma individualização crescente. Este pro-cesso teria ainda afetado diretamente o campo religioso, levando à sua pluralização e à gradual perda de hegemonia do catolicismo como “religião dos brasileiros”.

Assim, esse conjunto de transformações teria posto em segundo plano, ou, em interpretações mais radicais, colocado em extinção, formas tradicionais de devoção popular. Entretanto, as transformações não as teriam extirpado totalmente, perma-necendo ainda “núcleos” ou “bolsões de resistência” junto às classes populares, que preservariam as práticas consideradas “tradicionais”.

As interpretações sobre o catolicismo popular tradicional foram relativizadas por uma série de autores, tanto quanto ao alcance do termo “popular”, como quanto ao caráter “tradicional” de determinadas práticas (Alves, 1978; Fernandes, 1982, 1984; Montero, 1999; Brandão, 1980, 1981). Fernandes (1984), por exemplo, ao analisar a bibliografia referente às “religiões populares” até os anos 1980, procurou assinalar a imprecisão do termo popular, que por sua polifonia é capaz de encobrir sentidos diversos e não coincidentes. Ele demonstrou como nos estudos de religião pelas ciências sociais, “popular” aparece com ao menos três sentidos: pode significar “a maioria da população”, por oposição à minoria; ou algo “pertencente a extratos inferiores da população”, por oposição a práticas da elite; ou ainda “extra-oficial”, no sentido de estar fora do controle ou da regulamentação da autoridade instituída, por oposição a uma religião “oficial”. E ao analisar a maneira como se dão as práti-cas religiosas concretas, este autor lembra a dificuldade de encontrar um conjunto religioso que se encaixe de fato em apenas um dos dois pólos dessas oposições. Reificar esses antagonismos implica, portanto, deixar de lado as relações que se estabelecem entre os termos que se confrontam, tratando como isolados grupos que, na verdade, estão em contato constante (Fernandes, 1984: 5-6).11

Sanchis (1994), por outro lado, questionou a associação automática, isto é, uma certa “co-naturalidade” entre cultura brasileira e catolicismo no passado, chamando a atenção para o caráter ideológico dessa formulação, ligada a um projeto político

de construção de uma identidade nacional. Essa idéia de nação, de nacionalismo, na qual o catolicismo seria um dos pilares principais, em determinado momento da história do país interessou tanto ao Estado como à Igreja. E lembra esse autor: “a hegemonia católica tendeu sempre a se exercer por meio de certo desconhecimento da situação real” (Sanchis, 1994: 148).12

Já Montero (1999) chamará a atenção para o caráter “nostálgico” de determi-nadas análises sobre o catolicismo popular. Utilizando os estudos de Carlos Rodri-gues Brandão como exemplo (embora assinalando sua importância fundamental no panorama acadêmico nacional), Montero ressalta, numa observação que pode ser estendida a outros autores:

Mesmo quando sublinha enfaticamente a atualidade e vitalidade dessas festas, em contraposição aos que as tratam como sobrevivência da tradição (...), o sistema cultural que ele [Brandão] acabar por retratar é o de uma sociedade que, na transição para a vida urbana, apenas se degrada: quando o folião migra da roça para a periferia da cidade, alguma coisa se perde.Não há como negar (...) a “nostalgia camponesa” que assombra esse tipo de estudo antropológico sobre o catolicismo popular. A Folia, a promessa, a procissão e a dança são parte de um tempo e um “espaço social camponês” (Montero, 1999: 336).

A constatação da vitalidade de festas de santo, romarias, procissões etc. e também o surgimento de novos cultos (aparições da Virgem, benção, grupos de oração etc.) têm demonstrado que não se tratam apenas de fenômenos residuais, mas talvez de um jogo de continuidade e mudanças entre formas, conteúdos e significados de práticas cultuais, os quais podem se combinar de maneira diferente a cada caso (Frade, 1987; Menezes, 2002; Steil, 1995, 1996). Assim, pode haver uma continuidade com formas tradicionais de catolicismo, mas com significados diferentes sendo incorporados a práticas já consagradas, as quais estariam assumindo novos papéis na vida contemporânea. O contrário também pode acontecer: novas práticas cultuais, com novos conteúdos discursivos podem, ser apropriadas a partir de padrões de significado antigos (Steil, 1996). E, enfim, coisas originais podem estar sendo geradas.

Portanto, a pesquisa que deu origem à tese teve como proposta inicial revi-sitar algumas práticas religiosas tidas como constitutivas do catolicismo popular tradicional, a fim de desnaturalizá-las. Assim, há uma tentativa de retomar um tema clássico e formulá-lo em novos termos: por que o culto aos santos adquire importância no centro de uma metrópole, no século XXI? Que tipo de pessoas essas práticas são capazes de agregar? Quais as relações sociais que se tecem em torno delas? Há formas de sociabilidade que se estabelecem? Quais?

Por outro lado, a pesquisa visava a responder aos estímulos lançados por

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2726 A dinâmicA do sAgrAdo

determinados estudiosos, que assinalaram a necessidade de intensificar os estudos etnográficos sobre as religiões no Brasil, como forma de “dar conta” das transforma-ções atuais. Identifica-se hoje no campo religioso brasileiro a ocorrência de vários processos de reconfiguração, notadamente a pluralização, a desinstitucionalização, a perda acelerada de hegemonia por parte do catolicismo e o crescimento massivo de igrejas pentecostais. Como sintetizou Novaes (2001), assim resume-se a questão das religiões dos brasileiros na atualidade:13

No novo milênio são poucos os que se declaram totalmente ateus. Cresce o número dos que dizem ter fé, mas rejeitam ligações com instituições reli-giosas. São “religiosos sem religião”: buscam símbolos e crenças em vários espaços e tradições espirituais para tecer suas “sínteses religiosas pessoais”. Em tempos de “nova era” também aumenta o interesse pelos fenômenos de mediunidade e da possessão. Isto faz crescer o número de espíritas e de adeptos das religiões afro-brasileiras. (...) A maior diversificação das alter-nativas religiosas também faz aumentar o número dos que hoje deixam de se dizer católicos e, publicamente, se declaram apenas espíritas kardecistas, umbandistas e do candomblé.Mas, se é verdade que diminui o número dos que se declaram católicos só por uma questão social ou só porque foram batizados na Igreja Católica, pode se dizer também que aumenta a participação religiosa de segmentos “católicos praticantes” [tanto através das Cebs como do Movimento Carismático].O crescimento numérico dos pentecostais, por outro lado, é o fenômeno mais evidente (Novaes, 2001: 41-42).

Porém, diante desse conjunto amplo e acelerado de transformações, muitas vezes os analistas só conseguem perceber as linhas-mestras dos processos, sem atentar para as contradições e dialéticas mais sutis. Tentando mapear a diversidade das posições analíticas, Sanchis (2001) identifica poucas concordâncias entre os pesquisadores. E diante da diversidade de interpretações, marcadas por divergências e impasses teóricos e apontando para as necessidades de revisão de paradigmas e modelos explicativos, o autor sugere: “Todos nós lemos e/ou escrevemos a favor e/ou contra cada uma das posições. Quem sabe não tenhamos tentado o suficiente fazê-las dialogar a propósito de resultados empíricos” (id.: 34). Portanto, a mul-tiplicação de estudos de caso e a produção de dados empíricos seria um meio de tentar resolver alguns dilemas teóricos e epistemológicos.

Para produzir essas análises, seria interessante considerar também a observa-ção de Montero (1999), a respeito dos estudos sobre religião feitos pelas ciências sociais no Brasil. Segundo a autora,

Os avanços nesse campo não se realizam por uma acumulação interna da

reflexão teórica, mas se fazem a reboque dos acontecimentos: é o crescimento repentino de uma religião ou a emergência de novos cultos, como o neopen-tecostalismo nos anos 1980, que obriga a um rearranjo ou simples adaptação das ferramentas teórico-metodológicas (id.: 328-329).

Assim, no caso da pesquisa, tomei essa observação como uma sugestão para, ao invés de embarcar em um estudo sobre “os novos movimentos” que têm marcado o catolicismo brasileiro, como notadamente a Renovação Carismática Católica, voltar-me à análise de fenômenos “antigos” ou melhor, clássicos, como o culto aos santos, os santuários etc, só que em um novo contexto histórico, o contexto do pluralismo

Outra sugestão importante veio de Velho (1987), que aponta para as possibili-dades analíticas abertas ao estudo da religião e da cultura pela análise de categorias nativas. Entretanto, como ele mesmo ressalta, é preciso tomar essas categorias em seu contexto de formulação, sem substantivá-las, isto é, sem lhe atribuir um conteúdo fixo e imutável. Portanto, na pesquisa procurei dedicar especial atenção às formulações dos agentes e às suas categorias classificatórias, atentando para a gramática subjacente a esses processos de classificação. Isso implicou uma aten-ção redobrada, pois havia o risco permanente de, ao invés de tomar as categorias utilizadas por freqüentadores ou pela ortodoxia religiosa como objeto de análise, “deslizar” sobre elas e usá-las para explicar os fenômenos que pretendia estudar.

Parte das reflexões aqui desenvolvidas foram influenciadas ainda pela produção do Núcleo de Antropologia da Política (NuAP), que congrega pesquisadores da UFRJ, UnB e UFCE, e cuja sede localiza-se no Museu Nacional/UFRJ. Guardadas as devidas proporções, minha intenção era de tentar estender ao domínio da religião e aos fenômenos socialmente definidos como religiosos algumas das preocupações que esse grupo de pesquisadores tem desenvolvido em torno do domínio da política. Recuperar conceitualizações nativas sobre os fenômenos em questão; iluminar, através de etnografias, ângulos novos em problemas sociais clássicos; inventariar e analisar sentidos de noções polissêmicas; refinar determinadas categorias na-turalizadas no senso comum das ciências sociais – eis algumas das propostas de trabalho do NuAP que busquei incorporar em minha pesquisa (NuAP, 1998: 7-13).

Mas além dessas proposições, partilhei com esse grupo uma série de concep-ções acerca dos rituais e de sua importância analítica para a revelação de determina-dos aspectos da vida social. Foi a partir de uma concepção performativa (id.: 16) dos rituais, isto é, de seu tratamento como não apenas capazes de “dizer” coisas sobre a ordem social, mas também de influir nessa ordem e, num certo sentido, contribuir para construí-la e reconstruí-la, que pude assumir determinadas perspectivas na pesquisa. Assim, a idéia de que os rituais são performances que usam várias formas de comunicação, por meio das quais os participantes experimentam um evento, e

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que neles há valores que podem ser vinculados ou inferidos pelos atores durante sua realização (id: 16) permitiu-me abordar as celebrações do convento, bem como as demais atividades nele realizadas, como situações de articulação entre as pessoas, de construção de formas de sociabilidade, mas também de transmissão de valores (religiosos, culturais).

Tendo por referência então uma série de estímulos teóricos a que tentou responder, a pesquisa tomou para si a tarefa de realizar uma leitura etnográfica de algumas práticas tidas como características de formas religiosas tradicionais, num novo contexto. A descontextualização, ou melhor, recontextualização, além de contemplar uma situação relativamente menos explorada do que as anteriores, seria ainda uma forma de tentar escapar do dilema “permanência versus mudança”, que, por vezes, aprisiona os estudos sobre catolicismo no país. Assim, ao invés da comunidade rural, ou de uma cidade santuário, já abordadas várias vezes pela literatura, localizei um santuário em meio urbano, no centro de uma metrópole, a fim de realizar o acompanhamento de seu cotidiano. Para abordar esse santuá-rio, tomei a questão das formas de sociabilidade, privilegiando a interação entre os diferentes agentes que se encontram e se articulam nesse espaço socialmente qualificado de religioso e aberto ao atendimento do público, muitas vezes pessoas de passagem pelo local. Privilegiar a interação foi uma opção epistemológica para sair das polarizações entre erudito e popular, ou entre oficial e popular, ou entre clérigos e leigos, que marcou a produção dos anos 1970/1980, mas que continua, às vezes, a se reproduzir sob outras formas, transformando-se num impasse. Se, como Maués (1987) tão bem sintetizou, há uma “tensão constitutiva” do catolicismo, entre leigos e hierarquia, uma das soluções possíveis é abordar essa tensão a partir de situações concretas de encontro entre os dois pólos.

Portanto, a idéia inicial da pesquisa era a de perceber o convento, um espaço socialmente reconhecido como “um templo católico” de “relevância histórica”, enquanto um feixe de cruzamento de várias dinâmicas, de uma série de interesses, de discursos e práticas, que o configurariam. Um exemplo evidente desse entre-cruzamento de interesses viria da própria definição acima apresentada: como um “templo católico”, o convento seria marcado pela dinâmica do campo religioso, um lugar de interesse dos formuladores de “políticas [e práticas] pastorais”, de ações eclesiásticas, disputando com outros templos – católicos e não-católicos – o interesse de freqüentadores efetivos ou virtuais, o status e o prestígio decorrentes de sua legitimação como um lugar privilegiado de acesso ao sagrado. Por outro lado, como um “patrimônio histórico”, um “monumento”, ele estaria no horizonte dos formuladores de “políticas culturais” (de patrimônio, de revitalização cultural do centro da cidade etc...), em “disputa” com outros agentes, tais como outros prédios históricos, ou outros centros culturais, por recursos e prestígio oferecidos nesse campo.

Mas a presença dos “devotos” no local, isto é, dos freqüentadores do convento – de forma expressiva durante todas as terças-feiras do ano, de forma espetacular em 13 de junho na festa do santo, de uma forma “microscópica” porém constante, nos outros dias da semana –, também traria outros ritmos e interesses à configuração do local. As “razões” para a visita, os sentidos atribuídos à visita, que não neces-sariamente seriam unívocos, também conformariam o convento, imprimindo-lhe marcas deixadas pelos freqüentadores.

Alguns aspectos dessa “dinâmica do sagrado” serão considerados neste livro, ainda que, para que a análise avançasse em densidade etnográfica, tenha sido necessário “isolar” metodologicamente o convento e selecionar alguns aspectos que o perpassam para produzir uma primeira interpretação, cujo alcance, acredito, trabalhos futuros poderão ampliar.

O livro se organiza em três partes. Na primeira delas, “O processo de pesqui-sa”, composta de um capítulo, são apresentadas as concepções que nortearam os principais procedimentos adotados na pesquisa, bem como alguns dos impasses enfrentados e as tentativas de solucioná-los, questões fundamentais para a com-preensão do formato final adquirido por este trabalho.

A segunda parte, “Rituais e formas de sociabilidade”, como o próprio nome indica, contém uma interpretação das celebrações do convento e de outras ati-vidades menos formais que nele são realizadas e dos grupos que se formam ou articulam em torno delas. Para facilitar a compreensão desses temas, o capítulo 2, “O Convento de Santo Antônio”, faz uma contextualização desse edifício religioso, tanto no Rio de Janeiro, como no interior da Ordem dos Frades Menores francis-canos. Ele contém ainda uma descrição das características atuais do prédio, tais como percebidas através do trabalho de campo. Já no capítulo 3, “Etnografia das celebrações”, os principais “serviços religiosos” do convento são analisados: a benção de Santo Antônio, as missas, as homilias, as confissões, o aconselhamento, que são oferecidos ao público tanto na terça-feira como em outros dias da semana. Mas também outros serviços que o convento oferece, de caráter não propriamente religioso, são tratados ao longo do capítulo. A seguir, o capítulo 4, “As pessoas do convento”, analisa os agentes que se encontram e interagem no local, caracterizando as diferentes formas de inserção e participação. O capítulo seguinte, “Formas de articulação”, retoma em maior detalhe elementos anteriormente apresentados, a fim de entender certos princípios que regem as interações do convento.

Em seguida, inicia-se a terceira e última parte, “Revisitando a relação santo--devoto”, composta por cinco capítulos. O capítulo 6, “Santo Antônio”, contém uma síntese da tradição existente sobre esse santo, tanto internacional, como no Brasil, a qual constituiria uma espécie de fundo de representações que os devo-tos acionam em sua relação com o santo. O capítulo seguinte tenta articular essa tradição com as formas concretas de tratamento do santo encontradas na fala dos

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freqüentadores do convento. Mas, apesar de se tratar de um convento de Santo Antônio, há outros santos no local. E é disso que o capítulo 8 trata, mapeando as referências a outros santos existentes no local. Desse mapeamento, feito tanto da análise de elementos materiais como do discurso dos agentes, pode-se depreender uma prática de “combinação de devoções”, que o capítulo explica em detalhe.

Ressaltada a presença e a importância dos santos no convento, o capítulo 9 dedica-se a analisar as formas de relação com os santos, e como elas se manifes-tam e são colocadas em operação através de “pedidos” e “agradecimentos”. A diversidade de formas encontradas permite que no décimo e último capítulo, “a relação de devoção” seja definida como um tipo específico, cujas singularidades são demarcadas e explicadas. Por fim, na conclusão destacam-se os principais pontos do trabalho, retomados de forma sintética.

Notas1 Para essas cifras, foram consultados os frades do convento e o noticiário da imprensa sobre a festa.2 A organização da festa reordenando o espaço do cotidiano, o volume de visitantes, a presença portuguesa, um templo de origem colonial, a devoção aos santos.3 Uma festa concentrada num dia só, por oposição a uma festa que se estendia por mais de um mês; uma festa no centro da cidade, por oposição a uma festa celebrada na região suburbana; a festa de um santo masculino, por oposição a uma festa de Nossa Senhora; uma festa em um templo franciscano, por oposição a uma festa em uma Irmandade de leigos.4 Do ponto de vista histórico, o surgimento dos primeiros santuários cristãos da Antigüidade esteve associado a três fenômenos de excepcionalidade: primeiro, ao culto da memória de homens e mulheres considerados “santos”, isto é, cuja proximidade a Cristo santificou-os (Vauchez, 1987: 289). Também ao culto dos mártires cristãos, mortos em defesa da fé, cujas sepulturas e relíquias foram gradualmente se transformando em focos de devoção (Brown, 1982). E ainda aos antigos santuários pagãos – muitos deles associados a acidentes naturais aos quais se atribuíam signifi-cados religiosos – como montes, fontes, rochas, que foram apropriados a partir de um processo de “sincretismo”, tornando-se locais de culto católico (Rouselle, 1990; Sanchis, 1996). Mais tarde, na Idade Média, surgiram santuários associados ao culto de relíquias, isto é, aos restos mortais de santos, ou de objetos postos em contato com esses restos, o que colocava o corpo humano morto em um estatuto de objeto de luxo e de prestígio (Geary, 1990). Já na alta Idade Média e início da Modernidade, o surgimento de santuários esteve ligado às aparições de santos, notadamente da Virgem Maria, e de imagens encontradas de forma inesperada; ou a imagens consideradas milagrosas (Vauchez, 1981, 1987; Christian, 1981). Muito famosos no século XIX serão os santuários criados a partir de aparições da Virgem Maria, como os de Lourdes e o de La Sallete (França) e o de Fátima (Portugal). No século XX, inúmeras aparições da Virgem marcaram e até hoje marcam o panorama mundial (Steil, 1995). Cabe ressaltar que cada uma das novas formas de excepcionalidade associadas ao reconhecimento social de santuários relaciona-se à hegemonia de um novo “tipo de santuário” em determinado período histórico, mas não implica a desaparição dos demais. Ou seja, são formas que se sobrepõem e não que se excluem. Destaque-se

também que os santos a que nos referimos podem ser oficialmente canonizados, ou receberem uma “santificação popular”, isto é, a construção de um certo consenso social de santidade em torno de sua figura, processo que muitas vezes começa ainda em vida.5 Na verdade, creio que essa noção é posta em questão não apenas pelo caso estudado na tese, mas pelo próprio fato de o modelo por excelência de peregrinação católica ser a ida a Roma ou a Jerusalém (ver Eade & Sallnow, 1991; Dupront, 1968). 6 Foram entrevistados D. Estevão Bittencourt e o pe. Hélio Pacheco, chanceler da Cúria Me-tropolitana.7 A literatura sobre religião no Brasil lembra que os santuários “clássicos” de romaria no país, aceitos como tal pelas autoridades religiosas, como os de N. S. de Nazaré (PA); S. Francisco do Canindé (CE); Senhor do Bonfim e Bom Jesus da Lapa (BA); N. S. da Penha (ES, RJ, SP); Bom Jesus do Pirapora e N. S. Aparecida (SP), tornaram-se todos foco de atração de devotos antes de qualquer título oficial de autoridades religiosas (Câmara Cascudo, 1974; Azzi 1979: 284). Portanto, o sinal distintivo fundamental de um santuário seria a visita maciça de fiéis em torno de um santo, ou de um lugar considerado santo.8 A referência a Da Matta (1986) não é casual, pois em seu capítulo 8, “Os caminhos para Deus”, o autor considera práticas como as festas, cantorias e culto aos santos como elementos que contri-buem para firmar um modo específico pelo qual “nós, brasileiros” nos comunicamos com o além.9 Para uma discussão sobre sincretismo e matriz cultural brasileira, ver Sanchis (1994, 1996). 10 Azzi (1978, 1979); Beozzo (1977); Brandão (1980, 1981); Fernandes (1982, 1989); Hoornaert (1992); Maués (1987); Montes (1998); Oliveira (1976, 1983); Steil (2001).11“Sacerdotes de elite recebem fiéis pobres, sacerdotes pobres recebem fiéis de elite (...) festeiros pedem a contribuição ritual dos notáveis do lugar, comunidades eclesiais de base não dispensam o apoio episcopal e uma boa assessoria” (Fernandes, 1984: 7). Mais uma relativização do conceito de popular pode ser encontrada em Fernandes (1982).12 Fernandes (1988), ao analisar a constituição de Nossa Senhora Aparecida como padroeira do Brasil, também chama a atenção para esse processo de uso político do catolicismo como esteio da identidade nacional.13 Ver sobre o tema também as análises de Sanchis (1994, 1997); Pierucci (2002).

introdução

3332 A dinâmicA do sAgrAdo

Parte I

o processo de pesquisA

3534 A dinâmicA do sAgrAdocApítulo 1

Características gerais da pesquisa e do trabalho

de campo

1 – A pesquisa como um “processo”

Ao descrever na introdução o caminho percorrido para definir o foco da pesquisa, pretendi apresentar ao leitor não um episódio anedótico que servisse de desculpa às eventuais lacunas do trabalho, mas sim uma demonstração da maneira pela qual ele foi produzido. Mais do que uma pesquisa “em etapas”, linearmente desenvolvida, com hipóteses fechadas e questões determinadas a priori, este trabalho foi gerado em um processo lento, marcado por avanços e recuos, idas e vindas, ensaio e erro, impasses epistemológicos e etnográficos, frutos do esforço de pôr em relação as opções teóricas pessoais, as diversas sugestões encontradas na literatura das Ci-ências Sociais e da História e as informações provenientes do trabalho de campo.

Em um de seus textos, Bourdieu (1989) lembra que os impasses e reconfigu-rações que marcam uma pesquisa não devem ser vistos como meros entraves ao trabalho, mas como sua parte constitutiva, uma parte fundamental que contribui de maneira decisiva para o formato final por ele adquirido. Segundo este autor, é preciso, na medida do possível, lutar contra a “ficção do acabamento” (id.: 19), que leva a fantasiar o processo de pesquisa, ao ocultar as dificuldades metodológicas e epistemológicas encontradas. É preciso justamente refletir criticamente sobre essas dificuldades e tentar aprender com elas, pois superá-las é a forma por excelência de produzir resultados significativos, de avançar o trabalho científico (Bourdieu, 1989: 18-20).

Problemas podem surgir em diferentes níveis ou dimensões da pesquisa. Muitos dos obstáculos enfrentados dizem respeito àquilo que Bourdieu, Chambo-redon & Passeron (1968) chamaram de “a construção do objeto”. Se, como esses autores destacam, o fato social deve ser “conquistado contra a ilusão do saber ime-diato”, é necessário “desnaturalizá-lo” e romper com o senso comum estabelecido em torno dele, questionando as relações mais aparentes e mais familiares a partir do qual ele costuma ser enquadrado, a fim de reconstruí-lo como um objeto científico, relacionado a uma “problemática”. É preciso, portanto, construir uma perspectiva

3736 A dinâmicA do sAgrAdo

de abordagem que transforme um objeto muitas vezes socialmente periférico – no caso, um convento tido como um santuário católico – em um objeto de relevância científica, que permita articular teoricamente um conjunto significativo de questões. Assim, parte do empenho dedicado a uma pesquisa diz respeito às tarefas de cons-trução do objeto (id.: 51-80), e justamente por isso aí podem surgir dificuldades.

Por outro lado, autores como Geertz (1989), Cardoso de Oliveira (2000) e Pei-rano (1995), ao chamarem a atenção para a centralidade da etnografia na produção do conhecimento antropológico, colocam o trabalho de campo como fonte principal de informações, mas também como um foco potencial de impasses e dificuldades. Se é no trabalho de campo que o antropólogo constrói os “fatos etnográficos”1 que posteriormente utilizará para produzir uma interpretação do grupo estudado, seus procedimentos comportam riscos, que os recursos acumulados pela Antropologia visam a minimizar. Portanto, o campo é um momento de reatualização das teorias e métodos da Antropologia, mas ele implica também o risco de constatar, por vezes duramente, que há elementos da tradição antropológica que não funcionam diante do “caso atual”. Assim, o campo pode gerar impasses, reveladores de limites nas fórmulas existentes, demandando novas linhas de análise dos fenômenos sociais.

Também a “textualização” (Cardoso de Oliveira, 2000), isto é, o momento em que os diversos elementos da pesquisa devem passar à forma escrita, com suas regras e constrangimentos tão particulares, é um dos níveis em que os problemas costumam se multiplicar.

Por tudo isso, creio ser importante relatar os caminhos percorridos nesta pes-quisa e refletir sobre eles. Numa espécie de “descrição dos bastidores” da tese (com ênfase no trabalho de campo), apresentarei a seguir uma síntese dos procedimentos adotados, que sirva à compreensão da forma final assumida por este trabalho.

2 – O levantamento bibliográfico

Ciências Sociais e História

A primeira atividade desenvolvida na pesquisa de maneira mais sistemática foi a de levantamento bibliográfico. Inicialmente, o levantamento centrou-se na literatura existente no âmbito das Ciências Sociais (Antropologia e Sociologia) e da História. À medida que os textos levantados eram analisados, novas referências iam sendo incorporadas. Também o contato com pesquisadores com os quais discuti o trabalho trouxe acréscimos importantes.

Minha postura em relação ao conjunto de obras levantadas foi até certo pon-to “instrumental”: longe de pretender dar conta da totalidade dos debates sobre peregrinações, culto aos santos e santuários, que por si só compreenderiam uma outra tese, busquei mapear os autores destacados por referências cruzadas, isto é,

presentes em diversas bibliografias, ou citados por vários comentaristas. Além das referências mais recorrentes, procurei selecionar os autores que colocaram diante desses temas questões cujas formulações poderiam contribuir para “iluminar” meus dados de campo.2

No levantamento, tomei como ponto de partida os assuntos “religião”, “ca-tolicismo”, “santuários”, “peregrinações”, “rituais”. As buscas resultaram quase sempre infrutíferas no caso dos “santuários”, um assunto praticamente inexistente nas bibliotecas de cunho acadêmico ou literário. Havia poucos títulos em relação às “peregrinações”. Portanto, passei a explorar também os assuntos “santos” e “culto aos santos”, que se revelaram classificações sob as quais era obtido mais material.

“Santuário”, além de ser uma classificação que funcionava pouco, era um termo que quando aparecia no corpo de algum texto não era problematizado, mas tomado como um dado, uma espécie de qualificativo aplicado a determinados templos. Este nome surgia para designar lugares de conotações religiosas, que fossem um foco de atração de peregrinos, ou um lugar privilegiado para cultuar uma divindade. Portanto, uma primeira descoberta foi a de que “santuário” não era uma categoria classificatória remarcável, ou melhor, não era um conceito operativo para as Ciências Sociais, mas antes surgia ou como um nome próprio de algumas igrejas, ou como um nome comum, um sinônimo para templo, quando entravam em jogo as “peregrinações” e o “culto aos santos”.

Os resultados iniciais levaram-me a começar a desconfiar de que o termo “san-tuário”, que aparentemente recobriria uma realidade social facilmente discernível, não tinha, entretanto, nem a instrumentalidade de um conceito analítico, nem o peso de um tema clássico para as Ciências Sociais. Neste sentido, a estadia na EHESS foi a chance de testar essa hipótese, e nas pesquisas em bibliotecas francesas, apesar de encontrar um maior número de referências aos santuários nos trabalhos de historiadores, o termo também não era uma categoria significativa de análise.

Os folcloristas

Tentando ampliar o conjunto de referências, optei por incorporar um outro tipo de literatura que já havia dado bons resultados em minha dissertação de mestrado: o material produzido por folcloristas. Se a Antropologia no Brasil se construiu demarcando rigidamente suas fronteiras em oposição ao domínio do Folclore, enfatizando rupturas, no momento atual de nossa disciplina, é possível e útil assumir que esses limites não precisam ser tão rígidos (Vilhena, 1997: 13). Portanto, é importante reconhecer a contribuição dos folcloristas no levantamento e registro de fatos etnográficos significativos e buscá-los nas obras desses autores.

Nesta pesquisa, o interesse específico nesse tipo de material era o de obter, na medida do possível, informações sobre o formato adquirido pela devoção a

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Santo Antônio no Brasil, as características de seu culto e o “peso relativo” desse santo em relação aos demais personagens do panteão católico. Visava também a encontrar dados mais circunscritos a seu culto no Rio de Janeiro e, se possível, ao convento na vida da cidade. Entretanto, tratava-se de uma busca não sobre “a origem” do culto, mas principalmente para localizar eventuais coincidências com minhas observações de campo, evitando a ingenuidade de tratar como originais dados já registrados por outros autores. Se aquilo que havia observado, ou estava em vias de observar, estivesse presente nas obras consultadas, os fatos perderiam em originalidade, mas poderiam ganhar em densidade histórica e em comparabilidade.

As consultas se deram inicialmente na Biblioteca Amadeu Amaral, do Museu do Folclore Édison Carneiro, depois alargando-se para a internet e outras bibliotecas. Continuei buscando os assuntos “culto aos santos”, “santuários” e “peregrinações”. Novamente, nada para santuários, mas havia algo em “peregrinações”, na variante “romarias”3 e em “culto aos santos”. Depois, procurei especificamente dados sobre Santo Antônio, tanto no Brasil como no Rio de Janeiro, sobre o qual havia bastante material na rubrica “festas populares”, devido às festas juninas nas quais ele, São João e São Pedro são homenageados. Já quanto aos dados sobre o culto ao santo no Rio de Janeiro e sobre a implantação do convento na cidade, recorri tanto aos folcloristas, como também a cronistas e viajantes.

Os textos consultados enfatizavam que o culto a Santo Antônio seria uma prá-tica herdada do catolicismo “luso-brasileiro”, cuja importância resultaria do peso atribuído a esse santo em Portugal, visto que ele mesmo era português. Portanto, consultei também a biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura, onde en-contrei uma bibliografia significativa sobre o culto aos santos em Portugal, alguns títulos de livros sobre santuários (novamente como nome próprio de determinados templos) e uma grande quantidade de trabalhos sobre a vida e obra de Santo An-tônio, utilizados para compor o capítulo 6.

Textos da Igreja e para a Igreja

Uma outra frente de busca de material referiu-se a textos da própria igreja Católica sobre os santuários. Para isso, entrei em contato com a Conferência Nacio-nal dos Bispos do Brasil (CNBB), localizada em Brasília, e mais especificamente com o Instituto Nacional de Pastoral (INP), organismo da Conferência, através do qual obtive o levantamento dos temas “santuários” e “pastoral dos santuários” na biblioteca daquela instituição. O número relativamente alto de referências em relação a outras bibliotecas mostrou-me que, diferentemente de um acervo acadê-mico, no acervo de um organismo religioso católico, “santuário” tornava-se uma categoria significativa.

Ao filtrar essa listagem inicial, pude estabelecer uma tipologia, um tanto

esquemática, do material encontrado. Tratava-se de: a) estudos sobre a história de alguns santuários; b) documentos de orientação para um serviço religioso específico para os santuários, ou seja, uma “pastoral dos santuários”; c) atas e regimentos de organismos de congregação dos responsáveis por santuários; d) textos de “sociologia pastoral” sobre os santuários, isto é, produzido por cientistas sociais preocupados em “aplicar” seus conhecimentos sociológicos a serviço do trabalho da Igreja Católica; e) textos de cunho catequético, explicando a leigos a importância dos santuários; f) documentos da hierarquia eclesiástica sobre o assunto. Cabe ressaltar que os diversos tipos de textos encontrados podiam se referir ao Brasil, à América Latina, ou à Igreja Católica como um todo, envolvendo inclusive um grande nú-mero de pronunciamentos papais. Os documentos do papa localizam-se ao nível do Vaticano na “pastoral dos migrantes e das migrações”. Na CNBB, é do âmbito de uma “pastoral dos santuários” que saem os documentos sobre santuários no Brasil.

Pude também estabelecer uma certa periodização nos documentos. No arqui-vo da CNBB, a documentação mais antiga sobre uma articulação em torno dos santuários encontrada refere-se ao Encontro Nacional dos Reitores de Centros de Peregrinação, datado de 1965. Em 1974 acontece o II Encontro Nacional de Pastoral dos Santuários (o termo centro de peregrinação some). A pastoral dos santuários da CNBB é criada no final dessa década. Antes disso, a questão dos santuários era discutida numa secretaria especial, juntamente com outros temas. E os Encontros Nacionais começam a se multiplicar nos anos 1980.

Em 1992 acontece o I Congresso Latino-Americano de Pastoral dos Santuá-rios e, no mesmo ano, o I Congresso Mundial da Pastoral de Santuários, realizado em Roma. Os estatutos do Conselho de Reitores de Santuários do Brasil data de 1990. Podemos, portanto, dizer que as articulações começam em torno dos anos 1970, mas ganham força nos anos 1980, com os encontros nacionais. Mais tarde, nos anos 1990 vão ocorrer os encontros do Cone Sul e latino-americanos sobre o tema. Assim, CNBB e Celam passam a envolver-se de forma mais regular com o tema dos santuários.

Foi manuseando uma parte considerável dessa documentação, ressaltando as expressões recorrentes, selecionando textos dentro de periódicos, datando sua pro-dução, que me veio a idéia de uma política de valorização dos santuários estabelecida pela própria Igreja Católica, relacionada ao atual papado. É no atual papado que se promulga o Código de Direito Canônico em vigor, em que há uma série de cânones referentes à regulação dos santuários (citados na introdução deste livro). É nesse papado que são criados ou ganham força organismos internacionais de articulação dos santuários católicos. São muitos os pronunciamentos de João Paulo II “sobre” os santuários, mas é maior ainda o número de pronunciamentos “nos” santuários. A cada viagem que o papa faz – e não foram poucas, pois sua representação pública é a de um “peregrino da fé” –, ele procura fazer um pronunciamento oficial em

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um santuário importante da região visitada (Dayan, 1990). Portanto, parece que o atual papado dá uma grande importância aos santuários.

Há todo um percurso a ser reconstituído em termos de construções teológicas sobre a religiosidade popular que podem ajudar a entender a valorização que os santuários e as peregrinações passam a ter nos textos pastorais a partir dos anos 1980.4 Mas talvez, mais que uma dinâmica interna ao pensamento teológico, seja uma análise da configuração do atual papado, da representação da figura do próprio papa como um “peregrino da fé” – aquele que se move entre os santuários da cristan-dade e que é capaz de movimentar consigo uma massa de devotos nas celebrações que realiza em santuários –, que nos leve a entender o interesse da Igreja pelo tema.

Estatísticas, dados quantitativos, dados oficiais

Um outro bloco de material levantado, produzido por e para a Igreja, dizia respeito às estatísticas e dados oficiais sobre o catolicismo brasileiro. Embora se-jam documentos de trabalho, e não textos propriamente analíticos, por razões de estratégia argumentativa, prefiro registrar e comentar esse tipo de material junto às demais referências bibliográficas. As tentativas de levantar dados quantitativos efetuadas na pesquisa visavam a localizar geograficamente e a contabilizar a exis-tência de santuários no país, bem como dimensionar, ainda que num nível genérico, o culto a Santo Antônio no Brasil.

Os dados sobre santuários foram obtidos em três fontes: a tese de doutorado da professora Zeny Rosendahl (Rosendahl, 1994), a mala direta do Conselho de Reitores de Santuários no Brasil (cuja sede fica no Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, em Aparecida – SP) e o Anuário Católico (Ceris, 2000), uma espécie de “catálogo geral” da Igreja no país, produzido pelo Ceris – o organismo da Igreja Católica dedicado a estatísticas. A descoberta inicial é a de que se tratavam de conjuntos não-coincidentes: o registro do Ceris era muito maior que os outros dois, mas havia templos que estavam nos dois primeiros que não estavam contidos no Anuário. E nos três casos, havia santuários como e sem ereção canônica, isto é, com ou sem título oficial conferido por um bispo. O Convento de Santo Antônio, por exemplo, estava presente nas duas primeiras, mas não na terceira.

Portanto, a forma ambígua de lidar com os santuários, misturando aqueles que têm títulos oficiais com aqueles que são nacional ou localmente considerados enquanto tal, tornava difícil obter um quadro oficial dos santuários do país, o que inviabilizava qualquer quantificação mais rígida neste sentido.

Quanto ao culto a Santo Antônio, minhas tentativas de quantificação visavam a confirmar a asserção encontrada em folcloristas de que ele seria um dos santos mais populares, isto é, de maior devoção no país (Câmara Cascudo, 1999; Pio, 1987, entre outros), bem como levantar as características assumidas por essa devoção. Assim,

consultei novamente o banco de dados do Ceris, em busca de uma listagem dos templos dedicados ao santo. Mas enquanto um organismo voltado aos interesses da própria Igreja, o Ceris organiza seu banco de dados a partir da estrutura hierárquica oficial, tomando as dioceses, paróquias e as casas de congregação como unidades de análise. Ao pedir a listagem das “igrejas” de Santo Antônio do Brasil, recebi a listagem “das paróquias” brasileiras em que Santo Antônio é o padroeiro, da qual ficaram de fora as capelas, as irmandades e os oratórios dedicados ao santo. Esses dados puderam então oferecer um quadro geral, uma aproximação, mas se revelaram insuficientes como tentativa de quantificar ou mapear “a devoção a Santo Antônio” no país, já que a estatística do Ceris só a incorpora quando institucionalizada em paróquias. De qualquer maneira, do ponto de vista oficial, Santo Antônio é o pa-droeiro de 515 das 8.787 paróquias brasileiras (Ceris, 2000), sendo provavelmente o terceiro personagem católico na preferência nacional, após a imbatível Virgem Maria e o próprio Jesus (Bartholo, 1991).

A frustração com esses dados me fez descer ao nível institucional católico mais próximo ao local estudado, numa nova tentativa de quantificação. Tomei por referência a Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, unidade territorial da Igreja Católica na qual o convento está inserido, e recorri ao Anuário Arquidioce-sano (Arquidiocese, 1996), elaborado e editado pela própria Cúria Metropolitana, que contempla não apenas as paróquias, mas outros templos, casas religiosas, confrarias e irmandades. Assim, por exemplo, enquanto os dados do Ceris falavam, para a Arquidiocese do Rio, apenas das sete paróquias dedicadas a Santo Antônio, o Anuário Arquidiocesano trazia referências a 41 templos (dentre os quais as sete paróquias) e seis irmandades dedicadas a esse santo – isto tudo permanecendo no plano da oficialidade católica, desconsiderando oratórios e capelas particulares.

No entanto, ao ler a história do convento (Röwer, 1945), confrontei-me nova-mente com as limitações das quantificações para o catolicismo: descobri que durante o período colonial os franciscanos tinham adquirido, em troca da implantação do Convento de Santo Antônio e de seus serviços na cidade do Rio de Janeiro, o monopólio da devoção ao santo (id.: 23). Ou seja, enquanto esse privilégio dos franciscanos durou, era proibido que outra igreja tivesse como padroeiro Santo Antônio, embora sua imagem pudesse ser cultuada em outros templos. Isso mostra que o número de templos, como cifra de aproximação à devoção de um santo, é um dado a ser considerado apenas acompanhado de inúmeras relativizações.

Creio estar de novo aqui me defrontando com um problema recorrente no estu-do do catolicismo, ao menos na situação brasileira em que seu enraizamento se dá de formar capilar: como conseguir um “mapa” da situação, ou um suporte estatístico, e não ficar falando em um tom muito impressionista? À parte a perspectiva um tanto “lebrasiana” desta formulação,5 após ter elaborado essas tentativas de quan-tificação, vi que Câmara Cascudo (1999) havia atacado esse problema e produzido

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dois esforços interessantes para mensurar a devoção ao santo: nos anos 1950, ele identificou Santo Antônio como o orago do maior número de freguesias, 288, sendo que São José ocupava o segundo lugar, com apenas 71 (id.: 87). E consultando o guia postal telegráfico dos anos 1940, o mesmo autor descobriu ainda que o santo nomeava 70 localidades (id.: 89). O uso dos registros dos Correios e dos nomes de freguesias tem o mérito de escapar da armadilha da oficialidade católica, mas ao me deparar com essa sugestão já estava desanimada com as possibilidades de quantificação do catolicismo nesta pesquisa e julguei que os possíveis resultados dessa tentativa de atualizar os dados não compensariam o volume de trabalho a ser empreendido.

As definições

A descoberta dos santuários como uma categoria pouco operativa no campo das Ciências Sociais e História, e bastante operativa no campo da oficialidade católica, deixou-me um tanto insegura sobre a consistência do tema que pretendida tratar. Preocupada com as demandas epistemológicas de “construção do objeto” e de “ruptura com o senso comum”, nos termos propostos por Bourdieu, Chamboredon & Passeron, 1968, dei-me conta de que ao me interessar pelo estudo antropológico “dos santuários católicos”, corria o risco de estar trazendo ingenuamente para o in-terior da Antropologia, como problemática teórica, uma categoria “nativa”, gestada no universo da Igreja Católica (Montero, 1999: 359). A que estava me referindo quando falava de santuário, que conjunto de relações pretendia tratar sobre esse tema, que características deveria ter um santuário – não para a Igreja Católica, mas para as Ciências Sociais?

Em seu ensaio sobre a Prece, Marcel Mauss lembra que uma definição pre-liminar do objeto que se pretende analisar pode ser de extrema utilidade para orientar os procedimentos de uma pesquisa e controlar seus resultados, permitindo transformar uma impressão indecisa e flutuante numa noção distinta:

Il n’est pas question, bien entendu, de définir d’emblée la substance même des faits. Une telle définition ne peut venir qu’au terme de la science, celle que nous avons à faire au début ne peut être que provisoire. Elle est seulement destinée à engager la recherche, à déterminer la chose à étudier, sans anti-ciper sur les résultats de l’étude. (…) Elle limite le champ de l’observation. (…) Grâce à elle on échappe à l’arbitraire (…) (Mauss, 1968: 385-386).6

Essas observações me levaram a um exercício de desnaturalização do termo “santuário” e dos demais termos entre os quais estava me movimentando, através da busca de definições, isto é, da localização de verbetes sobre os temas “santos”,

“cultos aos santos”, “santuários” e “peregrinações” em dicionários e enciclopédias de ciências sociais, teologia, catolicismo e história das religiões.

O ponto de partida foi a definição oficial de santuário do Código de Direito Canônico (CNBB, 1983), já citado, depois as referências foram se multiplicando. As referências consideradas mais significativas, que estão presentes na bibliografia da tese, foram confrontadas entre si, sendo assinaladas as concordâncias e oposições, num processo que ajudou a sustentar as reflexões apresentadas ao longo da tese e a construir minha definição preliminar de santuário. Esse processo me permitiu observar uma não-coincidência entre a definição canônica de “santuário” e seu uso corrente entre cientistas sociais e mesmo entre o próprio clero. A definição canônica, composta nos anos 1980, produziu uma verdadeira “redução normativa” sobre um campo semântico muito mais amplo.

Mas foram principalmente as análises de Benveniste (1969), no Vocabulário das instituições indo-européias, que me ajudaram a olhar meus dados de uma maneira mais complexa. Embora no Vocabulário o termo “santuário” inexista, há uma série de capítulos relacionados aos temas desse livro,7 e através deles con-segui tornar mais atento meu olhar para analisar a multiplicidade de relações que envolvem santos e pessoas no espaço de um santuário católico.

3 – O trabalho de campo

O acompanhamento das terças-feiras

O trabalho de campo estendeu-se de janeiro a agosto de 2001, quando me dediquei a freqüentar o convento, mas no período de setembro a dezembro de 2001, mantive ainda no local uma assistente de pesquisa, para completar o acom-panhamento de um ano calendário.

O campo teve início com as visitas às terças-feiras, dia da semana dedicado a Santo Antônio, nas quais passei a comparecer ao convento, participando de missas, bênçãos, almoço e demais atividades lá realizadas. De saída, uma impossibili-dade: a de cobrir sozinha o dia inteiro, pois o funcionamento do convento neste dia se estende de 5h30 da manhã às 20 horas. Assim, comecei minha observação pelo comparecimento às missas da manhã. E como desde a primeira vez que fui ao convento, ainda em 2000, sabia da existência, às terças-feiras, de um almoço realizado pela Pia União de Santo Antônio, uma associação de leigos voltada ao culto do santo, minha estratégia inicial de observação foi assistir às missas de 10, 11 ou 12 horas (às vezes mais de uma) e em seguida almoçar, tentando todo esse tempo engatar conversas com as pessoas que lá estivessem, e assim começar a me localizar no campo.

Mais tarde, ao longo do semestre e à medida que fui conhecendo melhor

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o convento e o culto, fui redesenhando minha estratégia. Procurei comparecer também em outros dias da semana, pois além do convento permanecer aberto e oferecer outros tipos de “serviços” ao público nesses dias, as diferenças entre o conjunto de dias (tanto nas atividades, como na freqüência) permitiram esta-belecer contrastes significativos. Observando as terças-feiras, pude construir um esquema do funcionamento do convento, das práticas que articulam os diferentes agentes entre si e com o santo, do papel do clero diante dos devotos, das redes que se formam ou se articulam a partir da freqüência ao local, das pessoas que se destacam nessas articulações. Mas foi contrastando a terça-feira aos demais dias da semana que pude conferir nuanças a meus esquemas: nos dias mais “calmos” pude identificar um grupo de freqüentadores diários, que tem com o convento uma relação que não se limita à figura de Santo Antônio. Neles também se tornou possível conversar e estabelecer relações com alguns dos que, por estarem investidos de obrigações e responsabilidades com o funcionamento do convento às terças-feiras, se tornam inacessíveis naquele dia.

Porém, mesmo tendo adquirido mais intimidade com o convento e alguns de seus freqüentadores, um aspecto a ser considerado na pesquisa é o de que o convento é uma casa de religiosos masculinos e a questão de gênero marca a organização do local. Se o acesso a determinadas áreas é restrito a visitantes, os cuidados são ainda maiores quanto a visitantes mulheres, embora haja algumas autorizadas a entrar na clausura, tais como voluntárias que ajudam os trabalhos no local, funcionárias da limpeza e cozinha dos próprios frades, suas mães e irmãs.

Essas observações explicam porque, apesar de ter entrado algumas vezes no claustro e por duas vezes ter ingressado inclusive no refeitório dos frades, não tive acesso contínuo a todas as partes do convento. O controle da entrada no claustro é uma das características de um convento, e confesso que grande foi minha expec-tativa de ganhar a confiança dos frades e transpor o portão. As quatro vezes que entrei a convite de frades da casa simbolizaram internamente um certo “sucesso” do trabalho. Por outro lado, o foco da pesquisa não estava nas partes fechadas do convento e sim nas abertas ao público, onde se dá a maior parte das interações analisadas. Isso significa que, pelo viés adotado no trabalho, a impossibilidade de uma entrada mais direta e freqüente no claustro não traria maiores prejuízos.

Quanto à forma de apresentar a mim e à pesquisa no convento, e de conseguir autorização para realizá-la, mesmo antes de definir-me pelo local, ainda em 2000, fiz uma entrevista com fr. Marcílio, que me fora indicado como o responsável pela Igreja, apresentando meu interesse nos santuários católicos e informando-o que estava visitando diversos templos em função de uma tese. Quando me defini e iniciei o campo, passei cerca de dois meses aproveitando o anonimato na massa de freqüentadores, assistindo às missas, estabelecendo conversas informais e pe-dindo informações, apresentando-me como alguém que estava começando a ir ao

convento e que queria conhecer o que havia lá. Após esse período, antes que as conversas começassem a se aprofundar, tocando em assuntos mais íntimos, voltei a falar com fr. Marcílio, avisando-o de que pretendia fixar a observação no convento. Ele concordou, sem pedir maiores detalhes.

Nessa segunda fase, passei a assumir mais explicitamente meus interesses de pesquisa e optei por trazer o bloco de notas bastante visível, de forma a indicar que quem se aproximasse para conversar estaria de alguma maneira “correndo risco”, isto é, tornando-se um informante em potencial. Novamente, como na Penha, durante a pesquisa de mestrado, diante do bloco havia um certo fascínio das pessoas com a possibilidade de que eu fosse uma jornalista e alguns muxoxos quando ouviam como resposta, “não, sou professora, sou antropóloga”, ou “sou da UFRJ”, “estou fazendo um trabalho para a faculdade, para um livro”. Mas apesar de o interesse pela mídia parecer ser bem maior do que aquele despertando pela academia, pude contar mais uma vez com a generosidade das pessoas, que cederam tempo e informações para o trabalho.

Entretanto, tive que me defrontar muitas vezes com a mesma situação encon-trada por Silva (2000), em sua análise dos estudos antropológicos sobre religiões afro-brasileiras. Esse autor registrou que, dentro de uma religião de estrutura hierárquica como o candomblé, as pessoas de posição inferior ou subordinada convidadas a dar entrevistas evitam concedê-las, remetendo às pessoas de estatura superior para respondê-las. Assim, certas entrevistas tornam-se inviáveis devido à posição relativa do entrevistado na hierarquia local:

Devido à posição elevada do pai ou mãe de santo na estrutura hierárquica, a pesquisa que não faz dele a figura principal a ser indagada, entrevistada e observada de certa forma coloca-se em contradição com a visão do grupo, que tem no seu sacerdote o supremo guardatário do conhecimento ao qual todos devem recorrer, inclusive o antropólogo (Silva, 2000: 39).

Como o candomblé, a Igreja Católica também é hierárquica, embora, obvia-mente, com posições construídas e demarcadas por outros critérios, de outra forma. Em campo, a hierarquização se fez sentir no número de vezes em que, solicitando “entrevistas”, era remetida aos padres e aos livros com fontes mais seguras que os depoimentos. Eles – padres e livros – eram as fontes de autoridade das informações adequadas a “uma pesquisa”, mesmo que eu insistisse que o que me interessava era a importância do culto e do convento na vida das pessoas e não a doutrina ou a história da religião. Curiosamente, as mesmas pessoas que resistiam a “ser entrevistadas” apresentavam uma resistência menor a “conversar informalmente” sobre os santos. Ou seja, elas não se sentiam capazes ou qualificadas para “dar uma entrevista”, ou “fornecer material para a tese”, isto é, para assumir uma posição

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mais formalizada de informantes, mas raramente se negavam a “falar” dos santos em suas vidas, quando solicitadas.

Portanto, apesar de haver realizado entrevistas – com freqüentadores e com sacerdotes –, foi nas conversas informais sucessivas com pessoas que sabiam que eu estava fazendo uma pesquisa sobre o convento, mas que diziam estar ape-nas “conversando” e, principalmente, na observação das celebrações nas quais participei, que consegui o maior número de informações para a tese. E uma das características que mais me impressionou na pesquisa foi justamente essa, a de perceber como a observação participante, ou mesmo a “pura observação” (se é que isso existe), puderam, nesse contexto, produzir resultados bastante satisfatórios. Por outro lado, cresceu minha convicção de que a entrevista formal, com recurso ao gravador, muitas vezes afasta mais do que aproxima. Creio que certas coisas só foram ditas porque o bloco de papel era menos ameaçador do que a fita cassete.8

Falei mais algumas vezes com fr. Marcílio e, gradualmente, fui me apresen-tando a outros frades: a alguns, diretamente, porque os freqüentadores do convento os sugeriam como acessíveis, ou portadores de conhecimentos que poderiam me interessar. A outros, por indicação dos próprios frades com os quais já fizera contato. Usei a identidade de professora do Seminário Franciscano de Petrópolis e doutoranda da UFRJ.9

Porém, foi apenas ao final do campo que descobri que o cargo de guardião, fundamental na hierarquia do convento, era ocupado por fr. João, com o qual não havia falado. Assim, antes de partir para o exterior, fui conversar com ele, me desculpando por ainda não tê-lo encontrado antes, sumariando as atividades até então desenvolvidas na pesquisa e comprometendo-me a retomar contato. Esse erro primário só não se revelou mais grave por uma certa descentralização do convento – em nenhum momento minhas atividades foram questionadas por falta de uma autorização escrita. Mas talvez isto tenha acontecido também, como já disse, porque me mantive principalmente em áreas “privadas, porém de circulação pública”, preocupada mais com os espaços de interação entre os freqüentadores do local, e entre esses e o clero, do que com os espaços reservados ao próprio clero (voltarei em detalhe ao tema do espaço do convento e dos frades no capítulo 2).

Portanto, foi através da observação participante que estabeleci gradativa-mente meus contatos e produzi as notas sobre as práticas no local. Foi “rezando”, “comungando”, sendo “abençoada” ou “ungida” que conheci e me integrei ao convento. Mas embora reconhecendo a importância da participação nas celebra-ções para a obtenção de fatos etnográficos, em alguns momentos senti um certo desconforto ético quanto à minha presença em celebrações religiosas, já que não professo religião alguma. Consolava-me saber que, por ser “batizada” e ter feito “a primeira comunhão”, tinha o direito canônico de estar ali, sem agredir as normas de participação daquele grupo. Mas em que medida minha “descrença participativa”

poderia agredir as convicções daquelas pessoas? Diferente das religiões iniciáticas, as pretensões universalísticas do catolicismo

fazem com que o controle do acesso ao sagrado, isto é, da participação em rituais, seja pouco rígido – basta, por exemplo, entrar em uma fila e comungar, sem que haja nenhum procedimento de “triagem” dos que estão habilitados a fazê-lo pelos padrões oficiais. Portanto, as barreiras que o estudioso do catolicismo no Brasil tem de enfrentar parecem ser mais suaves dos que as enfrentadas por estudiosos de outras religiões (Silva, 2000), os quais muitas vezes têm de se decidir por um grau maior de adesão antes de ultrapassar certas etapas de participação. As ques-tões éticas, entretanto, permanecem. E na verdade não consegui abstrair as normas desta religião a ponto de participar de rituais mais “individualizados”, como os de confissão ou de aconselhamento.10

Além das entrevistas, da observação e participação em rituais, um outro es-forço realizado foi a coleta de material escrito deixado no convento: santinhos e novenas. Alguns visitantes costumam deixar oferendas, seja nos queimadores de velas, seja dentro da Igreja: bancos, altares, aos pés das imagens e, principalmen-te, no genuflexório sob um quadro de Santo Antônio. Essas oferendas são em sua maioria reproduções de fotos ou desenhos de imagens de santos, com uma oração atrás, impressas em gráficas – os santinhos. Mas havia também orações e nove-nas, fotocopiadas ou feitas à mão, tanto de “agradecimento por graças recebidas” como “para pedir coisas” que se quer ver acontecer. Amostras desse material, que remetia tanto a possibilidades de apropriação do templo por parte dos devotos, como à existência de um “panteão de santos” cultuado no local, foram por mim sistematicamente recolhidas.

Quanto ao andamento do trabalho de campo, se minha intenção era acompanhar a cotidianidade do convento, obviamente tive que me submeter ao seu ritmo próprio de funcionamento. Dois calendários se conjugam para orientá-lo: o litúrgico, isto é, o da Igreja Católica Romana, regulando as celebrações e liturgias apropriadas ao ciclo anual; e o civil, regendo dias de abertura e fechamento, e influindo no volume de freqüentadores.11 Seguindo esses dois calendários, a “vida” do convento atinge seu clímax anual na festa de Santo Antônio, o padroeiro, no dia 13 de junho. Por-tanto, para a festa do santo, uma estratégia específica de observação foi montada.

A festa

O foco principal de observação era o culto semanal a Santo Antônio, mas o caráter espetacular de sua festa anual tornava-a um momento a ser privilegiado. Além de representar para os próprios agentes o ponto alto do calendário do con-vento, demandando a presença dos freqüentadores assíduos, dos membros da Pia União e de seus parentes e amigos convocados a ajudar na festa, suas dimensões

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de excepcionalidade e de evento aberto ao grande público produziam configurações inéditas, cujo contraste com o cotidiano poderia trazer novas informações sobre a situação estudada. Entraria em jogo na festa a possibilidade de compreensão proporcionada por uma certa “descontextualização” ou “des-normalização” de papéis e espaços sociais.

A festa de Santo Antônio compreende não só a comemoração do santo em 13 de junho, mas começa com um período de preparação, a trezena preparatória, no qual gradativamente vai sendo construído o clima de euforia que tomará conta do lugar no dia da festa. A trezena se realiza anualmente de 31 de maio a 12 de junho, isto é, ela é composta por 13 dias consecutivos de orações e homilias especiais, proferidas diariamente por um padre convidado, o pregador da trezena, em missas às 12 h e 18 h (10 h e 17 h aos sábados e domingos). A partir da trezena, a movimentação no convento vai se intensificando e o número de freqüentadores aumenta. Nesse período, minha presença tornou-se diária e mais intensa, pois durante a trezena, ir diariamente torna-se coisa natural.12

No dia da festa, as atividades do convento se estendem das 5 da manhã às 22 horas, e cerca de 50 a 70 mil pessoas comparecem ao local. Diante dessa pro-gramação carregada, estruturei-me da seguinte forma: acompanhamento diário da trezena às 12 h, assistindo à missa com “meu grupo” de interconhecimento. Quanto aos dias 12 e 13, aproveitei a oportunidade para aplicar um questionário a 250 pessoas. Interessava-me, com esse instrumento, obter não um quadro estatístico da devoção, portanto não se tratou de uma pesquisa de opinião, mas um material qualitativo que me ajudasse a levantar categorias significativas aos freqüentadores do convento, recuperando aquilo que chamei de “o campo semântico da devoção”. Como resultados possíveis da análise desse material estariam a obtenção de formu-lações “nativas” de razões para o comparecimento à festa, sobre a figura de Santo Antônio, sobre o próprio convento e sobre a devoção aos santos.13

Recorri a quatro estudantes do Departamento de Sociologia e Política da PUC--Rio para a aplicação do instrumento, pois julguei prioritário estar liberada durante os festejos para poder acompanhar “etnograficamente” os diversos acontecimentos que surgissem. Preocupei-me em garantir a presença simultânea de ao menos dois aplicadores no local, para viabilizar o confronto de resultados em todos os momen-tos. E como os alunos selecionados eram duas mulheres e dois homens, busquei compor “casais” para neutralizar possíveis interferências de gênero no contato com os entrevistados. Após uma primeira leitura das respostas digitalizadas, ficou claro que alguns termos e expressões que apareciam recorrentemente forneciam pistas importantes para compreender categorias significativas ao fenômeno da devoção.

Além do questionário, uma outra fonte documental importante, obtida ao longo da Trezena, foram os pedidos escritos a Santo Antônio. Um dos objetivos principais da trezena é que seus devotos coloquem seus pedidos para o santo ao

longo da oração, existindo inclusive uma pausa específica para isso. Há alguns anos, foi instituída a prática de se colocar no fundo da igreja uma cesta para receber os pedidos por escrito, para serem levados ao altar no ofertório da missa da trezena, como uma forma de entrega solene, e que depois são recolhidos e queimados pela sacristã. Fr. Marcílio autorizou-me a pedir a ela que os guardasse para mim ao invés de queimá-los. O recolhimento dos pedidos não foi sistemático,14 mas mesmo assim esse esforço resultou em cerca de 2.700 pedidos, dos quais utilizei uma amostra de 500 para análises sobre a relação santo-devoto, como forma de confirmar certas intuições etnográficas acerca do ato de pedir aos santos.

No entanto, novo incômodo ético se colocou durante o processo de recolher e usar os pedidos: senti-me uma ladra de sonhos, pegando oferendas aos santos para fazer análise etnográfica. Por outro lado, em todo o momento do campo, confrontei-me com o custo que era aproximar-me das pessoas a ponto de fazê--las falar de sua relação com o santo. Os pedidos escritos ofereciam justamente uma via de acesso privilegiada a essa relação, e sem mediações, pois são escritos diretamente para o santo. Na análise deste material, pude identificar recorrências e estabelecer critérios para analisar o pedido – tanto aquilo que é pedido, isto é, o conteúdo do pedido como, sobretudo, a forma de pedir – a “etiqueta do pedido”. Assim, por exemplo, a prática do pedir para alguém, as formas de invocação do santo, como “glorioso santo Antônio”, “meu querido santo Antônio”, tornam-se explicitadas pela análise dos pedidos.

O terceiro conjunto de informações obtidas na festa diz respeito às minhas próprias notas etnográficas. O re-arranjo provocado pela comemoração tornou mais fácil a circulação pelo convento, pois o grande fluxo de pessoas exige a abertura de espaços, como o claustro, que no cotidiano permanecem restritos ao uso dos frades. A reorganização do convento para receber os visitantes e a pre-sença de um grande número de pessoas facilitaram a realização de atividades tais como fotografar, entrevistar etc. Por outro lado, a “superprodução” exige que os franciscanos acionem um esquema especial de atendimento: os frades-estudantes de Petrópolis são chamados para ajudar nas bênçãos, sendo que em 2001 seis alunos e ex-alunos meus estiveram trabalhando na festa nos dias 12 e 13. Sua presença me permitiu ingressar em partes do convento restritas aos frades. Pude também foto-grafar algumas de suas atividades, como as bênçãos individualizadas que fizeram. Além disso, eles trouxeram-me observações e comentários sobre a festa, que me ajudaram a percebê-la sobre outros ângulos.

Outra frente de trabalho durante a festa foi o acompanhamento da distribuição de pãezinhos de Santo Antônio, que realizei durante algumas horas, chegando mes-mo a ajudar a organizar a fila. Trata-se de um pão bento, distribuído gratuitamente aos visitantes que desejarem, na hora da saída. Como veremos nos capítulo 3 e 6, Santo Antônio é associado à distribuição de pão para os pobres. Mas na festa, o

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pão de Santo Antônio transforma-se numa espécie de “pão da sorte”: distribuído a pessoas de todos os segmentos sociais, ele deve ser levado para casa e colocado nos potes de mantimento, para garantir que não falte comida o ano inteiro. Ao longo de todo dia, doações de pão chegavam, eram imediatamente bentas pelo frade e colocadas a seguir no estoque a ser distribuído aos presentes.15 Graças ao frade responsável por essa atividade, pude registrar os procedimentos para pedir e dar o pão, entre os quais um processo de “redistribuição” se materializou de forma cristalina.

Uma atividade importante foi ainda a gravação das bênçãos de Santo Antônio, para comparar os diferentes “estilos” dos padres que celebram no convento. Nesse dia, três padres do convento se revezavam a cada hora, para dar uma bênção a cada vinte minutos. Gravei uma benção completa de cada um, para poder fazer um confronto entre as recorrências e singularidades, estabelecendo possíveis “estilos” e “estruturas” de benção.

Por fim, fotografei e entrevistei diversas pessoas. Após a festa, houve um processo de presentear as pessoas com essas fotos, de mostrar os álbuns e registrar seus comentários, intensificando vínculos.

4 – A escrita da tese

Ao comentar o trabalho do antropólogo, Cardoso de Oliveira (2000) assinalou a importância do momento de “textualização” como parte constitutiva do processo de produção do conhecimento. Trata-se do momento em que a interpretação é pos-ta no papel, isto é, em que o trabalho passa a ser escrito, e algumas formulações assumem um caráter mais explícito e consistente, porque mais formalizado. Este autor caracteriza a textualização pela simultaneidade que ocorre entre escrita e pensamento e defende suas características abertas:

(...) [É] no processo de redação de um texto que nosso pensamento caminha, encontrando soluções que dificilmente aparecerão antes da textualização. (...) Minha experiência indica que o ato de escrever e o de pensar são de tal forma solidários entre si que, juntos, formam praticamente um mesmo ato cognitivo. Isso significa que, nesse caso, o texto não espera que seu autor tenha primeiro todas as respostas para, só então, poder ser iniciado (Cardoso de Oliveira, 2000: 32).

Cardoso de Oliveira assinala então que o conhecimento vai se produzindo também durante a escrita do trabalho, cujo ponto de chegada geralmente é impre-visível desde o ponto de partida. Assim, as dificuldades de apresentação e manuseio dos fatos etnográficos, surgidas durante a textualização, representam desafios à

interpretação que o pesquisador se propôs a realizar. Essas formulações implicam ainda atribuir um caráter transitório ao texto antropológico, que pode ser reescrito e constantemente aperfeiçoado num processo de releitura inerente às noções de interpretação e de textualização.16

A tese ora apresentada foi textualizada, isto é, escrita, em dois contextos bas-tante diferentes, e acredito que ambos tenham deixado suas marcas no resultado final do trabalho. O início do processo de textualização deu-se durante o período de bolsa-sanduíche em Paris, ainda no segundo semestre de 2001, quando o material de campo foi catalogado e organizado. Nesse período, produzi um relatório das atividades de campo, no qual tanto o material como o processo de sua obtenção passaram por uma primeira análise. Algumas das idéias fundamentais do trabalho surgiram aí e foram sendo amadurecidas em discussões sucessivas com o orientador.

A experiência no exterior produziu um efeito de distanciamento fundamental para o avanço da pesquisa. Ao realizar um campo na cidade em que moro, supostas “familiaridades” com o espaço pesquisado traziam o risco de, ao serem incorpo-radas à análise, enviesarem-na, por maior que fosse o controle da pesquisadora. Neste sentido, o fato de produzir as primeiras reflexões sobre o campo fora do Rio de Janeiro, e fora do Brasil, criou uma situação de estranhamento e de distância – tanto psicológica como física – que reverteu positivamente em um olhar mais crítico sobre as notas que havia produzido.

Por outro lado, retornando ao Brasil, restava uma grande parte do trabalho a realizar. Havia a necessidade de aprofundar e dar mais consistência ao amplo conjunto de questões que as primeiras leituras do material haviam provocado, a fim de redigir a tese. E aprofundar e dar consistência às idéias significava execu-tar uma série de procedimentos (inclusive “braçais”) sobre o material levantado, atividades que se tornavam mais duras à medida que se transformavam em ações cada vez mais solitárias.

Entretanto, ao tratar a textualização como um processo em que escrever e pen-sar se combinam, Cardoso de Oliveira (2000) esqueceu-se de mencionar que parte da complexidade do processo reside no fato de que ele envolve duas atividades de ritmos diferentes. O pensamento, ao ser convertido à forma escrita, tem de passar por condicionamentos mecânicos que retardam o processo e que reduzem seu al-cance. Portanto “escrever a tese” significa muitas vezes deixar de lado idéias que não serão desenvolvidas por falta de tempo e documentos que não serão explorados totalmente, o que leva à penosa operação de decidir o que deve entrar e o que deve ficar de fora, apostando na possibilidade de desdobramentos futuros do trabalho. Além disso, o momento da escrita pode ser também o momento de descobrir que certas intenções de pesquisa, por mais determinadas que tenham sido, não produ-ziram o efeito esperado. Alguns tópicos, isto é, algumas idéias terão de aguardar um retorno a campo, ou uma nova pesquisa, para adquirirem maior consistência e

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poderem ser trazidas a público.Isso significa dizer que o trabalho aqui apresentado é uma interpretação de

determinados fatos etnográficos, obtidos nas condições que busquei explicitar neste capítulo. E que como “interpretação”, está aberta a aperfeiçoamentos e sugestões que possam complementá-la. Outras questões certamente poderiam ter sido levan-tadas e determinados aspectos poderiam ser melhor aprofundados. Mas acredito que em seu formato atual o trabalho possa contribuir em alguma medida para a desnaturalização de determinadas concepções sobre o catolicismo no Brasil.

Notas1 O conceito de “fato etnográfico”, por oposição à idéia de “dados”, ou de “fatos sociais”, enfatiza que a observação realizada pelo antropólogo, longe de ser ingênua ou espontânea, é antes de tudo uma “seleção interessada”, informada pela tradição da disciplina, que orienta o olhar do pesquisador para determinados aspectos do grupo estudado. Ver Peirano (1995: 16). 2 Como nos lembra Bourdieu (1989: 46), a teoria deve contribuir para “iluminar” a prática, evi-tando erros, e por isso serve como um utensílio da pesquisa. Diante dela, deve-se evitar tanto a erudição pela erudição, que não leva a nada, como também o risco de “herdar” problemáticas, repetindo indefinidamente embates do passado. 3 Há inclusive uma série editada com a colaboração do Museu, intitulada “Romarias Brasileiras”. A classificação “romarias” foi testada em outras bibliotecas, mas funcionou apenas nesta e na biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura.4 Em conversa sobre os santuários com o teólogo chileno Raúl Rosales, obtive algumas informa-ções sobre a pastoral dos santuários ao nível da América Latina. Segundo ele, no momento mais agudo da discussão da Teologia da Libertação (TdL), em finais dos anos 1970, levantou-se na Argentina uma perspectiva de abordagem que buscava articular cultura e religiosidade popular, valorizando-as como baluartes da cristandade latino-americana. Essa valorização da religiosidade popular estaria amplamente comentada na preparação à Conferência de Puebla (1979), e ainda segundo ele há uma bibliografia considerável sobre o tema, inclusive criticando a TdL por não ter levado em conta a religiosidade “efetiva” dos pobres, mas por ter sido na verdade uma leitura secularizada e moderna (intelectualizada) dessa religiosidade. Essa linha mais radical contra a TdL em favor da religiosidade popular se chamaria “culturalismo católico”.5 Refiro-me aqui ao estilo de pesquisa de Gabriel Le Bras, um dos iniciadores da sociologia do catolicismo na França, cujos trabalhos voltavam-se à contabilização dos católicos efetivamente praticantes, à diferenciação cartográfica dos tipos de prática e ao processo histórico de cons-trução dessa diferenciação. Sobre o autor, ver a análise contida em Hervieu-Léger & Willaime (2001: 233-262).6 E continua Mauss: “Au contraire, quand la nomenclature n’est pas arrêtée, l’auteur passe in-sensiblement d’un ordre de faits à l’autre, ou un même ordre de faits porte différents noms chez différents auteurs. (…) Une définition préalable nous épargnera ces déplorables flottements et ces interminables débats entre auteurs qui, sur le même sujet, ne parlent pas des mêmes choses” (Mauss, 1968: 386-387). A pertinência dessas observações metodológicas de Mauss foi ressaltada por Bourdieu, Chamboredon & Passeron (1968: 143-145).

7 Como por exemplo, os capítulos 5 (“don et échange”), 7 (“l’hospitalité”), 8 (“la fidélité per-sonnelle”), 15 (“créance et croyance”) e 17 (“gratuité et reconnaissance”) do volume I desta obra, e os capítulos 6 (“le pouvoir magique”) e toda a parte referente à religião do volume II.8 Neste sentido, identifico-me plenamente com a observação de Pablo Semán em sua tese de doutorado: “Usei o gravador até aprender por minha própria conta o quanto essa prática era desnecessária e inconveniente” (Semán, 2000: 6). Trata-se, entretanto, não de negar a utilidade da gravação como recurso metodológico, mas de refletir sobre a importância da adequação dos instrumentos aos contextos específicos de pesquisa e aos objetivos determinados que se quer alcançar.9 Tinha a experiência da Penha de que falar “Museu Nacional” em determinados contextos soa menos simpático do que dizer UFRJ. Creio que porque “museu” pode associar-se a patrimônio e tombamento, temas que às vezes não são muito caros a responsáveis por prédios históricos. 10 Por outro lado, apenas uma vez uma pessoa com a qual conversava indagou-me se eu era católica, e ao ouvir minha resposta negativa, perguntou se eu era batizada. Sabendo que sim, concluiu: “Então pode ser que essa pesquisa seja um chamado, uma oportunidade que Deus está lhe dando de voltar para a igreja”. Lida pela ótica da possibilidade de reconversão, minha freqüência ao convento tornou-se “natural”. 11 Assim, por exemplo, nos feriados “nacionais”, “estaduais” ou “municipais” o convento não abre, e nos períodos de férias escolares, principalmente em janeiro, a freqüência se reduz bastante.12 Durante o campo enfrentei o problema de ser vista com uma certa desconfiança e surpresa ao ir fora das terças-feiras, pois esses dias são reservados para completos anônimos que entram e saem rapidamente, ou para pessoas “de dentro”, que vão ajudar nos períodos da manhã, da tarde ou mesmo por todo o dia, mas desempenhando alguma função. Durante a trezena prepa-ratória, a presença se tornou diária sem problemas, pois muitos o fazem para acompanhá-la.13 O resultado que tinha em mente deveria ser semelhante àquele conseguido por Scotto (1994), em sua análise de representações em torno de candidaturas políticas, e por isso segui sugestões de seu roteiro para organizar meu trabalho.14 Ele foi feito pela funcionária “na medida do possível”, isto é, nos dias em que ela se lembrou de guardá-los, e nos dias em que houve a cesta, já que o celebrante da trezena não gostava muito da prática e tentou coibi-la.15 Era prática comum, quando o doador trazia os pães pessoalmente, que ele retirasse para si um ou mais dos pães bentos, deixando o resto para ser doado. Mas havia um certo conflito quanto à quantidade: a maioria queria levar mais de um pão, para dar para parentes, amigos, vizinhos, colegas de trabalho que não puderam comparecer, enquanto que o frade e os leigos que os aju-davam tentavam restringir a um pão só, “para que todo mundo vá para casa hoje com ao menos um pãozinho”. Outra reclamação dizia respeito ao formato, tamanho e aspecto dos pães: aqueles mais parecidos com o pão do dia a dia eram descartados, sendo privilegiados os artesanais, os menores (do tamanho de uma moeda de cinqüenta centavos). A regra parecia ser a de valorizar o pão que fosse mais distinto do pão do cotidiano, deixando óbvio de que se tratava de um pão “diferente”, para guardar, e não para comer.16 Peirano (1995: 10) defende a necessária incompletude das monografias etnográficas, para que novas perguntas surjam e para que haja um processo de questionamento permanente.

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5554 A dinâmicA do sAgrAdo

Parte II

rituAis e formAs de sociAbilidAde

5756 A dinâmicA do sAgrAdocApítulo 2

O Convento de Santo Antônio

Antes de aprofundar a análise, creio ser necessária uma breve apresentação do Convento de Santo Antônio, a fim de contextualizá-lo tanto no universo da Igreja Católica, bem como no da cidade do Rio de Janeiro, onde se localiza. Sua orga-nização espacial também será apresentada neste capítulo, tal como percebida a partir do trabalho de campo. Por fim, registrarei algumas formulações encontradas na literatura ou nas falas dos agentes, as quais trazem referências a determinadas qualidades atribuídas a esse prédio, que produzem (ou reproduzem) uma certa “imagem consensual” de excepcionalidade a seu respeito, o que contribuiria para estimular a freqüência ao local.

Foi feita a opção por uma apresentação sintética, como um suporte ao desen-volvimento dos demais capítulos. Apesar do risco que essa opção comporta, que é o de gerar um quadro excessivamente impressionista, ela se justifica na medida em que o problema da tese não é o convento em si, mas as formas de sociabilidade e as práticas rituais que neles são estabelecidas. Portanto, trata-se de enfocá-lo principalmente enquanto um cenário, um ponto de cruzamento de uma série de relações sociais e de representações acerca do sagrado.

O impressionismo da apresentação justifica-se ainda pela inexistência de um estudo sobre o convento que escape à factualidade e ao caráter anedótico, isto é, que o articule à vida civil e religiosa da cidade do Rio de Janeiro. Qualquer análise mais profunda neste sentido implicaria a busca de fontes primárias, o que fugiria ao escopo deste trabalho. Assim, a solução encontrada foi a de apresentar algumas de suas características gerais, que posteriormente serão complementadas e complexi-ficadas, à medida que novas informações forem introduzidas nos demais capítulos.

5958 A dinâmicA do sAgrAdo

1 – Um histórico do convento

Um convento franciscano

Convento [Do lat. conventu] S. m. 1. Habitação de comunidade religiosa; cenóbio; mosteiro, ascetério, claustro, eremitério. 2. A própria comunidade. 3. Fig. Casa muito grande (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 1986).

Convento: mosteiro de uma das ordens de FRADES e FREIRAS. A maioria dessas ordens também pode usar o termo PRIORADO, de modo que CON-VENTO se aplica mais freqüentemente aos franciscanos, que não têm priores (Nova Enciclopédia Católica, 1969: 1136).

Art. 232 – A Casa é a fraternidade legitimamente constituída, sob a autoridade do Guardião e com sede ou residência fixa. Todos os irmãos sejam inscritos numa Casa determinada (OFM, 1988: 73).

Como as definições acima citadas deixam perceber, “convento” é o nome dado a uma “casa” de “frades ou freiras”, que por extensão pode ser aplicado à comu-nidade que nele habita. O Convento de Santo Antônio é uma casa de uma ordem religiosa católica, masculina, a Ordem dos Frades Menores (OFM), originada em um dos maiores movimentos religiosos do século XIII, o franciscanismo. Este movimento, surgido na Itália, em torno da figura de Francisco de Assis, expandiu--se rapidamente, tanto pelo carisma de seu fundador, como pela sintonia de sua proposta com um certo “espírito da época” (ver o capítulo 6).

Desde suas origens, o franciscanismo estruturou-se em três Ordens: a Ordem Primeira, composta de religiosos do sexo masculino – os frades; a Ordem Segunda, feminina, formada pelas clarissas, ou irmãs-pobres, inspiradas em Clara de Assis e dedicadas à vida contemplativa e à oração; a Ordem Terceira, de “franciscanos seculares”, homens e mulheres, leigos ou clérigos, casados ou solteiros, que vi-veriam segundo uma Regra Franciscana específica “no mundo”, como penitentes, sem ter que assumir integralmente a vida religiosa em comunidade.

As várias reinterpretações da mensagem franciscana ao longo dos séculos e as interferências da hierarquia eclesiástica em sua organização terminaram por orga-nizar a Ordem Primeira em quatro ramos: a Ordem dos Frades Menores (OFM), a Ordem dos Frades Menores Capuchinhos (OFMCap), a Ordem dos Frades Menores Conventuais (OFMConv) e a Terceira Ordem Regular (TOR).1 Dentre elas, a OFM é a que tem maior número de membros e a que está mais distribuída mundialmente.

A OFM define-se como uma fraternidade de seguidores de São Francisco de Assis, composta por “irmãos leigos” e “irmãos clérigos”.2 Essa constatação mere-ce um comentário. A inspiração primeira de Francisco de Assis foi a de criar um

grupo de leigos, os fraticelli, ou irmãos, que não passariam pela ordenação, mas que viveriam em comunidade, comprometidos com a fraternidade, a solidariedade e a vida na pobreza voluntária. O próprio Francisco nunca chegou a ser ordenado. Porém, a institucionalização do movimento e as necessidades de recrutamento da Igreja Católica provocaram uma certa integração dos irmãos na hierarquia religiosa, tornando grande parte deles também padres, isto é, levando-os a receber o sacra-mento da ordem3 e passando a exercer as mesmas funções sacerdotais de um clero regular. Portanto, há uma clivagem na composição da OFM, que é aquela entre os irmãos clérigos – que são também padres – e os irmãos leigos, isto é, os frades não-ordenados. Embora as Constituições da Ordem mantenham a legitimidade de ambas as opções e tentem estabelecer uma eqüidade entre os dois tipos de irmãos, mencionarei adiante algumas implicações dessa diferenciação, a partir de alguns exemplos de campo.

A OFM estrutura-se em três níveis: a casa, a província e o governo geral. A casa (convento) indica uma subunidade local e representa uma fraternidade de frades vivendo em comunidade (ver a definição oficial na citação de abertura desse item). Já a província é formada por um conjunto de religiosos e de casas, agrupa-dos em um território política e lingüisticamente homogêneo (Varreux, 1980: 350). Sobrepondo-se às províncias, localiza-se o governo geral, cuja sede é em Roma e é o responsável pela administração da OFM em todo o mundo.

Nos três níveis organizativos – local, provincial, geral – , há um superior responsável (respectivamente, o guardião da casa, o ministro provincial e o mi-nistro geral), que atua com o auxílio de um vigário e de um corpo de frades, os “definidores”, no caso dos governos provincial e geral, os “discretores”, no caso das casas. Todos esses postos são preenchidos eletivamente, em intervalos de tem-po regulares, isto é, através da escolha dos confrades em reuniões deliberativas, chamadas de “capítulos”, que ocorrem também nos três níveis. A participação dos frades nos capítulos, como forma de partilhar as deliberações no interior da OFM, é estimulada, mas há, entretanto, um certo “afunilamento” nessa participação: se todos os frades de uma província que fizeram os “votos permanentes” são respon-sáveis pela eleição direta do governo provincial, o governo geral é eleito de forma indireta, por representantes das províncias de todo o mundo.4

A circunscrição administrativa de base da Ordem é a “província” – na verdade, a Ordem pode ser pensada como uma reunião de províncias, ou de frades inseridos em províncias. Há outros tipos de agrupamento na Ordem: existem as “custódias” e as “vice-províncias”. Mas elas, na verdade, são províncias em potencial, que ainda não reuniram condições objetivas para se constituírem plenamente enquanto tal.5

Um frade para ingressar na Ordem deve inscrever-se em uma província, e pela vocação missionária dos franciscanos, deverá circular por suas casas, cumprindo tarefas determinadas pelo governo provincial. Mas sua circulação geralmente é

o convento de sAnto Antônio

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circunscrita às casas da província a que pertence, e a transferência para outra pro-víncia, isto é, interprovincial, exige a autorização tanto do provincial de origem, como a do que irá receber o frade.

No Brasil, a OFM organiza-se em quatro províncias, quatro vice-províncias e uma custódia, distribuídas pelas diversas regiões do país.6 O convento de Santo Antônio pertence, como uma casa, a uma das províncias, a Província Franciscana da Imaculada Conceição, localizada na Região Sudeste, cujo governo provincial fica na cidade de São Paulo, e que se estende pelos estados de Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Segundo dados de 2001, produzidos pela própria província, ela contaria com 497 frades e noviços, que atuariam em 39 paróquias, cinco santuários, cinco residências, oito obras sociais, oito missões e 12 casas de formação. Nessa estrutura organizativa, o convento de Santo Antônio aparece como um dos santuários da província.7

Por outro lado, embora um convento seja uma “casa” da OFM, e, portanto, pertença a uma província, ao nível da estruturação da Igreja Católica, ele está necessariamente inserido no território de uma “diocese”, divisão administrativa que caracteriza uma igreja local e é chefiada por um bispo. No caso específico do Convento de Santo Antônio, ele se localiza na Arquidiocese Metropolita-na de São Sebastião do Rio de Janeiro, na área da paróquia (a subdivisão da diocese) Catedral Metropolitana, que abrange uma grande região do centro da cidade. Nos registros da Arquidiocese, o convento consta em duas rubricas: aparece como uma casa de religiosos masculinos e como um templo tombado pelo patrimônio federal, mas não aparece como um santuário.

A multiplicação de estruturas da própria igreja gera uma superposição de terri-tórios e, conseqüentemente, abre espaços para tensões de autoridade, que por vezes podem gerar conflito. Canonicamente, as casas das Ordens Religiosas têm autono-mia diante do episcopado, prestando contas apenas a seu provincial. Mas os frades, para desempenharem as funções sacerdotais no território de uma diocese precisam da anuência do bispo local, que lhes confere o uso de ordens através da provisão. Há, assim, um nível em que o bispo pode interferir na vida da casa, proibindo ou limitando a ação externa dos frades.8 Portanto, é no cruzamento de uma “estrutura provincial” da OFM com a “estrutura arquidiocesana” que o convento se insere na organização da Igreja Católica. Uma série de relações diplomáticas entre essas duas instâncias vai procurar gerir as tensões originadas no duplo pertencimento.

Um convento “carioca”

A construção data do início do século XVII para a instalação dos provinciais franciscanos à época da consolidação da cidade de São Sebastião do Rio de

Janeiro após a expulsão dos franceses. [primeira invasão]Sua arquitetura monástica em estilo Barroco tem marcante presença no centro da cidade, como testemunha de sua história e acontecimentos importantes ligados ao seu desenvolvimento (trecho extraído do inventário do Convento e Igreja de Santo Antônio, IPHAN, caixas 510 a 512).

A contextualização do convento implica pensá-lo não apenas do ponto de vista da organização religiosa, mas também quanto a seu papel na vida e na história da cidade em que se localiza. Sua idade, seu tombamento pelo patrimônio federal, remetem a um caráter de “monumento histórico”, de palco de acontecimentos significativos para a vida do país e da cidade. No entanto, constata-se uma certa defasagem entre as expectativas geradas em torno de sua importância e a realidade das análises encontradas a seu respeito. Apesar de referências ao prédio proliferarem, tanto em narrativas sobre a origem e o desenvolvimento do Largo da Carioca (como, por exemplo, Coaracy, 1965), ou naquelas sobre os templos e festas religiosas da cidade (Maurício, 1977; Azevedo, 1969), nessas obras, porém, o convento ocupa apenas trechos de capítulos, no máximo um capítulo inteiro. Talvez porque, como alerta Coaracy (1965: 107), tanto o convento como o Largo da Carioca, embora indissoluvelmente ligados à vida da cidade, sejam “locais que não assistiram a grandes feitos de nossa história”, o que o autor atribui à exigüidade do espaço aí disponível para aglomerações ou manifestações populares

Há apenas uma obra de fôlego dedicada exclusivamente ao convento, a de fr. Basílio Röwer, frade da OFM, que aproveitou seu período de instalação naquela casa para percorrer os arquivos e compor sua história, a qual se confunde com a história da própria ordem religiosa no Rio de Janeiro (Röwer, 1945). Porém, apesar de seu rigor e detalhismo, fr. Röwer produziu um estudo excessivamente compilativo, de acordo com os cânones historiográficos da época, e compôs uma cronologia cujos marcos são os governos provinciais da Ordem.9 Isso significa dizer que, para uma reapropriação da história do convento que o articule aos demais templos da cidade, às ordens religiosas e à arquidiocese, ou à política local e nacional, ou à história do Rio de Janeiro, seria preciso remontar a obra de fr. Röwer, e mesmo voltar às fontes primárias, para trabalhar o material existente a partir de novos problemas. Entretanto, mesmo inexistindo uma história menos convencional do convento, gostaria de destacar alguns elementos do conjunto de “fatos pitorescos” presentes nas obras consultadas.

O convento foi instalado no Rio de Janeiro no início do século XVII. Apesar de os franciscanos terem celebrado seus 500 anos de Brasil no ano 2000 (pois a “Primeira Missa” no país foi celebrada por um confrade que acompanhava a esquadra de Cabral...), a OFM começou sua implantação efetiva no país a partir de 1585, em Olinda, chegando ao Rio de Janeiro em 1592 (Coaracy, 1965: 109;

o convento de sAnto Antônio

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Röwer, 1945: 7). Inicialmente instalados na ermida de Santa Luzia, no Morro do Castelo, os franciscanos transferiram-se em 1607 para o Outeiro do Carmo, às margens da Lagoa de Santo Antônio,10 a fim de nele construírem seu convento, em terras doadas pela Câmara e pelo governador Martim de Sá. E “Santo Antônio”, que coincidentemente já nomeava a lagoa, tornou-se o nome tanto do morro, como do convento, que adotou para si e sua igreja o santo como patrono.

A doação das terras aos franciscanos foi justificada como uma forma de com-pensação pelos “serviços que prestariam à população”. E pelos mesmos serviços, receberam ainda o privilégio de controlar na cidade, a partir dessa data, a devoção aos dois maiores santos do franciscanismo: em honra a Santo Antônio e São Fran-cisco de Assis, somente eles poderiam celebrar culto público, ficando proibido que qualquer outra igreja, capela, ermida ou altar invocassem esses santos, ou que ir-mandades os tivessem como oragos.11 Assim, detendo a exclusividade, mas também a responsabilidade de estimular o culto a São Francisco na cidade, os franciscanos apoiaram a criação da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência (VOT), que teve início em 1619 (Röwer, 1945: 306-307; Coaracy, 1965: 117), e que posteriormente se transformou em uma das confrarias mais ricas e poderosas da cidade. A VOT organizou-se inicialmente em uma capela no interior da Igreja conventual e, mais tarde, à medida que se consolidou, construiu um templo próprio, a Igreja de São Francisco da Penitência, ao lado da Igreja de Santo Antônio (id., ib.; Maurício, 1977: 17), onde até hoje está localizada.

Mas além do culto religioso, do estímulo à devoção aos santos, que outros serviços prestaram os franciscanos à população para justificar tais privilégios? Uma das primeiras atividades dos frades, característica da Ordem, foi a de auxiliar os pobres, através do recebimento de esmolas e de sua redistribuição aos mais neces-sitados, aos quais ofereciam alimentos e cuidados com a saúde (Azevedo, 1969). Há referências também à construção pelos frades de um cemitério de escravos, cujos corpos anteriormente eram enterrados em covas clandestinas, ou mesmo lançados ao mar por senhores mesquinhos demais para arcar com as despesas de sepultamento (Coaracy, 1965: 118-119). Há citações à enfermaria do convento, que teria atendido à população em diversos momentos de epidemia, à ação dos frades como capelães das fortalezas, como confessores dos condenados à morte e dos doentes do Hospital da Misericórdia (Azevedo, 1969: 134). Parece que a expulsão dos jesuítas, em 1759, ampliou a participação dos franciscanos na vida da cidade; participação essa que se intensificou ainda mais durante a permanência da Corte Portuguesa no Brasil, tanto porque os frades se tornaram confessores da nobreza, como pela devoção particular que D. João VI dedicava a Santo Antônio (Lira, 1956: 223). Por fim, havia as qualidades propriamente dos eventos do convento. Tanto suas festas, como os sermões de seus padres aparecem na literatura como sendo capazes, no passado, de atrair multidões, ocupando lugar de destaque na vida religiosa da

cidade (Azevedo, 1969: 134). Há menções ainda ao convento como um centro de difusão de conhecimento

no país, pelos estudos de Teologia e Filosofia promovidos no local. Diz Azevedo que os frades eram “os mestres mais autorizados e os mais doutos” (id., ib.). De-terminados frades aparecem com destaque na literatura, seja por suas atividades científicas, como fr. Vicente de Salvador, autor da primeira História do Brasil, e fr. Mariano da Conceição Veloso, autor dos onze volumes da Flora Fluminen-sis, também ilustrados por fr. Francisco Solano; seja pelas de pregação, como fr. Francisco de São Carlos e fr. Francisco do Monte Alverne; seja pelas caritativas, como fr. Fabiano de Cristo, porteiro e enfermeiro do convento (Azevedo, 1969; Röwer, 1945).

O prédio, portanto, teria tido várias funções além de casa de frades, mas todas essas dimensões ou momentos da vida do convento são apresentados nos textos consultados de forma confusa, sem que se entenda com clareza suficiente a duração, a combinação e as implicações de cada uma delas.

Do conjunto de episódios citados com recorrência, gostaria de destacar dois, visto que durante o trabalho de campo certas “conseqüências” suas se fizeram manifestar. O primeiro deles diz respeito ao papel protetor de Santo Antônio em relação à cidade do Rio de Janeiro. Embora o padroeiro da cidade seja São Sebas-tião, Santo Antônio parece ter assumido uma posição central em ao menos uma grande contenda. Quando das invasões francesas do século XVIII, o governador à época, Fernando Morais, vendo-se acuado pelo inimigo, enviou ao convento uma patente de capitão de infantaria para ser ofertada ao santo, a fim de que os frades, em troca, colocassem sua imagem nos muros do convento, em auxílio às tropas portuguesas. Isso foi feito e havendo os portugueses derrotado os franceses e a vitória atribuída à colaboração do santo, o convento passou a receber, entre 1711 e 1911, o soldo correspondente à patente militar de Santo Antônio, que chegou a ser promovido a sargento-mor (1810) e a tenente-coronel (1814). A imagem do santo que derrotou os franceses é referida pelos cronistas como de destaque na vida do Rio de Janeiro, diante da qual as pessoas se reuniam para fazer orações. Chamada de “Santo Antônio do Relento”, porque ficava no muro, de frente para o Largo da Carioca, ela era iluminada dia e noite por uma lâmpada, para garantir que o santo se mantivesse alerta na proteção da cidade (Lira, 1956: 223; Maurício, 1977: 20).

Refiro-me a esse episódio porque, além de cristalizar um exemplo de “promes-sa” feita ao santo que envolve diretamente diversas instâncias da esfera pública (o Exército, o Poder Executivo etc.), encontrei, em campo, a mesma imagem de Santo Antônio sendo ainda cultuada, embora sem a mesma ênfase. Em 2001, a imagem permanecia em uma parede do convento, com a lâmpada permanentemente acesa. Só que diante do caos do sistema elétrico do país naquele ano, que trazia o risco iminente de cortes de luz (“apagão”), a lâmpada havia sido substituída por outra,

o convento de sAnto Antônio

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mais moderna, de baixo consumo, garantindo uma iluminação constante. O segundo episódio diz respeito à crise que se abateu sobre os franciscanos

nos séculos XIX e XX. Durante o Império, no governo de Pedro II, um conflito aberto eclodiu entre a monarquia e o papado pelo controle do aparelho eclesiástico no país, pondo em xeque o regime de padroado, até então vigente de fato (Hoonaert et al., 1992; Oliveira, 1985). O conflito implicou uma série de limitações, impostas pelo monarca, às ordens religiosas, que culminou em 1855 com a proibição do noviciado, isto é, com a interdição de ingresso de novos membros. Esta proibição, que vigorou até o advento da República, dificultou a reprodução das ordens, e fez com que o clero religioso no Brasil se reduzisse bastante. No caso dos franciscanos, quando a interdição foi revogada, restava apenas um frade em toda a província da Imaculada Conceição. E foi apenas com o regime republicano – e a conseqüente separação entre Igreja e Estado, a qual deixava à Igreja Católica a liberdade de se organizar da maneira que julgasse apropriada – que franciscanos da Alemanha puderam vir em auxílio à província brasileira, para recompor seus quadros junto com novas vocações nacionais (Röwer, 1945: 275-297).

A crise de quadros ocorreu simultaneamente e agravou uma crise de patrimônio. O voto de pobreza e as características mendicante e urbana da OFM haviam impe-dido que os franciscanos explorassem, como outras ordens, grandes propriedades rurais. A proibição de enterros em igrejas, datada de 1850, já lhes havia ocasionado a perda de uma de suas fontes de renda, o sepultamento. A redução do número de frades provocou uma queda nos serviços prestados à sociedade e, conseqüentemen-te, uma diminuição no volume de espórtulas recebidas. O prédio, esvaziado, teve partes ocupadas pelo poder público, para outras funções: em 1854, para Arquivo Público; em 1855, como Júri; e em 1885, como quartel, função que durou até 1911 (Marciniszyn, 1982: 28). Para garantir a sobrevivência dos frades que restavam, parte do patrimônio em terras dos franciscanos no Morro de Santo Antônio foi vendida para a VOT, ou para particulares. As crises e o uso do prédio para outras funções trouxeram uma série de prejuízos físicos ao convento, que sucessivas res-taurações ao longo do século XX tentaram minorar, mas que implicaram alterações substanciais em sua arquitetura. Isso apesar de se tratar de um prédio tombado pelo patrimônio federal desde 1950 e com sua sacristia sendo considerada até hoje “a mais linda do Rio de Janeiro” (Prefeitura, 1997: 20).12

Por que ressaltar esse aspecto? Porque ao ler as referências sobre o passado do convento, muitas vezes não consegui identificar em campo as descrições sobre o espaço, a decoração, as instalações e a topografia do terreno pertencente aos franciscanos. Mesmo recorrendo a mapas, desenhos, fotos, as mudanças foram tais que algumas informações da literatura se tornaram verdadeiramente obso-letas, como, por exemplo, as contidas em Azevedo (1969), sobre os “belíssimos azulejos portugueses que ornavam a Igreja”. Ou mesmo uma foto do interior da

igreja contida em Röwer (1945), que contrasta vivamente com a imagem atual do templo. As diferenças fizeram-me várias vezes duvidar de que se tratava do mesmo templo que estava freqüentando no trabalho de campo. Assim, apesar de se tratar de um prédio com uma certa “densidade histórica”, a descrição da configuração do espaço não pode ser respaldada pela literatura e foi construída principalmente a partir das notas etnográficas.

2 – A configuração do espaço: uma descrição

A edificação constitui-se de um bloco de maior volume (três pisos), destinado ao Convento e Retiro Monástico, ligado à Igreja de Santo Antônio, aberta ao público para culto e atividades religiosas (...).Sua pedra fundamental foi lançada em 04.06.1608, no morro de Santo Antônio (ex-Outeiro do Carmo) e a obra se estendeu por várias décadas, formando um só conjunto com a construção em 1651 da Capela da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência (trecho extraído do inventário do Convento e Igreja de Santo Antônio, IPHAN, caixas 510 a 512).

Em termos de edificação, quem olha para o convento do exterior, a distância, a partir do Largo da Carioca, tem a visão de um prédio longo, aparentemente indi-ferenciado, localizado no que restou da derrubada do Morro de Santo Antônio13, como pode ser visto na foto da página 277. Mas como lemos na citação acima, o que as pessoas chamam genericamente de “o Convento” ou de “o Santo Antônio” possui divisões internas. Há uma parte estritamente conventual, isto é, a residência dos frades, que corresponde à clausura, e que é fechada ao público. Há, entretanto, uma parte do prédio “aberta (...) para o culto e atividades religiosas”, que engloba a Igreja de Santo Antônio e algumas áreas a seu redor. E, finalmente, existe ao lado da Igreja de Santo Antônio uma outra igreja, a “Igreja de São Francisco da Penitência”,14 que não pertence à OFM, mas sim à VOT, e que durante o período de campo, por assim dizer, não “funcionava”, por estar em restauração. Assim, de uma forma esquemática, o Convento seria assim dividido:

o convento de sAnto Antônio

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Figura 1

Na Figura 1, a unidade (a) corresponde à residência dos frades (e (a’) seria seu anexo), a unidade (b) à Igreja de Santo Antônio, pertencente ao convento, e a unidade (c) à Igreja de São Francisco, pertencente à VOT. Como meu objetivo em campo era recompor formas de sociabilidade e participar das práticas desenvolvidas pelos freqüentadores enquanto os observava, o foco principal de minha atenção ao longo de todo o trabalho esteve nas áreas abertas a todos os visitantes. Portanto, a maior parte das descrições da tese foi composta pelo viés do atendimento ao público, concentrando-se na área (b) e na parte externa das áreas (a) e (a’). Por outro lado, mesmo que os freqüentadores gravitem principalmente em torno da Igreja de Santo Antônio, o termo usado por eles para designar o local é Convento.

O acesso ao Convento, em suas três unidades, é o mesmo: ele se dá seja por uma escadaria relativamente íngreme, seja por dois elevadores, com horário de funcionamento determinado e com seus respectivos ascensoristas. Se a escada-ria garante maior autonomia, e é um meio privilegiado por alguns pagadores de promessa, pelo sacrifício contido em sua utilização, os elevadores garantem aos muitos visitantes de idade avançada ou com problemas de saúde que mantenham sua freqüência ao local. Além de facilitar o acesso, os elevadores concentram gente e por isso eles são também utilizados para a fixação e distribuição de avisos: o cardápio semanal do almoço, os cursos, palestras e retiros que serão oferecidos, as sínteses da programação mensal ou semanal, o programa e convite da festa etc.

Embora seja possível deambular pela parte aberta do convento e compor um roteiro singular de visitação, a Igreja de Santo Antônio é um lugar privilegiado, pois é nela que se realizam as celebrações religiosas, tais como missas, bênçãos, confissões, rezas do rosário, hora santa etc.15 Além de participarem dos rituais

coletivos, os visitantes utilizam a Igreja para orações individuais, meditação, adoração das imagens etc.

A estrutura interna deste templo parece seguir padrões tradicionais francisca-nos: um altar-mor com a figura de Santo Antônio, padroeiro do convento, e dois altares laterais: um do lado da “epístola” (direita do público), com a imagem de São Francisco de Assis; outro, do lado do “evangelho” (esquerda do público), com uma imagem de Nossa Senhora.16 Também do lado da epístola há a capela de N. S. da Conceição, onde a VOT se originou e a quem pertence, mas que além de fechada por grades, encontra-se coberta por um grande plástico, pois está em restauração. Quase em frente à capela, há o confessionário, que funciona em horários regulares, num esquema de rodízio de padres. A igreja tem ainda um plano superior, destinado ao coro, onde se localiza o órgão, tocado excepcionalmente durante algumas ce-lebrações do ano, cujo acesso é fechado ao público. Nas paredes do templo, além de azulejos narrando episódios da vida de Santo Antônio17 e de um quadro em que ele aparece junto a uma criança, diante da Virgem Maria com o menino Jesus nos braços, há imagens de outros personagens, distribuídas conforme a Figura 2: São José, um Jesus Crucificado, um quadro do beato fr. Galvão. Na frente do coro, uma escultura com os 18 mártires franciscanos do Japão.

Ao lado da nave principal da Igreja, há uma capela lateral, que possui imagens transportadas de outros lugares do convento, oriundas de reformas: a imagem de Ecce Homo, isto é, do Senhor Bom Jesus dos Aflitos, com uma imagem do Senhor Morto a seus pés; o altar de Nossa Senhora dos Anjos, sob o qual se encontram os restos mortais de fr. Fabiano de Cristo, “o santinho do convento”,18 e na parede, uma imagem de Santa Clara.19

Saindo da igreja por uma porta lateral, encontra-se a portaria, onde uma pe-quena janela se abre para o contato com os visitantes, pela qual um frade-porteiro recebe os que querem obter informações, oferecer donativos, encomendar uma missa, benzer uma imagem (ver também Maurício, 1977: 9). Há um pesado portão que controla a entrada no claustro. A portaria não é sua única via de acesso, pois há três portas na igreja que também dão passagem à clausura. Porém, como apenas duas dessas portas são utilizadas, e mesmo assim só para deixarem aqueles que celebram entrarem e saírem do altar, é a portaria que aparece como a fronteira mais clara entre público e privado no convento.

Ao lado da portaria, há um vasto salão, com belos (mas poucos) quadros e móveis antigos – o salão de visitas, ou salão nobre, ou parlatório –, que é utilizado pelos frades para o aconselhamento e para conversar com visitantes, sem que es-tes tenham de ingressar no claustro. Também perto da portaria, já mais próximo à escada, uma mesa é eventualmente instalada, para a venda de livros, notadamente quando algum frade do convento lança uma nova obra.

Entretanto, se a saída da igreja se der pela porta principal, vê-se o adro. Nele,

o convento de sAnto Antônio

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há duas barracas de madeira destinadas à venda de livros e artigos religiosos e à venda de comida e bebida. Essas instalações, comumente chamadas de “barraqui-nhas”, intitulam-se em seus letreiros, respectivamente, “Boutique Santo Antônio” e “Bar Santa Clara”, a primeira funcionando em todos os dias úteis, e a segunda, apenas às terças-feiras.

Por trás das barraquinhas, um tapume de madeira separa a Igreja de São Fran-

o convento de sAnto Antônio

Figura 2 – Parte interna da Igreja

1. Altar-mor com Santo Antônio2. Altar-lateral com Nossa Senhora3. Altar-lateral com São Francisco4. Capela da VOT, em restauração, fechada

para reformas5. Imagem de Jesus Crucificado, presa na parede 6. Quadro de fr. Galvão7. Imagem de São José8. Quadro de Santo Antônio, com genuflexório

e caixa de coleta

9. Altar de N. S. dos Anjos, com S. Francisco (capela lateral)

10. Restos mortais de fr. Fabiano de Cristo, sob o altar (id.)

11. Santa Clara (id.)12. Altar de Bom Jesus dos Aflitos13. Imagem do Senhor Morto sob o altarg = grade do altarp = portasp’ = portas para o claustroj = janela da portaria Figura 3 – Áreas de circulação aberta

B1 = Boutique Santo AntônioB2 = Bar Santa ClaraB3 = Barraca da PechinchaE = ElevadoresQ = Queimadores de velaWC = Banheiros no subsolo

São assinaladas:A Igreja da VOT (isolada)A Igreja de Santo AntônioA portaria (controle do acesso ao claustro)O parlatório (onde há o aconselhamento)Sala usada pela Pia UniãoCozinha para o almoço das terças-feiras (anexo)Área do almoço

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cisco da Penitência, a da VOT, do resto do convento. Fui a essa igreja em algumas ocasiões durante o campo, mas ela se encontrava em restauração, abrindo em poucos horários para visitas guiadas e sem a realização de celebrações. Portanto, isolada e fechada, ela não estava relacionada às práticas religiosas e às interações abordadas na pesquisa, e por isso deixo de fora uma descrição mais detalhada de seu espaço.20

As atividades da Pia União de Santo Antônio, associação de leigos criada em louvor do santo, ocupam um espaço importante no convento. Essa associação é a responsável pelo almoço das terças-feiras, cuja receita contribui para financiar atividades caritativas, pelo funcionamento do Bar Santa Clara, pela venda de roupas usadas, pela distribuição de cestas básicas e de remédios aos pobres. O almoço é servido numa área coberta, localizada sob os pilares do anexo do convento, e preparado em uma cozinha especialmente destinada a essa atividade, no mesmo anexo. A venda de roupas é feita em uma barraca de plástico. Para a armazenagem e distribuição de cestas e remédios, bem como para as demais atividades de orga-nização da Pia União, há uma sala destinada ao seu uso, diante da qual uma fila de pessoas se forma, semanalmente, à espera de alguma ajuda.

Ainda na lateral esquerda do convento, próxima à área de almoço, há os “quei-madores”, isto é, a área destinada a queimar velas em honra de Santo Antônio, de outros santos ou das almas, onde alguns freqüentadores aproveitam e deixam outras oferendas: buquês de noiva, café, pipoca, fitas, imagens etc.

Por fim, há no subsolo do convento dois banheiros destinados ao público, com acesso cobrado (cinqüenta centavos) e uma funcionária destinada à cobrança e manutenção da limpeza ao longo de todo o dia.

Quanto ao atendimento dos freqüentadores nas instalações citadas, diferentes agentes se combinam, “especializando” sua atuação. Essa diversidade será tratada em detalhe nos próximos capítulos.

3 – A complexidade do espaço

Das três unidades que parecem estar lado a lado para compor o Convento – Igreja de Santo Antônio, Casa dos Frades e Igreja de São Francisco –, apenas duas (a Igreja de Santo Antônio e a Casa dos Frades) fariam parte do convento stricto sensu, compondo a casa da OFM. A Igreja de São Francisco seria a capela de uma associação cultual, a VOT, e, embora colada à Igreja de Santo Antônio, seria de propriedade dessa associação. Mas se observadas no dia-a-dia, essas três partes são percebidas como inter-relacionadas. Isto é, apesar de haver regras diferentes de acesso, proprietários distintos, funções específicas, territórios aparentemente bem demarcados e abertura ao público em graus diferentes, há relações entre essas unidades que influem na vida do convento e em sua configuração total. Mais do que uma justaposição de espaços, trata-se de interseções e interações que é preciso

considerar.O primeiro conjunto de relações a ser mencionado é o que existe entre o

convento e a Igreja de São Francisco, quanto à proximidade e à convivência de duas entidades em terrenos tão próximos. Os frades do convento, ao serem interpelados sobre o tema, assinalaram que VOT e OFM são duas instituições distintas, uma completamente independente da outra, conforme sua definição jurídica. Só que na prática, as coisas não parecem ser tão autônomas assim. O acesso à igreja da VOT se dá por dentro da área pertencente à OFM, há membros da VOT freqüentando assiduamente o convento e participando regularmente nas atividades do local, há frades da OFM ligados à restauração da igreja da VOT, e outros supervisionando a gestão de seus bens. Por outro lado, a capela original da VOT ainda está dentro da Igreja de Santo Antônio, o que faz com que, em alguma medida, suas áreas se recubram. Assim, apesar das distinções jurídicas e das tentativas de demarcar espacialmente as áreas de cada entidade – o tapume que isola a Igreja de São Francisco como um marco simbólico dessa demarcação –, na verdade há uma certa “mistura”, ou superposição entre elas.21

O segundo conjunto de relações a ser explicitado seria aquele relacionado a uma dupla função do convento, que é uma casa de frades, mas cuja igreja é aberta ao atendimento diário do público, organizando-se como um santuário.22 Esse conjunto de relações merece um pouco mais de atenção, visto que se refere diretamente às questões que interessam à pesquisa.

Trata-se de uma ambivalência estrutural e estruturante do lugar, que vai mar-car não apenas o espaço, como também a programação das atividades: parte do funcionamento do convento está voltada às necessidades internas da casa; parte, ao atendimento do público. Na organização da vida do convento, há uma tentativa de gerir essa ambivalência circunscrevendo cada uma dessas funções a espaços determinados. Assim, como foi dito, existem áreas abertas aos freqüentadores, como a Igreja de Santo Antônio e o espaço a seu redor; e outras mesmo especial-mente construídas para esse atendimento, como as dependências do anexo feitas para atividades da Pia União. Mas há outras que permanecem de uso exclusivo dos frades, porque são sua residência, nas quais os leigos só podem ingressar como convidados, e mesmo assim com restrições. É a “clausura”.

Foi mencionado que essa separação entre espaços abertos ao público e espaços fechados à visitação se consagra na portaria. Trata-se de uma das instalações mais expressivas do local, que marca os limites entre as funções de atendimento do convento (igreja, lugar de oração) e a de residência dos frades (claustro, clausura), funcionando como um canal de entrada ao “mundo dos frades”, e destes ao mundo exterior. A portaria assinala, por sua capacidade de se tornar intransponível, que um convento pode ter muitos aspectos semelhantes a uma prisão, ou a uma fortaleza,23 funções que, inclusive, este convento em particular desempenhou no passado.

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Os conventos, quanto a suas funções internas de casa de frades, voltados aos interesses de manutenção e reprodução da Ordem Religiosa, com áreas de acesso restrito, controle na portaria, fazem lembrar a abordagem goffmaniana de um convento como uma instituição total (Goffman, 1974). Para Goffman, uma instituição total é

um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, (...) levam uma vida fechada e formalmente administrada (id.: 11) [cujo] caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico (id.: 16).

Ainda de acordo com este autor, um convento seria um dos tipos de instituição total, juntamente com abadias, mosteiros e outros claustros, que estariam destinados “a servir de refúgio do mundo, embora muitas vezes sirvam também como locais de instrução para religiosos” (id.: 17). Portanto, no Convento de Santo Antônio, há uma separação deliberada do “mundo dos frades”, com o fechamento do claustro, seu silêncio, o portão que o controla, o que contribui para torná-lo “um lugar fora do mundo”, ou ao menos apartado da vida cotidiana.

As observações de campo permitem, entretanto, relativizar a interpretação goffmaniana de um convento como uma instituição totalmente fechada, com con-trole do acesso ao exterior.24 O isolamento entre o “mundo dos frades” e o “mundo exterior” não é completo. Primeiro, porque há leigos que entram no claustro. As regras de acesso permitem que os funcionários do convento, os convidados dos frades, ou seus parentes, e mesmo pessoas que precisem de um “atendimento” mais demorado ou isolado, entrem. O controle existente prevê que em determinadas partes da clausura, um visitante para entrar precise da autorização expressa do guardião da casa. E em outras partes, ninguém de fora entrará de forma alguma, visto que as Constituições Gerais da OFM recomendam a manutenção nas casas de uma parte exclusiva aos frades.25 Essas regras de acesso tendem, por uma questão de gênero, a se tornar mais rígidas no caso de mulheres, pois se trata de uma ordem masculina. Mas, mesmo controlada, a entrada de leigos na clausura acontece.

Por outro lado, esse mesmo portão se abre todos os dias, várias vezes ao dia, para que os frades saiam. Eles saem para ouvir confissões, para aconselhar, para dar bênçãos. Além do serviço religioso que eles desempenham junto aos freqüentadores do convento, eles também exercem atividades em outros locais, como universidades, colégios, outras igrejas etc. A clausura não significa um afastamento completo do mundo: há brechas que permitem uma aproximação, seja por um movimento de fora para dentro, seja por um movimento de dentro

para fora. Como as permissões de trânsito nas diversas partes do convento acabam por

assinalar diferentes graus de proximidade com “o mundo dos frades”, o controle do acesso e suas regras terminam transformando o direito de entrada no claustro em um sinal de distinção entre os leigos, uma espécie de honraria. Nos almoços, era comum que as pessoas que já tivessem entrado no claustro mencionassem o fato, criando uma clivagem entre os que entram e os que não entram, os íntimos e os anônimos, os que conhecem e os que não conhecem “a casa deles”...

Dá-se assim no convento um certo jogo entre “dentro”e “fora” do claustro. Por exemplo: a porta da Igreja que não se abre dá para o pátio interno do convento e está localizada na capela lateral. Ela é vazada, isto é, feita de traves de madeira, permitindo que qualquer visitante admire através dela a beleza do claustro, as ar-cadas do pátio, o poço, o jardim cuidadosamente preservado, o canto dos pássaros nos viveiros. Porém, todos podem ver, mas nem todos podem entrar. A curiosidade despertada por essa visão permanece inatendida.26

Mas uma vez por ano, no dia 13 de junho, festa de Santo Antônio, o controle se suaviza e as portas do claustro se abrem. Neste dia, quando o número de pessoas é muito grande, parte do claustro tem de ser aberta para facilitar a circulação e atender a confissões, e qualquer leigo pode ingressar no pátio interno do convento. Essa inversão do cotidiano demonstra tanto a relatividade do isolamento total dessa instituição, como em que medida o acesso ao claustro pode se construir, através da alternância de interditos e permissões, em um valor para os leigos.

A ambivalência estrutural do convento, simultaneamente casa de frades e santuário, ao mesmo tempo voltado para dentro e para fora, contribui, portanto, para relativizar a idéia de uma instituição total. Talvez pudéssemos dizer que se trata de uma instituição com tendências a criar uma espécie de universo à parte para seus membros, mas que, simultaneamente, destina grande parte de seu tempo e recursos humanos ao atendimento das demandas que vêm de fora.

A coexistência desses movimentos para dentro e para fora permite também perceber que, apesar das demarcações entre a parte do convento destinada à moradia dos frades e aquela destinada ao atendimento do público, há uma série de relações que se estabelece entre elas.

4 – Uma “ilha de paz no centro da Cidade”

[Há] uma pesada porta que dá acesso ao claustro. Transposta essa porta, o homem se sente inteiramente dominado pela tranqüilidade que se respira na-quele quadrado de terra cultivado em jardim, circundado por galerias largas, em cujo piso repousaram, e repousam ainda, os restos mortais de ilustres vultos cujos nomes figuram na história religiosa e pátria (Maurício, 1977: 9).

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Apesar das violentas transformações sofridas neste século em seu entorno, o conjunto com seu amplo frontão branco, valorizado pela relativa elevação e isolamento, consegue ainda se impor no cenário atual, determinado pela verticalização acelerada da cidade. Do adro da igreja, de onde se desfruta uma ampla vista do centro comercial do Rio e de seu intenso movimento de mágicos e vendedores ambulantes, é possível perceber a sensação de domínio que tal localização oferecia (Pre-feitura, 1997: 19).

Aqui o visitante respira fundo e sente-se em contato direto com as idades passadas. É um recanto que convida ao recolhimento e à meditação. Milagre conventual, pois que está plantado bem no centro desta barulhenta cidade do Rio de Janeiro (jornal A Noite, 17/11/1947).

As referências acima citadas, encontradas na literatura, apresentam o Convento de Santo Antônio como um lugar “extraordinário”, que de alguma forma se destaca do tempo e do espaço ao seu redor. Os elementos que permitem identificar essa excepcionalidade estão referidos à tranqüilidade que se pode desfrutar no prédio, à sua antigüidade, à sua permanência ao longo da história, à singularidade de sua arquitetura, à vista que se tem a partir de seu adro, e estão relacionados ora à parte fechada ao público (como nas referências ao claustro), ora à parte aberta (como nas referências ao conjunto do edifício e à vista do adro). A ida ao convento parece capaz de provocar no visitante uma sensação positiva de “saída do mundo”, de “fuga do presente” – e lembremos novamente de Goffman (1974: 17), considerando que ser um refúgio do mundo é uma das características de um convento.

Referências semelhantes às extraídas da literatura também foram encontradas na fala dos freqüentadores, ao mencionarem as razões para virem ao local. Muitos afirmaram vir ao convento por se sentirem vinculadas ou atraídos não por Santo Antônio, mas pelo próprio edifício religioso:

Estou aqui para dar uma relaxada, venho aqui porque o lugar me atrai, a arquitetura do convento me atrai, o quanto de histórias que ele tem, mais de trezentos anos. O lugar me atrai. Venho pela arquitetura, há poucos lugares como esse no centro do Rio[Eu venho quase todo dia], há mais de um ano, desde que eu estou trabalhando aqui no centro. Venho dar uma descansada na cabeça, refletir, arejar a cabeça. Gosto daqui, aqui é um lugar legal (Matilde, 2/10/2001).

Venho desde criança (...), procuro vir ao menos de quinze em quinze dias. Toda vez que eu estou na cidade [no centro da cidade], procuro dar uma pas-sadinha aqui, para fazer uma higiene mental. Aqui me passa uma sensação de tranqüilidade, isso aqui é uma ilha no meio da multidão (Tatiana, 2/10/2001).

Assim, características “factuais” do convento são retomadas e reinterpretadas como valores positivos, que confeririam a esse edifício religioso um caráter sui generis, que, em muitos casos, estimularia o comparecimento a ele. O que a atri-buição dessas características ao convento lembra é que este prédio não é apenas um espaço “neutro”, mas socialmente qualificado, isto é, carregado de significados, servindo de suporte a uma série de representações sociais.

Quanto às qualidades atribuídas ao prédio, elas podem ser examinadas em maior detalhe. Sobre a antigüidade, apesar de ter sido dito no início deste capítulo que o prédio sofreu várias alterações, tanto arquitetônicas como de função, essas mudanças ou são desconhecidas, ou são irrelevantes para a maior parte do público. É uma imagem de “permanência”, de “continuidade com o passado”, de uma certa “densidade histórica”, que é referida como uma das características tanto do edifício em si como do culto a Santo Antônio desenvolvido no local. “Há mais de trezentos anos” é uma expressão que surgiu com alguma recorrência nas entrevistas, para qualificar determinadas práticas que se pretende destacar e reforçar, embora, apesar de uma aparente tradicionalidade, isso possa não ser realidade.

A tranqüilidade que nele se pode desfrutar, a poucos metros de um movimento intenso, também é um elemento ressaltado pelos agentes e pela literatura como uma das qualidades do convento e como uma das razões para a freqüência ao local. Houve uma série de depoimentos, além dos acima citados, em que os entrevistados disseram “fugir” do trabalho em algum intervalo, todos os dias, ou uma vez por semana, para espairecer no convento, que seria uma espécie de oásis no meio da “correria do dia-a-dia”. Parecem se combinar para essa sensação de tranqüilidade a elevação do prédio e seu relativo isolamento, a presença de áreas verdes e do canto de pássaros, mas também a própria organização das atividades do convento, regidas pela temporalidade própria às celebrações religiosas, reguladas principalmente pela liturgia católica, o que lhe conferiria um ritmo particular, menos acelerado que o do resto da “cidade”.

Tanto a antigüidade como a tranqüilidade, entretanto, parecem ser amplifi-cadas pelo contraste que o convento estabelece com a área a seu redor, visto que ele está “plantado bem no centro dessa barulhenta cidade do Rio de Janeiro”. E mais ainda, por estar, dentro dessa região já movimentada, localizado em um sítio específico, o Largo da Carioca, particularmente agitado, enquanto um ponto de passagem de um volume expressivo de meios de transporte e pedestres, um local de espetáculos populares (Carvalho, 1997), tido também como violento e perigoso, pela ação de punguistas. Portanto, a especificidade de sua localização contribuiria para ressaltar ainda mais suas singularidades, porque as diferenças entre ele e seus arredores seriam muito grandes.

Seu caráter de monumento histórico, de fragmento antigo, de “fóssil vivo”,

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também ficaria ainda mais cristalizado pelo contraste arquitetônico estabelecido entre o convento e os prédios ao redor. Localizado próximo à Avenida Chile, área da cidade conhecida nos anos 1980 por “Triângulo das Bermudas”, em vir-tude dos edifícios faraônicos das estatais nela construídos,27 o convento parece oferecer uma espécie de contraponto horizontal e colonial à arquitetura vertical e contemporânea destes prédios, destacando-se ainda mais na paisagem.

Cabe lembrar que a existência do convento e o contraste que ele estabelece com os demais prédios não são resultados de “processos naturais”, mas sim fruto de um processo histórico, social, marcado por uma série de decisões políticas (culturais, urbanísticas e mesmo religiosas) que levaram à sua preservação e restauração, mas que, em determinados momentos, chegaram a ameaçá-lo de demolição.28 E mais, que a configuração atual do Largo, um grande espaço aberto e arborizado, data dos anos 1970/1980, quando a construção do metrô no Rio de Janeiro promoveu a remoção de inúmeros prédios do entorno (Carvalho, 1997).

O caráter sui generis atribuído ao convento é passível de uma leitura eminente-mente secularizada – o que fica exemplificado por seu “tombamento” pelo serviço de patrimônio federal, procedimento que implica um reconhecimento público, civil da excepcionalidade de um prédio. Mas suas qualidades extraordinárias também podem ser investidas de um sentido religioso, passando a ser lidas como “sinais” de manifestação de algo divino, e a excepcionalidade do prédio assume outro registro. Além de um “refúgio deste mundo”, o convento pode ser visto como um pedaço “do outro mundo” na superfície terrestre.

Na primeira entrevista que realizei no local, antes mesmo de definir-me pelo convento como locus da pesquisa, essa questão apareceu na fala de fr. Marcílio. Explicando o funcionamento do convento, o frade destacou os cuidados dispensa-dos aos freqüentadores, numa preocupação com o “respeito pelo povo”, mas que acabava conferindo ao convento uma certa dimensão celestial:

A igreja sempre limpa, lavada, os acessos bem varridos. Reclamavam dos banheiros, há banheiros limpos agora, com uma funcionária só para isso. Há mais ou menos vinte funcionários na casa. Isso aqui é um cantinho do céu (16/8/2000).

Ou quando conversava no adro com uma das freqüentadoras assíduas, D. Nadir, que comparece ao convento todas as terças-feiras, e ela me disse, a propósito da imagem de São Pedro que fica ao lado da saída de um dos elevadores:

Isso aqui é o próprio Céu, a gente chega, já está logo São Pedro na porta nos esperando... (Nadir, 6/6/2001).

Assim, há pessoas que atribuem um caráter extraordinário ao convento, mas que justificam essa excepcionalidade a elementos que associam a sinais “do outro mundo”. Nesses casos, o convento é visto como um lugar que é quase – ou já é – o paraíso, como um canal de acesso ao “Céu”, ou como um fragmento seu aqui na “Terra”, como uma via de acesso privilegiado ao sagrado, ou como sua materiali-zação no centro da cidade do Rio de Janeiro.

É interessante notar como a atribuição dessas características ao convento o torna bastante próximo da definição teológica de um santuário católico, entendido como um lugar que em alguma medida propicia um acesso privilegiado ao sagrado:

Os lugares sagrados tornam-se lugares de especial veneração e devoção, lu-gares privilegiados, onde a graça de Deus atua em condições mais propícias. (...) Os Santuários são considerados lugares privilegiados de encontro com Deus. Pois nos Santuários há um clima sobrenatural, onde se respira Deus e é possível fazer uma experiência particular com Deus, em condições mais favoráveis (Wobeto, 1982:7-8, grifos meus).

Portanto, ao definirem o convento como um “santuário”, e ao programarem os serviços religiosos que oferecem nos moldes de uma “pastoral dos santuários”, os frades do convento não estão partindo do zero, mas estão indo ao encontro de uma série de representações sociais já existentes sobre a excepcionalidade do prédio, podendo, num certo sentido, “aproveitar-se” delas – ainda que aquilo a que estou me referindo não seja um processo necessariamente consciente. A programação do convento bem como o tipo de serviços oferecidos ao público que o freqüenta parecem contribuir para reforçar essas representações, ou mesmo para provocar a idéia do convento como um lugar extraordinário.

Neste sentido, o convento seria, da perspectiva da instituição religiosa, um ponto estratégico para estabelecer um santuário. Além de localizar-se em um local de passagem no centro da cidade, pelo qual circula em todos os dias úteis um volu-me expressivo de pessoas, e de ter como patrono um santo de grande apelo, há um certo consenso social instituído de que este edifício religioso seria extraordinário, excepcional, o que facilitaria seu reconhecimento como um lugar privilegiado de acesso ao sagrado.

Notas1 Nota-se que o termo ordem é utilizado de forma ambígua, ora para falar de divisões de sexo e forma de vida entre todos os franciscanos, ora para referir-se a divisões no interior da Ordem Primeira (religiosos masculinos). Gostaria de ressaltar que a ambigüidade não é minha, mas está presente tanto na nomenclatura oficial, como no discurso dos agentes. A TOR é o ramo mais recente, incluída entre as três ordens apenas após o Concílio Vaticano II.

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2 Segundo o artigo primeiro das Constituições Gerais da OFM, “A Ordem dos Frades Menores, fundada por São Francisco de Assis, é a fraternidade na qual os irmãos, seguindo mais radi-calmente a Cristo sob a ação do Espírito Santo, pela profissão dedicam-se totalmente a Deus, sumamente amado, vivendo o Evangelho na Igreja segundo a forma observada e proposta por São Francisco” (OFM, 1988: 8). A divisão entre leigos e clérigos encontra-se no parágrafo 1 do artigo 3 das mesmas Constituições: “A Ordem dos Frades Menores é formada de irmão clérigos e irmãos leigos. Pela profissão, todos os irmãos gozam de direitos e obrigações iguais, salva-guardando aqueles que provêm das ordens sacras” (id., ib.). 3 Ordem aqui aparecendo em mais um novo sentido, o de um sacramento que “consagra” os sacerdotes católicos.4 O ingresso na ordem sendo feito de forma gradual: primeiro são feitos os votos temporários (“profissão temporária”), para só depois, no intervalo de alguns anos, fazer os votos permanentes (“profissão solene”). A justificativa é oferecer ao candidato a chance de amadurecer seu desejo de tornar-se um frade, adquirindo certeza de sua vocação, numa tentativa de evitar sua desistência da vida religiosa após os votos permanentes (perpétuos).5 No caso das custódias, elas são formadas por religiosos e casas de uma região, mas permanecem em relação de dependência com uma província. Já as vice-províncias são autônomas, mas ainda não possuem o número suficiente de frades para erigirem-se canonicamente como província.6 Essas unidades organizativas são as províncias de Santo Antônio de Pádua (Recife – PE); Santa Cruz (Belo Horizonte – MG); São Francisco de Assis (Porto Alegre – RS); Imaculada Conceição do Brasil (São Paulo – SP); as vice-províncias das Sete Alegrias de Nossa Senhora (Campo Grande – MS); do Santíssimo Nome de Jesus (Anápolis – GO); São Benedito da Amazônia (Santarém – PA); Nossa Senhora da Assunção (Bacabal – MA); e a custódia do Sagrado Coração de Jesus (Garça – SP). Os municípios entre parêntesis referem-se às sedes de cada província.7 Estes dados foram retirados da página da Internet da Província Franciscana da Imaculada Conceição (www.franciscanos.org.br) e referem-se a janeiro de 2001.8 Caso o bispo se indisponha com um frade, ele pode chegar a suspender seu uso de ordens e solicitar ao provincial que o remova para outra casa da província, fora do território da sua dio-cese. O provincial pode aceitar esse pedido ou não, dependendo do grau de cortesia que deseje demonstrar ao bispo, ou das alegações que este apresente contra o frade. Com a provisão revogada, o frade pode apenas celebrar em capelas internas do convento, e não mais em público. Durante o campo, um dos frades do convento chegou a ser proibido pelo Cardeal Arcebispo de proferir palestras na Arquidiocese, mantendo, entretanto, o direito de celebrar missas.9 Marciniszyn (1982), outro frade da província, produziu, décadas mais tarde, uma pequena história do convento, calcado em fr. Röwer, porém esta também foi composta na perspectiva da OFM.10 Para as sucessivas trocas de nome do morro, que se chamava inicialmente “de Santo An-tônio”, depois “do Carmo” e afinal novamente “de Santo Antônio”, ver Coaracy (1965). O morro havia sido inicialmente doado aos Carmelitas (por isso “Outeiro do Carmo”), que, no entanto, desistiram das terras para ficar mais próximos ao mar. Depois, passou aos franciscanos.11 Isso ajuda a explicar o fato de que apesar da devoção a Santo Antônio ser considerada uma das principais do país, haja na Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro apenas sete paróquias nas quais o santo é o padroeiro, sendo que a mais antiga é datada de 1854, quando esse monopólio já estava provavelmente em desuso (as demais são de 1944 em diante).

12 Nos arquivos do IPHAN, tem-se um registro escrito e fotográfico das mudanças sofridas pelo prédio e pela região do Largo da Carioca no século XX, bem como dos projetos de restauração de 1985 e das escavações arqueológicas realizadas no local para tentar reconstituir seu aspecto original.13 Para o processo de derrubada do Morro, ver Carvalho (1997); Coaracy (1965). No inventário do IPHAN, já citado, há matérias de jornal em finais dos anos 1930/início dos 1940 em que aparece um debate sobre se o convento deveria ou não ser demolido juntamente com o morro e a lacuna que sua destruição representaria na vida e na história da cidade. 14 Embora saiba da diferença canônica entre capela e igreja, estarei utilizando aqui a forma “igreja” para nomear o templo da VOT por ser esse o termo que as pessoas empregavam durante o campo para referirem-se a ele.15 Sobre a forma em que realizei a descrição aqui apresentada, inicialmente tentei fugir da aridez da enumeração, descrevendo o espaço a partir de um “visitante imaginário” que aos poucos fosse conhecendo o local. Mas isso implicaria estabelecer uma “forma padronizada” de relacionamento com esse espaço, e, ao contrário, creio que um dos grandes ganhos da pesquisa de campo foi perceber como ele pode ser “apropriado” de diversas maneiras. Há os que vão ao convento, tomam uma benção na igreja e “saem batido”, há os que vêm para acender velas, há os que vêm para almoçar, os que vêm rezar uma trezena, os que marcam encontros com amigos, os que assistem a missa de determinado padre, os que permanecem vários minutos sentados na murada, olhando a vista etc. E embora se possa generalizar que dificilmente um visitante deixará de passar pela igreja em algum momento da estadia no local – mesmo que por poucos minutos –, os percursos no convento não devem ser estereotipados. Portanto, neste capítulo descrevi o espaço de uma forma seqüencial, e na parte III, apresento uma análise detalhada dos usos feitos dessas instalações.16 “Epístola” e “Evangelho” são tipos de leituras realizadas na missa, correspondentes a dife-rentes partes da Bíblia.17 Trata-se de azulejos colocados na década de 1980, e não dos “lindos azulejos portugueses” citados pela literatura. Segundo frei Marcílio, os atuais, “horríveis”, vieram substituir os antigos, roubados (entrevista, 16/8/2000). 18 Como foi dito, trata-se de um dos frades do convento, cuja imagem é procurada pelos fre-qüentadores num processo de “santificação popular”. Para maiores informações, ver também o capítulo sobre o panteão de santos. 19 Uma referência encontrada na literatura a respeito dessa capela lateral dá bem a medida da série de transformações vividas pelo prédio: “Das sete capelas do Claustro duas já não existem. A primeira a desaparecer foi a da Sagrada Família, instalada em 1774 pelo síndico Antônio Gonçalves de Oliveira. Destruíram-na os soldados aquartelados no Convento. Sobrou somente o vão vazio que serve agora para depósito. A segunda que desapareceu foi a do ‘Ecce Homo’ ou Bom Jesus, durante a reforma do Convento nos anos de 1920 a 1926. O altar apresentava-se irrecuperável. Por isso foi desmontado e a imagem transladada para a capela lateral da Igreja, onde se encontra até hoje” (Marciniszyn, 1982: 28)20 Visitei três vezes a Igreja da VOT durante o campo e incluirei algumas observações sobre as imagens nela encontradas quando analisar o “panteão de santos” do convento, na parte III. Apesar de considerá-la lindíssima e infinitamente melhor preservada que a igreja de Santo Antônio, seu

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caráter de “museu” parecia prevalecer sobre o de templo religioso. Quando retornei ao convento em 2002/2003, a restauração estava mais avançada, e a Igreja de São Francisco ampliara seus horários de abertura, com ingresso pago (R$ 2,00) e guias treinados, havendo se transformado realmente num museu durante os dias de semana. Nos finais de semana, nela também passaram a se realizar casamentos.21 Há talvez algo mais por trás dessa insistência dos frades na autonomia. Apesar das referências ao fundador comum, e da vizinhança, as relações entre a VOT e a OFM oscilaram ao longo da história entre a cooperação e o conflito. Há, na literatura sobre a história do convento (Röwer, 1945; Marciniszyn, 1982), referências ao fato de que no passado a VOT aproveitou determinados momentos de crise da OFM para comprar grande parte dos terrenos que originalmente pertenciam à Ordem, em negociatas que parecem ter envolvido também alguns frades. Nos dias de hoje, a VOT seria a proprietária de terrenos e prédios ao redor do convento, e de um grande hospital na Tijuca, zona norte da cidade. Nas últimas décadas, entretanto, devido a acusações de malversação de fundos, o cardeal do Rio de Janeiro solicitou à OFM que controlasse de maneira mais direta a VOT, o que implicou uma intervenção dos frades nessa associação para saneá-la. Do ponto de vista jurídico, foi mantida a autonomia da VOT em relação à OFM; entretanto, do ponto de vista canônico, a dependência espiritual possibilitou a intervenção direta em seus negócios.22 Como lembra Varreux (1980: 290), “há igrejas conventuais que eventualmente abrem-se para o público, como as capelas de confrarias”.23 Óbvio que há uma referência a Goffman e Foucault subentendida, mas em campo essa im-pressão me veio mais pela experiência de esbarrar com a porta fechada e com a barreira quase intransponível que pode ser um porteiro com má vontade do que pela mediação da leitura.24 Lembro ainda que, para caracterizar os conventos, Goffman utilizou a regra de São Bento, historicamente mais rígida que a franciscana, que rege o Convento de Santo Antônio, os depoi-mentos de uma religiosa feminina (cujo rigor da clausura é geralmente maior que o masculino) e práticas anteriores às mudanças que o Concílio Vaticano II estimulou na vida religiosa católica a partir dos anos 1960.25 Artigo 47: “Para promover a vida familiar da fraternidade, conserve-se a clausura em todas as Casas, segundo a determinação dos Estatutos, de tal modo que alguma parte da casa fique sempre reservada só aos irmãos” (OFM, 1988).26 É assim que inúmeros visitantes, muitos dos quais turistas estrangeiros, são barrados na por-taria, ao pedirem para visitar a parte interna do claustro, depois de o terem visto pelas aberturas da porta da Igreja. A sacristã chegou a fazer um dia uma repreensão pelo microfone àqueles que tentavam entrar no claustro pela porta da Igreja. “Isso não é uma atitude cristã. Lá é a casa deles. A Igreja é aqui” (24/4/01).27 “Triângulo das Bermudas” porque no interior desse polígono desaparecia o dinheiro do país.28 As fotos constantes do inventário do convento e da igreja no arquivo do Instituto de Patri-mônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) demonstram como a intervenção urbanística que provocou esse contraste, demolindo os prédios em volta do convento e ajardinando áreas esvaziadas, é relativamente recente, datando dos anos 1980, quando se realizaram as obras do metrô no Largo da Carioca. Há também as referências aos debates dos anos de 1930/1940, sobre demolir ou não o convento junto com o Morro de Santo Antônio. Neste sentido, o convento é uma verdadeira “sobrevivência”: outras demolições foram feitas tanto no próprio Largo da Carioca,

como em outros conventos da cidade, como o Convento da Ajuda, demolido no início do século XX. Outros templos católicos do Rio, igualmente antigos e talvez com um valor arquitetônico maior que o do convento – penso na antiga catedral, a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, na Antiga Sé, na Praça XV – não foram ainda objeto de restaurações. Por fim, lembro ainda que quando os franciscanos iniciaram a retomada da província da Imaculada Conceição, no final do século XIX, início do XX, abriram mão de uma série de conventos, enquanto optavam pela manutenção de outros.

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8382 A dinâmicA do sAgrAdocApítulo 3

Etnografia das celebrações

As visitas sistemáticas ao Convento de Santo Antônio, que realizei a fim de entrar em contato com os freqüentadores e participar das atividades nele desenvolvidas, permitiram-me estabelecer gradualmente um esquema geral de seu funcionamento e um levantamento daquilo que no local se chama “serviços religiosos oferecidos”, tanto nas terças-feiras, dia de maior movimento, como em outros dias da semana. Entretanto, com a preocupação de acolher os visitantes e atender às suas neces-sidades, há ainda “outros tipos de serviço”, que também foram levantados. É o conjunto desses serviços e as formas pelas quais as pessoas neles participam que serão apresentados neste capítulo.

1 – Serviços religiosos oferecidos

Após as primeiras semanas de campo, percebi a importância de um quadro de avisos, afixado na portaria e no elevador do convento, que servia como uma espécie de condensador de informações sobre os serviços religiosos aí existentes. Reproduzo-o na página a seguir, mas note-se que, apesar de intitulado “serviços religiosos oferecidos”, o quadro descreve também atividades mais pragmáticas, como os horários de abertura e de funcionamento.

No quadro, pode-se reparar inicialmente no destaque dado à terça-feira em relação a outros dias da semana. Esse dia é contemplado com uma programação especial: um horário de atendimento mais amplo, um maior número de missas e aconselhamento e confissões sem interrupção. É nesse dia também que está prevista a bênção, o serviço oferecido em horário mais extenso, que é “de Santo Antônio”, e que, portanto, acontece apenas no dia da semana a ele relacionado (ver capítulo 6) e durante a trezena preparatória da festa do santo, em junho.

Mas o quadro demonstra também que há uma série de outros serviços religiosos, oferecidos nos demais dias da semana, nos quais o convento permanece em ativi-dade. Além das missas (segunda a domingo), das missas de sétimo dia (segunda à

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um contraste interessante em relação à maioria das igrejas [cristãs], nas quais o domingo é justamente o dia de maior movimento, o dia central da semana.

Essa questão pode ser tratada sob dois pontos de vista, para além da constatação óbvia de que estando ligado a Santo Antônio e a seu culto, o convento teria uma grande propensão a tomar a terça-feira como dia importante de funcionamento. Primeiro, o esvaziamento do convento aos domingos estaria relacionado à sua localização: no centro da cidade do Rio, uma região ocupada em sua maior parte por escritórios que funcionam geralmente de segunda a sexta-feira, ou no máximo até sábado ao meio-dia, e que se torna um verdadeiro deserto nos finais de semana.1

Por outro lado, do ponto de vista da organização eclesiástica, o convento não é uma paróquia, organiza-se como um santuário. E por não ser uma paróquia, não tem a obrigação de cobrir a vida religiosa da população de uma determinada região. Portanto, fica liberado para (ou obrigado a) se concentrar principalmente em serviços religiosos que não sejam os mesmos oferecidos pelo atendimento paroquial, ou que sendo os mesmos, se estabeleçam de uma forma diferente. Essa característica fica ainda mais acentuada se pensarmos que ele se localiza num ponto de passagem, numa área de baixa densidade residencial.

Neste sentido, o convento organiza seus serviços religiosos para a acolhida de peregrinos de diversas paróquias, isto é, de passantes do centro da cidade que por algum motivo se sintam estimulados a entrar naquela igreja, em sua maioria, mas não exclusivamente, devotos do santo. Parece haver uma tentativa de construir uma complementaridade entre santuário e paróquia, claramente identificada na fala de um padre durante uma missa a que assisti: “Terça-feira é o nosso domingo. Domin-go vocês vão à paróquia de vocês, que é perto de casa, é mais seguro. Terça-feira vocês venham aqui”. É como se houvesse um convite ao público para transformar o convento num complemento da vida paroquial de domingo, ao mesmo tempo indicando que o dia por excelência de vir ao local é a terça-feira.

As terças-feiras

E cerca de cinco a dez mil pessoas parecem estar atendendo a esse convite, a cada semana, embora haja um fluxo maior na primeira terça-feira do mês e o movimento se reduza nos meses de janeiro e fevereiro, por causa das férias.2

O principal serviço religioso das terças-feiras é a benção de Santo Antônio: ela é ministrada ao longo de todo o dia, seja ao final das missas (celebradas de 6 às 12 horas e de 17 às 18 horas a cada hora); seja nos intervalo de 13 h às 16h30, horários em que não há missas, de meia em meia hora, ao final de uma paraliturgia,3 tendo ainda duas versões às 19 h e 19h30.

A benção se dá da seguinte maneira: o frade celebrante lê ou fala do altar em voz alta o texto da “Benção de Santo Antônio”,4 fazendo o sinal da cruz em

Quadro 1 – Serviços Religiosos do Convento

Santas Missas: seg/qua/qui/sex, 8/9/10/11/12h30/18 h Sábado: 8/9/10 e 17 h Domingo: 10 h

Missas de 7o dia às 11 h (dias de semana)

Terço: 5a feira, 12 h e 17h30

Via Sacra: 6a feira, 12 h e 17h30

Hora santa e unção dos enfermos: ultima sexta-feira do mês às 15 h

Confissões: 2a à 6a feira, 8/18 h Sábado: 8/11 h e 16h30/17h30 Domingo: 9h30/10h30

Aconselhamento espiritual: 2a à 6a feira, menos 3a feira: 8 h/11 h e 14 h/17 h

Expediente na Portaria: 2a à 6a feira: 8 h/18 h Sábado: 8 h/11 h Domingo: não há

3a feira Missas: 6 h/12 h e 17 h/18 h Benção: ao final de cada missa – das 13 h às 16h30 a cada meia hora, 19 h e 19h30. Confissões: 7 h/19 h Aconselhamento espiritual: 8 h/17 h

Elevador: 2a à 6a feira: 7h30/18h30 Sábado: 7h30/11 h 3a feira: 5h30/19h30

Fonte: quadro de avisos no Convento de Santo Antônio.

sexta-feira), do aconselhamento (segunda à sexta-feira) e das confissões (segunda a domingo), o convento oferece como serviços religiosos o terço, a via-sacra e a hora santa com unção dos enfermos, respectivamente às quintas-feiras, sextas--feiras e última sexta-feira do mês.

Por fim, creio que o quadro também sinaliza (ainda que pela ausência) o que o convento não faz: ele não faz casamentos, batizados. E ele funciona em horário reduzido no domingo, com apenas uma missa matinal e confissões, o que coloca

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direção da audiência:

Celebrante: A nossa força está no nome do SenhorAudiência: Que fez o céu e a terraC: Rogai por nós, glorioso Santo AntônioA: Para que sejamos dignos da promessa de Cristo C: Eis a cruz do Senhor. Afastem-se de vós todos os inimigos da salvação. Porque venceu o Leão da tribo de Judá, descendente de Davi, Jesus Cristo Nosso Senhor.

Depois disso, ele pega um balde de metal cheio de água benta e sai pelo meio da igreja, aspergindo os presentes. A fim de que a água atinja a todos, o instrumento litúrgico tradicional para a aspersão, o asperges, é substituído por uma vassouri-nha.5 O celebrante desce do altar e vai até a porta da igreja, por um dos lados da passarela central, e retorna da porta ao altar pelo outro lado, sempre buscando aspergir todos os presentes. Por fim, retorna ao altar, pronuncia umas palavras de encerramento e sai.

Do ponto de vista dos participantes, a benção aparece como um momento importantíssimo de sua visita ao convento: a maior parte deles, principalmente os que consegui identificar como assíduos, se esforça para estar na igreja para a benção e para ser atingida pela água benta. Quando o padre começa a aspergir, produz-se um deslocamento espacial para o centro da Igreja, em torno dele e do balde. Muitos dos presentes seguram objetos para serem bentos: carteiras de dinheiro, carteiras de trabalho, chaves, “santinhos”, terços, radiografias, e, mais freqüentemente, fotos, seja por idéia própria, seja estimulados por sugestões dos celebrantes. Sugere um dia na missa fr. Leandro: “Quem tiver algo que queira benzer, que levante bem alto, como carteira, carteira de trabalho, chave”.

Quanto às gotas que os molham, é comum usarem-nas para fazer o sinal da cruz sobre a fronte, ou espalhá-las em torno da cabeça ou na nuca. Os objetos molhados são guardados cuidadosamente, como relíquias preciosas, amuletos protetores, ou são ainda ofertados a outrem. Alguns deles são comprados na barraquinha do convento, outros são trazidos de casa ou de outras lojas de artigos religiosos e podem, mas não precisam, estar ligados a atributos de Santo Antônio.

Observando seguidas vezes a benção em seu contexto de enunciação (Peirano, 2002; Bloch, 1989; Tambiah, 1985), pude perceber sua complexidade. Ela tem uma dimensão verbal, pelas palavras proferidas pelo celebrante e pela audiência, ambas padronizadas (Tambiah, 1985). Esse conjunto de palavras é enunciado no intuito de obter algo do santo: “sua benção”, sua proteção. Novamente explica fr. Leandro: “A benção dá proteção na vida, saúde, alegria”. Neste sentido, a benção nos lembra muito a prece, tal como tratada por Marcel Mauss: ela combina a afirmação de

crenças ao pedido de coisas que se quer alcançar.6 Ao analisarmos cada linha da parte verbal da benção, entretanto, podemos perceber os detalhes específicos que essa combinação adquire no caso concreto.

A benção começa com uma alternância de falas entre o celebrante e a audiência. O celebrante, que está no altar para dar a benção do santo, assume diversos papéis diante do público. Primeiramente, ele é um enunciador que provoca as respostas da audiência, criando uma espécie de unidade entre esta e o altar. A sua primeira fala – “a nossa força está no nome do Senhor” – é a afirmação de uma crença, mas num certo sentido, ao dizer “nossa”, ele está convidando a audiência a assumir que partilha essa crença. E a resposta que se segue – “que fez o Céu e a Terra” –, ao complementar a fala do celebrante, parece servir como uma espécie de demonstração ou de concordância de que essa crença é compartilhada, que todos estão falando do mesmo Senhor, em nome do qual força lhes será conferida. Já a segunda fala do celebrante – “rogai por nós, glorioso Santo Antônio” – é a formulação de um pedido de intercessão ao santo, ao qual a resposta da audiência – “para que seja-mos dignos da promessa de Cristo” – vem agregar-se, dando-lhe uma finalidade específica. Mas em sua terceira fala, que não tem resposta verbal da audiência, o celebrante repete as palavras que seriam do próprio Santo Antônio: “Eis a cruz do Senhor. Afastem-se de vós todos os inimigos da salvação. Porque venceu o Leão da tribo de Judá, descendente de Davi, Jesus Cristo Nosso Senhor”, enquanto faz o sinal da cruz para abençoar os presentes. Neste momento, portanto, ele estaria representando o próprio santo, e através dessa representação, sendo capaz de con-ferir a sua benção aos presentes.

Só que a benção não é apenas um ato verbal. Ela engloba uma dimensão física, fundamental em seu desenrolar, que se compõe de gestos e movimentos executados pelo frade e pelo público. Os gestos são mais formais e padronizados durante a recitação das palavras: neste momento, o padre realiza o sinal da cruz e a imposição de mãos na direção da audiência, que responde se benzendo também com o sinal da cruz. Tornam-se, entretanto, mais informais na hora da aspersão: o padre borrifa a água benta, as pessoas movimentam-se em direção ao balde, es-tendem as mãos ou objetos para serem molhados, espalham sobre estes ou sobre si mesmas a água que receberam. E como a benção só se conclui com os atos de “molhar” e “ser molhado”, o contato com a água e o aproveitamento que dela é feito são componentes essenciais da parte física da benção.

Ser bem benzido envolve um saber particular: é preciso saber a posição ideal para ser atingido pela água benta sem ser encharcado pela poderosa vassourinha brandida pelo padre, mas também é preciso garantir as gotas consideradas suficientes para uma benção. Assim, deve-se evitar as pontas internas dos bancos, que estão mais perto da passarela central, pois aí se corre o risco de se molhar demais. Deve-se também evitar as pontas externas dos bancos, muito longe do centro emissor de

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bênçãos, que trazem o risco de não ser molhado em nada. A lógica da benção não é a de que quanto mais água benta, melhor: há um certo equilíbrio entre molhar-se bem e molhar-se demais que os freqüentadores buscam alcançar.

Portanto, a benção é uma prática que combina palavra, gesto, água, balde, vassourinha, movimentos de caminhada pela igreja, sinais da cruz, imposição de mãos, tudo isso na interação entre sacerdote e audiência. Entretanto, há que se lembrar que, subjacente a essa combinação, está o santo, que de alguma manei-ra se faz presente através desse ritual de consagração e abençoa seres e coisas, estendendo-lhes sua proteção.7

A observação de várias bênçãos, tanto num mesmo dia, como ao longo do semestre, permitiu-me perceber que o modelo básico que descrevi comporta uma série de variações. Devido às marcas do calendário católico, a benção pode se associar a referências a outros santos e a outros eventos religiosos, sejam estes datas significativas para o convento, sejam de comemoração obrigatória para toda a cristandade. Assim, às invocações a Santo Antônio podem se agregar invocações à Maria, no mês de maio, a São Francisco, Santa Clara ou aos Santos Franciscanos Mártires do Japão, quando de alguma festa franciscana etc. Nos chamados “tempos fortes” do calendário litúrgico, isto é, de especial importância religiosa, como a Quaresma, por exemplo, as bênçãos podem ficar submetidas a uma celebração maior, encaixadas em uma liturgia especial, embora nem assim elas cessem de ser oferecidas.8

Mas além das variações ao longo do ano por marcos no calendário católico, a benção varia também de acordo com o estilo pessoal de cada padre, que provoca distinções na entonação, no grau de teatralidade, em sua duração. Os celebrantes desempenham sua função de diferentes formas, seja por capacidades pessoais (gra-ças a um certo physique du rôle, ao tempo de sacerdócio, à capacidade de cantar ou de proferir um sermão estimulante etc.), seja por suas concepções teológicas, que podem atribuir determinadas ênfases e nuanças à celebração. Assim, por exemplo, em casos de padres “de santuário”, como fr. Marcílio e fr. Leandro, podem ser fei-tos estímulos para que as pessoas se aproximem, ou peguem objetos que queiram ver benzidos, ou, jocasamente, que não se preocupem, pois não faltará água benta para ninguém. Já um padre de caráter mais “cético” e mais “crítico” a esse tipo de práticas, como fr. Tobias, é capaz de produzir um meta-discurso dentro da benção, ao fazer questão de anunciá-la como “a benção que ‘provavelmente’ Santo Antônio dizia” [grifo meu]. Padres mais cuidadosos em enfatizar o caráter mediador do santo, como fr. Diogo, dizem que a benção é “de Deus sob a intercessão de Santo Antônio”. Ou um padre mais “carismático” como fr. Adão, que ao celebrar missas com alto grau de movimentação, marcadas por cantos, palmas e gritos de aleluia, torna difícil identificar muito bem onde começa e acaba a benção. Ou frades como fr. Lutécio, com um vozeirão imenso, capaz de puxar sozinho os cantos, e que talvez

por isso mesmo seja o ideal (do ponto de vista da organização do convento) para dar as bênçãos nas paraliturgias de depois do almoço, onde o auxílio de leigos é menor e é preciso que o padre “segure” a música.9

Neste sentido, o acompanhamento das celebrações do convento foi uma excelente oportunidade de ver em prática um caso concreto em que a repetição e a originalidade em práticas rituais entram em jogo. Tratou-se de observar as variações que são possíveis em torno de uma estrutura litúrgica comum: tanto as diacrônicas, ao longo do ano, como as variações de estilo de cada celebrante – suas performances individuais (Schechner, 1995; Schieffelin, 1985, 1997). Há uma série de procedimentos das celebrações que são determinados pela liturgia e pelo calendário católicos – mas a cada performance, a regra se atualiza, se concretiza, se singulariza dentro da margem de manobra deixada a cada oficiante do ritual. Note-se, entretanto, que essas variações são limitadas pelo horário a ser cumprido (a seqüência de atividades previstas para o dia, cuja programação deve ser mantida) e a estrutura prevista para a celebração (a liturgia apropriada para o calendário religioso), sobre a qual a Igreja Católica legisla. Mas mesmo assim permanece um espaço para a impressão de características pessoais em cada benção.

Do conjunto de celebrações das terças-feiras, nove são missas.10 Elas são realizadas geralmente nas horas “redondas”, durante toda a manhã e no final da tarde. As orações e leituras seguem o calendário litúrgico oficial e podem ser acompanhadas pelos devotos através do folheto O Domingo, distribuído por vo-luntários. Para apoiar a participação coletiva, há folhas com as letras dos cantos, também feitas e distribuídas pelos voluntários, cujo conteúdo vai sendo alterado ao longo do ano, seja para acompanhar o calendário litúrgico, seja para garantir variedade no repertório.11

Sua estrutura básica é invariável: ela é composta em seqüência por “ritos iniciais”, “liturgia da palavra”, “liturgia sacramental” e “ritos finais”, sendo que a passagem entre as partes é marcada por “orações”. Os ritos iniciais são compostos pelo “canto de entrada”, a “acolhida” (abertura da missa em nome do Pai, Filho e Espírito Santo), o “ato penitencial” (reconhecimento da dimensão pecadora e pedido de perdão) o “hino de louvor” e uma oração. Já a liturgia da palavra se compõe de uma “leitura” de um trecho da Bíblia em voz alta,12 seguida de um “salmo responsorial”, depois pela “aclamação ao evangelho” (canto), a “proclamação do evangelho” (leitura de trecho da vida de Cristo), a “homilia” (sermão do celebran-te), a “profissão de fé” (o Credo) e a “oração da assembléia” (onde se abre espaço para colocação de pedidos dos participantes, as intenções da missa). Na liturgia sacramental , primeiro há o “ofertório”: a “preparação das oferendas”, que serão levadas ao altar (inclusive com a passagem pela igreja de sacolas de pano, nas quais os presentes deixam sua contribuição financeira para o culto), a “oração sobre as oferendas”. Depois, o eixo se desloca para a “eucaristia”: a “oração eucarística”

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(onde se dá a consagração, isto é, onde hóstia e vinho se transformam no corpo e sangue de Jesus Cristo), o “Pai-Nosso”, o “Canto de Comunhão”, a “Comunhão” propriamente dita (com distribuição de hóstias aos fiéis “devidamente preparados”) e a “oração após a comunhão”. Então se iniciam os ritos finais: os “avisos”, em que são indicados os compromissos da semana e do mês, e a “benção final” do padre sobre os presentes que, no convento, às terças-feiras, é acrescida da benção de Santo Antônio.

Em termos de construção de textos e de ritmo da celebração, o clímax da missa é a liturgia sacramental, impressão corroborada pela preocupação dos devotos em chegar à igreja a tempo de acompanhar o ofertório e a eucaristia, para “que a missa não perca o valor”. Essa preocupação não ocorre apenas no convento, mas em todo templo católico, porém é interessante notar os cálculos que são feitos nessa situação concreta para garantir a presença na liturgia sacramental: horário de ônibus, tempo de espera do elevador etc.

Como ao longo do campo assisti várias vezes a mais de uma missa em seguida, reparei que muitas pessoas costumam comparecer sempre no mesmo horário. Assim, após algumas semanas, comecei a encontrar, ou melhor, a fazer “conhecidos”, e pude perceber que nas missas grupos informais vão se criando, através de atos como conversar antes ou após a celebração, sentar várias vezes ao lado da mesma pessoa, tomar cafezinho após a missa, conversar durante o al-moço, trocar informações sobre orações, novenas, santos e padres etc. As pessoas fazem conhecimento, passam a se chamar pelo nome, perguntam pela família de algum conhecido, notam a falta de alguém que esteja ausente. Reconhecida e cumprimentada ao final do semestre por algumas pessoas, já me tornara também capaz de identificar na “minha missa”, a das 12 horas, a que assisti com mais regularidade, alguns dos diferentes grupos, pelos lugares que ocupavam na igreja, embora muitas pessoas permanecessem “avulsas” Classificando os presentes pelos critérios posicionais de sentados/em pé, na frente/atrás, direita/esquerda (a partir da entrada), pude descobrir recorrências e contatos estabelecidos entre as pessoas que assistem à missa próximas umas das outras. Também pude identificar os ausentes, ao não encontrá-los sentados em seus lugares habituais. Se a missa como um lugar de sociabilidade não é propriamente uma novidade, já que é uma referência consagrada, o curioso estaria em encontrar essa mesma situação num convento, situado num local de passagem no centro da cidade.

Na maior parte das missas a que assisti, a igreja estava cheia, com os bancos tomados e gente em pé. Geralmente as pessoas que chegam às missas com dez a quinze minutos de atraso não encontram mais lugar. Tem início assim uma luta microscópica por espaço, feita de pedidos de licença, de pequenos empurrões, mas que por vezes descamba em conflito aberto. Sentar bem exige assim não apenas uma sabedoria particular – saber onde sentar de acordo com seus interesses – como

certa disponibilidade de tempo para chegar cedo à missa. Nesse contexto, encontrar um “conhecido” que faça a gentileza de guardar um lugar pode ser fundamental.13

Dois fatores foram acionados pelos freqüentadores para justificar sua constân-cia em determinado horário: a praticidade – isto é, a possibilidade de conciliar a freqüência à missa com os demais afazeres (família, casa, trabalho) – e a identidade com o padre que nele celebra, já que há uma tendência a que os padres mantenham os mesmos horários de celebração. O peso que cada um desses fatores venha a ter varia de indivíduo para indivíduo, de acordo com suas condições objetivas de vida e sua adesão subjetiva aos rituais do convento.

As questões de ordem prática são vistas muitas vezes como sendo de uma esfera que escapa ao controle do indivíduo, e o horário de freqüência à missa resulta assim de uma determinada negociação, um determinado arranjo que é preciso estabelecer com outros domínios da vida social para se garantir a assiduidade no convento.

Já quanto à “escolha do padre”, entram novamente em jogo os diferentes estilos de sacerdote que mencionamos acima e que influem em elementos como a seleção das músicas, a duração e forma do sermão, o grau e forma de participação da assistência.14 Essas distinções de estilo não são tratadas como uma questão menor pelos freqüentadores, mas possuem peso inclusive para influenciá-los no estabelecimento de vínculos com um determinado padre, levando-os a comparecer às suas celebrações e mesmo alterando seu horário de freqüência para acompanhá-lo, caso haja alguma mudança no esquema. Formam-se assim espécies de “fãs-clubes” para cada padre, pessoas entusiasmadas que defendem seu estilo e depreciam os dos outros, que compram seus livros de orações e pedem autógrafos após a missa, que acompanham seus cursos ou palestras mesmo fora do convento. Portanto, há uma certa vinculação entre horários, devotos e padre, que faz com que esse último acabe adquirindo uma espécie de “propriedade relativa” sobre a hora de “sua missa”.

Essa questão apareceu para mim em campo pela primeira vez no dia em que fr. Adão, o “furacão” da missa das 10 horas – uma das mais cheias e ruidosas do convento – convidou um pastor pentecostal para participar de sua celebração, numa intenção ecumênica.15 Tanto fr. Adão como o pastor multiplicaram seus aleluias e cantos e fizeram sermões imensos. Resultado: apesar dos esforços do frei em “tirar o atraso da missa” encurtando os cantos da parte final, ela acabou entrando pelo horário seguinte, de responsabilidade de fr. Tobias. Este, com um estilo comple-tamente diferente, e aparentemente uma pessoa não muito bem-humorada, passou toda a missa insistindo na “importância do silêncio e da meditação para entrar em contato verdadeiro com Jesus” e fez mais críticas subentendidas a seu antecessor:

O cristianismo não é meia dúzia de orações, nem bate palma de cá para lá. Basta de tanto barulho em nossas igrejas. Basta!.

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E continuou sua missa, fazendo na homilia críticas à pieguice, à comunhão por costume, às coisas vazias de sentido, feitas apenas por rotina ou para chamar a atenção. Diante do episódio, os respectivos “fãs” se posicionaram: os partidários de fr. Adão encantados com sua coragem e louvando sua iniciativa ecumênica de trazer o pastor para a missa das 10 horas, os de fr. Tobias indignados com a con-fusão e o atraso causado à missa das 11 horas, apoiando suas críticas e pedidos de comedimento.

O segundo momento em que vi em jogo a tensão entre os frades quanto à “propriedade relativa” dos horários das missas diz respeito ao dia em que fr. Adão viajou e fr. Marcílio foi celebrar em seu horário. Este começou a missa explici-tando as razões de sua presença, esclarecendo que a substituição tinha sido feita “a pedido de fr. Adão”.

Outro fator que influi na escolha do horário das missas é que algumas delas guardam significado especial: a das 8 horas nas terças-feiras, por exemplo, é destinada prioritariamente aos membros da Pia União de Santo Antônio, isto é, aos membros da associação de voluntários leigos, fundada em torno do culto a esse santo, e creio que seja por isso que ela é celebrada pelo guardião do convento.

Os membros da Pia União, embora compareçam também em outros horários, têm como uma de suas obrigações a freqüência a essa missa. Para ela, inclusive, estão previstos procedimentos especiais: no fundo da igreja, perto da porta de entrada, é colocada uma mesa, sobre a qual se dispõe o vinho, a água e o cálice com hóstias, bem como uma cesta de vime para acolher pedidos escritos a serem “encaminhados” ao santo, e que serão levados em conjunto ao altar no momento do ofertório. Assim, para levar essas oferendas, toda a semana na missa das 8 horas uma espécie de “cortejo” é montado, entrando pela passarela central.16

Entretanto, é preciso considerar ainda um outro elemento que pode distin-guir uma missa das demais e incentivar a opção por uma delas: é que ela pode ser objeto de intenções, isto é, ela pode ser celebrada “na intenção” de alguma pessoa ou evento especial. Algumas dessas intenções são atribuídas pelo padre, estabelecendo uma ponte com o evangelho, o sermão ou a festividade de cada dia, ou com um evento do contexto social e/ou político-econômico. Elas podem variar de padre para padre e de dia para dia, e ao longo do semestre serviram para fixar como objeto de atenção dos presentes “os doentes, presos, drogados, sofredores, o papa, as mulheres do Brasil, os necessitados, os oprimidos, o novo cardeal do Rio de Janeiro” etc. Muitas vezes o padre faz na missa uma pausa “para que cada um coloque mentalmente suas intenções”. Como, por exemplo, fr. Tobias, que propõe antes da benção “um minuto de silêncio para apresentarmos a Santo Antônio o que está em nosso coração, para que ele apresente a Deus Nosso Senhor”, sugerindo em seguida durante a aspersão que “rezemos um Pai-Nosso, uma Ave-Maria, um Glória ao Pai por todos os que precisam de Paz”.

Mas as intenções também podem ser atribuídas pelos leigos, bastando para isso ir à portaria do convento, e mediante o pagamento de espórtulas, isto é, de uma taxa, solicitar a celebração de uma missa “na intenção de” algo ou alguém.17 Também esse repertório pôde ser identificado: em seis meses, elas versaram sobre aniversários (de nascimento, morte ou casamento); agradecimentos por sucesso nos estudos; por ou para a cura de doenças; pelo falecimento recente de alguém (na intenção da alma do falecido e do bem-estar de sua família). É comum que casais relacionados ao convento ou ao culto de Santo Antônio aí celebrem junto a parentes e amigos seus aniversários de casamento com uma missa. As intenções também podem ser estabelecidas, informalmente, no íntimo de cada freqüentador: que, sem registrar publicamente seus interesses, atribui internamente um sentido específico para sua presença no local em determinado dia, assistindo à missa “na intenção” de uma pessoa, ou de uma graça.18

A intenção é assim uma forma de estabelecer um foco de concentração para as orações de uma missa, dando um significado particularizado à cerimônia. In-versamente, ao ser proclamada pelo padre, ela é a chance de tornar público um episódio particular da vida de cada freqüentador e canalizar em seu benefício as orações coletivas da celebração.

Uma outra atividade de destaque é a homilia, momento da missa dedicado à fala do padre, que é chamada também de sermão, num termo mais popular. Embora ela seja parte da missa, optei por analisá-la separadamente em detalhe, pois ela adquire importância na avaliação dos padres do convento pelos freqüentadores, chegando mesmo a ser considerada um dos atrativos do local. Ela acontece após a “leitura do evangelho”, na parte final da “liturgia da palavra”, e sua premissa básica é de que nela o padre comente – interprete, explique – o evangelho que acabou de ser lido, bem como as demais leituras.

O comentário do padre na homilia não tem nada de simples ou casual: ele compreende toda uma preparação, que pode incluir estudos bibliográficos sobre as leituras do dia, com recurso a comentaristas, até a manipulação de técnicas de oratória. A homilia se conforma como uma verdadeira “arte”, tanto oficialmente pela igreja (pois há a homilética, a “arte de pregar sermões religiosos”), como para os devotos, para quem a capacidade de um padre realizar uma “boa homilia” é um dos elementos destacados no julgamento de sua competência.

Portanto, a homilia era um dos elementos acionados na avaliação de um padre. E nessas avaliações entravam em jogo não apenas os conhecimentos teológicos explicitados no seu discurso, isto é, seu conteúdo, mas elementos formais, tais como a capacidade de falar bem, de estimular os ouvintes, de se fazer entender, de ser humilde, simpático, de interpretar e apresentar a doutrina de uma maneira com a qual o freqüentador se identifique.

Se era comum avaliar e classificar os padres a partir de suas homilias, estas

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surgiam também com uma outra função. Elas eram vistas como espaços de apren-dizagem da doutrina católica. Era comum ver as pessoas, ao sair do convento, discutirem os temas tratados pelos padres no sermão, ou mesmo debatê-los durante o almoço. As homilias se estendiam assim muito além de seu espaço convencional, pois seus temas eram incorporados na conversa dos freqüentadores e as explicações nelas contidas eram passadas adiante. E como o aconselhamento, analisado a seguir, uma das justificativas para a freqüência no local era a qualidade dos sermões de seus padres cujo preparo também se refletia nas homilias.

Mas sobre o que versam as homilias no convento? Pode-se recuperar os evangelhos e demais leituras de cada dia recorrendo ao calendário litúrgico oficial, mas o conteúdo de cada homilia concretamente realizada só pode ser efetivamente recomposto pelo comparecimento a todas as missas. Pois justamente a habilidade de cada padre está em articular a diretriz geral da igreja, contida no evangelho, à realidade de seus ouvintes, fazendo “pontes” através do uso de metáforas e analo-gias, de exemplos da vida concreta, da citação de referências da mídia etc. Esses recursos fazem parte das estratégias da arte da homilia e permitem que, num certo sentido, o texto bíblico seja “atualizado” (Novaes, 1985; Velho, 1987; Steil, 1996), associando-se à vida dos ouvinte. Esse movimento assume um duplo sentido: ele expressa a transmissão da doutrina para os fiéis, mas também representa respostas às interrogações e às demandas que os fiéis fazem a essa doutrina. Os padres não apenas “doutrinam os fiéis”, mas “atualizam a doutrina” diante dos casos concretos que lhes chegam, buscando atender a aflições, expectativas, interesses e oferecendo-lhes as respostas que consideram plausíveis a partir de seu conhecimento doutrinário.

À medida que as homilias do convento falavam sobre a “tolerância dentro do casamento”, sobre a “resignação diante do sofrimento”, ou sobre “a fé diante das vicissitudes da vida”; em que nas orações um padre sugeria rezar por “pobres, necessitados, doentes, sofredores, desempregados”, ou em que pedia “pela paz na família”; as demandas dos leigos eram levadas em consideração, sendo contem-pladas na celebração, incorporadas nas reflexões e discursos dos padres. Assim, nas missas celebradas no convento, a doutrina era reinterpretada várias vezes ao dia, em cada homilia, a partir do estilo de cada padre, que, usando de suas habi-lidades, transmitia oralmente explicações sobre valores e temas fundamentais do catolicismo.

Além das bênçãos e das missas, outros serviços religiosos bastante procurados às terças-feiras são as confissões e o aconselhamento espiritual. Embora sejam oferecidos também em outros dias da semana, às terças eles possuem um esquema especial de funcionamento, com horário mais amplo (ver novamente o Quadro 1).

A confissão é feita em um único confessionário, localizado no interior da igreja, ao lado do qual se forma uma fila com as pessoas interessadas, para serem atendidas uma por vez. Para garantir esse serviço por horas seguidas, o padre que

ocupa o confessionário é substituído por outro, em intervalos. A fila do confessio-nário variou de tamanho ao longo do semestre, mas sempre houve gente à espera.

O aconselhamento atrai um número maior de pessoas e é feito no Parlató-rio, onde há cerca de seis padres atendendo simultaneamente, cada qual em uma mesa (não percebi um esquema de rodízio, mas ele provavelmente deve existir). Os interessados registram seu nome junto a uma senhora que ajuda a organizar o serviço, entram numa fila e aguardam vaga para conversar com um dos padres.

No contato com os freqüentadores, surgiram referências aos dois tipos de aten-dimento como uma das especialidades do convento, sendo mencionados inclusive como razões para a vinda a essa igreja: “confessei com esse padre e ele é ótimo, foi maravilhoso, ele levanta a gente”, “os padres daqui são ótimos em aconselhamento”, “eles jogam a gente para cima”, “ficam o tempo que for preciso, dão toda a atenção” etc. Esse tema apareceu explicitamente em uma das respostas do questionário, sobre as razões para a vinda ao convento: “Na paróquia em que eu confesso, eu fico frente a frente com o padre, uma amiga me falou que no convento tinha uma casinha que separa no confessionário. E também tem os conselheiros que ajudam a resolver os problemas. Gosto da missa das dez, que é animada e carismática” (r. 199: mulher, parda, 42 anos, Coelho Neto). A existência simultânea no convento de confissão e aconselhamento parece permitir uma espécie de combinação entre anonimato e personalização.

Entretanto, entre as duas práticas, nas entrevistas e no fluxo de freqüentado-res, o aconselhamento teve maior destaque. Mas se a confissão é um sacramento, o que seria o aconselhamento? Quando perguntei a uma voluntária a diferença entre os dois, ela respondeu que o aconselhamento seria um “atendimento mais personalizado” que a confissão. Seria então uma “nova forma de confissão” – não--anônima, olho no olho, dialogada, que estaria se consolidando? (ver a respeito, Grignon, 1976). O que significaria uma maior procura pelo aconselhamento do que pela confissão? Não caberia uma resposta mecânica do tipo “há mais gente no aconselhamento porque há mais padres disponíveis”, porque a lógica do convento é a da demanda orientar o serviço que será oferecido, e não o inverso. Assim, a partir de alguns depoimentos, pude recompor uma imagem do aconselhamento pela ótica dos freqüentadores.

Rita, solteira, 65 anos, mencionou a importância do aconselhamento em sua decisão de não se casar:

Há alguns anos, não muitos, conheci um senhor que estava se separando da mulher, e quis casar comigo. Como ele não era casado na igreja, mas só no civil, eu pensei em aceitar, mandei buscar o batistério dele e fui falar com os frades, primeiro com fr. Marcílio, depois com fr. Estevão no aconselhamento.Primeiro, fr. Marcílio brincou comigo, perguntou se eu queria que ele fizesse

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alguma coisa para que a mulher dele largasse dele, imagine só! Então uma amiga minha falou: “Você pensa que ele estava brincando? Tava nada, esses padres são meio bruxos” [grifos meus].Fr. Estevão foi mais direto: disse que a história não ia dar certo, me desacon-selhou logo de casar. Eu desisti. E parece que foi minha sorte, porque quando a mulher percebeu que poderia perdê-lo, decidiu reconquistá-lo, voltou a abordá-lo, e conseguiu! O conselho desses padres vale mais do que o de um médico [grifos meus] (Rita, 6/3/01).

Em uma conversa informal com uma freqüentadora, logo no início do campo, ela me falou do assunto:

Adoro o aconselhamento do Santo Antônio, os padres dedicam o tempo que for preciso. Eu estava com um “problemão” e fui falar com fr. Leandro, que hoje está em Angola. Ele ficou comigo uma hora e meia. E se precisar, ele sai com a pessoa [do salão] e leva até pra dentro [do claustro]. O aconselhamento eleva, renova, revira a vida da gente (anônima, 28/2/01).

O senhor Reginaldo contou o caso de sua irmã Margarida:

O padre Diogo é formado em psicologia e seu aconselhamento é maravilhoso: uma vez ele atendeu a Margarida e eu fiquei esperando, entramos para dentro do convento, eles ficaram conversando até oito ou nove horas da noite, na saída tudo trancado, tudo escuro, o padre Diogo precisou descer conosco para abrir o portão (Reginaldo, 10/4/01).

É interessante notar que a capacidade de um padre ouvir e aconselhar é ressal-tada nos depoimentos como uma qualidade especial, que o diferencia dos demais e o põe num grau superior de competência como sacerdote. E sua disponibilidade para esse tipo de atendimento – ficar “o tempo que for preciso”, “enquanto eu precisava”, “até de noite se for preciso” aparece de forma recorrente como um elemento de avaliação da qualidade dos frades, de sua capacidade de atender às necessidades específicas dos membros de seu rebanho.

Os fiéis valorizam o convento de Santo Antônio pelo fato de possuir frades pre-parados e disponíveis para esse tipo de atendimento, isto é, padres com graduação em psicologia, ciências sociais, jornalismo etc., muitas vezes com pós-graduação no exterior, dispostos a conceder seu tempo para dar conselhos. Assim, entre o oráculo e o divã, o aconselhamento é um dos serviços importantes do convento.

Podemos pensar no sucesso do aconselhamento do Santo Antônio pela capaci-dade de o convento aglutinar em um só espaço um conjunto de frades preparados e disponíveis para esse serviço. Por outro lado, por sua dimensão de santuário, distante

do local de residência dos freqüentadores, ele garantiria uma certa autonomia dos “aconselhados” em relação aos frades que os aconselham, tornando impossível um controle mais estrito do cotidiano.

Creio, portanto, que aqui pode estar uma pista importante para a compreensão de mudanças em determinadas práticas católicas: talvez a passagem da confissão ao aconselhamento signifique uma passagem do padre para o qual se contam os pecados para o padre para o qual se contam problemas, um padre preparado, capaz de agir simultaneamente como juiz, bruxo e psicólogo.19 Embora seja preciso dei-xar claro que o fato de o padre dar conselhos não é nenhuma novidade, tendo sido suficientemente registrado nos estudos de comunidade, o que quero aqui assinalar é que essa prática pode estar assinalando uma “institucionalização” do conselho como um substituto ao sacramento da confissão.

A passagem da confissão ao conselho traria repercussões na construção de um “modelo contemporâneo” de padre ideal, já que não são apenas as competências propriamente religiosas que entram em jogo em sua formação. Como assinalam alguns autores (Grignon, 1976; CSCRE, 1985), os profissionais da religião perderam historicamente a hegemonia na gestão dos problemas humanos, sendo obrigados a partilhá-la com outros especialistas, como médicos, psicanalistas, psiquiatras, assistentes sociais etc. Uma das conseqüências dessa concorrência é a de que os padres também passaram a necessitar de conhecimentos e títulos de outras esferas não propriamente religiosas como forma de legitimarem-se no desempenho de suas funções. Assim, haveria uma certa “subordinação” dos religiosos aos cam-pos científico e acadêmico, aos quais teriam que aderir ou se submeter a fim de adquirir competências que escapam ao domínio eclesial (Bourdieu, 1987). Essa subordinação, entretanto, não é automática: se o preparo acadêmico e científico é um recurso a mais com o qual os padres podem contar, o brilho de sua atuação não é garantido ou definido apenas pelos conhecimentos intelectuais. Capacidades como as de ter paciência, disponibilidade de tempo, ouvir e aconselhar, dizer a coisa certa no momento certo, também são vistas como importantes. Enfim, a habilidade na condução das celebrações e na realização de homilias são tratadas como fundamentais para avaliar a competência de um padre.

Serviços religiosos – outros dias

Embora terça-feira seja o dia central no convento, nos outros dias da semana ele também funciona e oferece serviços, mesmo que o fluxo de pessoas seja bastante menor. Há alterações de horário em relação à terça-feira: a missa de 12 h passa para 12h30, os serviços têm horário mais restrito, porém o funcionamento conti-nua. Portanto, salvo os feriados civis e o dia seguinte à festa do santo, o convento abre todos os dias. Há algum tempo, entretanto, o convento passou a promover às

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quintas-feiras as cerimônias da reza do terço, às sextas-feiras, a via-sacra; na última sexta-feira de cada mês, a hora santa com unção dos enfermos. Só que em 2001 essas cerimônias ainda tinham um caráter relativamente recente: elas apareciam sob a rubrica de “devoções especiais” nos folhetos de serviço, não eram do conhecimento de muitos dos presentes e eram constantemente anunciadas nos avisos das missas como “novos serviços que o convento passara a promover”, para os quais tanto se solicitava a divulgação junto aos necessitados, como a presença dos interessados.

Além dos novos serviços introduzidos na rotina semanal ou mensal, outras celebrações especiais são promovidas ao longo do ano, acompanhando o calendário católico. Assim, por exemplo, no sábado, dia 3/2/01, dia de S. Brás, foram oferecidas bênçãos da garganta, órgão do qual este santo é considerado protetor, nas missas de 8, 9, 10 e 17 h. Em março, quando se comemora São José, o convento além de celebrar o santo em seu dia 19, programou um tríduo festivo (três dias) nos dias 16, 17 e 18. Em maio, fez-se a recitação da ladainha de Nossa Senhora em homenagem ao mês de Maria às terças-feiras, sábados e domingos.

Mesmo alguns eventos do calendário civil se cruzam aos serviços religiosos do convento: no segundo domingo de maio celebra-se o dia das mães, com missa festiva e bolo no pátio da Igreja, estendendo-se a homenagem especial à missa da terça-feira seguinte; em agosto, o dia dos pais, e na festa de Santana e São Joaquim, a comemoração da vovó e do vovô. Porém, vê-se que há uma espécie de triagem: são eventos civis relacionados à comemoração da família que adquirem eco no local.

As comemorações especiais citadas aqui não esgotam a totalidade das cele-brações do convento, mas dão uma idéia de como há uma promoção de eventos, alguns dos quais conjugando o calendário religioso e o calendário civil, na tentativa de manter o templo ocupado em outros dias da semana. Fr. Marcílio comentou em entrevista que essas comemorações começaram a ser feitas há pouco tempo, falando da “importância de promover o encontro”, e dos resultados que um evento como esses pode causar: pessoas se conhecendo, vencendo a solidão, criando grupo, convivendo:

O importante é que o povo se encontre, seja irmão um do outros. Há até casais que podem se encontrar e se casar. Na missa das 12 h [a que celebra] há homens do BNDES, da Caixa Econômica, bons partidos... Vem também muita mulher bonita... É uma oportunidade de “conhecer-se” – cada um conhece na medida de sua coragem.

Quando participei de uma celebração da hora santa, em fevereiro, o tema apareceu novamente durante a celebração, feita pelo próprio fr. Marcílio:

A hora santa é uma hora dedicada a Deus. Ela está tendo repercussão e co-

meçando a juntar gente, então é uma comunidade que se cria (grifos meus).

Vê-se então que a programação do convento multiplica as formas de atendi-mento e as chances de encontro, oferecendo possibilidades de “criar grupo”. Nota-se que no discurso de alguns dos padres do local – que, como vimos, são “preparados”, isto é, que além da teologia e filosofia, têm outras formações acadêmicas – há o reconhecimento do potencial agregador das celebrações que organizam, sabendo que elas possuem virtualmente não apenas a capacidade de perpetuar grupos já existentes, reforçando sua coesão, mas também de originar novos grupos. Assim, “acolhendo o povo de Deus”, atraindo fiéis para a Igreja e oferecendo serviços, eles criam (muitas vezes de forma deliberada) espaços de sociabilidade e promovem a formação de grupos – o que, como vimos em relação às missas, realmente acaba ocorrendo nos espaços de convivência do convento. Permanece, entretanto, inde-finido se a dinâmica (ou as dinâmicas, pois se trata de um processo multiforme) que move(m) esses grupos é a mesma imaginada ou desejada pelos frades, e em que medida essa função “sociológica” de criar grupo se relaciona com as demais “funções” (sociais ou espirituais) de um convento.20

Serviços religiosos na festa

A festa do santo, a que já me referi na introdução e no capítulo 1, é um mo-mento de extrema efervescência, o clímax do calendário do convento, o dia em que o número de freqüentadores salta da faixa dos milhares para a das dezenas de milhar. A organização e os serviços do convento adquirem uma feição especial, também em função do evento.

Já no período de preparação da festa é realizada no convento uma das formas características do culto a Santo Antônio, que é a trezena. É comum no culto aos santos realizar vários dias seguidos de orações em seu louvor, seja antecedendo sua festa, seja para fazer-lhes um pedido especial. Os modelos mais correntes são a novena (nove dias) ou o tríduo (três dias). No caso de Santo Antônio, as orações se estendem por treze dias, talvez pelo seu dia ser 13 de junho. A seqüência de orações pode ser feita em dias consecutivos, ou por treze semanas seguidas, neste caso geralmente às terças-feiras. A trezena pode ser rezada individualmente, a cada vez que um devoto sinta necessidade de obter uma graça do santo. Mas ela também pode ser rezada coletivamente, o que é feito no convento no período de 31 de maio a 12 de junho.

A trezena rezada no convento é composta de uma parte constante, repetida todos os dias (a “Oração da Trezena”), e de uma parte variável (os “Exercícios da Trezena”). A cada dia, a oração e a homilia ressaltam um aspecto da vida do santo. Há no parágrafo final da “Oração” uma pausa marcada, para que cada pessoa coloque

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o pedido que quer ver realizado – pois o objetivo principal da trezena é conseguir uma graça do santo. Já nos “Exercícios”, numerados em seqüência, lê-se a cada dia um aspecto diferente da vida do santo, uma das facetas de sua personalidade.

Ela é realizada em dois horários: às 12 h e 18 h (10 h e 17 h aos sábados e domingos), dentro de missas celebradas por um pregador convidado, que pode ser um dos frades do convento, ou um padre de outra igreja. Este ocupa um papel de destaque na condução da trezena, pois é encarregado de proferir um ciclo de homilias especialmente preparadas para a ocasião, com temas que mantenham contato com a vida e/ou a obra do santo. Todo o evento é programado com bastante antecedência, o tema da trezena e de cada uma das homilias é afixado em cartazes espalhados pelo convento e consta do convite da festa.

Em 2001, a trezena foi celebrada e pregada por um dos frades do convento. Acompanhei-a com o grupo de “minha missa”, às 12 horas. A reza da trezena era feita ainda na primeira parte da missa: uma leiga ia ao microfone, lia a oração comum, fazia a pausa para que cada um pensasse em seu pedido, depois lia o exercício do dia.21 Grande parte dos participantes acompanhava a leitura da trezena em livros que traziam consigo.22 Havia ainda em alguns dias da trezena uma mesa no fundo da igreja, para serem deixados pedidos escritos ao santo, contando ainda com papel e lápis à disposição dos que desejassem escrevê-los. Esses pedidos, na hora do ofertório, eram levados ao altar, junto com outras oferendas, para serem entregues ritualmente ao santo.

Além do objetivo explícito de conseguir para os devotos uma graça do santo, outro objetivo da trezena parece ser “ir construindo” o clima da festa. A cada dia, o movimento do convento vai se tornando mais intenso, o número de freqüentadores aumenta, a missa se alonga, a homilia é maior, dá-se a benção do santo, as músicas passam a versar sobre Santo Antônio. Acontece também a entrada do Santo antes da missa, em uma espécie de miniprocissão: uma imagem do santo é trazida do fundo da igreja até a frente do altar, levada por um grupo de pessoas que se inscreveram junto à Pia União de Santo Antônio para fazê-lo. Paralelamente a essas mudanças perceptíveis no ritual e no interior da igreja, o espaço externo do templo também vai se reconfigurando, pela colocação de iluminação extra, montagem de barracas, venda de rifas para a festa etc.

Mas ao discutir a trezena com outros freqüentadores, pude perceber que ela não era só um momento de pedir algo ao santo, nem apenas um evento que muda o ritmo do convento. Era também uma chance de conhecer mais a vida de Santo Antônio, vida esta que o pregador assumia o papel de divulgar. Algumas pessoas reclamavam do padre convidado em 2001, decepcionadas porque ele “não empol-gava”, pois estava mais preocupado em dar diretrizes para o comportamento de cada um, e falava pouco do santo, embora outros se mostrassem enlevados com as pregações a que assistiam, felizes com a oportunidade de “crescimento espiritual”,

mesmo sem ouvir falar muito de Santo Antônio. Mas não é apenas a Trezena preparatória que surge como novidade no

convento em função da festa. Neste dia, toda a organização até aqui apresentada adquire feição especial. Primeiro, o volume maciço de visitantes torna indispen-sável o rearranjo do espaço e da programação, para que seja possível receber e acomodar todos. Os bancos são retirados da igreja, para que ela comporte mais gente, estabelecem-se sentidos de entrada e saída para os visitantes, criando-se um percurso de mão única. Imagens de Santo Antônio são colocadas em pontos estra-tégicos, como na sacristia, para evitar aglomerações diante do altar com o santo. As missas previstas para dentro do templo são poucas, outras são programadas para o parlatório, para onde também vai a comunhão.

Na festa, a benção é proferida na Igreja de vinte em vinte minutos. O texto fundamental é o mesmo dito às terças-feiras, só que ela é ministrada sem missa ou paraliturgia, apenas com breves palavras de saudação e alguns avisos sobre a estrutura da festa. O esquema, se não fosse pelo clima de excitação que percorre o convento – e, no entanto, ele é fundamental para a compreensão do que aí ocorre –, pareceria quase mecânico: as pessoas entram pela porta principal, aproximam--se do altar, lotam o templo, são bentas pelos padres e saem pela porta dos fundos, pois a igreja já está novamente se enchendo de gente. A estratégia para a água benta também precisa ser diferente: o padre que diz a benção não é o mesmo que joga a água. Isto é da responsabilidade de dois frades-estudantes, cada qual com seu balde e vassourinha, havendo uma separação entre gesto, palavra e meio lí-quido, numa divisão do trabalho religioso para garantir maior rapidez e eficiência. E para que esse sistema funcione ininterruptamente, os três frades (“benzedor” e “molhadores”) constituem uma “equipe”, que a cada hora (três bênçãos seguidas) é substituída por outra.

Na festa não há aconselhamento, pois não há tempo para “atendimento persona-lizado”, mas os confessionários se multiplicam: o claustro, que permanece fechado ao público ao longo de todo o ano, é aberto, e ao redor do [lindo] pátio interno do convento, padres estão dispostos diante de bancos, recebendo multidões para se confessar. Para dar conta de todas essas tarefas, o corpo sacerdotal do convento é reforçado, recebendo apoio de franciscanos de Petrópolis e São Paulo, frades e noviços, especialmente deslocados para o evento.

Portanto, apesar de haver um conjunto de “serviços” oferecidos durante os festejos, o eixo da festa é o santo e, conseqüentemente, sua benção, e é em torno deles que a programação é estabelecida. A simplificação e o estímulo à circulação surgem como maneiras de garantir o atendimento a todos e de dar conta da massa humana. Fr. Marcílio, avisando na véspera como seria a organização da festa, estabeleceu as coordenadas:

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Nesse dia, faremos o mínimo possível de missas, porque o que as pessoas querem é a benção de Santo Antônio. Não se pode fazer missa de uma hora de duração com tanta gente esperando!O atendimento será de 5 da manhã às 22 horas, e talvez a gente receba 50 a 60 mil pessoas. Tomem a benção e por favor saiam da igreja. É o único dia do ano que nós padres pedimos para vocês saírem da igreja, mas precisamos evitar esperas que se alongam demais (12/6/01).

Mas além de garantir o atendimento de todos, a restrição dos serviços do convento ao mínimo significa assumir que nesse dia é o padroeiro e sua benção que estão no centro de tudo, de acordo com as expectativas dos muitos visitantes que vêm saudá-lo nesse grande dia.

2 – Outros serviços – a organização da acolhida

Além da diversidade de serviços religiosos oferecidos pelo convento, tanto nas terças-feiras, como em outros dias da semana, deparei-me com serviços que não seriam estritamente religiosos, mas que também seriam voltados para aquilo que é localmente tratado de acolhida, isto é, para a recepção dos freqüentadores. É o caso do almoço das terças-feiras, da venda de objetos e literatura religiosa (na “Boutique Santo Antônio”), ou de salgados, doces, café e refrigerantes (no “Bar Santa Clara”), ou de roupas usadas e acessórios, na “barraca da pechincha”. Há ainda a inscrição em cursos de formação religiosa, promovidos ou apoiados pelo convento, e o lançamento de livros e cds religiosos. Essas atividades são mencionadas nos avisos, ao final de cada missa, e as pessoas são convidadas a delas participar como um complemento da missa ou da benção: “Não deixem de comer depois da missa. Há duas barraquinhas e há o almoço. Comer faz parte da festa da fé: comer, encontrar os amigos” (aviso de missa de fr. Marcílio, 6/3/01).

O almoço é servido às terças-feiras, de 11:30 às 13 horas, sendo da responsa-bilidade das senhoras da Pia União. Por cinco reais (refrigerantes e sobremesas à parte), a pessoa ingressa numa fila e é servida pelas senhoras de uma porção de carne, dois tipos de salada e acompanhamentos, escolhidos entre as opções existentes.23 E, de acordo com a boa vontade e o grau de conhecimento que se tem com a pessoa que está servindo, pode-se mesmo ganhar um pouquinho de cada coisa. Assim, as pessoas mais assíduas possuem além de preferências alimentares, preferências entre as senhoras que irão atendê-las, elegendo sua “favorita”, e optando por entrar na fila em que ela esteja, ou às vezes deixando os outros passarem à frente até que ela esteja livre. Esse favoritismo lembrava um pouco os mecanismos usados para a escolha e vinculação a um padre.

Como o almoço é feito em mesas coletivas, ele se torna um espaço de con-

versação, inclusive para fazer novos conhecidos, cujo tema inicial é geralmente a qualidade da comida. As conversas podem se estender por muito tempo, e even-tualmente passam pela troca de informações sobre eventos religiosos, tanto no convento como em outras igrejas.

Já no Bar Santa Clara são atendidas pessoas que querem comer e beber, mas não uma refeição completa. E enquanto o almoço é oferecido apenas durante um breve horário, o bar permanece aberto às terças-feiras de manhã cedo até a noite. A Boutique Santo Antônio, onde são vendidos objetos de culto como terços, imagens, medalhas, água benta e livros, é dos serviços de acolhida o único que permanece aberto além da terça-feira, embora no resto da semana feche mais cedo do que nesse dia. Quanto à barraca da pechincha, ela é organizada por leigos apenas às terças-feiras e há venda de roupas e sapatos usados, ou mesmo roupas novas com motivos religiosos, para adultos e crianças.

Tanto a renda do almoço, como a do bar e a da barraca da pechincha revertem para auxiliar 500 família pobres cadastradas, que são atendidas pela Pia União. Elas recebem mensalmente uma bolsa de alimentos (“cesta básica”), na segunda sexta-feira do mês, roupas para os filhos menores duas vezes por ano, brinquedos no Natal. O convento também doa, às terças-feiras, através dos ascensoristas, pão para os pobres do Largo da Carioca. Os restos do almoço são destinados às pessoas que ajudam e às que vêm pedir alimento no convento. Muitas vezes os beneficiá-rios da “caridade” do convento consomem os produtos da barraca da pechincha, comprando roupas e acessórios.

Vê-se, portanto, que os serviços do local são bastante variados, abrangendo uma série de atividades. Um bom exemplo dessa multiplicidade pode ser encon-trado em sua portaria, que, como foi visto, é o limite entre os espaços abertos e fechados do convento. É nela que devem ser entregues donativos, que se registram intenções de missas, que chegam os carregamentos de víveres e livros que abas-tecem os postos de venda do convento. É também aí que os visitantes fazem seus pedidos, tiram suas dúvidas, colocam suas demandas. Lá se controla a presença dos padres na casa e se pergunta sobre sua disponibilidade para receber alguém. Pode-se também pedir uma benção particularizada, pois quem fica na portaria, como porteiro, é um frade não-ordenado, isto é, um irmão leigo, com asperges e água benta disponíveis para fazê-lo,

Observando o trabalho da portaria, pude ver o tipo de demanda que aí chega: pessoas que querem comprar água benta, que querem doar algo para um santo específico (“essas rosas são para Nossa Senhora”); pedidos de remédio, de pão; pessoas que trazem estátuas de santos ou medalhas para serem bentas; doações em dinheiro, roupas e alimentos; pedidos de missa; atendimento de telefones. Mas também livreiros entregando encomendas, fabricantes de objetos religiosos trazendo seus produtos – e recebendo dinheiro por isso, ou seja, a portaria também

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funciona como um caixa do convento. Muitas vezes o atendimento na portaria não se encerra nela mesma: é preciso encaminhar as demandas para outros lugares. Assim, aquele que pede remédio, roupa e comida é enviado para as senhoras da Pia União, aquele que pede aconselhamento ou confissão é remetido a um padre, que, fora das terças-feiras ou dos horários convencionais, pode ser chamado pela portaria para atendimentos. As atividades da portaria servem como exemplo, de uma forma concentrada, da intensa circulação de pessoas e coisas no convento.

Notas1 O caráter de “no man’s land” atribuído ao centro nos finais de semana faz com que ele seja visto como lugar extremamente perigoso, cujo acesso fica ainda mais dificultado pelo fechamento do metrô no domingo. Nos últimos anos, a prefeitura da cidade tenta desenvolver um projeto de revitalização dessa área nesses dias, promovendo eventos que envolvem museus, igrejas, centros culturais. O Largo da Carioca, entretanto, não tem sido ocupado por esses eventos, e é tido como um dos pontos críticos da região. Ver Carvalho (1997: 21-43).2 Com relação ao culto a Santo Antônio, dá-se no convento uma espécie de combinação entre a periodicidade mensal, semanal e anual. O dia do santo é 13 de junho, mas ele também associa-se às terças-feiras. Assim, há os que vêm no convento uma vez por ano, na festa do santo; os que vêm uma vez por mês, na primeira terça-feira; os que vêm semanalmente, todas as terças-feiras. Há ainda aqueles que vêm todos os dias, ou mais de um dia por semana, geralmente por terem desenvolvido uma relação com o próprio convento, para além de uma relação que possam ter com o santo, mas trata-se de um número menor de pessoas. É sobre a freqüência semanal que focalizei a observação.3 Paraliturgia é um termo utilizado aqui em um sentido lato. Ele quer expressar a idéia de que, de 13h30 às 16h30, quando não há missas, o convento continua oferecendo bênçãos, que são dadas após o celebrante executar uma cerimônia cuja estrutura parece muito com a da missa, em termos de ter uma leitura de evangelho, uma breve homilia e algumas orações, sendo, entretanto, de duração mais curta. Pode-se dizer em resumo que, enquanto nas manhãs e no início da noite, há missas que têm bênçãos no final, no meio da tarde há bênçãos que têm uma paraliturgia antes.4 A benção pode ser encontrada no livro Orações de Santo Antônio, da Editora Vozes (2000). Há mais um trecho no livro, mas que nem sempre era dito no convento: “C: Senhor Deus, nós vos bendizemos pelas vossas maravilhas, operadas em Santo Antônio, vosso confessor e doutor, e vos pedimos que sua intercessão alegre a vossa Igreja, para que ela viva em paz e unidade, caminhando incólume até as alegrias eternas junto de vós. Por Nosso Senhor Jesus Cristo”. No mesmo livro há bênçãos específicas para “Os lírios de Santo Antônio” e “O pão de Santo Antônio”, que são realizadas no convento apenas durante a trezena. 5 Aparentemente é uma brocha de pintor, mas cheguei a pensar numa vassoura para limpeza de banheiros. Um amigo, ex-padre do convento, relatou-me seu choque ao chegar ao Santo Antônio pela primeira vez e descobrir que a benção era dada com brocha. Entretanto, minha hipótese da vassourinha de banheiro deixou-o ainda mais chocado. O uso de um instrumento ritual ina-bitual, que causou espécie a mim e a meu amigo, não provoca entretanto nenhuma comoção nos freqüentadores. A benção não parece ser menos benção por não ser dada com o asperges, a

vassourinha integrou-se ao ritual.6 A “prece”, no sentido complexo que Mauss (1968) lhe atribui, é uma combinação de crença e rito, ou seja, é simultaneamente a expressão de coisas em que se acredita – mesmo em formas fragmentárias – combinadas a coisas que se quer realizar. 7 Além das observações de Mauss, o texto de Parrinder (1987) sobre “tocar” e o de Ries (1987) sobre “abençoar” ajudaram-me nessa reflexão. As formulações sobre a presença de um santo podem ser encontradas em Brown (1982) e Fernandes (1982, 1989), entre outros.8 Caso terça-feira seja um feriado, a benção é dada na quarta-feira, mesmo com um número muito menor de pessoas presentes.9 A tipologia de distinção entre os padres é minha e foi composta após observar suas missas e bênçãos, ouvindo inclusive suas homilias. Mas nela também foram considerados os comentários feitos pelos freqüentadores. 10 Diferentemente da benção, que foi para mim uma novidade característica do convento, a missa era uma celebração a qual já havia assistido antes no passado, em muitos outros templos, por ter sido católica. Sua descrição aqui, portanto, longe de pretender apresentar ao leitor algo de original tem a função de ajudar-me a controlar e a desnaturalizar as impressões pré-concebidas que tinha sobre esse tipo de celebração. Para uma possibilidade de etnografia da missa, ver Rémy (2003).11 Assim, por exemplo, em torno de toda a Quaresma, quando se dá a Campanha da Fraternidade, foram utilizados nas missas os cânticos desse evento. Já em maio, mês de Maria, uma série de cânticos marianos foi introduzida nos folhetos. E na trezena, os cânticos passam a ser, na maioria, referidos a Santo Antônio.12 Aos domingos, a regra litúrgica é realizar a primeira e segunda leituras, entremeadas pelo salmo responsorial, mas às terças-feiras, dia de liturgia simplificada, era realizada apenas uma.13 Como objetivos que podem orientar o sentar, consegui identificar: ficar perto do altar, ter acesso ao santo, ficar a uma distância ideal da água benta, pegar mais vento, ver ou ouvir melhor, encarar o santo [a imagem do altar-mor], fazer a leitura da missa, garantir um folheto etc. Para conseguir o lugar ideal, algumas pessoas costumam chegar antes do final da missa anterior à que pretendem assistir. Joaquim, um “conhecido” que citarei várias vezes, neste capítulo e em outros, que faz parte do grupo “em pé, na frente, à esquerda”, explicou-me que escolhera esse local porque desistira de ficar disputando lugar em banco com as velhinhas.14 Assim, por exemplo, fr. Leandro faz um sermão participativo, com perguntas [suas] e respostas [do público] (23/1/01); fr. Tobias enquanto benze pede que a audiência reze um Pai-Nosso, uma Ave-Maria e um Glória ao Pai pelo papa (20/2/01); fr. Marcílio sugere que o evangelho seja lido em duas vozes, por ele e pela audiência, e que a primeira leitura seja feita por todos juntos (28/2/01). 15 O termo “furacão”, que considero extremamente apropriado, foi encontrado em um jornal dos próprios frades franciscanos, comentando uma série de celebrações que fr. Adão fizera no sul do país.16 O cortejo, composto de seis mulheres, com fitas verdes que marcam seu pertencimento à Pia União de Santo Antônio, divide-se em quatro filas: na primeira, uma mulher de mãos postas; na segunda, duas outras trazendo sacolas de dinheiro (ofertório); na terceira, uma com a cesta de pedidos; e na quarta, duas mais, uma com vinho e água, outra com o cálice de hóstias a consagrar.17 O valor das espórtulas para as missas em 2001 era de R$ 5,00 para a missa comunitária, R$

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20,00 para a missa individual sem dia e horário definidos e de R$ 25,00 para a missa individual com dia e horário marcados. Joaquim, meu interlocutor em várias circunstâncias, comentou que antes de se tornar freqüentador assíduo do convento e conhecer melhor seu funcionamento, fez uma promessa de mandar rezar uma missa e, quando foi pagar, ficou surpreendido pelo que considerou “um preço muito barato”, pois quando a prometera, esperava ter se comprometido com algo mais caro: “e eu que achava que tinha prometido grande coisa...”.18 Assim, por exemplo, em 20/2/01, uma senhora sai da missa e liga do telefone público para a filha: “Assisti à missa das onze em sua intenção, e agora vou pegar o metrô para te encontrar” [grifos meus]. 19 De novo, citando Joaquim: “Ninguém vem aqui en vacances, todo mundo que vem aqui está precisado, necessitado [portanto] há muita energia negativa por aqui. Os padres sabem disso, por isso eles sabem como se limpar, como descarregar essa energia. Eles não dizem, mas sabem como – há muitos deles que são psicólogos, terapeutas, radiestesistas (...) Quem trabalha com pessoas tem de aprender a se limpar” (Joaquim, 9/6/01).20 Relendo a documentação da Igreja Católica sobre santuários, pensei na possibilidade de que essa ênfase de fr. Marcílio na capacidade de um santuário criar comunidade seria uma resposta a um debate dos anos 1970/1980, interno à Igreja, em que os santuários eram vistos como alie-nantes por receberem apenas massas e não possibilitarem uma vivência comunitária consciente.21 A versão da oração da trezena usada no convento é a publicada pela Editora Vozes, dos frades franciscanos, no livro Orações e Trezena de Santo Antônio: “Eu vos saúdo, grande Santo Antônio, pai e protetor. Eis-me humildemente prostrado a vossos pés para pedir-vos intercedais por mim diante de Nosso Senhor Jesus Cristo, para que ele se digne conceder-me, por vosso intermédio, a graça que desejo [pede-se a graça], se for da vontade de Deus, à qual me submeto inteiramente. Peço-vos, amável Santo, pela firme confiança que tenho em Deus, a quem servistes fielmente, e pela confiança que deposito em Maria, a quem tanto honrastes. Imploro-vos, pelo amor desse doce Jesus menino que carregastes em vossos braços. Suplico-vos, por todos os favores que ele vos concedeu neste mundo, pelos prodígios sem número que Deus operou e continua a operar diariamente por vossa intercessão. Peço-vos, enfim, pela grande confiança que tenho em vossa proteção” (Orações, 2000: 10-11).22 O livro de orações, a que nos referimos na nota anterior, é editado em duas versões: uma de capa azul, mais completa e cara, com o texto da oração, os exercícios, as bênçãos de Santo Antônio (a benção mais geral, a dos pães, a dos lírios, outras orações ao santo, mais comentários sobre sua vida e suas práticas de culto). A outra, de capa marrom, vendida na barraquinha do convento como “para levar na bolsa”, tem apenas a oração da trezena e os exercícios.23 Arroz, feijão, macarrão e farofa estão presentes todas as semanas. As saladas são diversas, e “sem agrotóxicos”, pois são feitas com legumes e verduras da horta dos frades, no próprio convento. Ao longo do semestre apareceram outras opções como lasanha, carne assada, frango desfiado, arroz de lentilha ou à grega, peixe frito, nhoque.

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109108 A dinâmicA do sAgrAdocApítulo 4

As pessoas do Convento

Em torno da programação oferecida pelo convento, sejam as celebrações mais grandiosas, sejam as atividades de caráter menos formal, relacionam-se uma série de pessoas, tanto para executá-las, como para delas usufruir. A maior parte dos serviços religiosos do convento é executada pelos frades, mas mesmo para esses serviços, e principalmente para os demais, eles contam com o apoio de funcionários e de leigos que atuam como voluntários e doadores. Por outro lado, se o convento recebe a cada semana cerca de cinco mil pessoas, é preciso tentar estabelecer algumas referências sobre quem são esses freqüentadores e sobre as justificativas que eles apresentam para seu comparecimento ao local. O objetivo deste capítulo é analisar, de uma forma mais detalhada do que até aqui foi feito, quem são essas pessoas, mapeando suas posições.

1 – Os frades

Os frades são figuras de destaque no convento, pois os “serviços” por eles realizados são responsáveis por grande parte da movimentação do local, atraindo freqüentadores regulares por suas qualidades teológicas e pastorais. São os frades os que benzem, oficiam missas, fazem homilias, confessam, aconselham, pregam a trezena etc., atividades das quais os freqüentadores vêm participar. Porém, cabe lembrar que mesmo a OFM sendo composta por irmãos clérigos (que são ordenados, isto é, que também são padres) e irmãos leigos (que não são padres), a totalidade dos serviços religiosos só pode ser executada pelos irmãos clérigos.

Conforme dados obtidos nos Anuários da Igreja Católica do Brasil e da Ar-quidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro (Ceris, 2000, Arquidiocese, 2003), o corpo de frades do convento é composto por cerca de 18 membros, sendo que, dentre esses, apenas dois seriam irmãos leigos. Mas nem todos os frades moradores da “casa” estão destinados ao atendimento do público, porque o convento funciona como uma residência para os idosos da Província da Imaculada Conceição. Isso

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ajudaria a entender a média de idade dos frades, que para o ano 2000 era de 67 anos.1Porém, o total de frades, tanto na listagem do Ceris como na da Arqui-

diocese, não inclui os “hóspedes”, frades de outras províncias ou casas que aí estão residindo temporariamente, seja para estudos no Rio de Janeiro, seja para tratamento de saúde, seja em preparação para deslocamentos (no país ou no exterior). Também não incluiu frades enviados de outras casas esporadicamente para ajudar em dias de maior movimento (geralmente na primeira terça-feira do mês); ou “frades-estudantes”, que vêm fazer estágio pastoral no convento durante as férias escolares. Há também padres de outras paróquias que podem ser convidados a celebrar no local. Mas apesar de não serem contabilizadas nas listagens oficiais de Igreja, todas as situações mencionadas nesse parágrafo foram encontradas em campo e por isso o total de frades e padres efetivamente em ação no convento pode não coincidir com o número de frades oficialmente lotados na casa.

Vê-se ainda por esses dados que o convento – que, como já analisado no capí-tulo 2, é simultaneamente uma casa de religiosos masculinos e um santuário para atendimento ao público – possui, enquanto “casa”, uma série de funções internas para a OFM, servindo como asilo para frades idosos, residência de estudantes, pouso para o trânsito dos religiosos e centro de treinamento dos novatos.

Os frades desempenham muitas atividades no convento, mas eles também desenvolvem atividades em outros locais. Eles rezam missas em outras igrejas, fazem casamentos, organizam retiros, cursos de formação. Um bom exemplo disso é o Curso de Teologia para Leigos. Trata-se de um curso que se completa em dois anos, organizado em módulos mensais que compreendem temas como Espiritu-alidade, Mariologia, Teologia Bíblica, Cristologia etc. Seu objetivo é promover um “enraizamento da fé”. Este curso é realizado às segundas-feiras, à noite, em uma igreja do Largo do Machado, mas é dirigido por um dos frades do convento. Em épocas de matrícula no curso, uma mesa é montada na portaria do convento para receber as inscrições dos interessados, e o público é convidado nos avisos das sucessivas missas a inscrever-se. O convento, assim, funcionaria como uma espécie de canal, de porta de entrada para espaços mais formais de transmissão de conhecimentos religiosos, onde seus frades também atuariam.

Outro aspecto que deve ser ressaltado quanto à atuação dos frades é que alguns dedicam parte de seu tempo à área acadêmica, fazendo ou tendo feito pós-graduação e/ou dando aulas em Faculdades de Teologia e Filosofia. Portanto, suas atividades não envolvem apenas serviços religiosos.

Mais um campo em que os frades do convento obtêm um certo destaque é o das publicações, pois alguns deles são autores de vários livros. Os títulos incluem estudos teológicos, diretrizes morais para o rebanho, a biografia de um santo ou santa, mas também orações, reflexões, pensamentos, criados pelos próprios frades.2 Há todo um universo de publicações católicas, numa espécie de “mercado editorial

setorizado”, que produz best-sellers na linha “auto-ajuda” cristã, e que parte dos freqüentadores do convento parece conhecer com relativa intimidade, consumindo vários títulos. O clero do local, portanto, não deve ser visto como mero reprodutor e, sim, tratado como capaz de reinventar práticas de culto, de criar novas formas de praticá-lo.

Durante o campo, tive contato com as obras de fr. Marcílio, fr. Estevão e fr. Adão, tanto porque os próprios autores as divulgavam em suas missas ou porque as autografavam no pátio do convento, ou também por vê-las expostas em mesas e barraquinhas, ou ainda por ouvir de leigos conselhos para lê-las. Assim, uma das práticas correntes dos frades que escreviam era a de utilizar seu próprio material em suas missas, lendo em voz alta alguma de suas orações, ou trechos de capítulos das obras. É também comum que as anunciem para a audiência, recomendando-as e divulgando que estão à venda na Boutique Santo Antônio. Ou, no caso de novos trabalhos, os lançamentos costumam ser programados para as terças-feiras, no adro, aproveitando o volume de freqüentadores do local. Portanto, o convento é um espaço de lançamento e divulgação dos livros de seus frades, que se apresen-tam também como “produtores do sagrado”, na medida em que utilizam material escrito por eles mesmos.

Foi possível notar, entretanto, que as publicações estabelecem clivagens entre os frades e se tornam um instrumento de concorrência entre eles. O ato de escrever e publicar marca uma diferença entre frades que têm ou não têm livros, remetendo à questão das diferentes competências intelectuais dentro da Ordem. Os frades do convento são preparados, mas nem todos têm o mesmo grau de preparo, nem têm uma carreira igualmente bem-sucedida. Há frades que são considerados brilhantes pelos freqüentadores, que aparecem na imprensa, que possuem páginas na internet com suas publicações etc. Há outros que não, e essa diferença parece ser foco de tensões no local.

Por outro lado, como os frades não-ordenados não podem realizar todos os serviços religiosos, há uma tendência a que eles assumam os trabalhos mais braçais da casa, como, por exemplo, a portaria, deixando aos frades ordenados a execução de atividades de caráter sacerdotal e intelectual. Assim, a ordenação parece ter um peso importante nas atribuições assumidas por um frade no convento, e ela pode interferir também nas oportunidades de formação profissional, ou de continuidade de formação, que lhe são oferecidas pela OFM.3

Mas além de uma distinção entre intelectuais e não-intelectuais, as publicações servem de instrumento de concorrência entre os frades que publicam, pois parece haver uma certa competição entre eles para ver quem consegue vender mais. Sin-tomático dessa competição é o fato de que, apesar de usar suas próprias obras em suas missas, nenhum frade utiliza a obra de outro. Portanto, o número de títulos publicados e o volume de vendas são objeto de disputa dos frades e funcionam

As pessoAs do convento

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como índices do seu sucesso.A questão da propriedade relativa dos horários de missa pelos frades, e a

mobilização de seus fãs-clubes para assisti-las, parece relacionar-se com a concor-rência também. Outro dos critérios de sucesso de um frade é o quanto sua missa consegue encher, e talvez por isso haja tanto zelo na manutenção dos horários. Por outro lado, esse critério nem sempre é absoluto: há frades cujas missas não são tão cheias, mas seus partidários atribuem esse fato à sua “profundidade”, enquanto que outras missas lotadas podem ser tratadas como “superficiais”, e seus padres, como “estrelas”. De qualquer modo, ser capaz de encher uma igreja parece motivo de orgulho para um frade.4

Porém, além de uma certa competição entre os frades do convento, um outro tipo de tensão que parece existir é aquela entre os moradores da casa e seus cola-boradores externos. Pude perceber essa tensão durante a festa do santo, quando in-gressei no claustro, a convite de frades-estudantes de Petrópolis, que me conheciam como professora e me convidaram a visitar o local. Eles estavam no convento para ajudar a atender à multidão da festa, mas me levaram nos intervalos para conhecer a parte interna do convento e depois para um lanche no refeitório. Consciente de que isso representava uma espécie de “curto-circuito” nas relações instituídas no local, pelas regras de controle do acesso, expressei meus pruridos de entrada a um aluno-amigo. Ele foi firme: “deixe disso, aqui é nossa casa também”. Sua firmeza deixou-me entrever uma certa “tensão” existente entre frades moradores de Petró-polis e frades moradores do Rio, isto é, entre frades de casas diferentes.

As pequenas ou grandes tensões que podem ocorrer entre os frades também dizem respeito ao caráter de uma instituição com tendências à totalidade, como a Ordem religiosa, que os leva a deixarem a família de origem para viver “em co-munidade” nos conventos, que se tornam sua “casa”, transformando os confrades em sua “família espiritual”. A tensão entre os frades do Rio e de Petrópolis, a meu ver, se daria por dois motivos. Primeiro, porque os frades de Petrópolis, apesar de já terem geralmente passado por vários anos de seminário até chegar a ajudar no convento, não haviam ainda realizado completamente “a passagem” para o in-gresso na Ordem, isto é, ainda não haviam feito os votos solenes (definitivos) que os incorporam totalmente, mas apenas os votos simples (temporários). Portanto, poderia estar havendo uma tensão entre frades de diferentes graus de pertencimento e adesão à Ordem.

Mas – segundo ponto – entraria em jogo também toda uma questão da auto-nomia das casas franciscanas, que adquirem perfis específicos e assumem carac-terísticas próprias umas em relação às outras, dentro de uma margem de manobra deixada por Constituições e Estatutos gerais.5 A autonomia das casas faz com que os residentes em Petrópolis sejam vistos, simultaneamente, como “irmãos”, da mesma província, e como “estrangeiros” no convento do Rio, já que não são desta

casa, isto é, pertencem a outro convento, com outras regras. Em 2003, visitando a festa, pude reparar ainda em uma certa “etiqueta” dos frades estudantes de Pe-trópolis, que, mesmo no tumulto da situação, consultavam primeiro os frades “da casa” para executarem determinadas ações.

Porém, como essas residências, a não ser para os frades mais idosos, não são definitivas – a itinerância faz parte da vida religiosa franciscana –, o estrangeiro de hoje pode ser o confrade de amanhã ao ser transferido para a mesma casa, logo, a oposição dentro versus fora nunca pode ser total.

2 – Funcionários e voluntários

Na realização de todos os serviços do convento, mesmo os religiosos, há a colaboração de funcionários e voluntários. Os funcionários são pessoas contratadas para realizar esses serviços, isto é, são empregados do convento, enquanto que os voluntários oferecem gratuitamente seu tempo e energia, geralmente motivados por uma devoção.

Apesar de os funcionários serem as pessoas do convento das quais menos me aproximei, mesmo tentando várias vezes entrevistar a sacristã, com quem tive mais contatos, foi possível perceber algumas coisas sobre eles.

O número dos funcionários do convento é de cerca de 17 pessoas, contratadas como “auxiliares de serviço geral”, e divididas entre as atividades de atendimento ao público e os serviços internos da casa. No primeiro caso, temos os dois ascen-soristas, a sacristã, a responsável pelo banheiro. Na parte interna, as funções se tornam menos discerníveis, pois o acesso ao claustro é restrito, mas comportam atividades de limpeza, lavanderia, jardinagem, cozinha. Nota-se, quanto à sua dis-tribuição no convento, que há apenas uma funcionária lotada na Igreja, a sacristã. Mas mesmo funcionários em atividades menos evidentes são conhecidos de alguns freqüentadores, que costumam conversar com eles.

A presença dos leigos e leigas que colaboram com o convento é maior e mais evidente que a dos funcionários. Ela é bastante importante para viabilizar a “acolhida” no convento. Nos serviços religiosos, os leigos se responsabilizam pelos cantos, ofertórios, distribuição de folhetos, leituras durante a missa, fila do aconselhamento etc. E quanto aos serviços de caráter não-religioso, tornam-se os responsáveis pela maior parte das atividades. Portanto, embora o convento possua funcionários, a maior parte dos serviços de atendimento ao público é organizada e executada por leigos: as barracas, o almoço, a distribuição de cestas e remédios etc.

As pessoas que comparecem regularmente para apoiar as atividades do conven-to, principalmente às terças-feiras, pertencem em grande parte à Pia União de Santo Antônio, uma associação leiga criada no convento com o objetivo de cultuar esse santo. Seus membros têm o compromisso de participar das atividades do convento,

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de freqüentar a missa das terças às 8 horas da manhã, de trabalhar às terças-feiras em louvor ao santo e também no dia de sua festa. As senhoras pertencentes a esse grupo – pois embora haja homens como membros, são as mulheres que comparecem regularmente ao local – definem-se como “voluntárias do Pão de Santo Antônio”, e estão na média dos 55 anos, embora haja várias com 70 anos ou mais.6 Elas são identificáveis pela fita verde que usam, sinal de sua associação.

Mas há também as pessoas que colaboram por sua vinculação a São Francis-co de Assis. Há uma segunda associação ligada ao convento, a Ordem Terceira Franciscana, ou Ordem Franciscana Secular (OFS), em torno do santo fundador do franciscanismo e de seus princípios. Há também uma articulação com a Juventude Franciscana (JUFRA), movimento de jovens católicos vinculado ao franciscanismo.

Porém, há ainda aqueles que se mantêm, por assim dizer, avulsos, isto é, pessoas que não pertencem a associações, mas que vêm ajudar por uma devoção a Santo Antônio ou a São Francisco, ou por terem estabelecido algum laço com o convento e seus frades. Algumas pessoas ainda agregam várias vinculações, já que não elas se excluem mutuamente. Por outro lado, a freqüência ao convento, quando se alonga no tempo, isso é, quando se dá por anos a fio, pode contemplar uma mudança no tipo de vínculos, uma maior ou menos adesão às atividades, de acordo com o ciclo de vida da pessoa.

O caráter “voluntário” desse trabalho, que contém uma alta dose de “sacrifício” é ressaltado pelos demais freqüentadores do convento.7 Assim, todo um conjunto de voluntários divide-se no apoio e execução dos serviços destinados ao público em geral, num número maior às terças-feiras; menor, mas ainda assim presente, nos outros dias da semana.

Para dar conta das atividades, as senhoras se dividem em grupos: grupo da cozinha, grupo do bar, grupo da barraca de Santo Antônio. Há ainda as pes-soas que ajudam na liturgia, mas não houve em campo referências a elas como constituindo um grupo. Os grupos de trabalho possuem lideranças (as quais me foram indicadas por informantes, para que eu pedisse entrevistas), e geralmente as senhoras se especializam em ajudar em um dos grupos. Há também relatos de conflitos: senhoras que brigaram em um dos grupos e migraram para outro. Durante o campo, aproximei-me mais do grupo da cozinha, pois utilizei o almoço orga-nizado por ele como ponto de referência, mas também consegui alguns contatos com as senhoras do bar.

O grupo da cozinha se responsabiliza pelo almoço: para servi-lo entre 11h30 e 13 horas, as senhoras chegam ao convento em torno de sete da manhã, liberando-se por volta de três da tarde. Inicialmente ele era um grupo de costura para os pobres, mas com a perda de espaço para outras atividades, o grupo começou a organizar o almoço.8 A comida é feita no local, com o auxílio de diaristas, contratadas para ajudar na parte mais pesada do trabalho, mas as sobremesas são trazidas de casa,

cada senhora caprichando em fazer sua especialidade. O grupo do bar é o respon-sável pela revenda, às terças-feiras, de doces, salgados, café e refrigerante, durante todo o dia, nas instalações localizadas no adro da Igreja, que são procuradas prin-cipalmente nas saídas de missas.

Se esses dois grupos são da responsabilidade da Pia União, a barraca de artigos religiosos parece mesclar membros da Pia União com pessoas que possuem outros tipos de vínculo com o convento, isto é, que não vêm apenas às terças-feiras, visto que este serviço é o único dos três que funciona também nos outros dias da semana. E por vender artigos cujo estoque é de responsabilidade dos próprios frades manter e renovar, essa barraca mantém uma relação constante com a portaria do convento.

Quanto às pessoas que ajudam na liturgia, elas participam, como foi dito, da distribuição de folhetos, execução de cantos, realização de leituras, coleta etc. Apesar das fisionomias dessas pessoas, que geralmente ocupam os primeiros bancos da Igreja, se repetirem de uma semana para a outra, sua forma de relacionamento permaneceu indefinida para mim. Consegui, entretanto, perceber que uma parte delas pertence à Pia União, pelas fitas verdes que portavam, sinal distintivo da associação.

Todas essas atividades devem, entretanto preservar um intervalo para a par-ticipação das pessoas voluntárias em uma missa, ou em uma benção. Os devotos de Santo Antônio, que se doam aos serviços do convento por amor a “Ele” (“Ele” surge muitas vezes no convento como sinônimo de Santo Antônio), fazem questão de comparecer à Igreja para saudá-lo. Os demais voluntários, mesmo que não se sintam particularmente ligados ao santo, costumam assistir ao menos a uma missa.

Assim, as pessoas que trabalham como voluntárias do convento possuem uma certa ambigüidade quanto aos serviços oferecidos: por um lado, doam seu tempo e sua energia para que esses serviços aconteçam para os outros, oferecendo--os. Mas, por outro lado, elas mesmas tornam-se beneficiárias desses serviços, utilizando-os, ainda que numa parte reduzida do tempo que permanecem no local.

3 – O público do convento e as diversas razões para a vinda

Mas quem é “o público” do convento? Quem são os atentidos pela estrutura montada? As seguidas visitas ao local permitiram-me compor um certo quadro de seus freqüentadores semanais. Observando sucessivas vezes a audiência das missas da manhã, e algumas da tarde, notei que o público do convento é formado principalmente por mulheres. A proporção talvez seja de sete mulheres para cada três homens, mas quando a festa do santo se aproxima, a presença masculina vai aumentando.

Esse público está, na sua maioria, acima dos 40 anos, e o convento é capaz de

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reunir um setor expressivo de pessoas com mais de 65 anos. Havia também alguns jovens em idade universitária. Quase não há crianças no lugar, creio mesmo que apenas em poucas vezes as encontrei, sendo que em uma delas parecia se tratar da apresentação de um bebê ao santo.9

Em compensação, várias vezes, eu diria quase todas, havia turistas no local, na maioria estrangeiros, mas para visitar a Igreja, e não para acompanhar as ce-lebrações.

Em termos de composição étnica, cheguei a notar no convento aquilo que me pareceu uma presença expressiva de negros e pardos, que às vezes pareciam compor metade da audiência das missas e bênçãos. Em termos socioeconômicos, o público tende a ser de camadas médias – média alta, no caso das senhoras da Pia União, média baixa, quanto aos freqüentadores como um todo –, mas há pessoas de todos os níveis, ainda mais se considerarmos os que estão no convento para pedir donativos e que participam das celebrações. Em termos de área residencial dos freqüentadores, o convento se revela como um verdadeiro ponto de cru-zamento: em minhas entrevistas falei com pessoas da zona norte e zona sul da cidade (menos da zona oeste), como também da Baixada Fluminense.

Todas essas informações se referem à freqüência das terças-feiras. Em relação à festa, o perfil dos freqüentadores se altera. Há mais homens e mais gente jovem (até mesmo crianças) do que no resto do ano. Já o raio da área residencial dos presentes é ampliado, pois pessoas de pontos os mais diversos do Rio e do Grande Rio fazem questão de vir saudar Santo Antônio no seu dia.

Assim, de acordo com os dados da pesquisa, esse seria um quadro geral da composição do público que freqüenta o convento. Mas seria preciso também indagar as razões de seu comparecimento ao local.

Minha impressão inicial era a de que os freqüentadores seriam simplesmente os devotos de Santo Antônio. Mas conforme me envolvia, pude identificar outras motivações e formas variadas de inserção, que não estavam necessariamente rela-cionadas ao santo, isto é, que podiam ou não passar por ele, e que mesmo passando por ele, eram capazes de somar-se a outros interesses.

Nos depoimentos recolhidos em campo, encontram-se diversas razões para justificar o comparecimento. Em entrevistas realizadas no adro da Igreja, a questão apareceu da seguinte maneira:

Sou uma habituée, venho terça-feira em duas missas, às dez e às onze horas. Venho com um amigo meu que só gosta da missa das onze, então assisto às duas. Venho há mais de seis anos, subo de elevador, desço de escada. Tornei-me devota. Eu freqüentava o [mosteiro de] São Bento no momento de uma grande dificuldade, mas não me sentia bem. De repente recebi um santinho, de Santo Antônio, desses que hoje eu dou, e passei a me sentir ótima.

Eu consigo tudo que eu peço, até eu mesma fico impressionada, apesar de não ter muita fé. Então eu venho toda a terça-feira, pagando com santinhos. Venho ao Santo Antônio e peço pelos outros.

Matilde, uma estatística que trabalha no centro da cidade e que vem ao con-vento todos os dias, há mais de um ano, em seu horário de almoço, falou assim de seus interesses:

Eu não tenho nenhuma devoção particular, estou aqui para dar uma relaxada, (...) O lugar me atrai. Venho pela arquitetura, (...) Pelos freis... eles geralmente são pessoas-cabeças (...). Quando eu vim a primeira vez eu só ficava aqui do lado de fora (...) Eu acho interessante assim, a fé que as pessoas têm. Eu percebo isso aí dentro, depois que eu comecei a entrar, percebo essa coisa da fé que nem eu mesma tenho. Então é uma coisa assim muito forte, você sente uma coisa forte ali dentro, rola uma coisa de União mesmo, de pensamento mais elevado, acho isso muito interessante. (...) [Mas] eu estou aqui para dar uma arejada na cabeça. Pergunta – Você não tem nenhuma vinculação específica com Santo An-tônio?Matilde – Nenhuma vinculação com nada! Me considero assim... indepen-dente! Agora, tenho o maior respeito pela fé dessas pessoas que acreditam em alguma coisa.

Outra freqüentadora, Margarida, com a qual conversei durante um almoço, e que embora não venha toda a semana, vem sempre que pode, desde menina, falou--me também de coisas que encontra no convento:

Um dia eu assisti a uma missa chorando, em prantos, desesperada. Quando saí da Igreja o fr. Marcílio parou do meu lado e fez uma imposição de mãos, e eu parei de chorar na mesma hora. Ele disse: “O que quer que esteja te aborrecendo, não chore, que vai ser resolvido”.

Os desejos e necessidades dos freqüentadores, expressos de formas variadas nos depoimentos acima citados, adquirem uma feição diferente no “caso” de D. Raimunda, uma senhora de aproximadamente 70 anos, que ajuda na limpeza do convento e que também recebe ajuda em dinheiro e alimentos. Tive a oportunidade de conversar com ela várias vezes e entender um pouco mais do mecanismo de atendimento a necessidades. D. Raimunda é uma nordestina que ficou viúva do primeiro marido ainda jovem e veio “do Norte” com os filhos pequenos. Casou--se de novo, abandonando o segundo marido porque “não prestava”, bebia e batia nela. “Lutou muito”, “trabalhou em casa de família”, criou os filhos, e parou de

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trabalhar por causa de idade avançada. No convento, Raimunda recebe uma cesta básica há mais ou menos um ou dois anos:

As coisas foram piorando... Eu não tenho medo de trabalho, se aparecer eu faço, passo roupa, limpo. Mas também não tenho vergonha de pegar a cesta. Vergonha são as mulheres novas, que podem trabalhar e ficam pedindo. Eu já estou velha, não consigo mais, não tenho vergonha da cesta.

Há cerca de seis meses, ela passou a ajudar D. Íris (uma das senhoras da Pia União responsáveis pelo bar), varrendo às terças-feiras de manhã o pátio em frente às barraquinhas em troca de cinco reais que seriam para seu almoço. Entretanto, como se tornou amiga das senhoras da cozinha, almoça de graça e guarda os cinco reais, pois juntando consegue comprar o gás do mês. Do convento também recebe o pão que guarda para ir comendo ao longo da semana e que leva ainda para filhas e netos, e sobras do almoço, que também leva para casa. Ganha roupas usadas das senhoras da Pia União, recolhe e vende latas de bebida vazias. Assim, toda terça-feira chega ao convento antes das sete da manhã, varre o pátio, toma café no bar da Igreja, vai à missa, comunga, às vezes confessa, e conversa com os outros freqüentadores, até a hora do almoço. Depois, almoça e leva os restos de comida para casa num pote plástico de sorvete, para ela e para o resto da família.

Aqui é ótimo. (...) Tenho uma vida feliz nessa igreja. Tem gente que conver-sa comigo, tem uma mulher rica que sempre senta e conversa comigo, me convidou até para ir para o casamento da filha (...). É rica, mas senta aqui e fica horas conversando comigo, é rica, mas até me beija. Ela; a filha [dela].

O depoimento de D. Raimunda permite-nos perceber como a ajuda que ela recebe foi incorporada a um conjunto de estratégias para sua sobrevivência mate-rial. E como, da cesta inicial que recebia, passou, por sua vez, também a dar um tipo de ajuda, aumentando seu leque de relações no local e, conseqüentemente, as ajudas recebidas. Elementos como o pão, os cinco reais semanais, o almoço, as roupas e a cesta básica, se olhados de fora parecem ter pouco valor ou um caráter residual, mas para ela adquiriram importância central na sua manutenção. Como ela, inúmeras outras pessoas incorporaram a ajuda que recebem no convento ao rendimento familiar.

Se confrontarmos os depoimentos citados, vemos que o convento se configura como um local capaz de atender a um amplo espectro de necessidades e interesses, desde os mais abstratos até aqueles mais concretos. Podemos então, através de-les, perceber a diversidade de público que o convento tenta atender e – conforme depoimentos de freqüentadores assíduos que falam do local com carinho – que

ele tem conseguido fazê-lo de alguma forma. A gama de serviços oferecidos pelo convento de Santo Antônio é voltada às necessidades espirituais, mas também às materiais de seus freqüentadores.

Mas como escapar de uma percepção anedótica e excessivamente hetero-gênea dos freqüentadores e de seus interesses e analisá-los de uma forma mais sistemática? No questionário aplicado durante a festa de Santo Antônio, houve uma tentativa de mapear os interesses que as pessoas alegavam trazê-las ao con-vento. Foi indagado aos 250 entrevistados/as o motivo de ter vindo ao local, e a partir das recorrências encontradas, foi possível circunscrever as justificativas de comparecimento apresentadas.

Dois foram os motivos mais citados: as pessoas disseram, em primeiro lugar, que estavam vindo para pedir alguma coisa a Santo Antônio; em segundo lugar, para lhe agradecer. Há ainda outras justificativas que aparecem associadas ao santo, fazendo dele o principal estímulo para as pessoas comparecerem ao local. Assim, elas vêm para “pedir” a ele, para “lhe agradecer”, por “devoção a ele”, “por fé” nele, para “fazer” ou “pagar-lhe promessas”, porque “receberam graças dele”, “porque é seu dia”, “porque é sua festa”, e justamente porque é seu dia e sua festa, vieram “prestigiá-lo”.

Mas se o santo é a principal razão invocada para a vinda ao local, há outros motivos – religiosos ou não – que também justificam a visita. Assim, os serviços religiosos oferecidos pelo convento – as missas, a benção, a confissão, o aconse-lhamento, o espaço para rezar ou orar – atraem diversos freqüentadores, bem como os próprios frades e sua capacidade de atendimento.

Outro estímulo para o comparecimento ao convento relaciona-se a uma certa afirmação da identidade religiosa católica. Houve pessoas que mencionaram que um dos motivos para a vinda era “ser católico” – como se houvesse uma relação direta entre a catolicidade e a participação na festa de um santo, ou a visita ao templo.

Tenho um problema de serviço para resolver. Vim à festa de Santo Antônio porque sou católica e tenho que vir à Igreja, não é? Então eu aproveitei e vim porque estava passando por aqui (r24: mulher, 69 anos, Pavuna).

Mesmo que alguns depoimentos associassem a freqüência ao convento com a identidade católica, não são apenas católicos que freqüentam o local. Havia evangélicos no convento, que foram identificados seja por afirmar explicitamente sua identidade, seja pelas referências a outras igrejas que freqüentavam, seja por condenarem o culto aos santos.10 Mas enquanto críticos ao catolicismo e ao culto aos santos, o que esses evangélicos estariam fazendo no local?

Alguns dos evangélicos entrevistados disseram estar presente por obrigações profissionais. Mas houve dois entrevistados que apresentaram como razão para a

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visita “orar”. O convento é tratado como um templo onde Deus está presente e que, portanto, um cristão também pode freqüentar para orar. Mesmo sendo um edifício católico, é possível usufruir de seu espaço.

Sou cristão e vim para ver a festa de Santo Antônio. Busco a presença do Deus Verdadeiro. As portas da Igreja tá aberta, Deus não proíbe ninguém de entrar, é uma religião pública (r128: homem, 65 anos, Bairro de Fátima).

Venho desde criança. Venho porque aqui é um templo para orar (r204: homem, 34 anos, Jacarepaguá).

Mesmo na atual conjuntura, em que uma situação de disputa intensa parece marcar o campo religioso brasileiro, cuja hegemonia é disputada por católicos e evangélicos, há certas fronteiras que permanecem porosas, e uma espécie de “ecu-menismo de base”, ao menos quanto ao uso do espaço, foi identificado no convento (nenhum dos dois entrevistados estava vindo pela primeira vez).

Foi visto também que uma série de pessoas diziam estar no convento porque “aproveitaram” a ida ao centro da cidade, ou o trânsito pelo Largo da Carioca, para ir subir até o templo. “Aproveitar” para passar por lá tanto pode ser uma prática de freqüentadores acostumados a ir ao local, como de pessoas que tenham vindo “por curiosidade”, seja em relação à festa do santo, seja em relação ao próprio prédio, curiosidade esta despertada por amigos, parentes ou por algum veículo de comunicação (rádio, televisão) que anunciou o evento, ou contou a vida do santo, ou mesmo para olhar. Além daqueles que mencionavam o fato de estar perto para visitar o local, outras pessoas mencionaram estar ali “para fazer hora” enquanto aguardavam outro compromisso. Nos dois casos, fica claro que o convento assume o caráter de um certo local de passagem, um lugar “bom para andar”, como disse um entrevistado.

O ponto que merece ser destacado a partir dos interesses já mencionados é que o próprio convento é capaz de despertar o interesse nos freqüentadores, ou seja, que nem todos vêm ao convento pelo santo. Seja pelos serviços religiosos que ele oferece, seja pelo lugar em si, por sua localização, sua arquitetura, a paz que nele se pode desfrutar, ou seu caráter de monumento histórico, vários aspectos do lugar foram mencionados para justificar a presença dos entrevistados. Quanto à paz a ele atribuída, ela aparece tanto com um sentido “dessacralizado” – um lugar silencioso, com uma bela visão do entorno, um ritmo tranqüilo em relação ao resto do centro da cidade11 – como pode assumir também um sentido religioso – e há pessoas que dizem ter vindo em “busca de conforto”, para “meditar”, para “conversar” com Santo Antônio, ou com Deus, ou ainda para aproximar-se de Deus, aproximação que o convento propiciaria. As formulações sobre as representações do convento como um lugar sagrado, apresentadas no capítulo 2, foram em parte inspiradas

por essas respostas.Os frades também aparecem como uma justificativa para vir ao convento, e

como já vimos no capítulo anterior e ao longo deste, seu preparo e suas habilida-des atraem as pessoas, pois parecem se tratar, como bem exprimiu Matilde em seu depoimento, de “padres-cabeça”.

A festa do santo, momento em que o questionário foi aplicado, contém tam-bém por si só um grau de atração considerável. Ela atrai porque é o dia de Santo Antônio, e, portanto, torna-se um momento propício a pedir/agradecer coisas a ele, mas ainda porque é a ocasião por excelência de “saudá-lo”. Mas ela interessa também por produzir uma movimentação extraordinária, trazendo para o convento atrações que em outros dias inexistem, ou aparecem de forma menos expressiva. Ela se torna um momento oportuno para “pedir benção”, “pegar o pão bento”, “pegar água benta”, para “fazer trezena”, para “visitar as barracas” – comendo ou comprando –, ou para conseguir sorte para o ano inteiro. Neste sentido, alguns entrevistados afirmaram que sua freqüência no local se dá apenas uma vez por ano, durante a festa:

Venho porque há várias graças que recebi de Santo Antônio, e vim agradecer e pedir também. Pego o pão e devolvo no outro ano, isso ajuda a dar sorte e a não faltar nada em casa (r27: mulher, 60 anos, Nova Iguaçu).

Vim agradecer. Ano passado eu fiz um pedido e consegui, agora vim agradecer (r29: mulher, 24 anos, Santo Cristo).

Das pessoas que disseram ter ido ao convento por causa da festa, algumas afirmaram ainda costumar comparecer a outras festas de santo na cidade, pois acom-panham, no todo ou em parte, o calendário de festejos religiosos do Rio de Janeiro.

A festa agrega gente também por seu caráter de “feira”, pois nela há uma série de barracas de comida, bebida, artigos religiosos, jogos, montadas especialmente para a ocasião. Houve referências às barracas como um dos focos de atenção aos visitantes. Comprar, portanto, parece fazer parte da festa: três pessoas referiram--se explicitamente a isso, sendo que uma delas fazia das visitas às festas de santo um meio de vida:

Compro coisas antigas e sou católico. Ando em todas essas festas para comprar coisas antigas e revender (r10: homem, 41 anos, Estácio).

Além da compra para revenda, outros dois meios de vida foram percebidos na festa: uma pessoa referiu-se a estar no local “para receber mantimentos”, outra, “para catar latinha” de bebida e vender para reciclagem. Mas nesses casos, são atividades que, como já visto, embora adquiram maior dimensão na festa, pela

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estrutura montada e pelo grande número de presentes, também são encontradas nas demais terças-feiras do ano. Portanto, pode-se dizer que comprar e comer fazem parte da visita ao convento.

Ainda quanto ao comparecimento como meio de vida, há pessoas que se encontram no local a trabalho: são “acompanhantes” de idosos, policiais, jornalistas que vieram cobrir o evento, entregadores de bebidas, comidas e livros religiosos que são vendidos durante os festejos. Algumas dessas pessoas assinalaram que, apesar de estar no local trabalhando, também nutriam simpatia pela figura do santo, outras fizeram questão de destacar que estavam ali rigorosamente a serviço. Uma mulher registrou seu desconforto com a presença, pois sendo “cristã” (evangélica), via aquilo tudo como idolatria, e só estava ali porque a senhora idosa para a qual trabalhava como acompanhante exigia seus cuidados.

A atividade de “acompanhar” alguém ao convento foi mencionada por essas pessoas como uma atividade profissional. Mas esse termo apareceu principalmente na fala daqueles que, por amizade ou parentesco, estavam no convento acompa-nhando alguém. Muitas pessoas referiram-se ao fato de ter chegado pela primeira vez ao convento e a Santo Antônio “acompanhando” alguém. Ao todo, 18 pessoas disseram estar ali para isso, enquanto que duas outras disseram ter vindo “para trazer” alguém. Apesar de serem parecidas, há, entretanto, uma diferença funda-mental entre as duas expressões, no que diz respeito ao grau de compromisso com o comparecimento. Quem “acompanha” alguém está vindo junto a uma pessoa que está envolvida na devoção ao santo e/ou com o convento, isto é, está “sendo trazido” por essa pessoa, está sendo introduzido no local. Quem “traz” alguém já havia vindo ao convento, e/ou já estava de alguma maneira vinculado a ele, e está introduzindo uma nova pessoa:

Eu vim acender uma vela com a minha amiga, que me trouxe (r134: mulher, 24 anos, Bonsucesso).

Vim acompanhar a colega e queria muito vir aqui porque sou muito católica (r174: mulher, 45 anos, Vista Alegre).

Minha irmã me trouxe aqui pela primeira vez. Venho todo ano na festa de Santo Antônio (r231: mulher, 24 anos, Maracanã).

Eu vim hoje trazer meu neto. Eu pedi para Santo Antônio ajudar no parto e ele nasceu no dia de hoje e eu me apeguei a ele. E pedi também por minha filha para também não acontecer nada com ela (r40: mulher, 40 anos, Niterói).

Esses procedimentos dizem respeito à sociabilidade tecida em torno do con-vento, do santo e da festa. Acompanhar alguém, ou trazer alguém, ou ir ao con-vento para encontrar alguém, remete a um conjunto de relações que a freqüência

ao local é capaz de ativar, sejam elas de parentesco, de vizinhança, ou de amizade. Essas relações podem ser ativadas não apenas a partir da freqüência conjunta ao local, mas, como veremos nos próximos capítulos, também através das práticas de “rezar por” alguém e de “pedir por” outras pessoas, ou de levar-lhes lembranças do convento: pães bentos, fitas, medalhas etc. Assim, a frequência ao convento é uma ocasião não apenas de inserir-se em novos grupos, de fazer novas amizades, mas de manter em operação e acionar redes de sociabilidade já existentes.

A devoção ao santo e o comparecimento à festa podem ser motivados ainda por uma espécie de herança familiar. Essa herança se transmite de ascendentes a descendentes, seja de mãe/pai para filhos, seja de avó a netos, mas geralmente é por linha materna, e também por afinidade – e aí, sempre da esposa para o marido, e nunca o inverso.

Venho porque sou católica, e desde pequena eu vinha com a minha mãe. Agora, eu venho com a minha filha para ela vir com a filha dela. E ver como é bonita a festa e a missa de hoje e de amanhã (r26: mulher, 59 anos, Ipanema).

Venho por tradição. A minha família é devota de Santo Antônio desde a Itá-lia, então nós vínhamos antes aqui, depois íamos para casa comemorar (r49: homem, 53 anos, Copacabana).

O que essas razões para a vinda deixam perceber é que, apesar do compa-recimento dever-se principalmente a motivos religiosos, e dentre eles, aqueles relacionados ao santo assumirem maior destaque, há outros motivos, de caráter lúdico, estético, pragmático, social, que estimulam a freqüência de visitantes no local, e que precisam ser incorporados à análise. Para dar conta dessa diversida-de, procurei utilizar no corpo do texto termos diferentes para nomear as pessoas presentes: utilizei “devotos” para me referir especificamente às pessoas que têm uma devoção a Santo Antônio, ou a outro santo. Para pessoas que comparecem ao local por motivos outros, apliquei o termo mais genérico de “freqüentadores”. E por fim, empreguei o termo “agentes” para me referir a um conjunto mais amplo, que compreende não apenas pessoas que visitam o local, mas também os frades e os funcionários, que possuem um tipo de envolvimento mais “profissional”12 com o convento, isto é, que trabalham nele. Mas como em cada caso os motivos podiam se combinar, às vezes se tornava difícil definir a nomenclatura adequada.

Talvez dois exemplos concretos ajudem a visualizar melhor a complexidade do público do convento e a diversidade de razões para a vinda. Primeiro, o de Thereza, minha companhia assídua nos almoços de terça-feira, que apesar de freqüentar o convento há alguns anos, jamais fez referência a uma devoção particular a Santo Antônio ou a outro santo. Thereza afirmou ter chegado ao convento graças às indicações de uma amiga, que recomendou suas missas como muito boas.

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Começou a freqüentar assistindo à missa das 10 horas, depois “foi evoluindo”, passou a assistir à missa das 12, de fr. Marcílio, cujos sermões afirma serem mais “profundos” dos que o da missa que assistia anteriormente. Costuma por isso tomar notas durante suas homilias. Tendo se tornando fã do frade, compra constantemente seus livros e estuda-os. Participava ainda do curso de formação de leigos do Largo do Machado, para o qual se inscreveu estimulada pelos avisos do convento.

Duas coisas chamaram minha atenção em seu depoimento: primeiro, a au-sência de referências à devoção aos santos, embora multiplicassem referências aos padres e a seus sermões mais e menos profundos. Segundo, havia uma pers-pectiva “evolucionista” na descrição de sua própria trajetória, na qual os anos de comparecimento ao convento eram lidos como de “aprofundamento na fé”, e as mudanças de sua inserção no local, correspondiam para ela a diferentes estágios de desenvolvimento. Por outro lado, mesmo com anos de comparecimento, ela nunca procurou oferecer-se como voluntária nos serviços do convento, embora faça questão de almoçar todas as terças-feiras e de doar notas de dinheiro razoáveis na coleta da missa13 – o que para ela seriam formas de ajudar.

Já um bom exemplo de uma freqüentadora que é devota e voluntária apareceu na entrevista com a presidente da Pia União de Santo Antônio, Heloísa, também quando ela descrevia sua trajetória no lugar. Ao indagar de dona Heloísa como havia se dado sua chegada ao convento, ela disse ter começado a freqüentá-lo há mais ou menos vinte anos, trazida por uma amiga. Veio porque era devota de Santo Antônio e, através dele, chegou até São Francisco: tornou-se primeiro membro da Pia União, depois entrou também na Ordem Franciscana Secular e agora era a presidente da Pia União. Para ela, essas diferentes posições assinalavam uma espécie de progresso na fé.

Tanto Thereza como Heloísa chegaram ao convento por mãos de amigas, indicando que ser trazido ao local, ou receber indicações para a ele comparecer, é uma forma por excelência de entrada no circuito. Em ambas as falas, é comum a idéia da freqüência ao convento como uma “carreira” de leigo católico, em que se dá uma “evolução” (ou “crescimento”, ambas as palavras que apareceram na fala de alguns agentes para referirem-se à sua trajetória), um aumento no conhecimento da religião ou da fé. Também fica claro que o comparecimento ao local viabiliza ou estimula o ingresso em diferentes grupos, em novas formas de engajamento. Mas se no caso de Heloísa, seu percurso parece ser marcado pela devoção aos santos e pelas associações de culto, caracterizando aquilo que estou chamando de uma devota, no caso de Thereza, os marcos são as celebrações, os sacerdotes, os livros e os cursos de formação. Portanto, nem todos os freqüentadores, nem mesmo os católicos, são devotos dos santos, embora haja muitos que o sejam. E neste sentido, o convento se torna maior que Santo Antônio.

Notas1 Foram usados os dados do ano 2000 porque, dentre o material encontrado a respeito, eram os que mais se aproximavam do período de campo.2 Há também CDs de orações. A edição dessas obras, no caso dos franciscanos, pode ser facilitada pelo fato de possuírem uma das mais tradicionais editoras do país, a Editora Vozes. 3 Essa constatação merece um comentário sobre a organização dos franciscanos. Embora a inspiração primeira de São Francisco de Assis fosse criar um grupo de irmão leigos, compro-metidos com a simetria e solidariedade entre eles, as necessidades constantes de recrutamento da Igreja tendem a torná-los padres. A clivagem ordenados/não-ordenados tende a corresponder a uma divisão do trabalho no interior dos conventos, ficando os ordenados com o trabalho mais “religioso” e os não-ordenados com o trabalho mais “braçal”. Muitas vezes o não-ordenamento funciona como um estigma, pois é tomado como sinal de uma limitação intelectual que levou o frade a não concluir seus estudos e a não se ordenar. Ele parece se refletir também na distribuição de recursos no interior da Ordem, pois os investimentos na formação de um religioso – que são altos, pois além do clero não se auto-reproduzir, o índice de desistência é grande – são destinados prioritariamente para os frades ordenados: cursos de línguas, viagens ao exterior, pós-graduações etc. Dentro da OFM, entretanto, há frades leigos que, apesar de um bom nível intelectual, resistem à pressão por sua ordenação, ao mesmo tempo em que lutam para não serem utilizados apenas nas atividades administrativas da Ordem. Essa resistência é feita em nome de um retorno ao desejo primeiro de S. Francisco de construir não um grupo de padres, mas de fratelli (irmãos). Só que no convento de Santo Antônio, o que encontramos é a situação clássica cristalizada: são os frades não-ordenados, que não aprofundaram seus estudos de teologia, os que realizam o atendimento da portaria, a contabilidade, os pagamentos etc.4 Disse um frade em entrevista: “Já estive em Petrópolis, e rezava três missas, conseguia encher as missas, usando instrumentos musicais. O povo se afasta de padre chato. A missa é um serviço: quem come comida ruim não volta mais, é preciso comer coisa boa”.5 O perfil de cada casa resulta de uma combinação de fatores, que vão desde sua função, pas-sando pela personalidade do guardião do momento, até a configuração adquirida pelo conjunto de frades. Por exemplo, o Convento do Sagrado, em Petrópolis, onde durante muitos anos também funcionou o Instituto Teológico Franciscano, para formação superior em teologia dos frades-estudantes, permitia um acesso maior de mulheres a determinadas partes do claustro (biblioteca, sala de convivência dos frades, refeitório, hospedagem de estrangeiras) do que o do Rio. Houve comentários (não-comprovados) de que o Convento de Santo Antônio seria uma casa rigorosa, o que seria justificado pela presença na casa de muitos frades idosos, formados com uma mentalidade pré-Vaticano II.6 A questão da faixa etária da Pia União provocou da parte de pe. Marcílio comentários jocosos na missa, de que o pertencimento ao grupo garantiria longevidade. Mas ela preocupa tanto aos padres, como aos membros da associação e outros freqüentadores do convento, numa dúvida quanto à continuidade do grupo.

7 “Veja que esforço, é muito sacrificado, e não há jovens, são só senhoras... Quero saber como vai ser quando elas morrerem” (Mulher conversando na fila, cerca de 65 anos). 8 Minha informante Olga conta a história com uma pitada de humor, mas também de amargura: “Em determinada época, o padre que então chefiava o convento resolveu requisitar o salão de

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costura para outras atividades. Então nos tiraram a costura e nos deram a cozinha. Mas nós continuamos por amor a Ele” [ele = Santo Antônio].9 Há famílias que levam bebês recém-nascidos para serem “apresentados” aos santos em suas igrejas e assim serem colocados sob sua proteção. A prática implica aproximar-se da imagem e estender-lhe o bebê, mostrando-o ao santo. Vi isso no convento uma vez e já tinha referências desse fato em outros templos.10 Em nenhuma entrevista, ou no questionário, perguntei a religião do entrevistado/a diretamente, mas apenas se ele/ela tinha outras devoções e freqüentava outras igrejas.11 Embora durante a festa essa tranqüilidade esteja longe de existir, o que implica que as pessoas que mencionaram a paz do local tivessem a experiência de comparecer ao convento fora dessa data.12 Lembro que o envolvimento dos frades pode ser considerado mais do que profissional, tendo em vista que sua profissão é associada a uma vocação.13 Sentada em uma missa ao lado de Thereza vejo-a colocar dez reais na sacola de ofertório, quando a média parece ser de um real.

cApítulo 5

Formas de articulação

O objetivo deste capítulo é analisar a forma pela qual as pessoas que freqüentam o convento de Santo Antônio, ou que nele desempenham alguma atividade – as quais analisamos detidamente no capítulo anterior –, articulam-se entre si e com aquilo que acontece no convento. O foco do capítulo é colocado não em uma programa-ção oficial, nem nos “serviços oferecidos”, mas nas práticas efetivas dos agentes e em certos princípios e categorias que regem essas práticas. Isto é, trata-se, na verdade, de privilegiar as interações que se estabelecem em torno das atividades do convento. Este tema não esteve propriamente ausente dos capítulos anteriores, mas, apesar disso, seria importante conferir-lhe maior destaque e abordá-lo de uma forma mais detalhada.

1 – A redistribuição

Para dar conta da totalidade de serviços oferecidos, é necessário que o con-vento acione e coloque em operação um universo que vai bem além do mundo dos frades ou do corpo de seus funcionários. Portanto, para que os serviços de acolhida funcionem, é necessário que as pessoas ajudem.

A doação dos devotos ao santo, ou, num sentido mais amplo, dos freqüentadores ao convento, garante a manutenção da estrutura de funcionamento do local. Muitas das atividades realizadas, principalmente aquelas que envolvem a distribuição material aos necessitados, só podem ocorrer se houver doações que as viabilizem. Assim, são doados: parte dos ingredientes utilizados no almoço, os folhetos e im-pressos distribuídos nas missas e festividades, as roupas e cobertores distribuídos para as famílias, os remédios cedidos pela “farmácia” do convento etc. Também o tempo e o esforço dos leigos e leigas dedicados ao convento e ao santo são uma forma de doação, e por isso o caráter voluntário de seu trabalho, sua gratuidade, é bastante ressaltado pelos agentes como um indício de uma “forte devoção”. Neste sentido, as informações obtidas na pesquisa foram que este convento é um pólo

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privilegiado da boa vontade dos doadores,1 pois ele recebe muitas doações. Assim, o convento de Santo Antônio não é apenas um lugar que oferece

serviços religiosos e de acolhida aos visitantes – é também um lugar de receber ofertas dos devotos em honra aos santos e às graças obtidas, e de redistribuí-las para os necessitados.

A redistribuição fica facilitada por uma das características assumidas pelo culto a Santo Antônio. Como o santo de alguma forma é associado à distribuição de “pão para os pobres” – tema a que voltarei no capítulo 6 –, a forma consagrada no convento para agradecer-lhe é doar pão – seja entregando materialmente sacos de pão, seja doando dinheiro para isso, seja oferecendo roupa, alimentos não pere-cíveis e remédio – formas de pão em um sentido mais amplo. Além da imitação do santo, essa forma parece ter sido consagrada por haver uma tentativa de canalizar a energia em torno dos ex-votos no sentido de doações em dinheiro ou outros bens para serem distribuídos aos pobres, ao invés do “consumo conspícuo”, já que, por exemplo, salvo os queimadores de velas, não existe no local um espaço como uma sala dos milagres que estimule outro tipo de doações.

Entrevistando fr. Marcílio na fase exploratória da pesquisa, a questão da doação de pão apareceu da seguinte maneira:

Pergunta: Aqui não há sala de ex-votos?Fr. Marcílio: O povo que vem aqui não é o lascado. O trabalho que é feito no convento com a consciência dos devotos é de levar-lhes a fazer como o santo fazia – ajudar os pobres. Há placas dizendo que não é educativo deixar ex-votos.

Não sei se pela força desse “trabalho de conscientização” ou por outros mecanismos de controle e coerção, ou mesmo por um movimento espontâneo de imitação do santo, o fato é que a doação de pão, tendo os pobres como beneficiários ideais, está consagrada no convento como a retribuição por excelência a Santo An-tônio. Assim, no interior da Igreja, sob as imagens de santos, notadamente de um quadro onde Santo Antônio é representado, há lugares para esmolas onde aparece assinalado: “para o pão dos pobres”. Há uma mesa de recepção de donativos às terças-feiras, também “para o pão dos pobres”, e são feitas doações de remédios, roupas e alimentos – donativos que a Pia União, os demais voluntários, ou os frades encaminham para os mais necessitados. Além disso, a razão última de grande parte das atividades da própria Pia União é a obtenção de renda para o pão dos pobres.

Um dos circuitos de doação, o que se forma em torno de irmã Bárbara, exemplifica bem a função redistribuidora do convento. Esta freira desenvolve um trabalho de visitação a presídios, “levando Jesus aos presos” e vai ao convento solicitar doações de material de higiene pessoal para distribuir. Sua presença e sua

função são anunciadas pelos padres nas missas do final da manhã, e eles pedem aos presentes que tragam os donativos, os quais irmã Bárbara vem recolher todas as semanas. E, como lembra fr. Marcílio, trata-se de uma atividade a ser incentivada:

Visitar os presos faz parte das obras de misericórdia, mas às vezes nós não podemos ir lá, só que a irmã Bárbara vai por nós, faz isso por nós. Leva pasta de dentes, sabonete, roupas, doces. Vocês devem ajudar com o que puderem.

Já durante a preparação da festa do santo, fr. Estevão solicita que cada pessoa traga um quilo de alimento não perecível em dois dias determinados da trezena, “demonstrando a necessidade de ser generoso”. A generosidade, a misericórdia fazem parte das atitudes que um cristão deve desenvolver. Portanto, a doação se dá não apenas por devoção a Santo Antônio, mas pela prática da caridade.

Por isso, para poder ajudar, os padres também “pedem a ajuda” ou “a colabo-ração” dos freqüentadores, a fim de multiplicar as benesses oferecidas no convento. O apelo à ajuda e a disponibilidade de concedê-la poderia a princípio ser visto como um mero argumento de retórica católica, exacerbada ainda mais por se dar em um local de culto, e um lugar de culto franciscano, onde a atenção à pobreza faz parte do discurso corrente. Entretanto, sua presença enquanto categoria significativa não se dá apenas na homilia dos padres, mas está contida também na fala dos mais diversos agentes, ao formularem explicações sobre suas práticas no local. Temos assim que a ajuda ocupa uma posição de destaque no universo das relações aí estabelecidas, e é uma forma básica de pessoas se articularem. O freqüentador demonstra uma certa “disponibilidade” para ajudar: dando informações, doando dinheiro na missa, pagando lanches ou almoços para pessoas que pedem porque estão com fome, ou oferecendo consolo às pessoas que estejam chorando etc. Pode-se ajudar doando seus serviços ou seu dinheiro, colocando-se em alguma medida à disposição dos “necessitados” na diversidade de suas demandas.

A própria freqüência às barraquinhas e ao almoço pode ser enquadrada na categoria da ajuda, como me foi dito por várias pessoas que lá almoçam:

Você vê, não é um almoço barato, custa 5 reais. Fora daqui, no centro, se eu comesse a quilo, como eu como pouco, gastaria muito menos. Mas você sabe, a gente vem para ajudar, pois afinal eles alimentam 500 famílias com esse dinheiro...

O fato de almoçar ser uma forma de ajudar é lembrado não só quanto ao preço, mas também quanto à questão da organização: “isso aqui não é um restaurante”, há que se desculpar a demora, o fim de alguns pratos, a fila. É preciso demonstrar tolerância com as deficiências do almoço.

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O convento atua assim como um “redistribuidor” de bens espirituais e mate-riais, fazendo mediação não apenas entre santos e devotos, mas entre os próprios devotos de condições sociais diferentes, ou entre os devotos e os pobres não ne-cessariamente devotos que vão ao convento em busca do pão e de outras doações que lá são oferecidas.

Mas mesmo “necessitados” que vêm ao convento podem “ajudar”, assumindo outras funções. D. Raimunda, uma das beneficiárias das cestas básicas do convento, a que nos referimos no capítulo anterior, está ali todas as semanas para “ajudar” a varrer. E conversando com uma das diaristas da cozinha, pergunto se ela também é da Pia União, e ela me responde que não, que está ali “só para ajudar”. Assim, apesar de possíveis variações semânticas que esse termo possa assumir em cada contexto de enunciação específico, a “ajuda” apareceu na fala de vários agentes como uma forma básica de articulação entre as pessoas do convento.

Uma parte importante de sucesso do convento estaria justamente em sua capacidade de oferecer ou mediar o acesso a ajudas, atendendo, por um lado, aos pedidos e às necessidades daqueles que o procuram. E por outro lado, fornecendo aos freqüentadores a possibilidade de se inserirem nessas redes de ajuda, como doadores ou beneficiários, e mesmo eventualmente alternando-se entre as duas posições. Portanto, para manter (ou mesmo aumentar) o volume de freqüentado-res no convento, é importante para seus responsáveis conseguir estabelecer uma “sintonia” com os anseios dos freqüentadores, sendo capaz de exercer uma certa pré-visão das demandas que lhe serão endereçadas e de organizar ajudas e serviços para atendê-las.

2 – A apropriação do local e dos serviços

Um outro aspecto que seria importante destacar quanto às formas de articula-ção das pessoas no convento e com o convento diz respeito à maneira pela qual os freqüentadores utilizam efetivamente os serviços oferecidos. Na análise das razões apresentadas para justificar o comparecimento ao local, foi possível constatar uma outra coisa, além da diversidade de interesses. Os depoimentos citados permitiram perceber que, diante das atividades programadas, os freqüentadores podem servir-se delas no todo ou em parte, conforme seus interesses concretos (que não são neces-sariamente aqueles supostos pelos organizadores), sua disponibilidade de tempo e de dinheiro. Entre o que é oferecido ao público e o que é realmente feito por esse mesmo público, existe uma margem de manobra que cada visitante pode utilizar para tentar conformar a ida ao “Santo Antônio” aos seus desejos, estabelecendo um jogo entre aquilo que quer e aquilo que pode fazer.

É aí que entra em cena uma idéia que julgo bastante útil para dar conta das formas individuais de lidar com os serviços e com o espaço do convento, que seria

a de apropriação. Utilizo este termo para referir-me às atitudes minúsculas e coti-dianas nas quais as pessoas exercem sua autonomia e manifestam suas concepções de mundo e sistema de valores (Certeau, 1990). No convento, as maneiras concretas pelas quais as pessoas se servem ou não dos serviços aí existentes seriam formas de apropriação onde se expressaria um grau de relativa autonomia, que muitas vezes lhes permitiria compor uma “visita” singular diante de um leque a princípio determinado de opções apresentadas.

Assim, diante dos serviços oferecidos, os freqüentadores exercitam sua auto-nomia em várias atitudes, como, por exemplo, nas seguintes situações identificadas em campo: as pessoas podem entrar e sair da celebração no momento que quiserem, tomando só a benção ou assistindo parte da missa ou da paraliturgia. Podem comun-gar sem confessar (embora não seja liturgicamente recomendado), podem mesmo sair antes da benção (embora não seja comum). Após a benção, podem cercar o padre, e não satisfeitos com a aspersão coletiva, solicitar uma benção especial: água benta jogada exclusivamente sobre si, ou uma imposição de mãos. Podem assistir mais de uma missa, ir no horário que lhes for mais conveniente, escolher o padre que acharem mais interessante, sentar no pátio do convento e ficar conversando, ou rezando, ou só admirando a paisagem; podem almoçar, lanchar, tomar café, ir ao banheiro; podem acender vela nos queimadores, preferir a pessoa mais simpática, ou a que ponha mais comida no prato, para servi-las no almoço. Podem ir à missa no horário de determinado padre, mas aconselharem-se ou confessarem-se com outro, podem permanecer no convento antes ou após a benção, estabelecer víncu-los de amizades com certas pessoas, desempenhar determinadas funções no culto ao santo etc. (algumas das observações contidas no capítulo 3 sobre os serviços oferecidos no convento, sobre a escolha de missas, de padres, de igrejas, podem ser reconhecidas como exemplos disso).

Mas para além de uma seleção do que é oferecido, é possível também se apropriar do espaço do convento para a produção de seus próprios rituais com os santos. Várias ações são desenvolvidas pelos freqüentadores por sua própria conta, e muitas delas têm um caráter marcadamente religioso. Nas primeiras vezes que fui ao convento, apesar de advertida sobre essas questões pela literatura e pela experiência da Penha, tive algumas surpresas.

Sentada um dia no banco da igreja, esperando a missa das 12 h começar, uma mulher me oferece, sussurrando, uma novena para Santo Antônio. Aceito e ela me passa sutilmente um papel dobrado, diz que eu cumpra estritamente o que está escrito e espere os resultados, porque “Santo Antônio faz coisas ma-ra-vi-lho-sas” [ênfases dela]. Chama-me a atenção a clandestinidade do processo, todo à meia voz e semi-oculto, ao mesmo tempo em que ocorre nos bancos frontais da igreja. Acho graça de que, entre tantos tráficos que assolam o Rio de Janeiro nesse começo de século, eu acabe enredada em um de novenas.

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Adquirindo maior intimidade com as celebrações, comecei a reparar que as pessoas costumavam se encaminhar para o altar-mor e as capelas após a missa, e aí realizavam suas práticas. Diante da imagem de Jesus flagelado, Ecce Homo, que ocupa uma das capelas, vejo um dia uma mulher tentando jogar papeizinhos dobrados nos braços cruzados e amarrados da imagem. Forma curiosa de aumentar as dificuldades de entregar seu pedido ao santo: não basta deixar a seus pés, é preciso que fique em suas mãos. A tentativa se repete inúmeras vezes, até que ela consiga.

Assim, aos poucos fui registrando uma série de práticas, tais como rezar nos nichos dos santos, seja em pé ou ajoelhado diante das imagens. Também é comum tocá-las (nos pés, nas mãos, depois tocar em si mesmo), deixar-lhes flo-res ou esfregar-lhes fotos de outras pessoas ou mesmo beijá-las. Muitas pessoas “cumprimentam” os santos ao final da missa como estivessem se despedindo deles, ou ficam falando baixinho com as imagens. Deixam a seus pés “santinhos”, fitas, papeizinhos com pedidos, novenas, agradecimentos. Nos queimadores de velas, outros objetos também são deixados: pipocas, potes de café, buquê de noivas etc.

Na maioria das vezes, tratam-se de práticas discretas e individuais, “pequenas práticas” diante das manifestações coletivas, públicas e sincronizadas que até então foram descritas. Atos como tocar, beijar, esfregar, molhar-se parecem se construir nos interstícios das celebrações anteriormente mencionadas – bênçãos, missas etc. Mas elas também são formas de devoção significativas, constitutivas das “vi-sitas” que os devotos realizam ao convento, fazendo parte do culto ao santo. São importantes também porque nelas se expressa a autonomia e – por que não? – a criatividade dos devotos, que encontram formas de individualizar a expressão de sua relação com os santos. Mas há que se perceber, entretanto, que a criatividade vai até um certo ponto, pois mesmo nas ações mais solitárias encontramos padrões gestuais e de linguagem que tendem a se reproduzir, numa espécie de “variações sobre um mesmo tema”.

Creio que diante da apropriação do convento por seus freqüentadores, um acordo tácito parece se estabelecer entre o clero e os devotos para o culto aos santos, o qual garante a tolerância de certas práticas. Todas essas ações que mencionamos, e que se desenvolvem diante das imagens, são do conhecimento dos padres, e me parece haver uma concessão do espaço do templo para que elas aconteçam. Durante a benção, a sacristã fecha a grade de acesso ao altar. Mas quando o padre sai da Igreja..., a grade é aberta e os devotos podem subir junto ao santo. Eles ajoelham diante da imagem de Santo Antônio, rezam suas próprias orações, tocam o sacrá-rio e vão visitar as capelas. Assim, o templo e as imagens permanecem acessíveis todos os dias, durante largos períodos de tempo, para que os devotos realizem suas próprias práticas devocionais.

Também os momentos abertos durante as celebrações para que os fiéis co-loquem, nas missas ou nas bênçãos, suas intenções ou seus pedidos, são espaços

concedidos à apropriação, só que, nesse caso, acontecem dentro das celebrações principais, e não apenas em seu intervalo.

A tolerância, entretanto, não é total. Há limites que são estabelecidos, em formas mais ou menos sutis, como, por exemplo, quando fr. Tobias apresentou uma crítica ao comportamento dos devotos que vinham à missa, mas se mantinham ajoelhados rezando a trezena de Santo Antônio durante ela:

As pessoas que vem à Igreja para ficar conversando durante toda a missa, ou rezando suas próprias orações, sem participar, e depois vão para a fila da comunhão estão enganadas. Se não prestaram atenção na missa, como podem comungar?

As repreensões do padre buscavam enfatizar o caráter prioritariamente religioso que a ida ao convento deve ter. Porém, o curioso é que elas deixam entrever as formas de sociabilidade que nele são estabelecidas. O convento não é só um lugar de oração: ele é também um espaço de conversação.

Os limites à apropriação no convento não se estabelecem apenas entre padres e leigos, mas também entre os próprios leigos. Com graus bastante diferenciados de participação na vida do convento, de adesão e conhecimento da doutrina e das regras de comportamento dessa religião, alguns leigos assumem o papel de “ensi-nar”, “fiscalizar”, “corrigir” os demais. Esse processo de controle, de imposição de limites, pode se dar através de leigos que estão no convento como “profissionais”, isto é, dos funcionários destinados a receber o público, como os ascensoristas, a faxineira dos banheiros, a sacristã. Mas ele pode se dar a partir dos voluntários, que por seu grau de adesão à fé, e/ou por seu conhecimento religioso, ou proximi-dade ao convento, colocam-se na posição de corrigir os demais.2 Isso nos remete à percepção dos leigos como constituindo um bloco internamente hierarquizado e bastante diferenciado.

Apesar de observar inúmeras situações marcadas por tensões e conflitos mais ou menos evidentes, poucas foram as de conflagração aberta. Mais do que uma dicotomia radical entre sim e não, as tensões parecem ser administradas no convento através de uma prática de “correções de rumo”, de reorientações que são constantes, e que talvez por isso mesmo assumam raramente uma forma radical.

Duas situações de campo exemplificam de uma forma mais detalhada a questão autonomia versus limite. A primeira, presenciada uma única vez, diz res-peito à tentativa de criação de novos santos. Flanando um dia na portaria, encontro uma mulher entregando um folheto e um cartaz, convites para a peregrinação ao túmulo de dona Francisca, uma senhora que estaria passando por um processo de beatificação. A mulher pediu ao frade-porteiro que afixasse o cartaz, para convocar os possíveis interessados. O frade se desculpou, mas disse não poder fazê-lo sem

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autorização do superior. Disse que depois pediria a permissão, e então afixaria o cartaz. A mulher não pareceu muito feliz com a resposta e devolveu:

Pois eu vou na excursão. Eu tenho conseguido graças fantásticas em nome da dona Francisca. Eu vou, e lá eu vou rezar e pedir muito pelo senhor.

Esse fragmento de discurso exemplifica uma tentativa leiga de legitimar um santo, que termina por esbarrar nos procedimentos burocráticos da hierarquia religiosa, os quais têm como uma de suas funções justamente limitar a autono-mia do laicato nessa questão (Delooz, 1985; Frade, 1987; Menezes, 2002). Mas ele evidencia também que o limite não é recebido de bom grado: ele é posto em questão, e a “canonização popular” de dona Francisca parece prosseguir, apesar das ressalvas da hierarquia.

A segunda experiência a respeito da criatividade leiga no convento relaciona-se à circulação de novenas e santinhos que se dá no local.3 As novenas, uma das quais mencionei ter recebido clandestinamente, são folhas de papel contendo orações a um santo, que se caracterizam por apresentarem-se como fórmulas mágicas de obter algo dele: há que se repetir a oração um determinado número de vezes, sob condições específicas, fazer um número de cópias definido, passá-las adiante e “a coisa” que se deseja é conseguida (a sensação de um certo mecanicismo provocada pelos adjetivos empregados neste período é proposital). Geralmente acompanha a novena uma detalhada explicação sobre seu modo de utilização, mais a indicação de que ela deve ser feita apenas em casos de necessidade e algumas garantias de sua eficácia, dadas pela citação de exemplos de pessoas que já receberam algo através dela.

Há inúmeras versões de novenas circulando no local, com variações quanto ao santo a que se deve pedir, ao nome da novena, ao número de cópias a ser dis-tribuído, ao texto a ser rezado, às condições em que a novena deve ser realizada. Há mudanças também formais: o tipo de cópia, o tipo de papel, as cores de fitas que as acompanham, o formato do papel. Assim, como um modelo de escrita pró-ximo ao da “corrente”,4 as novenas são um espaço de criatividade leiga. Elas são trazidas espontaneamente por alguns freqüentadores, seja como forma de cumprir a obrigação de distribuir as cópias, seja para divulgar o poder de um santo, ou de uma oração.

Circulam também pelo convento os santinhos. Um santinho é um papel de cerca de 7 x 11 cm, no qual há na frente a reprodução vertical da imagem de um santo (desenhado ou através de foto de estátua), e atrás uma oração tida como “sua”, isto é, como especial para conseguir algo dele, ou para louvá-lo. A oração costuma ser acompanhada de procedimentos de uso: rezar tantas vezes por tantos dias. Às vezes, os santinhos possuem também referências a episódios da vida do

santo representado.Este material é produzido em gráficas especializadas, vendido aos milheiros,

e geralmente traz a seguinte frase: “Por uma graça alcançada, mandei imprimir um milheiro dessa oração”. Encontrei em campo dois procedimentos para seu uso: há os que recebem a graça e mandam fazer os santinhos, e há os que os fazem antes mesmo de receber a graça, numa espécie de agradecimento antecipado. Portanto, o santinho é um agradecimento que se usa para pedir. Além de pagar a impres-são, o comprador dos santinhos deve se encarregar de distribuí-los, como forma de divulgar o poder do santo e, para isso, eles costumam ser deixados em vários espaços do convento.

Mas o estatuto conferido às novenas e aos santinhos no convento demonstra que a autonomia dos freqüentadores nunca é total. Era praxe, durante as missas da manhã, passar uma senhora da Pia União de Santo Antônio pelas laterais da Igreja, retirando as novenas e santinhos colocados no espaço do templo. Porém, a persistência dos freqüentadores é notável, pois é capaz de garantir que o proces-so de circulação se mantenha, já que cerca de duas horas depois da limpeza, os cantos do templo estavam de novo ocupados por folhas, do tipo das que se havia tentado suprimir, e que outros freqüentadores haviam se encarregado de espalhar mais uma vez.

Uma última observação quanto aos limites à autonomia e à apropriação do convento e de seus serviços deve ser feita. Na verdade, a limitação não se dá apenas pelo controle e interdições estabelecidos pelo clero e seus auxiliares. Há uma série de obrigações, seja para com o santo, seja para com os outros domínios da “vida em geral”, que constrangem a liberdade de ação de um freqüentador.

Quanto às obrigações para com o santo, as promessas e os compromissos não podem deixar de ser cumpridos, sob pena de ofensa grave ou castigo – embora nenhum entrevistado do convento tenha mencionado um castigo do santo para si, já que nenhum deles assumiu ter deixado alguma vez de cumprir algo prometido a ele.5 Assim, o compromisso com o santo pode fazer com que as práticas de culto dos devotos assumam formas específicas, ou tenham de ser executados de uma certa maneira, ou em determinada época, conforme o combinado.

Por outro lado, quanto às obrigações para com “o trabalho” e “a família” – elementos destacados pelos devotos – o comparecimento tem de ser conjugado a uma série de compromissos que provocam restrições quanto à duração, horário e número de vezes que uma pessoa consegue ir ao convento. Os depoimentos multiplicam os exemplos de arranjos e negociações: senhoras que deixaram de vir porque tiveram que passar a se ocupar dos netos, pessoas que freqüentam a missa de meio-dia por ser seu horário de almoço, outros que aproveitam a visita ao convento para resolver problemas no centro da cidade etc. Há assim diversas estratégias de arranjo do tempo (ou melhor, da vida cotidiana) para garantir a ida ao convento.

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D. Ísis, por exemplo, que chega mais ou menos às sete horas da manhã para trabalhar no bar, acorda em torno das 5 horas para deixar o marido doente de banho tomado e com o almoço pronto, e poder ir para a Igreja. D. Dora, 81 anos e 40 de convento, hoje é viúva, mas passou décadas negociando com os ciúmes do marido para conseguir garantir sua permanência no grupo da cozinha: “ele dizia que eu gostava mais de Santo Antônio do que dele...”.

Essa questão do arranjo do tempo pode adquirir um caráter lúdico: Thereza, que citei como exemplo de freqüentadora não-devota, professora aposentada, vai à missa de 12 h; almoça no convento para não cozinhar naquele dia e também ajudar a Pia União. Depois, moradora de Vila Isabel, aproveita que está no meio do caminho e vai até o Cineclube Estação Botafogo “pegar um cineminha”. Ao final do semestre, trocou o cinema por uma “oficina de oração”, preocupada com o aprofundamento de sua fé. Isso tudo com o risco latente de ter que faltar algum dia para tomar conta de um neto.

Os arranjos de tempo podem adquirir um caráter mais religioso: dona Rita, que citamos em um depoimento sobre o aconselhamento, é moradora de Olinda, na Baixada Fluminense. Solteira e com a mãe já falecida, ela aproveita as terças-feiras para um circuito religioso no centro da cidade: vai à Catedral, às 11 horas, depois ao convento, à missa de fr. Marcílio, onde almoça e fica rezando “para fazer hora” até as 15 horas e ir à igreja de N. S. do Bom Parto “rezar um terço”, pois no Santo Antônio, às terças-feiras, por conta das bênçãos, não dá para fazê-lo. Da Igreja do Bom Parto, vai para o Mosteiro de São Bento, onde assiste à missa mais curta das 17 horas e fica ainda para a missa completa com todos os monges, às 18 horas.

Dentre esses diversos arranjos, destaca-se um que garante a manutenção de devoção das pessoas que não podem vir ao convento às terças-feiras: ir a qualquer outra igreja onde haja a imagem de Santo Antônio e fazer sua oração ou dar sua oferenda.

Quando eu não consigo vir aqui, eu vou na Igreja da Glória que é perto da minha casa, vou na imagem de Santo Antônio e faço as minhas orações (senhora que me deu novena).

Eu viajo muito, já fui em igrejas de Santo Antônio do mundo inteiro. E quando eu não posso vir aqui, faço assim: vou logo procurando uma igreja que tenha a imagem do santo lá no local onde estou, e toda terça-feira boto lá como esmola o equivalente a um quilo de pão em moeda local (Fabíola).

As dificuldades encontradas nos acordos e negociações com a vida privada e profissional ajudam a entender o orgulho com que as pessoas falam de sua cons-tância na devoção, de sua presença ininterrupta por décadas. Muitas senhoras da Pia União disseram que a aposentadoria, a viuvez, o crescimento e casamento dos

filhos foram como uma liberação para uma freqüência mais constante ao conven-to. De igual maneira, muitas mencionaram as dificuldades pelas quais passaram ao longo dos anos, negociando com o marido ou o resto da família para que a devoção tivesse um espaço garantido em suas vidas – e os conselhos dos padres para que os maridos não fossem deixados de lado e que a família ficasse sempre em primeiro lugar. A questão da disponibilidade aparece também para justificar a ausência de renovação da Pia União: apesar de muitas delas terem “herdado” sua devoção de mães ou avós, quando perguntadas se suas filhas também eram da associação, todas as indagadas disseram que elas não podiam participar, porque trabalhavam fora. Mas talvez em futuras pesquisas se possa aprofundar se é realmente uma mudança no modo de vida contemporâneo que faz com que haja poucas mulheres jovens na Pia União, ou se pertencer à associação é algo característico de determinado momento do ciclo da vida de uma pessoa, isto é, de uma faixa etária mais avançada, após o crescimento dos filhos.

A negociação com outros domínios da vida pessoal parece ser facilitada pelo fato de que o devoto freqüentador assíduo torna-se um mediador por excelência de pedidos de familiares, amigos e vizinhos, um “especialista no sagrado”, que para isso deve ser liberado de algumas de suas funções. As boas relações que tem com o santo, se são “individualizadas” como a literatura dos cultos aos santos ressalta, podem, entretanto ser canalizadas em benefício de outrem, justificando assim a prática corrente de pedir por alguém que não esteja lá. D. Marita me conta que a ida a várias igrejas permite livrá-la de todos os males, e que as pessoas “pedem para ela pedir”:

Minha amiga conseguiu comprar um apartamento naquele edifício “Balança, mas não cai”. Aí uma amiga dela, que não tinha casa própria, foi visitar e começou a dizer: “Nossa, que apartamento bom, eu ficava bem aqui. E esse quarto? Dava direitinho para mim”.E minha amiga me disse: Marita, naquela hora eu só me lembrei de você que vive nas igrejas com seus santos, e fiquei pensando em você [como uma proteção para inveja].

As mesmas senhoras que falaram dos arranjos e negociações feitos com a família para garantir o comparecimento à Igreja contam que netos e netas, ou filhos e filhas, e mesmo amigos costumam “pedir que elas peçam por eles” em suas idas ao convento, por provas, namoros, empregos. Essa prática de “pedir por” alguém aparece materializada nos pedidos escritos que recolhi durante a trezena. Foi identificada também durante a distribuição do pãozinho de Santo Antônio na festa, onde era comum a prática de pedir um segundo pão para levar para parentes, amigos, vizinhos que não puderam comparecer. Aparece nas bênçãos, quando as

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pessoas trazem fotos de outros para serem abençoadas. Na missa, o pedido por outros é contemplado diversas vezes, introduzido pela expressão “vamos rezar por”.

Temos assim que no Convento de Santo Antônio estabelecem-se circuitos de mediação, numa cadeia que vai se multiplicando, descendo do Céu à Terra, de Deus aos homens e mulheres, passando pelo santo e (em alguns casos) pelos sacerdotes. Mas ela não se restringe apenas a esses agentes: através de um doador pode-se conseguir roupas e remédios, de um amigo feito durante a missa pode se conseguir um emprego para um filho; através da indicação de um padre, uma vaga para a filha em um curso. E todas essas graças e benesses, por mais materiais que pareçam ser, podem ser lidas como provenientes do santo, ainda que estabelecidas através de inúmeras mediações, de maneira indireta, numa manifestação sutil que só o olhar muito acurado de um devoto conseguirá perceber.6

3 – A atitude pedagógica

Certo dia, ao gravar uma entrevista com Joaquim (a quem já me referi ante-riormente), na saída de uma missa, a idéia da Trezena de Santo Antônio como um espaço de aprendizado sobre a vida do santo apareceu de uma forma cristalina.

Joaquim falava de sua freqüência ao convento, de sua devoção ao santo, quando me perguntou se eu conhecia a vida de Santo Antônio. Ouvindo-me responder que mais ou menos, começou a narrar uma série de episódios referentes à biografia do santo, com um alto grau de precisão, principalmente se comparado a outros informantes. Falou da adesão ao franciscanismo, da ida em missão ao Marrocos, da doença, do retorno a Portugal que acabou por levá-lo à Itália, da descoberta de suas capacidades de exímio pregador, do ensino na universidade, da popularidade adquirida em Pádua. E continuou:

Joaquim: Você sabe a história do santo casamenteiro? (...) Ele ficou como santo dos namorados porque tinha um tal de Ezzelino, que era uma espécie de um títere que tinha lá [em Pádua], que baixou um decreto que ninguém mais casava. E para casar era muito caro, muito difícil. Então foram ao fr. Antônio, porque lá [em Pádua], tudo era o fr. Antônio, era um homem forte. E o fr. Antônio na praça, na Idade Média, aquelas coisas de praça, você sabe como é que é? E na praça ele inquiriu... esse tal Ezzelino, e pá, parece que foi um debate daqui e de lá, de horas... Eu sei que ele conseguiu que o Ezzelino revogasse esse decreto, que ninguém conseguia mais casar. Aí as pessoas voltaram a se casar, e ele ficou conhecido como o santo dos namorados, do casamento (...).E depois teve outro, o da multiplicação dos pães também. Você conhece o dos pães?Renata: Não. Mas como é que você descobriu esses milagres todos?

Joaquim: Ah, porque tinha um outro padre na outra trezena, que falava a cada dia a vida de Santo Antônio e dessas coisas, entendeu?

Participando de sua quarta ou quinta trezena, Joaquim tinha acumulado uma série de conhecimentos sobre a vida e a obra de Santo Antônio, que acionava ao ser indagado sobre sua devoção, e também sobre seu relacionamento com o santo. Assim, uma das funções da trezena seria a de ser uma ocasião de conhecer a vida do santo, que, dependendo do pregador, poderia ganhar maior ou menor destaque, mais ou menos cor.

A descoberta dessa função nos sermões da trezena fez-me retornar às notas etnográficas de todo o semestre, procurando outras evidências da transmissão de informação no convento, em que os padres, nas missas, explicassem ao pú-blico elementos da religião. Se isso se tornava óbvio no caso das homilias, cujo objetivo explícito é realmente esse, minha atenção acabou se voltando também para as formas em que as transmissões de informações aconteciam em atividades “marginais”, ou melhor, “periféricas”, de menor destaque do que a pregação.

Assim, permanecendo no âmbito da missa, não apenas os sermões, mas tam-bém ladainhas, orações “espontâneas”, “intenções”, avisos ao final da missa, e mesmo os pequenos comentários que os padres faziam durante as celebrações, ou em seus intervalos, funcionavam como espaços de transmissão de informações. As informações se concentravam em três blocos: elas versavam sobre conteúdos doutrinários, procedimentos litúrgicos e seus possíveis significados ocultos e tam-bém sobre as formas de comportamento adequadas aos leigos no convento, isto é, sobre regras de conduta.

Por exemplo, na cerimônia de Cinzas, que marca o começo da Quaresma, fr. Marcílio deu uma série de explicações, em sua missa, sobre esse “Tempo” central ao calendário católico. Ele abriu a celebração lendo “orientações litúrgicas”, pre-paradas por ele para a ocasião:

A Quaresma é uma preparação para a Páscoa, cujo ponto final é a Semana Santa. É um tempo forte, adensado na História da Igreja, em que se reflete sobre a pessoa, vida e morte de Jesus. É um tempo de austeridade, por isso não se canta a “Aleluia”, os cantos são mais austeros; os casamentos, pede-se que sejam com menos ostentação. A vida deve ser mais sóbria, menos exuberante, e deve-se exercitar a caridade e a paciência. Com sacrifícios corporais e abstinência para seguirmos melhor a Cristo e servirmos melhor aos irmãos.

Nota-se então que essas diretrizes buscavam inculcar um comportamento adequado ao período ritual da Quaresma, ao mesmo tempo em que explicavam

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o porquê desse comportamento, articulando-o à doutrina, bem como de demais mudanças na celebração. Indiretamente, elas ainda fornecem aos antropólogos um exemplo de como é possível construir um tempo ritual, ou uma mudança de ritmo na vida social: mudando a velocidade e o tom das celebrações, a decoração do templo, criando práticas especiais que estabelecem uma diferença no cotidiano. Nessa mesma missa, fr. Marcílio explicou o que eram as cinzas, que seriam aplica-das na testa dos freqüentadores que assim o desejassem. A fala do padre continha uma descrição objetiva do que são as cinzas, uma explicação doutrinária de seu significado e uma desqualificação de certas crenças em torno delas, como a de ter que mantê-las no rosto ao longo de todo dia:

As cinzas são feitas dos ramos do Domingo de Ramos do ano passado, que foram queimados. Elas têm um duplo sentido; de Vitória, e de que ficamos sem rei... Não há problema em remover as cinzas [da testa], tem gente que fica pre-ocupada em só tomar banho no dia seguinte, mas o que importa é o gesto.

Um outro exemplo de transmissão de informações pode ser encontrado em um aviso que o mesmo frade fez numa missa de março, mencionando que o con-vento celebraria o tríduo festivo de São José, nos dias 16, 17 e 18 daquele mês, em preparação à sua festa, no dia 19:

Um dos objetivos do convento é dar destaque ao mistério da salvação, e São José é uma figura singular e ímpar nesse mistério. Por isso, ele já está ali no fundo da igreja [apontou para a imagem do santo], mas penso em trazê-lo mais para perto do altar durante o tríduo.

Vê-se como nesse aviso, mesmo pequeno, uma série de informações apareceu de forma condensada. O padre simultaneamente convidou para o tríduo, explicou sua função imediata (preparar a festa do santo), explicou sua função mais profunda (dar destaque ao mistério da salvação), justificou a importância de São José (sua centralidade no mistério da salvação), indicou a presença da imagem de São José no fundo da igreja (ensinando, para os que ainda não haviam percebido, que aque-la era a imagem do santo) e explicou ainda porque ela mudaria de lugar durante o tríduo, assinalando subliminarmente que “aproximar algo do altar” significa “atribuir-lhe prestígio”.

Mas os avisos podem ainda enfatizar uma dimensão bastante pragmática, de prescrever um comportamento adequado para que o culto se realize, de regras de conduta. Quando a rotina do convento é alterada, avisos assinalam a nova conduta

a ser adotada. Assim, durante a Semana Santa, para qual é programada uma “con-fissão comunitária”, fr. Marcílio explicou, dias antes, os procedimentos a serem seguidos para viabilizar o evento:

O pessoal fará uma fila, confessará, haverá a penitência e a absolvição, de-pois haverá a comunhão. Mas por favor, confessem os pecados “secamente”, sem aconselhamento, sem muita história, senão vamos ficar na igreja até a meia-noite.

Também na festa do santo, dia 13 de junho, medidas são tomadas para garantir a presença de enorme massa humana no convento sem maiores problemas. Um dos mecanismos para que isso ocorra é “avisar” como devem agir os freqüentadores:

Por favor, saiam logo da Igreja. Tomem a benção e saiam logo. Facilitem a circulação. Se virem alguém passando mal, por favor, nos avisem.

Peguem apenas um pãozinho para cada um, para que todos tenham ao menos um pãozinho.

Cuidados com os bolsos e bolsas.

Os bancos são apenas para idosos e doentes

(avisos antes e depois da benção, diversos padres).

Portanto, é como se houvesse uma “pedagogia católica” em operação no con-vento, isto é, um ensinamento constante de regras de conduta, aspectos doutrinários e regras litúrgicas, no curso das celebrações ou em seus interstícios, que permite que aqueles que não tenham sido socializados anteriormente no catolicismo adquiram esses conhecimentos através do comparecimento às celebrações desenvolvidas no local. Assim, o convento parece funcionar como uma das portas abertas para a entrada no catolicismo, seja dos que dele se afastaram, seja dos que dele nunca fizeram parte, mas que querem se aproximar. E como um santuário, aberto aos peregrinos, essa abertura se daria nessa igreja mais do que em outras.

Mas essa “atitude pedagógica”, que aparece como uma das formas de arti-culação em operação no convento, não se dá apenas entre o clero e os leigos. Ela se faz presente também nas interações estabelecidas entre os próprios leigos, que trocam uma série de informações e impressões sobre a religião.

Um exemplo em campo veio quando despontou o sucesso de N. S. Desatadora de Nós .Tratava-se de uma invocação recente de Maria, introduzida no Estado do Rio de Janeiro aparentemente por padres ligados à Renovação Carismática Católica. Uma invocação desconhecida no início do ano, ela causava um verdadeiro furor no convento, alastrando-se rapidamente: ao final do semestre sua “pulseira” havia

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se tornado um dos itens mais vendidos na Boutique Santo Antônio. Assim, tendo ouvido falar da novidade, encontrei numa terça-feira à tarde uma senhora da Pia União dentro da Igreja, perto do quadro de Santo Antônio, distribuindo em mãos, para os interessados, fotocópias da oração desta santa. Perguntei se era promessa – ela disse que não, que fora na loja das Edições Paulinas [livraria católica], des-cobrira o livrinho de orações e resolvera fazer as cópias para distribuir, pois todo mundo andava dizendo que ela era “muito poderosa”, então ela tinha resolvido distribuir a oração, se alguém resolvesse experimentar.

Em fevereiro, saindo do convento, encontro duas senhoras bastante idosas conversando, uma contando a outra que haveria uma benção dos doentes (unção dos enfermos) na sexta-feira seguinte:

– É uma coisa muito boa, para gente doente assim como nós, ele bota a mão na cabeça, dá a benção, é muito bom. – Ah, essa sexta não posso vir, vou ver se venho em março.

Ou em julho, quando estou conversando com Joaquim e um grupo de conhe-cidos dele na porta da Igreja, e ele promete trazer para nós cópias de uma oração antiga, que achava bonita porque parecia um mantra e que seria ótima para levar na carteira como forma de proteção.

Em outra oportunidade, dona Geralda, ao lado de quem assisti a algumas missas, me contou as celebrações a que comparecia: às terças e quintas-feiras ia à missa da catedral de São Sebastião, com pe. Inocêncio. Participava da adoração do Santíssimo Sacramento todo dia 20, na Igreja de Santana. Ia à Igreja de São José, na Praça XV, às quartas-feiras, para a missa das 12 horas, e freqüentava “sua igreja”, a de São Joaquim, no Estácio.7 Perguntei se os “Adoradores de Santana” eram as pessoas que freqüentavam às missas do convento com fitas vermelhas, e ela me corrigiu:

Os Adoradores de Santana são os de fita branca. Os de fita vermelha são os do Apostolado da Oração. As fitas azuis são das Filhas de Maria. Os Adoradores são os que passam dia e noite guardando o Santíssimo Sacramento, na Igreja de Santana. De noite, os homens; de dia, as mulheres.

Foi assim que, participando das celebrações no convento, em interações mais ou menos formalizadas, passei a aprender diferentes regras de etiqueta e explicações sobre a simbologia do ritual. Anteriormente socializada no catolicismo, conhecia apenas os preceitos fundamentais para as celebrações: os momentos de sentar, ajo-elhar, ficar de pé, as orações mais importantes, alguns cânticos. Meus conhecidos, com os quais assisti a várias missas, foram dando referências sutis e aos poucos fui

aprendendo a me comportar no local, do ponto de vista das regras litúrgicas. Mas também aprendi a participar das celebrações a fim de extrair delas o que pudesse me interessar, isto é, de garantir as condições para ver minhas necessidades atendidas. Na trezena, Joaquim colocou-me defronte à imagem de Santo Antônio, durante a ladainha, ensinando-me a ficar “de frente para ele, para que você possa vê-lo, e para que ele possa ver você também”, Thereza ensinou-me a permanecer na igreja após o final da benção, aguardando o padre voltar ao altar e dizer as palavras de encerramento, pois para ela a missa só então se encerrava. Marita ensinou-me a sentar do lado esquerdo, se quisesse pegar vento nos dias quentes. E etc.

Ao final do semestre, eu mesma passara a ensinar, e isso me confirmou a idéia de uma atitude pedagógica no convento. Comecei a dar informações sobre horários, sobre padres, sobre procedimentos a serem adotados. Foi “ensinando”, isto é, percebendo as gafes e falta de conhecimentos de outros freqüentadores recém-chegados a me pedir orientação, que me percebi inserida num circuito, no qual aprender e ensinar tornam-se uma constante. Há no convento sempre algum “novo” freqüentador, chegando pela primeira vez, vindo “conhecer” o que acontece lá, pedindo informações e as obtendo de outros freqüentadores “mais antigos”. Dentro do circuito, pude perceber como havia em operação essa atitude pedagó-gica básica, que talvez possa ser lida como um desdobramento da “ajuda”, com os freqüentadores demonstrando disponibilidade de “ensinar” e “aconselhar” os demais. Através dessas interações, forma-se como uma espécie de fundo de infor-mações sobre os santos poderosos, as orações eficazes, o padre que benze, fala ou confessa bem, as igrejas que se deve freqüentar etc. Recebi ao longo do semestre sugestões e convites para ir a outras missas em outras igrejas, e oferecimentos de orações e novenas. Tudo me foi transmitido no espaço do convento, onde se pode aprender as referências, as regras de etiqueta e os atalhos para transitar pelo universo devocional do catolicismo.

Notas1 Como dinheiro é um assunto muito delicado na Igreja Católica, sempre evito tocar diretamente nele, mas já na primeira entrevista que fiz com frei Marcílio ele me disse que o convento recebe muitas doações, inclusive dando a entender que é uma das fontes de sustento de sua paróquia, a catedral. Há muito folclore sobre o assunto, sendo que o devoto mais conhecido era Zagallo, ex-técnico da seleção brasileira, que na Copa do Mundo de 1998, a cada gol do time nacional doava R$ 500,00 para o convento. Durante a festa, tive exemplos mais concretos disso: além do volume impressionante da doação de pão chegando ao longo de todo o dia – uma padaria doou quinze mil –, pude observar um aluno-frade indo depositar um cheque de três mil reais de uma rede de farmácias carioca.2 Para visualizar a questão do controle e conflito interleigos, remeto a uma conversa ouvida na Boutique Santo Antônio, entre uma jovem que queria comprar um escapulário do santo e a

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voluntária que a atendeu. A pessoa pediu o artigo e foi imediatamente corrigida: “Santo Antônio não tem escapulário. Não sei quais são os escapulários que se inventam por aí, mas os verdadeiros são apenas os de N. S. das Mercês”.3 Ver uma análise das novenas e dos santinhos do convento no capítulo 8. 4 Correntes são cartas anônimas, cujo texto exige que sejam copiadas e passadas adiante, sob pena de desgraças ao destinatário que “quebrar a corrente”. Ela se distingue da novena justa-mente por seu caráter coercitivo. Para as correntes, inclusive correntes de Santo Antônio, ver Bonnet & Delestre, 1984.5 Não cumprir o prometido ao santo parece não fazer parte do horizonte de possibilidades dos freqüentadores. A única referência a um castigo do santo surgiu em uma resposta do questioná-rio, onde a pessoa falava de uma amiga, e não de si mesma: “Uma amiga minha de 33 anos não casou porque quando ela tinha 15 anos, ela tirou o menino [Jesus] do Santo Antônio e perdeu” (r175: mulher, 32 anos, Tijuca).6 Como veremos na parte III, as graças de um santo para com seu devoto manifestam-se não apenas em grandes feitos, ou em momentos solenes (embora muitas vezes o início da devoção justifique-se por um evento espetacular), mas no cotidiano, ajudando a achar coisas perdidas, a atravessar a rua com segurança, a não ficar doente, a criar bem os filhos, a tirar nota boa na prova. Essas graças são tratadas pelos devotos como sinais da presença do santo em todos os momentos de sua vida. Portanto, a graça aparece como uma espécie de categoria que os devotos utilizam para enquadrar determinados eventos de sua vida, num processo classificatório que só adquire sentido no contexto da devoção aos santos, e que, portanto, apenas devotos são capazes de estabelecer.7 O termo “minha igreja” aparece na fala dos agentes para designar a paróquia onde moram.

Parte III

revisitAndo A relAção

sAnto-devoto

147146 A dinâmicA do sAgrAdocApítulo 6

Santo Antônio

1 – As imagens do convento

No início da pesquisa, tinha poucas informações sobre Santo Antônio. Algumas vagas lembranças de festas juninas da infância, em que ele, junto a São João e São Pedro, dominava os arraiais escolares e as quermesses de Igreja, onde as músicas insistiam na sua fama de casamenteiro. Ao começar a freqüentar o convento, a aproximação ao santo deu-se primeiramente através de suas imagens, que o repro-duziam em estátuas, azulejos, santinhos, orações e cartazes do local. A variedade encontrada é exemplificada nas fotos do anexo, composto a partir do material proveniente do trabalho de campo.

Entretanto, como no convento de Santo Antônio não existem apenas imagens deste santo, mas também de outros, nas primeiras visitas era o caos: a duras penas conseguia identificá-lo, muitas vezes por ensaio e erro, e graças à boa vontade das pessoas que constantemente me corrigiam. Na verdade, a identificação de um santo através de suas imagens é tarefa que exige uma certa “socialização” religiosa, pois, como nos lembra O’Neil, a iconografia é um tipo de linguagem a ser decodificada:

Representations of holy persons became a kind of language, which, when correctly understood, might reveal much about the life, attributes, and devo-tion to the depicted subject: further interpretation might reveal, as well, the spiritual posture and theological orientation of its makers (O’Neil, 1968: 963).

O mesmo autor diz que a iconografia de um santo é baseada naquilo que cha-ma de “características pessoais” (elementos de aparência física ou de vestimenta próprios ao santo, que o identificam) e “atributos” (um sinal adicionado à pessoa para identificá-la, tal como um objeto emblemático, um animal ou um instrumento de martírio), que servem para representá-lo.1 Assim, para distinguir um santo dos demais é preciso saber identificar esses elementos.

Em campo, pouco a pouco, fui tornando-me capaz de reconhecer Santo An-tônio, a partir de alguns elementos e apesar das variantes: um rapaz relativamente

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jovem, imberbe, com o hábito franciscano. Às vezes um menino nos braços (que parecia ser o menino Jesus), às vezes uma planta, às vezes um livro, às vezes uma cruz, e, freqüentemente, dois ou três ou mesmo todos esses itens se combinando. Outro elemento que aparecia relacionado à figura do santo era o pão: as expressões “para o pão de Santo Antônio”, ou “para o pão dos pobres” apareciam escritas junto a imagens do santo, ou em caixas de coleta de esmolas, ou em cartazes com pedidos de doação.

O processo de identificação do santo, centrado nos elementos distintivos, tornou-me habilitada a encontrá-lo, mesmo em outros espaços, religiosos ou não, com margem razoável de acerto. Mas permanecia inacessível qualquer simbologia que pudesse haver por trás desses elementos. Se houve um momento da história do cristianismo, ou mesmo da cultura ocidental, em que a simbologia em torno da iconografia dos santos era facilmente decifrável (Belting, 1998; Christian, 1981, Strong, 1987), esse momento era definitivamente outro. Estabelecia-se para mim uma barreira de opacidade (no sentido de um enigma que estimula a análise, como Baktin, 1999, e Darnton, 1986, aplicam ao termo) quanto à simbologia em torno de Santo Antônio.

Os freqüentadores do convento, entretanto, pareciam não só conhecer essa simbologia, no todo ou em parte, como eram capazes de relacioná-la à vida do santo e acioná-la em suas práticas devocionais. Estava em jogo, portanto, toda uma tradição associada à figura de Santo Antônio que não havia sido criada no convento, mas com a qual o culto desenvolvido no local se encontrava articulado e que para mim era desconhecida. Por isso, antes de tentar compreender as especificidades que o culto a este santo assume no local, tornou-se necessário vencer a barreira da opacidade e analisar a figura do santo, bem como a simbologia que a ele se encontra associada. Para isso, um dos recursos utilizados foi levantar dados sobre sua vida, os milagres mais famosos, as capacidades que lhe são atribuídas, seus usos e as características de seu culto no Brasil, através da literatura encontrada.2

Não realizei, entretanto, um levantamento exaustivo, pois, como pude perceber, o volume de trabalhos é extenso e em constante renovação, provavelmente por se tratar de um dos santos mais populares do catolicismo. Há, inclusive, um ramo particular dos estudos católicos – os “estudos antonianos”, que se ocupam tanto da biografia como da obra do santo.3 A leitura que efetuei acabou por se concentrar sobre alguns títulos que possibilitassem localizar o santo no tempo e no espaço e entender as referências encontradas em campo.

Recorri a obras de historiadores, teólogos e folcloristas, mas também a manuais religiosos sobre a vida do santo, pois cada um desses diferentes tipos de textos trazia informações distintas, que procurei agregar. Se todos foram utilizados para recuperar a tradição global existente sobre o santo – a vida e os milagres mais célebres – é principalmente a partir dos folcloristas que se consegue recuperar as

características específicas que essa tradição assumiu no Brasil, isto é, a forma pela qual o santo foi “apropriado” e “usado” concretamente no país.

A análise dessa literatura visa a aproximar-nos de uma espécie de “fundo”, ou de “repertório”, com um certo cunho mítico, composto tanto por interpretações de eventos da vida do santo, como pela tradição formada a seu redor, que os devotos têm acionado e realimentado ao longo dos séculos.

2 – A vida do santo

A síntese da vida de Santo Antônio exigiu, entretanto, um certo exercício de conciliação, visto que existem divergências entre os trabalhos consultados, as quais parecem justificar-se pela precariedade das fontes primárias. Isto porque Santo Antônio é um personagem do século XIII, e nesse período, a compilação da vida de um santo, isto é, sua hagiografia,4 tinha mais a função de maravilhar ou edificar os leitores/ouvintes com seus prodígios do que a de recompor com rigor os fatos vividos (Attwater, 1983: 14).5 Portanto, como nos lembra Silveira (1995), há nítidas diferenças entre a biografia moderna e a medieval:

A moderna utiliza o método indutivo, partindo dos fatos da vida, cronologi-camente organizados para chegar à personalidade do biografado. A medieval parte de princípios gerais, baseados, por exemplo, na teologia, na espirituali-dade, em dados bíblicos etc., e procura comprová-los a partir de episódios da vida do santo, muitas vezes verídicos e em vários casos duvidosos e mesmo lendários. Culto e tradição oral antecedem as legendas [vidas de santos] (Silveira, 1995: 134-135 – grifos meus).

Assim, ainda hoje os especialistas se debruçam sobre as fontes, tentando re-traçar a vida do santo nos mínimos detalhes. Mas para os objetivos deste capítulo, passando ao largo de possíveis debates existentes sobre o tema, tentarei recuperar os episódios mais significativos, assinalando, quando necessário, as divergências encontradas.

No processo de recorrer à literatura, descobri que Santo Antônio havia nascido em Lisboa, em torno de 1195,6 como o primogênito de uma família nobre e rica, com o nome de Fernando Martins, ou Fernando de Bulhões.7 Em torno dos sete anos, ele teria iniciado seus estudos na escola anexa à catedral de Lisboa, próxima à sua casa, e “desde criança”,8 teria manifestado atração pela vida religiosa. Portanto, aos 15 anos, ingressou no Mosteiro de S. Vicente de Fora, pertencente à Ordem dos Cônegos Regrantes de Santo Agostinho (agostinianos), cuja regra combinava penitência, meditação e contemplação à ação pastoral e intervenção urbanas (Krus & Caldeira, 1995: 18). Neste convento, deu continuidade à sua formação, tanto no estudo das escrituras e da filosofia, como na aprendizagem das técnicas mnemônicas

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e de oratória que compunham o instrumental de um sacerdote à época. Cerca de 1212 transferiu-se para Coimbra, para o Mosteiro de Santa Cruz,

o mais importante de Portugal, para continuar seus estudos. A mudança aparece justificada por dois motivos diferentes, mas que na verdade poderiam estar com-binados: segundo Gamboso (s/d: 3) e Piccolo (1995: 165), Coimbra afastaria Fernando das constantes visitas de parentes e amigos, que ameaçariam a seriedade de seus propósitos religiosos. Já Krus e Caldeira (1995: 17) e Müller (2001: 12) justificam a mudança pelo fato de que Coimbra, então capital do reino português, por ser mais próspera, poderosa e erudita que Lisboa, oferecia maiores chances de aperfeiçoamento. Aí Fernando teria adquirido uma formação intelectual primorosa: seu mosteiro possuía uma das bibliotecas mais importantes de toda a Europa e era local de estadia de estudiosos e pregadores de renome.

Foi ainda na cosmopolita Coimbra, provavelmente em 1220, logo após sua ordenação sacerdotal, que ele teve seus primeiros contatos com os franciscanos, que parecem tê-lo fascinado. Eles eram membros da ordem religiosa criada por Francisco de Assis na Itália, em 1209, que conhecia um rápido sucesso na Europa Ocidental, e haviam se instalado no convento de Santo Antão dos Olivais, adaptando uma ermida da periferia da cidade, onde viviam da mendicância.9

Alguns meses mais tarde, chegaram ao mosteiro de Fernando, pelas mãos do irmão do rei, os despojos de cinco franciscanos martirizados no Marrocos pelos muçulmanos – os primeiros mártires do franciscanismo (Piccolo, 1995: 165). To-cado por essa experiência, e já motivado pelos contatos anteriores com os frades, Fernando decidiu tornar-se ele mesmo um franciscano, a fim de assumir também o papel de missionário na mesma região e enfrentar, se necessário, o martírio. Entrou assim na Ordem Franciscana, trocando de nome para marcar a transformação de sua vida, e passou a chamar-se Antônio. Em seguida, partiu para o Marrocos. Mas lá chegando, foi imediatamente atacado pela malária, e a fragilidade de sua saúde impôs-lhe o retorno a Portugal, com o abandono do projeto missionário.

Porém – e as biografias consultadas costumam tratar esse episódio como um sinal divino, ou ao menos como uma notável coincidência –, ventos contrários le-varam seu navio para as costas da Itália, onde mesmo doente Antônio teve a chance de conhecer pessoalmente o fundador de sua nova Ordem, Francisco de Assis, em um “capítulo”, isto é, uma reunião geral dos frades. Após o capítulo, Antônio teria sido encaminhado a um eremitério em Monte Paulo, na periferia da cidade de Forli, para que, através da experiência da ascese, oração, jejum e austeridade, pudesse “libertar-se de si próprio” e “encontrar o amor divino” (Krus & Caldeira, 1995: 31; Gamboso, s/d: 7). Sua estadia aí teria se estendido de 1221 a 1222.

Mas em um dia de 1222, numa cerimônia de ordenação sacerdotal em Forli, cuja importância era evidenciada pela presença do cardeal, Antônio foi convidado a proferir “duas palavras” na celebração, saindo de seu retiro. E apesar de sua inse-

gurança e temor diante da novidade (Rossi,1998: 10), a genialidade do sermonista se revelou, surpreendendo a todos os presentes. Desde então, sua fama começou a se espalhar e multidões passaram a acorrer para ouvi-lo falar.10

A partir daí, sua vida religiosa entraria em uma nova etapa, marcada pelas atividades de “lecionar, disputar, pregar”, a “disputa” aí entendida como um debate vigoroso de argumentos teológicos, principalmente contra os hereges (Silveira, 1995). Por suas qualidades na prédica, ele foi enviado à França e à Itália, para pregar entre (ou contra...) os hereges cátaros e albigenses. Passou ainda a ocupar posições de destaque na Ordem Franciscana, tornando-se provincial dos Frades do Norte da Itália entre 1227 e 1230. Fundou também os estudos de teologia da Ordem – segundo alguns, por uma solicitação expressa em uma carta pelo próprio Francisco de Assis –, ensinando em Bolonha, Montpellier, Toulouse e Pádua. E foi nessa última cidade – onde terminou por se fixar no Convento franciscano de Santa Maria – que exerceu uma intensa atividade pastoral, redigindo Os Sermões, obra que lhe conferiu post-mortem o título de “Doutor da Igreja”.11

Entretanto, os problemas constantes de saúde, as instabilidades da vida men-dicante e sua intensa atividade acabaram por lhe abreviar a vida:

Pregando, ensinando, ouvindo as confissões, acontecia freqüentemente que chegava ao crepúsculo sem ter feito nenhuma refeição. Milhares de pessoas acorriam de toda parte, para ouvir os seus sermões e, naturalmente, todos, à pinha, juntavam-se para se confessarem a ele. (...) Horas e horas de aten-dimento sacramental até se reduzir a um farrapo pelo cansaço; alimentação irregular, pouco repouso, saúde precária desde os meses passados em Mar-rocos: não temos de nos espantar se, vivendo desta maneira, a irmã morte o tenha atingido aos 36 anos de idade” (Gamboso, s/d: 9).

Vítima de hidropisia, cada vez mais fraco, frei Antônio retirou-se para um ere-mitério em Campo de São Pedro, a fim de purificar-se em retiro para “apresentar-se ao Senhor” (id., ib.: 13). Porém, ao sentir que ia morrer, pediu que o levassem de volta a Pádua, para passar seus últimos momentos no convento de Santa Maria. Mas faleceria no caminho de volta, em 13 de junho de 1231, numa parada em um convento de Clarissas, em Arcelas. Entretanto, numa época em que o corpo de uma pessoa considerada santa (sua reputação de santidade já era grande mesmo em vida) era um tesouro precioso (Geary, 1990; Hermann-Mascard, 1975, Boesch-Gajano, 1999; Delehaye, 1927), os paduanos lutaram para que Antônio fosse sepultado em sua cidade, alegando que era lá que ele passara os últimos anos de vida e que era muito querido pela população local. Assim, seu cadáver retornou a Pádua, sendo depositado na Igreja do Convento de Santa Maria. Sua canonização, feita pelo papa Gregório IX, se deu de forma bastante rápida, menos de um ano após sua morte, em 30 de maio de 1232. A fama do santo difundiu-se rapidamente, e Pádua

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se tornou meta de peregrinações. E o dia 13 de junho – que assinalava a morte do santo e seu conseqüente “nascimento na vida eterna” – se tornou, como de praxe, sua festa no calendário católico. Ver Hermann-Mascard (1975: 23); Delehaye (1927: 123), entre outros.

Sua invocação comporta duas formas, “Santo Antônio de Pádua” ou “Santo Antônio de Lisboa”, e essa variação merece algumas considerações. Um santo geralmente leva a alcunha da cidade onde morreu e onde está sepultado. É a morte, mais do que o nascimento, que marca a santidade, já que ela representa o passa-mento “deste mundo” para a “glória eterna”, junto a Deus, Jesus e a comunidade dos salvos. Portanto, Santo Antônio é chamado “Santo Antônio de Pádua”, já que lá se encontram seus restos mortais e sua basílica, e essa é a forma mais corrente de tratá-lo. Mas ele também é tratado por “Santo Antônio de Lisboa”, pois sua cidade natal é bastante ressaltada pela literatura e por aqueles que propagam seu culto (Daix, 2000; Attwater, 1983). As duas formas de tratamento são admitidas por Roma, e essa concessão poderia estar relacionada às relações privilegiadas de Portugal com o papado, pois a dupla nominação permite manter um vínculo do santo com seu país de origem. Note-se que a forma “de Pádua” é mais universal, ao seguir o padrão de nominação dos santos, enquanto que a forma “de Lisboa”, de uso mais restrito, pode indicar que o culto em determinada região originou-se de Portugal, ou de regiões influenciadas por lusitanos.

Os episódios da vida de Antônio ganham maior significado se analisados em um quadro de referências mais amplo, que leve em consideração o contexto histórico em que ele viveu e foi canonizado,12 e que permita reconhecer tanto os padrões de santidade de uma determinada época, como os interesses de grupos sociais que levaram à sua canonização (Vauchez, 1987; Delooz, 1985). Assim, sua história pode ser lida à luz de uma historiografia da santidade medieval, ou de uma historiografia medieval mais geral.

O século XIII, na Baixa Idade Média, foi um período de grandes transformações sociais e econômicas, que afetaram as relações de produção e provocaram o cresci-mento da vida urbana. Neste período, eclodiram vários movimentos – muitos dos quais acabaram sendo classificados de “heresias” – que questionavam os modelos de vida religiosa até então hegemônicos: criticavam o isolamento, a ruralização e o enraizamento da vida monástica, bem como a acumulação material das grandes abadias. As ordens religiosas surgidas nesse período (franciscanos, dominicanos, servitas etc...), formadas no sentido de renovar práticas e corrigir distorções, inseriram-se prioritariamente em meio urbano, destinando-se à evangelização, isto é, à ação ativa de conversão, indo ao encontro de hereges e infiéis. Seus membros habitavam conventos no entorno das cidades, ao invés de abadias rurais (Goodich, 1985). Eles marcavam sua adesão à vida religiosa através de três votos: castidade, obediência e pobreza, sendo que este último interditava-lhes (por opção própria)

a possibilidade de acumular bens materiais. Krus & Caldeira (1995) oferecem elementos para interpretar a vida de Fer-

nando/Antônio com referência a um quadro político. Os autores lembram que se tratava de um homem da Península Ibérica do século XIII, região marcada pela instabilidade das relações entre mouros e cristãos, com Lisboa nesse momento transformada em área de fronteira entre a Cristandade e o Islã. A experiência do confronto entre dois mundos, que também era o confronto entre duas religiões, bem como a ideologia da Reconquista, teriam influenciado seu desejo de partir em missão para o Marrocos, para pregar o evangelho aos muçulmanos mesmo com risco da própria vida.

Também seu ato de trocar de ordem religiosa é lido politicamente por esses autores. O franciscanismo havia surgido como um movimento vigoroso de crítica à sociedade e à Igreja medievais, e a condenação que fazia da riqueza e dos privi-légios da nobreza e do clero, setores que oprimiam os pobres, punha em xeque a própria ordem instituída. Durante muito tempo, as fronteiras do movimento foram questionadas por seu radicalismo – ele se estabeleceria dentro dos marcos da ofi-cialidade Católica, ou descambaria para a heresia?13 Portanto, nesse contexto de tensão, a troca de Ordem de Fernando/Antônio, movido por aquilo que os autores chamam de uma “vocação religiosa sincera”, pode ser vista como um ato político: trata-se de um sacerdote agostiniano, pertencente ao mosteiro mais importante de Portugal (o qual mantinha relações estreitas com o poder real), que decide migrar para uma ordem mendicante, instalada em uma ermida na periferia de Coimbra. Os autores ressaltam ainda o fato de essa migração entre-ordens ter se dado logo após a chegada dos restos dos mártires franciscanos do Marrocos “em seu con-vento de origem, pelas mãos do irmão do Rei”. Aparentemente causada por uma comoção com o martírio, essa mudança poderia ter significados mais complexos: na verdade, os agostinianos estariam se apropriando, por favor do rei, das relíquias dos primeiros mártires franciscanos, e ao trocar de ordem, Fernando/Antônio teria se posicionado contra isso.

Por outro lado, ao consultar a historiografia sobre Santidade, vemos que a vida de Santo Antônio, antes de ser “singular”, representa uma trajetória recorrente nas primeiras décadas do século XIII: um jovem de família rica que optou pela vida religiosa não apenas por conveniências familiares, econômicas ou políticas, mas a partir de uma vontade autêntica. Porém, ele só encontra seu lugar definitivo radica-lizando essa opção, ao assumir voluntariamente a pobreza, abandonando a herança familiar (inclusive o nome) e as congregações religiosas poderosas já existentes por uma ordem mendicante recém-criada. O sucesso do próprio franciscanismo e das demais ordens mendicantes é em grande parte motivado pelo eco social conseguido por essa atitude de pobreza voluntária, isto é, por uma valorização social positiva do ato de tornar-se pobre por uma opção de fé, de entregar-se inteiramente aos

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desígnios de Deus e viver da caridade alheia.Mas – e nesse momento entra em jogo a trajetória individual de Antônio – o

alto grau de instrução que havia anteriormente adquirido com os agostinianos o destacava dos demais membros de sua Ordem, a qual, pelas características da vida mendicante, não possuía as condições materiais necessárias para a formação inte-lectual de seus membros, como conventos, escolas, bibliotecas.14 Ele trazia consigo a formação dos anos de estudo em Lisboa e Coimbra, onde havia desenvolvido as capacidades de teólogo e sermonista, e seu capital intelectual pôde ser canalizado tanto contra os hereges, como na institucionalização (ou, num sentido weberiano mais preciso, na burocratização) de sua Ordem. Como sermonista, Antônio foi enviado a pregar em regiões marcadas por heresias, e aí desempenhou as funções de missionário como desejara, trazendo de volta à Igreja Oficial vários dissidentes convictos. Daí as alcunhas que recebeu de “Martelo dos Hereges”, “Trombeta do Evangelho” e “Arca do Testamento”. Antes de instalar-se em Pádua, ocupou na Ordem cargos sucessivos de administração e de magistério, que contribuíram para o enquadramento canônico do franciscanismo. A recompensa por sua fidelidade e serviços prestados à hierarquia eclesiástica veio na rapidez adquirida por seu pro-cesso de canonização, logo em seguida à sua morte (Delooz, 1985; Vauchez, 1999).

Assim, a biografia de Antônio permite percebê-lo com um santo mendicante “típico” do século XIII, ao mesmo tempo em que revela como ele individualmente se destacou por seu capital cultural incorporado. E ela ajuda a entender alguns dos elementos distintivos de suas imagens: o hábito franciscano, por seu pertencimento à Ordem; o livro, que representaria o evangelho do sermonista, ou os sermões do doutor da Igreja; a cruz, que simbolizaria sua vocação missionária, e a planta – na verdade, um lírio, que representaria a castidade (Beckhaüser, 1995). Ajuda também a explicar a associação de um convento franciscano do Rio de Janeiro à figura do Santo, na verdade ele também um membro desta Ordem, e um membro de destaque, cujo culto lhe seria interessante propagar.

3 – Milagres

Ainda não falamos dos milagres com o devido destaque, e, no entanto eles são peças fundamentais na tradição de um santo, pois é a partir deles que sua reputação de santidade tende a se construir e difundir. As narrativas dos milagres de um santo permitem perceber os poderes que a ele são socialmente atribuídos e as áreas da vida humana onde sua atuação se concentra.

No caso de Santo Antônio, trata-se de um santo considerado “milagroso” e “poderoso”, que já realizou e que vem realizando um grande volume de milagres até os dias de hoje15, o que atestaria sua eficácia e poder. Os milagres de Santo Antônio, portanto, compõem um conjunto virtualmente infinito, que se propaga

em textos, na iconografia, nas orações. Diante desse conjunto inesgotável, a opção tomada neste capítulo foi a de

relatar alguns dos milagres “clássicos” de Santo Antônio, isto é, aqueles que apa-recem citados várias vezes nos textos escritos, filtrando-os a partir de uma seleção duplamente interessada: procurei privilegiar os milagres que de alguma maneira ajudassem a decodificar a simbologia do convento, ou aqueles que tivessem apa-recido em referências de campo – seja nos sermões dos frades, seja na fala dos freqüentadores. Optei também por apresentar esses milagres em relação às etapas da vida do santo – o período em Portugal, a época de pregação contra a heresia, a de ensino aos demais frades da ordem, a de ação pastoral em Pádua, a da estadia em Campo São Pedro e, finalmente, a de sua morte – embora nos livros consultados eles não se apresentem necessariamente em ordem.

Além daquilo que os autores consideram como “causalidades misteriosas”, que marcaram a história de Santo Antônio, as quais o teriam levado sucessivamente a tornar-se franciscano, mudar para a Itália e firmar-se como sermonista (e que muitas vezes são lidas como intervenções da providência divina), os milagres do próprio santo teriam começado ainda em sua infância. O primeiro teria ocorrido em Lisboa: enquanto rezava na catedral, o jovem Fernando percebeu a presença do demônio e conseguiu afugentá-lo traçando o sinal da cruz no chão (Gamboso, s/d : 2). E por ser um milagre realizado por uma criança ainda, este evento seria tratado como um sinal de sua predestinação.

Já no período Itália/França, de pregação aos hereges, os milagres foram vários, sendo que dois são os mais referidos pela literatura: o “sermão dos peixes”, e o do “jumento e da hóstia”. O “milagre do sermão dos peixes” tem como cenário Rimini, cidade italiana “tomada pela heresia”. Quando Antônio aí chegou para pregar, as pessoas negaram-se a escutá-lo. Ele então se colocou à beira d’água e fez um apelo: “Venham vocês, peixes, ouvir a palavra de Deus, já que os homens petulantes se recusam a ouvi-la”. E logo centenas de peixes apareceram à tona, nela permanecendo até o fim de seu sermão, dispersando-se apenas após a bênção do santo. A curiosidade e o maravilhamento dos hereges diante do fenômeno fez com que eles se arrependessem e retornassem à Igreja, convertendo-se graças ao pregador (Gamboso, s/d: 7, Rossi, 1998: 11, Lira, 1956: 222, Bovo, 2003).

O segundo milagre, o do “jumento e da hóstia”, diz respeito a um desafio entre Antônio e um herege. Este disse que só acreditaria na presença de Cristo na hóstia consagrada quando visse seu jumento ajoelhar-se diante do Santíssimo Sa-cramento. Antônio aceitou o desafio. Deixaram o animal três dias sem comer, e lhe apresentaram, de um lado a pastagem, de outro, a hóstia consagrada por Antônio. O jumento ignorou a pastagem e ajoelhou-se diante da hóstia, o que fez o herege se converter (Silveira, 1995: 143; Gamboso, s/d: 8).16

Os milagres entre os hereges refletem a tensão existente à época entre popula-

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ções locais e um pregador da Igreja Católica oficial, cujo poder é constantemente posto a prova – seja pelos homens, seja pelo demônio. Krus e Caldeira (1995: 49) lembram que os milagres desta etapa da vida de Antônio demonstram como ele era capaz de utilizar técnicas de pregação sofisticadas e espetaculares nas disputas com os contendores da ortodoxia religiosa.

Já no período de ensino aos frades, conta-se que São Francisco, pouco antes de morrer, apareceu em espírito para assistir a uma das discussões teológicas pro-movidas por Antônio. A aparição seria um sinal de aprovação pelo fundador da Ordem dos ensinamentos ministrados, bem como um sinal de sua deferência para com o confrade (Gamboso, s/d: 6; Silveira, 1995: 146).

Durante o período de trabalho pastoral em Pádua, os milagres de Antônio enfatizariam sua preocupação com a restauração da ordem, da normalidade e da justiça e com a defesa dos pobres. Assim, relata-se que ele foi capaz de ressuscitar uma criança que morrera enquanto a mãe assistia a seu sermão (Krus & Caldeira, 1995: 49, Piccolo, 1995: 175); ou de curar uma mulher ferida de morte pelo marido (Gamboso, s/d: 10); ou ainda de fazer um recém-nascido falar para provar que sua mãe não fora culpada do crime de que a acusavam (id., ib.). Foi capaz de tornar branco o papel em que um jovem penitente escrevera a lista de seus pecados (id.: 9, Piccolo, 1995: 173) e de colar o pé que outro jovem cortara propositalmente, arrependido de ter chutado a mãe (id., ib.).

Por outro lado, quanto à proteção aos pobres, há o “milagre dos pães”: certa vez, Antônio distribuiu aos famintos todo o pão do convento em que vivia. O frade padeiro, descobrindo a despensa vazia, veio avisá-lo atônito que o alimento fora roubado. Ele mandou que verificasse novamente, e – surpresa – os cestos encontravam-se transbordando de pães (Beckhäuser, 1995: 91).17 Antônio fazia também em seus sermões denúncias ao egoísmo dos ricos e poderosos (Krus e Caldeira, 1995: 52). Na linha da crítica social, conta-se o “milagre do coração do usurário”: chamado a pregar durante o enterro de um avarento, Antônio mostrou que o coração dele não estava dentro do corpo, e sim no interior do cofre onde ele guardava o seu dinheiro (id., ib.; Gamboso, s/d: 11).

Um outro milagre de Santo Antônio demonstraria sua capacidade de bilocar--se, isto é, de estar em dois lugares ao mesmo tempo. Encontrei duas referências a isso: a primeira, relacionada à defesa de seu próprio pai, acusado injustamente de assassinato. O santo saiu – espiritualmente – de sua igreja em Pádua e foi até o tribunal em Lisboa, para com sua “presença” fazer o cadáver do morto apontar com sinais de cabeça e de mão o verdadeiro culpado (Câmara Cascudo, 1999: 88, Lira, 1951: 84). E a segunda referência diz respeito a outra ida espiritual ao coro dos frades, para dar uma lição de liturgia, ao mesmo tempo em que pregava em outra cidade (Silveira, 1995: 144).

Um milagre aponta outra capacidade do santo, a de recuperar coisas perdidas:

tendo extraviado seu saltério, Antônio rezou ardentemente e suas orações provoca-ram ao noviço que o havia furtado visões com o demônio. Este avisou ao rapaz que ele seria punido caso não devolvesse o que havia roubado ao proprietário legítimo e o jovem finalmente restituiu ao santo o que pegara (Piccolo, 1995: 171).

Perto de sua morte, já retirado em Campo São Pedro, Antônio teria provocado a aparição miraculosa do Menino Jesus. A narrativa diz que o frade meditava so-bre as sagradas escrituras em seu quarto, quando uma luminosidade esplendorosa surgiu, atraindo a atenção do conde Tiso, que o tinha ido visitar. Entrando na cela, o conde viu o menino Jesus nos braços de Antônio, lhe dizendo: “Porque tu te fizeste pequeno e humilde, eu me apresento a ti menor do que tu, pois desta forma te tornas grande” (Gamboso, 1995: 13; Beckhäuser, 1995: 47; Krus & Caldeira, 1995: 61).18 E em seu leito de morte, Antônio teria recebido em uma visão a visita de Nossa Senhora, personagem cuja importância e santidade ele defendera em suas pregações e a quem destinou vários de seus sermões (Beckhäuser, 1995: 73).

Mesmo seu sepultamento foi uma ocasião de ocorrência de milagres. Como vimos, sua morte em 13 de junho, no convento de Arcelas, provocou uma disputa entre as clarissas e os habitantes de Pádua por seu corpo. Apenas no dia 17 do mesmo mês foi selado o acordo para que o santo fosse trazido a Pádua. E neste dia – uma terça-feira – o santo começou a fazer inúmeros milagres, sinalizando que era realmente em Pádua que queria ficar. Seria por isso que as terças-feiras passaram a ser conhecidas como “o seu dia da semana” (Damante, 1978: 13).

Sepultado na Igreja do convento de Santa Maria, Antônio aí permaneceu até 1263, quando seus restos mortais foram transferidos para uma nova sepultura, dessa vez definitiva, no interior de sua basílica recém-acabada. Durante o translado, no-vamente o poder do santo se fez notar, produzindo inúmeros milagres, e de forma particular manifestando-se em suas relíquias (Geary, 1990). Quando abriram o sarcófago para reconhecimento de seu corpo, sua língua foi encontrada incorrupta, o que foi associado a seu dom de sermonista e contribuiu para aumentar sua fama (Gamboso, s/d: 14).

Vê-se que nas narrativas dos milagres apresenta-se e/ou reafirma-se uma série de atributos de Santo Antônio. Sua capacidade de defender a doutrina católica, de encontrar argumentos – maravilhosos ou teológicos – para estimular a conversão. Sua preocupação com a pobreza e a injustiça, sua interferência nas relações do cotidiano para que elas se dessem de uma forma mais justa. O dom da ubiqüidade, que assinala a possibilidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo, e assim poder desempenhar várias atividades ou atender a diferentes demandas. Por outro lado, as aparições do Menino Jesus e da Virgem Maria demonstram seu acesso privilegiado ao reino dos Céus e a figuras que nele se destacam. Assim, conhecer alguns dos milagres relacionados à tradição de Santo Antônio permite identificar algumas de suas características e compreender elementos que foram vistos nas

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imagens do convento, tais como as referências ao pão dos pobres, ou a presença do Menino Jesus em seu colo e a associação à Virgem Maria.

4 – Características do santo no Brasil

O repertório mais geral de representações sobre a vida de Santo Antônio e seus milagres, apresentado até agora, mesmo longe de dar conta da tradição sobre o santo, é capaz de oferecer uma primeira aproximação à sua figura e à sua simbologia. No entanto, como o objetivo deste capítulo é compor um quadro de referências sobre o santo que permita a inteligibilidade das práticas do convento, seria interessante focalizar as características assumidas por Santo Antônio no contexto brasileiro, destacando aquelas que a literatura reconhece como sendo importantes. Ou seja, trata-se de descrever as representações em torno do santo que se consolidaram a partir de seus usos no Brasil, isto é, da forma pela qual ele foi aqui apropriado e que viriam somar-se ou articular-se ao repertório já levantado.

Neste sentido, embora o foco do capitulo esteja nas representações sobre a figura do santo, farei alguns comentários sobre determinadas práticas que os de-votos desenvolvem em sua relação com ele, pois entre esses dois termos – práticas e representações – parece haver uma espécie de “reforço mútuo”. Assim, é por perceberem o santo de determinada maneira que as pessoas realizam certas práti-cas em relação a ele, e ao realizarem essas práticas acabam por reproduzir certas representações em torno de sua figura.

A devoção a Santo Antônio foi introduzida no Brasil ainda no período colo-nial, por intermédio de sacerdotes e colonos portugueses. Em Portugal, apesar da devoção ao santo estar consolidada desde o século XV, ela atingiu seu apogeu entre os séculos XVII e XVIII, quando Santo Antônio esteve explicitamente associado ao Estado Nacional Português (Krus & Caldeira, 1995; Câmara Cascudo, 1999; Lira, 1956; Pio, 1987). Embora a padroeira oficial do país fosse Nossa Senhora da Conceição (Fernandes, 1988: 89), Santo Antônio passou a ser invocado na prote-ção do reino, principalmente no processo de autonomização diante da Espanha, no período da União Ibérica, tanto pela sua capacidade de “achar coisas perdidas” – no caso, a liberdade portuguesa – como por tratar-se de “um português” (Krus & Caldeira, 1995: 69).

Assim, o culto a Santo Antônio em Portugal assumiu contornos nacionalistas e foi propagado nas regiões da América, Ásia e África sob o controle desse país. Portanto, sua instauração no Brasil deu-se no bojo de um processo de colonização que tinha a religião oficial do Estado como um de seus pilares, no qual era “natu-ral” que devoções da Metrópole fossem transplantadas para as colônias, e nelas estimuladas.

No Brasil, o culto a Santo Antônio assumiu uma importância considerável,

tornando-se bastante difundido. O santo seria hoje em dia uma das devoções mais populares do país (Câmara Cascudo, 1999: 87; Monteiro, 1983: 185, Bartholo: 1981), sendo o padroeiro de 515 paróquias e tratado mais comumente apenas por “Santo Antônio”, isto é, sem as referências “de Pádua” ou “de Lisboa”.19

No contexto brasileiro, quatro são as representações do santo que aparecem com maior destaque: ele aparece como “soldado”, como “alegre, bonachão e fes-teiro”, como “casamenteiro” e como capaz de achar coisas perdidas. Algumas dimensões dessas representações encontram-se em continuidade com temas existen-tes em Portugal, outras foram geradas no próprio Brasil, embora outras influências, como a espanhola ou italiana, pareçam ter interferido no “repertório” brasileiro – tema que um estudo comparativo sobre o culto a Santo Antônio poderia aprofundar.

A imagem do santo como um soldado parece estar intimamente relacionada e mesmo ser específica do contexto da colonização portuguesa. Em Portugal, a função atribuída a Santo Antônio de proteger o Estado Nacional acabou por levá-lo às Forças Armadas. Inicialmente como uma metáfora, onde o santo era invocado como o alferes-mor do exército português, sua participação passou a ser mais con-creta, com sua imagem acompanhando diversos regimentos ao campo de batalha, portando insígnias militares e espada. Sua eficácia nos momentos de luta armada o fez receber, como ex-votos, patentes militares e cargos públicos, inclusive com o soldo correspondente, que revertia para as instituições religiosas a ele associadas (Frade, 1985).20

Assim, Santo Antônio deu no Brasil continuidade a suas funções de “soldado”, atuando na defesa de Pernambuco, da Colônia do Sacramento, Bahia e Rio de Ja-neiro, diante de “invasores estrangeiros”, isto é, diante de ataques de outros países europeus aos domínios de Portugal. E também aqui, por sua eficácia, prosseguiu em sua carreira militar, recebendo soldo, patente e condecorações, sendo considerado o “patrono celestial do Exército brasileiro” (Pio, 1987). É esse justamente o caso da imagem de “Santo Antônio do Relento”, existente no convento do Largo da Carioca, e que foi mencionada no capítulo 2: no episódio das invasões francesas de 1710, o governador do Rio de Janeiro invocou o santo para proteger a cidade contra os inimigos, e depois da vitória portuguesa, sua imagem foi colocada no muro do convento às vistas do povo, tendo sobre ela uma lâmpada permanentemente acesa como forma de ex-voto (Lira, 1956: 223). As características belicistas atribuídas a Santo Antônio talvez estejam relacionadas também a seu sincretismo com a figura de Ogum, o orixá guerreiro, das lutas e embates, sincretismo que a literatura aponta ocorrer nos terreiros da Bahia (Lira, 1951: 84; Ribeiro, 1970: 214; Amado, 1977).

O santo, entretanto, assume uma outra faceta, bem diferente da figura de soldado, que é aquela de “alegre”, “bonachão” e “festeiro”, com uma série de refe-rências jocosas à sua atuação.21 É talvez dessa faceta menos belicosa, mais lúdica, que venha sua associação a Exu nos cultos afro-brasileiros do Rio de Janeiro e

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Pernambucco. Amadeu Amaral (1948, apud Jangada Brasil, 2001) comenta essas qualidades identificadas em Santo Antônio:22

Santo Antônio (na mente popular) é essencialmente um bom homem do povo, singelo, serviçal e brincalhão (...).Sem dúvida que a tendência universal dos povos lhes dá sempre para confor-marem os seus santos queridos à medida pouco variável do seu modesto ideal; mas, se todos os santos populares são em regra bonachões e complacentes, nenhum deles é assim profunda e familiarmente amável como Antônio e ne-nhum se apresenta assim, sempre igual, através dos séculos e das distâncias, aos olhos de tantos povos diversos. (...)A sua festa anual se faz entre fogos e barulhos, danças e risos.

Atribuindo ao santo um caráter “bonacheirão e familiar”, os devotos estabele-ceriam com ele relações marcadas por “intimidade e ternura”, que comportariam a jocosidade. Essa dimensão jocosa apareceria, por exemplo, nas “trovas” ende-reçadas a Santo Antônio, em cânticos ou recitativos, como os transcritos a seguir:

Meu querido Santo AntônioFeito de nó de pinhoCom vós arranjo o que queroPorque eu peço com jeitinho (Amaral, 1948, apud Jangada Brasil, 2001)

Minha avó tem lá em casaUm Santo Antônio velhinhoEm os moços não me querendoDou pancadas no santinho

Me peguei com Santo AntônioPra casá com uma criôlaAs almas ganha uma saiaSanto Antônio uma ceroulaFui ao mato cortar lenhaSanto Antônio me chamouQuando o santo chama a genteQue fará os pecadô (Lira, 1951: 84-87)

Ela estaria presente, também, em uma das formas características de conseguir alguma coisa de Santo Antônio, que é a de realizar “maldades” com sua imagem. “Castigos” tais como roubar seu resplendor; bater-lhe; tirar-lhe o menino Jesus dos

braços; colocá-lo na panela de feijão fervendo; jogá-lo ao fundo do poço, de cabeça para baixo, atado a uma corda, que devem durar até que o pedido seja atendido (Lira, 1956: 225; Ribeiro, 1970: 204 e segs.).

A concepção do santo como alegre e festeiro faria ainda de sua festa uma oca-sião animada, comportando danças, músicas, fogos, fogueiras, bebidas, comidas, mastros votivos, jogos.

O santo possui também a fama de casamenteiro, o que faria os pedidos de casa-mento um dos conteúdos principais das promessas a ele. Ainda por essa reputação, a véspera de sua festa teria se tornado no Brasil o dia dos namorados, tornando-se uma ocasião propícia a uma série de práticas divinatórias sobre o futuro afetivo. Aproveitando “a noite” do santo, “sortes” podem ser lançadas: uma agulha posta a flutuar em um copo d’água, ao afundar, indicará que o/a consulente não casará; os nomes de quem se gosta devem ser escritos em papel, dobrados e postos durante a noite em uma bacia, e o papel que estiver aberto no dia seguinte trará o nome do futuro cônjuge; duas agulhas devem ser postas em um prato, e ao se encontrarem, indicarão casamento, caso contrário, não; uma vela acesa que for colocada em um prato branco com água filtrada à meia-noite anunciará, através dos pingos da cera, o nome do futuro noivo ou noiva etc. (Frade, 1985; Lira, 1956; Ribeiro, 1970). A literatura assinala que essas práticas “mágicas” viriam de reminiscências pagãs, já que no processo de sincretismo que deu origem às festividades católicas, as festas de Santo Antônio e dos demais santos de junho (São João, São Pedro) estariam associadas aos ritos de fertilidade do solstício de verão (solstício de inverno, no caso do hemisfério sul).

Quanto à sua capacidade de achar coisas perdidas, ela faria com que Santo Antônio fosse invocado constantemente no dia-a-dia de seus devotos, havendo mesmo uma oração específica para isso, o “Responso”, baseado em um texto latino do oficio divino da festa antoniana, do qual existiriam inúmeras variantes, tanto em língua portuguesa como em língua latina.23

O santo, portanto, não se limitaria a ser uma presença distante em templos e altares. Ele participaria da vida cotidiana de seus devotos, mantendo uma relação de proximidade e multiplicando-se em estátuas e nichos nas paredes das casas e altares domésticos, sendo ainda pintado, esculpido, ou mesmo representado em utensílios (Lira, 1956: 222).

5 – Variações na figura do santo

Alguns autores ressaltam, entretanto, que as representações das figuras de Santo Antônio, surgidas a partir de seus usos concretos, guardam pouca semelhança com os eventos de destaque em sua vida, ou com a narrativa de seus milagres mais conhecidos. Amaral (1948 apud Jangada Brasil, 2001), por exemplo, registra uma

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metamorfose em Santo Antônio:

Antônio de Pádua converteu-se numa espécie de “topa a tudo”, sempre muito pronto a servir aos seus fiéis, sempre solicito à menor invocação, sempre infinitamente tolerante. Deparador de coisas extraviadas, presta-se a intervir em mínimos incidentes da vida, que nada têm que ver com a saúde dos corpos nem com a salvação das almas. Presta-se até (...) a deparar escravos fugidos.Coopera em mandingas de candomblé, em tramóias escatológicas de amor. Torna-se belicoso, ele que era o mais inofensivo dos mortais, e – divino sar-gentão – leva exércitos ao saque e à matança, defende fortalezas e cidades. Castíssimo protetor das donzelas, passa logo a ser, mais restritamente, protetor das donzelas casadouras, e não já um protetor cândido e severo, mas uma espécie de padrinho muito condescendente e algo frascário. Cria mesmo a fama de gostar das moças como qualquer mortal: quebra-lhes os púcaros nas fontes, para as assustar, e misteriosamente os recompõe; chama-as maliciosamente: “Fui ao mato buscar lenha, / Santo Antônio me chamou”.

As mudanças na percepção do santo não teriam ocorrido apenas no contexto brasileiro. Krus & Caldeira (1995: 87) falarão de uma “transfiguração” do santo em Portugal, que remontaria ao século XV:

À imagem austera do frade franciscano, pregador inspirado, “Arca do Testa-mento”, “Martelo dos Hereges”, é contraposta a imagem, mais humanizada, de um frade bonacheirão, familiar e malicioso, tanto capaz de um milagre como de uma pirraça.

E Delooz (1985: 195) cita justamente o caso de Santo Antônio, para exempli-ficar as possibilidades de transformação das representações em torno de um santo no tempo e no espaço:

Anthony of Padua is a historical figure about whom one has a fair amount of definite information (…). At different times, he has been perceived according to models far removed from reality. For example, the popular preacher became in collective representations the saint carrying the Child Jesus in his arms, at a time precisely, from the Latte Middle Ages (and this long after his dead), when family feeling and concern for children were becoming increasingly important in Europe. St. Anthony’s iconography, moreover shows him playing a range of very different holes: for Sebastian del Piombo, at the Carrara Academy in Bergamo, he is a sage; for Tiepolo in Venice, he is a healer, for Van Dyck, at the Brera in Milan, he is caressed by the Child Jesus on his mother’s knees; while in the Franciscan museum at Assisi, he is wearing a Spanish admiral’s insignia and driving the Moors from Oran (id., ib.).

Porém, é possível perceber, tanto confrontando a literatura, como a partir da observação de campo, que o que está em questão não é propriamente uma con-versão ou uma transfiguração do santo, ao menos se esta for pensada como um processo irreversível. Os atributos diferentes conferidos a Santo Antônio não são necessariamente excludentes, e o surgimento de novas formas de enquadramento não implicam necessariamente a desaparição de formas antigas. Ou seja, não se trata de um sermonista que passou a ser bonachão, ou de um protetor dos pobres que virou soldado, pois o santo permanece passível de ser tratado como sermonista e bonachão, protetor dos pobres e soldado, mantendo ainda outras formas de ser representado.

A tradição existente em torno da figura de Santo Antônio, que combina sua vida, sua reputação de santidade e os poderes que lhe são reconhecidos, entre outros elementos, permite que o santo possa ser concebido de várias maneiras, de acordo com o contexto social específico em que ele é acionado ou cultuado, e com os interesses que entram em jogo nesse contexto. Delooz (1985: 195) lembra que se a santidade é uma identidade atribuída a uma pessoa, o santo é remodelado a partir das representações sociais feitas a seu respeito pelos grupos que o consi-deram enquanto tal.

À medida que essas maneiras diversas de recortar um santo, de percebê-lo e qualificá-lo socialmente, de representá-lo, se consolidam e adquirem repercussão, isto é, à medida que são capazes de conformar ou influir em comportamentos e crenças dos devotos, elas vão sendo incorporadas à tradição. Portanto, é como se em torno de um santo se formasse um repertório de atributos ou um fundo de representações, passível de ser combinado de diferentes formas. Resta saber que elementos do repertório aqui apresentado, ou que outros elementos para além des-se repertório, surgem no contexto específico do convento de Santo Antônio para qualificar este santo, tema que abordarei no próximo capítulo.

Notas1 Explica O’Neill o uso desses elementos, exemplificando justamente com Santo Antônio: “In the absence of physical description, attributes sometimes serve to identify him [o santo]; thus some popular saints (e.g. St. Anthony) have come to be distinguished by as many as seven or eight attributes” (id. ib.).2 Belting (1998: 515) ressalta que mesmo na Idade Média a iconografia só se tornava compreensí-vel a partir de alguns textos escritos: na verdade, ela representa “pequenas cenas”, condensações das vidas dos santos, cujo conteúdo é preciso conhecer e memorizar para poder decifrar a imagem. Portanto, a iconografia seria complementada ou explicada pela leitura da Vita do santo durante a liturgia, existindo uma relação indissociável entre a narrativa e a imagem.3 Para uma idéia da amplitude que podem atingir os estudos antonianos, cito alguns exemplos. Do ponto de vista da análise da obra de Antônio, consultar os dois volumes de Caiero (1995),

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ou os trabalhos de Pacheco (1986, 1995), especialistas em filosofia medieval que se dedicam à análise de seus sermões. Há também uma revista acadêmica, Il Santo – Rivista Francescana di Storia, Dottrina e Arte, editada desde 1960 pelo Centri Studi Antoniani, na Basílica do Santo, em Pádua, sob a inspiração de Santo Antônio. Além disso, existem duas revistas de cunho pastoral, voltadas às camadas médias, editadas na Itália e publicada em diversas línguas, com tiragem de milhares de exemplares, que além de matérias sobre a vida cristã em geral, sempre publicam artigos sobre a vida e a interpretação da obra de Antônio: “O mensageiro de Santo Antônio” e “O santo dos milagres”. 4 Segundo Attwater (1983: 25), chama-se hagiografia ao campo de conhecimento que lida com a obra e o estudo da vida dos santos, porém esse termo às vezes pode adquirir uma conotação negativa, por remeter a obras com ausência de crítica histórica.5 A hagiografia medieval ocupava-se mais dos aspectos religiosos da vida de um santo, em glo-rificar seus feitos e identificar seus sinais de santidade, através do reforço de sua austeridade, de seus tormentos e da listagem de seus milagres. Os textos então produzidos eram marcados por erros, omissões, interpolações e retoques fictícios, muitas vezes combinando história e lenda, ou adaptando à vida de um santo os relatos já existentes sobre outros santos. É apenas a partir do século XVII, com mudanças nos critérios de verdade, e com o maior formalismo do processo de canonização, que as biografias de santos passaram a se preocupar com o rigor factual. Para as canonizações a partir dessa época, a pesquisa da vida dos candidatos à santidade passa a ser minuciosa. Para os santos anteriores a esse período, um grupo originado nos jesuítas – os bolandistas – foi criado para registrar as biografias existentes, preocupando-se em criticar a documentação, isto é, tentando separar lenda e realidade. Ver referências a esse processo em Jolles (1976) e Attwater (1983). Quanto a exemplos do trabalho de crítica bolandista, ver De-lehaye (1927, 1934), ele mesmo pertencente ao grupo. Para o trabalho dos bolandistas nos dias de hoje, consultar sua página na internet: www.kbr.be/~socboll/. Quanto a uma revalorização das hagiografias medievais como fonte documental para historiadores, enquanto depositárias de repertórios de representações, ver Schmitt (1983).6 A data consagrada é essa, mas tentativas de datação mais recentes, realizadas nos restos mortais do santo em 1995, durante as comemorações de seu oitavo centenário de nascimento, consideram mais provável que ele tenha nascido entre 1188 e 1190 (Krus & Caldeira, 1995: 7). 7 Há divergências: Rossi (1998: 7) e Câmara Cascudo (1999: 88) utilizam o “Bulhões”, Krus e Caldeira (1995:10) priorizam o “Martins”, mas também foi encontrado o nome de Fernando Bulhões y Taveira de Azevedo (Bovo, 2003, apud www.irmandadesantoantonio.hpg.com.br ). 8 Como assinala Frade (1987), uma preocupação recorrente nas biografias de santos é demonstrar sua predestinação.9 Sobre o sucesso da proposta franciscana diante de uma expectativa social de reforma da vida religiosa, ver Goodich (1985), Le Goff (2001) e Varreux (1980). Para as demais ordens, ver Goodich (1985) e Nova Enciclopédia Católica (1969).10 As biografias de cunho mais religioso assinalam novamente a intervenção divina, através da ação do Espírito Santo (Rossi, 1998; Gamboso, s/d; Piccolo, 1995), que iluminaria Antônio em seus sermões, embora outros justifiquem seu sucesso pela formação anterior recebida dos agostinianos em Portugal (Krus &Caldeira, 1995). 11 O doutor da Igreja é um teólogo ou teóloga de especial eminência, autoridade e santidade de vida, reconhecido formalmente como tal pela Igreja, que por seus escritos ensinou à Igreja, ou

à parte dela (Attwater, 1983: 25). Apesar de já na missa de sua canonização, no século XIII, o papa Gregório IX ter utilizado o rito apropriado aos doutores, o título oficial de doutor da Igreja só lhe foi atribuído recentemente, em 1946, pelo papa Pio XII (Silveira, 1995: 137-138). Os textos comprovadamente escritos por santo Antônio foram os Sermões Dominicais, os Sermões nas Festas dos Santos, os Sermões à Bem-Aventurada Virgem Maria. São-lhe ainda atribuídos os Sermões sobre os Salmos, as Concordâncias Morais dos Livros Sagrados, a Exposição Mística da Sagrada Escritura, os Sermões Quaresmais e do Tempo, embora a autoria desses últimos trabalhos seja duvidosa (Piccolo, 1995: 160).12 Para a compreensão dos interesses em jogo na canonização de um santo, é preciso considerar tanto o período em que ele viveu, como aquele em que sua santidade foi oficialmente declara-da, pois pode haver uma grande defasagem de tempo. Quanto a Antônio, isso se dá quase que simultaneamente, mas na análise de outros “casos”, é preciso muitas vezes analisar e pôr em relação dois momentos históricos diferentes. Ver os quadros contidos em Daix (2000), onde são descritas e comparadas as canonizações realizadas pelos diferentes papados.13 “Os franciscanos recusavam a riqueza e o poder detidos pelos conventos das grandes ordens monásticas urbanas, vendo-os como obstáculos a uma aproximação ao povo miúdo das cidades, os destinatários em última análise de sua pregação. Preferiam um estilo de vida mais simples e menos dispendioso, socorrendo-se da esmola pública diária como forma de angariar os fundos necessários à manutenção de suas comunidades, as quais definiam como grupos de frades, de irmão solidários com as carências dos pobres e marginais urbanos. Viam, portanto, no fausto e na ostentação exteriores dos grandes conventos citadinos preocupantes sinais de ambições mundanas, de apego a bens materiais e de traição em relação aos ideais monásticos de pobreza, humildade, serviço e penitência” (Krus &Caldeira, 1995: 19). Sobre o carisma e o poder de atração dos franciscanos, que foram gradualmente enquadrados e cooptados pela hierarquia religiosa, ver Goodich (1985) e Le Goff (2001).14 De maneira mais precisa, talvez seja importante destacar que, para além das condições materiais, nas primeiras décadas do franciscanismo havia no interior da ordem uma polêmica sobre a real necessidade do estudo, cujo risco seria de distanciar tanto intelectualmente como fisicamente os frades do povo, cuja vida pretendiam compartilhar. Ver Le Goff (2001).15 A opção pelas formas “realizou” e “vem realizando” e não pelos distanciados “teria realizado” e “estaria realizando” segue a sugestão de Claverie (1990), em seu estudo de aparições marianas. Longe de significar uma adesão incondicional ao milagre, marca a negativa de entrar na polêmica sobre sua existência de fato ou não, enfatizando mais uma vez sua existência inquestionável como representação socialmente eficaz. 16 Há outros milagres deste período. Um deles refere-se a uma tentativa de assassinato sofrida por Antônio, pois os hereges teriam envenenado sua comida, mas nada teria acontecido a ele, por ter abençoado o alimento antes de comer (Silveira, id. ib.). Outro diz respeito à sua prega-ção diante da multidão, quando Antônio avisou à platéia do sermão que o diabo viria derrubar o púlpito, mas que ninguém se feriria, o que realmente aconteceu. Em outra circunstância, o demônio tentou sufocar Antônio para que ele não pregasse, porém o Santo conseguiu livrar--se de sua perseguição invocando a Virgem Maria. Mais um episódio: chuvas, raios e trovões caíram durante sua pregação, mas nada atingiu o local específico onde Antônio pregava, que permaneceu seco (id., ib.).17 Galvão (1955) apresenta narrativas sobre o mesmo milagre, relacionado, entretanto, a São Benedito ou à Santa Isabel.

sAnto Antônio

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18 Bovo (s/d: 4) descreve esse milagre como tendo ocorrido na casa do próprio Tiso, e em sua versão seria a Virgem Maria quem entregaria Jesus a Antônio, sinal de deferência e confiança.19 Das 515 paróquias, o santo aparece como “Santo Antônio de Pádua” em 81 delas, como “Santo Antônio de Lisboa” em 13 e como “Santo Antônio” em 399. Nas demais paróquias, ou o santo aparece associado ao nome da localidade, como “Santo Antônio do Iratim”, ou “Santo Antônio dos Olhos D’Água”, ou aparece ligado a alguma outra expressão religiosa, como “Santo Antônio dos Anjos” ou “Santo Antônio das Almas”. 20 Câmara Cascudo (1999: 89) lembra episódios da “carreira militar” de Santo Antônio: em 1705, capitão da Fortaleza da Barra; em 1800, alferes na Mouraria, com soldo de 120$00/ ano. Em 1810, passaria a sargento-mor, e de 1814 a 1907, a tenente-coronel, com o soldo de 720$00/ano. 21 Embora os autores tratem essa representação do santo como folgazão como uma das heranças da colonização portuguesa, os mesmos autores oferecem elementos para relativizar essa inter-pretação, visto citarem episódios referentes à Espanha e a países de colonização espanhola, e à Itália, em que o santo também aparece em situações jocosas. 22 Vê-se na leitura de Amaral que enquanto a característica de soldado seria mais exclusiva de Portugal e de países com influências lusas, o caráter alegre e brincalhão do santo seria mais generalizável, pois há referências para a Itália e Espanha.23 Krus & Caldeira falam de “versões familiares” do responso, passadas oralmente entre gerações, e Câmara Cascudo (1999: 88) cita as quadrinhas recitadas em sua família há mais de cem anos: “Quem milagres quer achar / Contra os males e o demônio / Busque logo a Sant’Antônio / Que só há de encontrar / Aplaca a fúria do mar, / Tira os presos da prisão, / O doente torna são / O perdido faz achar. / E sem respeitar os anos / Socorre a qualquer idade; / Abonem essa verdade / Os cidadãos paduanos”.

cApítulo 7

Santo Antônio no Convento do Rio de Janeiro

Santo Antônio, rogai por nós! Intercedei a Deus por nós! Pregador do evangelho – Intercedei! Pelo povo abandonado! – Intercedei! Para sermos mensageiros – Intercedei! Da justiça e da esperança – Intercedei! Santo Antônio, rogai por nós! Intercedei a Deus por nós! Mestre sábio da verdade – Intercedei! Pela igreja peregrina – Intercedei! Pelos jovens namorados – Intercedei! Pelos lares em perigo – Intercedei! Santo Antônio, rogai por nós! Intercedei a Deus por nós! Vós, irmão dos pequeninos – Intercedei! Pelos pobres e doentes – Intercedei!Pelos tristes e abatidos – Intercedei! Pelos povos oprimidos – Intercedei!Santo Antônio, rogai por nós! Intercedei a Deus por nós! Para o mundo ser mais justo – Intercedei! Pela paz da humanidade – Intercedei! Para sermos mais fraternos – Intercedei! Para acharmos o perdido – Intercedei!Santo Antônio, rogai por nós! Intercedei a Deus por nós! Santo Antônio, rogai por nós! Intercedei a Deus por nós!

(Ladainha da Trezena de Santo Antônio, usada no Convento).

Quem é Santo Antônio para os freqüentadores do convento? Que idéias as pessoas que comparecem ao local têm a seu respeito? Foi durante o período preparatório da festa de 2001, ouvindo um canto entoado nos treze dias seguidos de orações e sermões que compõem a Trezena do santo, que percebi que seus múltiplos atributos apareciam na celebração, como, por exemplo, na letra da ladainha acima

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citada, em forma de súplica. A ladainha, que demandava a intercessão do santo, era entoada por toda a igreja, principalmente o refrão. Cada qual empenhado em seus próprios pedidos, cada qual com uma visão diferente do santo, mas todos conseguindo integrar minimamente essa diversidade através do ato de cantar para ele. Estabelecia-se assim, na celebração da Trezena, um jogo entre as especifici-dades das necessidades individuais e as amplas possibilidades de intervenção do santo, o que a letra da música parecia resumir, contendo uma “lista” de possíveis demandas a serem contempladas. Essa mediação ritual das diferentes necessidades e possibilidades foi percebida também em outros momentos do culto ao santo, nos quais um horizonte para a sua intervenção é aberto aos devotos, para que nele sejam projetados os seus interesses específicos (Da Matta, 1986: 110).

Santo Antônio é então uma figura passível de ser recortada de diversas maneiras por aqueles que o acionam. Essa característica não seria exclusivamente sua, mas dos santos em geral, enquanto personagens socialmente construídos e apropriados. Como podemos depreender da leitura de autores como Vauchez (1981, 1987, 1999); Goodich (1985); Delooz (1985); Boesch-Gajano (1999); Schmitt (1983, 1984) é a plasticidade da figura do santo, isto é, sua capacidade de passar por transfor-mações tanto no tempo, como em formas locais de apropriação, que garante sua permanência como um mediador significativo em contextos históricos distintos. A capacidade de suportar projeções e absorver significados, de transformar-se e adequar-se a demandas variadas, enfim, a plasticidade é justamente uma das ca-racterísticas dos santos, mais ainda dos santos poderosos, isto é, daqueles que, por seu poder, foram e são ainda acionados nas mais diversas ocasiões.

Mas que atributos são conferidos a Santo Antônio no contexto específico do convento do Largo da Carioca? Representações em circulação no convento sobre a figura do santo foram encontradas em homilias, orações, entrevistas, canções, novenas, “santinhos”, conversas informais, imagens etc. Porém, um determinado instrumento de pesquisa, o questionário aplicado na festa de Santo Antônio, con-seguiu concentrar uma série de depoimentos sobre a visão do santo na perspectiva dos freqüentadores, os quais serão utilizados para compor este capítulo.

O questionário, aplicado a 250 pessoas, contemplava uma pergunta específica sobre o tema (“quem é Santo Antônio para você?”). Mas como se tratava de uma pergunta aberta, que abria margens a uma interpretação pessoal, as respostas de-monstram que ela foi entendida de formas diferentes. Apesar da provocação contida na pergunta chamar a atenção para a figura do santo, houve pessoas que a utiliza-ram para falar de outros santos nos quais também tinham fé, ou de outras religiões em que acreditavam. Constatei ainda em algumas respostas uma certa crítica ao culto dos santos, em alguns casos o entrevistado chegando mesmo a condená-lo como prática idólatra, expressando aquilo que chamei de uma “protestantização do discurso católico”.

Mesmo aqueles que concentraram as respostas em Santo Antônio parecem ter interpretado a pergunta em ao menos quatro sentidos diferentes. A primeira interpretação julgou que o objetivo era identificar aquilo que Santo Antônio é capaz de fazer. Nas respostas que assumiram essa perspectiva, as pessoas falaram dos atibutos do santo, algumas delas preocupando-se em mostrá-los em operação, através de exemplos concretos de intervenções em suas vidas, dando depoimentos sobre casos acontecidos consigo mesmos, ou com pessoas que conheciam.

A segunda forma de interpretar a pergunta foi de que ela seria uma espécie de “teste” para o entrevistado, de que ele realmente sabia quem era Santo Antônio. E neste caso, as respostas referiram-se a episódios da vida do santo, a dados de sua biografia, numa certa demonstração de conhecimentos. Alguns eventos do passado do santo foram mencionados como justificativas para determinados atributos seus, ou para especificidades de seu culto.

Uma terceira interpretação era a de que o interesse estava na relação do entre-vistado com o santo. Certas pessoas, ao responderem sobre Santo Antônio, falaram dele a partir da relação estabelecida com ele, algumas vezes mencionando como e por que ela se iniciou. As respostas que assumiram esse prisma articulavam-se em dois eixos. Um, ressaltava os elementos e sentimentos presentes na relação do entrevistado com o santo, tais como a fé, a confiança, a amizade e a constância com que o devoto se aplica em preservar a relação. O segundo eixo dizia respeito à descrição das práticas de culto desenvolvidas pelo devoto, tais como o pedido, as simpatias, a trezena etc. Essas práticas serviam tanto para dar início a uma relação, como para alimentá-la, isto é, mantê-la operando.

Uma última forma de entendimento da pergunta é a de que ela queria saber o que seria um santo. As respostas neste sentido apresentaram Santo Antônio a partir de elementos mais gerais, isto é, que não seriam exclusivamente seus, mas que estariam relacionados à própria idéia de santidade, e ao papel que os santos podem desempenhar na vida humana. Ou seja, eram respostas que falavam de Santo Antônio a partir de pontos em comum entre ele e os demais santos.

Pela natureza diferente das informações contidas nas respostas, tive que enquadrá-las em grupos distintos, tratando nesse capítulo exclusivamente daquelas que se referiam mais diretamente aos atributos de Santo Antônio e aos elementos de sua vida acionados pelos entrevistados para qualificá-lo. Já as respostas que se referiam a questões mais gerais, que escapavam à figura do santo, foram par-cialmente incorporadas no capítulo 4, quando tratei do público do convento e das diferentes razões para o comparecimento ao local. Quanto às respostas sobre a relação dos entrevistados com o santo, elas serão abordadas nos capítulos 9 e 10.

Porém, cabe ainda ressaltar que uma única resposta poderia conter duas ou mais formas de entendimento da pergunta, isso é, que ela poderia ser composta a partir de perspectivas distintas, através das quais o entrevistado apresentava a figura do

sAnto Antônio no convento do rio de JAneiro

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santo de ângulos diferentes. Portanto, como poderá ser visto ao longo deste capítulo, muitas vezes a citação de uma resposta para exemplificar uma determinada linha de interpretação acaba contribuindo para demonstrar também as outras.

1 – Percepções sobre o santo

Ao analisar as respostas ao questionário que apresentaram referências diretas a Santo Antônio, é possível perceber que nelas o santo aparece qualificado pelos seguintes atributos:

Quadro 2 – Atributos de Santo Antônio no Convento

Santo Antônio é: casamenteiro – milagroso – poderoso – protetor dos pobres – forte, uma força – protetor das crianças – Ogum – guerreiro – batalhador – grande – santo das coisas perdidas – santo das causas perdidas – santo das coisas impossíveis – santo das coisas materiais – santo das horas difíceis.

Santo Antônio foi: franciscano – português – de Pádua – de Lisboa – casto – frade, padre – rico – pregador, sermonista.

Ou seja, são respostas que apresentam as coisas que o santo pode realizar, ou determinados elementos de seu passado. Em ambos os casos, tratam-se de atributos que permitem distinguir Santo Antônio no panteão de santos católicos e definir uma certa área em que se dá sua atuação.

Esses atributos, no entanto, não apareceram com o mesmo peso, isto é, nem o mesmo número de vezes, nem com o mesmo destaque. Os mais recorrentes foram três: Santo Antônio é principalmente casamenteiro, milagroso e protetor dos pobres.

A gente pede e é ajudado. [Ele] cuida dos aflitos e dizem que é casamentei-ro. Muita conhecida minha, pediu casamento para ele e ele realizou. Minha sobrinha conseguiu o casamento dela (r159: mulher, 40 anos, Niterói).

Santo milagroso, ajuda muito seus devotos. Hoje, eu pedi a ele para ajudar a minha família, meus irmãos, saúde (r243: mulher, 27 anos, Niterói).

Ele foi filho de comerciante rico. Entrou na vida religiosa por devoção, teve resistência às tentações da carne, pessoa caridosa, protetor dos pobres. A minha fé atribuo a Santo Antônio. Peço proteção quando vou para o trabalho e agradeço quando volto, ele é meu amigo, converso com ele (r209: mulher,

46 anos, Copacabana).

Enquanto um protetor, o santo também apareceu como “protetor de crianças”, o que justificaria sua imagem ser representada com um menino nos braços:

Ele nasceu em Lisboa. Dizem que ele nasceu na Síria, mas ele é Santo Antô-nio de Lisboa. Ele é muito bom. Ajudava as crianças, dava comida. Aquele menino no colo dele, não é filho não, é a devoção dele com as crianças (...) (r186: mulher, 64 anos, São Gonçalo).

Santo Antônio aparece também como capaz de lidar com situações particu-larmente complicadas. Há várias respostas que sugerem que ele seja acionado em “momentos de desespero e aflição”, isto é, que parecem definir que a ocasião mais adequada para invocá-lo é uma situação grave.

É o intercessor que quer ajudar a gente nas nossas horas difíceis (r109: mu-lher, 20 anos, Glória).

É um santo casamenteiro que realiza todos os seus pedidos quando você tem fé, principalmente quando você está em desespero emocional e pessoal (r66: homem, 24 anos, contínuo, Campo Grande).

As expressões “santo das causas impossíveis”, ou “santo das coisas impossí-veis”, ou ainda “santo das causas perdidas” também vão no mesmo sentido:

É o santo das causas perdidas. Dizem que ele arranja namorada, santo casa-menteiro e eu acredito (r143: homem, 60 anos, Flamengo).

Ao contrário do que as pessoas dizem, que ele é um santo casamenteiro, ele é um santo das causas impossíveis (r115: mulher, 20 anos, Padre Miguel).

A capacidade de realizar o impossível, ou de agir nas horas difíceis, em casos--limite, parece estar ligada ao poder deste santo – é justamente em uma situação espinhosa, quando alguém realmente poderoso precisa ser invocado, que ele deve ser chamado.

Santo Antônio apareceu também como “santo das coisas perdidas”, o que é considerado pela literatura como uma de suas grandes especialidades. Mas quan-to ao Santo Antônio do convento, esse atributo seria secundário em relação aos demais – salvo quando a “coisa perdida” não é um relacionamento afetivo. Houve apenas duas referências sobre essa capacidade do santo, e em apenas uma delas a pessoa mencionou utilizar os serviços do santo explicitamente com essa finalidade:

É o santo casamenteiro. Sempre que perco alguma coisa, peço para Santo Antônio, acho rapidinho (r 240: mulher, 58 anos, Copacabana).

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Outra variante encontrada para definir Santo Antônio é “santo das coisas materiais”:

Além de ser um santo casamenteiro, é um santo muito ligado ao ser humano, pois elas [as pessoas] pedem coisas materiais relacionadas principalmente a questão do dinheiro, sexo e casamento (r71: mulher, 24 anos, jornalista, Botafogo).

Apesar de aparecer em uma única resposta, essa definição chamou minha aten-ção por apresentar o campo de atuação do santo próximo ao ser humano e a seus desejos, sendo capaz de atender a pedidos acerca de coisas “mundanas” – dinheiro, sexo, casamento, um santo especialista em mundanidade.

O santo soldado, patrono de exércitos, também enfatizado pela literatura, não existe no convento. A única vez em que Santo Antônio é tratado como “guerreiro” é em uma resposta que o identifica como Ogum:1

Santo Antônio é muito forte. Ele é Ogum (Santo Antônio de Pemba) e Exu também. O de Pádua é da igreja. Hoje, é um dia muito forte. Hoje é o dia de festa do povo da rua. Ogum é guerreiro, general, por isso também é ligado a São Jorge. Para Santo Antônio, se oferece alguidar com farofa e cachaça (se é ligado a Exu) ou cerveja (se é ligado a Ogum). Também pode oferecer um galo vermelho (r166: mulher, 74 anos, Engenho da Rainha).

Outra representação do santo que não é significativa no convento é a de um “santo festeiro e brincalhão”. A expressão “festeiro” apareceu apenas em uma res-posta, portanto não é uma forma destacada de qualificá-lo. A única referência foi:

“É santo casamenteiro. Eu conversei com ele quando eu pensei em me casar. É um santo festeiro. Na verdade, eu já cheguei a fazer um pedido, mas não fui atendido” (r31: homem, 59 anos, Copacabana – grifos meus)

Embora haja menções às festas do santo como algo importante – inclusive com depoimentos de entrevistados/as sobre formas de celebração vividas em sua infância, marcados por uma certa nostalgia –, Santo Antônio é tratado no convento com respeito e reverência, e não de forma jocosa, como “folgazão”.

2 – Atributos mais citados

As expressões utilizadas para conferir ao santo determinados atributos na ver-dade funcionam como condensadoras de uma série de idéias a seu respeito. Desse

conjunto, é possível analisar em maior detalhe as que foram mais recorrentes – santo casamenteiro, santo milagroso, protetor dos pobres –, pois sobre elas há um número significativo de depoimentos, o que possibilita acompanhar seus desdobramentos.

Santo Casamenteiro

A maior capacidade de Santo Antônio seria a de resolver problemas afetivos, que geralmente apareceu sintetizada pela expressão santo casamenteiro. Mas a idéia de um santo especialista em relacionamentos não apareceu apenas dessa forma. Ela surgiu também através de expressões como “protetor dos noivos”, “protetor dos casamentos”, “protetor” ou “padroeiro dos namorados”. Santo Antônio é um santo que “ajuda a arrumar casamento”, ou “ajuda no casamento”, ou “ajuda as pessoas a ficarem juntas”, ou ainda “que ajuda os casais e quem pede pelo amor”. Portanto, ele “intervém no amor”; “desencalha algumas pessoas em namoro, casa-mento”; “resolve problemas sentimentais e de relacionamentos”, e é com ele que “pessoas que querem se casar e se amar, se apegam”. Para alguns, sua habilidade de casamenteiro teria origem em atitudes que o santo tomou ainda durante sua vida, quando ele foi “um dos padres que lutou pelo sacramento do casamento” e “levantou o clero contra a lei que rico só casava com rico, pobre com pobre”. Ele “apoiava os casais”, “ajudava os que queriam casar”. Em resumo, Santo Antônio “é um santo popular que as pessoas ligam muito a motivos amorosos”.

Vê-se que as expressões, retiradas de respostas diferentes, apresentam varia-ções tanto em relação à ação do santo, como em relação aos beneficiários dessa ação. Assim, Santo Antônio “protege”, “ajuda”, “intervém”, “desencalha”, “re-solve problemas”, “luta”. E ele o faz “pelos noivos”, “pelos namorados”, “pelos casais”, “pelos encalhados”, “pelos que pedem pelo amor”, e “pelos que querem ficar juntos”:

[Santo Antônio] representa um padroeiro casamenteiro. é o santo dos amores, o santo da confraternização dos casais (r53: homem, 46 anos, Rocinha).

[Ele é] protetor dos pobres e também casamenteiro. Quando o casamento tá muito amarrado, é só fazer pedido para ele, que ele faz o casamento acon-tecer, dando paz ao casamento. Quem quiser arrumar namorado é só pedir e aguardar. Quando conseguir, tem que agradecer. Minha irmã sempre pede e já conseguiu. Tem um ano que eles estão juntos, mas tem que pedir com fé (r183: mulher, 26 anos, Campo Grande).

Além de ser casamenteiro o atributo mais citado do santo, 16 pessoas relataram episódios de relacionamentos conseguidos através dele – seja para elas mesmas, seja para algum parente. Entretanto, um certo viés de gênero parece se manifestar

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nesse caso: homens e mulheres declararam já haver pedido relacionamentos ao santo, mas apenas as mulheres afirmaram tê-los conseguido dessa forma. O único homem que falou sobre um casamento obtido através do santo, referia-se não ao seu próprio casamento, mas ao “da mãe com o pai” (e não ao do “pai com a mãe”). Ou seja: ou nenhum homem arrumou casamento com o santo, ou parece haver uma espécie de lógica operando, em que os homens podem pedir, mas não podem assumir que conseguiram o casamento dessa maneira:

Ele foi um abençoado por Deus porque gostava e ajudava muito os pobres. E ajudava também os que queriam casar. Sempre que pedi fui atendida. Me casei com 32 anos, na igreja Nossa Senhora de Lourdes, em Vila Isabel, na missa das 10 horas, quinta-feira. Tava linda, com um vestido de renda gripir, um terço na mão e uma rosa e ele tava de azul marinho, tava bonito (r150: mulher, 63 anos, Botafogo).

Note-se que, no depoimento acima citado, a entrevistada menciona ter conse-guido casar com 32 anos. Isso ressalva que o santo consegue não apenas promover casamentos, mas ainda casamentos de pessoas em idade relativamente tardia, ou de pessoas “que nem namoravam”, como contido em várias outras respostas, ca-samentos improváveis ou impossíveis. Portanto, talvez haja uma relação entre a capacidade casamenteira do santo e sua associação com causas e coisas perdidas e impossíveis.

Assim, santo casamenteiro parece ser a forma mais conhecida, e por isso a mais básica, de demonstrar conhecimentos sobre Santo Antônio, uma forma aparentemente estereotipada e superficial de classificá-lo, e seu uso isolado, sem estar acompanhado de outros qualificativos pode denotar uma certa “superficiali-dade” na relação com ele. As pessoas que definiram o santo exclusivamente como casamenteiro, pareceram fazê-lo ou por estarem tímidas em relação à situação da entrevista, ou por desconhecerem mais informações a respeito dele.

[Ele é] santo casamenteiro, é a única coisa que eu sei (r9: homem, 51 anos, Urca).

Não sou muito devota de Santo Antônio. Sei que ele ajuda os casais e quem pede pelo amor (r191: mulher, 25 anos, Ilha do Governador).

É o santo casamenteiro, não poderia sair nada mais do que isso (r111: Mulher, 33 anos, Tijuca).

Porém, é preciso ressaltar que a habilidade “casamenteira” do santo dificilmente apareceu sozinha: a maioria dos que a mencionaram reconheceram nele outros atributos, aos quais a qualidade de casamenteiro estaria associada.

É um santo casamenteiro e que faz muitos milagres (r104: mulher, 51 anos, Bonsucesso).

É o santo casamenteiro e aquele que ajuda as pessoas a alcançar alguma graça. Cada santo tem uma especialidade! (r56: mulher, Copacabana).

Por outro lado, nem todos os que se referiram à capacidade casamenteira do santo aderiram imediatamente a ela. Houve pessoas que fizeram ressalvas com relação a esse atributo, assinalando uma certa discordância. Alguns diziam não concordar com a definição, por achar que não é bem essa a função de Santo Antônio:

É uma boa alma. Acudiu os pobres. O povo acha que é de casamento, mas é o santo da família (r129: mulher, 62 anos, Jacarepaguá).

Ao contrário do que as pessoas dizem, que ele é um santo casamenteiro, ele é um santo das causas impossíveis (r115: mulher, 20 anos, Padre Miguel).

Há também os que não concordam com a classificação de Santo Antônio como casamenteiro, por achar que na verdade outro santo desempenha esse papel.

É um santo comum, é protetor dos pobres. Eu nunca pedi nada para ele. Eu sempre digo, você não pede pro Santo Antônio, pede para Nossa Senhora da Glória, ela é que é casamenteira (r169: mulher, 53 anos, Botafogo).

É casamenteiro, mas a mim ele nunca casou não. Na época dele, só casava quem tivesse dote. A moça pobre queria casar e não tinha dinheiro, aí, ele foi e pagou. Então, ficou conhecido como santo casamenteiro, mas no meu entender não é casamenteiro não. É São José, pois ele é que foi casado, o esposo de Nossa Senhora (r164: mulher, 63 anos, Cascadura).

Mas em alguns casos, mais do que uma discordância, o que está em questão é uma certa “dúvida” em relação à fama de casamenteiro, pelo fato de o entrevistado ainda não haver conseguido nada para si. Essas dúvidas podem incidir sobre a com-petência do santo, mas também podem atingir as capacidades do próprio devoto:

Santo milagroso. Dizem que ele é casamenteiro. Eu venho aqui há anos, mas nunca arrumei uma namorada. Acho que eu não mereço não. Uma vez eu pedi uma namorada, que me deixou onze filhos, mas foi embora. Eu pedi outra, mas não veio não. Acho que eu pequei (r154: homem, 70 anos, Vidigal).

Um padrão de resposta bastante recorrente foi o das pessoas que, apesar de falar do santo como um casamenteiro, fizeram questão de manter uma espécie de distanciamento da adesão a essa idéia. Essa posição geralmente era associada a

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expressões tais como “dizem que”, como a enfatizar que são “os outros”, e não o entrevistado, que julgam o santo como casamenteiro. E a partir desse distancia-mento inicial, a pessoa complementava a resposta, podendo concordar ou não com a afirmativa alheia.

Dizem que é um santo casamenteiro, mas eu ainda não paguei para crer (r121: mulher, 27 anos, Tijuca).

O povo que botou essa estória dele ser casamenteiro e eu não vou dizer que não acredito (r156: mulher, 29 anos, Belford Roxo).

Houve ainda pessoas que, apesar de conhecerem a fama do santo, discordam, por suas convicções religiosas, que um santo possa ser casamenteiro.

[Ele] ajudou muito a pregar a palavra de Deus no mundo dele. (...). O ca-samento é sagrado para toda a igreja, então não entendo porque só Santo Antônio seria casamenteiro (r172: homem, 35 anos, Tijuca).

Vê-se então que embora Santo Antônio seja reconhecido mais comumente por sua capacidade casamenteira, essa característica pode ser relativizada, e até mesmo posta em questão pelos entrevistados. Neste sentido, aqueles que acham que sua área de atuação é maior do que a dos casamentos, ou que acreditam que sua especialidade não é bem essa, costumam usar dois “mecanismos de relativização” da capacidade casamenteira do santo. O primeiro e mais comum é o de combinar o atributo de santo casamenteiro a outros, ampliando o seu potencial de atuação. O segundo, é o de citar esse atributo, mas dizer que a verdadeira especialidade do santo é outra.

A capacidade do santo de auxiliar em relacionamentos afetivos parece referir-se principalmente a conseguir casamento para os que demandarem. Porém, analisando a variedade de formas de tratamento dessa capacidade, é possível perceber que ela é muito mais complexa do que isso. Pois ela envolve tanto uma atuação nas etapas preliminares do casamento, como em sua continuidade. Quanto às preliminares, o santo pode atuar conseguindo “namoro” e “noivado” – daí a expressão “protetor dos noivos”, “padroeiro dos namorados” etc.

[Ele é] padroeiro dos namorados. Vim aqui hoje porque é dia dos namorados. Ano retrasado, na relíquia de Santo Antônio, veio os ossos de Santo Antônio, pedi um namorado e chegou. Foi muito bonito. Meu atual namorado, era amigo, eu pedi a Santo Antônio para ver se era ele que eu ia namorar, e agora a gente tá namorando (r136: mulher, 18 anos, Grajaú).

Além de “conseguir” esses relacionamentos, parece fazer parte das tarefas de um santo casamenteiro mantê-los, e portanto Santo Antônio não apenas propicia o início de relações, mas as protege, garantindo sua continuidade. E também, por extensão, o santo se torna protetor da família que se gerou do casamento.2

Ele é um exemplo de devoção, de amor a Deus, de fidelidade. Ele intercede com Jesus por nossos problemas. A paz na minha família atribuo a Santo Antônio, peço para ele manter o meu casamento (r199: mulher, 42 anos, Coelho Neto).

Sei da lenda que ele é casamenteiro. A minha sogra trazia o meu esposo à festa, que se chama Antônio em homenagem ao santo. Estamos casados há 21 anos. Acho que ele protege mesmo (r190: mulher, 47 anos, Méier).

Essa idéia de uma proteção do santo que contribui não apenas para obter algu-ma coisa, mas também para manter a coisa obtida, permite entender a presença de pessoas nas terças-feiras do convento, ou mesmo no dia da festa, sem estar vivendo momento de crises, ou sem ter nada objetivo para lhe pedir ou agradecer. Trata-se de uma proteção constante e difusa que se deseja manter.

Pode-se perceber ainda que para garantir a continuidade de uma relação, o santo tem às vezes que agir diretamente sobre ela:

Ele é um santo de fé, intercessor. A paz dentro da minha casa eu devo a Santo Antônio. Meu marido era bem levado, eu pedi a Santo Antônio e hoje meu marido é mais religioso do que eu. Graças à intercessão de Santo Antônio (r233: mulher, 66 anos, Tijuca).

Porém, um santo casamenteiro tem o papel não apenas de conseguir ou manter as relações afetivas, mas até de acabar com elas, caso elas sejam prejudiciais ao devoto envolvido:

(...) Eu pedi para Santo Antônio que se o rapaz que eu namorava não fosse me fazer feliz que ele me mostrasse. Alguns dias depois eu terminei o namoro (r235: mulher, 18 anos, Méier).

Por outro lado, há ainda que se considerar os riscos presentes em se pedir um relacionamento a um casamenteiro que é tão eficaz: Santo Antônio certamente vai arrumar logo alguém, mas há sempre o perigo que esse alguém não seja o par ideal.

(...) Eu tenho uma amiga que fez uma promessa para Santo Antônio para casar, ela casou, mas rapidinho o casamento acabou (r138: mulher, 76 anos, Magé).

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179178 A dinâmicA do sAgrAdo

Esse risco, entretanto, pode ser minorado aprendendo-se a pedir corretamente ao santo. Não basta pedir um marido ou uma mulher a Santo Antônio, é preciso saber pedir um parceiro qualificado de acordo com os padrões de relacionamento que se pretende alcançar. Há toda uma “estilística do pedido” introjetada pelas pessoas mais socializadas no culto ao santo, que permite reduzi-lo. Como lembra uma devota entrevistada: “(...) Pedi para ele dar saúde, felicidade, boa sorte para mim e para a família toda. Pedi também que ele me dê um bom marido” (r249: mulher, 47 anos, São Cristóvão) [grifos meus].

É preciso ressaltar, entretanto, que alguns entrevistados não se referem apenas ou necessariamente a “casamento” quando falam das capacidades do santo. Além de referências a etapas preliminares, como namoro e noivado, e à sua continuida-de, aparecem termos mais abrangentes, tais como “relacionamentos amorosos”, “questões afetivas”, “problemas sentimentais”, “coisas do amor”, o que não está necessariamente relacionado a casamento. Isso significa dizer que, embora haja referências à ação do santo na defesa do “sacramento do matrimônio”,3 a área de atuação a ele atribuída pelos demais entrevistados pode estar muito distante da concepção estrita de casamento defendida pela Igreja Católica:

[Ele] é um discípulo de Deus, do bem. Virou santo por suas intercessões no amor, nas uniões para o bem, em Portugal, na Itália. Não importa a união, entre homens, entre mulheres, não importando a direção da libido delas. Sou uma pessoa feliz porque encontrei quem eu amo, e acredito que minha presença nesse local e minha fé me ajudaram (r152: mulher, 40 anos, Barra da Tijuca).

Santo Milagroso

A segunda característica do santo mais mencionada nas respostas é a de santo milagroso. Essa fórmula apareceu várias vezes combinada a santo casamenteiro, ora adicionando-se a ela (Santo Antônio é “casamenteiro e milagroso”), ora opondo-se a ela (Santo Antônio é conhecido como casamenteiro, “mas na verdade é milagro-so”). Mas apesar do uso de conjunções diferentes, acredito que em ambos os casos o que está em jogo é afirmar que o território de atuação do santo é muito maior do que o da esfera dos relacionamentos afetivos. O termo “milagroso” indicaria o quão além ele pode ir.

É o santo dos milagres, qualquer que seja. E ele ajuda as pessoas a arrumar casamento, não é? (r29: mulher, 24 anos, Santo Cristo).

Dizem que é santo casamenteiro, mas para mim é santo milagroso. Minha sogra faz promessa para ele e ele cumpriu (r151: mulher, 47 anos, Botafogo).

Assim como a expressão “santo casamenteiro” teve variações, “santo mila-groso” também se apresentou sob várias formas. Um santo milagroso é aquele que “faz”, “dá”, “consegue”, “atende”, “ajuda”, “arranja coisas”, “resolve problemas” para seus devotos. Ele atende a seus pedidos, ele concede graças. As variações mais correntes para nominar essa capacidade de realização do santo foram, além de “milagroso”, “santo dos milagres”, “poderoso”, “que dá graças”, “forte”.

É um santo milagroso que me dá tudo que eu peço (r86: mulher, 67 anos, s/ local).

É um santo poderoso, pois ele resolve os problemas de todas as pessoas que pedem com fé (r83: mulher, 49 anos, Tijuca).

Ele é um santo muito forte, com suas proteções. Peço proteção para os momentos difíceis, (...) saúde em geral para família, para ajudar meu lado profissional (r232: homem, 47 anos, Tijuca).

É um dos santos mais importantes, pois as pessoas conseguem muitas graças através dele (r117: mulher, s/i, 42 anos, Niterói).

Sob essa capa de variedade, as expressões parecem guardar um sentido pró-ximo, pois todas se referem à eficácia do santo, isto é, à sua capacidade de realizar coisas. Qualificar Santo Antônio por essa capacidade de realização deixa subenten-dida uma distinção no interior da comunidade de santos: se há os santos milagrosos, deve haver aqueles que não o são, portanto há os santos mais e os santos menos eficazes, os capazes de realizar grandes prodígios e os que não têm a mesma capa-cidade. E diante dessa clivagem, Santo Antônio estaria no grupo dos mais fortes.

A eficácia também foi acionada para justificar a própria canonização do santo:

Foi um santo que logo após a sua morte, ele foi canonizado como santo por fazer muitos milagres (r108: mulher, 33 anos, Bangu).

A eficácia do santo, demonstrada pelos milagres e graças que ele é capaz de conceder, é utilizada pelos entrevistados para qualificar Santo Antônio, para identificá-lo, mas também para justificar o estabelecimento de relações com ele. Muitos dos devotos afirmam ter começado a acreditar no santo após ter experi-mentado sua eficácia, isto é, após ter recebido uma graça dele na vida pessoal.4 “Eu consegui e por isso acredito”, parece ser a fórmula.

[Ele] é um santo protetor que ajuda a sair dos momentos difíceis e sempre que preciso, ele me ajuda, por isso que eu sou devoto dele (r76: homem, 39 anos, Caju).

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181180 A dinâmicA do sAgrAdo

Dizem que é o santo casamenteiro, acredito porque faço orações por causa de saúde, situação financeira e tive graças. Peço a Santo Antônio e ele faz. Alcancei três graças em relação à saúde. Minha tia conseguiu casar assim, e eu vim pedir um noivo também (r39: mulher, 39 anos, Nova Iguaçu).

Meu pai crê nele antes e conseguiu graças, eu também consegui e, por isso, creio nele também” (r15: mulher, 28 anos, Vista Alegre).

Por fim, cabe ressaltar que como um “santo milagroso”, Santo Antônio é capaz de atuar em várias frentes, mesmo que tenha algumas especializações. Isso permite que ele seja invocado nos mais diversos tipos de situação, para atender a variados pedidos de graça.

Protetor dos pobres

A definição de Santo Antônio como protetor dos pobres forma-se a partir de uma espécie de combinação de ações que o santo teria realizado durante sua vida, características de sua personalidade, valores do franciscanismo, do catolicismo, ou mesmo da santidade em si. Ela envolve tanto as atitudes de Santo Antônio em favor dos pobres, como o fato de ele mesmo ter se tornado um pobre. Essa definição implica ainda um certo conhecimento sobre a vida do santo.

Santo Antônio estaria associado à pobreza, primeiro, por seu abandono volun-tário da riqueza, dado bastante ressaltado nas respostas, inclusive como sinal de santidade: um santo é aquele que abre mão dos bens materiais. Transformando-se num pobre voluntário, Santo Antônio tornou-se simultaneamente um protetor da pobreza.

É um grande santo. Foi um homem que decidiu seguir um propósito de fazer o bem e largou todos os bens materiais para se dedicar às coisas santas. É o santo dos pobres e dos noivos (r26: mulher, 59 anos, Ipanema).

Ao entrar na Ordem franciscana, ele “devotou-se aos pobres e abandonou a riqueza”, “abandonou sua riqueza para ajudar os pobres”, “passou a vida toda dedicado a eles”. Neste sentido, além de ser chamado de “protetor”, ele também apareceu nas respostas como “consolador”, “amigo” e “santo” – “dos pobres”.

Mas ele não apenas entrou na Ordem e abandonou a riqueza: em outras atitudes ao longo de sua vida ele posicionou-se em favor dos pobres, como ao “distribuir pão e alimentos”, ao “livrar moças pobres do pagamento do dote” (daí viria sua fama de casamenteiro), e ao “atender os pedidos dos pobres”, o que ele faria até hoje. A dedicação de Santo Antônio aos pobres é apresentada numa variedade de atitudes como as de “ajudar”, “atender”, “consolar”, “acudir”, “proteger”, “am-

parar”, “dar”, “cuidar”, “ver”, “fazer por”, que são as ações através das quais sua proteção é oferecida.

[Ele] é um frade, uma pessoa que foi boa na sua época, distribuía alimentos, pão, para os pobres (r5: homem, 62 anos, Sulacap).

Era religioso, antes de conhecer São Francisco. Ao conhecê-lo, se coloca à disposição dele. A lenda diz que ele ia contra os dotes que as moças deviam dar, no século XIV, porque as moças pobres dificilmente conseguiam casar. Ele foi porteiro e cozinheiro na Ordem, sempre muito solícito aos pobres, dando alimento, conforto, carinho. Principalmente o pão (r132: homem, 28 anos, Campo Grande).

Para mim, ele é verdadeiro santo que mais atende os pedidos dos mais pobres e com essa dificuldade agora, eu achei melhor pedir a ele para arrumar dois empregos (r55: mulher, 29 anos, Méier).

Note-se que sua preocupação com a pobreza, ou melhor, com as moças po-bres aparece como justificativa para sua especialidade de casamenteiro. Por outro lado, ao analisarmos os beneficiários da ação de Antônio vemos quem são, para os freqüentadores do convento, os pobres que precisam da assistência do santo: “os mais humildes”, “as moças pobres”, os “oprimidos”, “os desassistidos”, “as crianças”, “os que precisam de auxílio”.

A associação de Santo Antônio à proteção dos pobres influi diretamente nas atitudes de seus devotos, isto é, na forma específica assumida por sua devoção. Há em seu culto uma certa “imitação” de suas atitudes, dentre as quais a doação aos pobres aparece como uma das formas privilegiadas de retribuir suas graças. Portanto, como foi observado em campo, o culto a Santo Antônio no convento envolve a doação de pão aos pobres, seja em sentido concreto, distribuindo pão às terças-feiras, seja metafórico, através da entrega de alimentos, remédios, roupas, dinheiro, artigos de higiene, esmolas etc.

[Ele era] uma pessoa ligada aos pobres. Trago mantimentos. Peço a Santo Antônio para ajudar os mendigos (r139: homem, 45 anos, Niterói).

Também na festa do santo, o “pão dos pobres” aparece de forma ritualizada como “pãozinho de Santo Antônio”, como já dito, é um pão bento doado na festa para ser guardado junto aos alimentos, para garantir comida em casa.

Na festa de Santo Antônio tem distribuição de pão pros pobres (...) (r130: mulher, 65 anos, Engenho Novo).

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183182 A dinâmicA do sAgrAdo

Ele é casamenteiro. Ele ajuda os pobres e necessitados. Tem um pãozinho de Santo Antônio para ajudar os pobres (r126: homem, 30 anos, guarda municipal, Caxias).

Se levada ao pé da letra, ou se tomada isoladamente, essa classificação de Santo Antônio poderia reduzir seus beneficiários potenciais, já que o santo seria “especializado” apenas no atendimento aos pobres. No entanto, além da expressão “protetor dos pobres” aparecer em combinação com outras, “pobre” é um qualifi-cativo que pode desdobrar-se em significados abrangentes, isto é, que não se refere apenas à pobreza material. As variações em torno dessa expressão assinalam alguns dos possíveis desdobramentos: Santo Antônio é tratado também como protetor dos “mais humildes”, dos “desassistidos”, dos “necessitados”, das “crianças”, “dos que precisam de auxílio”, dos “oprimidos”, “de quem precisava”. Essa variedade reintroduz a possibilidade de ampliar as relações de proteção do santo. As carên-cias humanas não são apenas materiais, e o santo parece ser sensível a atendê-las, estendendo sua proteção a um conjunto mais abrangente de necessitados e a outros grupos fragilizados da sociedade.

3 – Acionando o passado do santo

Elementos biográficos

Em uma série de respostas, os entrevistados pareciam preocupados em demonstrar seus conhecimentos sobre a história do santo, citando alguns aconte-cimentos que teriam marcado sua vida. As expressões que apareceram de forma mais recorrente foram as de que Santo Antônio seria rico, sermonista, franciscano, português, casto, de Lisboa ou de Pádua.

Nascido rico, em Portugal. Depois soube que alguns franciscanos haviam sido martirizados na África e quis ir para lá. O navio afundou e ele foi parar em Pádua, onde entrou para a Ordem (r148: mulher, 60 anos, Recreio).Ele era de família muito rica, renunciou à luxúria, depois foi considerado papa da teologia. Pela palavra, ele converteu pessoas que eram tidas como bárbaros. Ajudava os pobres. Morreu aos 39 anos em Pádua. Foi o único santo que a terra não comeu a língua (r215: mulher, 64 anos, Caxambi).

Quanto à vida do santo, há referência às suas diversas etapas: sua infância em Portugal, a adesão aos franciscanos, a pregação junto aos hereges e ao povo de Pádua. Os episódios citados parecem agrupar-se em torno de dois registros: a idéia de “missão”, e a idéia de “santidade”. No primeiro caso, Santo Antônio parece como seguindo um chamado ou cumprindo um destino; no segundo, os

fatos de sua biografia são lidos como sinais de santidade. Neste último caso, além das referências a milagres como sinal de santidade, outro elemento biográfico que assume esse sentido é o fato de Santo Antônio ter sido um rico que renunciou aos bens materiais por devoção. A pobreza voluntária surge como um sinal da entrega total de Santo Antônio a Deus, a Jesus, aos pobres, à causa franciscana.

Mas o que gostaria de aqui destacar é que conhecer e citar algum aspecto da biografia do santo indica uma socialização na devoção e no catolicismo, ou mesmo uma freqüência mais sistemática ao convento, ou a outras igrejas. Ou seja, são atributos que, para serem acionados, implicam uma maior intimidade com a devoção ao santo.

Entretanto, nota-se também entre os que citaram a biografia do santo, que o grau de aprofundamento nela é bastante diferenciado. Enquanto alguns são capazes de descer a minúcias, citando inclusive datas, a maioria parece absorver e repassar os dados biográficos sem preocupação com um rigor factual, pois muito do que é mencionado com firmeza pelo entrevistado/a, não coincide com as informações oficiais. Assim, fica uma imagem de que, mais importante que o preciosismo do detalhe, é a demonstração de possuir algumas noções sobre o santo.

Foi um grande homem, nasceu em Pádua. Com cinco anos, encostou numa pilastra e a mão dele tá lá até hoje. É um grande orador. Fez muitos milagres até entrar para ordem franciscana (r157: homem, 25 anos, Piedade).

Um grande santo, muitos milagres. Estava numa ordem muito rica, saiu e fundou a Ordem de Santo Antônio dos Pobres. Ele via os desassistidos de hoje, naquela época (mais ou menos séc. XV) (r167: homem, 85 anos, Porto Alegre – RS) [grifos meus].

Nas respostas que acionam episódios do passado do santo, aparecem ainda referências a três milagres “clássicos” de Santo Antônio: o milagre da aparição de Jesus na casa do conde Tiso, o milagre da ubiqüidade e o milagre do Jumento e da Hóstia, mesmo que em versões reduzidas. Esses milagres parecem ser narrados como uma espécie de testemunho de seu poder, para reforçar a idéia de um santo poderoso:

Nosso Senhor deu a graça de abraçá-lo na casa de um senhor rico, por isso há uma imagem de Santo Antônio com um menino no colo (R157, homem, 25 anos, Piedade).

(...) Santo Antônio estava em Roma e foi avisado de que o pai estava sendo preso em Lisboa. Seu espírito foi a Lisboa e soltou o pai e voltou na mesma hora para continuar a rezar a missa. (...) (r184: homem, 65 anos, Turiassu).

sAnto Antônio no convento do rio de JAneiro

185184 A dinâmicA do sAgrAdo

É santo das coisas perdidas, é o santo casamenteiro. Mostrou a todos a ver-dadeira presença de deus na hóstia santa. (...) (r187: homem, 61 anos, Irajá).

Há outras respostas que acionam o passado do santo para justificar sua fama de casamenteiro. As justificativas remetem a dois episódios: aquele em que o santo arruma o dote para uma moça se casar, e o outro, em que uma moça joga sua ima-gem pela janela e ela cai sobre um homem que, ao devolvê-la, se apaixona por ela. Quanto ao episódio do dote, duas são as variantes. Na primeira, Santo Antônio teria pagado o dote de uma moça pobre, possibilitando que ela se casasse; na segunda, ele teria conseguido revogar a lei do dote:

(...) Na época dele, só casava quem tivesse dote. A moça pobre queria casar e não tinha dinheiro. Aí, ele foi e pagou (r164: mulher, 63 anos, Cascadura).

(...) Houve uma lei em Portugal, onde os ricos só se casavam com ricos, e pobres com pobres. Ele levantou o clero contra isso e o rei teve que anular a lei. Por isso, é conhecido como santo casamenteiro (r147: homem, 66 anos, Laranjeiras).

Também apareceu a história da moça que jogou Santo Antônio pela janela:

Santo Antônio foi um padre que largou tudo pela caridade. Ele é conhecido como casamenteiro porque uma senhora pediu um marido e não conseguiu, ela jogou Santo Antônio pela janela e caiu na cabeça de um senhor e eles se apaixonaram (r163: homem, 21 anos, Nilópolis).

Vê-se assim que o passado do santo é utilizado como fonte de exemplos concretos que justificam seus atributos no presente. Essas referências ao passado também são acionadas para explicar a forma que o culto a Santo Antônio assume, pois em algumas de suas práticas os devotos buscam reproduzir e dar continuidade a ações do santo.

Relações com personagens da esfera celeste

As respostas ao questionário trouxeram ainda menções a relações de Santo Antônio com outros personagens da esfera celeste, em sua vida. Foram enfatizadas aquelas com Deus, Jesus e São Francisco. Essas relações funcionariam como uma espécie de aval de sua importância no panteão de santos católicos, e no campo do franciscanismo.

As respostas que citaram relações com Deus e Jesus foram as mais freqüentes, e elas enfatizavam a posição privilegiada que Santo Antônio desfrutaria junto a eles. Ele aparece, quanto a Deus, como “amigo”, “seguidor”, “secretário”, “discípulo”,

“escolhido”, “abençoado” por ele. Isso o torna capaz de interceder junto ao Pai por seus devotos, e de levar-lhe seus pedidos. Assim, Santo Antônio aparece como intercessor, numa função de mediação entre os devotos e Deus:

Ele é um amigo de Deus que está perto dele e nos escuta. Passa para Deus os nossos pedidos quando estamos angustiados e os nossos agradecimentos quando estamos felizes (r36: mulher, 41 anos, Anchieta).

As menções às relações de mediação permitem visualizar uma certa hierarquia que se estabelece entre as figuras celestes, e entre estas e os seres humanos, quase que uma “escada” onde Deus está no topo, o santo no meio, e o devoto na base.

É um secretário de Deus, pois acima do santo está Deus (r 78: mulher, 48 anos, Centro).

Para mim ele é tudo, abaixo de Deus. Ele é meu mestre. Ele é quase um Deus também (r44: mulher, 46 anos, Botafogo).

A distância entre os três pontos, entretanto, pode ser considerada maior ou menor, dependendo do interlocutor. Mesmo havendo uma hierarquia, o santo pode estar ao lado do devoto, como um amigo, apesar de seu acesso privilegiado a Deus.

Abaixo de Deus está ele, pois ele está ao meu lado. Eu não o vejo como morto, como santo, vejo ele como amigo (r105: mulher, 25 anos, Irajá).

Quanto a Jesus, Santo Antônio foi “seguidor” de suas idéias, e “divulgou seu evangelho”, foi “seu mensageiro”, e seguiu seus preceitos. A intimidade que desfrutaria junto a ele estaria associada a um episódio de sua vida, quando Santo Antônio foi por ele abraçado na casa de um senhor rico.

Santo dos milagres, santo casamenteiro. Atende os pedidos, esteve com Jesus menino (r218: mulher, 42 anos, Niterói).

Essa intimidade o caracterizaria como um mediador potencial também junto a Jesus. Portanto é possível observar que a intimidade e a proximidade da qual o santo desfruta junto a Deus e Jesus favorece a acolhida das graças a ele demandadas.

Mas a “intimidade” e “proximidade” não foram gratuitamente estabelecidas: elas são fruto da fidelidade do santo a Deus/Jesus e a seus ensinamentos, os quais buscou seguir e divulgar em sua vida. A vida de Antônio, portanto, teve um sentido, isto é, desenvolveu-se a partir de uma certa diretriz. As respostas apontam para

sAnto Antônio no convento do rio de JAneiro

187186 A dinâmicA do sAgrAdo

uma idéia de missão de Santo Antônio, de “função” designada pela esfera celeste que ele teria sido encarregado de desempenhar, e que foi capaz de fazê-lo com louvor. Ele é um enviado de Deus, um mensageiro de Deus e de Jesus, a fim de transmitir seus ensinamentos. Ele deu a vida para segui-los, entregou-se em suas mãos e procurou imitá-los. Portanto, Santo Antônio tornou-se um exemplo para todos, um exemplo do amor de Deus, de como seguir seu caminho:

Santo Antônio é uma figura que deixou bastante obras e bastante ensinamentos sobre Jesus, para todos nós e, principalmente, para mim. Eu sigo muito seu exemplo (r51: homem, 49 anos, Botafogo).

Santo Antônio é um exemplo da verdadeira missão de Jesus. Seu testemunho, que ele deu para igreja, é de um exemplo de servo de Deus, tinha prazer em servir aos outros (r198: homem, 20 anos, Cordovil).

E ao cumprir eficazmente sua missão, por sua conduta exemplar, ele terminou por virar um santo.

Para mim, ele é um apóstolo, um seguidor de Deus porque seguiu um padrão de conduta que fez com que ele virasse santo (r62: mulher, 55 anos, Realengo).

Entretanto, a idéia de Santo Antônio como um mediador foi questionada em algumas respostas, que procuraram estabelecer uma rígida separação entre o santo e a divindade. Nessas referências, Deus e Jesus surgem como figuras superiores, onipotentes, e o santo, como alguém “comum”:

Ele foi um homem que nem eu, cheio de pecados. Santo é só Deus e Jesus que eu conheço da Bíblia. Milagre só quem faz é Jesus Cristo. Se tiver fé em Cristo a pessoa é curada. Mesmo na pobreza, estando na miséria, no fundo do poço, tem que acreditar em Deus. Jesus é o único que vai salvar! (r204: homem, 34 anos, Jacarepaguá).

Para mim, ele não representa nada. Eu só acredito em Deus (r54: mulher, 24 anos, Rocinha).

É casamenteiro, mas eu sou cristão, então acredito que a obra do casamento é de Deus. Do Deus verdadeiro. Tenho 65 anos, e vejo tanta maldade, ganância, um prejudicando o outro, então a gente tem que buscar a presença de Deus. O Deus vivo, que dá saúde, alegria (r128: homem, 65 anos, Bairro de Fátima).

Note-se que essas três respostas são de pessoas evangélicas (“cristãs”) pre-sentes no convento. Elas permitem uma dupla constatação: primeiro, a de que a freqüência ao local não se restringe a católicos, como já mencionado em outros capítulos, mas envolve pessoas de outras religiões. Por outro lado, elas permitem

que se veja o santo pelos olhos dos evangélicos, e nessa perspectiva, seus poderes e atributos estão zerados.

Mas o inverso também ocorre. Há três respostas em que Santo Antônio é considerado tão poderoso que seria equiparável à divindade. Para alguns entre-vistados, Deus e os santos seriam uma coisa só, e por isso Santo Antônio seria ele também um “deus”:

[Ele] é um Deus poderoso (r96: mulher, 35 anos, Tijuca).

Deus é os santos. Eu acredito muito nele, porque para mim, tudo é uma coisa só (r2: mulher, 75 anos, Caju).

Para mim ele é um Deus. Quando eu precisei, ele me escutou. Minha filha estava com problemas no parto, e eu pedi, e ele me atendeu (r40: mulher, 40 anos, Inhaúma).

Há um outro personagem destacado nas respostas como tendo relações pró-ximas a Santo Antônio. Trata-se de São Francisco de Assis. Ele apareceu num número menor de referências, mas dele também Santo Antônio seria um “seguidor” e “discípulo”.

Religioso, antes de conhecer São Francisco. Ao conhecê-lo, se coloca à disposição dele (...) (r132: homem, 28 anos, Campo Grande).

Seguidor de São Francisco de Assis, devotou [sic] os pobres e abandonou a riqueza (r10: homem, 41 anos, Estácio).

O que as respostas enfatizam primeiramente sobre as relações com São Fran-cisco é a ruptura que ele provocou na vida de Santo Antônio. Este “conheceu São Francisco de Assis” e “ao conhecê-lo, se colocou à disposição dele”: abriu mão de seus bens, entrou na Ordem, dedicou-se aos pobres, mudou seu eixo. À ruptura, que significou o abandono de tudo pela adesão a uma causa, é atribuído um papel fundamental em sua trajetória de santidade.

Por outro lado, a ênfase no fato de que Santo Antônio “conheceu” ou “esteve pessoalmente com” São Francisco, contribui para conferir-lhe um papel de destaque na Ordem Franciscana. As respostas falam de uma grande intimidade estabelecida entre os dois, que talvez não encontre amparo na documentação histórica, mas que é uma representação consolidada em torno das origens do franciscanismo. Assim, além de discípulo e seguidor, Santo Antônio foi “amigo”, “companheiro insepará-vel”, chegando a haver mesmo uma referência a um suposto parentesco entre os dois.

Ele era amigo de São Francisco de Assis, seguidor das idéias de Jesus, espírito iluminado (r245: mulher, 57 anos, Copacabana).

sAnto Antônio no convento do rio de JAneiro

189188 A dinâmicA do sAgrAdo

É primo de São Francisco, nasceu na Itália, casamenteiro (r170: mulher, 43 anos, Caxias).

As referências a relações com São Francisco parecem testemunhar a adesão total de Antônio ao franciscanismo. A resposta que menciona sua relação com Santa Clara parece ir no mesmo sentido.

(...) Ele, São Francisco e Santa Clara eram inseparáveis. Era rico, mas abdicou da riqueza por devoção aos pobres (...) (r133: mulher, 71 anos, Botafogo).

Colocar Francisco, Antônio e Clara – Clara de Assis, a fundadora da ordem franciscana feminina – em pé de igualdade, significa não só admitir que Santo Antônio foi uma figura de destaque da primeira geração de franciscanos, mas que ele teria tido um papel importante na própria constituição da Ordem. Portanto, se ele teria “seguido” São Francisco, ele o teria feito “bem de perto”, partilhando de sua intimidade, e sendo um legítimo continuador de sua obra.

4 – Santo e santidade

Na análise empreendida para descobrir quem seria Santo Antônio da perspec-tiva dos freqüentadores do convento, os depoimentos e formulações apresentados ao longo deste capítulo demonstraram a existência de múltiplas possibilidades de qualificação do santo, de várias competências e atributos que lhe podem ser conferidos.

Porém, por trás dos diversos atributos e especialidades do santo, isto é, das formas específicas que sua ação pode assumir, as respostas elencadas permitem levantar elementos não apenas para definir Santo Antônio, mas para conceituar a própria santidade do ponto de vista dos agentes do convento. Essa idéia ficou ainda mais acentuada ao constatar que algumas respostas falavam do santo sem apresentar nenhum traço ou característica distintiva que permitissem diferenciá--lo, isto é, singularizá-lo diante dos demais. A sensação era de que, em algumas respostas, o nome de Santo Antônio poderia ser substituído pelo de qualquer outro santo ou santa, que a frase nada perderia em sentido.

[Vejo-o] como uma pessoa que viveu, que se dedicou a sua causa e deixou muitas coisas boas. Representa um protetor (r25: homem, 53 anos, Nova Iguaçu).

Um homem comum que teve uma missão de passar por provas difíceis, de muito sofrimento e soube passar deixando um grande exemplo (r28: mulher,

49 anos, Maracanã).

É um exemplo de vida, pois ele viveu para poder ajudar as pessoas e também fez muitos milagres durante a vida e após a sua morte (r63: homem, 58 anos, Vila Isabel).

Foi uma pessoa muito boa e a gente quando está num momento de aflição, a gente pede a ele, e ele intercede por nós (r142: mulher, 66 anos, Penha).

É uma pessoa abençoada que deixou tudo para seguir a Deus, e através dele, ele intercede por nós, e quem tem fé, consegue as graças (r178: mulher, 43 anos, Santíssimo).

É um santo muito forte, muito importante, pois foi um mártir para toda hu-manidade (r114: mulher, 38 anos, Tijuca).

Trata-se, portanto, de respostas que parecem exprimir características da santidade em geral. Se considerarmos junto a essas respostas outras informações apresentadas ao longo do capítulo, vemos que conjunto das formulações a respeito da santidade podem ser agrupadas em torno de três funções que o santo desempe-nharia diante de seus devotos. Ele é um intercessor, um milagreiro, um exemplo.

O santo é um intercessor porque pede pelas pessoas juntos aos personagens da esfera celeste, ou leva-lhes seus pedidos. O santo, um amigo próximo tanto dos que pedem, como dos que concedem, é por excelência um mediador, através do qual se forma uma cadeia de mediações entre o Céu e a Terra.

Há uma outra uma dimensão, que havia mencionado quando falei de Santo Antônio como milagroso, que é a do santo como como alguém que fez e faz muitos milagres, como alguém capaz de realizar prodígios, de conceder graças. Um santo é também alguém poderoso, que faz muitos milagres, em vida e depois de morto, que dá ou consegue coisas para os seus devotos. E para muitos, essa capacidade de realização seria o principal distintivo da santidade, razão inclusive para acreditar nele.

E apesar da assimetria de posições entre o santo e os demais seres humanos, e entre o santo e a divindade, a santidade supõe relações de exemplaridade, relações de imitação, onde os “menores” e “imperfeitos” tentando imitar os “maiores” e “per-feitos”. (sobre o tema, ver Jolles, 1976; Delooz, 1985; Vauchez, 1987, 1999). Sua vida é como o exemplo de um caminho bem-sucedido a ser seguido pelos devotos.

Mas ao analisarmos como se apresentam essas três “qualidades” de um santo, ou melhor, de qualquer santo – exemplo, taumaturgo, mediador – vemos que elas estão diretamente relacionadas àquilo que o santo fez em vida, ou àquilo que ele faz hoje, ou é capaz de fazer ainda hoje pelos outros. Poderíamos dizer que, em síntese, um santo é aquele que fez e faz não por si, mas pelos outros, numa espécie de altruísmo radical que seria um sinal distintivo da santidade.

sAnto Antônio no convento do rio de JAneiro

191190 A dinâmicA do sAgrAdocApítulo 8

Outros santos

Embora Santo Antônio seja o personagem de maior destaque no convento, ao longo deste trabalho houve menções à presença de outros santos e santas no local. A referência a essa pluralidade de santos pode parecer uma obviedade para os que desfrutam de intimidade com o catolicismo, visto que tende a ocorrer em qualquer templo católico. Porém, creio ser importante considerar a diversidade de santos presente no convento como um exemplo concreto de “inclusividade católica”, e procurar entender o que ela poderia estar expressando.

1 – O panteão do convento

Mesmo que um templo católico esteja primordialmente associado a um padroei-ro que lhe dá o nome, ele geralmente inclui referências a outros santos. O convento do Largo da Carioca tem Santo Antônio como padroeiro, e há diversas imagens desse santo distribuídas pelo local: no altar-mor, na sacristia, nos queimadores de vela, no muro, em azulejos na área externa e interna da igreja e ainda aquelas vendidas na barraca de artigos religiosos, as quais comportam ainda variações na sua representação. Mas a Santo Antônio, agregam-se outros santos e santas, que aparecem em vários pontos do convento, sob diferentes formas.

Um dos pontos onde os santos se concentram é o interior da Igreja. É aí que, em lugar de destaque, está uma série de estátuas e quadros de santos. Nas paredes do templo, estão São José, um Jesus crucificado, um quadro do Beato Fr. Galvão. Nos altares laterais, a imagem de Nossa Senhora da Conceição fica à esquerda e, no altar do lado oposto, encontra-se São Francisco de Assis. Na frente do coro, diante do altar-mor, os 18 mártires franciscanos do Japão estão esculpidos em madeira. Na parte lateral da Igreja, entre o confessionário e a en-trada do claustro, há a capela de Ecce Homo, isto é, de Jesus flagelado, tendo a seus pés a imagem do Senhor Morto; e a capela de Nossa Senhora dos Anjos, que representa a santa com São Francisco de joelhos diante dela. Na parte de baixo

Notas1 Na resposta, ele também é identificado a Exu, mas a dimensão guerreira é ligada a Ogum.2 É prática corrente entre os devotos colocar sob a proteção do santo o casamento conseguido através dele. O ato simbólico de doar-lhe o buquê de noiva pode ser lido neste duplo sentido: tanto agradecer ao santo o casamento conseguido, como deixá-lo sob a sua proteção.3 [Ele] teve uma humildade incrível, uma intenção poderosa. Ele foi um dos padres que lutou pelo sacramento do casamento, que era pago e as pessoas que não tinham dinheiro, ele dava (r137: homem, 16 anos, Del Castilho – grifos meus). 4 Do conjunto, 37 pessoas fizeram menções explícitas às graças concedidas pelo santo, seja ao próprio entrevistado, seja a seus familiares. 17 pessoas “receberam” casamento ou namoro; dez, a cura de doenças; uma, a cura de um vício; uma, a conversão religiosa; uma, escapar de um desastre automobilístico; uma, de um assalto; três, solucionaram problemas financeiros; quatro, conseguiram casa própria; uma, engravidar; uma, completar os estudos e duas, emprego. O total é de 42 referências em 37 pessoas, porque novamente uma pessoa pode ter citado mais de uma graça.

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dessa capela, estão os restos mortais de fr. Fabiano de Cristo, com um quadro e um cartaz indicando sua localização. Entre as duas capelas, em um suporte na parede, fica uma pequena estátua de Santa Clara. Há mais duas estátuas de outros santos, só que na parte externa da Igreja: na portaria, há uma imagem de Nossa Senhora, que seria a mais antiga, isto é, a primeira do convento. E na saída do elevador, uma pequena imagem de São Pedro afixada à parede, que, segundo uma freqüentadora assídua, estaria “vigiando a porta para indicar que estamos entrando no céu” (ver referências à localização dessas imagens no capítulo 2).

As imagens de santos colocadas em destaque no interior da Igreja parecem remeter a dois “territórios” no interior do universo católico: de um lado, as repre-sentações de Jesus, Maria e José, os personagens centrais da história “humana” do Cristo, sendo que este aparece representado nos dois pólos de sua existência terrestre: como “Menino” e como “flagelado”, vítima da Paixão.1

Já as demais imagens referem-se ao próprio franciscanismo – São Francisco, Santa Clara, Santo Antônio, os mártires Franciscanos do Japão, fr. Galvão e fr. Fabiano de Cristo. Mas apesar de serem todos franciscanos, eles estão relacio-nados a momentos diferentes da história da Ordem. Os três primeiros, do século XIII, são os personagens de maior renome, e compõem a “geração inicial” dos fundadores. Os mártires do Japão, de final do século XVI, ligam-se à expansão européia (e católica) dos franciscanos para o Extremo Oriente. Já fr. Galvão2 e fr. Fabiano,3 que foram frades no convento, parecem estabelecer uma ponte entre o internacionalismo da Ordem Franciscana e o Brasil, pois se tratam de personagens de destaque da história do franciscanismo (e do catolicismo) neste país. Lembre--se ainda que há no interior do templo um quadro em que Santo Antônio aparece junto a uma criança pobre, diante de Nossa Senhora com o Menino Jesus no colo. Esse quadro, objeto que desperta grande atenção por parte dos devotos, parece consagrar um vínculo direto entre os dois personagens de maior destaque do cris-tianismo (Cristo, a Virgem) e o santo franciscano que dá nome ao convento. Assim, o conjunto de imagens da igreja, se decifrado, permite imediatamente identificá-la como um templo franciscano.

Uma análise diacrônica mais fina do panteão de santos “oficial” do convento deveria considerar que, além da história dos personagens representados nessas estátuas e quadros, haveria uma história das próprias imagens (estilos, materiais, simbologia) e de sua colocação no local. Elas não são “simultâneas”, isto é, não são feitas na mesma época; não foram colocadas em grupo no local, nem estão nele “desde sempre”. Na história do edifício religioso (Röwer, 1945; Marciniszyn, 1982), há referências a diversos episódios de reforma, de destruição de antigas capelas e da construção de novas, de imagens que trocaram de lugar, ou que foram substituídas por outras, de melhor qualidade. Por isso, devemos falar de uma “configuração” atual de santos, ressalvando que ela pode se alterar de acordo com os interesses

dos responsáveis pelo convento.Por outro lado, algumas imagens, como a de fr. Galvão, devem ter sido in-

troduzidas há pouco tempo, pois sua beatificação é recente, ligada aos esforços contemporâneos das ordens e congregações religiosas pela canonização de santos brasileiros. Já o retrato de fr. Fabiano, que fica sobre um altar onde estão seus restos mortais, do ponto de vista estritamente canônico, não deveria estar exposto, pois ele nem ao menos foi beatificado, e, portanto, não pode ser objeto de um culto público. Mas como o retrato está sobre sua sepultura, sempre se pode justificar a presença de sua imagem como a de uma mera “memória”, e não como um objeto de culto.

Este fato serviria como um bom exemplo do jogo de ambigüidades que mar-ca o catolicismo: como fr. Fabiano é um ex-frade da casa, que tem reputação de santidade, e que é eventualmente chamado em missas e bênçãos de “o santinho do convento”, parece haver uma certa tolerância, ou melhor, diria mesmo um certo estímulo à devoção a ele pelos responsáveis pelo convento. Isso demonstra não apenas uma ambigüidade da Igreja Católica em operação, mas ajuda a entender os mecanismos de nascimento de um novo santo e de incorporação de novidades na estrutura da Igreja Católica.

Entretanto, a dinâmica dessas imagens do interior da Igreja no passado, ou mesmo no passado recente, não é referida pelos freqüentadores, e é uma certa fixidez em seu posicionamento e na composição desse conjunto que aparece no cotidiano do convento. As fotos em postais e publicações mais recentes demons-tram a estabilidade desse conjunto de imagens, as pessoas estão acostumadas a encontrar os santos nas posições aqui descritas, e a eles se dirigem para realizar suas práticas devocionais, antes e depois das celebrações, ou mesmo em seu curso. Há inclusive, os que criaram uma rotina para abordá-las, isto é, dirigem-se a elas em ordem, afim de saudá-las e rezar diante delas.

Dentro dessa mesma igreja há, entretanto, uma outra forma de apresentação dos santos, que envolve personagens distintos, que ocupa não as posições “oficiais” ou de destaque no templo, mas a periferia desse espaço, e que possui contornos mais fluidos. São os santinhos e as novenas e, eventualmente, orações, que, como visto nos capítulos 3 e 5, é um material trazido espontaneamente pelos devotos para o convento, a fim de ser distribuído ou deixado no local, como forma de ex-voto e/ou de divulgar uma nova devoção. Como inexiste no convento um espaço oficialmente destinado a receber esse material, ele costuma ser colocado sobre o genuflexório do quadro de Santo Antônio, sobre os bancos da igreja, nos cantos e nas mesas, em altares laterais, etc, naquilo que chamei de um processo de apropriação do espaço por seus freqüentadores.

Durante o campo, a descoberta desse material, que podia ou não estar relacionado à figura de Santo Antônio, provocou minha curiosidade quanto aos personagens que nele apareciam, e à freqüência com que eles poderiam ser encontrados. Dediquei-

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-me, portanto, a coletar um exemplar de cada um dos tipos diferentes de santinhos e novenas que encontrasse a cada visita, com os quais compus uma espécie de “banco de dados”. O material catalogado permitiu-me recolher 71 santinhos, referentes a dez personagens4 e 113 novenas, referidas a 11 personagens.5 Uma análise “por dentro” desse material, considerando as diferentes formas de representação dos santos, os tipos de orações a eles destinadas, as formas estereotipadas de pedir e agradecer que são nele transmitidas, foge aos limites deste trabalho. O que cabe aqui ressaltar é o conjunto de personagens que foi encontrado e apontar aqueles que nele apareceram de forma mais destacada.

A primeira observação que me ocorre fazer sobre o material diz respeito ao grau de autonomia que marca a sua colocação no local, que é quase total, desde que ela seja feita com discrição. Diferentemente das demais imagens da igreja, isto é, das estátuas e dos quadros, cujo ingresso no local é completamente controlado pelos frades, os santinhos e as novenas não passam por nenhum tipo de crivo para entrarem no convento. Eles entram pelas mãos de diversos freqüentadores, que por sua própria iniciativa os espalham pelo local, deixando as “marcas” de sua passagem. Mas essa participação autônoma dos freqüentadores, longe de ser esti-mulada ou tolerada pelos responsáveis do local, é contida pela retirada do material da Igreja com constância e sistematicidade, através da atuação das senhoras da Pia União, e demais voluntárias que ajudam nas missas do convento. Assim, se há uma facilidade relativa para a colocação de material – basta depositá-lo em um dos pontos mencionados –, sabe-se que provavelmente ele será, pouco tempo depois, recolhido e retirado do local. Mas apesar das tentativas efetivas de controle, os santinhos e a novenas continuam a ser deixados no templo, o que sinaliza uma certa expressão autônoma da devoção aos santos, que é preciso ressaltar. Trata-se, entretanto, de santos que aparecem no convento pela incapacidade dos responsáveis controlarem totalmente os passos dos freqüentadores.

Um segundo aspecto a destacar sobre santinhos e novenas é que existem personagens que não são santos oficiais da Igreja, como as Treze Almas Benditas, fr. Galvão, o Pe. Kentenich. No caso do padre, tratava-se de um santinho que divulgava sua vida e seus grandes feitos, fazendo uma espécie de campanha por sua beatificação. Fr. Galvão era o frade do convento beatificado, com o processo de sua canonização ainda em curso. Já as Treze Almas Benditas, na verdade seria uma devoção ligada ao culto das almas, sem que haja um santo “histórico” por trás dessas figuras.6

Um terceiro ponto a destacar sobre esse material – agora, analisando-o por dentro – é que mesmo sendo um convento dedicado a Santo Antônio, este não era o único personagem de destaque em santinhos e novenas. Se pegarmos os dois personagens mais citados em cada tipo de material (as referências a partir do ter-ceiro colocado ficavam bem abaixo das duas primeiras), vemos que nos santinhos,

os primeiros colocados são Santo Expedito, com 32 referências, e Nossa Senhora, em suas múltiplas invocações, com 10. Santo Antônio fica em quarto lugar, com apenas quatro referências. No caso das novenas, a situação se altera: Santo Antônio é o primeiro, com destaque, com 69 referências, ficando São Judas Tadeu como segundo colocado, bem abaixo, com apenas 16.

Santo Expedito foi o campeão absoluto dos santinhos. Dele, foram achados 32 referências, por oposição a 39 de todos os demais nove personagens juntos. Esse fato correspondia à impressão desenvolvida em minhas observações, de que o culto a esse santo vivia um verdadeiro florescimento, fruto de um “movimento” em torno de sua figura que teria se originado em São Paulo. Ele é representado nas imagens em trajes militares, pois teria sido um oficial romano dos primeiros séculos do cristianismo. Seu sucesso relativamente recente seria comprovado pelo fato de inexistir na Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro algum templo católico romano dedicado a ele. Mas a ausência de uma igreja do santo na cidade não inviabilizava o crescimento da devoção, que seguia em curso em igrejas de outros patronos. O que o grande número de santinhos dele encontrados demonstra é que a “novidade” em torno de um santo – que no caso, poderíamos chamar de “moda” – não significa necessariamente o surgimento de uma nova invocação, mas pode também significar a “descoberta” (ou “redescoberta”) de um santo antigo.

Um santo pode voltar à moda porque as capacidades que lhe são tradicio-nalmente conferidas assumem novamente importância em um outro momento da história. Ou ele pode ser redescoberto por ser “ressignificado”, isto é, por adquirir, num processo de atribuição social, capacidades anteriormente inexistentes. Por-tanto, um santo pode tornar-se moda, assumir destaque, mesmo bastante distante temporalmente de seu contexto biográfico, ou contexto de canonização, e isso sem haver necessariamente uma continuidade histórica na devoção. No caso de Santo Expedito, talvez uma necessidade social crescente da “grande especialidade” que lhe é atribuída – ele é considerado o “santo das causas urgentes”, capaz de atender aos pedidos com extrema rapidez – seja o fator determinante em seu sucesso atual.

Como uma quarta observação sobre esse material, há que se notar também o “descolamento” entre os personagens que aparecem mais nos santinhos, e aqueles que aparecem mais nas novenas. Isso nos remete à idéia de que cada santo pode estar relacionado a um instrumento adequado de pedido ou de agradecimento. Isto é, cada um pode exigir uma forma determinada de culto. Santo Antônio, o padroeiro do convento, que havia aparecido apenas em quatro santinhos, foi disparado o primeiro colocado nas novenas. Já Santo Expedito, cujos exemplares de santinhos encontrados semanalmente eram milhares, teve apenas uma novena. Portanto, pode-se considerar que a novena seria uma forma consagrada de culto a Santo Antônio (ver Bonnet & Delestre, 1984), enquanto que os santinhos o se-riam para Santo Expedito. Existem assim formas adequadas de relacionar-se com

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cada santo, cujas especificidades é preciso conhecer para que se possa pedir-lhe e agradecer-lhe corretamente. A uns, deve-se destinar novenas, a outros, santinhos, a outros, velas etc.

Porém, há ainda mais um ponto em que os santos podem ser encontrados no convento. Trata-se da “Boutique Santo Antônio”, onde eles aparecem numa série de objetos oferecidos aos freqüentadores para compra. A “Boutique”, que é uma das barraquinhas do convento para atendimento ao público, é o local onde são vendidos livros, orações, estátuas de santos, medalhas, cruzes, água benta, fitas, postais do convento etc. E apesar do nome, há muitos artigos referidos a outros santos. Tentando mapear um pouco a diversidade encontrada, anotei o nome de medalhas, pendentes e anéis postos à venda, tal como inscritos nas etiquetas que os identificavam, e compus o quadro a seguir.

Quadro 3 – Personagens presentes em medalhas, pendentes e anéis da “Boutique” do convento.

Agnus Dei N. S. de Lourdes Santo Expedito

Anjo da Guarda N. S. do Carmo Santo Onofre

Arcanjo São Miguel N. S. do Perpétuo Socorro São Benedito

Bom Jesus da Misericórdia N. S. do Rosário São Bento

Cristo N. S. Medigório (sic) São Brás

Espírito Santo N. S. Três Vezes Admirável São Camilo de Lelis

Frei Fabiano N.S. do Bom Parto São Cosme e São Damião

Frei Galvão N. S. da Rosa Mística São Cristóvão

Menino Jesus de Praga Sagrado Coração de Jesus São Dimas

N. S. Aparecida Santa Bárbara São Francisco

N. S. da Cabeça Santa Clara São Geraldo

N. S. da Conceição Santa Edwiges São José

N. S. da Medalha Milagrosa Santa Rita de Cássia São Judas Tadeu

N. S. da Paz Santa Terezinha São Pedro

N. S. das Graças Santo Antônio São Sebastião

O quadro não é exaustivo, pois não contém a descrição de todos os tipos de material vendido na barraca, nem o nome de todos os personagens que nela são encontrados. Mas ele procura cobrir ao menos alguns formatos específicos assumi-dos pelos santos – medalhas, pendentes e anéis –, que são de grande consumo entre

os freqüentadores. Esses objetos podem ser usados diretamente sobre o corpo das pessoas, ou guardados em bolsas, carteiras ou pedaços de tecido presos às vestes, como espécies de amuletos. Alguns freqüentadores compram os objetos na “Bou-tique” e os levam para serem bentos ou nas celebrações da Igreja, ou na portaria, para depois colocá-los “em uso”. Tratam-se, portanto, de santos “vendidos” no convento, e que vão daí para a casa das pessoas.

Quanto aos personagens listados, chamou-me inicialmente a atenção o fato de que se tratava de um conjunto mais amplo que o das estátuas e quadros da Igreja, ou do que aquele encontrado em santinhos e novenas, embora alguns personagens fossem os mesmos. Portanto, apesar de ser uma barraca do convento, ela não se atinha apenas a figuras centrais do catolicismo e do franciscanismo.

Por outro lado, se na barraca encontravam-se à venda objetos referidos a vários santos e elementos religiosos, mesmo assim essa variedade representava um subconjunto bastante restrito na comunidade virtualmente infinita de santos e símbolos católicos. Assim, teria havido uma “seleção” do material oferecido na barraca, e alguns critérios teriam operado nessa escolha. Procurei identificar que critérios seriam esses, tentando agrupar o que foi encontrado em algumas categorias: santos que têm igrejas no centro do Rio (Divino Espírito, N. S. da Conceição, N. S. das Graças, N. S. do Carmo, N. S. do Rosário, Santa Rita de Cássia, Santo Antônio, São Camilo, São Francisco, São Jorge, São José, São Sebastião), santos especia-lizados em cura (Brás, Luzia, Camilo, Galvão), santos ligados ao franciscanismo (Francisco, Clara, Antônio, Benedito, Galvão e Fabiano), os que sincretizam, ou seja, ligados a culto afro-brasileiros (Antônio, Benedito, Bárbara, Jorge, Sebastião, Cosme e Damião, N. Senhora), santos “antigos” no Brasil, i. é, com a devoção presente desde o período colonial (Bento, Brás, Luzia, Benedito, Antônio, etc) versus devoções século XIX (Medalha milagrosa etc) versus devoções do século XX / XXI (Fabiano, Galvão, Rosa Mística, Medjugorge etc).

Porém, acompanhando o funcionamento de fato da barraca, tive a impressão do que mais do que critérios teológicos ou pastorais, era a demanda dos freqüen-tadores, isto é, os interesses dos possíveis compradores, que orientava a seleção desses itens. Principalmente quando identifiquei uma dinâmica de incorporação de “novidades” na “Boutique”.

Quando compus o quadro, indaguei das vendedoras quais os itens mais vendi-dos, e me foi dito que, depois de Santo Antônio, São Bento e São Judas seriam os personagens mais procurados. Alguns meses depois, no final do semestre, houve uma verdadeira explosão de vendas de um artigo que nem mesmo constava da lista anteriormente levantada: os terços-pulseira de “N. S. Desatadora de Nós”, uma invocação da Virgem Maria que chegava ao Estado do Rio de Janeiro com muito sucesso. O fato de essa devoção estar ausente da lista indica por um lado os limites do quadro que havia feito, na verdade um registro de um momento do

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convento, uma espécie de instantâneo. Por outro lado, ele demonstra a velocidade da incorporação de novas devoções na Boutique, isto é, a possibilidade de um rápido amoldamento do conjunto de santos oferecidos na barraca, numa tentativa de acompanhar os “usos sociais” dos santos feitos pelos freqüentadores.

Mas se confrontarmos os personagens da lista da Boutique aos encontrados nos santinhos e novenas, vemos que, apesar de haver mais personagens na primeira, sua seleção parece ser, do ponto de vista da santidade não oficial, mais restrita que os santinhos. Os únicos personagens não canonizados são os franciscanos fr. Galvão e fr. Fabiano, e não há referências explícitas a outras religiões. O grau de flexibilidade que há na Boutique em relação à inclusão de devoções de sucesso não significa uma incorporação integral de todas as referências ou demandas trazidas pelos freqüentadores, pois personagens ou elementos mais ambíguos, como as Treze Almas Benditas, são deixados de lado. Parece então que a Boutique funciona como um espaço de mediação entre o totalmente autônomo e o hierárquico: é através dela que devoções da moda, ou de grande popularidade, são incorporadas e legitimadas no convento. Já as devoções ambíguas são excluídas.

Os três pontos onde os santos se materializam no convento – a parte de destaque da Igreja, com estátuas e quadros, a parte “periférica”, com santinhos e novenas, e a Boutique, com os santos como objetos a serem comprados, – apresentam con-juntos de personagens que não coincidem inteiramente entre si. As variações entre eles podem ser explicadas pelo tipo de controle diferente que sofrem por parte da hierarquia religiosa, mas também dos interesses que norteiam a lógica de formação desses conjuntos. Cada um deles está submetido a um maior ou menor controle por parte dos frades, e cada um possui regras próprias de inclusão, exclusão e manutenção de personagens. Enquanto na igreja “oficial” são colocados poucos santos, que afirmam a identidade católica e franciscana do templo, a barraca e os espaços intersticiais da igreja são ligados aos usos dos santos pelos freqüentado-res, e, portanto, comportam personagens que abrangem um horizonte mais amplo. É como se os santos da igreja fossem marcados pelo enraizamento, enquanto os demais seriam marcados por uma movimentação.

Porém, mesmo entre esses dois últimos focos há distinções: a Boutique é um espaço “aberto” aos usos sociais dos santos no sentido de ser concedido para isso, mas permanece sob o controle clerical, ainda que não tão estrito como o das imagens da Igreja. Já quanto às novenas e santinhos deixados pelos devotos, trata--se de um espaço “ocupado” pelos próprios freqüentadores, no sentido de ter sido apropriado para isso, e não é passível de nenhum controle para a incorporação de um novo personagem, embora eles permaneçam no local apenas por pouco tempo. A relação entre os usos dos santos e o material colocado em exposição se dá de forma imediata, sem mediações: é o próprio interessado que toma a iniciativa de introduzir e deixar o material no local. Por outro lado, tanto os santos da periferia

da Igreja como os da Boutique tendem a se movimentar, isto é, a entrar e sair do convento, por oposição aos santos de destaque na Igreja, que permanecem no local. Mas enquanto os da boutique, objetos comprados pelos devotos para serem levados para casa, realizam um movimento de dentro para fora do convento, os santinhos e novenas fazem um percurso inverso, e são trazidos pelos devotos de fora para dentro, isto é, das gráficas onde foram comprados, ou das máquinas de fotocópia que os reproduziram, para o convento, a fim de serem deixados no local para que outros os levem.

A análise de um quarto lugar onde os santos podem ser encontrados no con-vento, embora de acesso restrito, pode servir de contraponto para uma melhor compreensão da dinâmica de incorporação/exclusão de santos em um panteão católico. Trata-se da Igreja de São Francisco da Penitência, que como foi dito no capítulo 2, pertencente à VOT, e se localiza ao lado da Igreja de Santo Antônio. Essa igreja tem passado por um processo de restauração, e, em 2001, começava a ser parcialmente reaberta aos visitantes, ainda que apenas durante determinados horários.

Na primeira vez que visitei a Igreja de São Francisco durante o campo, impressionou-me sua qualidade enquanto “museu”, isto é, a beleza das peças que continha – a coleção de imagens de roca,7 os adereços litúrgicos para procissões, os entalhes da nave, e as imagens de santos expostas na Igreja. Mas as imagens contidas no templo chamaram minha atenção não só pelas qualidades estéticas, ou pela antigüidade, e sim principalmente porque mesmo depois de um certo período de socialização com os santos, não consegui reconhecer os personagens que nelas estavam representados. Foi apenas ao ler as inscrições sob elas que pude saber a que santos se referiam: São Vicente Ferrer, São Luís – Rei de França, Santa Delfi-na, São Gonçalo do Amarante, Santa Rosa do Viterbo, São Gualter, São Francisco de Assis, São Domingos, São Elezeário (sic), Santa Isabel – Rainha de Portugal, São Roque, Santa Bona, Santo Ivo e Santo Lúcio, e no altar, um Cristo Seráfico,8 diante do qual São Francisco, ajoelhado, recebe seus estigmas. Mais tarde descobri que esses personagens tinham sido em sua maioria membros da Ordem Terceira Franciscana, canonizados. Mas o que gostaria de destacar desse conjunto é o fato de que, salvo São Francisco, esses santos não estavam presentes em nenhum outro lugar do convento.

A sensação que me invadiu diante deste fato é a de que se tratava efetivamente de um “museu”, pois os santos que ali estavam representados pareciam ter caído em esquecimento. Os usos sociais dos santos, portanto, não implicam apenas na incorporação de novidades e na divulgação de modismos. Há também santos que são excluídos, isto é, que saem de cena. Se, do ponto de vista canônico, um santo é sempre um santo (a menos que seja comprovado como uma ficção histórica, como uma figura lendária), do ponto de vista de sua importância para os devotos, isto

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é, para os grupos sociais que deles fazem uso, é possível ocorrer o abandono de devoções. Elas podem ser deixadas de lado, e permanecer latentes, até que em um novo contexto a atenção caia de novo sobre elas, ou mesmo podem permanecer “vivas” apenas nos registros canônicos e hagiológicos, sendo pouco ou nada cul-tuada pelos fiéis. Portanto, no conjunto virtualmente infinito da comunidades dos santos, os grupos sociais recortam grupos e subgrupos, com os quais estabelecem vínculos, e sobre os quais realizam acréscimos e reduções.

Permanece, entretanto, uma curiosidade quanto ao fato de que em um convento franciscano dedicado a Santo Antônio, haja pessoas interessadas em tantos outros santos e santas, mesmo tendo sido dito que a maior parte dos freqüentadores vêm ao local principalmente por se sentirem ligadas ao padroeiro. A existência dessa variedade, isto é, a amplitude do leque de santos e santas encontrados no convento, só pode ser explicada a partir da prática de “combinar” devoções, a qual a pesquisa permitiu analisar com maior detalhe.

2 – A combinação de devoções

Todos os santos são o Cordeiro de Deus que vieram (sic) à Terra ajudar os homens, fazem o bem sem olhar a quem (r238: mulher, 49 anos, Jacarepaguá).

Santo Antônio é muito bom, eu gosto muito dele. Se ele viesse na terra eu dava um abraço e um beijo nele, mas gosto dos outros [santos] também (r42: homem, 31 anos, São Cristóvão)

Os freqüentadores do convento, mesmo os que se identificam como “devotos fervorosos” de Santo Antônio, costumam ter devoções também a outros santos, portanto uma das práticas mais recorrentes no local era a de combinar a devoção a mais de um deles. Esse fato não é uma novidade nos estudos de culto aos santos, isto é, ele não ocorre apenas no convento, entretanto, é preciso analisar a forma específica que ele assume nesse contexto, porque se trata de uma questão signifi-cativa para os freqüentadores do local e porque é importante para a compreensão de detalhes da relação santo-devoto.

A prática de combinar devoções apareceu tanto na observação em campo, onde as pessoas, quando falavam de suas devoções, referiam-se a Santo Antônio, mas também a outros santos e santas, como no questionário aplicado na festa, em que foi perguntado aos entrevistados/as se tinham outras devoções, e quais seriam estas. A maioria deles afirmou ter e, em média, cada pessoa mencionou a devoção a dois personagens, além de Santo Antônio.9 Os santos que apareceram mencionados mais vezes são apresentados no quadro a seguir:

Quadro 4 – Outras devoções do entrevistado/a

Devoções refs.

Nossa Senhora, Virgem Maria, Maria, Imaculada Conceição etc. 111São Judas Tadeu 29Jesus 24São Jorge 24Santo Expedito 21Santa Rita 19São Francisco de Assis 15São Bento 11Santa Edwiges 11São José 11São Sebastião 11Santa Terezinha 9Deus 8São Cosme e Damião 6São Benedito 5

Embora no quadro estejam apenas os personagens mais citados, as referências totalizaram 48 personagens, incluindo santos não oficiais da Igreja, e figuras de outras religiões.10 Ao comparar-se as “outras devoções” citadas pelos freqüenta-dores, aos grupos de santos mencionados anteriormente nesse capítulo, vê-se que elas envolvem um número bem maior de personagens – talvez porque muitos deles apareceram com apenas uma referência.

O que parece estar em jogo no processo de combinação de devoções é uma tentativa de ampliar para o devoto o raio de proteção que os santos podem lhe oferecer. É como se as combinações oferecessem a cada pessoa a possibilidade de compor um panteão próprio, que contemple suas características e necessidades individuais.

Para alguns dos entrevistados, essa prática é explicada pelo pragmatismo, isto é, pela “opção por resultados” na devoção:

Acredito em todos os santos, santo que faz bem para mim eu acredito (r. 27: mulher, 60 anos, Nova Iguaçu).

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203202 A dinâmicA do sAgrAdo

Tenho devoção por São Jorge, por fazer uma comparação a Ogum, e a Santo Expedito, por ser o santo das causas impossíveis. Pois todos os pedidos que eu faço a esses santos são respondidos de forma imediata (r 60: mulher, 32 anos, Copacabana).

A combinação de devoções oferece duas possibilidades de aumentar para o devoto a proteção que os santos lhe oferecem. Ela pode “somar” o poder de diver-sos santos, agrupando suas forças para oferecer “mais” proteção ao devoto, o que é útil principalmente na obtenção de uma graça particularmente difícil, ou diante de uma atribulação grave que o ataque:

(...) Minha filha teve depressão de três meses, chegou até querer se suicidar. Pedi a [São Judas Tadeu], e a tudo que é santo. Agora, ela está boa (r 129: mulher, 62 anos, Jacarepaguá).

Ou, alternativamente, a combinação de devoções pode não apenas “somar” a força dos santos, mas “unir” seus campos específicos de intervenção. Ser devoto de vários santos de especialidades diferentes – sejam estas a proteção de determinadas profissões, a cura de doenças específicas, a defesa de partes do corpo – pode tornar a pessoa resguardada nas diversas áreas em que seus santos protetores atuem:

Sou devoto de Nossa Senhora Aparecida por minha mãe. E de Santa Luzia, pela minha vista (r 167: homem, 85 anos, Porto Alegre-RS).

Sou devota de Nossa Senhora da Glória, porque também ajudou para eu ter um filho. E Nossa Senhora Aparecida, pela minha mãe (r 191: mulher, 25 anos, Ilha do Governador)

Portanto, seja somando a força dos santos, seja unindo suas capacidades dife-rentes, combinar devoções é uma estratégia para garantir maior segurança diante dos reveses da vida.

É interessante notar como essa prática dos devotos parece semelhante às invocações presentes nos discursos e celebrações promovidos pelo próprio clero. Seja em missas, seja em bênçãos, os frades costumam invocar, isto é, chamar a participar da celebração uma série de personagens, afim de que nele manifestem seu poder como intercessores. E se Santo Antônio é uma presença constante nes-sas invocações, outros santos e santas também foram citados, tanto em função do franciscanismo, como das mudanças no calendário litúrgico. Assim, fr. Lutécio invocou, na abertura de uma paraliturgia, a Santíssima Trindade e o perdão de Deus, e, para dar a bênção, Santo Antônio e os Santos Mártires do Oriente. Já outro dia, Fr. Marcílio invocou São Francisco, Santa Clara e o Beato Fr. Galvão na hora da

benção. E, sucessivamente, uma série de exemplos poderiam ser dados dos padres invocando vários santos e santas para “participarem”, em alguma medida, de suas orações, bênçãos, etc. Assim, é como se a combinação de devoções reproduzisse no planos dos fiéis as invocações sacerdotais.

Um outro aspecto a destacar é que as devoções em jogo numa combinação, podiam se apresentar de forma hierarquizada, isto é, com um santo ou santa ocu-pando o papel de devoção principal, e os demais, de secundárias.

São Jorge e Santa Edwiges são meus santos preferidos, mas quando eu es-tou perto de uma igreja eu tenho mania de entrar. Eu gosto de igreja (r36: mulher, 41 anos, Anchieta).

Santo Antônio apareceu alternativamente nas duas posições.

Depois de São Jorge, eu gosto muito de Santo Antônio, ele costuma me socorrer quando eu preciso (r52: homem, branco, 27 anos, Rocha).

Todos os santos têm uma história que toca o coração, mas tem um santo que a gente tem um envolvimento mais profundo, este é o caso de Santo Antônio para mim (r28: mulher, 49 anos, Maracanã).

Essa hierarquização podia aparecer numa espécie de demarcação mais forte das relações estabelecidas com os diferentes santos. Algumas pessoas fizeram questão de distinguir os santos de que eram devotas dos demais santos e santas dos quais gostam e/ou acionam. Assim, a relação de devoção a um santo aparece com uma certa especificidade nas práticas de combinação de santos.

(...) Sou devota de São Judas Tadeu, mas ando com uma comitiva de santos dentro da minha bolsa (r 219: mulher, 63 anos, Méier).

São José é o de devoção, mas gosto de todos os outros santos católicos (r210: homem, 53 anos, Realengo).

Algumas pessoas, entretanto, pareciam não estabelecer distinções entre os santos, isto é, nas relações que estabelecem com eles. A comunidade de santos seria, então, composta por personagens considerados equivalentes. Esse tema parece remeter tanto a uma tentativa de cercar-se ao máximo da proteção de todos os santos, como a uma certa lógica religiosa de equiparação de seu poder.

Acredito em todos, porque todos são um só (r 28: mulher, 49 anos, Maracanã).

Gosto de todos [os santos]. Porque se existe um, pode existir todos (r48: homem, 77 anos, Leblon).

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205204 A dinâmicA do sAgrAdo

Teoricamente, essas estratégias de combinação poderiam se desdobrar ao infinito, deixando um devoto “coberto” diante de todo e qualquer perigo que o possa atingir. Mas – e aí vem o outro lado dessa processo aparentemente simples de combinação – a relação com os santos implica “obrigações” para com eles, isto é, deve-se “homenageá-los”, “prestigiá-los”, “comparecer à sua festa”, “fazer-lhes oferendas” (expressões que apareceram na fala dos agentes para explicar o que vinham fazer no convento), a fim de manter boas relações com eles. Por isso, quanto maior for o número de santos a que uma pessoa se considerar vinculada, maior será o conjunto de obrigações das quais ela terá que dar conta, sob pena de desfeitear algum santo, isto é, de não cumprir com a parte que lhe é prescrita nessa relação.

Combinar devoções é, portanto, uma prática que só adquire sentido se o devoto que a realizar se mantiver dentro dos limites de sua capacidade de cultivar suas relações com os santos, de cuidar delas. Caso contrário, ele não poderá se sentir seguro em contar com sua ajuda nos momentos de necessidade. Mas, à medida que for capaz de cumprir corretamente as obrigações que a entrada nos circuitos das devoções envolve, a pessoa pode desenvolver quantos vínculos quiser ou for capaz de gerir. Mesmo que a obrigação funcione como uma espécie de limite à combinação de devoções, esse procedimento permanece aberto ao devoto na medida de suas capacidades de manter as relações azeitadas.

Por outro lado, essas devoções múltiplas se tornam possíveis porque a relação com os santos implica fidelidade, mas não exclusividade. É legítimo que um devoto possa relacionar-se simultaneamente com vários personagens do panteão católico. A possibilidade de ocorrência de diversas relações simultâneas lembra que o que está em jogo na relação com os santos é um tipo ampliado de fidelidade, uma fidelidade inclusiva, que permite englobar diversos personagens às devoções de cada um.

Notas1 Cristo aparece no templo como “Menino”, nos braços de Santo Antônio, Nossa Senhora e São José. Ele aparece também enquanto adulto, mas apenas em cenas associadas à Paixão: surge como “crucificado”, “flagelado” e “morto”. As ênfases na Paixão e na Infância de Cristo podem ser vistas como características da espiritualidade franciscana e da matriz ibérica do catolicismo brasileiro, pois ambas sublinhavam particularmente esses dois momentos de sua vida. Já Nossa Senhora da Conceição é a padroeira dos franciscanos. Assinale-se ainda a desvantagem de São José diante da Mãe e do Filho: há apenas uma imagem sua, e num local não exclusivo, por opo-sição aos outros dois, que possuem mais de uma imagem, e em posições de destaque. 2 Fr. Galvão (São Paulo, 1739 – São Paulo, 1822), cujo título oficial é “Beato fr. Antônio de Sant’Ana Galvão, Confessor”, tornou-se em 25 de outubro de 1998 o primeiro beato brasileiro. Filho de uma família rica, renunciou ao mundo e ingressou na Ordem Franciscana, tendo feito seu noviciado e ordenação no Rio de Janeiro. Mais tarde, retornou a São Paulo, onde fundou, em 1774, juntamente com Madre Helena Maria do Espírito Santo, o Mosteiro concepcionista de

Nossa Senhora da Luz, onde viveu por cerca de 50 anos. Sua sepultura, na capela do mosteiro, é visitada até hoje por centenas de pessoas em busca de graças e milagres, e também à procura das prodigiosas “pílulas de fr. Galvão”.

As pílulas originaram-se num pedido de ajuda feito ao frade por um senhor aflito, cuja mulher estava em risco de vida durante o trabalho de parto. Fr. Galvão escreveu em três papeizinhos o versículo do Ofício da Santíssima Virgem “Post partum Virgo Inviolata permansisti: Dei Genitrix intercede pro nobis (“Depois do parto, ó Virgem, permanecestes intacta: Mãe de Deus, intercedei por nós”). Deu-os ao homem, que por sua vez levou-os à esposa. Assim que a mulher ingeriu os papéis, dobrados em formato de pílula, a criança nasceu normalmente. A cura pela ingestão dos papéis teria se dado também com outras pessoas, acometidas por diferentes doenças. Desde então, as pílulas são muito procuradas pelos devotos de fr. Galvão (Andrade, 2002).3 Irmão leigo (Portugal, 1676 – Brasil, 1747) foi durante 38 anos porteiro e enfermeiro do con-vento. Sua capacidade de curar e sua resignação diante da erisipela que o acometeu por mais de 30 anos valeram-lhe reputação de santidade. Consta que operava milagres ainda em vida. Quando morreu, a avidez por relíquias suas foi tão grande que se tornou necessário revesti-lo várias vezes. Atualmente os seus ossos estão depositados no convento de Santo Antônio, sob o altar de Nossa Senhora dos Anjos. Foram feitos 28 depoimentos sobre curas alcançadas por seu intermédio. A devoção a fr. Fabiano perdura até hoje: ele é invocado em casos de doença e de desemprego, em situações aflitivas de angústias e tribulações (Tonin, 2001).4 Por ordem decrescente de recorrência, os personagens dos santinhos foram Santo Expedito, Nossa Senhora, Jesus, Santo Antônio, São Judas Tadeu, Treze Almas Benditas, Santa Edwiges, Santa Rita de Cássia, Bem-aventurado José Maria Escrivá, Pe. José Kentenich, Santa Bárbara, Santa Luzia, Santa Terezinha.5 Também em ordem decrescente, os personagens da novena eram Santo Antônio, São Judas Tadeu, Jesus, Nossa Senhora, Deus, Santa Rita dos Impossíveis, fr. Galvão, Santa Filomena, Santo Expedito, São Jorge, Treze Almas Benditas.6 Buscando as almas, isto é, procurando saber do que se tratava, encontrei apenas suas orações e os procedimentos para usá-las, mas não sua definição. Há uma página da internet que as associa a 13 mortos não-identificados no incêndio do edifício Joelma, em São Paulo, na década de 1970 (www.fantastico.globo.com/Fantastico). Mas as observações contidas em Medeiros (1995: 67 e segs) permitem perceber que se trata de um culto mais antigo, embora esse autor também não traga sua definição. O culto é menosprezado em circuitos católicos mais clericais por ser associado ao espiritismo.7 As imagens de roca são imagens articuladas, sem roupas, para que os devotos possam vesti-las ritualmente da forma adequada às celebrações religiosas em que participarão.8 O Cristo Seráfico é um Cristo crucificado alado, com três pares de asas. A história conta que São Francisco, após cinco dias de jejum e oração no Monte Alverne teve uma visão com o Cristo Seráfico, quando recebeu, como sinal de santidade, os mesmos estigmas que ele.9 Dos 250 entrevistados, 197 pessoas disseram “sim”, sendo que 181 fizeram referências concretas a nomes de santos e santas, enquanto que outras 16 pessoas disseram apenas crer em “vários santos”, ou em “todos os santos”. Foram feitas também referências a entidades de outras religiões.10 Os santos que também foram mencionados, embora menos vezes, são: com quatro referências – Santa Bárbara, Santa Clara, São Jerônimo, Santa Luzia. Com três – São Pedro. Com duas – Santa Anastácia, São João, São Miguel Arcanjo, Santana, Santo Agostinho. E com apenas uma

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207206 A dinâmicA do sAgrAdocApítulo 9

A relação com os santos no convento

Quando no questionário aplicado na festa do santo as razões para o comparecimento ao convento foram indagadas aos freqüentadores, a principal resposta obtida foi de que as pessoas estariam alí para pedir algo a Santo Antônio.

Vim pedir a benção a Santo Antônio, para abençoar minha família e meu casamento (r60: mulher, 33 anos, Centro).

Vim para pedir um grande amor em minha vida (r 88: mulher, 20 anos, Barra da Tijuca).

Vim pedir proteção espiritual e material, pois minha vida financeira está muito ruim (r114: mulher, 38 anos Tijuca).

Outros entrevistados afirmaram estar presentes no convento não para pedir, mas para agradecer a Santo Antônio as graças obtidas, as coisas dele recebidas:

Hoje eu estou triste, mas mesmo assim, vim agradecer graças que obtive. Eu sou devota fervorosa, pois tudo que eu peço minutos depois eu recebo as graças (r105: mulher, 25 anos, Irajá).

Sou devota de Santo Antônio e porque consegui uma graça, vim agradecer. Meu filho conseguiu um emprego (r.14: mulher, 41 anos, Leme).

Alguns disseram estar fazendo as duas coisas na mesma ocasião, isto é, ao irem ao convento homenagear o santo em sua festa, estavam simultaneamente pedindo e agradecendo algo:

Vim para poder agradecer as graças obtidas e para fazer um pedido em relação à questão financeira (r.80: mulher, 42 anos, Itaipu).

referência: Santo Amaro, Anjo da Guarda, Anjos, São Brás, São Camilo de Lelis, Deuses gregos e magia, Divina Misericórdia, Santa Filomena, São Francisco de Sales, São Isidoro, São Januá-rio, Krishna, São Lázaro, São Luís Gonzaga, Santa Margarida Maria, São Miguel de Alcântara, Santa Mônica, São Raimundo Nonato, Santa Rosa de Lima, Santíssima Trindade, São Categeró, Santa Sarah, Santa Tereza. “Krishna” e “Deuses Gregos e magia” Na linha de associação a outras religiões, houve também duas referências a São Jorge como Ogum. “Santa Anastácia” é uma referência à escrava Anastácia, que não é canonizada, isto é, que é apenas uma “santa popular”.

209208 A dinâmicA do sAgrAdo

[Vim] porque gosto de festa católica. Hoje, vim agradecer as bênçãos de Santo Antônio e também pedir (r.144: mulher, 18 anos, São Cristóvão).

Também nas conversas informais e nas entrevistas de campo, a situação de pedir-agradecer apareceu em diversos depoimentos, ou comentários.

Joaquim: Toda vez que venho aqui, toco no quadro de santo Antônio que é um quadro muito antigo, que tem uma grande energia, que é energizado. Passo e toco, agradecendo por ter podido vir mais uma vez.Renata: Mas então você não pede?Joaquim: Peço também. A gente está sempre pedindo, porque estamos sempre carentes. Hoje, por exemplo, pedi pela pessoa que me trouxe até o convento, porque ela está muito mal, teve um derrame e tem 40 anos... E está sendo cuidada por uma filha de 17 anos que teve que parar de estudar para tomar conta da mãe, então é uma pessoa que precisa muito, então eu pedi por ela.

Nota-se, portanto, na fala dos freqüentadores do convento, a importância dos pedidos e agradecimentos feitos ao santo para acionar a relação com ele, o que por sua vez remete à centralidade que as graças (ou milagres, ou bênçãos, ou benesses...) por ele concedidas assumem para aqueles que os cultuam, pois afinal é para obtê-las que os pedidos são realizados, e é em retribuição a elas que os agradecimentos são feitos.

Essas observações oferecem uma chave de leitura para a relação com os santos. Trata-se de uma relação articulada por pedidos e agradecimentos, em torno de gra-ças que o santo já concedeu, ou que é potencialmente capaz de vir a conceder, seja realizando-as diretamente, seja “mediando” sua concessão diante de outras figuras celestes aptas a realizá-las. Assim, a relação com os santos envolve trocas rituais, isto é, um sistema de prestações e contraprestações, que as visitas ao convento visam inaugurar ou re-alimentar.1 Essas trocas não esgotam todas as dimensões da relação com os santos, mas elas permitem vê-la em operação, desdobrando-se no tempo.

Portanto, neste capítulo irei abordar as relações com os santos através das análises de pedidos e agradecimentos feitos a Santo Antônio. A obtenção em cam-po de um material mais abundante sobre os pedidos possibilitou-me desenvolver uma análise mais detalhada a seu respeito, o que não significa atribuir-lhe maior importância em relação aos agradecimentos. Por outro lado, o grande número de referências sobre o pedido permitiu-me ainda desenvolver uma análise sobre a experimentação dos santos como parte constitutiva da relação com eles estabele-cida. Assim, é sobre pedir, experimentar e agradecer que se constrói esse capítulo.

1 – Pedir

Os pedidos aparecem acentuadamente no convento, ou melhor, embora seu conteúdo permaneça oculto e individualizado, há uma série de celebrações cole-tivas no local nas quais ele aparece com destaque. É o caso da Benção de Santo Antônio, que como vimos no capítulo 3, é uma cerimônia de pedido de proteção ao santo. É o caso também da Trezena de Santo Antônio, cujo objetivo explícito é que cada participante coloque ao santo mentalmente um pedido individual que deseje ver realizado. Na Trezena, há ainda os pedidos escritos ao santo, entregues ritualmente a ele durante o ofertório da missa.

Para fazer um pedido, há uma série de cuidados a serem tomados quanto à forma e ao conteúdo, a fim de tentar garantir que ele seja atendido. Primeiro, há que se pedir a coisa certa ao santo certo, isto é, relacionar as especificidades do que se deseja alcançar às qualidades daquele a que se vai demandar. Daí a importância de se conhecer a vida e os atributos de um santo.

Mas a escolha de um determinado santo e não de outro para se fazer um pedido pode se efetuar não apenas por sua especialidade, mas também por outros: a pessoa que pede pode ser sua devota, isto é, possuir uma relação profunda, permanente e consolidada com ele, e então lhe pede tudo, não apenas sua especialidade. Ou, no caso de pessoas não devotas, porque resolveram experimentá-lo – pela indicação de alguém de seu círculo de relações, ou pela fama por ele adquirida, isto é, por sua reputação de milagroso, de poderoso. Ou ainda porque receberam um sinal de que deviam invocá-lo. Falarei adiante em detalhe sobre a experimentação.

A segunda precaução no pedido é que se deve usar uma forma apropriada para pedir ao santo em questão. Esse tema apareceu com clareza nos santinhos, em que para cada santo representado na frente, há uma oração particular no verso, “sua” oração, acompanhada das prescrições para ser rezada corretamente. Apareceu também na série de formas específicas de pedir a Santo Antônio, que circulam e operam no convento, como as novenas, o responso, a ladainha, a oração da treze-na. Portanto, há fórmulas consagradas de endereçar um pedido a um santo, cujos resultados são comprovados pela tradição, as quais os interessados costumam procurar conhecer e usar.

Mais uma tentativa de reforçar o pedido é tentar sensibilizar o santo para atendê-lo. Os atos de fala e atos corporais endereçados aos santos podem ser lidos como oferendas a eles realizadas, em formas de preces, homenagens, gestos de submissão e de carinho, a fim de manter uma boa relação com eles, de estimulá--los a conceder aquilo que for pedido. Deve acontecer, portanto, em cada pedido, uma certa sedução do santo, no sentido de torná-lo propenso a conceder a graça demandada.

Um destaque ainda precisa ser feito quanto aos pedidos. Há uma outra forma

A relAção com os sAntos no convento

211210 A dinâmicA do sAgrAdo

de apresentar uma demanda a um santo, que na fala dos entrevistados apareceu como distinta do pedido, que é a promessa. Algumas pessoas não falaram de fazer pedidos, mas sim de fazer promessa. Apesar da aparente semelhança entre as duas expressões, elas não se recobrem totalmente, isto é, não são as mesmas coisas que entram em jogo em cada uma delas. Essa distinção apareceu inclusive em uma resposta do questionário, quando um entrevistado criticou as promessas:

Vim porque sou devoto de Santo Antônio. Hoje, vim à missa. Eu não preciso de fazer promessa, isso é chantagem com o santo. É só pedir que ele me dá (r.143: homem, 60 anos, Flamengo).

Infelizmente os dados de campo não permitem a análise mais profunda de um conjunto de diferenças entre os dois termos, mas ao menos uma surgiu com destaque, e diz respeito à retribuição prevista para cada um deles. Enquanto que o pedido é agradecido, a promessa é paga. Ninguém falou em “pagar um pedido”, mas vários disseram estar no local para pagar uma promessa.

A impressão que tive é que a promessa seria um pedido diferente, ou melhor, que seria um empenho de palavra, um compromisso, um voto, mais que um pedido. Ela envolveria uma maior precisão na definição de uma retribuição ao santo, em troca daquilo que se pretende alcançar. Por outro lado, ao ser “paga”, isto é, saldada, ela deixaria o beneficiário devidamente desobrigado com o santo, até uma próxima promessa. Enquanto que no pedido, a retribuição parece permanecer indefinida e associada à idéia de gratidão.

Voltarei a esse ponto no próximo capítulo, mas, enquanto isso, vejamos como aparece nos pedidos escritos a Santo Antônio a questão da sabedoria necessária para se fazer um pedido. Como se pede, o que se pede e para quem se pede são questões fundamentais para compreender a lógica que opera nos pedidos feitos a um santo.

Saber pedir

A análise de uma amostra de 500 pedidos escritos a Santo Antônio, entregues na Trezena, permitiu-me depreender que os temas em torno dos quais se pede a esse santo tendem a se repetir, girando em torno de um conjunto determinado de problemas. O santo é acionado para ajudar em relacionamentos afetivos (namoros, casamentos etc), sua grande especialidade; depois, na proteção da família, na saúde (tanto para recuperá-la, quanto para mantê-la), em dificuldades financeiras, para obter emprego, na libertação de vícios (tóxicos, álcool, fumo), na compra da casa própria, na resolução de processos na justiça, na aprovação em concursos (para emprego, ou para estudos), para ganhar na loteria.2 Embora haja alguns pedidos abstratos, como “a paz na Terra”, ou “o bem da humanidade”, a imensa maioria

dos pedidos versa sobre coisas concretas.Portanto, foi na forma do pedido que a questão da existência de recorrências,

isto é, de determinados padrões apareceu com clareza. As variáveis consideradas para a análise formal foram a maneira de invocar o santo, a forma de apresentar o pedido, os beneficiários do pedido, a identificação ou não dos emissores, o forma-to e o tipo do papel e a maneira de “entregá-lo” ao santo. Todos esses elementos serviram para a construção de distinções entre os pedidos escritos, e a meu ver eles expressavam diferentes graus de socialização na devoção para além, obviamente, daquilo que se referia a diferenças de domínio da própria escrita. (Heredia, 2002; Herberich & Raphael, 1982).

No manuseio e leitura do material escrito, fui aos poucos percebendo que eles expressavam uma distinção óbvia entre os que estavam acostumados a pedir (e não apenas pedir aos santos em geral, mas, pelas particularidades de expressões e pelo tipo de demandas, acostumados a pedir a Santo Antônio especificamente), e haviam desenvolvido uma certa estilística do pedido, e aqueles que pediam de qualquer jeito, sem demonstrar preocupação com a forma do pedido.

Os estilos “literários”, por assim dizer, assumidos pelos pedidos variavam entre a “carta”, a “prece de súplica”, a “lista de nomes próprios” (de vivos ou mortos que se que colocar sob a proteção do santo), ou a “escrita seca” do nome da pessoa com aquilo que ela deseja obter. E foi nos pedidos em forma de carta ou prece que apareceram mais elementos para analisar a etiqueta do pedido.

Na invocação, o santo apareceu ora como taumaturgo – “Santo Antônio me dê” –, ora como mediador – “Santo Antônio, peça [a Deus, a Jesus] por mim”. E às vezes, as duas possibilidades de tratamento surgiam no mesmo pedido, como nos exemplos abaixo:

Ó glorioso intercessor Santo Antônio, venho renovar a minha confiança em Ti ao entregar a recuperação, saúde de meu pai, Vítor. Tu e nosso Pai Eterno bem sabes o que está passando ele, assim também como é importante essa cura. Cure-o mais uma vez. Mostre novamente que nenhuma ultra-sonografia será necessária, e muito menos nenhuma cirurgia a lazer [sic]. Entrego-o a Ti, confiante na Tua intercessão junto a Teu grande e fiel amigo Jesus. Dê a ele muita alegria, paz, saúde. Obrigado por tudo Santo Antônio e permita uma recuperação física, espiritual, emocional, orgânica. Ó meu querido santo, em Ti posso crer, Tu me és fiel. Ajude-nos. Obrigada (doc. no. 1036).Glorioso Santo Antônio, eu gostaria de pedir a sua intercessão junto a Jesus, para Jesus restaurar o meu noivado com o Hermes. Santo Antônio, pede a Jesus para que ele se apaixone por mim, me ame, sinta admiração e desejo por mim. E Santo Antônio, fazei com que nós possamos ter um emprego estável, para que nós possamos ter segurança nesta parte financeira que tanto nos aflige nesses anos que estamos juntos. Obrigada por sua intercessão,

A relAção com os sAntos no convento

213212 A dinâmicA do sAgrAdo

junto a Jesus, Santo Antônio. E para que o Hermes não sinta mais nada pela Rosana, nem por nenhuma mulher (doc nº 1519).

Um sinal de socialização no culto quanto às invocações estaria justamente em chamar Santo Antônio por seu qualificativo mais recorrente: “glorioso”. A fórmula consagrada para referir-se a esse santo é: “ó meu glorioso Santo Antônio, fazei que...”. A segunda fórmula mais usada para chamá-lo é “meu querido”, mas esta não denota necessariamente contato com o culto, embora assinale que o emissor quer demonstrar um certo afeto pelo santo.

Nota-se ainda que a linguagem tende a assumir formas bastante distintas das conversas informais do cotidiano, considerando a fala do Rio de Janeiro, ou dos próprios agentes fora da situação de pedido ao santo. As diferenças expressam-se na utilização do vocativo e da segunda pessoa para referir-se ao santo, tanto no plural – “vós”, a mais comum, – como do singular – “tu”, que apareceu algumas vezes. Essa alteração na forma cotidiana, que surgiu como uma característica dos pedidos em estilo “prece de súplica”, poderia ter sido casualmente provocada pela passagem de expressões orais para o formato de texto escrito, visto que a capaci-dade de formalização (tanto pelo tipo de caligrafia, como pelo uso de normas de gramática e ortografia) é precária para muitos autores dos pedidos. Neste caso, acaba-se por escrever não o que se quer, mas o que se consegue. Porém, creio que o uso de uma forma incomum foi proposital, denotando que o que está em jogo em escrever um pedido a um santo é um outro tipo de conversação, que requer um outro tipo de linguagem, uma linguagem ritual, e não uma fala cotidiana (Tambiah, 1985, Peirano 2002).

Também nas invocações escritas apareceu a questão já mencionada da com-binação de devoções, com pedidos endereçados a vários santos. Trata-se de todo um panteão que pretende se acionar para um pedido, e Santo Antônio é chamado a agir em conjunto com outros personagens do panteão católico, notadamente Nossa Senhora e Jesus Cristo. As invocações coletivas podem estar somando poderes aos de Santo Antônio, ou ainda exercendo uma espécie de pressão sobre o santo, solicitando que ele haja em nome de um poder mais forte (Deus, Jesus):

Salve Santo Antônio, salve São Francisco de Assis, salve Santa Clara em nome do senhor Jesus estou esperando esta grande e poderosa vitória tão demorada. Senhor dame [sic] forças saúde livrame [sic] de doença grave intercedei A vossa madrinha Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Vos agradeço e louvo por todas as graças recibida [sic] e que ainda vou receber tudo que estou passando [sic] é sinal que a vitória será certa e grande Amem. Por Favor, abençoe estes nomes Amém. [segue uma lista de 13 nomes com-pletos] Muito obrigado meu bondoso Santo Antônio, em Nome do Senhor Jesus Amem (doc nº 1027 – grifos meus).

É preciso considerar também as variações quanto aos beneficiários do pedido: ele podia ser feito para uma pessoa só, ou para várias no mesmo papel; podia pedir a mesma coisa para todos os beneficiários, ou uma graça específica para cada um, de acordo com suas necessidades particulares. Portanto, havia uma prática instituída de “pedir para” outrem (fórmula que está presente inclusive na liturgia da missa, através da expressão “vamos rezar por...”) no local, pois o freqüentador assíduo do convento, principalmente o devoto fervoroso de Santo Antônio, torna-se para seus parentes e amigos um mediador por excelência de pedidos. Mas pedir para outrem apareceu em dois sentidos diferentes: ou a pessoa presente no convento pedia ao santo por outra pessoa porque havia sido solicitado que o fizesse, ou ela pedia por considerar que a outra pessoa precisava daquilo que estava sendo pedido. Há, assim, no pedido para outrem a conotação de um presente que se dá a alguém querido, tentando atender às suas necessidades.

Uma configuração singular de pedir para surgiu nos pedidos escritos: a prática mimética de pedir “como sendo” a pessoa que se quer ajudar, inclusive assinando em nome dela, assumindo sua personalidade diante do santo. Esse caso é contem-plado no pedido transcrito abaixo, escrito com a mesma letra, isto é, pelo mesmo emissor, que assume nele duas identidades diferentes (há mais bilhetes da mesma pessoa – mesma letra, mesmo papel – assinados com outros nomes):

Sto. Antônio, ajuda-me a ficar curado. Marcelo.Sto. Antônio, fazei que eu consiga a transferência para o Rio. Melissa (doc. nº 318).

O que não acontece é que um pedido seja assinado por uma coletividade – não há grupos como “a escola X”, ou “a comunidade Y”, ou “a família Z” assinando pedidos. Quando se pede por vários beneficiários, a pessoa que faz o pedido assina-o, por si mesma, pedindo por todos, ou ela assina como sendo cada uma das pessoas envolvidas. Não há um sujeito coletivo pedindo, embora haja pedidos anônimos e pedidos por coletividades. Existem pedidos em que uma pessoa pede por “todo o clero”, “os seminaristas do Brasil”, “a humanidade”, “o povo brasileiro”, mas apesar dos vários beneficiários, é sempre uma pessoa só que realiza os pedidos. Os pedidos com beneficiários abrangentes ou abstratos, como os que acabamos de citar, são exceções. O mais corrente é que se peça no circulo íntimo dos parentes (o que pode ser visto pelos sobrenomes das pessoas, ou pela citação dos graus de parentesco).

Na conclusão do pedido, encontram-se variações: o emissor pode ou não se identificar, e se decidir fazê-lo, pode colocar o nome completo (em alguns, há o nome completo e também o endereço), escrever as iniciais, rubricar ou colocar

A relAção com os sAntos no convento

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apenas o primeiro nome. E as diversas maneiras de terminar o pedido – com um agradecimento, uma despedida, ou dizendo amém – assinalam as variações entre um pedido mais “secularizado”, isto é, mais próximo à carta, e aquele que assume um formato mais próximo à prece.

Por fim, não apenas o texto escrito, mas o formato e o tipo do próprio papel, e a proporção entre a escrita e o espaço livre que nele é mantida, também são va-riáveis a serem consideradas. Dobrar o pedido ou deixá-lo aberto; usar o papel do convento, trazê-lo especialmente para isso de casa ou improvisar um bilhete com um guardanapo qualquer; ocupar a folha toda ou apenas uma parte dela,3 etc, são diferentes formas de se apresentar um pedido.

As repetições que fui encontrando em pedidos que pareciam mais “elabora-dos”, isto é, escritos com mais cuidado e preocupação formal, fizeram-me perceber que eles estavam associados a determinados temas e expressões mencionados nos sermões das missas, nas conversas do almoço, nas entrevistas a respeito de “formas corretas” de pedir. Uma preocupação comum desses pedidos mais “acabados” parece ser justamente “evitar o pedido seco”, isto é, tentar eufemizá-lo, tentar “diluí-lo” entre um número maior de informações.

Creio ser possível identificar algumas estratégias de eufemização do pedido, através da transcrição de alguns exemplos. Uma primeira estratégia seria mesclar pedidos com agradecimentos, demonstrando reconhecimento ao santo por algo que já foi concedido e/ou negando que o interesse maior seja pedir.

Pedir, pedir, pedir para abençoar o meu amor com o Flávio é fácil, agora quero não só pedir mais [sic] sim também agradecer por o nosso amor estar indo, ou melhor, caminhando muito bem, isso tudo vem dos méritos de Deus e dos meus pedidos a Santo Antônio. Muito obrigada. Vou continuar rezando e pedindo (doc. nº 1451).

Quanto a isso, pode-se ainda agradecer primeiro, para depois pedir. Neste caso, o agradecimento que antecede o pedido estabelece uma ponte com um pedido anterior, já concedido, construindo uma espécie de “encadeamento”, parecendo lembrar ao santo que se trata de uma relação já consolidada:

Oh! Meu glorioso Santo Antônio, aqui estou mais uma vez para vos agradecer por todas as vezes que lhe pedi e fui atendida em minhas preces, recorro hoje mais este pedido, de ver resolvido o problema da minha casa na rua Tinharé, sei que está difícil, mais [sic] com sua ajuda tenho fé que há de resolver.Confiante espero, não esqueçais de mim, oh! meu glorioso Santo Antônio.De sua devotaMargarida (doc nº 308).

Bom dia Sto. Antônio!Obrigada por tudo que tens me dado, a minha mãe também.Sto. Antônio, conceda-me a graça de conseguir o dinheiro para a operação, aluguel e pagto. as pessoas que devo, fora as prestações.Por favor, não desista de mim, não sou um caso perdido, sabes disso. Peço também saúde p/ todas as pessoas que precisam e minha mãe. Será que conseguirei um namorado até 13/06/2001? Claro que sim, se Deus quiser e Deus quer! Sua benção. 05/06/2001.Maria Helena [rubrica] (doc nº 175).

Além de haver nesses pedidos um esforço para ligar o pedido atual a eventos passados, há uma preocupação com a manutenção da relação no futuro: as expres-sões “não esqueçais de mim” e “não desista de mim” apontam para o desejo das pessoas em dar continuidade à cadeia de pedidos e agradecimentos que os liga ao santo.

Outra estratégia de eufemizar o pedido parece ser a de pedir primeiro pelos outros (“pedir por”), para só então pedir para si mesmo, demonstrando uma espécie de “altruísmo”, atitude valorizada positivamente no universo católico.

Peço ao meu querido Santo Antônio que interceda junto a Deus por [cita três nomes completos]. Peço muita paz e muitas felicidades.Peço a meu querido Santo Antônio que interceda junto a Deus por [outros quatro nomes completos, com sobrenomes diferentes do primeiro bloco], pedindo muitas felicidades, muita saúde e muita paz.Meu querido Santo Antônio peça a Deus por mim [Maria Lúcia Ribeiro Al-ves], meu marido João Paulo Silva Alves e minha mãezinha, Valéria Ribeiro, pedindo muita paz, saúde e muitas felicidades (doc. nº 1038).

Há formulações que inserem o pedido numa relação intensa com o santo, em que pedir se torna parte de um conjunto mais amplo de trocas, numa relação personalizada, de intimidade com o santo: tratá-lo por suas invocações distintivas, utilizar carinho e diminutivo na fala, tentar sensibilizar o santo para atendê-lo. Deve acontecer, portanto, em cada pedido, uma certa sedução do santo, no sentido de torná-lo propenso a conceder a graça demandada.

(...) Santinho bom, manda uma pessoa para alugar meu ap. (...) (doc. nº 127).

San Antonio querido,Te doy mil gracias por estar nuebamente en tu casa y suplicarte siempre que les cuides y protejas siempre a mis hijos en especial te pido por mi hija Alícia que se cure de ese problema y pueda tener su hijito en cuanto tu quieiras,

A relAção com os sAntos no convento

217216 A dinâmicA do sAgrAdo

Te pido tambien por mi y Pablo que nos ayudes en todo nuestros proyectos. Amen (doc. nº 1023)

Surgiu também uma outra forma de pedir que parece legitimar-se por en-grandecer o Santo e, contrastivamente, realçar a dependência do devoto para com ele, como que ressaltando a assimetria de posições e justificando pela pequenez e fragilidade dos seres humanos o pedido.

Deus vos salve meu Glorioso e amável Sto. Antônio, amigo como Vós não acharei, Rogo-vos alcançai de Deus Todo Poderozo [sic] auxílio para todas necessidades, tanto espirituais como corporais. Rogai por Nós, intercedei a Deus por [4 nomes]. Obrigada Sto. Antônio (doc. 191).

Mais uma estratégia parece ser a de subordinar-se à vontade do santo, negando toda e qualquer tentativa de coerção e deixar a ele a decisão sobre se o pedido feito é legítimo ou não, ou se será bom para o devoto ou não:

Meu glorioso Sto. Antônio, muito obrigado por tudo que fizestes por nossa família espero que cada dia faça mais, particularmente vos peço as minhas graças:Peço pela minha coluna pra que cada dia ela fique mais forte e principalmente reta. Peço pela minha inteligência, para que cada dia volte como era a anos atraz [sic]. Peço também pela saúde de todos os meus familiares. Se estas graças não forem possíveis eu entenderei, mas espero que esses pedidos se realizem.Muito obrigado! Sto. Antônio.Dorgival Magno Júnior (doc nº 419 – grifos meus).

Essas estratégias de eufemização do pedido não se tratam necessariamente de ações “conscientes”, mas da introjeção de determinados “valores” e “modelos” que circulam no convento e que são transmitidos nas interações no local.

A etiqueta do pedido

O detalhamento dos pedidos permitiu entender que a questão da sabedoria necessária para fazer um pedido aparecia de duas maneiras no convento. Primeiro, ela apareceu no sentido da realização de um pedido eficaz: uma pessoa acostumada a pedir a um santo é capaz de manejar estratégias para fazer o pedido de forma a conseguir que ele se realize. Trata-se no caso de deter o conhecimento das idios-sincrasias e capacidades de cada santo, de saber comovê-lo, de levá-lo a conceder aquilo que foi pedido.

Porém, “saber pedir” apareceu em um outro sentido, como no depoimento mais longo de Rita, citado a seguir. O que entra em jogo nesse caso não é tanto a eficácia do pedido, mas uma certa adequação:

Vou contar a graça de Santo Antônio ter feito minha mãe voltar a andar. Minha mãe, que era superativa, teve uma trombose e ficou em cadeira de rodas, cama de hospital. Mas como era muito alegre, animada, sofria muito por não estar podendo se adaptar, ela não conseguia se acostumar. Eu chorava sem parar, desesperada com o sofrimento de minha mãe. Um dia, eu disse: “Mãe, você vai voltar a andar. Você quer, você vai voltar. Se for a vontade de Deus, vai voltar”. Então vim aqui, com Santo Antônio, e pedi.Passou algum tempo, e no dia do meu aniversário, a mãe me chamou de manhã no quarto e estava de pé, andando. Provavelmente [estimulada] pelo fato de ser meu aniversário, e ela ainda não ter podido me dar os parabéns.Depois, ela viveu bem mais cinco anos, quando voltou a piorar. Fui de novo a Santo Antônio. Comecei a formular o pedido, e quando olhei para ele, parei. Ele estava olhando para mim como se dissesse: “Mas o que você está querendo? Cinco anos não foram o suficiente? O que você quer mais?” E eu, entendendo meu egoísmo, parei o pedido no meio. Meu egoísmo em querer que minha mãe ficasse viva de qualquer maneira, mesmo sofrendo. E me conformei (Rita, 6/3/2001, grifos meus).

O depoimento de Rita oferece uma série de elementos para a reflexão acerca da relação santo-devoto: o pedido feito no convento, diante do santo; a explicação semi-racionalizada para a mãe ter voltado a andar (justificando não apenas pela ação do santo, mas também por emoções e características pessoais da própria senhora, que a teriam estimulado: ser “superativa”, “alegre”, “animada”, “queria dar os parabéns por meu aniversário”), a menção ao fato de “olhar para Santo Antônio” e este “responder”. Mas o que gostaria aqui de destacar em sua fala é um conjunto de aspectos que dizem respeito a uma certa “etiqueta” (Pierson, 1966; Elias, 1985) reguladora do ato de pedir.

Rita foi duas vezes a Santo Antônio, num intervalo de cinco anos, para pedir que sua mãe voltasse a andar – e essa “ida até o santo” para enunciar o pedido pode ser reveladora de sua importância, atribuindo maior solenidade a um ato que poderia ser feito em casa. A razão principal alegada para pedir ao santo era o sofrimento da mãe “ativa”, que estava entrevada numa cama. Da primeira vez, pediu e foi atendida. Da segunda, o olhar do santo a impediu de concluir o pedido e fez com que ela “se conformasse”: Rita compreendeu, graças ao santo, que aquilo que a movia não era mais a preocupação com a mãe, mas seu próprio egoísmo, em querê-la viva e perto de si para sempre. E deteve-se no meio do pedido.

Pode-se levantar a suposição que se Rita tivesse chegado a formular o pedido

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até o fim, talvez Santo Antônio, um santo com fama de “poderoso” e “milagroso”, tivesse atendido à sua solicitação de qualquer maneira.4 Mas isso implicaria que ela não tivesse sido capaz de reconhecer os sinais que o santo lhe enviava, de que seu segundo pedido estava ultrapassando certos limites, isto é, de que ele não seria para o bem de sua mãe. Portanto, um devoto precisa desenvolver uma noção desses limites, e saber conformar-se com o resultado do pedido. É preciso “saber pedir” dentro de certos padrões, aprendizagem na qual o próprio santo pode desempenhar um papel disciplinador.

Trata-se, portanto, não de fazer qualquer pedido que dê certo, mas um pedido “apropriado”, um pedido adequado a um bom devoto, a um bom cristão, isto é, aquele que segue determinados padrões de linguagem e de conduta diante do santo, que reconhece balizas na relação de devoção, que se submete a juízos ou à vontade de personagens celestes e se conforma com o resultado do pedido, seja ele qual for. Tudo isso implica conseguir orientar-se por uma determinada “etiqueta do pedido”.

Potencialmente, toda e qualquer pessoa tem a possibilidade de pedir a um santo, e muitos o fazem. Mas nem todas as pessoas têm a capacidade de dominar a etiqueta do pedido. Os freqüentadores do convento são heterogêneos, têm diferentes interesses na visita ao local, e mantêm graus diferentes de envolvimento com a devoção aos santos e com o catolicismo. Seus pedidos, por sua vez, também não são iguais, sendo capazes de expressar, pela forma que assumem, os graus diferentes da ligação. Mas a descoberta de uma “etiqueta” do pedido remete ainda à idéia de uma hierarquização entre os devotos e suas formas de pedir, o que significa dizer que algumas delas são consideradas mais legítimas do que outras.

Porém, uma “etiqueta” é sempre relativa a um grupo que a consagra, ou seja, que detém um certo poder de estabelecê-la como um parâmetro para avaliar con-dutas, para hierarquizar comportamentos e tomá-los como sinais distintivos, para utilizá-la na determinação de posições em um campo de interações. Assim, no convento, é a partir dos frades, dos freqüentadores assíduos, dos devotos fervorosos e dos membros das associações de leigos, isto é, de pessoas comprometidas com o convento e mais dedicadas ao culto a Santo Antônio, que certos padrões de com-portamento de um “bom devoto” são utilizados para compor uma “etiqueta” para fazer os pedidos, a qual expressa uma certa idealização, ou melhor, modelização da conduta do devoto. Há modelos em operação, influenciados pela doutrina católica tal como localmente interpretada, que se estabelecem ou são reproduzidos como ideais. Esses parâmetros não são necessariamente introjetados por todos: há muita gente que continua a fazer pedidos ao santo sem seguir nenhuma etiqueta. Mas há aqueles que os incorporam e os propagam, assumindo padrões para o pedido.

Os devotos que dominam a etiqueta do pedido tendem a se representar como “mais devotos” do que os outros: mais próximos ao santo, desfrutando com ele de maior intimidade, e, portanto, mais capazes de conseguir graças que os demais.

Essa representação pode ser acolhida por outros freqüentadores do local, mesmo os que não dominam a “etiqueta do pedido”, que nesse caso tenderão a modelar suas práticas pelas condutas dos devotos de destaque, ou mesmo a “pedir que eles peçam por eles”.

Isso significa dizer que o convento é também um campo de disputas pelo controle do sagrado, pelo acesso ao santo e pela modelização de um bom católico. Falei da heterogeneidade dos freqüentadores, da sua diversidade de interesses e de formas de inserção no local, mas talvez ainda não tenha destacado o suficiente que há conflitos e hierarquias entre eles. As distinções entre freqüentadores “assíduos” e freqüentadores “só da festa”5; entre “devotos”, “devotos fervorosos”, “membros da Pia União”, “membros da OFS”, e “os demais”; entre “os que ajudam” e “os que são ajudados”; ou entre “padres preparados” e “padres sem-graça” assinalam a existência de clivagens entre os agentes, isto é, de categorias que servem para hierarquizar e privilegiar determinadas formas de comparecimento e pertencimento em detrimento de outras. Assim, é como se houvesse uma escala de valores ope-rando na avaliação de determinadas práticas devocionais.

Não se trata de julgamentos exógenos sobre a legitimidade de certas práticas devocionais, isto é, de condenações da hierarquia religiosa sobre os pedidos, mas de um conjunto de critérios e valores localmente partilhado – embora não o sendo por todos os presentes.

2 – Experimentar um santo

Nas descrições e comentários obtidos em campo sobre os pedidos, um aspecto chamou minha atenção, o qual considero ainda pouco explorado pela literatura. Trata-se da constatação que a experimentação ocupa um papel fundamental nas práticas desenvolvidas no convento. Este tema foi mencionado com uma certa naturalidade por inúmeros freqüentadores, mas não sei até que ponto os interlo-cutores tinham consciência de que a experimentação é parte constitutiva de suas relações com os santos.

A percepção nítida desse aspecto ocorreu na freqüência semanal ao convento. Foi aí que vi em operação os circuitos informais de transmissão de informações sobre a eficiência de elementos e agentes religiosos. E aos poucos, pude perceber o papel da experimentação na abertura de relações com os santos. Nas interações em que as pessoas sugerem o uso de novenas, de santos, ou nas avaliações que realizam de celebrações, igrejas, padres, é comum que haja a sugestão de uma experimentação. Há, assim, em circulação no convento, uma série de sugestões e de convites para que as pessoas “experimentem” ou “conheçam” determinadas práticas, templos, agentes religiosos, santos, o que pode implicar em graus maiores ou menores de compromisso para aqueles que decidam se engajar nessas experiências.

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Entretanto, apesar da experimentação no convento não se referir apenas aos santos, é essa a dimensão que gostaria de ressaltar aqui. Muitas pessoas afirmaram estar presentes na festa de Santo Antônio para “tentar obter casamento do santo”, ou “tentar conseguir uma ajuda dele”, seja através da realização de pedidos, seja através de promessas, seja de simpatias. Experimentar significar assim tentar obter para aquele que experimenta alguma coisa do santo.

A experimentação demonstra que pedir algo para um santo não implica neces-sariamente em uma relação vinculante, profunda e duradoura, isto é, não implica em uma devoção. O que parece estar em questão nesse caso é um certo “uso sem maiores compromissos” de uma invocação, sem muita certeza de seu desfecho, e/ou como uma espécie de prova à eficácia do santo. O ato de experimentar um santo associa--se a uma certa “curiosidade”, muitas vezes estimulada pela reputação positiva por ele adquirida, que leva as pessoas a conhecê-lo, a testar seu poder, a descobrir suas especialidades e os modos rituais de acioná-las, ainda que a invocação seja feita com dúvidas quanto ao resultado e a seu interesse em ajudá-las.

A dúvida na eficácia do santo, entretanto, tende a ser minorada pela “reco-mendação” feita por outras pessoas. Tanto uma reputação difusa de milagroso, como testemunhos concretos dos pessoas que afirmam ter recebido graças deles pesam como estímulos para experimentar um santo. Mesmo que a dúvida não seja definitivamente erradicada, ou seja, que ela seja constitutiva da experimentação, ela pode ser contrabalançada pela fama do santo e os conselhos de parentes e amigos.6

Assim, a experimentação permite perceber que tanto a curiosidade em testar um santo como a dúvida em sua competência são elementos constitutivos da relação com os santos, ainda que em determinados momentos ou condições do relacio-namento, quando ela ainda não é consolidada. Pois quando um devoto se torna fervoroso, isto é, quando se considera totalmente entregue a um santo, ele adquiriu certeza de suas capacidades, e por isso jamais dirá que o está experimentando. Ou seja, a experimentação relaciona-se à inauguração de relações com um santo, ou a um apelo a um santo com o qual se mantêm relações superficiais de uma forma inédita, ou para um motivo novo.

Mas mesmo aqueles que se consideram devotos fervorosos de um santo podem experimentar outros santos. D. Fabíola, por exemplo, contou-me de suas experiências recentes com Santo Expedito, o campeão de santinhos no convento. Ela apresentou-se como muito devota de Santo Antônio, a ponto de comparecer toda a terça-feira no convento, mas disse também gostar de muitos outros santos (“tenho um santuário enorme dentro de casa, cheio de santos, que foi de minha mãe”). No momento da entrevista, ela dizia estar “encantada” com Santo Expedito.

Renata: Conte uma graça de Santo Expedito que você tenha recebido...

Fabíola: Vou contar (...) Minha irmã foi morar na Itália com o marido, e eu fiquei como procuradora recebendo a aposentadoria dela. Todo ano ela tem que renovar a procuração em Roma, no consulado, e é um trabalhão: pega um trem, viaja a noite inteira, chega às seis horas da manhã, espera o consulado abrir, eles precisam assinar a procuração. Pois bem, esse ano, em cima da hora de renovar, a procuração ainda não havia chegado. Eu liguei para ela, ela já havia mandado há mais de um mês pelo correio. “Agora, só se eu mandar a cópia que eu tenho aqui”. Mandou a segunda via, e eu fui ao INSS, sabendo que estava tudo irregular. Foi me dando aquele desespero, eu me peguei com Santo Expedito, disse: “Meu Santo Expedito, isso tem que ser resolvido hoje” – porque quando se tem algo urgente [a resolver], pede-se a Santo Expedito.Então fui ao INSS, fiquei esperando, pedi para falar com a responsável, queriam me mandar para uma recepcionista, mas como eu sabia que estava totalmente irregular, dizia: “não, meu assunto é só com aquela ali”. E eu me agarrando com Santo Expedito. Pois sabe que ela aceitou a segunda via? Eu contei toda a verdade para ela, e ela aceitou. Eu comecei a chorar. “Minha senhora, não sei se a senhora é católica...” “Não, eu já fui católica, agora eu sou protestante...” “Pois bem, não sei se a senhora acredita, mas eu acabei de receber uma graça de Santo Expedito”. E ela ficou assim, sem graça.

Portanto, misturando o “jeitinho” de falar apenas com a pessoa que ocupava uma posição de destaque na repartição pública à invocação do santo, Fabíola conseguiu resolver seu problema. O depoimento chamou minha atenção porque ela, apesar de “muito devota” a Santo Antônio, decidiu nesse caso acionar Santo Expedito. Isso aconteceu, segundo ela, porque seu problema específico – conseguir um documento com muita pressa – estava diretamente relacionado à grande espe-cialidade de Santo Expedito, que é a de resolver causas urgentes. Assim, a idéia de que há especialidades acopladas a determinados santos pode levar o devoto fervoroso de um santo a pedir alguma coisa a outro. Mas Fabíola me confessou ter sido estimulada a experimentá-lo também pelo sucesso que Santo Expedito fazia naquele momento.

D. Nadir, outra freqüentadora assídua das terças-feiras, devota de Santo Antô-nio, me relatou a sua experimentação mais recente, também com Santo Expedito:

Minha filha Célia queria trocar de emprego. Eu sou muito devota de Santo Antônio, mas resolvi experimentar Santo Expedito, porque eu dei uma esmola na saída do metrô, e a senhora me deu em troca um santinho de Santo Expe-dito, então resolvi experimentar. No quarto dia [depois que pediu], chegou um convite para minha filha fazer uma entrevista. Então mandei imprimir um milheiro [de santinhos], chegou pelo correio, estou indo no banco para

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pagar o boleto. Vou mandar os santinhos pro lugarejo da minha família, no interior do Ceará, pra minha prima distribuir.

No caso de Nadir, não foi o fato de precisar de uma especialidade de Santo Expedito que a levou, devota de Santo Antônio, a experimentar esse santo. A motivação para que ela o experimentasse veio do fato de ter recebido um “san-tinho” de Santo Expedito em retribuição a uma esmola, o que ela parece ter lido como uma espécie de “sinal”. Por sua vez, tendo conseguido a graça do santo, mandou imprimir em uma gráfica um milheiro de santinhos de Santo Expedito, e mandou-os distribuir no Ceará, tornando-se ela também uma divulgadora da devoção.

Portanto, os motivos que podem estimular a experimentação de um novo santo, são diversos. Entram em jogo sua especialidade, um sinal recebido dele, sua reputação e o volume de devotos que ele consegue agregar. Mas também o “conselho” de alguém, isto é, a recomendação de uma pessoa que já pediu e obteve uma graça (ou usou uma oração e a considerou “poderosa”, ou fez uma novena e conseguiu o que queria), tem um peso importante na decisão de experimentar uma prática religiosa.

Ao analisar a experimentação como uma forma de articulação com os santos, isto é, de estabelecer relações com eles, pude ainda perceber que há uma dimensão de aposta nesse processo, pois experimentar é, num certo sentido, apostar. Em cada pedido feito a um santo, haveria uma aposta do interessado na competência dele, uma “lançada de fichas” naquele que pode ser um “campeão”, “glorioso”, “vito-rioso”. E ainda uma aposta na capacidade da própria pessoa, em estar pedindo a coisa certa ao santo certo. A obtenção da graça representaria não a aquisição de um bem, mas a obtenção de um prêmio, e uma demonstração do acerto do “apostador” na escolha daquele santo no meio do panteão de divindades que poderiam ter sido acionadas, seja por ter acertado em sua especialidade, seja por ter acreditado em seu poder. Penso em cada pedido como uma aposta na capacidade do santo em resolver um tipo de problema, e à medida que os pedidos vão sendo atendidos, a pessoa vai adquirindo mais e mais certeza dessa capacidade, acumulando um saber específico em torno dessa relação e do modo pela qual geri-la.

A prática de experimentar um santo parece tornar-se mais fácil à medida que se pode fazê-lo sem ter de se tornar automaticamente seu devoto, e sem ter de abrir mão das devoções já consolidadas para testar um novo personagem. Portanto, ela é facilitada pela possibilidade de combinar devoções, tal como analisado no capítulo anterior. Se a experimentação não der certo, isto é, se o poder do santo experimen-tado não convencer, pode-se deixá-lo de lado. Mas se ela “funcionar” isto é, se for um caso de descoberta de um santo poderoso, é sempre possível “combinar” o personagem recente aos que já compunham o panteão de um devoto, unindo sua

especialidade ou somando sua força às proteções com as quais já se podia contar. Experimentar um santo é invocá-lo, pedir-lhe algo, ou executar uma prática a ele relacionada, para testar as conseqüências, sem necessariamente tornar-se seu devoto.

Porém, se experimentar não implica necessariamente tornar-se devoto, muitas vezes uma devoção, e mesmo uma devoção “fervorosa” pode começar por um ato de experimentação. O apelo bem-sucedido a um santo pode gerar o desenvolvimento de fé e confiança nele, transformando a pessoa numa devota. Muitos entrevistados afirmaram haver se tornados devotos de um santo após haver recebido dele uma graça.

A primeira vez que eu vim, foi para conhecer o convento como ponto turístico e cultural. Hoje eu vim por devoção (r211: mulher, 24 anos, Jardim Botânico).

A comprovação da força de um santo, de seu poder e capacidade de atender aos pedidos, isto é, uma “experimentação” que deu certo tende a estimular o es-tabelecimento de relações mais duradouras com ele. A dúvida em relação a obter resultados se reduz, a certeza aumenta, e outros pedidos podem ser feitos, intensi-ficando a relação com esse santo e ocasionando uma devoção.

3 – Agradecer

Resta a questão do agradecimento, também fundamental para articular a relação com os santos. Para abordar esse tema, é preciso recuperar aquilo que é agradecido ao santo, isto é, aquilo que é visto como tendo sido conferido por ele.

Entretanto, é preciso considerar que, em comparação aos pedidos, os agra-decimentos surgem menos explicitamente no convento. Eles aparecem pouco nas celebrações do dia a dia, talvez porque seja a festa do santo, dia 13 de junho, que cumpre justamente o papel de ser o grande momento anual de agradecer ao santo.7 Outro aspecto que os coloca na sombra é que muitos agradecimentos assumem a forma de doações, o que na tradição católica implica em discrição e anonimato, sob pena de considerar que o doador está querendo se exibir ao invés de fazer uma verdadeira caridade. Para a pesquisa, essas características assumidas pelos agradecimentos implicaram que o volume de material recolhido sobre eles fosse menor do que aquele encontrado para os pedidos. Assim, é principalmente através de depoimentos que os agradecimentos serão analisados.

As pessoas que no questionário afirmaram estar vindo ao convento para agradecer a Santo Antônio, vinham agradecer principalmente graças – “obtidas”, “recebidas” ou “alcançadas” – mas algumas disseram também estar agradecendo as “bênçãos”, os “pedidos atendidos” e “as coisas que o santo deu”. Apesar de algumas delas se referirem a já haver recebido um milagre do santo, a expressão

A relAção com os sAntos no convento

225224 A dinâmicA do sAgrAdo

“agradecer um milagre” não apareceu em nenhum depoimento.O agradecimento podia ser de uma graça específica, isto é, de uma coisa

determinada. Neste caso, houve referências à obtenção de empregos, a curas bem--sucedidas, a casamentos ou relacionamentos conseguidos, à gestação de filhos. Mas além daqueles que estavam agradecendo uma coisa concreta, havia os que estavam agradecendo várias, indefinidas.

Neste sentido, como se tratavam de respostas obtidas durante a festa, foi possí-vel constatar que, para algumas pessoas, esta se tornou a ocasião anual de agradecer ao santo. Elas vêm para agradecer “o ano bom que tiveram”, ou “as graças do ano passado”. Trata-se, então, não de uma “retribuição” de algo objetivo concedido pelo santo, mas de um agradecimento por mais um ano de vida, pelas coisas boas acontecidas nos 12 meses anteriores.

Vim agradecer o ano bom que eu tive e pedir para no ano que vem, voltar com saúde. Aqui eu sinto muita paz (r173: mulher, 55 anos, Cordovil).Várias graças que recebi, eu vim agradecer e pedir também. Pego o pão e devolvo no outro ano, isso ajuda a dar sorte e a não faltar nada (r27: mulher, 60 anos, Nova Iguaçu).

Essa idéia fica ainda mais forte quando analisamos as respostas onde os entre-vistados disseram estar ali para “agradecer todas as graças que obtenho na minha vida”, “tudo o que eu tenho”, “as coisas que ele fez na minha vida”. O que entra em jogo no caso dos agradecimentos difusos, é, no limite, a gratidão pela própria vida.

Hoje vim agradecer por tudo que eu tenho. Quando vim pela primeira vez, vim pedir um emprego (r.200: mulher, 56 anos, Vila Isabel).

É a fé que sempre me traz aqui e o fato de ter que agradecer o santo pelas coisas que ele faz em minha vida. Venho há quinze anos, pois passei muita dificuldade na vida e ele me ajudou muito (r.76: homem, 39 anos, Caju).

Pode-se notar, entretanto nessa última resposta, além da referência ao agra-decimento pela vida, que há vínculos que se prolongam na relação com o santo por largos períodos de tempo. A ajuda conferida no passado faz com que a pessoa compareça ao convento há quinze anos. Essa idéia de uma relação perpetuada a partir de um fato do passado, que a pessoa faz questão de vir todos os anos agra-decer, apareceu em outras respostas. Mesmo no caso de quem fez uma promessa, provavelmente já paga, mas que continua a vir periodicamente ao convento:

Eu tive uma tia que rezava e pedia e sempre conseguia e eu também conse-gui um trabalho uma vez. Venho agradecer sempre (r 32: mulher, 30 anos, Flamengo).

Venho porque fiz uma promessa para ter um filho, pois não podia engravidar. Agora tenho um filho de quatro anos. Então, todo ano venho agradecer (r183: mulher, 26 anos, Campo Grande).

Trata-se de eventos reativados anualmente, os quais são tomados como justificativas para a visita ao convento, contribuindo para manter a relação com o santo azeitada. Há, portanto, retribuições que nunca são zeradas, isto é, que se prolongam, ou são prolongadas indefinidamente pelas pessoas envolvidas com um santo, enquanto a gratidão durar.

Uma leitura usual desses agradecimentos prolongados ao santo é que eles ocorrem porque há uma dívida com ele que não se consegue saldar. Leach (1999) lembra que as dívidas consideradas equilibradas são sinônimo de fim de relação, enquanto que a sensação de estar devendo algo a alguém faz a relação perdurar. Seja porque a graça concedida é considerada demasiado importante para ser efe-tivamente retribuída (o beneficiário viraria um eterno devedor), ou porque novos pedidos foram formulados ao santo (a dívida se ampliou), antes mesmos dos pri-meiros agradecimentos serem totalmente realizados. Seria por isso que um devoto “fervoroso” estaria a todo o momento saudando seu santo e homenageando-o, por considerar que está sempre lhe devendo alguma coisa.

Mas na pesquisa, vários detalhes da forma pela qual os agentes expressam concretamente sua relação com os santos parecem não encaixá-la no modelo de dívidas a saldar. Chamou-me a atenção primeiro o interesse dos próprios visitantes em perpetuarem essa relação com o santo, isto é, em reconhecerem-se como bene-ficiários da graça do santo, e assumir publicamente, através da visita ao convento, essa condição, o que me parece o oposto da dívida, cujo desejo do devedor é ver--se livre dela. Por outro lado, as pessoas presentes exprimiam sua gratidão pela ajuda recebida do santo, sua consideração, e não uma sensação de obrigação por lhe deverem alguma coisa.

Talvez os fenômenos encontrados no convento de Santo Antônio em relação aos santos – e que obviamente não são sua exclusividade – estejam mais próximos à idéia de gratidão do que da de dívida. Benveniste (1969: 200, v. I) assinalou no Vocabulário das Instituições indo-européias que as noções contemporâneas de “favor” e “reconhecimento” estão associadas, em sua origem, à idéia de “graça” e “gratuidade”, pois seriam os sentimentos provocados por um serviço que não exige contra-serviço. Já o termo “voto” (le vöew) estaria associado à idéia de uma palavra que engaja no cumprimento de uma coisa, que implica numa promessa de consagrar algo a um deus por um favor específico que se pede a ele (Benveniste, 1969: 233-243, v. I). Portanto, agradecer e cumprir um voto (saldar uma dívida) não são a mesma coisa.

Outro ponto a considerar é que há casos em que mesmo pedidos não atendidos

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foram agradecidos:

Vim agradecer as coisas que eu tenho pedido e recebido. Agradeço até as coisas que não recebi porque ele sabe o que é bom para a gente (r. 245: mu-lher, 57 anos, Copacabana).

Essa resposta nos remete à questão das graças não concedidas, mas não foi apenas nela que o tema apareceu. Houve outras questões, e se as analisarmos em conjunto é possível identificar as maneiras pelas quais as pessoas lidam com esse fato, que variam da resignação à decepção. Sua reação parece estar associada a seu grau de devoção em um santo.

No caso extremo, uma graça não concedida pode levar à perda de fé no santo – que não necessariamente implica uma perda de fé na religião católica, mas que pode até mesmo levar a isso.

Quando criança, eu era devoto de Santo Antônio. Depois, casei e separei. Então, perdi a fé (r. 169: mulher, 53 anos, Botafogo).

Mas como o santo ocupa uma posição hierarquicamente superior àquele que lhe pede, é mais comum atribuir o “erro” a quem fez o pedido. A graça não concedida pode ser justificada por falhas do próprio devoto ou por uma falta de competência em fazer o pedido. Entretanto, não se trata apenas de uma questão de habilidade que está em jogo. A idéia de merecimento também aparece quanto à concessão de graças por um santo. Este parece realizar uma espécie de “julgamento” do deman-dante, e de suas qualidades e ações. Obter uma graça implica também ter “feito por merecê-la” em atitudes tomadas ao longo da própria vida, demonstrando-se “merecedor”. Por isso, quando um santo concede uma graça a uma pessoa, ele está emitindo uma espécie de avaliação positiva de sua conduta cristã.

(...) Eu venho aqui há anos, mas nunca arrumei uma namorada. Acho que eu não mereço não. Uma vez eu pedi uma namorada, que me deixou onze filhos, mas foi embora. Eu pedi outra, mas não veio não. Acho que eu pequei (r.154: homem, 70 anos, Maricá).

Por outro lado, a graça não recebida pode ser lida como um “castigo” do santo por um comportamento inadequado, ou como uma espécie de “sinal”, para que a pessoa readeque sua conduta cotidiana e/ou suas práticas devocionais a padrões “católicos”.

Outra interpretação possível do pedido não atendido, que justifica aceitá-lo ou mesmo agradecê-lo é considerar que ele não seria para o bem de seu destinatá-

rio. O santo possui um conhecimento sobre a vida e o destino das pessoas maior do que o que elas mesmas possuem, e, portanto muitas vezes ele não concede a graça, apesar de poder fazê-lo, porque sabe que suas conseqüências a longo prazo não serão boas. Com relação a Santo Antônio, esse tópico apareceu várias vezes, principalmente quanto a namoros interrompidos, ou namoros e casamentos que não se concretizaram.

Forma-se assim um sistema (quase) fechado em que uma graça não concedida leva a pessoa a achar que tem que aprender a pedir ou fazer por merecer, ou resignar--se aos desígnios de Deus e à sabedoria do santo. Em casos extremos, pode-se perder a fé em um santo específico, procurando outros santos para experimentar, ou ainda perder sua fé no sistema como um todo, mas isso parece ser menos comum do que considerar que os “defeitos” na relação estão nele mesmo. Porém, ao afirmar isso, é preciso lembrar que os contatos estabelecidos em campo foram em sua maioria com pessoas que acreditam nos santos. Seria preciso trabalhar mais com casos de perda de fé e descrença para poder avaliar o tema com maior consistência.

Os depoimentos sobre os agradecimentos remetem à importância da graça na relação com os santos, e seria possível a partir deles recompor seu significado. Há um “modelo crítico” de interpretação da relação com os santos, isto é, aquele que associa o apelo aos santos a crises na vida do devoto. Nesse modelo, a graça seria algo concedido pelo santo para vencer esses momentos de crise, a saída para ultrapassar os perigos e dificuldades. É como se houvesse uma equação crise-pedido ao santo-graça-agradecimento-devoção.

Realmente, nos relatos encontrados, há graças verdadeiramente espetaculares, que provocam no devoto uma entrega total ao santo e a seu poder, e estabelecem de imediato o “fervor” na relação. D. Lina, por exemplo, pede-me para desligar o gra-vador e conta, banhada em lágrimas, a grande graça que recebeu de Santo Antônio:

Entrei há trinta anos na Pia União, porque meu filho, quando tinha dez anos, foi desenganado pelos médicos. “Seu filho pode até viver, mas jamais será pai”. Sete dias depois, com medicamento, voltei no médico e meu filho havia ficado curado... O médico ficou impressionado. Nesse meio tempo, vim ao convento e pedi a Ele [Santo Antônio] que curasse meu filho...

Já Dona Ísis, na Pia União desde 1969, me conta uma intervenção recente de Santo Antônio em sua vida:

Fui tirar um sinal na Casa de Saúde Santa Polônia. A enfermeira perguntou meu peso, perguntei para quê, ela respondeu que eu ia tomar anestesia ge-ral. Aí a enfermeira percebeu que havia trocado as papeletas, e eu quase fui operada de câncer quando na verdade eu tinha apenas um sinal, um fibroma de pele. O que você acha que foi isso?

A relAção com os sAntos no convento

229228 A dinâmicA do sAgrAdo

Renata – Uma graça de Santo Antônio?

Ísis – Um milagre do santo, claro, porque antes de operar eu havia dito: “valei-me, meu glorioso Santo Antônio”.

No questionário, algumas narrativas de graças também apareceram, pois 42 entrevistados citaram exemplos concretos de graças que atribuíam ao santo:

Ele é um santo milagroso. Eu tive na UTI nove dias entre a vida e a morte. Eu pedi a Santo Antônio, falei para ele: “se for para eu ficar com seqüelas, eu prefiro morrer”. Olha eu aqui, inteira. É um milagre (r.135: mulher, 68 anos, Realengo).

Minha sogra vinha de Brasília com Santo Antônio na mão, o carro derrapou e foi parar na outra pista. Não aconteceu nada com ninguém. Eu acho que foi milagre de Santo Antônio (r187: homem, 61 anos, Irajá).

Teve uma época que eu estava com dificuldades financeiras, era dia de missa, orei, chorei tanto e pedi que ele não esquecesse de mim. Fui no caixa ele-trônico e tinha depositado lá R$2.000,00, o governo tinha depositado o que devia há um tempão (r195: mulher, 30 anos, Niterói).

Eu estava morando num lugar muito ruim (perigoso) vim aqui, fiz a Trezena e ele me mostrou um lugar melhor. Hoje a pessoa está pedindo a casa que eu moro. Eu peço para Santo Antônio que me ajude a conseguir uma moradia definitiva própria (r 241: mulher, 56 anos, Bairro de Fátima).

Mas conforme os depoimentos se sucediam, fui descobrindo que a graça não significava necessariamente algo “espetacular”, ou “bombástico”. Na verdade, os acontecimentos mais extraordinários tendem a ser chamados inclusive não de gra-ça, mas de milagre. A lista de episódios tratados como graças do santo englobava livrar-se do vício do álcool ou da bebida, conseguir casa própria, ter um casamento duradouro, conseguir um emprego, passar no vestibular, tirar nota alta na prova, saldar dívidas, acelerar uma causa na justiça, ter um filho, achar uma chave. Todos esses eventos foram graças mencionados pelos entrevistados.

Portanto, se há a graça espetacular, a salvação inexplicável do acidente, a cura da doença fatal, há também uma presença do santo no cotidiano do devoto, que faz com que mesmo nas pequenas coisas do dia-a-dia ele se manifeste, concedendo graças. Assim, mesmo nas circunstâncias aparentemente corriqueiras o santo pode estar atuando na vida de seu devoto. D. Ísis, numa segunda entrevista, expressou claramente essa idéia:

Tudo isso, minha filha, é o ordenado que Santo Antônio nos dá: saúde, força, coragem, uma família feliz, são as graças e bênçãos. Ele paga muito bem.

Porque você vê, hoje, isso é tão difícil, a gente ver uma família assim, né? Eu, graças a Deus, tenho duas filhas casadas, tenho um filho casado, me dou bem com minha nora, me dou bem com meu genro. São as graças e bênçãos.

D. Camila, 81 anos e 40 de convento, também se referiu à própria vida como uma sucessão de graças do santo: casou, teve filhos, netos, nunca passou necessi-dade, ficou viúva, mas foi feliz no casamento e continua viva e com saúde. Tudo isso é graça:

Tudo que pedia, o santo me concedia, o que ele não concedia, era porque não era para o meu bem, então eu me conformava.

Por outro lado, podem acontecer graças mesmo sem pedido. Um devoto que esteja verdadeiramente envolvido com um santo, isto é, que mantenha azeitados seus vínculos com ele, que tenha uma relação íntima e constante, que sinta sua “presença” em sua vida, pode obter uma graça sem que um pedido tenha sido formulado. A devoção estende por sobre o conjunto de sua vida o manto protetor de “seu santo”, e mesmo diante de perigos inconscientes, só descobertos depois de “ultrapassados”, a ação protetora do santo padroeiro se faz sentir.

A graça, portanto, não se associa só a eventos críticos, nem apenas àquilo que foi pedido. Ela pode ser tudo o que acontece de positivo na vida de uma pessoa, cuja origem ela atribui aos santos ou a Deus, pela intercessão dos santos.

Todas essas observações sobre pedidos, graças e agradecimentos deixam claro, entretanto, que à medida que cresce o envolvimento de uma pessoa com um santo, isto é, à medida que ela mergulha na devoção, as tentativas de esquematização e construção de seqüências lineares nessa relação tendem a se tornar cada vez mais difíceis de serem estabelecidas. Quando a relação se intensifica, e os devotos se tornam cada vez mais “fervorosos”, há uma tendência a considerar sua própria vida como um conjunto de graças do santo, que se manifesta nos menores acontecimen-tos cotidianos. Trata-se não necessariamente de pedir miudezas ao santo, mas de reconhecer sua intervenção mesmo nas miudezas. E de agradecê-las.

Portanto, para um devoto fervoroso, torna-se mais difícil distinguir a graça de outros acontecimentos positivos que venham a ocorrer, bem como se torna impossível identificar os limites entre três termos de uma relação pedido-graça--agradecimento. Já não há mais também muita necessidade de enunciar pedidos, pois “o santo sabe”, ou está sempre presente, e não há diferenças notáveis entre os agradecimentos e os louvores que fazem parte da rotina diária8 – salvo em casos de “promessas”, que como vimos, não são necessariamente feitas a um santo de devoção. Um devoto, portanto, está num fluxo de trocas tão intenso com o santo que é difícil ou impossível estabelecer “o momento preciso” de cada situação, pois

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ele parece viver em um permanente estado de graça. Resta-nos, portanto, observar mais de perto essa relação.

Notas1 O tema da relação santo-devoto articulada por trocas rituais não é novo. Ele surge na Antro-pologia com os trabalhos da Escola Sociológica Francesa, exemplificados pelos trabalhos de Mauss (1968, 1985); Hubert (Hubert & Mauss, 1981) e Hertz (1970, 1988). Depois, entre os anos 30-50, ele é rearticulado a partir dos dados etnográficos e de novas problemáticas surgidas em análises do campesinato latino-americano e mediterrânico, através de estudos de comuni-dades, dos quais o trabalho de Foster (1967) é um bom exemplo. Por sua vez, os estudos de comunidades foram de grande importância na constituição da Antropologia Social brasileira, dos quais resultaram registros e análises sobre o culto aos santos no país, como nos trabalhos de Willems (1961), Galvão (1955), Pierson (1966). Uma análise comparada da forma de tratamento que eles realizaram do culto aos santos pode ser encontrada em Zaluar (1983). Já na década de 1980, o tema do culto aos santos passa a ser enfocado dentro da temática da religião popular, na qual os trabalhos mais importantes são os de Brandão (1980) e Fernandes (1982). Uma síntese da produção em torno desse tema pode ser encontrada em Fernandes (1984). A partir dos anos 1990, inexiste uma problemática e uma forma de abordagem hegemônica do culto aos santos, embora os estudos de caso se multipliquem. Tentativas de balanço da produção brasileira sobre religião nas décadas 1990-2000 são esboçadas em Montero (1999), Pierucci (1999), Rodrigues (1997), Herrera (1999).2 Fernandes (1982) apresenta um comentário sobre os milagres esperados dos santos que ajuda a reforçar a idéia de uma certa “ordinariedade” da graça pedida e que acaba também cruzando-a à idéia de aposta: “A maioria dos ex-votos refere-se a ocorrências corriqueiras que poderiam afinal ter um encaminhamento não religioso. As promessas normalmente não pedem ao Santo para mudar o mundo, acabar com a morte ou fazer o rio correr para cima. Não se dirigem às ‘leis’ da existência. Ocupam-se antes das incertezas a que estão sujeitos os indivíduos ou os grupos específicos em situações concretas. Ocupam-se das grandes crises, como as doenças, os acidentes, as passagens perigosas, situações sobre as quais uma pessoa esclarecida pela ciência é forcada a dizer ‘deu sorte!’ ou ‘deu azar!’. São, em síntese, uma alternativa à loteria” (id: 46-47).3 A questão da apropriação do papel me parece significativa e pretendo voltar à ela em trabalhos futuros, em que a simbolização dos pedidos seja objeto de uma análise detalhada. O que pude registrar por enquanto é a ruptura da idéia de que um papel menor é igual a menos pedidos: tentando dar conta do total de 2.700 papéis que possuo, comecei a analisar os menores, julgando com isso agilizar o trabalho. Mas, na verdade, essa premissa revelou-se falsa, porque as pessoas utilizam táticas como escrever com uma letra minúscula, sobrepor textos, escrever em margens, para que mesmo em um papel pequeno caiba tudo aquilo que desejam colocar.4 Lembremos de alguns relatos presentes nos questionários, que falam de pessoas que haviam pedido ao santo casamento, e que este tinha chegado rápido, mas acabara em separação. A estra-tégia de resolução desse impasse é qualificar o casamento pedido: falar de “um bom casamento”, ou “de um marido que seja para meu bem”. Em alguns pedidos escritos, essa situação apareceu claramente: “Glorioso Santo Antônio: Rogo um bom casamento. Que ele seja fiel, sincero, ho-nesto, próspero, que me ame assim como o amo. Obrigado. Angélica Rosanova” (doc. nº 339). Ou ainda: “Tudo que desejo o (sic) glorioso Santo Antônio, tu o sabes. Um homem de Deus no caminho de minha filha. Um Antônio, um Fernando ou um José. Não importa o nome e sim a

essência. Por favor, Santo Antônio, atendei-me. Amém!” (doc. nº 194).5 Essa clivagem apareceu em entrevista com a presidente da Pia União, que, ao falar do trabalho de organização da festa, estabeleceu distinções entre o “público da festa” e o do resto do ano: “Quem vem só à festa, vem por crendices, porque Santo Antônio é isso, Santo Antônio é casamenteiro, é aquilo, acha coisas perdidas. A festa tem um público mais com crendices, é uma festa popular”.6 A recomendação pode dar à experimentação uma outra dimensão: se ela der certo, há uma tendência a aumentar o prestígio de quem recomendou, se ela der errado, o inverso acontece. A relação com os santos, portanto, é mais uma vez veículo/suporte para a relação entre as pessoas.7 Daí também que nas razões para a visita ao convento tenham aparecido expressões como “vim prestigiar o santo”, “vim visitá-lo”, “vim pelo dia do santo”, “vim homenageá-lo”, para justificar a presença no local neste dia.8 Um exemplo de práticas cotidianas de pedido e louvor: “Sempre fui devota dele, ele sempre me atraiu. (...) faço todos os dias o tercinho de Santo Antônio, a coroa de Santo Antônio, a ladainha” (r215: mulher, branca, 64 anos, Cachambi).

A relAção com os sAntos no convento

233232 A dinâmicA do sAgrAdocApítulo 10

A relação de devoção

1 – Ser devoto

O motivo mais recorrente para alguém se apresentar como devoto de um santo é ter obtido alguma graça dele, seja diretamente para si, seja para algum parente ou amigo. Ou ainda por ter testemunhado a concessão de graças e, conseqüentemente, o poder do santo, em seu círculo próximo de relações. A associação da devoção à eficácia do santo fornece um esquema simples para sua interpretação. A pessoa pede uma graça a um santo e ao conseguir obtê-la torna-se sua devota.

Sou devota de Santa Luzia, porque uma vez eu pedi uma coisa a ela e ela me atendeu. Aí eu virei devota dela (r153: mulher, 41 anos, Flamengo).

Porém, embora a graça ocupe um lugar fundamental na relação de devoção, pois um santo é essencialmente aquele que “faz” por seus devotos, creio que uma série de elementos apresentados até agora permite relativizar esse modelo, demons-trando que há mais coisas envolvidas nessa relação.

Primeiro, porque como já dissemos, surgiram referências a pedidos atendidos por santos dos quais o beneficiário não se identificava como devoto. Portanto, a relação de devoção não é tão automática assim, já que há santos que atendem pedidos e que não se transformam em “santos de devoção”.

Segundo, porque há referências a graças que não são necessariamente supe-rações de crises, ou que não precisaram ser pedidas para ser concedidas. Terceiro, porque há condições em que o santo de devoção pode não conceder a graça, e nem por isso a pessoa que a demandou deixa de se considerar sua devota, quando entra em jogo a lógica da falta de merecimento do devoto, ou da sabedoria maior do santo, para justificar o não atendimento do pedido.

Se forem analisadas as demais razões concretamente apresentadas pelos devotos para justificar as devoções, vemos que outras coisas entram em jogo no estabelecimento de uma devoção. Foram encontradas nas respostas referências a

235234 A dinâmicA do sAgrAdo

determinados eventos da vida de uma pessoa que justificariam, por si só, apenas ao serem citados, uma devoção, sem que nenhuma graça inicial tenha sido mencionada. As pessoas definiram-se como devotas de um santo por terem nascido em seu dia, por terem casado, ou sido batizadas, ou por celebrarem outro rito de passagem em sua igreja ou em seu dia; por terem o seu nome; por terem-no como padroeiro da terra natal – cidade, estado, país –; por morarem nas proximidades de sua igreja, ou por freqüentarem-na constantemente.

Sou devota de Santa Anastácia e de São Bento. Fui criada dentro da Igreja de São Bento. Sou devota de Santo Amaro, também, porque onde eu nasci – Campos – tinha Santo Amaro (r177: mulher, 50 anos, Campo Grande).

[Santo Antônio] é a igreja em que fui batizada e estou muito agradecida por isso (r84: mulher, 19 anos, Jacarepaguá).

(...) Eu casei na igreja dele [Santo Antônio], em Duque de Caxias (...) (r174: mulher, 45 anos, Vista Alegre).

Sou devoto de Nossa Senhora de Fátima, porque nasci quase no dia dela – treze de maio (r181: homem, 38 anos, Méier).

A menção desses eventos como justificativas para uma devoção estaria as-sinalando a existência de vínculos que se estabelecem com um santo quase que “naturalmente”, isto é, porque determinados fatos da vida do devoto acontecem em ligação direta com um santo, em tempos ou espaços que estão sob sua proteção, ou a ele associados. Essas relações, de caráter quase automático, preestabelecidas, seriam independentes de qualquer “construção”, por parte do devoto, que passasse por uma graça inicial.

As referências a esses tipos de vínculo com os santos lembram que, do ponto de vista da Igreja Católica e de seu modelo universalista, não há tempo nem es-paço sem santos – cada dia tem seus santos, e cada lugar seu padroeiro. Os santos católicos marcam o tempo, constituindo o próprio calendário católico, e o espaço, demarcando territórios sobre os quais se estendem sua proteção. Portanto, dessa ótica, cada ser humano já nasce multivinculado, isto é, está potencialmente ligado a uma série de santos, pelo simples fato de existir em determinado tempo ou espaço.

Além disso, os entrevistados fizeram referências à transmissão de devoções através de relações de parentesco. O culto a um santo pode ser sido herdado de um membro da família, e nesse caso o devoto se apresentará como dando seqüência a uma tradição familiar. As devoções associadas a essas razões cruzam a família ao culto aos santos, perpetuando esses laços entre as gerações.

Sei que [Santo Antônio] é o santo casamenteiro, tenho uma avó que nasceu

no dia 13 de junho, é muito devota e aprendi a ter fé em Santo Antônio com ela (r211: mulher, 24 anos, Jardim Botânico).

Meu pai crê nele antes e conseguiu graças, eu também consegui e, por isso, creio nele também (r15: mulher, 28 anos, Vista Alegre).

Os santos de devoção da família representam assim uma espécie de patrimônio herdado, que um católico pode canalizar em seu favor.1

Porém, esses vínculos preestabelecidos, aparentemente naturais, podem ou não se tornar significativos, na medida em que nem todos são católicos, nem todo católico apela aos santos, e mesmo entre os devotos há inúmeros casos em que os vínculos estabelecidos com “novos santos”, isto é, santos com os quais não havia relações anteriores, podem se sobrepor aos naturais ou herdados, adquirindo he-gemonia ou mesmo exclusividade nas devoções de uma pessoa.

É possível perceber ainda que nos vínculos que até então citamos há uma ligação direta entre episódios da vida do devoto e a proteção que um santo pode lhe oferecer. Mas pode ocorrer também o processo inverso, em que determinadas características da vida do santo funcionem como estímulo a uma devoção. As espe-cificidades de sua “espiritualidade”, as práticas que desenvolveu durante sua vida, as atitudes que tomou diante do mundo, sua personalidade podem ser tomadas pelos devotos como verdadeiras “molas propulsoras” da devoção. Isso demonstra como a biografia do santo e seus atributos podem adquirir importância para um devoto.2

[Cultuo] São Francisco de Assis, por seu apego aos pobres e seu desapego às coisas materiais. São Francisco e Santo Antônio são exemplos de vida (r165: mulher, 21 anos, Gávea).

[Sou devoto de] São Benedito. Ele era guardião de uma igreja e levava ali-mento para os pobres. Gosto dele por ser negro. Uma vez quiseram expulsá-lo porque ele roubava comida para os pobres. Mas ele não roubava para ele, né? Um milagre que ele fez foi transformar o alimento em rosas. E olha que ele só levava as sobras (r155: mulher, 58 anos, Bangu).

[Sou devoto de] São Camilo de Lelis e do Sagrado Coração de Jesus. São Camilo era um jovem perdido no mundo, viciado em jogo e adoeceu, se con-verteu e passou a ajudar os pacientes do hospital e fundou a Ordem Ministro dos Enfermos. A devoção é resultado de uma espiritualidade (r132: homem, 28 anos, Campo Grande).

O processo de associação entre a vida do santo (ou mesmo de características assumidas por seu culto) e a vida do devoto pode envolver elementos inusitados, já que às vezes os motivos mais prosaicos são acionados para justificar uma devoção:

A relAção de devoção

237236 A dinâmicA do sAgrAdo

Sou devoto de (...) São Sebastião, porque acho ele bonito (r164: mulher, 63 anos, Cascadura).

Sou devoto de São Cosme Damião (sic), porque quando eu era pequeno, pegava muito doce (r166: mulher, 74 anos, Engenho da Rainha).

Jesus Cristo é o principal, o que vai salvar a humanidade. Mas sou devoto de Santa Edwiges, padroeira dos cineastas e dos endividados. Um é o que quero ser, o outro é o que eu já sou (...) (r161: homem, 54 anos, Flamengo).

Sou devota de (...) Nossa Senhora de Fátima, porque eu gostava muito do filme das crianças que a viram lá em Fátima, em Portugal (r131: homem, 34 anos, Niterói).

Sou devoto de São Jorge e São João, pois além de ser devoto eu gosto da festa destes santos (r55: mulher, 29 anos, Méier).

Essas razões, por mais superficiais que possam parecer, estão na verdade lembrando que, de fato, há várias maneiras de se justificar e de se estabelecer uma devoção. Se há santos dos quais se é devoto a partir de laços herdados, ou obtidos “naturalmente”, há outros com os quais o laço foi estabelecido a partir de outras motivações iniciais. Essas motivações são, na maior parte das vezes, uma graça concedida pelo santo. Mas os exemplos acima citados deixam evidentes que não é apenas isso que está em jogo, que há outras razões que impulsionam a construção de vínculos, razões que muitas vezes passam desapercebidas se nos detivermos em idéias pré-concebidas sobre a devoção. Assim, não é apenas pelo que o santo fez pelo devoto que alguém se vincula a ele, mas também porque o próprio devoto identifica características comuns entre ele e o santo, uma certa afinidade que esti-mula o culto. Muitas vezes é a partir do que o devoto é, ou do que ele gostaria de ser, ou do que o santo foi, ou do tipo de característica que até hoje lhe é atribuída que se instaura uma relação de devoção.

Quanto a este tema, um exemplo evidente foi percebido por mim em campo, quando entrevistava Joaquim. Estávamos conversando sobre seu interesse em fr. Fabiano de Cristo, o frade-enfermeiro do convento, ao qual se atribuem muitos milagres. Quando Joaquim começou a explicar por que gostava de fr. Fabiano, imediatamente antecipei sua resposta: já sabendo que ele era terapeuta corporal, imaginei que seu interesse em fr. Fabiano estava em seu dom de cura. Surpreendi--me, entretanto, com sua justificativa que, apesar de terminar na questão da cura, seguiu caminhos intermediários que passavam muito além dela:

J: (...) Esse fr. Fabiano de Cristo, é um [cara] que ele veio de Portugal para transar ouro no Brasil. Devia ser (...)... Um cara meio barra pesada, um cara muito forte, porque quem vem atrás de dinheiro, de ouro, não vem catar

flor, né. (...) Ele veio com 28 anos, veio de Portugal para cá. Então não vem plantar rosas, vem atrás de ouro, escravos, aquela coisa toda. Imagina, né. E ele ficou rico, muito rico, depois se estabeleceu aqui [no Rio de Janeiro], mas aí ele tinha ligação com os franciscanos, acho que ele ia à missa, ai se estabeleceu aqui em Angra dos Reis, isso em 1700 e pouco. (...) Se estabe-leceu com o sócio. Aí houve um assassinato, disse que foi um crime bárbaro, mataram o sócio. Ele ficou tão chocado que ele deu tudo, distribuiu para os pobres as coisas dele e mandou para Portugal... Distribuiu as coisas dele, e veio para o con-vento. Aí passou aqui dois anos, depois foi para Paraty ou Angra dos Reis dois anos, e voltou para cá. E aqui ele ficou trinta anos. E assumiu funções bem... Bem humildes aqui, sabe como é que é? Funções humildes. (...).Bom, eu sei que aí ele veio aqui e todo mundo só queria ser atendido por ele na enfermaria, porque diz que ele tinha uma...(...) Uma mão boa, né...R: (Risos...) Ah, é por isso que você se identifica com ele...J: Não... Porque em Ouro Preto... Então eu olho para as mãos dele e vejo assim: poxa, Ouro Preto é um lugar que eu andava naquelas ruas, aquela coisa assim, né, e gostava assim, de repente aquela pessoa que teve lá e... Aí eu senti uma identificação... E eu... Sempre que eu passo ali às terças-feiras eu peço proteção...R: Ah, então foi por causa de Ouro Preto, e não porque a mão dele cura?J: Não foi, por causa de Ouro Preto... (risos)R: (rindo) O mundo dá muitas voltas...J: Pois é... É uma forma. E como eu trabalho com as mãos também, e aí eu passo, peço a ele sempre uma graça, claro, pro meu trabalho.

A surpresa veio do fato que mesmo “trabalhando com as mãos” como fr. Fa-biano, o que levara Joaquim a se interessar por ele e de alguma forma estabelecer paralelos entre suas vidas foi o fato do frade, antes de ingressar no convento, haver vivido na região das Minas Gerais, onde Joaquim passara bons momentos de sua juventude. É por isso que, antes de começar a me contar a vida de fr. Fabiano, ele havia narrado longamente suas próprias aventuras em Ouro Preto, discurso que inicialmente me parecera sem sentido:

Em toda minha juventude fui para Ouro Preto, fui até casado, com a minha filha pequena, eu ia para Ouro Preto (...) Tanto que fiz amizades em Ouro Preto... Eu tocava, eu fui músico, e lá eu tocava violino, lá (...) numa orques-tra barroca que tinha, eu tocava lá, muitos... Quase vinte anos eu toquei lá, amizades que eu fiz (...) E eu ia para lá para fazer farra, ficava na república, ia namorar para caramba...

A relAção de devoção

239238 A dinâmicA do sAgrAdo

A “volta” que Joaquim deu para explicar sua identificação com fr. Fabiano não foi somente um recurso lingüístico, mas um esforço (seu) de tentar retraçar a série de conexões que ele acredita que o tenham conduzido ao “santo”. Esse episódio, somado aos demais discursos que atribuíam a devoção a motivos aparentemente fúteis, como gostar de um filme que fala do santo, ganhar balas em sua festa, achá-lo bonito, serviram-me como uma espécie de lembrete para jamais antecipar as respostas dos devotos, isto é, para não transformar em mecânicas ou lineares relações de associação e identificação que podem, afinal, estar descrevendo um circuito bem mais complexo.

Enfim, aos poucos fui percebendo que a relação de devoção envolve o prag-matismo, isto é, o atendimento de pedidos que se quer alcançar, mas também um processo de identificação dos devotos com os santos. Nesse processo entram em jogo sejam determinadas características do devoto (como a data e o local de nascimento, o fato de alguém da família ter sido ligado ao santo, a homonímia), sejam determinados atributos do santo, que o devoto assume como valores positi-vos, como sinais de santidade, como desempenho ideal de uma vida cristã; sejam aspectos da biografia dele que o devoto associa à sua própria. Ou por um desses aspectos, ou pela combinação de dois ou mais deles, o fato é que a relação de devoção passa por considerar determinados aspectos da vida do santo e do devoto como “relacionados”, no sentido de haver entre eles elementos de identidade que servem de base para estabelecer vínculos significativos.

Ser devoto implica, portanto, ligar elementos da vida do santo e elementos de sua própria vida. A classificação opera mais claramente no caso dos vínculos inaugurados com santos “novos”, isto é, com santos cuja possibilidade de prote-ção não estava dada desde sempre, pois neles os recortes e analogias, mesmos os mais singulares, são apresentados de maneira consciente pelos devotos. Mas ela também está presente nos vínculos pré-estabelecidos, porque eles permanecem como uma virtualidade até que a pessoa os considere significativos, e decida-se a ativá-los em seu favor. Portanto, aqueles que são devotos do padroeiro da terra natal, do santo que lhe dá o nome, da santa do dia que nasceu, ou do da igreja em que casou, estão na verdade “usando” determinados vínculos em detrimento de outros, e ao acioná-los, estão em alguma medida recortando-os, reconstruindo-os, atribuindo-lhes significado.

Os elementos a partir dos quais os vínculos são construídos podem ser mais ou menos evidentes, o que significa que um devoto deve ter a capacidade de per-ceber sinais que apontem para as possibilidades de vinculação, que o levem até o santo, ou que criem um certo “gancho” a partir do qual o vínculo se estabelece.

2 – Manifestações da devoção

A relação de um devoto com seu santo protetor envolve não apenas duas pes-soas, mas uma pessoa e uma “entidade sobrenatural”, ou melhor, um ser humano morto que, como definiu Peter Brown (1982), é um “morto muito especial”, o qual se faz presente e se manifesta para seus devotos, que com ele se comunicam. O acesso à relação por um observador externo é restrito a um dos pólos, e é a partir das manifestações que os devotos realizam para os santos que é possível recuperá-la.

A relação santo-devoto aparece no convento através de atos de fala e atos corporais, executados pelos devotos coletivamente no conjunto de celebrações que viemos analisando ao longo da tese. Os atos também podem ser realizados individualmente, tanto no interior do templo como em espaços mais secundários, como foi dito na discussão sobre a apropriação.

Os atos de fala assumem fórmulas padronizadas, tais como orações, litanias, ladainhas, responsos, reproduzidas de memória, ou lidas em livros e folhetos, que são recitadas para os santos, ou em sua homenagem. No caso de fala coletiva, ela é feita em voz alta. Já as falas individuais tendem a ser feitas em voz mais baixa, muitas vezes como apenas murmúrios, que se pode ver o devoto fazendo, mas cujo conteúdo não se pode ouvir. Há também cantos, isto é, músicas cujas letras tomam os santos como referência, para suplicar-lhe algo ou para louvar seus poderes e capacidades, e que são sempre executados em voz alta, e durante as celebrações. Percebe-se também uma certa continuidade entre formas cantadas e declamadas, como Bloch (1989), em outro contexto, já havia notado.

Acontece também aquilo que seria uma “conversa” do devoto com o santo, de caráter mais “espontâneo”. Sua tendência parece ser de que quanto maior for o grau de espontaneidade da fala, mais discreta deva ser sua enunciação. Mas mes-mo quando as falas assumem as formas mais espontâneas de “conversas” com os santos, dificilmente elas escapam totalmente a algum tipo de padronização. Pois as fórmulas consagradas para o tratamento de cada santo tendem a se reproduzir, tanto no sentido de uma etiqueta do pedido, quanto no sentido de procurar modelos de comprovada eficácia. O conhecimento e o uso dessas fórmulas denuncia ainda um certo grau de envolvimento do enunciador com o culto ou com a freqüência ao convento – um certo grau de “socialização” na devoção.

Os devotos, além de falarem “para os santos”, podem falar “sobre os santos”, com as demais pessoas presentes. Isso acontece geralmente num contexto de “divulgação” da devoção, como uma demonstração de fé, ou de “dar conselhos” pedagógicos ao interlocutor, sugerindo que conheça e utilize um santo poderoso para resolver seus problemas (o que também não deixa de ser uma forma de di-vulgação). Fora desses contextos, como por exemplo, numa situação de entrevista, torna-se mais difícil estimular um entrevistado a falar de sua devoção, não apenas

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por ser uma experiência muitas vezes inédita, mas também porque a devoção toca em vivências íntimas, eventualmente ligadas a eventos que mexem com aspectos profundos da vida pessoa, cujo conteúdo não se deseja (ou não se pode) revelar a um terceiro. Não raras vezes durante o campo, quando o assunto se aprofundava, e passava do tema da freqüência ao convento para o tema da relação com o santo – o que para alguns implicava, num certo sentido, numa releitura da própria vida – meus interlocutores acabavam em lágrimas.3

A devoção também comporta uma série de atos corporais, que podem acompa-nhar os atos de fala, ou se realizar independentemente deles, durante as celebrações ou individualmente São gestos como os de levantar, sentar e ajoelhar, persignar-se, olhar, abaixar a cabeça, dar as mãos às pessoas a seu lado ou postá-las para rezar, etc. Mesmo quando realizados individualmente, é possível, ao observá-los, perceber que as seqüências nunca são totalmente inéditas, reportam a uma certa padronização, embora às vezes possam adquirir um tom dramático sui generis. Da mesma forma que os atos de fala exprimem uma modelização da linguagem, os atos corporais expressam a modelização dos movimentos, a reprodução de “técnicas corporais” de culto aos santos (Mauss, 1979).

A maioria dos atos de fala e dos atos corporais, principalmente dos que são realizados individualmente, é feita diante de uma imagem.4 Portanto, é diante dela, ou para ela, ou mesmo nela que o devoto realiza suas manifestações públicas de devoção endereçadas ao santo, e é dela que muitas vezes afirma ouvir ou aguardar respostas. Os devotos costumam tocar as imagens, acariciá-las, beijá-las, ajoelhar a seus pés; chorar diante delas; colocar-lhe flores ou pequenos pedaços de papel com pedidos escritos; acender velas, prender-lhe fitas, esfregar-lhes “santinhos” que depois serão guardados em bolsas e bolsos; etc. Assim, a imagem não apenas “evoca” ou “representa” o santo: ela o presentifica,5 e nesse sentido observar os atos de fala, os atos corporais e a interação dos devotos com as imagens fornece um tipo de acesso à devoção, ainda que restrito.

Os devotos costumam também portar símbolos como o nome ou a imagem de”seu santo”: camisetas, medalhas, broches, anéis, são adereços que um devoto usa para indicar seu compromisso com uma devoção. Esses símbolos são muitas vezes comprados na barraca do convento, para em seguida serem abençoados pelos frades e postos em uso. Outras vezes, vêm de fora especialmente para isso.

A visão desses símbolos em conjunto nas missas servia muitas vezes para anunciar a presença de várias devoções no convento, além do culto a Santo An-tônio, e ainda os diferentes graus de envolvimento de seus portadores para com elas. Esse era o caso das insígnias das associações de culto, que indicam que o compromisso com um santo adquiriu uma maior formalidade. Cada uma dessas fitas tinha por trás uma associação cultual formalizada, da qual o portador – na verdade, geralmente era uma portadora – era membro. Portanto, além dos membros

da Pia União, associação diretamente vinculada ao convento, havia associações de outras igrejas, e devotos de outros santos, que compareciam às terças-feiras para saudar Santo Antônio.

Mas não era apenas a cor da fita que assinalava distinções entre os devotos. Cumprimentando D. Heloísa pela beleza de sua fita verde, ouço em resposta que “Esta não é para qualquer um... Para ter direito a usar uma dessa, é preciso fazer muito pelo santo”, e descubro que o tamanho da fita, isto é, sua largura, expressa uma hierarquia interna da Pia União, na qual quanto mais alto o posto ocupado na associação, mais larga é a fita. E depois de muito observar as senhoras da Pia União de Santo Antônio com suas fitas verdes no pescoço, percebo que algumas as traziam manchadas, com aparência de velhas e desgastadas. Estranhando a falta de zelo em senhoras tão cuidadosas, indaguei e descobri que as manchas eram feitas pela água benta recebida nas bênçãos. As fitas verdes funcionavam então como um triplo sinal distintivo entre os devotos de Santo Antônio: separava os membros da Pia União dos não-membros, indicava os membros que ocupavam cargos mais e menos importantes na associação e distinguia aqueles que receberam muitas bên-çãos dos que não eram tão assíduos ou que entraram recentemente na confraria, que possuíam fitas novas e imaculadas.

Portanto, na observação da relação de devoção, esta surgiu como uma série de atos de fala e atos corporais, realizados na interação do devoto com as ima-gens de santos, e com outras pessoas presentes no local. Mas além de práticas, a relação de devoção envolve sentimentos. Ela apareceu nas entrevistas como sendo marcada pela fé, pela confiança e pela amizade. Um devoto tem fé em seu santo de devoção, ele confia em que receberá sua ajuda, ele o considera um amigo.

A fé, apesar de ser constitutiva da relação, assumiu um estatuto ambíguo. Ela surgiu tanto como uma condição para iniciar e acionar essa relação, como enquanto a resultante de uma relação bem sucedida. Ou seja, ela pode ser vista como o ponto de partida da relação santo-devoto, mas também como o seu ponto de chegada. A fé como ponto de partida apareceu da seguinte forma:

Santo Antônio é um santo muito poderoso e que está sempre prestes a ajudar as pessoas de fé e que realmente acreditam em seus milagres. Eu mesma consegui me curar de uma doença (r60: mulher, 33, Centro).

Ele é um santo que ajuda a todos que pedem a ele com fé (r101: homem, 19 anos, Santa Cruz).

Ele é um santo milagroso. A pessoa pede com fé e consegue (...) (r177: mulher, 5o anos, Campo Grande).

O “pedir com fé”, indica que a condição maior (e, para alguns, a única) para

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receber uma graça do santo é acreditar nele. Portanto, essa expressão estabelece uma relação entre fé e eficácia, com o sentido de “recebi, porque acredito”.

Já indicações da fé como ponto de chegada surgiram assim na fala dos en-trevistados:

Santo Antônio é um santo protetor que ajuda a sair dos momentos difíceis e sempre que preciso, ele me ajuda, por isso que eu sou devoto dele ( r76: homem, 39 anos, Caju).

Essa última formulação assume um sentido inverso ao das anteriores, quanto à relação entre fé e eficácia: porque recebi, ou recebo, ou porque alguém de minha família, ou de meu círculo de relações, recebeu algo do santo, acreditamos nele. “Acredito, porque recebi”, parece ser a equação.

É possível perceber então em circulação no convento a existência de duas fórmulas opostas que relacionam fé e eficácia, na relação com os santos –”recebo porque acredito” e “acredito porque recebo”. Elas têm o sentido invertido: uma vai da crença no santo à graça que ele pode conceder, a outra parte da graça já concedida para chegar à crença nele. O aparente antagonismo entre as duas pode-ria levar à tentativa de desqualificar uma delas, optando pela outra. Entretanto, da perspectiva adotada neste trabalho, de recuperar o sentido que as ações assumem para os agentes, percebe-se que as duas formas encontram-se em operação no convento, porque há pessoas que associam sua devoção ao santo às benesses que dele receberam, e outras que atribuem as graças alcançadas à fé que anteriormente já tinham nele. Mais importante que o sentido oposto assumido por essas duas fórmulas, é a ligação que ambas expressam, que deve ser enfatizada, entre a fé em um santo e as graças que ele é capaz de conceder. A devoção a um santo aparece assim associada a seu poder de realização.

Já a “amizade”, é um sentimento exclusivo de relações já consolidadas com o santo, e refere-se a uma certa intimidade e proximidade que o devoto estabeleceu com ele. A “amizade” associa-se a práticas como as de “conversar” e “aconselhar--se” com o santo, nas quais a intimidade com ele é experienciada. Ela apareceu na fala dos agentes da seguinte maneira:

(...) A minha fé atribuo a Santo Antônio. Peço proteção quando vou para o trabalho e agradeço quando volto. Ele é meu amigo, converso com ele (r209: mulher, 46 anos, Copacabana).

Todas as perguntas que eu faço para Santo Antônio, ele me responde. Ele é um grande e verdadeiro amigo (r18: mulher, 38 anos, Bonsucesso).

Santo Antônio é um amigo, na hora do trabalho, eu estou angustiada e venho

na igreja e não preciso falar nada, é só olhar para a imagem e me dá um conforto (r32: mulher, 30 anos, Flamengo).

Meu fiel amigo e conselheiro (r87: mulher, 24 anos, Ilha do Governador).

(...) Ele está ao meu lado, eu não o vejo como morto, como santo, vejo ele como amigo ( r105: mulher, 25 anos, Irajá).

Nas entrevistas mais longas com devotos, a imagem do amigo apareceu também. Diz Rosali, que freqüenta o convento toda a terça-feira, seguindo uma “tradição da família” herdada da mãe:

Com ele a gente pede, agradece, chora, ri. Ele é o nosso amigo no plano espiritual.

A amizade ou intimidade com o santo surgiu de forma ainda mais explícita e detalhada na observação de campo, quando muitas pessoas afirmavam ter uma relação tão próxima a Santo Antônio que “bastava olharem-se” para que o santo soubesse tudo o que se passava com elas, e em seguida agisse em seu favor. Muitas fórmulas de oração, ou mesmo pedidos escritos, utilizam as expressões “o senhor, que tudo sabe da minha vida...”, “você, que me conhece como ninguém”, “você, que acompanha tudo o que se passa comigo...”; expressões que aparecem também na fala dos devotos.6 A amizade expressa o conhecimento mútuo e íntimo entre santo e devoto, e comporta expressões de carinho para qualificar o santo tais como: meu querido, meu santoninho, meu santinho, meu amado etc.7 Portanto, o santo é visto como um amigo, e um amigo é aquele que consola, aconselha, acompanha, protege o devoto. E mais: ele oferece respostas às suas interrogações, “funcionando” como uma espécie de oráculo. Assim, as qualidades de amigo atribuídas ao santo servem como um reflexo daquilo que os devotos consideram como um amigo ideal.

Há ainda a confiança no santo, que aparece como uma certeza adquirida pelo devoto de que pode contar com ele em todos os momentos de sua vida, o que im-plica em que ele se sinta seguro por contar com sua proteção.

É um santo que está sempre disposto a ajudar, quando necessário, os oprimidos, ou seja, nunca nos abandona (r64: mulher, 52 anos, Campo Grande).

É o santo que me ajuda sempre que estou com problemas (r119: homem, 40 anos, Penha).

Entretanto, nem todos os devotos partilham desses sentimentos no mesmo grau, pois seu conjunto não é homogêneo. Há uma série de distinções e hierarquias, postas em operação pelos próprios agentes, que demarcam diferenças entre eles. Há os que

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estão mais próximos ao santo, mais comprometidos com a devoção, e outros que estão mais distantes. De um lado estão os “muito devotos”, ou devotos fervorosos, que têm uma “grande devoção” pelo santo; do lado oposto, os “pouco devotos”, ou “não tão devotos assim”, e entre esses dois pólos, há posições intermediárias. Essas diferenças podem ser auto-atribuídas, ou seja, as pessoas podem elas mes-mas definir seu grau de adesão a um santo – “sou um devoto fervoroso de Santo Antônio”, “amo Nossa Senhora, ela é tudo para mim”, e, na posição contrária, podem assumir não serem muito devotas: “não conheço muito Santo Antônio, porque sou devota de Nossa Senhora”, ou “não sou devoto de Santo Antônio, mas vim aqui conhecer a festa”. Quanto maior o grau de fervor, maior o grau de certeza da proteção oferecida pelo santo. Os devotos fervorosos desfrutariam de uma maior intimidade com o santo, teriam maior domínio da etiqueta do pedido, e contariam com a presença constante do santo em sua vida.

Mas além de proclamarem-se devotas ou não, as pessoas podem ser reconhe-cidas enquanto tal por outros agentes (freqüentadores, sacerdotes, funcionários), que atribuem a determinadas pessoas um maior envolvimento com a devoção do que a outros. Como disse Joaquim:

Eu conheço assim, de vista assim, uma porção de pessoas que vêm às terças--feiras, que são devotos. Agora... Tem gente que é devota “braba”, mesmo, entendeu, que trabalha aqui...

Os critérios para identificar uma “devoção braba” parecem girar em torno de dois pontos fundamentais: um, mais subjetivo, seria o grau de confiança e intimi-dade que um devoto estabeleceu com seu santo protetor. O outro, mais objetivo, e que é quase o desdobramento e a materialização do anterior, seria a doação que a pessoa realiza ao santo, através da ajuda ao convento e a seus serviços.

A profundidade da confiança, por ser subjetiva, é difícil de avaliar, mas ela se expressa em marcas de linguagem, onde a força da relação com o santo se torna explícita através da forma pela qual o devoto a ele se refere. Este aparece como “maravilhoso”, “meu amigo”, “meu protetor”, “tudo para mim”, “minha própria vida”, “minha felicidade”, etc... Há ainda um conjunto de três expressões, surgidas na fala de diferentes agentes, que pareceu condensar de forma mais evidente o sinal de uma devoção fervorosa. São as expressões “eu me agarrei com ele”, “eu me apeguei a ele”, e “eu me peguei com ele”.

Essas expressões apareceram relacionadas a episódios críticos da vida de um devoto, situações-limite, de desespero e falta de alternativas, muitas vezes em caso de descrença na ciência ou na justiça humana, onde o apelo ao santo apareceu como a última e definitiva chance de vencer a dificuldade. As expressões remetiam a uma espécie de aposta radical feita nas capacidades do santo e na concessão da graça

por ele, o que acabou acontecendo.8 Portanto, alguém que já se agarrou com um santo, passou por uma experiência de entregar-se totalmente a ele em determinado momento, e ter podido contar com a sua proteção. É como se a pessoa se atirasse ao santo sem ter certeza de ser bem acolhida, e recebesse a surpresa de poder contar com sua sustentação.

A cada vez que ouvia a expressão “... aí eu me agarrei com Santo Antônio...”, compreendia que estava falando com um devoto fervoroso. Mas essa formulação parecia também estabelecer a associação entre a devoção e rendição ao poder do santo, como se houvesse uma correspondência entre o quanto a pessoa se considera devota de um santo, e o quanto ela se entregou a ele. Um devoto fervoroso é aquele que colocou a própria vida sobre sua proteção – daí que é a própria vida que ele vem agradecer ao santo no convento.

No entanto, o grau de envolvimento de um devoto com sua devoção assume demonstrações mais objetivas no convento. São as doações que ele efetua em favor de seu santo protetor, que podem ser em tempo, em bens ou em dinheiro. Mas como as doações em bens, e, principalmente, em dinheiro, são marcadas por uma certa sutileza, é o tempo concedido aos serviços do convento o índice mais evidente para classificar um devoto fervoroso O tempo tomado em um duplo sentido: a quantidade de horas que uma pessoa é capaz de dedicar gratuitamente ao convento por semana, como “trabalho voluntário”, ou o número de anos que uma pessoa permanece fre-qüentando o local, “sem falhar”. Quanto mais tempo a pessoa dedica ao convento, maior é considerada sua devoção ao santo. E como comparecimento ao convento e a ajuda em suas atividades assume, para os devotos de Santo Antônio, a conotação de um agradecimento ao santo pelas graças alcançadas, vê-se que a devoção a um santo implica na doação como forma de gratidão. Doação de seu tempo e de seu dinheiro, doação de si mesmo aos outros.

3 – Especificidades

Au-dela du circuit normal des échanges, de ce qu’on donne pour obtenir – il y a un deuxième circuit, celui du bienfait et de la reconnaissance, de ce qui est donné sans esprit du retour, de ce qui est offert pour “remercier” (Benveniste, 1969: 202, I verbete: “Gratuité et reconnaissance”)

Os devotos de um santo são aqueles que estão de alguma maneira vinculados a ele, numa relação que envolve a fé, a amizade, a confiança. Qualquer pessoa pode pedir alguma coisa a um santo, principalmente se o pedido for diretamente relacionado à especialidade dele. E retribuída a graça alcançada, essa pessoa pode considerar-se livre de obrigações para com ele, pronta para seguir seu caminho e solicitar ajuda deste santo ou de outro qualquer em caso de novas necessidades.

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Mas para um devoto, essa relação se prolonga, pois há sempre pedidos sendo feitos, graças sendo alcançadas, proteções sendo recebidas e gratidão por aquilo que é concedido. Se o início da relação com o santo pode ainda estar na memória, embora em alguns casos ela seja tão naturalizada que ele pareça ter estado pre-sente na vida do devoto desde sempre, seu fim não parece estar no horizonte das possibilidades, mesmo que ela possa terminar um dia. A devoção é, assim, vivida como uma relação vinculante e duradoura.

Isso quer dizer que, ao “tornar-se” devota, a pessoa entra em uma ligação mais profunda e permanente com um santo. É isso que várias pessoas apontaram ao marcar as diferentes relações que possuem com o panteão de santos católicos: “gosto de muitos santos, mas devota, sou apenas de São A ou Santa B”:

Da Virgem de Fátima, eu sou devota, mas eu acredito em todos os santos (r72: mulher, 60 anos, Cavalcanti).

“São José é o de devoção, mas gosto de todos os outros santos católicos” (r210: homem, 53 anos, Realengo).

O aprofundamento da relação com um santo garante ao devoto uma proteção mais ampla do que aquela conferida por sua especialidade. Esse processo de am-pliação da ação do santo foi identificado na fala dos entrevistados, ao definirem Santo Antônio no capítulo 7. Sua característica mais reconhecida é a de ser um santo casamenteiro. Mas a menção exclusiva a ela podia denunciar justamente uma falta de intimidade do entrevistado com o santo, uma falta de conhecimento de sua biografia, uma falta de compromisso com seu culto. Qualquer católico mi-nimamente informado sabe dessa especialidade, e pode eventualmente pedir ajuda a Santo Antônio em um relacionamento. Porém, um devoto sabe o quão além seu poder pode se manifestar, e por isso tenderá a definir Santo Antônio também como milagroso, poderoso, glorioso, protetor dos pobres, etc, considerando redutor seu tratamento apenas como casamenteiro. Para um devoto, mesmo que a relação de devoção tenha começado por um pedido (atendido) de relacionamento afetivo, o santo jamais será apenas isso.

É possível, portanto, estabelecer várias relações com os santos sem maior envolvimento: “fazer promessa”, “experimentar” e mesmo “pedir” sem ser neces-sariamente devoto. Mas há santos dos quais as pessoas se tornam devotas, e com os quais estabelecem uma relação específica, a de devoção, cujas características singulares procuramos destacar nesse capítulo.

Essa constatação leva a repensar algumas das formas pelas quais as relações com os santos têm sido comumente analisadas. Uma das leituras correntes é abordá--la como um sinônimo de troca mercantil. Uma pessoa que pede alguma coisa a um santo, oferecendo-lhe em troca determinada retribuição, estaria de fato comprando

dele a concessão de benesses. As trocas simbólicas com os santos chegariam mes-mo a ser condenadas como “comércio da salvação”, ou “mercantilização da fé”.

A crítica a esse tipo de práticas foi encontrada no convento. No processo que desenvolvi de recolher sistematicamente em cada visita os santinhos que encontra-va na Igreja, levei uma repreensão de uma senhora da Pia União. Ela me advertiu que tomasse cuidado, que não usasse o santinho de qualquer maneira. Como e por que? Segundo ela, eu deveria primeiro riscar atrás onde aparece escrito: “por uma graça alcançada, mandei imprimir 5.000 exemplares dessa oração. Gráfica XXXX”. Por que?

Porque passa uma idéia errada de que é preciso ter dinheiro para imprimir 5 mil cópias para conseguir uma graça do santo.

Pergunta – Por isso vocês retiram os santinhos?

É, nos levamos para as crianças do catecismo riscarem essa parte, depois fica pronto para usar, a gente deixa pega.

Mais tarde, conversando com um frade, quis saber o que era realmente feito com os santinhos recolhidos. Ele desconversou:

Frade – (...) Deixa isso para lá, isso não é bom.

Pergunta – Por que não é bom?

Frade – Porque é comércio, é mercadoria. Não é uma coisa boa.

Pensar a relação com os santos como uma relação mercantil, em que a graça ou a retribuição sejam “mercadorias” significa pensá-la como uma relação com-posta por três etapas bem definidas – pedir / receber /agradecer, onde “pedir” seria na verdade comprar, e “agradecer”, pagar. Mas vimos ao longo da pesquisa que, embora em alguns casos, mais nitidamente quanto às promessas, as distinções entre três etapas estejam presentes, e mesmo os agentes as formulem em termos econômicos,9 em outros casos as etapas não estão bem definidas, podendo mesmo estar ausentes. Ou seja, podem ocorrer agradecimentos mesmo sem graças, e graças sem pedidos. A única situação não encontrada em campo foi a de uma graça sem agradecimentos.

Além disso, como há pedidos não atendidos, isto é, graças não concedidas, e a relação com os santos continua, pela ótica “mercantil” o devoto correria o risco de assumir o papel de um ingênuo, ao “comprar” possibilidades de ajuda que nem sempre se efetivam, e mesmo assim permanecer na relação.

Creio, portanto, que os elementos apresentados sobre a relação de devoção, e

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a observação de que nela os pedidos e agradecimentos tendem a se confundir ou fundir relativizam esse modelo de interpretação. Na relação de devoção, e mais ainda na devoção fervorosa , não há mais distinções claras se a visita do devoto é para pedir ou para agradecer, pois sempre se está pedindo ou agradecendo alguma coisa. Além disso, todos os acontecimentos da vida tendem a ser graça, porque em todos os momentos do devoto a presença do santo se faz sentir – a própria vida em seu conjunto tende a ser vista como uma graça do santo.

Assim, ao tentarmos perceber a relação de devoção como os agentes nela en-volvidos efetivamente a formulam, é possível afastá-la do modelo de troca mercantil e recuperá-la como uma relação específica, na qual a medida em que um devoto se torna mais e mais fervoroso, ele se doa a um santo – “seu” santo, enquanto persistir a gratidão e o reconhecimento pelas graças alcançadas em toda a sua vida.

Notas1 A homonímia, que também foi usada como justificativa para a devoção, surgiu atrelada às duas situações: ou porque a pessoa nasceu no dia do santo, ou porque ele (santo) era da devoção de alguém da família.2 Foram utilizados exemplos de vários santos, para demonstrar a variedade de casos em que isso ocorre e também porque quanto a Santo Antônio já haviam sido citados vários exemplos no capítulo 8.3 Sobre a questão do indizível em determinadas práticas sociais, ver Favret-Saada, 1977.4 No caso de atos de fala realizados durante a missa para um santo que não está no altar, ocor-reram episódios em que o sacerdote convidou o público participante para voltar-se em conjunto à imagem em questão, para onde ela estava localizada. 5 Em seu ensaio sobre a origem histórica do culto aos santos na antigüidade tardia, Brown (1982) lembra que o tema na verdade remete à questão do contato entre o Céu e a Terra, e ao papel que os seres humanos mortos (os santos, no caso) possam ter neste contato. Menciona ainda a ambigüidade constitutiva da figura do santo, que mesmo já tendo garantido sua entrada no reino dos Céus, manifesta sua presença na terra, seja em sua sepultura, ou em suas relíquias corporais ou de contato. Christian (1981) e Turner & Turner (1978), dedicando-se ao estudo do culto aos santos em episódios posteriores da história do catolicismo, analisam a manifestação dessa presença em imagens e aparições. Tais objetos – sepulturas, relíquias, imagens – e even-tos, como as aparições, “presentificam” os santos e viabilizam uma comunicação entre o Céu e a Terra, pois seriam simultaneamente um testemunho e um meio concreto de intervenção do divino na vida humana.6 D. Marita contou-me uma graça de Santo Antônio no episódio do despejo de seu inquilino. Ele estava há dois anos sem pagar-lhe o aluguel, e ela tentou, junto com o sobrinho advogado, retirá-lo do apartamento através da Justiça. Preocupada com a morosidade do caso, e com as dificuldades de concluí-lo em seu favor, pediu a ajuda do santo, conseguindo que o inquilino saísse. O que aqui interessa ressaltar, como exemplo da intimidade e da amizade com o santo, é a forma assumida por seu pedido: “Eu vim aqui na Trezena do ano passado, cheguei ali na

imagem do santo (…) e falei para ele: – Olha, está nas suas mãos. Você sabe o que eu sofri para conseguir essa casa (…), então deixo na sua mão” (4/6/2001).7 Tratam-se de exemplos retirados dos pedidos escritos ao santo.8 Minha análise desse tipo de situação-limite foi inspirada pelas formulações de Pascal (1973) sobre a aposta na religião. Este filósofo considera que a pessoa que aposta na possibilidade da existência de Deus nunca perde. Pois se ele não existe, não há nada a perder, e se ele existe, há a vida eterna a ganhar. Assim, na aposta pascaliana, entram em jogo, por um lado, o ganho infinito, por outro, a perda do nada, e nesses casos, “não há que hesitar, é preciso dar tudo” e apostar (id.: 100).9 Como disse uma entrevistada sobre as graças recebidas em sua vida : “Isso tudo, minha filha, é o ordenado que Santo Antônio nos dá”.

A relAção de devoção

251250 A dinâmicA do sAgrAdoconclusão

A maior parte do estudo da religião como vivida é o estudo do que é “taken for granted”: de consensos, de obviedades, do que é feito sem ser formulado, quase o automático (Christian, W., 1987, tradução livre).

O trabalho aqui apresentado é resultado de um percurso. O ponto de partida da pesquisa que lhe deu origem era a intenção de analisar o cotidiano e as formas de sociabilidade em um santuário católico. O “caso” escolhido foi o Convento de Santo Antônio, localizado no Largo da Carioca, no Rio de Janeiro, uma casa de religiosos masculinos da Ordem dos Frades Menores franciscanos. Mas mesmo sendo uma casa de frades, sua dimensão de santuário se manifesta na abertura de sua Igreja à acolhida do público de visitantes, e na realização de celebrações centradas na figura do santo.

A perspectiva adotada foi a de abordar o convento/santuário a partir do acom-panhamento de suas celebrações e das demais atividades realizadas no local, pela ótica da interação entre os diferentes agentes que nele circulam, e das formas de articulação que estabelecem entre si e com os santos. Isso significou privilegiar na análise não as descrições dos grandes grupos que se encontram nesse espaço, mas uma etnografia do próprio encontro, isto é, das situações que promoviam a reunião.

A opção por realizar a análise num santuário não foi, portanto, casual, como procurei demonstrar na introdução e no primeiro capítulo. Ela deveu-se justamente ao fato de que esse tipo de edifício religioso, ou melhor, esse tipo de espaço so-cialmente destinado a práticas religiosas católicas, seria um lugar que facilitaria a interação. Pois um santuário, segundo a definição adotada, seria um lugar social-mente considerado “sagrado”, ou facilitador do acesso ao sagrado, cujos atributos de excepcionalidade consensualmente reconhecidos por determinados grupos sociais os levam a comparecer até ele, num fluxo considerável, proveniente de origens diversas e com uma certa periodicidade. Por outro lado, os responsáveis por um santuário tendem a organizá-lo em função desse movimento, preparando a acolhida dos visitantes, viabilizando a possibilidade de “compatibilizar diferenças

253252 A dinâmicA do sAgrAdo

e de responder a demandas religiosas diversas e contraditórias” (Steil, 1996: 85).Um santuário configura-se assim como um lugar do encontro das diferenças,

transformando-se em “um palco de trocas culturais e de idéias, um ponto de en-contro entre crenças ortodoxas e dissidentes, um universo de difusão de costumes e valores antigos e novos, um lugar de transações rituais e econômicas e uma arena de disputas de discursos seculares e religiosos” (id.: 86). Essa abertura à mediação acaba consolidando aquilo que o mesmo autor chamou de uma “estrutura de compa-tibilidade inclusiva”, isto é, uma certa plasticidade, enquanto um espaço destinado mais a aglutinar pessoas e incorporar diferenças do que a expurgar heresias e a criar um modelo de pureza doutrinal.

Neste sentido, o convento de Santo Antônio concentrava condições bastante propícias à análise. Ele recebe semanalmente milhares de pessoas em busca da benção de Santo Antônio e/ou dos demais serviços que nele são oferecidos, e organiza-se em função de oferecer esses serviços e atender a esse público (embora, como foi demonstrado ao longo do trabalho, outros interesses o perpassem). Além disso, recebe uma vez por ano no mínimo 50 mil pessoas para saudar o santo em seu dia, 13 de junho. Portanto, havia um santo considerado poderoso e milagroso, que receberia com uma certa constância a visita de seus devotos.

O livro inicia-se com um conjunto de observações sobre o processo de pesquisa e a construção do objeto, em uma primeira parte de cunho metodológico e episte-mológico. A opção por detalhar alguns dos procedimentos adotados na pesquisa atende à preocupação de fornecer ao leitor elementos para compreender o formato final adquirido pelo trabalho.

Em seguida, construído o objeto, iniciam-se as análises a partir do material de campo propriamente dito. As discussões vão se distribuir pelas partes II e III, respectivamente intituladas “Rituais e Formas de Sociabilidade” e “Revisitando a relação santo-devoto”. A meu ver, elas assumem dois focos distintos, isto é, dois ângulos diferentes de abordagem do problema. Na segunda parte, o foco é posto no convento, tentando desdobrar o conjunto de relações que nele se articulam. Na terceira, o foco vai para as relações que os freqüentadores do convento estabelecem com os santos, que assumem grande importância no local.

Assim, o capítulo 2, “O Convento de Santo Antônio”, que abre a segunda parte, contém informações sobre a posição relativa do convento quanto à ordem religiosa a que pertence, como também quanto à cidade do Rio de Janeiro e sua história. Há ainda uma descrição sumária de seu espaço físico, tal qual registrado no trabalho de campo, e uma análise de como o convento, representado tanto na literatura como na fala dos frequentadores como um “lugar especial”, torna-se um ponto estratégico para configurar-se como um santuário.

Em seguida, o capítulo 3, “Etnografia das celebrações”, é, como o próprio nome indica, dedicado à análise dos principais serviços religiosos oferecidos pelo

convento, tais como a benção de Santo Antônio, as missas, as homilias, a confissão e o aconselhamento, e a Trezena Preparatória [da festa] de Santo Antônio. Também outras atividades, de cunho mais informal, foram analisadas, enfatizando ao longo do texto as formas pelas quais as pessoas que frequentam o convento efetivamente participam delas.

Já o capítulo 4 é dedicado às “pessoas do convento”. Nele, tracei um painel geral das pessoas que freqüentam o local, ou que nele moram e trabalham, tentan-do identificar as posições que os diferentes grupos – frades, padres, funcionários, voluntários, freqüentadores em geral – ocupam uns em relações aos outros.

No capítulo seguinte, “Formas de articulação”, tento recuperar a partir da fala dos agentes e do mapeamento de algumas categorias significativas ao universo local, três princípios de articulação que, acredito, têm força operativa no local: a “redistribuição”, movida pela circulação de “ajudas” que atravessa o convento; a “apropriação” do local e dos serviços, feita pelos visitantes, para tentar conformar a ida ao “Santo Antônio” aos seus desejos, a “atitude pedagógica”, isto é, a trans-missão de informações e regras de conduta para transitar pelo universo devocional do catolicismo.

Nesta segunda parte, portanto, há um desenho do quadro geral do funciona-mento do convento, dos serviços que ele oferece e da movimentação que há em torno desses serviços. A análise vai se deslocando de uma programação oficial, da qual procurei descrever etnograficamente os momentos de destaque, às formas efe-tivas pelas quais as pessoas se articulam em torno dessa programação. Foi possível através desse movimento analítico demonstrar como esse “lugar sagrado” é capaz de envolver a vida de um considerável número de pessoas, que vêm ao local não apenas pelo santo, mas também pelos demais serviços, ou mesmo pelo lugar em si, considerado singular e destacado no centro da cidade. Há uma massa significativa de gente, cuja composição é flutuante, mas há também situações de uma freqüência regular impressionante, que atravessam décadas, ou mesmo que se reproduzem através de gerações, e que é motivo de orgulho para os que conseguem mantê-la.

Portanto, em torno desse espaço religioso se configura uma certa sociabilidade: grupos são formados, convites e conselhos são dados, as pessoas se conhecem e se reconhecem, estabelecem vínculos. E a própria história dos freqüentadores vai se associando ao lugar: desde os pedidos aos santos até as intenções de missa, elas articulam sua vida e a de amigos e parentes ao convento e ao santo, através de “pedir por”, ou “pedir para” os outros.

Foi possível ver também que não é só um movimento “de fora para dentro”: há também um movimento “de dentro para fora”, nas várias formas que o convento se articula com o mundo exterior. Ele não se esgota em si mesmo: seja por iniciativa de seus freqüentadores ou de seus frades, convites e sugestões o vinculam a outros templos, a outras atividades.

conclusão

255254 A dinâmicA do sAgrAdo

Por outro lado, a abertura à acolhida da diversidade parece transformá-lo num espaço facilitador da transmissão de informações sobre o catolicismo: há uma pedagogia católica em operação, ou seja, uma atitude de abertura a ensinar aos outros freqüentadores tanto conhecimentos oficiais sobre a doutrina e a liturgia, como aqueles adquiridos através da experiência, do uso, da freqüência a celebra-ções. Há, ainda, toda uma dimensão avaliativa que aparece nessa transmissão de informações, formando uma espécie de fundo coletivo onde determinados santos poderosos, orações eficazes, boas cerimônias, igrejas interessantes e padres pre-parados vão sendo incorporados a partir de comentários e sugestões trocados entre os freqüentadores.

Pode-se pensar na possibilidade não só de transmissão, mas de transforma-ção, criação e integração de práticas e valores, que levem a uma atualização do catolicismo sob a aparente manutenção de sua estrutura. Neste sentido, os frades do convento podem ser vistos não apenas como reprodutores de determinados conhecimentos, mas produtores de determinadas inovações, ou determinadas inter-pretações locais da doutrina, a partir da interação que estabelecem com o público que atendem no convento.

Por outro lado, as pessoas também desenvolvem atividades lúdicas no con-vento: comer, encontrar conhecidos, adquirir artigos religiosos na Boutique Santo Antônio, ou ofertas na Barraca da Pechincha, almoçar e ficar conversando com os amigos, todas essas atividades não especificamente religiosas fazem parte da visita realizada semanalmente ao convento.

Portanto, os freqüentadores definitivamente não estão ali só por causa de Santo Antônio, e neste sentido a segunda parte pode demonstrar que o convento não é apenas o santo. Mas foi justamente assumindo a perspectiva de “descolar” o convento do santo que pude perceber a importância desse personagem, ou melhor, do culto aos santos no local, sendo a razão de atração de grande parte de seus fre-qüentadores, consumindo parcelas consideráveis do tempo e da energia que eles dedicam a esse lugar.

É por isso que a terceira e última parte do trabalho se dedica a revisitar a relação santo-devoto, concentrando o foco no(s) santo(s) e nas práticas de culto desenvolvidas no convento, tentando realçar as nuances que elas aí assumem con-cretamente. A preocupação fundamental foi, pois, repensar a relação, ou melhor, as relações que as pessoas estabelecem com os santos a partir das práticas efetivamente observadas e das expressões utilizadas pelos próprios agentes para explicá-las.

Para isso, foi preciso primeiro conhecer melhor Santo Antônio, o santo pa-droeiro do convento. Ele é abordado no capítulo 6 a partir da literatura histórica e folclórica, numa análise de sua vida e de seus principais milagres, a fim de mapear o fundo de representações sociais existentes sobre esse santo, e que se compõe e recompõe através dos tempos. Já o capítulo seguinte, “Santo Antônio no conven-

to...”, é dedicado a recuperar as formas de qualificação do santo em circulação no convento do Rio de Janeiro contemporâneo, recompondo-as pela fala dos freqüen-tadores sobre o santo.

Porém, embora seja um convento dedicado a Santo Antônio, há outros santos no local, concentrados em alguns pontos-chave. Quem são esses santos, quais os espaços que ocupam e qual a forma de relacionamentos que os freqüentadores es-tabelecem com eles são algumas das questões tratadas no capítulo 8, que se dedica justamente a analisar a multiplicidade de santos encontrada. É através dessa análise que a prática corrente de “combinar devoções”, isto é, de ser devoto de dois ou mais santos, pode ser ressaltada.

Já no capítulo 9, “A relação com os santos no convento”, são analisados os pedidos e agradecimentos aos santos, que se renovam a cada visita ao convento, e que, portanto, articulam a relação dos freqüentadores com eles. Quanto aos pedidos, pude identificar a prática de pedir pelos outros, de usar fórmulas e expressões ade-quadas para pedir, de identificar o santo apropriado para se fazer um pedido – temas que remetem à questão da eficácia do pedido. Mas também pude constatar, através de uma análise amostral de pedidos escritos ao santo, uma determinada “etiqueta do pedido”, que um bom devoto deve saber manejar com desenvoltura nas relações com seu santo protetor, a fim de conseguir realizar não apenas um pedido eficaz, mas um pedido adequado a determinados padrões doutrinários e éticos da devoção.

Analisando os pedidos e as formas de pedir, foi possível perceber que a relação com os santos tem uma dimensão de experimentação, que muitas vezes serve para inaugurar a relação com alguns deles, e que implica fazer um pedido sem necessariamente criar um vínculo entre o santo a que se pede e aquele que fez o pedido. Considerar a importância da experimentação permitiu-me, portanto, identificar uma diferença entre “pedir a um santo” e “ser seu devoto”, que não são necessariamente a mesma coisa.

Já quanto aos agradecimentos, procurei identificar o que era agradecido ao santo e a forma pela qual as pessoas o faziam. No conjunto das variadas expressões citadas, foi possível perceber uma distinção entre “agradecer uma graça” e “pagar uma promessa”. Se a promessa parecia envolver uma retribuição definida e uma dívida a saldar, a “graça” parecia envolver a idéia de gratidão, o reconhecimento pelo santo, que surgia principalmente nas situações de pessoas que compareciam ao convento para agradecer um mesmo fato todos os anos. Havia, portanto, agra-decimentos que se prolongavam indefinidamente.

Pude assim perceber que a relação entre pedidos, agradecimentos, graças e devoção era mais complexa e menos automática do que aquilo que havia imaginado inicialmente. Nem todos os que pedem a um santo se consideram seus devotos; nem todos os devotos pedem as graças, mas podem recebê-las mesmo assim; nem tudo o que se pede é concedido, o que também pode ser considerado uma graça.

conclusão

257256 A dinâmicA do sAgrAdo

Mas tudo aquilo que é considerado graça – e que pode variar de coisas aparente-mente pequenas, como achar uma chave a coisas espetaculares, como sair do coma sem seqüelas – é agradecido, mesmo o que não for pedido. Há, assim, um certo descolamento entre pedido-graça-agradecimento, e uma colocação dessa equação em novos termos.

Essas distinções permitiram-me recuperar a especificidade da relação de devoção. Há muitas maneiras de estabelecer relações com os santos, até mesmo simpatias. Mas a relação de devoção assume uma série de características distintivas em relação às demais. Ela implica um vínculo duradouro e permanente de uma pessoa com um santo, vínculo que envolve a fidelidade, mas não a exclusividade, pois é possível se combinar devoções. A relação é ainda marcada pela amizade, fé, confiança, gratidão e reconhecimento. E ela se expressa materialmente, tanto na linguagem do devoto, na forma de falar ao santo ou sobre o santo, como em atos de louvor que ele realiza para o santo: cantos, orações, ladainhas etc.

Mas a devoção se manifesta ainda numa atitude de doação do devoto – ele se entrega ao santo, ou ao bem dos outros, por amor ao santo. Enfim, quanto mais “fervorosa” se torna uma devoção, a própria vida passa a ser lida como uma suces-são de graças do santo, e o devoto parece viver num permanente estado de graça.

Assim, partindo do cotidiano e das formas de sociabilidade em um santuário católico, foi possível perceber, através da alternância entre focos de análise mais abertos e mais concentrados, as maneiras pelas quais as pessoas, ao se relaciona-rem com os santos, relacionam-se umas com outras, estabelecendo novas relações no convento, ou reativando aquelas existentes em outros domínios de suas vidas, trazendo-as para esse lugar. E também, num sentido complementar, como as ques-tões de suas vidas as levam a buscar os santos, para alcançar dele graças e benesses, pelas quais vão ao convento pedir e agradecer.

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A Noite, 17/11/1947 – fragmento contido em IPHAN – inventário do Convento e Igreja de Santo Antônio, caixas 510 a 512.

Entrevistas

1–Fradesdoconvento(semdetalhesdeidentificação)

fr. Andrade; fr. João; fr. Marcílio

2 – Freqüentadores

Adriana, 30 anos, informática, 13/6/.2002Amélia, 62 anos, funcionária publica aposentada, PaquetáCamila, dona de casa, 80 anos, Tijuca Celeste, 86 anos, aposentada, 13/6/2002Cláudia, 57 anos, assistente social aposentada, solteiraDinorah , 57 anos, depiladora, Ilha do Governador, 12/6/2001Fabíola, farmacêutica aposentada, 63 anos, CopacabanaHeloísa, enfermeira aposentada, Vila Isabel, 65 anos, Pia UniãoHilda, 73 anos, 33 de Pia União, casada (várias conversas)Ingridis, 31 anos, auxiliar de escritório, 13/6/2002Ïsis, dona de casa, “53 anos de casada e mais de 40 de Pia União”, MéierJoaquim, terapeuta corporal, 53 anos, Santa TerezaJuarez, garçom, Rocinha, 35 anosKátia, 33 anos, desempregada, 13/6/2002

bibliogrAfiA

275274 A dinâmicA do sAgrAdo

Marcelo, taxista, 13/6/2002Margarida, 57 anos, aposentada, TijucaMaria Helena, 49 anos, aposentada, Pia União, 13/6/2002Marita, 67 anos, viúva, auxiliar de enfermagem, aposentada, Largo do MachadoMatilde, estatística, “mais de 40 anos”, solteira, funcionária do IBGENadir, 72 anos, dona de casa, viúva, BotafogoOlga, “mais de 60”, dona de casa, Pia UniãoPedro e Sandra, 69 e 64 anos, respectivamente, moradores de Caxias, aposentadosRaimunda, ex-doméstica, 70 anos Reginaldo, 65 anos, aposentado, TijucaRita de Cássia, estudante, 13/6/2002 Rita, 65 anos, solteira, OlindaRosali, 33 anos, casada, sem filhos, secretáriaSofia, 34 anos, enfermeira, 13/6/2002Tatiana, 41 anos, divorciada, autônomaThereza, 56 anos, professora aposentada, casada, Vila IsabelVânia, 48 anos, professora e pedagoga, 13/6/2002Yeda, I/44; I/48, Jacarepaguá, 58 anos, aposentada, viúva

3–Profissionaisentrevistados

Adionel – assessor de imprensa da Arquidiocese do Rio de Janeiro

Cássia Frade – antropóloga, professora de Uerj, pesquisadora de santidade popular. 23/5/2001

Darci, pe. – um dos responsáveis pela pastoral no Santuário Nacional de Aparecida. con-versas telefônicas no primeiro semestre de 2001

Dimas, pe. – responsável pela pastoral dos santuários no Instituto Nacional de Pastoral da CNBB. Entrevistas pela internet, segundo semestre de 2001

Estevão Bittencourt, D. – responsável pela escola de teologia Mater et Magistra, da Ar-quidiocese.

Hélio Pacheco, pe. – chanceler da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro.

José – zelador da Igreja da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Antiga Sé, no centro. 23/1/2001

Raul Rosales – teólogo chileno, várias entrevistas por internet sobre pastoral dos santuários

Zeny Rosendahl – geógrafa, professora da Uerj, pesquisadora do tema dos santuários. 30/5/2001

Além desses entrevistados, foi aplicado um questionário a 250 pessoas presentes no convento, nos dias 12 e 13 de junho de 2001. Para maiores dados sobre os entrevistados e o questionário, consultar Menezes (2004), principalmente os anexos.

bibliogrAfiA

277276 A dinâmicA do sAgrAdoAnexo

Fotos e imagens

Vista do Convento de Santo Antônio a partir da saída do metrô, no Largo da Carioca. A fila extensa é para o elevador, e está maior que de costume porque as fotos são do dia da festa do santo.

279278 A dinâmicA do sAgrAdo

Imagem colocada próximo à sacristia durante a festa, para evitar filas diante do santo da Igreja.

Um santinho de Santo Antônio, com imagem em

cerâmica.

Entrada da portaria no dia da festa. No topo, Santo Antônio do Relento com sua lâmpada acesa.

A portaria: à esquerda, o portão do claustro; no centro, a janela de atendimento do frade-porteiro (fechada).

fotos e imAgens

281280 A dinâmicA do sAgrAdo

O santo após ter entrado: tocar a imagem é uma prática importante. Atenção à fita estreita da senhora que pertence à Pia União.

O santo entrando. Beijos, reverências. Atenção à fita larga

da senhora que carrega o andor.

Santo Antônio do Relento.

Outro santinho, com imagem desenhada.

fotos e imAgens

283282 A dinâmicA do sAgrAdo

A benção: o frade brande a vassoura no meio do público, que levanta as mãos e se aproxima dele.

O quadro de Santo Antônio, no interior

da igreja, devidamente “apropriado” durante a festa. Pedidos escritos,

flores, pessoas tocando.

fotos e imAgens

Uma novena acompanhada de uma fita para o devoto.

284 A dinâmicA do sAgrAdo

Impresso pela gráfica Edil.Segunda quinzena de novembro de 2004.